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Filosofia e Sociologia

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<strong>Filosofia</strong> e <strong>Sociologia</strong><br />

1


FI L O SO FI A E SO C I O L O G I A<br />

3


O<br />

C oor d en aç ão e d it or ial:Estúdio Conejo, Zênite.<br />

P r ep ar aç ã o d e t ext Zênite, o: Euvaldo Cotimguiba.<br />

C oor d en aç ão d e d esign e p r oj et os vi su ais: Pedro Yañez.<br />

R evi são: Geisa Teixeira.<br />

I m p r essão: Gráfica Brasil.<br />

r gan iz ad or : E st ú d io C on ej o<br />

Obra coletiva concebida, desenvolvida<br />

e produzida pelo estúdio Conejo, Zênite.<br />

E d it or E xe cu t ivo:<br />

Pedro Yañez.<br />

L ivr o d o p r ofessor :<br />

E U V A L D O C O T I M G U I B A<br />

4


Aos Estudantes<br />

“Agir no sentido mais geral do termo significa tomar iniciativa, iniciar, imprimir movimento<br />

a alguma coisa. Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores, em<br />

virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativa, são impelidos a agir. (...) O<br />

fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele<br />

é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada<br />

homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo.<br />

Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém.<br />

Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana<br />

da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição<br />

humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais”. (Hannah<br />

Arendt in A condição humana ).<br />

Partindo deste pequeno texto da Hannah Arendt tomamos a filosofia como esse início de<br />

busca da maturidade, de desejo pelo novo e por descobrir outros caminhos que não somente<br />

aqueles já trilhados e batidos por outros pés. Somos o novo sempre, mas para isso é necessário<br />

o desejo e ao mesmo tempo o desapego de todos os hábitos até aqui adquiridos. Não<br />

existem novidades para aqueles que acreditam saber tudo. É necessário, portanto, desprendimento<br />

incondicional de suas velhas metodologias, de seus vícios e até de algumas virtudes ou<br />

você não se deixará seduzir pelo novo e não alcançará o que veio aqui buscar.<br />

Esta compilação é um dos caminhos que lhe oferecemos para pensar outras coisas, outros<br />

problemas que talvez estivessem presentes em sua existência, mas que não foram pensados<br />

ainda a partir destes referenciais. Os modelos velhos e aparentemente bons podem não servir<br />

mais, é hora de construir o novo, buscar o novo. Se o velho lhe servisse não estaria aqui em<br />

busca do novo, portanto vamos embarcar nesta grande aventura que é o pensamento filosófico<br />

e que ele lhe desestruture para sedimentar nova forma de pensar e agir sobre o mundo.<br />

Esperamos de você o inesperado porque sabemos ser capaz de realizar o infinitamente improvável.<br />

Bem vindo à escada, sem corrimãos, do pensar.<br />

Euvaldo Cotinguiba Gomes<br />

B om est u d o!<br />

;)<br />

5


FILOSOFIA<br />

7


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA .............................................................<br />

A FILOSOFIA COMO SISTEMA ..........................................................<br />

O PROBLEMA POLÍTICO OU EM TORNO DA POLÍTICA ..............<br />

A FILOSOFIA MEDIEVAL ....................................................................<br />

A CIÊNCIA MODERNA – DESCARTES E GALILEU GALILEI ..........<br />

O ESTADO MODERNO E A QUESTÃO DEMOCRÁTICA .................<br />

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ........................................................<br />

O POSITIVISMO ...................................................................................<br />

SOCIEDADE DE CONTROLE ..............................................................<br />

11<br />

21<br />

35<br />

41<br />

48<br />

57<br />

65<br />

71<br />

84<br />

9


I N T R O D U Ç Ã O À FI L O SO FI A<br />

A s O r igen s d o P en sam en t o Filosó fico<br />

As origens do pensamento filosófico estão diretamente<br />

vinculadas aos gregos, embora tenhamos diversas obras e<br />

pensadores em diferentes partes do oriente, doutrinadores<br />

no Antigo Egito, líderes espirituais na Índia, contudo<br />

estes não foram ou atuaram efetivamente como filósofos;<br />

foram grandes reformadores religiosos e não<br />

propriamente filósofos no sentido puro do termo. Em<br />

consonância com aquilo que temos de registros históricos<br />

podemos atribuir ao mundo grego romano o nascimento<br />

do pensamento estritamente racional e desvinculado das<br />

verdades religiosas.<br />

Em sua origem a filosofia representa a superação do<br />

pensamento mítico e até mesmo uma forma de<br />

explicação racional do mito. Por se tratar de um povo<br />

cuja preocupação religiosa voltava-se mais para o culto<br />

que a doutrina pôde conciliar sem crises suas tradições<br />

fazendo de seus mitos objeto de estudo e problema da<br />

própria filosofia. No correr dos anos os mitos que antes<br />

eram os reveladores e donos da verdade vão cedendo<br />

espaço às explicações matemáticas, à astronomia e assim<br />

seguindo até o momento em que se tornam literatura.<br />

Estes fatos possibilitaram o desenvolvimento dessa gama<br />

de conhecimentos denominados filosofia, um<br />

pensamento que tem seu apogeu na síntese platônica e<br />

aristotélica nos séculos V e IV antes de Cristo no<br />

território grego, especificamente em Atenas, berço da<br />

civilização grega neste período.<br />

Cronologicamente podemos afirmar que o apogeu<br />

filosófico vivido nos séculos V e IV *a.e.c. i foram<br />

gestados nos dois séculos que o antecederam, ou seja, no<br />

período que vai do século VI e VII a.e.c. período em que<br />

surgiram os “pensadores originários” também<br />

conhecidos como pré-socráticos. Ao período de<br />

nascimento, desenvolvimento e ápice denominamos<br />

período Clássico ou Helenismo filosófico. Os períodos<br />

seguintes são momentos de crise, diversos são os<br />

acontecimentos que geram estas crises, a começar pela<br />

decadência da Democracia Ateniense, ascensão do<br />

Império Macedônico e em seguida do Império Romano,<br />

desenvolvimento e entrada em cena do pensamento<br />

cristão, a própria decadência do pensamento clássico<br />

greco-romano conhecido a partir de então como<br />

pensamento “pagão” etc. Fato é que a filosofia andou<br />

trôpega por alguns séculos e volta ou ressurge com o<br />

aparecimento do pensamento cristão que lhe reabilitam<br />

como instrumento a serviço da fé no período patrístico ii<br />

estendendo-se por toda a idade medieval; teremos aí o<br />

que se convencionou chamar de filosofia cristã,<br />

pensamento amplamente desenvolvido pelos pensadores<br />

cristãos. Outros pensadores existiram neste período, mas<br />

o mais marcante e que definiu nossa forma de pensar e<br />

fazer filosofia no período foi o pensamento filosófico<br />

cristão, sobretudo por questões vinculadas ao poder e<br />

autoridade da Igreja Católica no período.<br />

O terceiro momento claramente definido da filosofia dáse<br />

a partir do Renascimento, novos ares adentram pelas<br />

frestas das janelas das catedrais e universidades<br />

medievais. A verdade revelada vê-se substituída pela<br />

verdade racionalizada, filha da razão cartesiana ou da<br />

verdade experimentada oriunda do empirismo e não mais<br />

da fé como vinha ao longo de aproximadamente doze<br />

séculos de pensamento cristão. Neste período<br />

denominado Renascimento outros meios e métodos de<br />

conhecimento são buscados, novas ciências ganham<br />

espaço no espectro do mundo renascentista; é o período<br />

de grandes descobertas em diversos campos do<br />

conhecimento. Inaugura-se a era moderna e com ela uma<br />

filosofia mais aberta e voltada para os problemas do<br />

homem no mundo e não mais de um homem que<br />

estivesse de passagem ou em estágio para o paraíso<br />

somente.<br />

Desde a modernidade até nossos dias muito foi escrito e<br />

discutido em filosofia. A chegada ao mundo<br />

1 1


contemporâneo é marcada por um tempo de grandes<br />

desencantos, dentre eles com a própria razão iluminista<br />

posto em dúvida pelos “mestres da suspeita” no século<br />

XIX e revisado pelos pensadores frankfurtianos no<br />

século XX. A filosofia neste período tem buscado tornarse<br />

mais práxis e menos teoria, nem sempre acertou, mas<br />

tem conseguido apontar rumos menos tortuosos à<br />

existência nestes conturbados tempos em que nos<br />

encontramos. Segue-se assim o que foi escrito por<br />

Aristóteles em sua obra Metafísica: “...todas as ciências<br />

serão mais necessárias que esta (a filosofia), mas<br />

nenhuma lhe será superior”.<br />

social de moralizar a própria sociedade. As narrativas<br />

míticas ocupavam o imaginário dos cidadãos da polis<br />

grega direcionando suas condutas. A partir do século V<br />

a.C. em Atenas teremos o aparecimento de dois gêneros<br />

importantíssimos neste processo formativo, são as<br />

comédias que satirizavam os poderosos e personagens<br />

célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e<br />

prodígios dos heróis, bem como suas desventuras e<br />

fracassos. Haviam festivais em que os poetas e escritores<br />

competiam elegendo as melhores peças e textos, estes<br />

festivais eram muito importantes na vida da “polis”<br />

grega, era por meio destes eventos sociais que as<br />

narrativas míticas se difundiam.<br />

C on t r a o esq u ecim<br />

en t o<br />

Dentre as peças trágicas deste período ganha grande<br />

destaque a obra de Sófocles, O Mito de Édipo. Está obra<br />

veio a público por volta do ano 427 a. C. e retra a<br />

seguinte história:<br />

O soberano consulta o Oráculo, o que era comum na<br />

cultura grega antiga. O Oráculo afirma que seu<br />

primogênito irá desposar a própria mãe e assassinar seu<br />

pai, o Rei Laio. Então, Laio manda que eliminem o<br />

menino, mas a pessoa encarregada não cumpre a ordem e<br />

envia o menino para um reino distante onde ele se torna<br />

um grande guerreiro e herói, numa de suas andanças ele<br />

encontra um homem arrogante e o mata; chegando ao<br />

Reino de Jocasta, Édipo se apaixona e a desposa. Anos<br />

mais tarde, Édipo descobre que ele próprio é o<br />

personagem da profecia, e num gesto de desespero,<br />

arranca os próprios olhos e sai a vagar pelo mundo a<br />

fora. A profecia se cumpriu, porque o rei se recusou a<br />

matar a criança.<br />

21<br />

O M it o, A <strong>Filosofia</strong> e a H ist ó r ia<br />

O M it o<br />

Os mitos tem um papel fundamental no mundo antigo e<br />

na formação das sociedade primitivas, cumpre a função<br />

Esta narrativa possui um fundo moral, o alerta para os<br />

desígnios dos deuses, que não devem ser contrariados, e<br />

o percurso de Édipo, de toda sua saga, de ter vencido a<br />

Esfinge e decifrado seu enigma, seu destino não o<br />

poupou. Contudo, um novo pensamento se formava e a<br />

vida na polis cada vez mais é direcionada pela política, e<br />

aos poucos a moral estabelecida pelas narrativas míticas<br />

foram sendo substituídas pela ética e pelos valores da<br />

cidadania grega. O cidadão grego cada vez mais<br />

participativo não considerava a ideia de não controlar a<br />

própria vida. Na vida da pólis, os homens livres<br />

manifestavam suas posições escolhendo entre iguais o<br />

direcionamento das decisões e das ações da cidadeestado.


Os mitos cumpriam uma função social moralizante de tal<br />

forma que essas narrativas ocupavam o imaginário dos<br />

cidadãos da polis grega direcionando suas condutas. Na<br />

Atenas do século V a.C. existia também o espaço para as<br />

comédias que satirizavam os poderosos e personagens<br />

célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e<br />

prodígios dos heróis, bem como suas desventuras e<br />

fracassos. Haviam festivais em que os poetas e escritores<br />

competiam elegendo as melhores peças e textos, estes<br />

festivais eram muito importantes na vida da “polis”<br />

grega, era por meio destes eventos sociais que as<br />

narrativas míticas se difundiam.<br />

O n ascim en t o d a cid ad e est ad o ( p olis) .<br />

Segundo Jean Pierre Vernant, em As origens do<br />

pensamento grego, esse pensamento racional<br />

denominado <strong>Filosofia</strong> foi propiciado pelas formas de<br />

organização social, política e econômica da cidadeestado,<br />

que tiveram início com a invasão dos dórios na<br />

Grécia e a derrubada do poder centralizado na figura do<br />

rei divino. Podemos afirmar que a filosofia é filha da<br />

polis grega.<br />

C on d iç õ es h ist ó r icas p ar a o su r gim<br />

en t o d a <strong>Filosofia</strong><br />

Diversas circunstâncias históricas contribuíram para o<br />

desenvolvimento da filosofia. São realidades que se<br />

entrecruzam e daí origina-se esse todo ao qual chamamos<br />

pensamento filosófico. Dentre os elementos que<br />

participam deste todo, destacamos os seguintes:<br />

surgimento das cidades ou polis, a invenção da escrita, as<br />

leis (escritas), a moeda, a invenção da democracia etc.<br />

O ponto inicial da <strong>Filosofia</strong> grega é a reflexão sobre o<br />

mito e o seu significado, mostrando que este é um saber<br />

afetivo, motivado por questões subjetivas. É um saber<br />

coletivo e possui caráter dogmático. Este conhecimento<br />

será questionado pela filosofia já nos primeiros<br />

pensadores, conhecidos como pré-socráticos, estavam<br />

preocupados essencialmente em buscar uma explicação<br />

que pudesse apontar a origem – arché - princípio<br />

fundamental de todas as coisas. Sua explicação é<br />

fundamentada na racionalidade e não mais nas<br />

explicações sobrenaturais.<br />

O mito antes transmitido oralmente teve a partir da<br />

invenção da escrita mais uma forma de transmissão; as<br />

poesias cosmogônicas, serão utilizadas como ponto de<br />

partida também para o pensamento filosófico, os poemas<br />

que interpretavam o surgimento do mundo por meio dos<br />

mitos serão agora utilizados pelos filósofos de forma<br />

distinta, são reinterpretados e em lugar da cosmogonia<br />

apresenta-se a cosmologia. Esta passagem faz-se de<br />

maneira gradual tendo como fatores influentes o<br />

desenvolvimento cultural pelo qual passa o mundo grego<br />

entre os séculos IX e VI a. e.c. Localiza-se aqui a<br />

invenção da escrita pelos fenícios, o surgimento da<br />

cidade-estado no mundo grego, a formulação de leis<br />

escritas, a invenção da moeda, o aparecimento e<br />

desenvolvimento da democracia ateniense etc.<br />

O aparecimento das cidades-estados constitui, na história<br />

do pensamento grego, um acontecimento decisivo. O<br />

palácio, antes elemento central do poder é substituído<br />

pela Ágora, praça pública, o lugar do diálogo, da<br />

discussão, da autonomia da palavra. A palavra passa a<br />

ser tão valorizada que os gregos a transformaram numa<br />

divindade, Pheitó, que representa a força, a capacidade<br />

da persuasão.<br />

Não mais a palavra de ordem do rei divino, mas a<br />

palavra humana buscando através do conflito, da<br />

discussão, um sentido e o convencimento pela persuasão.<br />

A palavra está exposta a contestação e à polêmica, à<br />

discussão, a argumentação são regras do jogo intelectual<br />

e político que é praticado à luz do sol, na Ágora, e tem<br />

como juiz o público, os cidadãos. Os conhecimentos, os<br />

conteúdos da cultura, não ficam mais restritos ao palácio,<br />

são agora expostos à praça pública à apreciação de todos,<br />

possuem um caráter de publicidade e passam a ser objeto<br />

de análise e de interpretação. Desenvolve-se assim o<br />

Logos(λόγος), iii essa capacidade de uso da palavra, do<br />

discurso, da razão.<br />

Outra característica importante é a ideia de semelhança<br />

entre os cidadãos. Essa semelhança une os gregos<br />

pela Philia (união, amizade) garantindo a unidade da<br />

31


polis. A ideia de semelhança se converterá em igualdade<br />

no plano político, no conceito de isonomia, de mesma<br />

participação no poder entre os cidadãos. As leis escritas<br />

são as mesmas para todos os cidadãos iv e os mesmos<br />

deveriam participar dos tribunais e das assembleias.<br />

A in v en ç ã o d a escr it a<br />

A consciência mítica predomina em culturas de tradição<br />

oral, quando ainda não há escrita. Mesmo após seu<br />

surgimento, a escrita reserva-se aos privilegiados, aos<br />

sacerdotes e aos reis, e geralmente mantém o caráter<br />

mágico: entre os antigos egípcios, por exemplo, a<br />

Palavra hieróglifo significa literalmente "sinal divino".<br />

Na Grécia, já existia uma escrita no período<br />

micênico, mas restrita aos escribas que exerciam funções<br />

administrativas de interesse da aristocracia palaciana.<br />

Com a violenta invasão dórica, no século XII a.C. a<br />

escrita desapareceu junto com a civilização micênica,<br />

para ressurgir apenas no final do século IX ou VIII a.C.<br />

por influência dos fenícios.<br />

Em seu surgimento, a escrita assumiu função diferente,<br />

desligada da influência religiosa passou a ser utilizada<br />

para formas mais democráticas de exercício do poder.<br />

Enquanto os rituais religiosos eram cheios de fórmulas<br />

mágicas, termos fixos e inquestionáveis, os escritos<br />

passaram a ser divulgados em praça pública, sujeitos à<br />

discussão e à crítica. Isso não significa que a escrita se<br />

tornasse acessível a todos, muito pelo contrário, já que a<br />

maioria da população era constituída de analfabetos. O<br />

que está em destaque é a dessacralização da escrita, ou<br />

seja, seu desligamento do sagrado.<br />

A escrita gera nova idade mental porque a postura de<br />

quem escreve é diferente daquela de quem apenas fala.<br />

Como a escrita fixa a palavra para além de quem a<br />

proferiu, exige maior rigor e clareza, o que estimula o<br />

espírito crítico. Além disso, a retomada posterior do que<br />

foi escrito_ não só por contemporâneos mas por outras<br />

gerações _ abre os horizontes do pensamento e<br />

proporciona o distanciamento do vivido e o confronto<br />

das ideias. Portanto, a escrita surge como possibilidade<br />

maior de abstração, de uma reflexão aprimorada que<br />

tenderá a modificar a própria estrutura do pensamento.<br />

Os aedos (poetas-cantores) são cultores da memória. Eles<br />

possuem a força da palavra e revelam a vida e a origem<br />

dos seres e do mundo. As concepções míticas são<br />

mantidas vivas pela tradição oral. Com a invenção e uso<br />

da escrita essas concepções passam a ser registradas. O<br />

rigor daquele que escreve é diferente do rigor daquele<br />

que fala e, as palavras, uma vez escritas, estão fixas,<br />

permitindo maior exame e reflexão posterior. Portanto, o<br />

uso da escrita tem uma contribuição fundamental para o<br />

questionamento das interpretações míticas.<br />

Enquanto o pensamento mítico não questiona o seu<br />

conteúdo, o pensamento filosófico caracteriza-se pelo<br />

questionamento, pela investigação e argumentação<br />

racional para explicação da realidade. Embora o<br />

conteúdo da explicação, desses primeiros filósofos, tenha<br />

muita semelhança com o mito a forma de explicar é<br />

diferente.<br />

Aedo em grego antigo significa “cantor”; os aedos eram<br />

os poetas que, antes da invenção do alfabeto, praticavam<br />

o culto da deusa Memória e das musas e recebiam dessas<br />

divindades o dom de compor canções ao som da lira.<br />

Posteriormente, com a popularização do alfabeto, essas<br />

canções foram escritas e os aedos desapareceram, e aos<br />

poucos deixou-se de cultuar a deusa Memória. Mas é<br />

daquela época remota que nos chegaram, entre outras<br />

canções, a Ilíada e a Odisséia, cujo autor os gregos<br />

acreditavam ter sido Homero, um aedo da rica região da<br />

Jônia, Ásia Menor, no século 8 a. C.<br />

Contemporâneo de Homero, um outro aedo chamado<br />

Hesíodo, que viveu na Beócia, região norte da Grécia<br />

continental, transmitiu-nos também importantes canções.<br />

Hesíodo e Homero estão nos umbrais da história grega,<br />

pois é a partir da época em que viveram que se divulgou<br />

mais intensamente o uso da escrita na Grécia. Mas foi<br />

como aedos (e não como escritores) que eles<br />

compuseram suas canções: inspirados pelas deusasmusas,<br />

guiados pela deusa Memória, e servindo-se de<br />

técnicas de composição oral que durante séculos foram<br />

transmitidas de geração a geração.<br />

Os mestres-escolas da Grécia clássica chamaram essa<br />

canção de Hesíodo Teogonia, que significa em grego<br />

41


“nascimento de deus” ou “dos deuses”. Esse nome teve<br />

tanto sucesso que até hoje essa canção é chamada assim.<br />

Os mestres-escolas gregos utilizavam-na para ensinar a<br />

ler e escrever: eles faziam leves marcas de letras em uma<br />

tabuinha de cera mole e mandavam a criança reforçar as<br />

marcas, tornando as letras bem visíveis, e depois<br />

explicavam o sentido dos versos assim escritos. A<br />

Teogonia constituía, com os poemas de Homero, a<br />

cartilha na qual os gregos aprendiam a ler, a pensar, a<br />

entender o mundo e a reverenciar o poder dos deuses.<br />

A s leis escr it as<br />

A escrita, que foi emprestada dos fenícios e modificada,<br />

permite perenizar a cultura torna-la pública e, ao mesmo<br />

tempo, possibilita uma análise mais detida dos seus<br />

conteúdos. A dike (Justiça) pode ser fixada em forma de<br />

leis e garantir sua permanência de forma comum a todos,<br />

não dependendo mais da arbitrariedade do monarca.<br />

A in v en ç ã o d a m<br />

oed a<br />

Entre os séculos VIII e VI a.C., deu-se o<br />

desenvolvimento do comércio marítimo, decorrente da<br />

expansão do mundo grego, com a colonização da Magna<br />

Grécia (atual sul da Itália e Sicília) e da Jônia (hoje<br />

litoral da Turquia). O enriquecimento dos comerciantes<br />

acelerou a substituição de valores aristocráticos por<br />

valores da nova classe em ascensão. As primeiras<br />

moedas a serem utilizadas foram pelos gregos, pela<br />

cidade de Eginia. Até o tempo de Alexandre, não era<br />

usado imagens de pessoas reais e sim de divindades e<br />

animais.<br />

O s P en sad or es O r igin á r ios ou P r -éSocr á t icos<br />

Os primeiros pensadores gregos também chamados de<br />

primeiros sábios criaram a filosofia, mesmo que não lhe<br />

tenham atribuído esse nome são eles os criadores<br />

originários dessa forma de conhecimento. Isso ocorre por<br />

volta do século VII antes da era cristã. Buscavam<br />

explicar o mundo de forma racional, escapando às<br />

armadilhas míticas, tais como encontradas em Homero e<br />

Hesíodo respectivamente nas obras Ilíada e Odisseia, e<br />

na Teogonia. Esse fato deu-se na Ásia Menor em uma<br />

colônia chamada Mileto que neste período viveu grande<br />

desenvolvimento comercial e cultural, foi uma das<br />

cidades mais movimentadas comercialmente no período<br />

entre os séculos VII e VI antes de Cristo, até sua queda<br />

pós invasão macedônica.<br />

Os gregos souberam aproveitar desses fatos recolhendo<br />

tudo aquilo que chegava de novo, tiveram acesso às<br />

descobertas egípcias e caldéias, duas das civilizações<br />

mais desenvolvidas do período. Ampliaram seus<br />

conhecimentos extraindo das culturas que chegavam<br />

tudo que pudesse lhes ajudar na explicação racional da<br />

natureza. Os primeiros filósofos estavam preocupados<br />

com o mundo exterior, são exímios observadores e<br />

intérpretes da natureza, esse fato acaba por lhes fazeres<br />

conhecidos como “filósofos naturalistas” ou<br />

“physiologois” como os denominavam Aristóteles.<br />

Querem entender o enigma da origem do mundo, são<br />

estudiosos da “Physis”. Eles querem entender a dinâmica<br />

da natureza, o que lhes possibilita evoluir<br />

incessantemente, são os filósofos do devir.<br />

Os pré-socráticos buscam a solução nas contradições,<br />

teremos aí duas formas propostas como resolução deste<br />

problema: a solução sensista, presa ao sensível, aos<br />

sentidos e a solução pelo viés racionalista, proposta pelos<br />

eleatas; Outras correntes ainda surgirão, teremos a<br />

tentativa conciliadora por meio do atomismo e por<br />

último o grupo que abandona todos os postulados<br />

anteriores, optam pelo ceticismo, são os sofistas que<br />

influenciaram profundamente o novo momento da<br />

filosofia já chegando às portas do século V a.C. Esse<br />

grupo no período clássico da filosofia acabará por tornarse<br />

desafetos dos pensadores Sócrates, Platão e<br />

Aristóteles que os criticam como pseudos filósofos.<br />

V ej am os cad a u m d est es gr u p os<br />

Os Sensistas – Inicialmente a grande contribuição destes<br />

filósofos é a superação do antropomorfismo presente nas<br />

teogonias mitológicas, buscam um elemento único que<br />

51


61<br />

sintetize toda a multiplicidade presente nos fenômenos.<br />

Esse grupo é bastante numeroso, encontramos aqui os<br />

filósofos Jônios Tales de Mileto e Anaximandro e<br />

Anaxímenes, todos da cidade de Mileto e que viveram o<br />

final do século VII a.C. e começo do VI a.C.; Deste<br />

grupo faz parte também o pensador Heráclito que é de<br />

uma região vizinha, chamada Éfeso e viveu já no século<br />

VI a.C.<br />

As informações sobre suas vidas e doutrinas são<br />

escassas, tudo que sabemos são informações que nos<br />

chegaram por fragmentos de suas obras ou citações<br />

conservadas por outros filósofos como o que nos trouxe<br />

Aristóteles a cerca do pensamento filosófico destes em<br />

sua obra Metafísica e na Física.<br />

P en sad or es P r é - Socr á t icos<br />

Tales de Mileto – Era grande conhecedor de astronomia,<br />

meteorologia, geometria, ciências em geral; este<br />

escolheu a água como elemento originário, pois esta<br />

pode tomar todas as formas e ainda se faz presente como<br />

necessária à vida de todos os seres assim como participa<br />

de todos os alimentos e está presente em todos os<br />

germes. É, sem dúvidas uma tese facilmente sustentável<br />

e que se conserva com grande probabilidade de verdade<br />

até nossos dias.<br />

Anaximandro – Foi discípulo de Tales, deste pensador<br />

chegou aos nossos dias alguns fragmentos de um tratado<br />

sobre a natureza. Segundo Aristóteles este pensador fala<br />

de uma coisa “indeterminada” ou infinita ( apeiron), este<br />

elemento seria anterior à água, uma mistura de contrários<br />

de onde tudo deriva e para onde tudo retorna.<br />

Anaxímenes – Deste filósofo sabemos apenas que<br />

acreditava ser o ar o elemento primordial, pois era mais<br />

necessário à vida que a própria água, pode vir a ser tudo<br />

por meio da condensação e dilatação.<br />

Heráclito de Éfeso – Originário da cidade de Éfeso e<br />

descendente direto do Rei Andrócles que era fundador da<br />

cidade, abre mão de ser governador da cidade para<br />

dedicar-se à filosofia. Segundo seu pensamento a origem<br />

de tudo encontra-se no Devir, na constante mudança. O<br />

que existe não é o ser, mas o devir.<br />

Para Heráclito “tudo muda nada permanece”; para o<br />

filósofo do devir o universo é como um rio onde<br />

ninguém pode banhar-se por duas vezes. O que é,<br />

enquanto é, não é porque muda. Defende a identidade no<br />

contraditório, “mergulhamos e não mergulhamos no<br />

mesmo rio”; “existimos e não existimos ao mesmo<br />

tempo”; “o bem e o mal são uma e mesmo coisa”.<br />

Este grupo de filósofos são denominados sensistas por<br />

não ultrapassarem os dados sensíveis, estão presos a um<br />

entendimento de mundo voltado a essa realidade, não<br />

conseguem separar a racionalidade como elemento que<br />

extrapola o sensível e como um elemento distinto desta.<br />

Sua forma de pensar apresenta-se ainda de maneira<br />

rudimentar. São sábios, mas não filósofos na acepção<br />

mais apurada do termo.<br />

O P it agor ism o<br />

Antes de passarmos ao segundo grupo vejamos um<br />

pouco sobre um pensador intermediário neste período,<br />

trata-se de Pitágoras de Samos, que se tornou figura<br />

legendária na própria Antiguidade, teria sido antes de<br />

mais nada um reformador religioso, pois realizou uma<br />

modificação fundamental na doutrina órfica,<br />

transformando o sentido da "via de salvação"; em lugar<br />

do deus Dioniso colocou a matemática.<br />

Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com<br />

certeza, já que ela foi objeto de uma série de relatos<br />

tardios e fantasiosos, como os referentes às suas viagens<br />

e a seus contatos com culturas orientais. Parece certo,<br />

contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na<br />

segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de<br />

Polícrates, transferindo-se para Crotona (na Magna<br />

Grécia) fundou uma confraria científico-religiosa.<br />

Pitágoras criou um sistema global de doutrinas, cuja<br />

finalidade era descobrir a harmonia que preside à<br />

constituição do cosmo e traçar, de acordo com ela, as<br />

regras da vida individual e do governo das cidades.<br />

Partindo de ideias órficas, o pitagorismo pressupunha<br />

uma identidade fundamental, de natureza divina, entre<br />

todos os seres. Essa similitude profunda entre os vários<br />

existentes era sentida pelo homem sob a forma de um<br />

"acordo com a natureza", que, sobretudo, depois do<br />

pitagórico Filolau, será qualificada como uma<br />

"harmonia", garantida pela presença do divino em tudo.<br />

Natural que dentro de tal concepção - vista por alguns<br />

autores como o fundamento do "mito helênico" - o mal<br />

seja entendido sempre como desarmonia.<br />

A grande novidade introduzida certamente pelo próprio<br />

Pitágoras na religiosidade órfica foi a tranformação do<br />

processo de libertação da alma num esforço puramente<br />

humano, porque basicamente intelectual. A purificação<br />

resultaria do trabalho intelectual, que descobre a<br />

estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma


O<br />

semelhante ao cosmo, entendido como unidade<br />

harmônica, sustentada pela ordem e pela proporção, e<br />

que se manifesta como beleza.<br />

Pitágoras teria chegado à concepção de que todas as<br />

coisas são números através inclusive de uma observação<br />

no campo musical: verificou no monocórdio que o som<br />

produzido varia de acordo com a extensão da corda<br />

sonora. Ou seja, descobriu que há uma dependência do<br />

som em relação à extensão, da música, (tão importante<br />

como propiciadora de vivências religiosas estáticas) em<br />

relação à matemática.<br />

" T od as as coisas sã o n ú m er os" . ( P it á gor as)<br />

A partir do próprio Pitágoras, o pitagorismo primitivo<br />

concebe a extensão como descontínua: constituída por<br />

unidades indivisíveis e separadas por um "intervalo".<br />

Segundo a cosmologia pitagórica - que descreve o<br />

cenário cósmico, onde se processa a purificação da alma<br />

- esse "intervalo" resultaria da respiração do universo<br />

que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que<br />

estaria imerso. Mínimo de extensão e mínimo de corpo,<br />

as unidades comporiam os números. Estes não seriam,<br />

portanto - como virão a ser mais tarde -, meros símbolos<br />

a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, os<br />

números são reais, são essências realizadas (usando-se<br />

um vocabulário filosófico posterior), são a própria "alma<br />

das coisas", são entidades corpóreas constituídas por<br />

unidades contíguas e a prenunciar os átomos de Leucipo<br />

e Demócrito. Assim, quando os pitagóricos falam que as<br />

coisas imitam os números estariam entendendo essa<br />

imitação (mimesis) num sentido realista: as coisas<br />

manifestariam externamente a estrutura numérica<br />

inerente.<br />

De acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram<br />

uma representação figurada dos números, em<br />

substituição às representações literais mais arcaicas,<br />

usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A<br />

representação figurada permitia explicitar a lei de<br />

composição dos números e torna-se um fator de avanço<br />

das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os<br />

primeiros números, representados figurativamente,<br />

bastavam para justificar o que há de essencial no<br />

universo: o um é o ponto, mínimo de corpo, unidade de<br />

extensão; o dois determina a linha; o três gera a<br />

superfície, enquanto o quatro produz o volume. Já por<br />

sua própria notação figurativa evidencia-se que a<br />

primitiva matemática pitagórica constitui uma aritmogeometria,<br />

a associar intimamente os aspectos numéricos<br />

e geométricos, a quantidade e sua expressão espacial.<br />

"Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece<br />

justo". (Pitágoras)<br />

Por conta de todas estas características Pitágoras inserese<br />

de forma mais significativa no grupo dos Eleatas, pois<br />

traz em seu pensamento vínculos estreitos com a<br />

superação do sensível e a aproximação com um pensar<br />

mais racionalista típico da escola eleática.<br />

s E leat as<br />

Os Eleatas, em oposição a Heráclito que se fixou na<br />

experiência e afirmou que tudo no mundo é o devir, os<br />

eleat as, apoiando-se somente na razão,est ab elecem q u e<br />

t u d o é sere de uma maneira puramente racionalista<br />

identificam a ordem das coisas com a ordem das ideias e<br />

vão parar na negação de toda multiplicidade e<br />

no m on ism o est r it am en t e r acion alist. aEntão se o ser é<br />

tão somente uno, único e imutável e, com esse mesmo<br />

conceito do ser, surge a seguinte questão: C om o se<br />

ex p licam as m u d an ç as q u e v em os n as coisas? Ao<br />

resolver esta dificuldade os eleatas incorrem<br />

no fen om en ism o e, mais ainda, no ilu sion ism o, pois<br />

dizem que as mudanças não existem na realidade, sendo<br />

tão somente uma ilusão dos sentidos, que a razão deve<br />

corrigir. Decorrem então os p r in cí p ios su p r em os<br />

d o m on ism o eleá t ico:<br />

1 – O ser é uno, único, imutável<br />

2 – Nenhum ser pode se reproduzir nem perecer, pois,<br />

caso contrário, o ser o aumentaria ou diminuiria, o que é<br />

impossível.<br />

3 – Como só existe um ser, o mundo e Deus são a mesma<br />

coisa. A concepção de Deus é material e hilozoísta<br />

(Doutrina metafísica que considera que a materia é<br />

animada, sensível e espontânea em atuações e respostas).<br />

Os principais pensadores desta vertente são: Xenófanes,<br />

Parmênides, Zenão e Meliso. Temos ainda Pitágoras que<br />

pode ser visto como o grande precursor e influenciador<br />

das doutrinas presentes neste período<br />

X en ó fan es ( 5 7 0 a 4 8 0 a. C . )<br />

Este pensador foi tido por muito como o fundador da<br />

escola em Eleática. Pelo que temos de informação era<br />

um rapsodo e circulaba pela Sicília e Itália Meridional<br />

recitando poemas de temas variados, históricos e<br />

filosóficos. Por vezes refutava os mitos e apresentava<br />

uma visão do cosmos atrelada a ideias panteístas tendo-o<br />

71


m<br />

81<br />

como o Uno e o Todo. Esta escola será dignamente<br />

representada por Parmênides e Zenão de Eléia, o<br />

primeiro ganhando destaque no pensamento metafísico e<br />

o segundo por seu pensamento apologista.<br />

O monismo de Xenófanes não é inteiramente rígido, pois<br />

não nega todo o devir e admite certa multiplicidade, ao<br />

menos relativa. Pode ser chamado de o t eó logo d a escola<br />

eleat a porque é o primeiro que ensina a unidade e a<br />

imutabilidade de Deus: “Há um só deus, o supremo entre<br />

todos os deuses e os homens”. Desta forma, esta estrita<br />

doutrina se baseia num fundamento falso, ou seja, em seu<br />

monismo racionalista onde tudo é uno e imutável e que<br />

deus é o próprio mundo. Entretanto, por outro lado, crê<br />

que a água e a terra nascem e passam. Em um fragmento<br />

afirma “Terra e água são todas as coisas que nascem e<br />

crescem”.<br />

Repele a transmigração das almas defendida pelos<br />

pitagóricos. Há uma passagem citada onde provoca um<br />

pitagórico que pegava um cachorro: “Largue-o, porque é<br />

a alma de um homem querido”.<br />

P ar m ê n id es ( 5 4 0 a. C . )<br />

Sucessor e discípulo de Xenófanes, Parmênides é o<br />

et afí sico d a escola eleat. a Seu mérito principal<br />

consiste no descobrimento do ser. Parmênides inaugura o<br />

pensamento que a primeira coisa que se deve dizer da<br />

realidade é o que é, que é o ser. O que é esse ser? Antes<br />

de tudo ele deve ser. Daí o princípio: o ser é . Este<br />

princípio se contrapõe ao seu par: O n ã o- ser , n ã o é.<br />

Destes dois princípios deduz todo seu sistema. Em efeito,<br />

se só o ser é, deve ser ú n ico, pois, se existir algo junto ao<br />

ser, só poderia ser o não-ser e o não-ser não é, não existe.<br />

Deve também ser im ó v elporque o ser que muda não é<br />

ser. Finalmente o ser é n ã o- cr iad o já que ao contrário só<br />

poderia preceder do não-ser e o não-ser não é. E n t ã o o<br />

ser é , p ar a P ar m ê n id es, u n o, im ó v el, e n - ãcr oiad o.<br />

Ainda que infinito ou eterno, espacialmente é delimitado<br />

e finito. Parmênides concebe o ser como uma esfera<br />

compacta e contínua cujas partes desde o centro para<br />

qualquer direção têm o mesmo peso. Desenvolve o<br />

conceito do ser sem fixar-se na experiência, pois ela dirá<br />

o contrário. Então, de que parte está a verdade? Na<br />

experiência ou na razão? Parmênides não duvida em<br />

responder que está na razão. O mundo que nos oferece a<br />

experiência é todo de multiplicidade e movimento, é um<br />

mundo aparente, que nada tem a ver com a razão, sendo<br />

somente alimento dos pensamentos ilusórios dos mortais.<br />

Esta é a arquitetura da antologia parmenidiana. No fundo<br />

deste sistema está o princípio do r acion alism o<br />

ex ager ad o que Parmênides enuncia assim: “a mesma<br />

coisa é pensar e ser”. O erro fundamental de<br />

Parmênides é considerar o mundo conceitual tão ligado<br />

com a verdade que deixa o mundo real reduzido a mera<br />

aparência ilusória. Ao mesmo tempo o grande mérito não<br />

é só a descoberta do ser, mas também ter desenvolvido<br />

de tal forma sua metafísica que só se pode chegar a Deus<br />

para que seja verdadeira. San t o A gost in h o, séculos<br />

depois, reproduz seu mesmo conceito “não foi nem<br />

será, porque de uma só vez tudo é”.<br />

Z en ã o( n ascid o em 5 2 0 a. C . )<br />

Discípulo de Parmênides defende a mesma doutrina e<br />

com suas famosas ap or ias d ialé t icastenta demonstrar<br />

que toda multiplicidade e todo movimento são<br />

impossíveis. Por isso se chama o d ialé t icod a escola<br />

eleá t ica. Expões quatro argumentos contra a pluralidade<br />

dos corpos e a favor da unidade do Universo e outros<br />

quatro contra a mutabilidade dos corpos e contra seus<br />

movimentos.<br />

Seu mérito consiste em manifestar com grande agudeza<br />

as dificuldades lógicas contidas na multiplicidade, no<br />

movimento e na divisibilidade, sem, entretanto, dar<br />

propriamente a solução para estas questões.<br />

As antinomias ou p ar ad ox os d e Z en ã onão só foram<br />

muito celebradas pelos antigos como A r ist ó t elesque as<br />

resolveu depois engenhosamente, como mais<br />

adiante, B ay le, E sp in osa, L eib n it z, H egel e H er b ar t as<br />

estudaram profundamente. Ainda que seus argumentos<br />

não resolvam o problema da multiplicidade e do<br />

movimento, desenvolvem agudamente as dificuldades<br />

que envolvem essas questões e assim prepara a invenção<br />

do cálculo infinitesimal, obra de L eib n it z e N ew t on.<br />

Concluindo podemos dizer que a filosofia eleata, em<br />

geral, foi uma notável tentativa de impor-se sobre toda<br />

realidade por meio da razão. Os filósofos eleatas<br />

empreenderam esta tentativa de forma exagerada, mas<br />

assim plantaram as bases da persuasão, que hoje todos<br />

sustentamos firmemente, de que todo o Universo é<br />

governado por leis imutáveis.<br />

O s A t om ist as<br />

Os atomistas abandonam a consideração hilozoística da<br />

matéria e se vêem obrigados a buscar uma cau sa<br />

eficien t e das coisas e de suas


mudanças. E m p é d ocles colocou esta causa nas forças<br />

consideradas de uma maneira antropomórfica,<br />

A n ax á gor asno entendimento divino e D em ó cr it ono<br />

movimento eterno, como veremos a seguir.<br />

O atomismo é uma doutrina filosófica que considera toda<br />

a realidade como matéria constituída por uma<br />

combinação fortuita de partículas indivisíveis, chamadas<br />

átomos. O atomismo surge na antiga Grécia com Leucipo<br />

e Demócrito. Atualmente incluem-se também no<br />

atomismo, num sentido amplo, as teorias físicas e<br />

químicas que concebem a matéria como constituída por<br />

partículas elementares de caráter indivisível.<br />

Os atomistas postularam a existência duma infinidade de<br />

partículas separadas, espalhadas pelo espaço vazio<br />

infinito.<br />

Esta teoria atómica (átomo vem de "atomon" =<br />

indivisível) foi inventada por Leucipo, que a revelou nos<br />

meados do sec.V e foi desenvolvida mais tarde por<br />

Demócrito, cerca de 30 anos depois.<br />

Estes dois filósofos eram naturais da Ásia Menor.<br />

Leucipo era talvez de Eleia, ou de Abdera, ou de Mileto<br />

(esta mais provavelmente); Demócrito era certamente de<br />

Abdera.<br />

Leucipo teria começado na escola de Eleia, foi discípulo<br />

de Zenão. A ideia do atomismo teria surgido como<br />

reação às ideias fantásticas de Parménides. Das suas<br />

obras nada chegou até hoje.<br />

Demócrito é bem mais conhecido. Terá nascido em<br />

Abdera entre 460 e 457. Curiosamente, Abdera tinha<br />

fama de ser a terra da gente estúpida.<br />

Demócrito foi para Atenas e viu Sócrates. Com<br />

vergonha, não se apresentou e disse "Vim a Atenas e<br />

ninguém me reconheceu". Viajou muito, ao Egipto, Ásia<br />

Menor, Babilónia, Pérsia e talvez Índia. Terá trazido a<br />

teoria atómica do Oriente?<br />

Demócrito sabia de astronomia, matemática, medicina,<br />

psicologia e ética. Os seus ditos são notáveis. Por<br />

exemplo: "Não tentes conhecer tudo a não ser que não<br />

desejes não conhecer algo", "Os grandes prazeres<br />

derivam da contemplação das obras belas"; "Aquele que<br />

engana é mais infeliz do que aquele que é enganado"; "É<br />

melhor aconselhar-se antes de atuar do que arrepender-se<br />

depois"; "O homem que não tem um bom amigo não<br />

merece viver".<br />

Eis a sua teoria atómica. O mundo é feito de duas partes,<br />

o pleno e o vazio. O pleno é dividido em pequenas<br />

partículas, chamadas átomos. Os átomos são indivisíveis,<br />

infinitos, eternos, absolutamente simples; são todos<br />

iguais em qualidade, diferem em forma, ordem e posição.<br />

Qualquer substância é feita desses átomos, cujas<br />

possíveis combinações são infinitas. Os objetos existem<br />

enquanto os átomos que os constituem se mantiverem<br />

juntos. As mudanças da realidade explicam-se pela<br />

contínua agregação e desagregação de átomos.<br />

Os átomos são indestrutíveis e a teoria aparece como um<br />

princípio de conservação da matéria.<br />

Como se movem os átomos, como se aproximam ou<br />

ligam, como se separam, porque se agrupam de uma<br />

maneira ou outra, são questões que nem sequer eram<br />

formuladas e só mais de 20 séculos depois começaram a<br />

ser abordadas.<br />

Para Demócrito a alma (psyche) é corpórea, mas feita<br />

dos átomos mais leves e mais móveis (esféricos por<br />

terem mais mobilidade).<br />

Existe um pouco destes átomos leves em todas as coisas,<br />

o que significa que há alma em tudo. Assim explicava a<br />

capacidade das coisas causarem sensações. O<br />

"materialismo" de Demócrito era pois de tipo especial. A<br />

sua teoria atómica era bastante completa pois procurava<br />

explicar também os sonhos, os mistérios e o destino.<br />

Alguns autores atribuem a origem da teoria atómica de<br />

Leucipo e Demócrito a teorias que teriam sido<br />

desenvolvidas na Índia, e outros a origens fenícias. Não é<br />

provável que tal acontecesse embora influências<br />

estranhas possam estar na base da teoria de Leucipo e<br />

Demócrito.<br />

As analogias entre a teoria atómica grega e as modernas<br />

teorias desenvolvidas a partir de Dalton, são por vezes<br />

exageradas. Há uma diferença abismal entre uma teoria<br />

filosófica que não pode ser testada e uma teoria científica<br />

sujeita a inúmeras confirmações experimentais.<br />

91


R E FE R Ê N C I A S:<br />

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />

FERNANDES, Vladimir. Seminários de Estudos em Epistemologia e Didática. Universidade de São Paulo; Faculdade de<br />

Educação, 2007.<br />

HRYNIEWICZ, Severo. Para filosofar hoje. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2008.<br />

TORRANO, José Antônio Alves. O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo:<br />

Iluminuras, 1996.<br />

VASCONCELOS, Ana. Manual compacto de filosofia. São Paulo: Rideel, 2010.<br />

http://historiadafilosofia.wordpress.com/2009/01/25/capitulo-3-%E2%80%93-as-novas-cosmologias-dos-atomistas/<br />

1<br />

- a.e.c. – antes da era comum.<br />

1<br />

- patrística – período inicial do pensamento cristão fundado pelos padres da igreja. Vai do século III até aproximadamente<br />

o século VII.<br />

1<br />

- O L ogos (em grego λόγος palavra), no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada - o Verbo. Mas a<br />

partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico<br />

traduzido como r az ã o, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e da<br />

Beleza.<br />

1<br />

- Eram considerados cidadãos os nascidos em Atenas do sexo masculino e que tivessem cumprido o serviço militar. De<br />

uma população de cerca de meio milhão de habitantes, excluía-se: os escravos (50%), de estrangeiros (entre 20% e 23%),<br />

de mulheres e crianças (entre 10% a 12%), restavam os cidadãos atenienses (entre 10% a 13%), não há possibilidade de<br />

definição precisa destes números, em geral variavam próximo aos percentuais aqui apresentados.<br />

02


A FI L O SO FI A C O M O SI ST E M A<br />

Só cr at es<br />

contradições, resultantes de crenças aceitas de modo<br />

dogmático, de pretensas verdades admitidas sem crítica.<br />

A ironia tinha que ser acompanhada da maiêutica, isto é,<br />

o método socrático constituía-se de duas partes: a<br />

primeira mostrava os limites, as falhas, os preconceitos<br />

do pensamento comum e a segunda iniciava no processo<br />

de busca da verdadeira sabedoria. Numa situação de<br />

conflito e de incertezas o ironista, depois de realizar o<br />

exercício da desconstrução e da negatividade, deve<br />

ajudar as pessoas a darem a luz às verdades que, no<br />

entender de Sócrates, traziam dentro de si. O exercício<br />

do filosofar, a partir das verdades encontradas, abria<br />

caminhos para múltiplas possibilidades de escolha e<br />

ação.<br />

A <strong>Filosofia</strong> Socr á t ica<br />

Por Ademir Aparecido Pinhelli Mendes professor em Curitiba Paraná.<br />

A <strong>Filosofia</strong> com<br />

o E x er cí cio d a I r on ia<br />

O surgimento da pólis como a primeira experiência da<br />

vida pública enquanto espaço de debate e deliberação,<br />

tornou o campo fértil para a fecundação e o<br />

florescimento da filosofia. E a figura emblemática dessa<br />

época, que nada escreveu e da qual se fala até os nossos<br />

dias como o modelo de filósofo, foi Sócrates.<br />

Na praça pública, Sócrates interrogava os homens e<br />

instigava-os a refletir sobre si e sobre o mundo. Sócrates<br />

foi uma figura misteriosa, que questionava as pessoas<br />

que encontrava dizendo buscar a verdade. Conforme<br />

acentua Lefebvre, (1969, p. 11) “(...) voltando-se para<br />

fora e para o público, Sócrates interroga os atores para<br />

saber se eles sabem exatamente porque arriscam suas<br />

vidas, a felicidade ou a falta de felicidade (...)”, assim<br />

como a felicidade dos outros. Sócrates é aquele que<br />

chega de mansinho e, sem que se espere, lança uma<br />

pergunta que faz o sujeito olhar para si e perguntar:<br />

afinal, o que faço aqui? É isso o que realmente procuro<br />

ou desejo?<br />

O que é a ironia socrática? O próprio Sócrates, nos<br />

diálogos platônicos, diz que seu destino é investigar, já<br />

que a única verdade que detém é a certeza de que nada<br />

sabe. Interrogava, portanto, para saber e, empenhado<br />

nessa tarefa, não raro surpreendia as pessoas em<br />

As perguntas de Sócrates não visavam confundir as<br />

pessoas e ridicularizar seu conhecimento das coisas, mas,<br />

motivá-las a alcançar um conhecimento mais profundo,<br />

não só de si próprias, mas também dos outros, dos<br />

objetos e do mundo que as rodeava, provocando nelas<br />

novas idéias. Essa era a sua maneira de filosofar, sua<br />

“arte de partejar”, de ajudar as pessoas a parir, dar a luz<br />

às novas idéias, arte que dizia ter aprendido com sua<br />

mãe, que ajudava as mulheres a dar a luz aos seus filhos.<br />

A interrogação de Sócrates expunha os saberes dos<br />

sujeitos e, ao mesmo tempo, mostrava o quanto as<br />

pessoas não tinham consciência daquilo que realmente<br />

sabiam.<br />

Essa atitude, como dizem os historiadores, fez de<br />

Sócrates uma figura singular e lhe angariou alguns<br />

amigos e muitos inimigos. Embora parecesse neutra e<br />

sem um objetivo preciso (Sócrates parecia não ser<br />

partidário de nenhuma das tendências da época e não<br />

defendeu explicitamente nenhum regime político), essa<br />

atitude questionava poderes instituídos, valores<br />

consolidados e, por isso, também pedia mudanças. Com<br />

a ironia, ao trazer à tona os limites dos argumentos<br />

comuns, ao mostrar as contradições ocultas na ordem<br />

comumente aceita, ao revelar, ao abalar as certezas que<br />

fundavam o cotidiano, Sócrates convida ao filosofar<br />

como um processo metódico de elaboração de novos<br />

saberes.<br />

Ao afirmar que também ele nada sabia, queria apenas<br />

dizer que um novo caminho para chegar-se a uma nova<br />

verdade seria indispensável. Se ele soubesse esta nova<br />

verdade, ele não diria que nada sabia, pois apenas sabia o<br />

12


M<br />

caminho, isto é, o começo do conhecimento e ele queria<br />

saber mais. Sócrates proclama que ele não sabe nada, e<br />

esta é sua maneira de trazer à luz o que ele sabe e o que<br />

já sabiam as pessoas honestas à sua volta, (hora pessoas<br />

honestas, acreditam saber tudo e é preciso ironizar um<br />

pouco delas para confrontá-las entre si e ensinar-lhes que<br />

elas só tinham opiniões contraditórias, cuja verdade<br />

devia extrair-se do que tivesse verdade!).<br />

“Sócrates, por meio de sua atividade, mostra-nos que o<br />

exercício do filosofar é, essencialmente, o exercício do<br />

questionamento, da interrogação sobre o sentido do<br />

homem e do mundo. A partir dessa atividade Sócrates<br />

enfrentou problemas, foi julgado e condenado à morte.<br />

Na história, a filosofia questionadora incomoda o poder<br />

instituído, porque põe em discussão relações e situações<br />

que são tidas como verdadeiras. A filosofia procura a<br />

verdade para além das aparências”. (LEFEBVRE, 1969,<br />

p. 14)<br />

ele que, se eu lograr absolvição, logo todos os vossos<br />

filhos, pondo em prática os ensinamentos de Sócrates,<br />

estarão inteiramente corrompidos; mesmo que, apesar<br />

disso, me dissésseis: ‘Sócrates, por ora não atenderemos<br />

a Ânito e te deixamos ir, mas com a condição de<br />

abandonares essa investigação e a filosofia; se fores<br />

apanhado de novo nessa prática, morrerás’; mesmo,<br />

repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos<br />

responderia: ‘Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos<br />

quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós;<br />

enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de<br />

filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar<br />

ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu<br />

deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um<br />

ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por<br />

sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir<br />

o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te<br />

importares nem cogitares da razão, da verdade e de<br />

melhorar quanto mais a tua alma?’ E se alguém de vós<br />

redargüir que se importa, não me irei embora deixandoo,<br />

mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me<br />

parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a<br />

adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que<br />

vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a<br />

quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou<br />

cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais<br />

mais próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus<br />

me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu<br />

à cidade maior bem que minha obediência ao deus”.<br />

(PLATÃO, 1972, p. 21)<br />

A m<br />

issã o d e Só cr at es segu n d o P lat ã o<br />

“A ignorância mais condenável não é essa de supor saber<br />

o que não sabe? É talvez nesse ponto, senhores, que<br />

difiro do comum dos homens; se nalguma coisa me<br />

posso dizer mais sábio que alguém, é nisto de, não<br />

sabendo o bastante sobre o Hades1, não pensar que o<br />

saiba. Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o<br />

mal, desobedecer a um melhor do que eu, seja deus, seja<br />

homem; por isso, na alternativa com males que conheço<br />

como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será<br />

um bem.<br />

“Portanto, mesmo que agora me dispensásseis,<br />

desatendendo ao parecer de Ânito, segundo o qual, antes<br />

do mais, ou eu não devia ter vindo aqui, ou, já que vim, é<br />

impossível deixar de condenar-me à morte, asseverando<br />

aiê u t ica e I r on ia<br />

A ironia é uma forma de tratar o saber e aparece na<br />

história também como reação ao dogmatismo, isto é,<br />

quando existem verdades impostas pelas crenças ou pela<br />

autoridade, impedindo as pessoas de pensar e manifestar<br />

suas opiniões. Conforme Merleau-Ponty, (...) a vida e a<br />

morte de Sócrates são a história das difíceis relações que<br />

o filósofo, que não é protegido pela imunidade literária,<br />

mantém com os deuses da cidade, isto é, com os outros<br />

homens e com o absoluto imobilizado cuja imagem lhe<br />

apresentam(...) ( MERLEAU-PONTY, s/d., p. 46).<br />

A ironia socrática interroga para buscar um sentido<br />

oculto e desconhecido pelo homem, ancorado em crenças<br />

e dogmas. A ironia moderna descobre o duplo sentido e,<br />

com ele, a relatividade da verdade, a fragmentação e a<br />

fraqueza do pensamento que não consegue consolidarse<br />

em sistema. Ambos se aproximam na prática do duvidar<br />

e interrogar, no valor que atribuem ao homem, na sua<br />

2


dignidade sedimentada na liberdade de pensamento e em,<br />

principalmente, no reconhecimento de sua fragilidade<br />

existencial.<br />

Através da maiêutica ele procura dentro do Homem a<br />

verdade. É famosa sua frase “conhece-te a ti mesmo”,<br />

que dá início à jornada interior da Humanidade, na busca<br />

do caminho que conduz à prática das virtudes morais.<br />

Através de questões simples, inseridas dentro de um<br />

contexto determinado, a Maiêutica dá à luz ideias<br />

complexas.<br />

O filósofo busca o conhecimento através de questões que<br />

revelam uma dupla face – a ironia e a maiêutica. Através<br />

da ironia, o saber sensível e o dogmático se tornam<br />

indistintos. Sócrates dava início a um diálogo<br />

com perguntas ao seu ouvinte, que as respondia através<br />

de sua própria maneira de pensar, a qual ele parecia<br />

aceitar. Posteriormente, porém, ele procurava convencêlo<br />

da esterilidade de suas reflexões, de suas contradições,<br />

levando-o a admitir seu equívoco.<br />

Por intermédio da maiêutica, ele mergulha no<br />

conhecimento, ainda superficial na etapa anterior, sem<br />

atingir, porém, um saber absoluto. Ele utilizava este<br />

termo justamente porque se referia ao ato da parteira –<br />

profissão de sua mãe -, que traz uma vida á luz. Assim<br />

ele vê também a verdade como algo que é parido. Seu<br />

senso de humor costumava desorientar seus ouvintes,<br />

que na conclusão do debate acabavam admitindo seu<br />

desconhecimento. Deste diálogo nascia um novo<br />

conhecimento, a sabedoria. Um exemplo comum deste<br />

método é o conhecido diálogo platônico ‘Mênon’ – nele<br />

Sócrates orienta um escravo sem instrução a adquirir tal<br />

conhecimento que ele se torna capaz de elaborar diversos<br />

teoremas de geometria<br />

O P r ob lem a d o C on h ecim en t o<br />

Por Aderson de Paula Borges – Professor do Ensino Público no Estado do Paraná<br />

A questão do conhecimento é, provavelmente, o<br />

problema mais antigo da filosofia. É verdade que a<br />

produção e organização de conhecimentos técnicos,<br />

artísticos, agrícolas, etc., é anterior ao conhecimento<br />

filosófico iniciado pelos pré-socráticos.<br />

(...) no espaço de alguns séculos, a Grécia conheceu, em<br />

sua vida social e espiritual, transformações decisivas.<br />

Nascimento da Cidade e do Direito, advento, entre os<br />

primeiros filósofos, de um pensamento de tipo racional e<br />

de uma organização progressiva do saber em um corpo<br />

de disciplinas positivas diferenciadas: ontologia,<br />

matemática, lógica, ciências da natureza, medicina,<br />

moral, política, criação de formas de arte novas, de<br />

novos modos de expressão, correspondendo à<br />

necessidade de autentificar os aspectos até então<br />

desconhecidos da experiência humana: poesia lírica e<br />

teatro trágico nas artes da linguagem, escultura e<br />

pintura concebidas como artifícios imitativos nas artes<br />

plásticas.(VERNANT, 1973, p. 04)<br />

Antes mesmo do nascimento da filosofia na Grécia<br />

antiga do séc. V a.C. já há uma cultura estabelecida,<br />

sobretudo nos textos épicos de Hesíodo e Homero, mas<br />

também na poesia lírica e nos conhecimentos<br />

rudimentares que os gregos do século VI a.C. tinham<br />

sobre astronomia.<br />

Ao se constituir, a filosofia provoca um afastamento<br />

gradual e doloroso desta tradição. Os heróis e os valores<br />

presentes nas histórias de Homero e Hesíodo são<br />

questionados pelos primeiros filósofos. A tradição mítica<br />

entra em crise e a filosofia passa a absorver questões<br />

como a origem do universo, o bem universal, o que é o<br />

ser, a organização política de uma cidade, etc. É<br />

provavelmente neste momento, por volta da metade do<br />

século V a.C. em Atenas, que podemos situar o<br />

nascimento de uma preocupação com as condições em<br />

que se dá o conhecimento.<br />

Mas por que o conhecimento é um tema exclusivamente<br />

filosófico? Antes do advento da filosofia não existe o<br />

problema? O helenista Jean-Pierre Vernant diz que a<br />

preocupação com o conhecimento puro, isto é, o saber<br />

que não carrega traços religiosos ou míticos, é uma<br />

característica dos primeiros filósofos. Homens como<br />

Tales, Anaximandro, Anaxímenes apresentam em suas<br />

investigações uma teoria, uma visão geral do mundo que<br />

explica racionalmente a estrutura física e espiritual desse<br />

mundo. Vernant afirma ainda que esses primeiros<br />

pensadores tinham plena consciência de que produziam<br />

um conhecimento radicalmente novo e, em muitos<br />

pontos, oposto à tradição religiosa.<br />

(VERNANT, 1973, p. 156-8)<br />

P lat ã o e P r ot á gor : as Racionalismo e Relativismo<br />

O que de fato diferencia esses níveis de conhecimento de<br />

que falamos, ou seja, qual a natureza específica da<br />

sensação, da crença e do conhecimento? Vejamos o que<br />

Platão e Protágoras escreveram a respeito. Platão é um<br />

filósofo nascido em Atenas do período clássico. Sua obra<br />

trata de política, moral, ciência e arte. Platão descrevia<br />

suas teses em textos escritos na forma de diálogos<br />

32


42<br />

temáticos, isto é, cada diálogo tratava de um tema<br />

específico como Justiça, Conhecimento, Coragem, etc.<br />

Já Protágoras é um “sofista” nascido alguns anos antes<br />

de Platão. Um sofista é um sujeito tido como conhecedor<br />

de técnicas de aprendizado de oratória, matemática,<br />

geometria, etc.. É alguém que tem uma “especial perícia<br />

ou conhecimento para comunicar. Sua sophia [sabedoria]<br />

é prática, quer nos campos da conduta e política, quer<br />

nas artes técnicas” (GUTHRIE, 1995, p. 34). A relação<br />

entre as posições de Platão e Protágoras acerca do<br />

conhecimento é, para dizer o mínimo, tensa.<br />

Protágoras é considerado, do ponto de vista do<br />

conhecimento, um relativista. Ele defendia, por exemplo,<br />

que para cada tema havia um argumento a favor e outro<br />

contra. Dizia que podia fazer do “argumento mais fraco o<br />

mais forte”. No Teeteto de Platão ele aparece defendendo<br />

sua tese mais famosa, a ideia de que “(...)o homem é a<br />

medida de todas as coisas, das que são e das que não são.<br />

(Teeteto, 152c).<br />

No Teeteto Platão faz um exame cuidadoso dessa<br />

doutrina, destacando que não se trata apenas de uma<br />

frase de efeito criada pelo sofista para agradar às<br />

multidões, estratégia típica nas atividades de Protágoras.<br />

Protágoras realmente defendeu a tese de que em assuntos<br />

como<br />

política, moral, religião, saúde, o indivíduo é a medida,<br />

isto é, não existe nada além daquilo que cada um percebe<br />

em seu campo de visão, audição, etc. Essa filosofia gera<br />

um relativismo, uma perspectiva que leva em conta<br />

apenas aquilo que a sensibilidade de uma pessoa capta.<br />

Mas por quê? Que tem a ver sensibilidade com a ideia de<br />

que o homem individual é medida de todas as coisas?<br />

Em primeiro lugar, é preciso considerar que Protágoras<br />

lecionava, segundo Platão, duas qualidades diferentes de<br />

ensino. Um ensino mais popular e acessível era dado à<br />

multidão que, ocasionalmente, pagava e freqüentava seus<br />

cursos. Um outro tipo de lição, bem mais detalhada, era<br />

ministrada aos chamados “iniciados”, discípulos assíduos<br />

que recebiam as explicações pormenorizadas das teses de<br />

Protágoras.<br />

Em segundo lugar, sempre de acordo com Platão no<br />

Teeteto, o sofista utilizava em suas lições aos iniciados o<br />

núcleo principal da filosofia do pré-socrático Heráclito<br />

para dar um fundamento à tese do homem-medida. De<br />

Heráclito Protágoras emprestava a ideia de que “tudo<br />

está em movimento”. Com esse pensamento, Protágoras<br />

negava que alguma coisa pudesse manter suas qualidades<br />

essenciais de forma perene. Por exemplo, com a ideia de<br />

que tudo está sob efeito de um fluxo constante justificase<br />

porque não há razão para acreditar em ideias gerais<br />

acerca da humanidade, do destino humano, de<br />

conhecimento, etc. Protágoras chega a dizer que o<br />

conhecimento de medicina, mesmo que se defina por um<br />

conjunto de técnicas sobre o bem-estar do corpo, não é<br />

um caso de verdade absoluta. Os preceitos médicos não<br />

fazem mais do que substituir uma sensação ruim, como a<br />

febre, por uma sensação boa, a saúde. Estamos aqui no<br />

plano da sensação e, sobretudo, bem de acordo com a<br />

doutrina de que cada um é juiz solitário de tudo que é<br />

verdadeiro e falso.<br />

Em suma: é porque tudo se move que o homem, ser<br />

sensível capaz de reter momentaneamente alguns traços<br />

das coisas, é a medida de tudo. Protágoras pode ser<br />

considerado, desse modo, o primeiro relativista da<br />

história.<br />

Platão escreveu que os homens estão ligados desde o<br />

nascimento às sensações primitivas. Por conta disso,<br />

vivem num estado mental permeado por “imagens” dos<br />

objetos existentes. Para Platão poucos alcançam o<br />

verdadeiro conhecimento. Platão crê que é definitivo o<br />

apego da maioria das pessoas a realidades transitórias,<br />

mas não deixa de indicar, repetidas vezes e em vários<br />

textos, o caminho que leva ao verdadeiro conhecimento.<br />

Esse caminho é diferente daquele indicado por<br />

Protágoras em muitos pontos essenciais, como veremos.<br />

A principal obra de Platão é um diálogo chamado<br />

República. É uma síntese de seu pensamento. Não por<br />

acaso é o texto mais divulgado de Platão. Nessa obra<br />

Platão desenvolve uma série de teses sobre<br />

conhecimento.<br />

A principal obra de Platão é um diálogo chamado<br />

República. É uma síntese de seu pensamento. Não por<br />

acaso é o texto mais divulgado de Platão. Nessa obra<br />

Platão desenvolve uma série de teses sobre<br />

conhecimento. Mas o autor escreveu uma outra obra que<br />

tratava exclusivamente da questão do conhecimento.<br />

Trata-se do diálogo Teeteto, já citado. Confeccionado<br />

após a República, provavelmente num momento onde<br />

Platão já não estava contente com os resultados expostos<br />

em sua obra anterior, é nessa obra que Platão desafia de<br />

forma definitiva o relativismo de Protágoras.<br />

Para dar cabo dessa tarefa, Platão desenvolve três<br />

alternativas para a definição de conhecimento:<br />

1 ) conhecimento é sensação;<br />

2 ) crença-opinião verdadeira é conhecimento e


m<br />

3 ) opinião verdadeira justificada com a razão é<br />

conhecimento.<br />

A primeira alternativa é a opinião de Protágoras. Na<br />

passagem 186c do Teeteto Platão é categórico ao rebatêla:<br />

Naquelas impressões (sensações), por conseguinte, não é<br />

que reside o conhecimento, mas no raciocínio a seu<br />

respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir<br />

a essência e a verdade; de outra forma é impossível.<br />

Ao dizer que o raciocínio sobre as impressões é o que<br />

caracteriza o conhecimento, Platão condena a tese de<br />

Protágoras à inconsistência epistemológica, isto é, nada<br />

na tese permite retratar o processo de conhecimento. Um<br />

pouco antes deste trecho, o diálogo apresenta a noção de<br />

alma como responsável pela “síntese” da sensação.<br />

Platão insiste ali que o que organiza em nós o fluxo de<br />

dados captados pelos sentidos é o que hoje chamamos<br />

en t e ou esp í r it o. Platão avalia que a sensação não<br />

pode ser responsável por um conhecimento porque ela<br />

não opera no nível do “por que”, mas no nível do<br />

“através de que” (Diès, 1972, p. 458). Em outras<br />

palavras, Platão está dizendo que a sensibilidade não é<br />

capaz de fazer um juízo da forma “esta flor é bela”.<br />

Mesmo que meus órgãos sejam tocados pela beleza da<br />

flor, a expressão “é bela”, e seu sentido, é uma operação<br />

realizada pelo espírito. Platão rejeita também a idéia de<br />

que opinião ou crença, ainda que verdadeira, possam ser<br />

conhecimento. No diálogo Mênon (98a) Platão escreve:<br />

desenvolveu posteriormente a idéia de que, se uma<br />

pessoa tem conhecimento, ela deve dominar<br />

necessariamente o saber da causalidade dos eventos e<br />

coisas. Ciência ou Conhe-imento, tanto para Aristóteles<br />

como para Platão, é o domínio das conexões causais<br />

verificadas na realidade.<br />

No que toca à crença, para Platão trata-se de um tipo de<br />

fluxo de ideias que se caracteriza por uma tendência<br />

natural à mudança. Nossas crenças podem até ser<br />

verdadeiras ou plausíveis, como, por exemplo, no caso<br />

de dizermos que “o egoísmo é uma propriedade natural<br />

do ser humano”. Mas até que saibamos expor a cau sa,<br />

dizer o p or q u ê, ou enunciar a fu n ç ã o que a natureza<br />

reservou a esse sentimento, não estamos autorizados a<br />

emitir aquele juízo com pretensão de conhecimento. Se<br />

alguém lançar contra essa ideia uma série de argumentos,<br />

podemos modificar nossa posição sobre o problema,<br />

sem, no entanto, conhecer de fato a questão. Platão dizia<br />

que a estrutura de nossas opiniões segue mais ou menos<br />

o esquema de nossas sensações. Esse esquema é o<br />

seguinte:<br />

Pois também as opiniões que são verdadeiras, por tanto<br />

tempo quanto permaneçam, são uma bela coisa e<br />

produzem todos os bens. Só que não se dispõem a ficar<br />

muito tempo, mas fogem da alma do homem, de modo<br />

que não são de muito valor, até que alguém as encadeie<br />

por um cálculo de causa. (...) e quando são encadeadas,<br />

em primeiro lugar, tornam-se ciências, em segundo<br />

lugar, estáveis. E é por isso que a ciência é de mais<br />

valor que a opinião correta, e é pelo encadeamento que<br />

a ciência difere da opinião correta.<br />

Esse “encadeamento” de que fala o filosofo é o<br />

r aciocí n io que cada um é capaz de fazer sobre os<br />

elementos que compõem sua opinião. Trata-se, como<br />

disse Da Costa na passagem já citada no texto, de ter<br />

uma justificação para sua crença. Em Platão essa<br />

j u st ificaç ã é o o con h ecim en t o d as cau sas. Aristóteles<br />

No caso da visão, ter uma experiência sensória é ter um<br />

olho que recebe, com ajuda da luz, aspectos dos objetos.<br />

À medida que o objeto se movimenta, nossa visão<br />

também se modifica. Se estiver mais próximo, vejo com<br />

mais nitidez o tom de cinza. Se me afastar demais, não<br />

consigo distinguir a cor. Para Platão, toda sensação, seja<br />

auditiva, gustativa ou tátil, é um caso de aproximação<br />

entre um órgão sensível (olho, ouvido, etc.) e um objeto.<br />

A crença/opinião, para Platão, tem essa estrutura porque<br />

as informações que adquirimos mediante opinião se<br />

mantêm apenas até que outra sensação, mais forte ou<br />

mais adequada, substitua a sensação anterior que nos<br />

52


fazia emitir aquela opinião. Desse modo, toda<br />

informação que administramos a título de opinião está<br />

sujeita a mudança, da mesma forma que nossa visão dos<br />

objetos se modifica pelo deslocamento de posição, seja<br />

do nosso olho ou do objeto.<br />

Não é o que ocorre quando temos con h ecim en t o. De<br />

modo similar à crença, o conhecimento retém um feixe<br />

de aspectos dos objetos. Mas o que o distingue é o fato<br />

de focalizar os traços permanentes do objeto. Desse<br />

modo, a grande diferença, para Platão, entre opinião e<br />

conhecimento é que a primeira fornece ao sujeito um<br />

quadro provisório do mundo, ao passo que o<br />

conhecimento é o estudo daquilo que jamais muda.<br />

No Teeteto Platão diz que é preciso que a mente se ponha<br />

a r aciocin ar sobre os dados para que haja a formulação<br />

de um conhecimento. O raciocínio é uma atividade do<br />

pensamento, para Platão a mais nobre, porque é por meio<br />

dele que conseguimos atingir o verdadeiro núcleo de<br />

cada realidade.<br />

do conhecimento. Essa também é a preocupação que dá<br />

corpo ao desenvolvimento da matemática grega. Em<br />

outras culturas o processo de construção do<br />

conhecimento matemático deu-se de maneira diferente.<br />

Sabemos hoje que entre os babilônios e egípcios, por<br />

volta de 3.500 a.C. já existia um primitivo sistema de<br />

escrita numérica. Alguns historiadores consideram,<br />

inclusive, a África e não a Grécia o berço da<br />

matemática, devido ao material encontrado que sugere<br />

que há mais de dezenove mil anos já se pensava<br />

matematicamente. Porém, é na Grécia que se verifica um<br />

surpreendente nível de abstração de problemas<br />

matemáticos, culminando na obra do matemático<br />

Euclides, que viveu por volta do ano 300 a.C. Os<br />

“Elementos” de Euclides comportam 465 proposições<br />

em 13 livros que tratam de geometria, teoria dos<br />

números, irracionais e geometria do espaço.<br />

A r ist ó t eles e su as cr í t icas a P lat ã o<br />

T eor em a d e P it á gor as. . .. <strong>Filosofia</strong> e M at em á t ica<br />

62<br />

Se hoje o conceito de “ângulo”, a “teoria das<br />

proporções”, a “raiz quadrada”, os números nãointeiros<br />

ou negativos, etc., são coisas comuns nas aulas<br />

de matemática, isso se deve ao fato dos gregos terem<br />

dado grande impulso na sistematização dessas fórmulas.<br />

Entre os gregos, a filosofia começa com uma tomada de<br />

consciência sobre os limites da experiência na obtenção<br />

Aristóteles (384-322 a. C.).<br />

A teoria do conhecimento se caracteriza por uma<br />

preocupação com a busca de princípios gerais que<br />

permitam formular crenças verdadeiras sobre a realidade.


Essa idéia está presente na obra de Platão e é, em larga<br />

medida, o que caracteriza também o pensamento de<br />

Aristóteles.<br />

É com Aristóteles que a filosofia ganha uma consciência<br />

mais definida acerca do método a ser adotado quando o<br />

assunto é o conhecimento. Aristóteles contestou Platão<br />

porque via problemas em alguns pontos da explicação<br />

platônica do conhecimento. Platão tinha chegado numa<br />

tese importante: para haver conhecimento da realidade, é<br />

preciso encontrar um caminho que dê acesso a ideias que<br />

sejam imutáveis, que não sofram transformações<br />

decorrentes da interpretação ou do capricho.<br />

Aristóteles concorda com isso, mas dirige uma crítica a<br />

Platão: para garantir a certeza e validade do<br />

conhecimento não é necessário postular uma teoria que<br />

duplique o real, isto é, que crie duas dimensões na<br />

realidade: o sensível e o inteligível, como fez Platão.<br />

Para entendermos bem a crítica de Aristóteles é<br />

necessário demorar-se um pouco mais na teoria platônica<br />

que Aristóteles ataca: a chamada “teoria das Formas.”<br />

Com efeito, em obras como República e Fédon, Platão<br />

defende que o conhecimento só é alcançado quando<br />

atingimos a “ideia” ou “conceito” do objeto. Platão<br />

utilizava, prioritariamente, o termo “Forma” para referirse<br />

a essa ideia. Por Forma Platão entende um núcleo de<br />

características de um determinado objeto ou realidade<br />

que mantém seus componentes independentemente dos<br />

exemplares destes objetos encontrados no mundo ou na<br />

linguagem.<br />

Um exemplo que nos ajuda a entender isso é pensar<br />

naquilo que você compreende quando houve a palavra<br />

Justiça. Se relacionarmos o que as pessoas entendem por<br />

justiça, teremos uma gama variada de definições, muitas<br />

contraditórias entre si. Além disso, a própria aplicação<br />

do conceito à realidade, no sentido de esforçar-se por ser<br />

justo, não é condição suficiente para que saibamos<br />

exatamente o que é justiça.<br />

Suponhamos que você diz que agir com justiça é<br />

devolver a alguém o que lhe pertence (cf. República<br />

331e-332c), e dá como exemplo a devolução, ao dono,<br />

de uma arma que você encontrou. Alguém pode protestar<br />

que teria sido mais racional e justo evitar a devolução,<br />

pois a arma poderia ser usada para ferir alguém. É isso<br />

que preocupava Platão.<br />

Muitas noções que temos sobre justiça e outros conceitos<br />

importantes esfacelam-se diante de certas circunstâncias.<br />

Platão se perguntava se não haveria um meio de evitar<br />

essa ambigüidade em que diferentes situações exigirão<br />

de nós diferentes noções disto ou daquilo. Ele estava<br />

consciente de que se não houvesse um modo de chegar a<br />

uma visão unitária da justiça, jamais haveria<br />

possibilidade de entendermos a real essência do conceito.<br />

Pior que isso, os que cometem crimes ou violência<br />

teriam sempre à mão um argumento para justificar suas<br />

ações.<br />

Daí porque Platão defendia que, para um conjunto<br />

específico de coisas como Justiça, Beleza,<br />

Conhecimento, Coragem, Igualdade, etc., deveria existir<br />

uma única Forma que desse sustentação ao pensamento<br />

sobre essas coisas. Desse modo, ao aplicar o conceito de<br />

Justiça a determinada realidade, no entendimento de<br />

Platão, estaríamos aplicando o conhecimento do objeto<br />

aos casos particulares. Dito de outra forma: não é porque<br />

uma cidade foi devastada que a população local deve se<br />

unir e reconstruí-la novamente. Antes mesmo da<br />

devastação a população deve saber que o que define a<br />

justiça é cada um fazer a sua parte (cf. República, livro<br />

IV) com vistas ao bem comum. Desse modo, no<br />

momento em que a cidade for arruinada não será<br />

necessário nenhum esforço de conscientização para que<br />

uns ajudem os outros, uma vez que aquela população já<br />

sabia agir assim bem antes do aconteci- mento trágico.<br />

Isto posto, voltemos às críticas de Aristóteles. Elas estão,<br />

sobretudo, no capítulo nove da Metafísica. Aristóteles<br />

critica vários pontos da teoria. Vamos nos deter no<br />

núcleo comum de suas análises. A preocupação de<br />

Aristóteles é que a teoria das Formas de Platão conduz a<br />

um tipo bem particular de problema: ela torna o<br />

pensamento de um objeto in- dependente deste objeto, ou<br />

seja, faz pairar acima dos objetos conceitos abstratos.<br />

Isso não é necessário, pensa Aristóteles. Ele concorda,<br />

por exemplo, que a observação e comparação de<br />

diferentes tipos de cavalo levam a um grupo de aspectos<br />

que definem o “conceito de cavalo”. Isso só pode ser<br />

feito pelo pensamento. Mas Aristóteles não concorda<br />

quando Platão imagina que existe algo abstrato e formal<br />

como “a cavalidade”, independentemente da existência<br />

de cavalos particulares. Para Aristóteles, chegamos ao<br />

conceito de cavalo mediante estudo dos exemplares<br />

existentes, chegamos ao conceito de humanidade<br />

mediante estudo de homens concretos e assim por diante.<br />

Aristóteles se pergunta: por que postular propriedades<br />

essenciais de cada objeto que existam separadamente<br />

quando sabemos que conceitos, termos, palavras, frases<br />

são produto do próprio pensamento e só existem<br />

enquanto pensamento? Para Aristóteles um homem é<br />

mais real que a humanidade, e é por meio do primeiro<br />

que chegamos ao conceito do segundo.<br />

72


D o p ar t icu lar ao ger al: 1 º m ov im en t o d o<br />

en t en d im en t o<br />

Numa obra chamada “Física” Aristóteles esclarece o<br />

passo do conheci- mento: “o percurso naturalmente vai<br />

desde o mais cognoscível e mais claro para nós em<br />

direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza...”<br />

(Física I,184a16-17)<br />

Não é difícil entender o que Aristóteles está dizendo. Se<br />

você é um especialista em teoria da relatividade e foi<br />

chamado para uma palestra a um público que não<br />

entende coisa alguma de física, será melhor iniciar sua<br />

fala por alguns exemplos triviais do cotidiano para<br />

cativar o público e só então arriscar conceitos mais<br />

técnicos ou fórmulas. Em outras palavras, você fará um<br />

caminho que vai do “particular” (o que faz parte da<br />

experiência do público) ao “geral” (a visão de conjunto,<br />

mais técnica e elaborada, sobre a qual você vai falar). A<br />

marcha do nosso entendimento vai do simples ao<br />

complexo. Isso significa que compreendemos melhor um<br />

assunto quando podemos fazer a passagem daquilo que<br />

conhecemos para aquilo que desconhecemos. Observe<br />

como os grandes oradores começam seus discursos por<br />

analogias ou casos que a plateia logo se identifica. No<br />

texto da “Física” Aristóteles dá o exemplo da criança<br />

para ilustrar sua tese: inicialmente ela chama qualquer<br />

homem ou mulher de pai e mãe. Só mais tarde aprenderá<br />

a identificar quem é pai e mãe, e com o tempo formará<br />

um conceito de paternidade e maternidade. Há aqui um<br />

curso do entendimento que vai do particular ao universal,<br />

fazendo com que o conhecimento amplie-se. Aristóteles,<br />

que era considerado um professor brilhante, já dominava<br />

em seu tempo noções de psicologia e pedagogia para<br />

saber que ser humano algum adquire conhecimento se<br />

não puder partir daquilo que já sabe.<br />

D o u n iv er sal ao p ar t icu lar : 2 º m ov im en t o d o<br />

en t en d im en t o<br />

Atenção: a regra anterior é absoluta no que toca ao<br />

aprendizado, mas ela não diz tudo. O texto da Física<br />

também indica que o “claro” para nós é, frequentemente,<br />

um dado muito geral e simplista. O conhecimento só é<br />

efetivo quando puder descer às minúcias. É isso que<br />

Aristóteles quer dizer com “(...) mais claro e mais<br />

cognoscível para nós em direção ao mais claro e mais<br />

cognoscível por natureza”. A marcha é do que nós<br />

sabemos em direção ao que as coisas são de fato. Procure<br />

não fazer confusão sobre esse ponto. Essa é a razão pela<br />

qual os melhores alunos na escola são aqueles que<br />

desenvolvem o hábito de acompanhar os pontos<br />

principais do conteúdo. A regra de ouro é: compreenda<br />

os conceitos principais, mais gerais, só então se dedique<br />

ao estudo dos pontos particulares. Muitas vezes esses<br />

alunos são toma- dos por “inteligentes”, mas não é nada<br />

disso. Adquirir conhecimento é uma questão de saber<br />

como procede o aprendizado. Muitos que tiram os<br />

primeiros lugares nos vestibulares não dedicam mais do<br />

que 4 horas de estudo por dia no período de preparação,<br />

o que escandaliza os demais que no mesmo período<br />

chegam a estudar 10 horas por dia e não alcançam os<br />

mesmos resultados.<br />

O P r ob lem a É t ico<br />

Por Djaci Pereira Leal – Professor na cidade de Nova Londrina no Estado do<br />

Paraná<br />

É t ica e Felicid ad e<br />

Partindo de um conceito básico de ética como “saberviver,<br />

ou a arte de viver” (SAVATER, 2002), pode-se<br />

dizer que os homens tudo fazem para viver e viver bem.<br />

É preciso esclarecer um outro conceito muito importante<br />

para a ética – a felicidade.<br />

Pode-se afirmar que, para Aristóteles, a felicidade é o<br />

resultado do saber viver. Entendendo a ética como a arte<br />

de viver, o resultado desse viver será a felicidade. Ao<br />

discutir o que é felicidade é possível perceber que não há<br />

um único conceito e entendimento, mas vários. Assim,<br />

vamos buscar entender o que na Antiguidade orientavam<br />

os filósofos Aristóteles e Sêneca aos seus<br />

contemporâneos: o que fazerem para atingir a virtude, e,<br />

portanto, serem felizes.<br />

A virtude, que segundo Aristóteles, é o que vai garantir<br />

ao homem a felicidade, é “o hábito que torna o homem<br />

bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa”, a virtude é<br />

“racional, conforme e constante”. (ARISTÓTELES,<br />

2001)<br />

Para o Estoicismo, escola filosófica da qual participa<br />

Sêneca, a felicidade consiste em viver segundo a razão –<br />

o Logos. Viver segundo a natureza, pois o homem é de<br />

natureza racional. Portanto, entendem os estoicos que ser<br />

virtuoso é viver segundo a razão.<br />

A felicidade não é a mesma e única para todos os<br />

filósofos e momentos históricos. No entanto, vamos<br />

trabalhar aqui com apenas dois filósofos da Antiguidade,<br />

com concepções e momentos históricos bem diferentes, e<br />

teremos como norte das discussões a virtude, ou seja, o<br />

82


que ambos apresentam como necessário aos homens na<br />

busca do bem viver.<br />

Vamos buscar o que Aristóteles e Sêneca apresentam<br />

como referencial para os homens de sua época no sentido<br />

de orientá-los em busca da felicidade. Como cada<br />

filósofo apresentou suas ideias em busca de respostas<br />

para o que acontecia em sua época, ou seja, pensaram<br />

sua época e buscaram discutí-la, explicá-la e, sobretudo,<br />

apresentar o que era necessário para sobreviver àquele<br />

momento, portanto, assim como qualquer um de nós,<br />

também os filósofos são homens de seu tempo, e para<br />

entendê-los é preciso estudar um pouco o momento<br />

histórico que viveram.<br />

Aristóteles (384-322 a.C.) é proveniente da Macedônia e<br />

vem para Atenas, centro intelectual e artístico da Grécia,<br />

no século IV a.C. para estudar, onde ingressou na<br />

Academia de Platão. Permaneceu na Academia até a<br />

morte de Platão.<br />

A P ó lis e a Felicid ad e<br />

Em Atenas, no século IV a.C., o regime político era a<br />

democracia. E para o regime democrático uma figura<br />

fundamental é o cidadão. Porém, para os gregos<br />

atenienses, a cidadania estava reservada apenas aos<br />

nascidos em Atenas, pois cada cidade possuía os seus<br />

deuses e era a religião e o culto aos deuses que<br />

determinavam a cidadania. Em Atenas eram cidadãos os<br />

homens atenienses livres a partir dos 18 anos. Observe<br />

que as mulheres, os escravos e os estrangeiros não eram<br />

cidadãos. A eles estava reservado apenas o espaço do<br />

“oikos”, da casa e não o da pólis, da cidade.<br />

Segundo o historiador Fustel de Colanges (1981), aos<br />

estrangeiros, apesar de serem admitidos nas cidades, era<br />

praticamente impossível conseguir a cidadania, pois<br />

assim como não é possível pertencer a duas famílias<br />

também não o é a duas religiões.<br />

Pode-se perceber que, de acordo com a explicação<br />

histórica da cidadania, o que definia o cidadão era o<br />

pertencer a uma cidade. E o pertencer a uma cidade<br />

estava ligado à religião e aos deuses da cidade. Para a<br />

ética de Aristóteles a cidade, comunidade política, é o<br />

lugar da vida do homem, animal político e social,<br />

portanto, é nesse espaço que o homem desenvolve a arte<br />

de viver e atingir a felicidade.<br />

Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômacos, discute a<br />

finalidade de toda arte, indagação, ação e propósito da<br />

vida humana e conclui que é sempre o bem a que todas<br />

visam. Ao discutir qual seria este bem que é a finalidade<br />

da vida humana, Aristóteles nos apresenta a felicidade.<br />

Só que ao mesmo tempo em que afirma que a felicidade<br />

é o bem supremo, pergunta-se pela função própria do<br />

homem.<br />

[...] o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das<br />

faculdades da alma de conformidade com a excelência, e<br />

se há mais de uma excelência, de conformidade com a<br />

melhor e mais completa entre elas. Mas devemos<br />

acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por<br />

toda a vida, pois uma andorinha não faz verão [...]; da<br />

mesma forma um dia só, ou um certo lapso de tempo,<br />

não faz um homem bem- aventurado e feliz.<br />

(ARISTÓTELES, 2001, p. 24-25)<br />

Pressupondo que a felicidade é a finalidade de nossa<br />

vida, Aristóteles preocupa-se em demonstrar que a vida<br />

humana possui em si uma finalidade, ou seja, uma<br />

função para a qual está dada. E, portanto, tal finalidade<br />

se objetiva dentro da função a que a vida acontece.<br />

Sendo assim, a felicidade resultará do atendimento a esta<br />

função. O que está pressuposto não é a felicidade em si<br />

mesma, mas a relação da mesma com a arte de viver,<br />

com o saber viver que estamos discutindo desde o início.<br />

E aqui cabe então atentarmos para o que Aristóteles nos<br />

apresenta como sendo a felicidade:<br />

[...] Parece que a felicidade, mais que qualquer outro<br />

bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos<br />

sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais;<br />

mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as<br />

outras formas de excelência, embora as escolhamos por<br />

si mesmas /.../, escolhemo-las por causa da felicidade,<br />

pensando que através delas seremos felizes. Ao<br />

contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das<br />

várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por<br />

qualquer outra coisa além dela mesma. (ARISTÓTELES,<br />

2001, p. 23)<br />

Aristóteles fundamenta a ética, arte de bem viver, tendo<br />

como referência a função do homem, ou seja, da vida<br />

humana, pois não se trata da vida de um homem, mas do<br />

ser humano, e aponta para a felicidade como sendo a<br />

busca, em si mesma, da vida humana, ou seja, o bem<br />

supremo a que toda arte, indagação, ação e propósito<br />

devam ter em vista. A partir da obra Ética a Nicômacos<br />

busca-se entender o que, segundo Aristóteles, é preciso<br />

para ser feliz.<br />

92


03<br />

[...] Devemos observar que cada uma das formas de<br />

excelência moral, além de proporcionar boas condições à<br />

coisa a que ela dá excelência, faz com que esta mesma<br />

coisa atue bem; por exemplo, a excelência dos olhos faz<br />

com que tanto os olhos quanto a sua atividade sejam<br />

bons, pois é graças à excelência dos olhos que vemos<br />

bem. De forma idêntica a excelência de um cavalo faz<br />

com que ele seja ao mesmo tempo bom em si e bom para<br />

correr e levar seu dono e para sustentar o ataque do<br />

inimigo. Logo, se isto é verdade em todos os casos, a<br />

excelência moral do homem também será a disposição<br />

que faz um homem bom e o leva a desempenhar bem a<br />

sua função. (ARISTÓTELES, 2001, p. 41)<br />

O termo excelência utilizado por Aristóteles é<br />

corriqueiramente entendido também por virtude. Há duas<br />

espécies de excelência: a intelectual e a moral. A<br />

intelectual nasce e se desenvolve com a instrução, ou<br />

seja, com o processo educativo e formativo. Por isso,<br />

desenvolvesse com o tempo e a experiência. É o que de<br />

certa forma estamos fazendo desde que iniciamos nossa<br />

vida escolar e que vai se aprimorando à medida em que<br />

nos dedicamos mais aos estudos. Cada um de nós pode<br />

perceber o quanto se aprimorou desde o dia em que<br />

esteve pela primeira vez em uma sala de aula.<br />

Já a excelência moral é produto do hábito, é tudo aquilo<br />

que podemos alterar pelo hábito. Observe que a palavra<br />

ética tem sua raiz grega – ethiké e ethos - que significam<br />

hábito.<br />

Então a excelência moral é adquirida através da prática,<br />

assim como as artes, por exemplo, você toca violão na<br />

medida em que passa a praticar e quanto mais tempo<br />

praticar, maior será sua habilidade e chances de se tornar<br />

um exímio tocador. Por que o desenvolvimento da<br />

excelência moral é tão importante para nós? Porque está<br />

relacionada com as ações e emoções, que por sua vez<br />

estão relacionadas com o prazer ou sofrimento e por isso,<br />

a excelência moral se relaciona com os prazeres e<br />

sofrimentos. Pode-se dizer que a excelência moral é a<br />

capacidade que vamos desenvolver para lidar com nossas<br />

emoções e ações na relação direta com o prazer e o<br />

sofrimento. E disso resultará o bom uso que faremos ou<br />

não do prazer e do sofrimento.<br />

Para Aristóteles “toda a preocupação, tanto da excelência<br />

moral quanto da ciência política, é com o prazer e com o<br />

sofrimento, porquanto o homem que os usa bem é bom, e<br />

o que os usa mal é mau”. (ARISTÓTELES, 2001, p.38)<br />

Mas o fato de a excelência estar relacionada ao domínio<br />

que fará do prazer e sofrimento implica que a excelência<br />

garantirá atingir o alvo do meio-termo.<br />

Vamos retomar o que ele entende por disposição de<br />

caráter para que possamos entender o que seja a<br />

excelência moral ou virtude do homem. Ora, disposições<br />

de caráter são “os estados de alma em virtude dos quais<br />

estamos bem ou mal em relação às emoções”<br />

(ARISTÓTELES, 2001, p. 40).<br />

Isto nada mais seria que a nossa disposição em relação às<br />

coisas, ou melhor como sentimos, encaramos a realidade<br />

que nos cerca, com certo grau de intensidade e/ou<br />

indiferença.<br />

Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos,<br />

cólera, piedade, e de um modo geral prazer e sofrimento,<br />

demais ou muito pouco, e em ambos os casos isto não é<br />

bom; mas experimentar estes sentimentos no momento<br />

certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e<br />

de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é<br />

característico da excelência. (ARISTÓTELES, 2001, p.<br />

41-42)<br />

Fala-se que a excelência moral é o desenvolvimento de<br />

hábitos que nos farão escolher nossas ações e emoções,<br />

que são marcadas pelo excesso, falta e meio termo. Mas<br />

o que é o meio termo?<br />

De tudo que é contínuo e divisível é possível tirar uma<br />

parte maior, menor ou igual, e isto tanto em termos da<br />

coisa em si quanto em relação a nós; e o igual é um meio<br />

termo entre o excesso e a falta. Por “meio termo” quero<br />

significar aquilo que é equidistante em relação a cada um<br />

dos extremos, e que é único e o mesmo em relação a<br />

todos os homens; por “meio termo em relação a nós”<br />

quero significar aquilo que não é nem demais nem muito<br />

pouco, e isto não é único nem o mesmo para todos.<br />

(ARISTÓTELES, 2001, p. 41)<br />

Portanto, para Aristóteles a busca é pelo meio termo, ou<br />

seja, o equilíbrio entre o excesso e a falta. É o desafio e<br />

enfrentamento diante de cada ação e emoção. É por isso,<br />

que a formação da excelência moral é uma busca<br />

constante e depende da capacidade racional, pois exige a<br />

todo o momento reflexão e escolha. A mediania não é<br />

algo pronto e dado, mas escolhido e que precisa ser<br />

entendido para que se chegue a atingi-la.


Portanto, não pode o homem levar uma vida moral como<br />

indivíduo isolado, pois vive e é membro de uma<br />

comunidade. E como a vida moral não é um fim em si<br />

mesmo, mas um meio para se alcançar a felicidade, não<br />

se pensa a ética fora dos limites das relações sociais, ou<br />

seja, não se pressupõe a ética sem a política.<br />

É por isso que, segundo Savater, “(...) os antigos gregos<br />

chamavam quem não se metia em política de idiotés,<br />

palavra que significava pessoa isolada, sem nada a<br />

oferecer às demais, obcecada pelas mesquinharias de sua<br />

casa e, afinal de contas, manipulada por todos”.<br />

(SAVATER, 1996, p. 16)<br />

Não sei se isto responde a questão: como fazer para<br />

atingir o meio termo? Mas penso que traduza o que está<br />

pressuposto em Aristóteles no sentido de orientar os<br />

homens, daquele momento histórico, Grécia, no século<br />

IV a.C., a atingirem a finalidade de suas vidas, que para<br />

Aristóteles é a felicidade.<br />

Pierre Lévêque apresenta o estoicismo em dois<br />

momentos específicos. São eles: o Antigo Estoicismo e o<br />

Médio Estoicismo.<br />

“O estoicismo, assim chamado por causa do nome do<br />

Pórtico (em grego Stoá) do Poecilo onde os discípulos de<br />

Zenão se reuniam em Atenas, nasceu da mesma<br />

necessidade de paz e certeza, de paz pela certeza, num<br />

dos períodos mais perturbados da história grega”.<br />

(LÉVÊQUE, s/d, p. 118)<br />

Em relação ao Médio Estoicismo, ocorre no século II<br />

a.C. em função das violentas críticas de Carnéades (215-<br />

129 a.C. - filósofo que defendia o probabilismo, ou seja,<br />

que não existe verdade, mas opiniões mais ou menos<br />

prováveis).<br />

Diz Lévêque: “A evolução testemunhada pelo médio<br />

estoicismo é o melhor sinal da vitalidade de uma<br />

doutrina cuja ética representa, sem dúvida, a mais bela<br />

criação do espírito humano na Antigüidade”<br />

(LÉVÊQUE, s/d, p. 119)<br />

Sê n eca e a Felicid ad e<br />

Vimos o caminho proposto por Aristóteles para que o<br />

homem possa viver bem e, portanto, atingir a finalidade<br />

de sua vida: a felicidade. Enquanto Aristóteles distingue<br />

felicidade de virtude, entendendo a felicidade como fim<br />

último do homem, e a virtude como meio para atingi-la,<br />

os estoicos entendem felicidade e virtude como uma<br />

coisa só.<br />

Portanto, para os estoicos, a felicidade consiste em viver<br />

segundo a natureza, pois “(...) postulam que a Natureza é<br />

permeada de racionalidade: o mundo é um todo orgânico,<br />

solidário e dirigido por uma razão universal, que é deus.<br />

[...] Tudo se submete a essa ordem universal: na filosofia<br />

estoica, não há lugar para o acaso, a desordem e a<br />

imperfeição como em Aristóteles e Platão”. (WILLIAN<br />

LI, p. 14)<br />

Entre os estóicos destaca-se Sêneca que viveu três<br />

séculos depois de Aristóteles, ou seja, do ano 4 a.C. ao<br />

65 d.C. É considerado o maior estoico do mundo latino.<br />

Sêneca viveu em Roma no período denominado<br />

Helenismo, datado entre o século IV a.C. até III d.C.<br />

Sabe-se que Sêneca foi um dos principais filósofos<br />

estoicos do mundo latino e o Estoicismo uma escola<br />

filosófica que teve uma longa trajetória histórica.<br />

Devemos igualmente mostrar docilidade e não ser<br />

escravos demais das resoluções que tomamos; ceder de<br />

boa vontade à pressão das circunstâncias e não temer<br />

mudar, seja de resolução, seja de atitude, contanto que<br />

não caiamos na versatilidade, que é de todos os caprichos<br />

o mais prejudicial à nossa tranqüilidade. Porque se a<br />

obstinação é inevitavelmente inquieta e deplorável, visto<br />

que a fortuna lhe arranca a todo momento qualquer coisa,<br />

a leviandade é ainda muito mais penosa, porque ela não<br />

se fixa em nada. Estes dois excessos são funestos à<br />

tranqüilidade da alma: recusar-se a toda alteração e nada<br />

suportar. (SÊNECA, 1973, p. 71)<br />

Para entender melhor o que nos diz Sêneca é bom<br />

esclarecer o que seja fortuna e versatilidade. Fortuna é<br />

uma divindade romana responsável pela sorte, pelo acaso<br />

e pelo imprevisto. Os gregos a chamavam de Tique. Para<br />

a filosofia adota-se o termo acaso. O acaso é para os<br />

estoicos um erro ou ilusão, pois entendiam que tudo<br />

acontecia no mundo<br />

por necessidade racional. Portanto, para os estoicos em<br />

tudo o que acontece há uma razão, pois nada é visto<br />

como acaso. Já para Aristóteles, a fortuna é uma causa<br />

superior e divina, desconhecida, ignorada pela<br />

inteligência humana.<br />

13


23<br />

Observe que entre nós é comum o entendimento da<br />

fortuna como sinônimo de sorte. É bom destacar que<br />

para Aristóteles e Sêneca o conceito de fortuna e acaso<br />

são distintos e claro que também para os demais<br />

filósofos, sobretudo os modernos e contemporâneos.<br />

O outro conceito que precisamos esclarecer é o de<br />

versatilidade. Observe que no texto de Sêneca possui um<br />

caráter negativo, ao passo que para nós a versatilidade é<br />

algo positivo. Cada vez mais se defende a necessidade de<br />

sermos versáteis. No caso do texto de Sêneca podemos<br />

substituir o termo versátil por volúvel e assim nos<br />

aproximarmos mais da ideia que Sêneca quer nos passar.<br />

Você pôde observar que a recomendação chave de<br />

Sêneca está em “ceder de boa vontade a pressão das<br />

circunstâncias e não temer mudar”. É interessante que<br />

Sêneca pressupõe a tranquilidade diante do mundo que<br />

nos cerca. É preciso para isso nem cair em obstinação,<br />

nem em leviandade.<br />

É preciso lembrar que o momento histórico em que viveu<br />

Sêneca foi um momento de ruína do Império Romano. O<br />

Império Romano estava em decadência e cada dia mais<br />

isso era perceptível aos olhos daqueles que viviam<br />

aquele momento, sobretudo os pensadores da época. É<br />

nesse contexto de ruína, decadência, que a proposição de<br />

Sêneca, uma ética individualista, ou seja, centrada no<br />

indivíduo pode ser entendida e explicada.<br />

O que é comum ocorrer com as pessoas em momentos de<br />

crises profundas? É a dúvida em relação ao que fazer<br />

para sobreviver a ela. E diante de tal dúvida é comum o<br />

isolamento e a falta de um ponto de referência que seja<br />

claro e que garanta tranquilidade. É comum também as<br />

pessoas se angustiarem e passarem a ser atacadas de<br />

sentimentos de medo e insegurança. Então o que Sêneca<br />

está procurando oferecer aos seus contemporâneos nada<br />

mais é que uma forma de encararem a realidade que os<br />

cerca, ou seja, a decadência que ameaça o mundo em que<br />

habitam e diante da qual não possuem mais nenhuma<br />

certeza.<br />

Os séculos I e II da Era Cristã marcam o momento da<br />

consolidação e apogeu do Império Romano. É o<br />

momento da Pax Romana, ou seja, quando a expansão<br />

está encerrada e detêm-se todos os esforços pela<br />

manutenção das fronteiras.<br />

É bom lembrar que no momento de expansão Roma<br />

invadiu e dominou territórios e povos. E agora lhes cobra<br />

lealdade e defesa de ataques por estas fronteiras em que<br />

vivem em troca da paz com os romanos.<br />

Porém, ao mesmo tempo em que é o auge do Império<br />

Romano é o momento em que se vive crises intensas em<br />

função da vivência de novos valores em virtude da<br />

riqueza e das facilidades que são próprias de momentos<br />

de apogeu.<br />

É diferente de Aristóteles, pois no momento histórico em<br />

que viveu Aristóteles, era um tempo de confiança, de<br />

crescimento e avanço da democracia ateniense, que neste<br />

momento exigia novas discussões e reelaboração de<br />

ideias e princípios referentes a vida na pólis.<br />

Para entender um pouco o momento histórico de<br />

Aristóteles, vamos retornar um pouco no tempo, até<br />

Sócrates (470-399 a.C.), que é a época denominada o<br />

“Século de Ouro de Atenas”, período do governo de<br />

Péricles (461-429 a.C.), e quando a democracia ateniense<br />

atingiu a sua plenitude pelo fato de estabelecer alguns<br />

princípios que passarama reger a vida de todos os<br />

habitantes da cidade de Atenas.<br />

Os princípios estabelecidos foram a Isonomia – que é a<br />

igualdade de todos perante a lei; a Isegoria – que é a<br />

igualdade de direito ao acesso à palavra na assembleia e<br />

o de Isocracia – que é a igualdade de participação no<br />

poder.<br />

Ora, todas essas mudanças estão ocorrendo em Atenas e<br />

sendo formuladas, discutidas e analisadas pelos filósofos<br />

que vivem em Atenas naquele momento. É por isso que a<br />

questão da pólis é tão importante para a obra de<br />

Aristóteles, aliás, já desde Sócrates a discussão passa a<br />

focar o homem e a busca do como viver na pólis.<br />

Aristóteles vive justamente o momento de conflito de<br />

projetos políticos entre as cidades gregas, que buscam<br />

liderar as demais. Há uma disputa bastante acirrada entre<br />

Atenas e Esparta. Pode-se afirmar que os filósofos, entre<br />

eles Aristóteles, percebem que é preciso que as cidades<br />

gregas sejam unidas por um projeto político e que as<br />

disputas sejam pacíficas, pois o risco que correm é o de<br />

divisão e, portanto, o enfraquecimento diante dos<br />

impérios vizinhos que estão em expansão, mas que não<br />

querem enfrentar uma Grécia unida.<br />

No entanto, o que ocorreu foi, já na época de Aristóteles,<br />

as disputas entre Esparta e Atenas resultaram no<br />

enfraquecimento e derrota dos gregos frente aos<br />

macedônios, em 338 a.C., na batalha de Quironeia.<br />

Ao lermos as obras de Aristóteles é bom que tenhamos<br />

em mente as disputas existentes e as lutas internas da<br />

própria sociedade ateniense, para que possamos entender


o que o filósofo discute e apresenta como necessário aos<br />

homens de seu tempo na busca da felicidade.<br />

É claro que para atingir o estado de espírito que Sêneca<br />

pressupõe o uso da razão é fundamental, ou seja, o sábio<br />

é quem irá conseguir. E assim como Aristóteles,<br />

pressupõe a racionalidade por ser da própria natureza do<br />

homem.<br />

Quando lhe foi anunciado o naufrágio no qual tudo o que<br />

possuía foi tragado pelo mar, nosso Zenão disse: “A<br />

fortuna quer que eu filosofe mais desembaraçadamente”.<br />

Um tirano ameaçava o filósofo Teodoro de mandar matálo<br />

e mesmo privá-lo da sepultura: “Tu podes”, disse-lhe<br />

este, “dar-te este prazer: existem aí 2,7 decilitros de<br />

sangue, sobre os quais tens todo os direitos; quanto à<br />

sepultura, és estranhamente ingênuo, se crês que me<br />

aflijo por apodrecer sobre ou debaixo da terra”.<br />

(SÊNECA, 1973, p. 71)<br />

Os exemplos demonstram pessoas que conseguiram<br />

chegar a um estágio de controle de suas paixões e<br />

emoções de tal forma que assim conseguem superar as<br />

dificuldades com mais facilidade. Não se pode ignorar<br />

que esta capacidade esteja ligada a dimensão racional<br />

humana, uma vez que graças a mesma somos capazes de<br />

perceber o que nos ameaça.<br />

na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem<br />

acabarem mal – Sócrates constrangido a morrer<br />

prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a<br />

se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão,<br />

enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar<br />

publicamente, atirando-se contra sua espada, que a<br />

República perecia ao mesmo tempo que ele. Como não<br />

se afligir com a idéia de que a fortuna paga tão<br />

injustamente os méritos dos homens? E que esperar para<br />

si mesmo, quando os melhores dentre eles são os mais<br />

maltratados? (SÊNECA, 1973, p. 73-74)<br />

Alguns exemplos da contemporaneidade, do sentimento<br />

de que nos fala Sêneca em relação às pessoas de bem que<br />

acabam mal: Martin Luther King, militante negro<br />

assassinado; Che Guevara, guerrilheiro argentino,<br />

também assassinado; Nelson Mandela, líder negro na<br />

luta contra o Apartheid na África do Sul e que, em<br />

função disso, ficou vários anos preso; Francisco Alves<br />

Mendes Filho, Chico Mendes, líder seringueiro,<br />

sindicalista e ativista ambiental, assassinado no Acre, no<br />

dia 22 de dezembro de 1988.<br />

Afirmamos que diferente de Aristóteles, Sêneca entende<br />

o homem em relação à natureza e não à pólis. Por isso, é<br />

interessante destacar que não está ausente também aqui o<br />

outro, pois somos seres racionais e sociais.<br />

Sê n eca aler t a:<br />

Mas não adianta nada ter eliminado as causas da tristeza<br />

pessoal, pois algumas vezes acontece que um desgosto<br />

pelo gênero humano se apossa de nós, quando<br />

percebemos quão grande é a quantidade de crimes<br />

felizes; quando refletimos até que ponto é rara a retidão e<br />

desconhecidas a inocência e a sinceridade, desde que ela<br />

não convenha... (SÊNECA, 1973, p. 73-74)<br />

Além do “desgosto pelo gênero humano”, que segundo<br />

Sêneca deve ser superado, para que nosso espírito não<br />

“mergulhe em noite escura”, Sêneca alerta para mais um<br />

motivo que pode afligir espírito.<br />

Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e<br />

não sem motivo, entristece nosso espírito e o mergulha<br />

3


R E FE R Ê N C I A S:<br />

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4ª ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade<br />

de Brasília - UNB, 2001.<br />

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SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. Tradução, introdução e notas de William Li. 7 ed. São Paulo:<br />

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TUNGENDHAT, E. Lições sobre ética. 2ª ed. Petrópólis: Vozes, 1997.<br />

43


O P R O B L E M A P O L Í T I C O O U E M T O R N O D A P O L Í T I C A<br />

Em Busca da Essência do Político por Jairo Marçal –<br />

Professor do ensino público em Curitiba Paraná.<br />

A política pode superar a sua imagem negativa de poder<br />

de opressão e corrupção e ser concebida como uma<br />

possibilidade de construção de um mundo melhor? O<br />

ideal político de bem comum já se realizou algum dia, na<br />

materialidade das relações sociais, para além do mundo<br />

das ideias e do formalismo das leis?<br />

O P r econ ceit o con t r a a P olí t ica e a P olí t ica d e Fat o<br />

É comum que numa conversa sobre política se chegue,<br />

rapidamente, à conclusão de que ela nada tem a ver com<br />

a ética, em outras palavras, que o poder político e suas<br />

realizações não se conduzem por princípios e valores<br />

voltados aos interesses coletivos, mas sim, por interesses<br />

utilitários de ordem individual ou corporativa, do tipo:<br />

“Mas<br />

... o que eu ganho votando em fulano?”, ou “Votem em<br />

mim e eu lhes darei privilégios ...”.<br />

Essa é a percepção que o senso comum da sociedade tem<br />

da política, e seria profundamente ingênuo afirmar que a<br />

política não passa por esses descaminhos. No entanto,<br />

não é menos ingênuo e preocupante o fato de aceitarmos<br />

tão rapidamente essa perspectiva exclusivamente<br />

negativa da política como algo óbvio, natural e<br />

inelutável.<br />

Em geral, as conversas sobre política enveredam por<br />

caminhos que podem parecer interessantes, mas que no<br />

fundo são pouco produtivos e frustrantes. Isso se dá<br />

porque, estimulados pelos acontecimentos e pelas<br />

notícias da imprensa, fazemos questionamentos e<br />

afirmações sobre a honestidade ou desonestidade dos<br />

políticos; sobre seus salários; negociações supostamente<br />

ilícitas; sobre os partidos; tendências; alianças<br />

questionáveis; sobre quem será candidato; sobre um<br />

projeto que está tramitando e suas possíveis<br />

consequências. Quase sempre estamos reproduzindo,<br />

diga-se de passagem, com poucos ou insuficientes dados<br />

e questionamentos, informações veiculadas pelos jornais,<br />

pelas rádios ou telejornais, e mesmo aquelas que<br />

circulam pela internet.<br />

Em O que é Política?, a pensadora Hannah Arendt<br />

escreve sobre a necessidade de avaliar os preconceitos<br />

que todos nós temos contra a política, decorrentes, em<br />

grande medida, do fato de estarmos alienados da vida<br />

política e de não sermos políticos profissionais.<br />

Arendt estabelece duas categorias de preconceitos contra<br />

a política: no âmbito internacional – o medo de um<br />

governo mundial totalitário e violento; no âmbito local<br />

ou interno – a política é reduzida a interesses<br />

mesquinhos, particularistas e à corrupção.<br />

No instigante ensaio A invenção da política, o filósofo<br />

contemporâneo Francis Wolff argumenta que, para<br />

compreender a essência universal da política e sua<br />

ligação com o ser humano em geral, é preciso romper<br />

com certas imagens particulares da política.<br />

Quais seriam essas imagens? Ora, são as questões<br />

cotidianas que estão na base do nosso entendimento mais<br />

imediato da política, citadas já no início deste texto. Mas,<br />

por que romper com elas? Por que evitar essas questões<br />

particulares ou específicas? Elas não são relevantes?<br />

É claro que elas são muito importantes e devem ser<br />

profundamente discutidas e elucidadas, porém, num<br />

segundo momento. Se enfrentarmos essas questões, antes<br />

de tentarmos responder aquelas que as antecedem, elas<br />

não serão bem respondidas, além do que, poderão nos<br />

distanciar das questões fundamentais – a saber: O que é a<br />

política?<br />

Qual é a sua essência? Por que ela existe em todas as<br />

culturas e civilizações, ainda que de maneiras diferentes?<br />

Ética e política já estiveram juntas algum dia?<br />

Na busca da resposta, Wolff nos desafia: – é preciso um<br />

primeiro esforço no sentido de “imaginar o que<br />

aconteceria sem a política.” (WOLFF, 2003, p. 27)<br />

Ainda segundo Wolff (2003), a vida humana pode<br />

acontecer a partir das três possibilidades que se seguem:<br />

a) Em comunidade, organizada pela existência de uma<br />

instância externa à sociedade (o Estado, por exemplo),<br />

cuja função seria a efetivação e a manutenção da unidade<br />

da sociedade. A política, neste caso, seria coercitiva e o<br />

53


63<br />

poder estaria localizado fora da sociedade, mas agindo<br />

sobre ela.<br />

b ) Isolada, como a maioria dos animais, talvez em<br />

pequenos grupos ou famílias. Essa condição seria<br />

praticamente impossível.<br />

c) Em comunidade, mas sem a necessidade da política. A<br />

vida transcorreria em harmonia, sem diferenças, sem<br />

conflitos, nem confrontos, sem a necessidade de leis ou<br />

limites.<br />

Retornemos às proposições de Wolff. A primeira é<br />

indesejável, afinal, quem gosta de viver sob coerção? A<br />

segunda possibilidade, que é a ideia de viver<br />

isoladamente, transita entre o romântico e o patético e é<br />

anacrônica. A terceira, que propõe a vida sem política, é<br />

uma utopia sem sustentação material. Sendo assim, o que<br />

nos resta?<br />

Sabemos que vivemos juntos, em sociedade, e não<br />

isoladamente. Sabemos que temos diferenças e que os<br />

confrontos e conflitos fazem parte da vida em sociedade.<br />

Sabemos que existem profundas contradições sociais.<br />

Portanto, seja através do ideal de autogoverno ou de uma<br />

instância externa à sociedade e, portanto, coercitiva (o<br />

Estado), a política é uma dimensão necessária e<br />

constitutiva da existência humana; assim, onde houver<br />

uma sociedade, haverá política.<br />

Resta saber então: Que tipo de política temos? Que tipo<br />

de política queremos? Que política podemos construir?<br />

O I d eal P olí t ico<br />

O ideal político se caracteriza pela existência de uma<br />

comunidade e pela construção e manutenção de uma<br />

unidade desta comunidade, sem que para isso ela precise<br />

submeter-se a um poder externo (do tipo: “eles” são o<br />

poder; eles fazem as leis que nós devemos obedecer).<br />

Não se trata, contudo, de uma defesa da anarquia. É<br />

importante registrar que não é possível a vida em comum<br />

sem que haja regras e sanções muito claras. Logo, uma<br />

comunidade política ideal deve estabelecer suas<br />

finalidades, suas regras, suas prioridades, enfim, deve<br />

autogovernar-se (nós somos o poder; nós fazemos as leis<br />

que normatizam a vida na comunidade e isso constitui a<br />

nossa liberdade). No entanto, a história testemunha o<br />

quão difícil é a consecução desse ideal do político.<br />

Se houvesse uma comunidade que, em lugar de manterse<br />

por meio de um poder distinto dela mesma (uma<br />

instância organizada para esse fim, um chefe todo-<br />

poderoso, um grupo dirigente, uma classe dominante, um<br />

Estado), se conservasse<br />

em sua unidade apenas por sua própria potência, uma<br />

sociedade na qual o poder político só pudesse ser<br />

localizado na comunidade política em seu conjunto,<br />

poderíamos dizer dessa sociedade que ela realizou a ideia<br />

do político. (WOLFF, 2003, p.31)<br />

Wolff (2003) defende a tese de que apenas duas<br />

sociedades conseguiram realizar o ideal político, que é a<br />

unidade da comunidade política, sem coerção externa.<br />

Quais foram essas sociedades? Essas sociedades foram,<br />

os atenienses da Antigüidade e os índios do Brasil, de<br />

antes da descoberta.<br />

Certamente você já ouviu falar da genialidade dos gregos<br />

e da sua famosa invenção: a democracia na Atenas da<br />

Antigüidade. Mas alguma vez já ouviu falar que os<br />

índios brasileiros, particularmente os tupis-guaranis,<br />

também foram, de maneira diferente, bem sucedidos na<br />

aventura de construir uma comunidade política que<br />

garantisse uma vida boa aos seus integrantes?<br />

Sabemos pouco sobre as comunidades políticas dos<br />

índios brasileiros, e isso se deve, em grande parte, às<br />

concepções eurocêntricas e etnocêntricas às quais nossa<br />

formação e nossa cultura foram e ainda são submetidas.<br />

O antropólogo francês Pierre Clastres é um dos poucos<br />

pesquisadores que se dedicaram a essa questão. Sobre<br />

seu trabalho, falaremos mais adiante.<br />

Vamos, agora, buscar compreender, num primeiro<br />

momento, o que caracterizou a realização da essência do<br />

político para os atenienses e para os índios do Brasil.<br />

Quais são as aproximações e quais os distanciamentos<br />

entre essas culturas tão distantes e, aparentemente, tão<br />

distintas? O que diferencia suas políticas daquela que<br />

caracteriza a modernidade e a contemporaneidade?<br />

O s G r egos e a I n v en ç ã o d a E sfer a P ú b lica<br />

Dizer que os gregos inventaram a política é um exagero.<br />

Afinal, como viviam as outras sociedades e civilizações<br />

do seu tempo e também aquelas que os antecederam? É<br />

claro que elas também se organizavam politicamente,<br />

portanto, a diferença entre os gregos, particularmente os<br />

atenienses, e outros povos se deu pela forma da<br />

constituição e do exercício do poder.<br />

A organização de uma sociedade pode acontecer de<br />

forma coercitiva e a força que a organiza pode ser<br />

exterior a ela – um tirano, um rei (monarquia), um grupo


(oligarquia), o Estado. Assim, dizer que os gregos<br />

inventaram a política significa afirmar que eles<br />

inventaram um tipo de política que se diferenciou dos<br />

modelos anteriormente existentes. Os gregos inventaram<br />

a democracia, ou seja, a esfera pública. Eles criaram<br />

instituições que não permitiam que o poder fosse<br />

exercido de forma privada, às escondidas, mas<br />

obrigavam que ele fosse exercido publicamente. A<br />

soberania deixava de ser privilégio de um ou de poucos,<br />

para ser exercida pelo povo (demos).<br />

É importante lembrar que a Grécia de hoje pouco tem a<br />

ver com aquilo que se convencionou chamar de Grécia<br />

da Antiguidade, que não se caracterizava como um<br />

Estado unificado, mas como um conjunto de cidades, de<br />

comunidades políticas (pólis). A Política, de Aristóteles,<br />

pode ser considerada o primeiro estudo de política<br />

comparada e foi organizada e escrita, segundo o<br />

historiador helenista Moses Finley (2002, p. 115), “a<br />

partir de uma análise refinada das instituições políticas<br />

existentes; as matérias-primas eram agrupadas em<br />

monografias, que ele e os seus discípulos prepararam<br />

sobre a história constitucional de 158 comunidades<br />

políticas”.<br />

Agora, vamos examinar alguns elementos constituintes<br />

da chamada democracia grega e, para facilitar a<br />

compreensão do texto, apresentamos inicialmente um<br />

pequeno glossário dos termos gregos.<br />

A D em<br />

ocr acia A t en ien se<br />

Em Atenas, o princípio de soberania do povo significava,<br />

sobretudo, a igualdade entre os cidadãos, membros da<br />

comunidade política, e se sustentava fundamentalmente<br />

pelo exercício da cidadania ativa, através da isonomia, da<br />

isegoria e também da rotatividade dos cargos e sorteio.<br />

Aristóteles define a cidade e sua finalidade como “uma<br />

comunidade completa, formada a partir de várias aldeias<br />

e que, por assim dizer, atinge o máximo de<br />

autossuficiência. Formada a princípio para preservar a<br />

vida, a cidade subsiste para assegurar a vida boa”.<br />

(ARISTÓTELES, Política. p. 53; 1252 b – 30)<br />

É preciso reconhecer que a igualdade jamais foi plena,<br />

mesmo no auge da democracia ateniense, quando eram<br />

considerados cidadãos apenas os homens adultos,<br />

nascidos em<br />

Atenas, sobretudo pelo fato de falarem a língua grega.<br />

Portanto, eram excluídos da vida política: as mulheres, as<br />

crianças, os escravos e os estrangeiros (metecos).<br />

Q u an d o n asce a d em ocr acia?<br />

Segundo Sólon, o autor da Constituição de Atenas, no<br />

início do século IV a.C. o exercício da cidadania já<br />

começava a se ampliar, deixando de ser privilégio da<br />

classe dos aristocratas e dos camponeses abastados, para<br />

incorporar também a classe dos tetas. No entanto, é<br />

durante o século V que ela se torna uma realidade na<br />

vida cotidiana dos atenienses.<br />

A última (classe) que reunia todos aqueles que tinham<br />

rendimentos inferiores a duzentas medidas de grãos. Na<br />

época clássica, os tetas correspondiam sensivelmente à<br />

metade da comunidade cívica e serviam na armada,<br />

como remadores. Ao acreditar no autor da Constituição<br />

de Atenas, os tetas não podiam ascender às<br />

magistraturas. Mas tinham, por direito assento na<br />

assembleia e nos tribunais. (...)<br />

É perfeitamente legítimo supor que o acesso dos tetas às<br />

assembleias não tenha sido o resultado de uma reforma<br />

concebida por um legislador, mas sim uma situação de<br />

facto, resultante dos tumultos que caracterizaram a<br />

história de Atenas no séc. VI (...). (MOSSE, 1999, p.24,<br />

25)<br />

Uma das diferenças essenciais da democracia ateniense<br />

para as democracias contemporâneas é que na sua<br />

política não havia o Estado, essa instituição que<br />

caracteriza a política moderna e contemporânea.<br />

Os atenienses viviam e praticavam a democracia direta;<br />

para eles, o político e o social não se separam. Os<br />

cidadãos são políticos, eles não têm representantes. Daí<br />

que toda decisão no campo político é imediatamente uma<br />

conquista social. Na democracia moderna, o povo exerce<br />

sua soberania através de representantes – os políticos.<br />

Vale a pena observar como Jean-Jacques Rousseau<br />

(1712-1778), um autor da modernidade, critica a<br />

alienação da soberania e a ameaça da perda da liberdade<br />

política, como consequências diretas das formas<br />

representativas de governo:<br />

Desde que o serviço público deixa de constituir a<br />

atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir<br />

com sua bolsa a servir com sua pessoa, O Estado já se<br />

encontra próximo da ruína. (...) A soberania não pode ser<br />

representada pela mesma razão porque não pode ser<br />

alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a<br />

vontade absolutamente não se representa. É ela mesma<br />

ou é outra, não há meio-termo. Os deputados do povo<br />

não são nem podem ser seus representantes; não passam<br />

73


de comissários seus; nada podendo concluir<br />

definitivamente. É nula toda a lei que o povo diretamente<br />

não ratificar; em absoluto não é lei. O povo inglês pensa<br />

ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição<br />

dos membros do parlamento; uma vez esses eleitos, ele é<br />

escravo, não é nada. (...) A idéia de representantes é<br />

moderna; vem-nos do Governo feudal, desse governo<br />

iníquo e absurdo no qual a espécie humana só se degrada<br />

e o nome de homem cai em desonra. Nas antigas<br />

repúblicas e até nas monarquias, jamais teve o povo<br />

representantes, e não se conhecia essa palavra.<br />

(ROUSSEAU, 1987, p. 106-108)<br />

De volta à Antigüidade. Os atenienses exerciam seu<br />

poder, sua soberania, diretamente na ekklesia e faziamno<br />

porque eram iguais. Uma vez assegurada a igualdade<br />

de direitos perante a lei (isonomia) e também o igual<br />

direito ao uso público e político da palavra (isègoria) nas<br />

assembléias, os atenienses, após debates e deliberações,<br />

tomavam decisões que deveriam ser executadas. Como<br />

isso acontecia? É preciso saber que, no governo da coisa<br />

pública, os cargos fixos eram raros, em geral, os<br />

cidadãos eram encarregados de executar tarefas.<br />

De que forma se decidia a distribuição das tarefas ou dos<br />

cargos? Havia escolha, indicação, eleição?<br />

Não nos esqueçamos que, para os atenienses, a eleição<br />

era um princípio antidemocrático, portanto, deveria ser<br />

evitado. Eles entendiam que a eleição, poderia criar<br />

distinções na sociedade, afinal, escolheriam-se os<br />

melhores (princípio da aristocracia) e com isso se abriria<br />

espaço para que os interesses comuns fossem<br />

administrados por alguns (princípio da oligarquia). Por<br />

essa razão, os atenienses optavam pelo sorteio. Os<br />

críticos da democracia ficavam estarrecidos com essa<br />

prática, afinal, os cargos públicos sorteados eram muito<br />

importantes.<br />

Uma vez colocados esses pressupostos, e sendo este o<br />

princípio da democracia, são de índole democrática os<br />

seguintes procedimentos: eleger todas as magistraturas<br />

entre todos os cidadãos; governar todos a cada um, e<br />

cada um a todos, em alternância; sortear as magistraturas<br />

ou na totalidade, ou então só as que não exijam<br />

experiência ou habilitação; não estipular qualquer nível<br />

de riqueza para se aceder às magistraturas, ou então<br />

estipular um limiar muito baixo; impedir que o mesmo<br />

cidadão exerça duas vezes a mesma magistratura, a não<br />

ser em raras circunstâncias e apenas naquelas escassas<br />

magistraturas que não se relacionam com a guerra;<br />

reduzir ao mínimo o período de vigência de todas as<br />

magistraturas, ou então, do maior número possível delas;<br />

atribuir administração da justiça a todos os cidadãos<br />

escolhidos entre todos, discernindo as questões em litígio<br />

ou a maioria delas, e entre essas as mais importantes e<br />

decisivas, como sejam, por exemplo, as relacionadas à<br />

fiscalização de contas públicas, com a constituição, e<br />

com os contratos do foro privado; depor a supremacia<br />

das decisões nas mãos da assembleia no tocante a todos<br />

os assuntos (...). Outro aspecto decisivo é o fato de<br />

nenhuma magistratura ser vitalícia e, no caso de um<br />

determinado cargo ter resistido a uma antiga reforma, ser<br />

democrático o facto de restringir o seu poder fazendo que<br />

a magistratura seja ocupada por sorteio em vez de<br />

eleição. (ARISTÓTELES, Política, p. 445. 1317 b – 18 a<br />

28; 1318 a)<br />

Considerando-se a enorme responsabilidade do exercício<br />

da cidadania e as responsabilidades implicadas, o sorteio<br />

só poderia ser realizado se o candidato fosse voluntário e<br />

capaz de uma rigorosa auto avaliação. Uma vez disposto<br />

a exercer a cidadania, o candidato era submetido à<br />

dokimasia, que era “um exame, não das suas<br />

competências, mas das suas virtudes cívicas” (ibid, 2003.<br />

p. 38).<br />

Outro procedimento adotado na democracia ateniense era<br />

que os cargos eram assumidos de forma colegiada, com o<br />

objetivo de salvaguardar o poder das deliberações<br />

coletivas e minimizar os possíveis equívocos individuais<br />

na condução dos trabalhos; “por fim, cada magistrado<br />

poderia ser suspenso em curso de mandato, por um voto<br />

da Assembleia”.<br />

A I m<br />

p or t â n cia d a R et ó r ica p ar a os A t en ien ses<br />

Um dos grandes méritos da democracia ateniense era o<br />

fato que ela não valorizava apenas o resultado final da<br />

ação política, ou seja, as decisões tomadas e executadas<br />

valorizavam, sobretudo, o processo de constituição e<br />

fortalecimento da democracia por meio das assembleias,<br />

dos debates públicos e da defesa argumentada das<br />

posições dos cidadãos.<br />

Ora, se a autoridade era pública e coletiva, e não privada,<br />

se as deliberações se davam coletivamente, então pensar,<br />

falar e discutir bem, para poder persuadir o opositor,<br />

eram condições absolutamente necessárias à participação<br />

na política. Por isso, a retórica ocupava um papel central<br />

na vida política de Atenas e estava na base da sua<br />

educação.<br />

83


Wolff afirma que “é notável que essa ligação entre o<br />

político e a linguagem está inscrita na instituição mesma<br />

da isègoria: todos os homens, e todos os homens<br />

igualmente, simplesmente na medida em que falam,<br />

estão aptos a viver em comunidade e, precisamente<br />

porque falam e podem dizer o justo e o injusto, a<br />

participar do poder da referida comunidade”. (WOLFF,<br />

2003, p.40)<br />

Aristóteles argumenta que “o discurso serve para tornar<br />

claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o<br />

injusto. É que, perante os outros seres vivos, o homem<br />

tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o<br />

justo e o injusto; é a comunidade destes sentimentos que<br />

produz a família e a cidade”. (ARISTÓTELES, Política,<br />

p. 55, 1253ª -10)<br />

A retórica política era o instrumento pelo qual os gregos<br />

interpretavam o passado, mas sem apegar-se a ele, e<br />

construíam a sua consciência do presente com o objetivo<br />

maior de projetar o futuro da comunidade política.<br />

Para finalizar, podemos pensar que a busca da essência<br />

do político se dá pela investigação dos fundamentos e<br />

das finalidades que organizam e determinam a vida<br />

política de um povo, e não apenas pelas formas imediatas<br />

de sua aparência.<br />

93


R E FE R Ê N C I A S:<br />

ARENDT, H. O que é política? (editoria Ursula Ludz); Tradução Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.<br />

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Janeiro: Francisco Alves, 1998.<br />

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1999. Coleção: Lugar na História.<br />

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04


A FI L O SO FI A M E D I E V A L<br />

poderiam, porventura, contrariar dogmas religiosos e os<br />

demais pressupostos cristãos. Pelo seu caráter em alguns<br />

aspectos manipulador, a filosofia medieval não costuma<br />

receber muita atenção de indivíduos engajados na busca<br />

científica da existência humana e do próprio universo.<br />

(Fonte: http://www.portaleducacao.com.br/) .<br />

É comum dividirmos o período Medieval Cristão em<br />

dois momentos: O primeiro período denomina-se<br />

Patrística e o segundo momento conhecido como<br />

Escolástica.<br />

Mil anos. Foi esse o período aproximado que<br />

denominamos como idade medieval, da queda do<br />

império romano no século V até o século XV e o início<br />

do renascimento foram desenvolvidas duas correntes<br />

filosóficas distintas: A filosofia patrística e a filosofia<br />

escolástica, ambas possuíam concepções religiosas,<br />

porém com diferentes abordagens.<br />

<strong>Filosofia</strong> Patrística (século I ao VII): a filosofia<br />

desenvolvida nessa época teve como objetivo consolidar<br />

o papel da igreja e propagar os ideais do cristianismo.<br />

Baseadas nas Epístolas de São Paulo e o Evangelho de<br />

São João, a escola patrística advogou a favor da igreja e<br />

propagou diversos conceitos cristãos como o pecado<br />

original, a criação do mundo por Deus, ressureição de<br />

juízo final.<br />

<strong>Filosofia</strong> da Escolástica (séc. IX ao séc. XV): nesse<br />

período ocorreu uma retomada de muitos princípios<br />

filosóficos gregos. A grande preocupação da igreja era<br />

aliar a razão e a ciência aos ideais da igreja católica.<br />

Nesse contexto, surgiu a teologia que foi uma ciência<br />

que buscava explicar racionalmente a existência de Deus,<br />

da alma, do céu e inferno e as relações entre homem,<br />

razão e fé.<br />

Apesar das contribuições ideológicas e em alguns<br />

aspectos científicos, especialmente na geometria,<br />

aritmética, música, astronomia entre outras, a filosofia<br />

patrística e escolástica se diferencia das demais correntes<br />

de pensamento pelo fato de não aceitar verdades que<br />

A Patrística designa a primeira exposição racional da<br />

doutrina religiosa; em outras palavras, a patrística diz<br />

respeito à filosofia cristã dos primeiros séculos<br />

(Abbagnano, 2007, p.868); essa<br />

primeira tendência interpretativa e doutrinária se situa na<br />

Alta Idade Média, ou seja, no começo da formação<br />

medieval. Nela vemos uma retomada da teoria de Platão;<br />

teoria essa que nas mãos dos padres da Igreja (Católica)<br />

recebe um tratamento e um sentido cristãos. Na Patrística<br />

é pregada uma rigorosa ética moral que se vê expressa na<br />

prática ascética, no controle racional das paixões – o que<br />

deixa entrever a predileção pelas coisas espirituais,<br />

suprasensíveis.<br />

A finalidade da educação é fornecer o caminho para<br />

Deus, para sua verdade e bondade, para a iluminação.<br />

Vale salientar, contudo, que esse conhecimento não era<br />

facultado para todos os indivíduos, uma vez que apenas<br />

alguns eleitos teriam acesso a ele, pois trariam desde seu<br />

nascimento tal conhecimento consigo – o que explicaria<br />

também porque somente alguns indivíduos seriam<br />

capazes de transmitir tal verdade.<br />

A verdade, por sua vez, era concebida como algo<br />

incontestável e irrefletido, porquanto era revelação e não<br />

descoberta. A crença religiosa condenava, inclusive,<br />

qualquer conhecimento experimental. Tal proibição<br />

atesta a retração do pensamento e da ciência à época<br />

medieval – que justifica, ao fim e ao cabo, a remissão<br />

dos renascentistas como idade das trevas. A autoridade<br />

14


aseava-se na detenção do saber real, verdadeiro, divino,<br />

e pertencia aos indivíduos que supostamente teriam<br />

acesso em maior grau de Deus – por força de uma vida<br />

ascética e contemplativa: os padres e os monges.<br />

C ar act er í st icas d a <strong>Filosofia</strong> M<br />

ed iev al<br />

Assim como a filosofia antiga, a filosofia medieval<br />

possuía suas características próprias, o que contribuía<br />

para que ela pudesse ser analisada não apenas por uma<br />

época diferente, mas também por uma forma de pensar<br />

mais analítica, que em sua grande maioria, era ligada a<br />

um mesmo foco, a religiosidade. As principais questões<br />

debatidas pelos filósofos medievais eram:<br />

A relação entre a razão e a fé;<br />

A existência e a natureza de Deus;<br />

Fronteiras entre o conhecimento e a liberdade humana;<br />

Individualização das substâncias divisíveis e indivisíveis.<br />

Em resumo, o que vemos é que os principais temas estão<br />

relacionados à fé, o que prova o argumento da<br />

intervenção da igreja neste período da filosofia.<br />

Relacionar a fé, que é algo sem uma explicação lógica ou<br />

científica com a razão, que busca o entendimento das<br />

coisas, era uma forma que a igreja tinha de tentar<br />

explicar o que até ali não tinha explicação. A existência e<br />

a natureza de D eu s, para a filosofia, era algo complexo,<br />

pois se partirmos do pressuposto de que a filosofia busca<br />

explicar as coisas desde o seu início, buscando formas de<br />

provar o que está sendo apresentado, agora era uma<br />

obrigação filosófica explicar a existência de Deus.<br />

Neste período não era difícil encontrar pensadores que<br />

defendessem a tese de que fé e religião não deveriam<br />

estar subordinadas uma a outra, de que o indivíduo não<br />

precisaria ter sua fé ligada diretamente as racionalidades<br />

com as quais está acostumada a viver, porém, um nome<br />

se destacou em meio aos filósofos quanto a buscar uma<br />

forma racional de justificar as crenças. Conhecido como<br />

San t o A gost in h o d e H ip on a, esse filó sofo cristão<br />

desenvolveu uma ideia de que todo homem possui uma<br />

consciência moral e um livre arbítrio, que todos temos a<br />

consciência do que é certo e errado, do mesmo jeito que<br />

temos o direito de escolha, para fazer ou não cada coisa,<br />

mesmo sabendo que acarretarão consequências.<br />

E scolá st ica<br />

A Escolástica, por sua vez, é uma especulação filosófica<br />

e teológica que buscava fazer com que o homem<br />

compreendesse a verdade revelada (Abbagnano, 2007,<br />

p.401). É a partir dela que se fundam as universidades,<br />

visto que essas instituições tinham como objetivo<br />

sistematizar a doutrina. Se na Alta Idade Média<br />

predominava o misticismo, na baixa idade média,<br />

período em que se situa a Escolástica, é perceptível um<br />

progressivo interesse pelo exame racional do mundo.<br />

Ainda assim, na Escolástica, os teólogos procuravam<br />

“apoiar a fé na razão, a fim de melhor justificar as<br />

crenças, converter os não-crentes e combater os infiéis”<br />

(Aranha, 2006, p.114). Nela, para crer era necessário<br />

compreender, assim como para compreender era<br />

necessário crer. A maior contribuição da Escolástica diz<br />

respeito ao método. O próprio sentido de escolástico está<br />

ancorado nesse aspecto de fundo mais pedagógico,<br />

porquanto Escolástica designa a filosofia ensinada nas<br />

escolas, e, Escolástico, tanto o professor das artes liberais<br />

(numa primeira fase de desenvolvimento), como, mais<br />

tarde, o professor de filosofia e teologia, o magister<br />

(Aranha, 2006, p.114). A Escolástica compreendia um<br />

currículo e um método. O currículo tinha por base as sete<br />

artes liberais – porque decorrentes da razão –, divididas<br />

entre o trivium e o quadrivium. O trivium abarcava a<br />

gramática, a retórica e a dialética, ao passo que o<br />

quadrivium a aritmética, a música, a geometria e a<br />

astronomia. O método escolástico de ensino consistia,<br />

por sua vez, na lectio (leitura) e na disputatio (discussão,<br />

disputa). Esse exercício era, contudo, realizado sob a<br />

orientação e rígida supervisão do magister, que era a<br />

autoridade do saber e, por conseguinte, representante da<br />

Igreja (Aranha, 2006, p.115).<br />

E x p oen t es d a P at r í st ica e d a E scolá st ica<br />

O maior expoente da Patrística foi Santo Agostinho. Sua<br />

escrita é confessional, ela consiste na verdade, no<br />

testemunho, ou melhor, na apresentação de seu processo<br />

de conversão – da passagem de uma vida desregrada para<br />

uma vida nova, dedicada à verdade e sua contemplação,<br />

ancorada nos preceitos da Igreja. Santo Agostinho adapta<br />

a teoria platônica das ideias para justificar a crença<br />

religiosa na existência de um mundo ideal, onde se<br />

encontra a verdade, a luz, e um mundo de aparências,<br />

ilusões e erro, o mundo material.<br />

O maior expoente da Escolástica foi São Tomás de<br />

Aquino, filósofo/teólogo que adaptou o pensamento de<br />

Aristóteles (mais sistemático e categórico que Platão) à<br />

visão cristã. Para São Tomás de Aquino, a razão não era<br />

inimiga da revelação, posto que algumas verdades, ainda<br />

24


M<br />

que divinas, não poderiam ser provadas se não pelo uso<br />

da razão.<br />

Bom, como pudemos perceber, a Idade Média foi<br />

sobremaneira influenciada pela Igreja Católica que se<br />

utilizou da <strong>Filosofia</strong> para defender a fé cristã e propor<br />

um sentido de humano, de conhecimento, de verdade e,<br />

por conseguinte, de pedagogia. O predomínio da<br />

temática religiosa no Medievo não determinou apenas<br />

um currículo, mas uma finalidade educativa: a de<br />

converter os pagãos em cristãos.<br />

O P en sam en t o M od er n o<br />

aq u iav el e o P od er<br />

Por João Vicente Hadich Ferreira professor do Ensino Público em Londrina PR.<br />

Nascido em Florença, Itália, Maquiavel foi um dos<br />

grandes responsáveis pela noção moderna de poder. Em<br />

Maquiavel também encontramos uma renovação do<br />

sentido e da relação entre ética e política. Desta forma,<br />

muito folclore se construiu em torno de seu nome e de<br />

sua pessoa, principalmente pela interpretação precipitada<br />

que se fez muitas vezes de seu pensamento. Conforme o<br />

texto de RUSSELL: “é costume sentir-se a gente<br />

chocada por ele, e não há dúvida de que, às vezes, ele é<br />

realmente chocante. Mas muitos outros homens também<br />

o seriam, se fossem igualmente livres de hipocrisia”<br />

(RUSSELL, 1967, p. 20).<br />

Maquiavel foi compreendido como alguém imoral e<br />

desprovido de quaisquer valores. Por isso a perspectiva<br />

do termo “maquiavélico” é sempre pejorativa. Mas, seria<br />

Maquiavel digno desta fama? O que ele pretendia?<br />

Vamos por partes.<br />

Maquiavel choca por fazer uma análise do homem<br />

considerando-o a partir de uma de suas facetas, a do<br />

egoísmo. Se para Aristóteles e para o pensamento grecocristão<br />

no geral o homem buscava a vida em sociedade, o<br />

bem viver como algo natural, para Maquiavel “os<br />

homens tendem /.../ à divisão e à desunião.” (PINZANI,<br />

2004, p. 19)<br />

Maquiavel era um homem do seu tempo, do<br />

Renascimento. Homem de ideias políticas, ele procurou<br />

entender a natureza e os limites do poder político.<br />

Maquiavel contemplou uma realidade; a realidade da sua<br />

Itália, dividida, fragmentada em diversos principados e<br />

ducados. Numa constante briga pelo poder e,<br />

inevitavelmente alternâncias constantes dos governantes,<br />

a Florença de Maquiavel refletia o que ocorria também<br />

com as demais cidades italianas importantes do período.<br />

Para ele não se apresentava logicamente o ideal cristão,<br />

mas sim algo que lhe seria entendido como próprio do<br />

homem, a luta pelo poder. Por isso, os homens mentiam,<br />

matavam e julgavam-se acima da moral.<br />

Contudo, Maquiavel considera a necessidade de<br />

governantes bons e virtuosos. Para ele a diferença está<br />

em que a bondade e a virtude não pertencem à natureza<br />

humana do governante, mas sim resultam da sua<br />

compreensão e atuação sobre o real. Sem preocupar-se<br />

em desenvolver teorias, como fizeram outros pensadores,<br />

Maquiavel avalia a realidade e “interpreta os seus<br />

escritos como compêndios de conselhos práticos e de<br />

instruções para a ação.” (PINZANI, 2004, p. 16) Por<br />

isso, “influenciar a realidade, e não desenvolver teorias é<br />

o seu propósito.” (PINZANI, 2004, p. 16)<br />

Ao contrário dos manuais que indicavam como devia<br />

agir um soberano, obras comuns na idade Média e no<br />

Renascimento, o verdadeiro propósito de sua obra O<br />

P r í n cip e é a exortação para se tomar a Itália e libertá-la<br />

das mãos dos bárbaros, como pode ser constatado no<br />

capítulo final da mesma:<br />

Depois de considerarmos tudo o que vimos aqui, de ter<br />

refletido sobre se o momento histórico não seria propício<br />

para termos um novo monarca na Itália, se não seria<br />

agora a oportunidade para que um homem prudente e<br />

capaz introduzisse no país uma nova forma de governo,<br />

que honrasse e beneficiasse o povo, parece-me que são<br />

muitas as circunstâncias que concorrem para a subida ao<br />

trono de um novo soberano; de fato, não sei de nenhuma<br />

outra época mais oportuna para tanto. /.../ E embora já<br />

tenhamos tido algum vislumbre de esperança, fazendo<br />

pensar que Deus teria enviado alguém para redimi-la, a<br />

sorte o derrubou no ponto culminante da sua carreira;<br />

agora, quase sem vida, a Itália espera por quem lhe possa<br />

curar as feridas e ponha fim à pilhagem na Lombardia, à<br />

34


4<br />

capacidade e à extorsão no reino de Nápoles e na<br />

Toscana, curando-as das chagas abertas há tanto tempo.<br />

Pede a Deus que lhe envie alguém capaz de libertá-la<br />

dessa insolência, dessa bárbara crueldade. Está disposta a<br />

seguir uma bandeira, desde que alguém a empunhe.<br />

(MAQUIAVEL, 2005, p. 150-151)<br />

Detectando a tensão entre o desejo de dominar e de não<br />

ser dominado que move o homem, Maquiavel constrói<br />

em sua obra uma reflexão sobre o poder. O poder é<br />

entendido portanto, “como correlação de forças, fundada<br />

no antagonismo que se estabelece em função dos desejos<br />

de comando e opressão, por um lado, e liberdade, por<br />

outro, pelos quais se formam as relações sociais.”<br />

(SCHLESENER, 1989, p. 2) Estas relações implicam<br />

tanto na questão política como na econômica. De acordo<br />

com LEFORT (1979),<br />

O objeto de Maquiavel não é a técnica do poder mais do<br />

que a do comércio. Podemos certamente dizer que sua<br />

questão recai essencialmente sobre a política, mas com a<br />

condição de entender este termo em sua mais ampla<br />

acepção, isto é, clássica. É a questão da forma das<br />

relações sociais que ele coloca através da divisão<br />

grandes-povo. A reflexão sobre o poder está no centro<br />

de sua obra, mas pela razão de que, a seus olhos, a sorte<br />

da divisão social se decide em função do modo de<br />

divisão do poder e da sociedade civil e que assim se<br />

determinam as condições gerais dos diversos tipos de<br />

sociedade. (LEFORT, 1979, p. 144).<br />

É t ica e P olí t ica<br />

Ao apresentar seus argumentos, Maquiavel busca<br />

demonstrar como seria possível o estabelecimento deste<br />

Estado Italiano, a partir de um governante forte e de um<br />

governo efetivo. Secretário da Segunda Chancelaria de<br />

Florença, cargo que recebeu em 1498, Maquiavel foi<br />

empossado num governo republicano que foi deposto em<br />

1512 pela monarquia dos Médicis. Considerado traidor<br />

em 1513, foi afastado de suas funções públicas e exilado<br />

em San Casciano, região próxima de Florença. Neste<br />

período escreveu O Príncipe, provavelmente sua obra<br />

mais popular e, provavelmente, a mais complexa.<br />

Quando escreveu O Príncipe, Maquiavel interrompeu<br />

temporariamente outra obra, intitulada os Comentários<br />

sobre a Primeira Década de Tito Lívio, sua obra<br />

republicana. O que parece claro dos escritos de<br />

Maquiavel é que ele busca uma solução política para a<br />

sua Itália. Por isso, endereça O Príncipe ao magnífico<br />

Lorenzo, filho de Piero de Médicis, governante de<br />

Florença. Maquiavel sugere ao monarca que ele pode ser<br />

o príncipe que unificaria a Itália. Na obra, Maquiavel<br />

fornece praticamente as diretrizes seguras para que isto<br />

se realize. É dentro disto que discute e estabelece uma<br />

nova relação entre ética e política. Como nos esclarece<br />

WEFFORT, “a política tem uma ética e uma lógica<br />

próprias. Maquiavel descortina um horizonte para se<br />

pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional<br />

moralismo piedoso.” (WEFFORT, 1989, p. 21)<br />

Ao fazer a análise da realidade, Maquiavel distingue a<br />

moral individual da moral política. A atitude do<br />

indivíduo não é necessariamente a atitude do chefe de<br />

Estado. Se para um indivíduo a ação moral é de decisão<br />

particular, para o monarca, por exemplo, é necessário<br />

pesar em que isto implicará para o Estado. Não há uma<br />

exclusão entre ética e política, mas a primeira deve ser<br />

entendida a partir da segunda. Uma das implicações disto<br />

é a de que “os valores morais só possuem sentido a partir<br />

da vida social, apresentando-se como momentos de uma<br />

luta que está na raiz do poder e lhe dá sentido”<br />

(SCHLESENER, 1989, p. 10). Com isto Maquiavel está<br />

afirmando que temos virtudes que podem arruinar um<br />

Estado e vícios que podem salvá-lo o que, na análise<br />

moral tradicional seria condenável, mas na “ética<br />

política” poderia ser plenamente aceitável. Logicamente<br />

tais questões dependeriam das circunstâncias e das forças<br />

em luta (SCHLESENER, 1989, p. 10). Por isso, o que<br />

pode parecer inadmissível, para Maquiavel faz parte da<br />

política:<br />

De onde se deve observar que, ao tomar um Estado, o<br />

conquistador deve praticar todas as necessárias<br />

crueldades ao mesmo tempo, evitando ter de repetí-las a<br />

cada dia; assim tranqüilizará o povo, sem fazer<br />

inovações, seduzindo-o depois com benefícios. Quem<br />

agir diferentemente, por timidez ou maus conselhos,<br />

estará obrigado a estar sempre de arma em punho, e<br />

nunca poderá confiar em seus súditos que, devido às<br />

contínuas injúrias, não terão confiança no governante.<br />

(MAQUIAVEL, 2005, p. 69).<br />

Podemos perceber em Maquiavel a proposta de uma<br />

nova ética, com um novo conceito de virtude, voltada<br />

mais para a política e não para o ideal moral do<br />

pensamento medieval. É uma moral prática, que olha<br />

para o bem do Estado e se apresenta inversa à


perspectiva tradicional. Por isso, voltando à questão da<br />

virtude que pode ser prejudicial” e do vício que pode ser<br />

“bom”, podemos compreender que uma generosidade<br />

excessiva, por exemplo, poderia levar o Príncipe à ruína<br />

financeira e os súditos a sentirem-se oprimidos, o que<br />

suscitaria o ódio. Por outro lado, a sobriedade, que seria<br />

identificável com a avareza, tornando a figura do<br />

Príncipe antipática, possibilitaria gestos de grandeza e<br />

prodigalidade que, com certeza, seriam reconhecidos<br />

pelos súditos sem que estes se sentissem oprimidos e tão<br />

pouco descontentes.<br />

Por isso, para Maquiavel, há uma distinção entre os<br />

espaços da moral e da política. Isto não significa que se<br />

pode “fazer o que se quer”, de qualquer modo, sem<br />

sentido algum. A máxima segundo a qual “os fins<br />

justificam os meios” tem uma implicação muito mais<br />

coerente e profunda. Ser acusado de crueldade não deve<br />

ser o temor do Príncipe, desde que tal atitude seja<br />

necessária para unificar o povo e manter a paz.<br />

V ir t ù e For t u n a<br />

Maquiavel tem uma visão do homem de como ele é e não<br />

de como deveria ser necessariamente. Para ele,<br />

certamente, devemos olhar para o real e não para o ideal<br />

moral. Por isso Maquiavel trata da questão da virtù e da<br />

fortuna.<br />

A virtù refere-se à capacidade de decidir diante de<br />

determinada situação, cuja necessidade deve-se à<br />

fortuna. O agir pressupõe a compreensão da natureza<br />

humana, assim entendida por Maquiavel: os homens<br />

buscam quem lhes proporcione vantagens, melhorias.<br />

Atribuem este papel e responsabilidade ao governante.<br />

Esclarece num trecho da obra que “os homens mudam de<br />

governantes com grande facilidade, esperando sempre<br />

uma melhoria”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 32) O que<br />

importa, para os homens na sua maioria, são os<br />

benefícios e acreditar que é o príncipe quem pode<br />

proporcioná-los. Contudo, o governante deve estar<br />

atento. A estabilidade política é sempre precária e<br />

“qualquer mudança pode desencadear um processo de<br />

transformação difícil de conter.” (SCHLESENER, 1989,<br />

p. 3)<br />

Contrariando a concepção cristã de virtude, Maquiavel<br />

entende virtù como o que faz os grandes homens. Atingir<br />

os objetivos propostos implica em utilizar os meios<br />

necessários para fazê-lo. Encontrar os meios necessários<br />

para chegar aos fins é virtù em Maquiavel, pois os fins<br />

são construídos pelos meios. O homem virtuoso em<br />

Maquiavel é aquele capaz de conquistar a fortuna e<br />

mantê-la. E aqui é importante entendermos o conceito de<br />

fortuna em Maquiavel.<br />

O conceito de fortuna para o filósofo em questão,<br />

também é retomado dos antigos. Ele recorre à imagem da<br />

deusa fortuna, possível aliada dos homens e cuja<br />

simpatia era importante atrair. Representava uma figura<br />

feminina que despejava riquezas de sua cornucópia<br />

àqueles que sabiam conquistá-la. Para tanto, era<br />

necessário ser um homem de virtù. Como nos esclarece<br />

WEFFORT (1989), durante o período medievo, a figura<br />

da “boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por<br />

um ‘poder cego’, inabalável, fechado a qualquer<br />

influência, que distribui seus bens de forma<br />

indiscriminada.” (WEFFORT, 1989, p. 21) Contrariando<br />

o pensamento dos antigos, “a fortuna não tem mais como<br />

símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira<br />

indefinidamente sem que se possa descobrir o seu<br />

movimento.” (WEFFORT, 1989, p. 21) Apresentando<br />

uma perspectiva mais próxima à da Roda de Heródoto,<br />

que girava indiscriminadamente, esta visão considerava<br />

os bens valorizados no período clássico como um nada,<br />

compreendendo que a felicidade não se realizava no<br />

mundo terreno e que o destino é uma força da<br />

providência divina tendo o homem como sua vítima<br />

impotente. (WEFFORT, 1989, p. 21) Em Maquiavel,<br />

...ao se indagar sobre a possibilidade de se fazer uma<br />

aliança com a Fortuna, esta não é mais uma força<br />

impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada<br />

pelos antigos. Ela é mulher, deseja ser seduzida e está<br />

sempre pronta a entregar-se aos homens bravos,<br />

corajosos, aqueles que demonstram ter virtù.<br />

(WEFFORT, 1989, p. 22)<br />

Fortuna, portanto, não está relacionado à sorte ou<br />

predestinação, mas sim ao exercício da virtù no mais alto<br />

grau. É aproveitar a ocasião dada pelas circunstâncias<br />

para amoldar as coisas como melhor aprouver ao<br />

virtuoso. (MAQUIAVEL, 005, p. 49. Virtù e fortuna em<br />

Maquiavel, portanto, estão intimamente ligadas. E ser<br />

honrado, para Maquiavel, não implica numa questão de<br />

valores morais, mas de justiça política, onde o que<br />

importa são os resultados obtidos.<br />

O E st ad o<br />

Para Maquiavel, o conflito que existe entre os homens é<br />

o que fundamenta a ação política. Tendo em vista a<br />

54


64<br />

liberdade, exige-se a administração dos conflitos, de tal<br />

modo que não se permita o crescimento do poder de um<br />

determinado grupo em detrimento de outro, o que levaria<br />

a perda da liberdade. Para Maquiavel os homens não<br />

desejam a liberdade do mesmo modo e também a<br />

liberdade é objeto de uma paixão. Alguns querem<br />

liberdade para estar seguros e outros para dominar. Por<br />

isso, “tudo o que é capaz de unir os homens e de subtraílos<br />

ao temor que eles se inspiram mutuamente é,<br />

portanto, um bem; a política é sua prática, pois se trata de<br />

uma arte cujo objetivo é garantir “para sempre a<br />

tranquilidade do Estado e a felicidade das pessoas.”<br />

(SPITZ, 2003, p. 126).<br />

“Nada faz com que um príncipe seja mais estimado do<br />

que os grandes empreendimentos e os altos exemplos<br />

que dá.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 130).<br />

Estes empreendimentos referem-se às grandes conquistas<br />

militares e aos exemplos do seu poderio. Orienta ainda<br />

que “é muito útil também para o príncipe dar algum<br />

exemplo notável de sua grandeza no campo da<br />

administração interna”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 131).<br />

Maquiavel alerta que “nenhum Estado deve crer que<br />

pode sempre seguir uma política segura”, mas “ao<br />

contrário, deve pensar que todos os caminhos são<br />

duvidosos.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 134) Para bem<br />

administrar o Estado é preciso entender a natureza das<br />

coisas, o fato de que não se consegue evitar uma<br />

dificuldade sem cair em outra. A prudência do príncipe<br />

consiste em saber reconhecer estas questões e escolher<br />

entre o que é menos mau para a sociedade.<br />

Por fim, Maquiavel propõe o apreço pelas virtudes e<br />

praticamente uma participação popular de tempos em<br />

tempos, construindo assim a ideia de solidariedade e<br />

generosidade por parte do príncipe.<br />

Para o pensador italiano, Antônio Gramsci, “em todo o<br />

livro, Maquiavel mostra como deve ser o Príncipe para<br />

levar um povo à fundação do novo Estado, e o<br />

desenvolvimento é conduzido com rigor lógico, com<br />

relevo científico”. (GRAMSCI, 1991, p. 4) Maquiavel<br />

trata com seriedade a política e sente-se parte do povo<br />

que ele supõe constituirá este novo Estado. Como<br />

esclarece Gramsci, “Maquiavel faz-se povo, confunde-se<br />

com o povo, mas não com um povo ‘genericamente’<br />

entendido, mas com o povo que Maquiavel convenceu<br />

com o seu desenvolvimento anterior, do qual ele se torna<br />

e se sente consciência e expressão, com o qual ele se<br />

sente identificado”. (GRAMSCI, 199, p. 4) Neste<br />

sentido, toda lógica em Maquiavel parece atender a uma<br />

reflexão do povo, de “um raciocínio interior que se<br />

manifesta na consciência popular e acaba num grito<br />

apaixonado, imediato”. (GRAMSCI, 1991, p. 4) No<br />

pensamento gramsciano há uma verdadeira perspectiva<br />

de “manifesto político” na obra de Maquiavel. Não é<br />

algo que vem de fora, de teóricos, de tratados políticos,<br />

mas do próprio pensamento popular interpretado por<br />

Maquiavel. Ainda com Gramsci podemos entender que<br />

“a doutrina de Maquiavel não era, no seu tempo, uma<br />

coisa puramente ‘livresca’, um monopólio de pensadores<br />

isolados, um livro secreto que circula entre iniciados”<br />

(GRAMSCI, 1991, p. 10). Escrevendo coisas aplicáveis,<br />

Maquiavel pretende ensinar, educar, mas não a quem já<br />

sabe, ou que estaria numa “elite dominante”<br />

necessariamente. Para Gramsci não parece este o intento<br />

de Maquiavel.<br />

Em Maquiavel, há uma construção da política de forma<br />

autônoma, fundada na realidade, mas também na<br />

necessidade de mudar esta realidade para conseguir o<br />

intento maior: a unificação da Itália e a fundação do<br />

Estado italiano.<br />

Maquiavel apresenta-se tão atual quanto no momento em<br />

que escreve O Príncipe. Dentro desta atualidade do<br />

pensamento maquiaveliano, e agora podemos afirmar<br />

não maquiavélico, não validamos uma política<br />

despreocupada com valores, mas propõe-se uma política<br />

que seja efetiva, que resolva os problemas e construa<br />

valores práticos. Não é validada a esperteza sem sentido<br />

algum e nem tampouco a bondade sem coerência e<br />

domínio de poder do governante.<br />

Não basta um governante honesto, com uma excelente<br />

proposta política, mas que escolhe mal seus ministros e<br />

assessores. Neste sentido, tratar dos problemas políticos<br />

atuais à luz da leitura do pensamento de Maquiavel<br />

parece-nos uma indispensável contribuição para<br />

entendermos a política de forma mais real, ou seja, como<br />

ela é, como se faz, como se costura em conchavos e<br />

alianças. Menos iludidos, mais realistas, podemos<br />

perceber a importância da política e dos nossos políticos.<br />

Com certeza também poderemos agir de forma<br />

esclarecida quanto aos nossos direitos e deveres,<br />

principalmente no trato com o poder que delegamos aos<br />

nossos representantes.


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74


A C I Ê N C I A M O D E R N A – D E SC A R T E S E G A L I L E U<br />

G A L I L E I<br />

Descartes e as Regras para Bem Conduzir a Razão<br />

que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.<br />

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que<br />

eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e<br />

quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O<br />

terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos,<br />

começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de<br />

conhecer, para subir, pouco, como por degraus, até o<br />

conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo<br />

uma ordem entre os que não se precedem naturalmente<br />

uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte<br />

enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu<br />

tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1962)<br />

Uma das obras mais fundamentais da filosofia chama-se<br />

Discursodo Método e traz o seguinte subtítulo: “p ar a<br />

b em con d u z ir su a r az ã o e b u scar a v er d ad e n as<br />

ciê n cias”. Será que não é pretensão demais para um<br />

texto escrito de forma autobiográfica? A trajetória do<br />

texto e o poder que exerceu sobre a tradição posterior<br />

revelam que não. O Discursodo Método é uma obra<br />

destinada, inicialmente, a servir de prefácio a três ensaios<br />

do filósofo e matemático Descartes: a Dióptrica, os<br />

Meteoros e a Geometria. Os dois primeiros só interessam<br />

hoje aos historiadores do pensamento cartesiano. Já o<br />

terceiro teve ampla divulgação entre os matemáticos, por<br />

razões que veremos mais tarde. Quanto ao Discurso,<br />

dividido em seis partes, apesar de Descartes dizer que<br />

seu propósito era apenas “(...) mostrar de que maneira ele<br />

se esforçou para bem conduzir sua razão.” (Descartes,<br />

1962) frase que devemos atribuir à modéstia de<br />

Descartes, na verdade a obra expõe com clareza uma<br />

série de argumentos que permitem à filosofia<br />

fundamentar todo o edifício do saber.<br />

Na segunda parte do Discurso, Descartes enumera<br />

q u at r o preceitos que devem conduzir a ciência.<br />

Acompanhemos o texto do filósofo:<br />

O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como<br />

verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como<br />

tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a<br />

prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se<br />

apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito,<br />

A primeira regra, também conhecida por “regra da<br />

evidência”, sintetiza um ponto muito importante na<br />

filosofia cartesiana. Descartes entende que a razão é uma<br />

capacidade que o homem possui para examinar os dados<br />

que os sentidos captam. Nisto ele não se distingue de<br />

filósofos anteriores. Mas, Descartes também pensa que a<br />

v er d ad e e a cer t ez a são condições sem as quais um<br />

homem não pode dizer que possui conhecimento. O<br />

filósofo foi educado em La Flèche, uma escola jesuíta<br />

que reunia o que havia de melhor em termos de<br />

Metafísica e Teologia do século XVII. Por meio dessa<br />

instrução, Descartes pôde exercitar-se durante anos em<br />

investigações metafísicas oriundas da Idade Média cujas<br />

teses e argumentos são, em sua maior parte, raciocínios<br />

prováveis. É contra esse tipo de procedimento que o<br />

método cartesiano ganha força. Para Descartes é<br />

importante rejeitar todos os juízos, demonstrações e<br />

dados que não possam ser tidos como verdadeiros e<br />

indubitáveis. Quando Descartes recomenda a certeza ele<br />

pensa naquela “luz natural” que cada homem possui,<br />

permitindo-lhe “intuir” (no sentido preciso de ver) a<br />

verdade de cada coisa. Veja como o filósofo delineia o<br />

método que orienta essa “visão mental”:<br />

Todo método consiste inteiramente em ordenar e em<br />

agrupar os objetos nos quais deveremos concentrar o<br />

nosso poder mental se pretendermos descobrir alguma<br />

verdade. Seguiremos este método com exatidão se desse<br />

início reduzirmos as questões complicadas e obscuras,<br />

substituindo-as, passo a passo, por outras mais simples e<br />

depois, começando pela intuição das mais simples de<br />

84


todas, tentarmos conhecer todas as outras, através dos<br />

mesmos processos. (In: COTTINGHAM, 1989)<br />

G alilei G alilei<br />

Você pode aplicar esse método no estudo de qualquer<br />

coisa, mas não deixe de atentar para o seguinte: a<br />

mensagem de Descartes é que sua razão segue um passo<br />

que vai do simples ao complexo por meio de graus de<br />

entendimento na matéria. Além disso, o trecho acima<br />

revela que o entendimento é uma espécie de visão<br />

mental, ou in t u iç ã, otermo redefinido por Descartes e<br />

cujo significado não pode ser confundido com a tradição<br />

aristotélica. Em Descartes intuição é uma capacidade<br />

análoga à faculdade da visão. A clareza que o<br />

entendimento busca é uma capacidade de ver<br />

mentalmente as estruturas e qualidades dos corpos<br />

existentes, do mesmo modo que a projeção de mais luz<br />

sobre um corpo permite uma visão mais detalhada e<br />

precisa desse corpo.<br />

Segundo Granger, o espírito do cartesianismo é o espírito<br />

da matemática:<br />

Dividir a dificuldade, ir do simples ao complexo, efetuar<br />

enumerações completas, é o que observa rigorosamente o<br />

geômetra quando analisa um problema em suas<br />

incógnitas, estabelece e resolve suas equações. A<br />

originalidade de Descartes consiste em ter determinado,<br />

de forma por assim dizer canônica, essas regras de<br />

manipulação que somente se esboçam em seus<br />

contemporâneos na sua aplicação particular às grandezas,<br />

e de havê-las ao mesmo tempo oposto e substituído à<br />

Lógica da Escola, na qual vê apenas um instrumento de<br />

Retórica, inutilmente sofisticado. (DESCARTES, 1962)<br />

Como se vê, o método cartesiano é uma projeção de<br />

princípios e regras que orientam o raciocínio<br />

matemático-geométrico. A terceira e quarta regras,<br />

respectivamente, apenas confirmam um procedimento de<br />

resolução de problemas na geometria: as linhas e as<br />

figuras simples estão contidas nas compostas, etc.<br />

Vale ressaltar uma caracterização do conhecimento em<br />

Descartes que podemos chamar de “unitária”. Talvez<br />

sem o saber, Descartes retoma a opinião de Platão, para<br />

quem é possível identificar uma natureza comum do<br />

conhecimento, e se põe contra Aristóteles nesse ponto, o<br />

qual defendia a necessidade de distintas metodologias e<br />

perfis diferentes para cada ramo do saber.<br />

Nascido em Pisa em fevereiro de 1564, foi responsável<br />

pela criação de inventos e aperfeiçoamento de teorias<br />

que caracterizaram as novas descobertas do<br />

Renascimento. Em 1581, Galileu matriculou-se na<br />

Escola de Artes da Universidade de Pisa para estudar<br />

medicina. Quatro anos mais tarde abandonou o curso<br />

para dedicar-se à matemática. Em 1589, tornou-se<br />

catedrático da Universidade de Pisa. Nessa época<br />

começa a fazer as primeiras investigações no campo da<br />

física, particularmente em mecânica, tentando descrever<br />

os fenômenos em linguagem matemática.<br />

A Europa de Descartes ainda estava, no entanto, sob o<br />

efeito da longa tradição medieval que durante séculos<br />

valorizou os estudos teológicos em detrimento dos<br />

fenômenos naturais. O que teria levado a Igreja a retardar<br />

durante tanto tempo o avanço do conhecimento<br />

científico?<br />

Segundo o físico e historiador da ciência Marcelo<br />

Gleiser, para se entender esse fato é preciso entender o<br />

contexto político que se formou desde o século IV d.C.<br />

Devemos lembrar que a Igreja sempre foi uma guardiã,<br />

no sentido literal, de todo o saber que foi transmitido<br />

pelos antigos. Mas esse zelo também impedia que teorias<br />

modernas ganhassem espaço e ameaçassem o<br />

conhecimento tradicional. O pensamento cartesiano não<br />

deixa de se chocar com esse panorama. Sua fí sica, por<br />

exemplo, diz que os dois principais conceitos do<br />

universo são “matéria” e “movimento”. Não há para<br />

Descartes, como havia para os teólogos católicos e<br />

aristotélicos, algum tipo de finalidade no mundo, ou seja,<br />

94


05<br />

um sentido e função prévios definidos por alguma<br />

inteligência divina.<br />

A b iologia cartesiana também entra em conflito com a<br />

descrição medieval do homem. Para Descartes o corpo<br />

humano tem a estrutura de uma máquina, funcionando<br />

em perfeita harmonia como um relógio.<br />

Para os medievais o que move o corpo é a alma, mas<br />

Descartes não aceita isso. Para ele o corpo deve ser<br />

explicado a partir de sua estrutura física: veias, sangue,<br />

circulação, cérebro, músculos, membros, etc. É uma<br />

revolução que deixou perplexa sua época. O corpo em<br />

Descartes deixava de ser um receptáculo do espírito para<br />

se tornar um mecanismo complexo ao alcance da<br />

compreensão e estudo humanos.<br />

Em 1593, Galileu inventou uma bomba d’água. Em 1597<br />

elaborou um compasso geométrico e militar e em 1606,<br />

construiu um termômetro. Após tomar conhecimento das<br />

lunetas holandesas, que aproximavam objetos distantes,<br />

apesar de pouco potentes e com grandes distorções da<br />

imagem, Galileu percebeu que a luneta poderia ser<br />

utilizada para explicar questões da teoria heliocêntrica,<br />

proposta por Copérnico. Galileu passou a defender a<br />

teoria do heliocentrismo, apesar de não se expor muito<br />

publicamente. Giordano Bruno já havia sido queimado<br />

vivo pela Santa Inquisição da Igreja Católica por<br />

defender as ideias de Copérnico.<br />

Dessa forma, Galileu melhorou as lunetas de modo que<br />

as imagens ficassem mais nítidas e sem deformações,<br />

com um aumento de seis vezes, isto é, duas ou três vezes<br />

mais ao das lunetas da época. Em 1609, empolgado com<br />

os primeiros resultados, fabricou uma luneta com<br />

aumento de nove vezes, sem deformações. Em 1610,<br />

Galileu publicou suas observações celestes no "Sidereus<br />

Nuncius" com tiragem de 560 exemplares. Nesse livro<br />

falou de montanhas na Lua, dos "planetas" que giravam<br />

em torno de Júpiter e nas milhares de estrelas da Via<br />

Láctea. Estas descobertas foram muito criticadas por<br />

teóricos que não acreditavam em suas experiências.<br />

Em 1611, a Igreja começou a preocupar-se com as ideias<br />

de Galileu afirmando que ele era "perigoso", pois suas<br />

ideias influenciavam muitas pessoas. Apesar de tentar se<br />

defender, foi convocado para enfrentar um tribunal do<br />

Santo Ofício. Condenado, foi obrigado a negar suas<br />

teorias sob pena de morrer queimado. Sobre este<br />

acontecimento existem muitas versões diferentes. Seja<br />

como for, Galileu continuou vivo. Nesse período, não<br />

parou de trabalhar e publicou clandestinamente, em<br />

1638, o "discurso a respeito de duas novas ciências",<br />

onde recapitulou os resultados de suas primeiras<br />

experiências e acrescentou algumas reflexões sobre os<br />

princípios da mecânica. Essa obra seria a mais madura de<br />

todas que escreveu. No mesmo ano Galileu ficou cego.<br />

Morreu quatro anos depois, em janeiro de 1642.<br />

O C on t r at u alism o<br />

Durante o período entre os séculos XVI ao XVIII<br />

surgiram correntes teóricas que visava refletir e tentar<br />

explicar como provavelmente se deu a criação do Estado,<br />

como a sociedade se comportava antes deste e quando os<br />

indivíduos sentiram a necessidade de sua criação. Os<br />

pensadores desta corrente filosófica tinham como base<br />

que o Estado havia sido criado por meio de um suposto<br />

contrato social. Entre os contratualistas mais famosos<br />

estão Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques<br />

Rousseau. Apesar de que todos os três acreditavam que o<br />

Estado havia se formado a partir de um contrato social,<br />

existem algumas divergências no pensamento de cada<br />

um em relação ao caminho tomado para a consolidação<br />

do pacto.<br />

Thomas Hobbes (1588 – 1679) em sua obra “Leviatã”<br />

discorre sobre o estado de natureza, o contrato social que<br />

os indivíduos tiveram necessidade de firmar e o governo<br />

soberano. Para Hobbes, os homens no estado de natureza<br />

são todos iguais, até mesmo o mais forte não possui a<br />

garantia de poder sobre os demais. Possuem, ademais, a<br />

mesma inteligência, entretanto devido à vaidade humana<br />

(requisito comum a todos) cada indivíduo se sente e se<br />

considera mais inteligente que o seu semelhante. Para<br />

Hobbes, quando dois homens desejam a mesma coisa e<br />

esta não pode satisfazer a ambos, e como estes se sentem<br />

possuidores de inteligência e capacidade de possuíla,<br />

tornar-se-ão inimigos e irão intentar de todas as formas,<br />

cada um a sua maneira, se sobressair em relação ao<br />

outro. No entanto, apesar do confronto entre iguais, um<br />

indivíduo nunca sabe o que seu semelhante está<br />

pensando ou planejando, o que gera insegurança e receio<br />

em relação a uma eventual tentativa de ataque. Logo, na


visão de Hobbes, os seres humanos no estado de natureza<br />

estão sempre supondo o que o outro pode estar<br />

planejando fazer contra o seu semelhante. A insegurança<br />

em relação à possibilidade de uma atitude hostil leva ao<br />

ataque seja para vencer o outro ou como meio para se<br />

defender de uma possível agressão. Está declarada a<br />

guerra de todos contra todos.<br />

Hobbes não acredita em uma natureza boa do homem,<br />

pelo contrário, ele é egoísta e egocêntrico não sentindo<br />

nenhum prazer na convivência com os seus demais.<br />

Hobbes afirma, aliás, que existem três causas que<br />

provocam discórdia entre os homens: competição,<br />

desconfiança e glória. A liberdade do homem enquanto<br />

no estado de natureza gera guerras, conflitos e<br />

instabilidades ao passo que este se vê livre para fazer o<br />

que deseja visando a realização dos seus interesses<br />

particulares. Os indivíduos sentem então a necessidade<br />

de um pacto social e para que este pacto se formule é<br />

necessário que todos abram mão de sua liberdade e dos<br />

direitos que possuíam no estado de natureza. O pacto<br />

social é formado para garantir paz e segurança aos<br />

indivíduos em troca da sua liberdade e direitos. É um<br />

pacto de submissão ao passo que todos transportam ao<br />

Estado todo o poder visando garantir a segurança.<br />

Outro aspecto do contrato é a escolha de um suserano,<br />

este deverá possuir poderes ilimitados tornando-se assim<br />

o Estado do povo. Cabe ao suserano garantir a paz e a<br />

segurança dos indivíduos e para que isto seja cumprido<br />

satisfatoriamente é necessário que seu poder seja total e<br />

ilimitado. Pois se fosse limitado haveria alguém para<br />

julgar se o suserano estava sendo justo ou injusto se<br />

tornando, este que julga, o possuidor do poder pleno.<br />

Hobbes não vê outra escolha, o poder deve ser absoluto e<br />

o suserano deve manter temerosos os súditos para que<br />

obedeçam ao seu poder máximo. Entretanto, quando o<br />

escolhido para governar deixa de cumprir o dever de<br />

proteger um determinado indivíduo este prejudicado não<br />

precisa mais lhe dever sujeição, contudo aos outros não é<br />

permitida a escolha de se rebelar, pois o suserano ainda<br />

os protege. Na verdade a não necessidade do<br />

cumprimento de sujeição é escolha do suserano, que não<br />

mais confia no súdito, destituindo dele a obrigação de<br />

sujeição. Para Hobbes o pior que se pode acontecer é um<br />

eventual retorno ao estado de natureza.<br />

John Locke (1632 – 1704) difere consideravelmente da<br />

teoria de Hobbes. Locke em “Segundo tratado sobre o<br />

governo civil” acredita que os homens no estado de<br />

natureza viviam em relativa harmonia e paz. Nesse<br />

momento, os homens eram dotados de razão e tinham<br />

sua propriedade. Propriedade para o autor, em uma<br />

primeira acepção, significava: vida, liberdade e bens. A<br />

segunda acepção de propriedade faz relação aos bens<br />

móveis adquiridos pelos indivíduos. Para o pensador a<br />

terra é um direito comum a todos, já que, foi dada por<br />

Deus e a partir do trabalho o homem a torna sua<br />

propriedade privada. Sendo esta terra sua, ele atribui um<br />

direito próprio excluindo todos os outros de possuí-la. O<br />

estado de guerra para Locke se dá a partir do momento<br />

em que há uma violação da propriedade privada fazendose<br />

necessário a criação de um contrato social. A<br />

finalidade principal do contrato era proteger a<br />

propriedade privada e preservar os direitos que cada um<br />

possuía no estado de natureza. Este acordo, para Locke,<br />

levou os homens a unirem e estabelecerem livremente o<br />

que ele vai chamar de “contrato de consentimento”<br />

diferentemente do “contrato de submissão” denominado<br />

por Hobbes.<br />

Formado o estado civil através do contrato é necessária a<br />

escolha da forma de governo. A forma de governo é<br />

instituída por voto majoritário visando àquela que melhor<br />

se adéque às condições necessitadas pelos indivíduos.<br />

Escolhida a forma de governo, é necessário ter<br />

conhecimento sobre qual será o poder legislativo e o<br />

poder executivo e federativo, que serão subordinados ao<br />

primeiro. Entretanto, se o executivo e o legislativo<br />

violam a lei estabelecida e coloca a proteção da<br />

propriedade privada em risco, torna-se um governo<br />

tirânico. E a consequência desse poder tirânico é o<br />

retorno para o estado de guerra. O estado de guerra<br />

atribui aos cidadãos o direito de resistência, ou seja, o<br />

direito dos indivíduos se rebelarem por meio da força<br />

contra este estado civil.<br />

Jean- Jacques Rousseau (1712 – 1778) em suas duas<br />

obras “Discurso sobre a origem e os fundamentos da<br />

desigualdade entre os homens” e “O contrato social”<br />

discorre na primeira sobre a criação do pacto social, que<br />

para ele foi um pacto injusto, e na segunda propõe como<br />

poderia ser feito o contrato na medida em que todos<br />

fossem beneficiados. No “Discurso sobre a origem e os<br />

fundamentos da desigualdade entre os homens”<br />

Rousseau diz que os homens no estado de natureza são<br />

amorais, não tem conhecimento do que é bom ou mau,<br />

entretanto não conseguem ver seu semelhante sofrer.<br />

Não fala como se deu o processo do estado da natureza<br />

para a sociedade civil, entretanto, afirma que o pacto<br />

social foi injusto, já que, iludidos pelo discurso de<br />

homens ambiciosos, homens grosseiros e inocentes<br />

perderam sua liberdade natural para a servidão. Ou seja,<br />

os indivíduos abriram mão da sua liberdade em troca do<br />

trabalho, da servidão e da miséria.<br />

15


25<br />

No Contrato Social, Rousseau propõe condições de<br />

possibilidade de um pacto legítimo, ao mesmo tempo em<br />

que, os homens, ao abrirem mão da sua liberdade natural,<br />

não se submetam à servidão, pelo contrário, que ganhem<br />

em troca a liberdade civil. O corpo soberano surgido<br />

após o pacto possui condições de elaborar as leis, já que,<br />

é um agente ativo e passivo das mesmas. Há na<br />

concepção de Rousseau uma relação de liberdade e<br />

obediência e, ademais, uma prevalência da vontade geral<br />

sobre a particular. O corpo administrativo do Estado, seja<br />

qual for, deve ser um órgão limitado pelo povo soberano,<br />

deve ser submisso à população. Rousseau defende que<br />

este corpo administrativo tem que ser limitado, pois a<br />

vontade particular é um perigo para a população, visto<br />

que a vontade particular visa seus próprios interesses,<br />

logo a vontade geral tem de vigiar e combater esta. A<br />

representação política não deve estar no nível de uma<br />

soberania. Na verdade Rousseau deseja no lugar de uma<br />

democracia representativa, uma democracia direta aos<br />

moldes das antigas Roma e Grécia. Haveria apenas um<br />

representante que colocasse em prática as leis criadas<br />

pelo povo soberano. Rousseau não crê em um retorno ao<br />

estado de natureza, pois o ser humano já perdeu a sua<br />

bondade e a pureza, infiltrado cada vez mais dentro da<br />

sociedade moderna.<br />

São notáveis as várias diferenças nas teorias dos três<br />

contratualistas. Ao passo que Hobbes acredita em um ser<br />

humano egoísta e competitivo por natureza, Locke crê<br />

que este só se torna cruel no momento em que há a<br />

violação dos seus bens. Já Rousseau pensa que o<br />

indivíduo é amoral, não suporta ver seu semelhante<br />

sofrer, entretanto perde sua inocência ao passo que se<br />

integra cada vez mais na sociedade. O contrato social<br />

também possui visões díspares, em Hobbes os homens<br />

entram em acordo para firmar o pacto visando garantir<br />

segurança e paz, abrindo mão de todos os seus direitos e<br />

liberdade. Locke acredita que o contrato é firmado para<br />

preservar os direitos naturais e a propriedade privada e<br />

Rousseau não vê o pacto social como uma saída eficaz,<br />

pois faz o homem perder sua liberdade e se tornar servo.<br />

Logo, este último propõe outro tipo de contrato que seria<br />

o ideal, também divergente do contrato de Hobbes e de<br />

Locke. Enquanto Rousseau não acredita em um retorno<br />

ao estado de natureza, Locke propõe que este se dá<br />

através do surgimento de um estado tirânico que coloca a<br />

preservação da propriedade privada em risco. Hobbes<br />

acredita ser inconcebível um retorno ao estado de<br />

natureza, já que, o súdito não tem o direito a se rebelar<br />

contra o suserano, contudo não descarta a possibilidade<br />

de isto acontecer.<br />

E st ad o, P od er e V iolê n cia<br />

Por Ademir Aparecido Pinhelli Mendes e Bernardo Kestring, professores do<br />

Ensino Público em Curitiba, Paraná.<br />

O E st ad o com o D et en t or d o M on op ó lio d a V iolê n cia<br />

As teorias sobre o Estado constituem-se num legado<br />

histórico importante para a compreensão da violência.<br />

Max Weber foi um dos autores que refletiu sobre o<br />

processo de organização do Estado moderno e acentuou<br />

que se trata de uma instituição que detém uma autoridade<br />

sobre os cidadãos, bem como controla todas as ações que<br />

ocorrem em sua jurisdição ou em seu território. No<br />

espaço por ele controlado, como já citamos, o Estado<br />

detém o monopólio do uso da força, considerado<br />

legítimo na medida em que necessário para a<br />

manutenção da ordem e da segurança.<br />

A proposição é polêmica, à medida que não há<br />

mecanismos de controle do uso da força e cabe<br />

distinguir, a cada ação, o uso legítimo da força e o abuso<br />

de poder. Isso é bastante complicado, porque quem<br />

decidirá sobre a intensidade da força e qual o momento<br />

de utilizá-la?<br />

A lgu n s sã o m<br />

ais igu ais q u e ou t r os<br />

Karl Marx na sua crítica à sociedade burguesa, salienta<br />

que em uma sociedade fundada na desigualdade<br />

econômica e social as garantias de liberdade e segurança<br />

do cidadão, que o Estado deve suprir, tornam-se, na<br />

maioria das vezes, apenas garantia da propriedade. Em A<br />

QuestãoJudaica Marx reflete sobre os conceitos de<br />

liberdade e igualdade gerados no bojo da Revolução<br />

Francesa de 1789, concluindo que tanto a existência<br />

quanto a defesa da propriedade privada no contexto das<br />

Constituições geradas no processo de revolução burguesa<br />

delimitam a vivência da liberdade e tornam a igualdade<br />

apenas um elemento formal que dissimula a desigualdade<br />

realmente existente, ou seja, a igualdade proposta pela<br />

burguesia e primeiramente a igualdade na troca é<br />

baseada no contrato de cidadãos livres e iguais, – é<br />

também a igualdade jurídica e a lei é igual para todos e<br />

todos são iguais; perante a lei.<br />

Sabe-se, hoje, que a igualdade jurídica – esconde, na<br />

verdade, a desigualdade dos indivíduos concretos.<br />

É a liberdade individual, com a sua aplicação, que forma<br />

a sociedade burguesa. Ela faz com que cada homem seja,<br />

nos outros homens, não a realização, mas antes a<br />

limitação de sua liberdade. Proclama, antes de tudo o<br />

mais, o direito de usufruir e de dispor à sua vontade de<br />

seus bens, dos seus rendimentos, do fruto do seu trabalho


e da sua indústria. Restam ainda os outros direitos do<br />

homem, a igualdade e a segurança. A palavra igualdade<br />

não tem aqui um significado político; é simplesmente<br />

a igualdade da liberdade acima definida: todos os<br />

homens são igualmente considerados como mônada<br />

fechada sobre si própria. A Constituição de 1795<br />

determina o sentido desta igualdade. Art. 5: “A igualdade<br />

consiste no fato de a lei ser a mesma para todos, quer<br />

proteja, quer puna”. E quanto à segurança? (...) A<br />

segurança é a mais elevada noção social da sociedade<br />

burguesa, a noção de polícia: a sociedade inteira só<br />

existe para garantir a cada um de seus membros a<br />

conservação de sua pessoa, dos seus direitos e das suas<br />

propriedades (MARX, 1978. p. 38-39).<br />

Se pensarmos na sociedade brasileira, a perceberemos<br />

como uma sociedade autoritária e hierarquizada em que<br />

os direitos das pessoas não existem. Não existem para a<br />

elite, porque ela não precisa, pois tem privilégios – do<br />

latim privilégium = “lei especial”, vantagem concedida a<br />

alguém com exclusão de outros e contra o direito comum<br />

– está acima de qualquer direito. Não existe para a<br />

grande massa da população que é pobre, desempregada e<br />

despossuída, pois suas tentativas de consegui-los são<br />

sempre encaradas como caso de polícia e tratadas com o<br />

rigor do aparato repressor do Estado quase onipotente.<br />

(CHAUÍ,1986)<br />

A extrema liberalidade com que é tratada a pequena elite<br />

corresponde à extrema repressão do povo, sobretudo<br />

quando os trabalhadores se organizam e lutam. Episódios<br />

recentes de nossa história revelam que nem mesmo a<br />

vida humana é encarada com alguma seriedade<br />

(BUFFA,2002, p. 28-9).<br />

A s O<br />

r igen s d a V iolê n cia<br />

A violência existe desde os tempos primordiais e<br />

assumiu novas formas à medida que o homem construiu<br />

as sociedades. Inicialmente foi entendida como<br />

agressividade instintiva, gerada pelo esforço do homem<br />

para sobreviver na natureza. A organização das primeiras<br />

comunidades e, principalmente, a organização de um<br />

modo de pensar coerente, que deu origem às culturas,<br />

gerou também a tentativa de um processo de controle da<br />

agressividade natural do homem.<br />

É no período em que se instauram os Estados modernos<br />

que se coloca, de modo mais radical, a pergunta sobre o<br />

que é o poder político, sua origem, natureza e<br />

significado, pergunta que traz consigo a reflexão sobre a<br />

violência, já que ela poderá ser utilizada como estratégia<br />

para a conquista e manutenção do poder, como afirma<br />

Maquiavel, em O Príncipe.<br />

Entre os séculos XVI e XVIII, alguns intelectuais, a<br />

partir de perspectivas diferentes, entre eles, Hobbes e<br />

Locke, afirmavam, basicamente, que tanto o Estado<br />

quanto a sociedade se organizaram a partir de pactos ou<br />

contratos firmados entre os indivíduos para regulamentar<br />

o convívio social, superar as tensões e conflitos e<br />

instaurar a ordem política.<br />

Para Hobbes os homens, em estado de natureza, são<br />

iguais quanto às faculdades do corpo (força) e do espírito<br />

(inteligência) e quanto às esperanças de atingir seus fins,<br />

podendo desejar todas as coisas. Os fins são,<br />

basicamente, a própria conservação e a sobrevivência,<br />

mas também podem ser apenas o deleite. Dominado por<br />

suas paixões, desconhecendo as intenções e desejos dos<br />

outros em relação a si próprio, o homem vive solitário,<br />

em guarda, pronto a defender-se ou a atacar; quando<br />

desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, os homens se<br />

tornam inimigos e lutam entre si em defesa de seus<br />

interesses pessoais. Nessas circunstâncias, a melhor<br />

garantia contra a insegurança é antecipar-se às possíveis<br />

atitudes do outro, subjugando-o pela força e pela astúcia<br />

e ampliando, assim, o domínio sobre os outros, até<br />

conseguir a supremacia. Pode-se entender bem isto no<br />

ditado popular que diz “a melhor defesa é o ataque”. O<br />

que se tem, então, é um ambiente de tensão permanente:<br />

enquanto não se criam mecanismos capazes de conter a<br />

força e equilibrar os desejos, os homens se encontram<br />

predispostos à luta, na condição de guerra de todos os<br />

homens contra todos os homens. Um conflito que não<br />

consiste unicamente na batalha, no enfrentamento<br />

ostensivo, mas numa atitude, tendência ou disposição<br />

35


constante para a luta. Enquanto não houver garantias<br />

para a convivência o homem é o lobo do homem.<br />

Hobbes acentua que, para evitar a destruição mútua e a<br />

situação de permanente insegurança e medo, os homens<br />

precisaram organizar-se em sociedade. Para tanto,<br />

renunciaram a seu direito a todas as coisas, à sua<br />

liberdade ilimitada, aceitando submeter-se a uma<br />

autoridade política. Na raiz do processo de formação<br />

social e política, portanto, estão a discórdia, o medo da<br />

morte, a desconfiança mútua, o desejo de paz e de uma<br />

vida confortável.<br />

A reflexão política de Locke, escrita nos Dois Tratados<br />

sobre o Governo Civil, apresenta-se como uma teoria que<br />

justifica a existência da propriedade privada como um<br />

direito natural, que não pode ser violado.<br />

E a principal finalidade de se constituir um Estado e de<br />

se organizar um governo é a preservação da propriedade,<br />

da qual, o cidadão somente poderá ser alienado mediante<br />

adequada indenização no valor de mercado da região e<br />

sob a constatação legal da necessidade pública.<br />

Com o trabalho, o homem transforma a terra e dela se<br />

apropria, assim como de outros bens. Com o surgimento<br />

e ampliação das relações de troca e o advento do<br />

dinheiro, criam-se as condições de acumulação ilimitada<br />

de propriedade e de desigualdade entre os homens – os<br />

proprietários cidadãos de um lado e os não cidadãos de<br />

outro. A propriedade se transforma, dada a sua<br />

importância no pensamento liberal burguês, na garantia<br />

de afeição à coisa pública, pois o proprietário está<br />

interessado em sua boa gestão. Ou como registra a<br />

Enciclopédia: “Todo homem que possui no Estado é<br />

interessado no bem do Estado”.<br />

A situação de risco e insegurança gerada pela falta de<br />

leis que estabeleçam o justo e o injusto e instaurem as<br />

condições para resolver as controvérsias causadas pela<br />

violação da propriedade leva os homens a se unirem. A<br />

instauração do Estado a partir do contrato social se faz<br />

com base no consentimento, para que o corpo político<br />

instituído exerça a função de garantir a vida, a liberdade<br />

e, principalmente, o direito natural à propriedade. As<br />

bases da teoria liberal estão assim colocadas.<br />

R elaç õ es en t r e V iolê n cia e P od er<br />

Nesse contexto, a violência define-se como uma ação<br />

que destrói ou modifica projetos com o uso da força, isto<br />

é, a violência caracteriza-se pela aplicação de<br />

procedimentos ostensivos ou ocultos que visam<br />

assegurar, moderar ou coibir uma ação do indivíduo ou<br />

grupo social.<br />

No âmbito das relações de poder, a força explícita nega a<br />

possibilidade de expressão da vontade individual ou<br />

coletiva por meio da palavra e do diálogo, além de<br />

sufocar os conflitos latentes que fundam a política.<br />

A violência isola os indivíduos, dissolve os grupos, gera<br />

mecanismos de controle, contribui para concentrar o<br />

poder. Aqui, poderíamos lançar mão da conhecida<br />

expressão “dividir para governar.”<br />

A instituição do Estado moderno veio acompanhada por<br />

reflexões profundas sobre a estrutura interna do poder.<br />

Maquiavel, foi um dos primeiros a refletir sobre o poder<br />

estruturado no conflito, a partir dos interesses opostos<br />

que se organizam na sociedade:<br />

Há em todos os governos duas fontes de oposição: os<br />

interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as<br />

leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião ...<br />

(...) Não se pode de forma alguma acusar de desordem<br />

uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois<br />

os bons exemplos nascem da boa educação, a boa<br />

educação das boas leis e estas da desordem que quase<br />

todos condenam irrefletidamente. (MAQUIAVEL, 1982,<br />

p. 31)<br />

A partir de Maquiavel, a violência distingue-se do<br />

conflito, que está na raiz das relações de poder: a<br />

violência é entendida como o uso da força bruta,<br />

enquanto o conflito ou o dissenso, gerados pelo<br />

antagonismo de classes, são salutares na política e<br />

precisam ser reconhecidos por seus efeitos benéficos já<br />

que, do confronto e da desunião, nascem as boas leis. O<br />

bom governante é aquele que reconhece a realidade do<br />

conflito e busca o equilíbrio das forças em luta,<br />

organizando a ordem social e política.<br />

No escrito de Maquiavel fica clara a diferença entre o<br />

dissenso, a partir do qual se produzem as leis, e a<br />

violência, caracterizada como a força que reprime e<br />

emudece. Enquanto o dissenso pressupõe o respeito às<br />

diferenças e, como tal, é o meio de expressão de novas<br />

ideias e de construção do espaço público, a força bruta<br />

anula o outro e se impõe como a única verdade.<br />

Maquiavel, porém, não descarta a violência como<br />

estratégia para a conquista e manutenção do poder, basta<br />

lembrar seus escritos sobre Cesar Bórgia ou Castruccio<br />

Castracani.<br />

45


Na modernidade, a violência integra-se à natureza do<br />

poder na forma institucionalizada do Estado. Hegel<br />

acentuou o duplo movimento pelo qual a contradição<br />

move a história que, enquanto processo, constitui-se no<br />

esforço em superar ou mesmo eliminar a violência. No<br />

âmbito político, é no sentido de controlar a violência que<br />

o Estado e o direito atuam: se uma violência pode ser<br />

anulada com outra violência, a força exercida no<br />

contexto jurídico legitima-se. A questão posta por Hegel<br />

assume novas formas no pensamento moderno e a teoria<br />

de Marx, ainda entendendo a violência como motor da<br />

história, acentua que o caráter violento das relações<br />

políticas resulta de uma violência mais radical, que dá<br />

origem a muitas outras formas de violência na sociedade<br />

e caracteriza-se pela exploração do homem e sua<br />

transformação em mercadoria.<br />

Amplia-se, assim, o significado da violência e novas<br />

dimensões do conceito integram-se às antigas: pode-se<br />

entender por violência, ao lado de guerras, de genocídios,<br />

de torturas, de intolerâncias raciais e culturais e outros<br />

meios utilizados nas fundações de novos Estados no<br />

curso da história, também a miséria, a humilhação, o<br />

desrespeito aos idosos – já que não produzem mais – e às<br />

crianças, a fome, as injustiças sociais e todas as ações<br />

que, na sociedade capitalista, retiram do homem a sua<br />

dignidade e o reduz à coisa. À medida que o homem<br />

deixa de ser considerado como homem e seu valor reduzse<br />

ao valor da sua força de trabalho, as guerras também<br />

assumem novas dimensões e significados: na sociedade<br />

capitalista, não são as perdas humanas que contam, mas<br />

os interesses específicos da indústria bélica; o lucro<br />

econômico e a renovação tecnológica gerada no curso<br />

dos conflitos. Na sociedade capitalista a violência é parte<br />

integrante da estrutura social e delimita a vida dos<br />

indivíduos. O ato de destruição do outro em sua<br />

constituição física e moral determina os limites de<br />

sociabilidade nos quais se integra a violência em todos os<br />

sentidos. Na perspectiva do marxismo, a violência<br />

implícita nas relações sociais e políticas, geradas a partir<br />

dos antagonismos de classes, de raiz econômica, só pode<br />

ser cancelada ou superada por meio da revolução. As<br />

classes trabalhadoras, organizadas em sindicatos,<br />

partidos e outras instituições, teriam o grande objetivo de<br />

romper com todas as formas de dominação e lançar as<br />

bases de uma nova ordem social e política.<br />

A organização dos trabalhadores no curso da história do<br />

marxismo, mostra, precisamente, o significado da<br />

violência revolucionária e a sua necessidade ante uma<br />

situação social que tem a violência inscrita em seu<br />

interior, como seu fundamento.<br />

5


R E FE R Ê N C I A S:<br />

ANDRADE, O. O San t eir o d o M an gu e e ou t r os p oem . as São Paulo: Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1991.<br />

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BUFFA, E.; ARROYO, M. G., NOSELA, P.: E d u caç ã o e cid ad an ia . 10a ed. São Paulo, Cortez, 2002.<br />

FURTADO, C. For m aç ã o econ ô m ica d o B r asil , 11a ed., São Paulo. Nacional, 1972.<br />

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HOBBES, T. O L ev iat ã. São Paulo: Abril Cultural, 1973.<br />

LOCKE, Segu n d o T r at ad o sob r e o G<br />

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MAQUIAVEL, N., C om en t á r ios sob r e a p r im eir a d é cad a d e T it o L í v. (Livro io I, cap. 4) Brasília: UnB, 1982.<br />

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ROUSSEAU, J.-J. D o con t r at o Social - Ou Princípios do Direito Político. In: P en sad or es, São Paulo: Abril Cultural,<br />

1973.<br />

65


O E ST A D O M O D E R N O E A Q U E ST Ã O D E M O C R Á T I C A<br />

P or Jairo Marçal Professor no Ensino Público em<br />

Curitiba, Paraná.<br />

Comecemos com uma constatação: as sociedades com<br />

regimes democráticos são exceções na história da<br />

humanidade. Por mais que sejamos suficientemente<br />

tolerantes quanto ao conceito de democracia, é preciso<br />

reconhecer que da sua invenção, por volta do século V<br />

a.C. em Atenas, até o século XIX, é possível contar nos<br />

dedos os períodos e os lugares onde ela existiu.<br />

Por outro lado, é necessário reconhecer que a partir do<br />

século XX a democracia propagou-se em escala mundial,<br />

e são vistos com muita estranheza os países com práticas<br />

políticas e regimes de governo não democráticos.<br />

Em contrapartida, não se pode deixar de considerar um<br />

aspecto fundamental para a nossa investigação: o que<br />

entendemos e aceitamos como democracia hoje pouco<br />

tem a ver com a democracia inventada e praticada pelos<br />

atenienses da Antiguidade.<br />

Nosso objetivo é examinar alguns aspectos que<br />

acreditamos ser essenciais nas principais concepções<br />

modernas e contemporâneas de democracia (concepção<br />

liberal; a crítica de Marx e a concepção republicana),<br />

assumindo como pressuposto o fato de que a concepção<br />

liberal é hegemônica em nossos dias.<br />

Mas, por que o individualismo pode ser um problema<br />

para a constituição de uma sociedade democrática? Não<br />

seria, o individualismo, a grande marca da modernidade?<br />

Não seria pela via da absoluta autonomia do indivíduo<br />

que poderíamos alcançar a liberdade política?<br />

Para responder estas questões, é necessário colocar a<br />

democracia contemporânea sob análise e, nesse exercício<br />

de pensamento, tornar possível a construção de outros<br />

sentidos que possam superar aqueles que o senso comum<br />

nos oferece de imediato, geralmente derivados da<br />

aceitação tácita de uma democracia meramente formal ou<br />

mesmo de uma espécie de niilismo político, ambos<br />

caracterizados como sucedâneos fraudulentos do ideal<br />

democrático.<br />

M od er n id ad e e I n d iv id u alism o<br />

A modernidade tem como um dos seus fundamentos, a<br />

criação do conceito e da própria experiência do<br />

individualismo. É na modernidade que, inusitadamente, o<br />

indivíduo começa a elaborar, de forma consciente, um<br />

projeto para a sua autonomia, fundamentado na razão e<br />

que passa a efetivar-se não apenas no plano das ideias,<br />

mas também das realizações concretas.<br />

Não é possível compreender a política, o Estado e a ideia<br />

de cidadania moderna sem considerar o projeto burguês<br />

da autonomia do indivíduo. A racionalidade nascida no<br />

final do século XVII, se estendeu pelos domínios da<br />

filosofia, da arte, das ciências, da tecnologia e da<br />

indústria, desenvolvendo um imaginário e uma realidade<br />

na qual indivíduo se apresenta como capaz, pelo direito<br />

natural, de constituir a humanidade<br />

por meio do trabalho. Esse trabalho foi vinculado pelos<br />

ideólogos burgueses à conquista da propriedade privada<br />

e está na base do capitalismo moderno.<br />

É este o panorama da criação da ideia de liberdade<br />

individual moderna, sobre o qual se edifica a ideia liberal<br />

de democracia e cidadania.<br />

Vejamos como o filósofo brasileiro Gerd Bornheim<br />

analisa a relação entre a modernidade e o individualismo:<br />

Portanto, o individualismo, construído com uma lucidez<br />

inusitada, se configura como ponto de partida das<br />

modernas revoluções. Acontece que esse mesmo<br />

individualismo desencadearia também o drama maior da<br />

modernidade. Realmente a soberania do indivíduo<br />

começa a tropeçar de imediato com suas próprias<br />

fronteiras. A questão que logo se coloca está toda nesta<br />

pergunta: se a autoafirmação do indivíduo se torna tão<br />

soberana quanto autônoma, cabe perguntar pelos limites<br />

dessa nova situação; até que ponto se faz de fato<br />

tolerável essa expansão do indivíduo, que até passa a<br />

equacionar a si próprio simplesmente em termos de<br />

universo: o homem – quer se garantir agora – reflete em<br />

seu próprio corpo as proporções do cosmo. Entrementes,<br />

ocorre, por aí, que se marginaliza esse outro problema<br />

não menos essencial: se há uma matemática proporção<br />

entre o cosmo e o indivíduo, qual seria a proporção entre<br />

esse mesmo cosmo e a sociedade que congrega<br />

indivíduos? Cabe dizer, pois, que o individualismo<br />

termina por desentender-se no tema maior de suas<br />

75


próprias limitações. Como consegue o indivíduo,<br />

finalmente alçado à sua própria excelência, fazer de si<br />

mesmo uma realidade social? E esta pergunta configura<br />

as bases que perpassam todas as crises sociais dos<br />

tempos modernos. (BORNHEIM, 2003. p.213)<br />

A C on cep ç ã o L ib er al d e P olí t ica<br />

O liberalismo é uma corrente que tem sua aparição<br />

efetiva no cenário do pensamento político por volta do<br />

século XIX, ainda que existam traços das suas teses<br />

fundamentais antes desse período. O liberalismo é<br />

definido como um projeto que busca conceber e justificar<br />

o Estado de forma leiga (não religiosa), que defende as<br />

limitações dos poderes<br />

dos governos, visando a proteção dos direitos dos<br />

membros da sociedade. Outra característica forte do<br />

liberalismo, e para alguns autores a mais determinante, é<br />

que ele constitui “pura e simplesmente a expressão<br />

segundo a qual o poder do Estado deve ser<br />

sistematicamente limitado”. (PETTIT, 2003) De acordo<br />

com este último sentido, os liberais afirmam que a<br />

verdadeira liberdade depende da menor interferência<br />

possível do Estado e das leis. Essa concepção ficou<br />

conhecida como liberdade negativa, ou seja, só há<br />

liberdade na ausência de interferência.<br />

J oh n L ock e e A d am Sm it h : A P r op r ied ad e P r iv ad a<br />

com o Fu n d am en t o d a L ib er d ad e<br />

Locke é um dos precursores do liberalismo e<br />

compreende a propriedade privada como um direito<br />

natural do homem, assim como o direito à vida e à<br />

própria liberdade. Ele estabelece um vínculo entre a<br />

liberdade, a propriedade privada e o trabalho. Para que a<br />

liberdade e a vida sejam preservadas, é necessária a<br />

produção de bens, os quais são conquistados pelo<br />

trabalho.<br />

A lógica da explicação da propriedade privada é a<br />

seguinte: Se Deus criou o mundo pelo seu trabalho, este<br />

mundo lhe pertence. Ora, o homem, criado à semelhança<br />

de Deus, também trabalha e, pelo trabalho, naturalmente<br />

conquista sua propriedade. Locke, portanto, nega<br />

qualquer intervenção pública no sentido de busca da<br />

igualdade de direitos sociais.<br />

Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam<br />

comuns a todos os homens, cada homem tem uma<br />

propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem<br />

direito algum além dele mesmo. O trabalho do seu corpo<br />

e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente<br />

dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com<br />

que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com seu<br />

trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em<br />

sua propriedade. Sendo por ele retirada do estado comum<br />

em que a natureza a deixou, a ela agregou, com esse<br />

trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais<br />

homens. Por ser esse trabalho propriedade<br />

inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele<br />

pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado,<br />

pelo menos enquanto houver bastante e de igual<br />

qualidade deixada em comum para os demais. (LOCKE,<br />

Dois Tratados sobre Governo. p. 407- 409)<br />

Ainda na linha interpretativa do individualismo, o<br />

economista escocês Adam Smith, reconhecidamente um<br />

dos nomes mais importantes do liberalismo econômico<br />

clássico, cujo pensamento se apresenta como uma<br />

tentativa de articulação entre a teoria e a prática, defende<br />

que as instituições sociais são resultantes das ações<br />

humanas decorrentes de interesses individuais e não de<br />

uma ética do interesse comum.<br />

Smith defende a liberdade irrestrita do comércio, como<br />

fator de desenvolvimento e de geração de riqueza das<br />

nações e, para tal, não deveria haver qualquer<br />

intervenção do Estado. O que Smith propõe é a<br />

emancipação da economia em relação às demais esferas<br />

da sociedade, sobretudo a política. A economia se torna<br />

dimensão de referência da realidade, a qual as demais<br />

dimensões estariam subordinadas e, na condição de<br />

fundamento da prosperidade e das transformações, livre<br />

–, se autorregularia<br />

através das dinâmicas próprias do seu funcionamento. O<br />

controle se exerce basicamente pelo sistema de livre<br />

concorrência e pela lei da oferta e da procura,<br />

denominada “a mão invisível” do mercado.<br />

A defesa da não interferência do Estado na economia, a<br />

divisão social do trabalho e a mecanização da indústria,<br />

principais elementos do liberalismo econômico, são, em<br />

larga medida os responsáveis pelo desenvolvimento<br />

econômico de países e das classes proprietárias da<br />

Europa ocidental a partir do século XIX. Porém, em<br />

nome de algumas liberdades particularizadas, o<br />

liberalismo econômico gerou contradições sociais, níveis<br />

de miséria e exploração humana sem precedentes. Mas,<br />

questões nucleares referentes à relação entre o capital e o<br />

trabalho quase sempre foram evitadas ou tangenciadas e<br />

mitificadas pelo pensamento liberal, do jusnaturalismo e<br />

85


da moralidade cristã de Locke ao racionalismo<br />

mercadológico de Smith e de Ricardo.<br />

B en j am<br />

in C on st an t : D u as C on cep ç õ es d e L ib er d ad e<br />

O pensador e político franco-suíço, Benjamin Constant<br />

captou e demonstrou com perspicácia a essência da<br />

modernidade, no que se refere à política, às relações<br />

entre o indivíduo e seus interesses particulares e suas<br />

relações com a sociedade. O desenvolvimento da<br />

subjetividade moderna representou avanços e conquistas<br />

importantes não vivenciados pelos gregos e romanos da<br />

Antiguidade Clássica, e isso Constant compreendeu<br />

muito bem, sobretudo quando buscou demonstrar que o<br />

sistema representativo garantia níveis de controle do<br />

povo com relação ao governo, sem com isso demandar<br />

excessivamente a sociedade, retirando dela a sua<br />

liberdade individual. Para Constant, “os povos antigos<br />

não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as<br />

vantagens desse sistema. A organização social desses<br />

povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente<br />

da que este sistema nos assegura”. (CONSTANT, De la<br />

liberte chez lês modernes. p. 495.)<br />

Se gregos e romanos, por caminhos distintos inventaram<br />

a esfera pública e conseguiram torná-la em maior ou<br />

menor escala um bem participável, no âmbito da vida<br />

privada o despotismo continuou sendo a forma de poder<br />

determinante em ambas culturas. Preservadas as<br />

diferenças, é possível dizer que, tanto para os gregos<br />

como para os romanos, a liberdade correspondia à<br />

participação na vida pública e à vida no domínio privado,<br />

fosse doméstica ou relacionada às atividades<br />

econômicas, estava necessariamente subordinada à vida<br />

política. Em contrapartida, a marca da liberdade moderna<br />

se configura, segundo Constant, enquanto exercício de<br />

prerrogativas privadas.<br />

Vamos apresentar as duas concepções clássicas de<br />

liberdade nas palavras de Benjamin Constant:<br />

L ib er d ad e d os an t igos:<br />

Consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias<br />

partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública<br />

sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros<br />

tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar<br />

julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão<br />

dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo<br />

um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em<br />

absolvê-los; mas, ao mesmo tempo em que consistia<br />

nisso o que os antigos chamavam liberdade, eles<br />

admitiam, como compatível com ela, a submissão<br />

completa do indivíduo à autoridade do todo. Não<br />

encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que<br />

vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas<br />

as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância.<br />

L ib er d ad e d os m<br />

od er n os:<br />

É para cada um o direito de não se submeter senão às<br />

leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado,<br />

nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da<br />

vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para<br />

cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu<br />

trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até<br />

de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e<br />

sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus<br />

passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros<br />

indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja<br />

para professar o culto que ele e seus associados<br />

preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e<br />

suas horas de maneira mais condizente com suas<br />

inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para<br />

cada um, de influir sobre a administração do governo,<br />

seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários,<br />

seja por representações, petições, reivindicações, às quais<br />

a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em<br />

consideração. (CONSTANT, De la liberte chez lês<br />

modernes. p. 495.)<br />

Montesquieu, em O espírito das leis, tenta demonstrar<br />

que regimes políticos como a democracia grega e a res<br />

publica romana, vão contra a natureza individualista<br />

humana e, portanto, somente através de um processo de<br />

educação cívica intensiva e contínua é que poderiam se<br />

tornar viáveis. Em contrapartida, ele sustenta que o<br />

homem moderno não estaria disposto a pagar esse preço<br />

para conquistar a liberdade política e por isso a<br />

monarquia constitucional seria a solução mais plausível,<br />

uma vez que não exige a virtude e tampouco a<br />

participação dos súditos na construção da esfera pública,<br />

mas limita os poderes do rei.<br />

J oh n St u ar t M ill: u m lib er al q u e d ialogav a com o<br />

socialism o<br />

Entre os liberais do século XIX, John Stuart Mill talvez<br />

tenha sido o único disposto a reconhecer e superar os<br />

95


06<br />

limites do individualismo e do utilitarismo. Mill<br />

apresenta características libertárias em sua concepção de<br />

sociedade, particularmente em sua crítica da tirania e das<br />

desigualdades, e não apenas no que se refere às<br />

desigualdades sociais, mas também quanto às<br />

desigualdades políticas, na defesa do sufrágio universal<br />

contra o voto censitário, no apoio ao cooperativismo,<br />

além de ter sido um dos pioneiros na defesa da<br />

emancipação da mulher.<br />

Sabe-se que Mill leu autores socialistas ingleses, como<br />

Owen e franceses como Fourier, Blanc e Saint-Simon e<br />

esteve aberto ao diálogo com as correntes que se<br />

opunham ao liberalismo e reivindicavam direitos sociais.<br />

No entanto, manteve-se fiel à defesa das liberdades<br />

individuais e ao princípio liberal da liberdade negativa,<br />

expresso na introdução de Sobre a liberdade.<br />

O U t ilit ar ism o d e M ill<br />

O liberalismo de John Stuart Mill tem no seu fundamento<br />

a moral utilitarista, para a qual a busca da felicidade está<br />

ligada à realização de formas elevadas de prazer –<br />

necessidades, desejos e interesses, e que não se reduz,<br />

portanto, às formas de prazer imanentes à vida animal.<br />

Para o utilitarismo, uma ação moral é considerada correta<br />

e útil se proporciona felicidade e incorreta e inútil se,<br />

pela ausência de prazer, ocasiona a infelicidade.<br />

Interessa-nos aqui, a forma como Mill equaciona seu<br />

utilitarismo individualista com a questão da sociabilidade<br />

necessária, que é para ele a referência mais importante<br />

para os níveis de felicidade individual.<br />

Considerando que a felicidade individual está<br />

relacionada à sociabilidade, à justiça, enquanto criação e<br />

proteção de direitos, ela configura-se, para Mill, na mais<br />

importante das virtudes e, para que ela se realize, é<br />

fundamental que haja igualdade, desde que essa se<br />

demonstre útil para a vida em sociedade. A esse respeito,<br />

Mill considera que:<br />

Todas as pessoas têm direito à igualdade de tratamento, a<br />

menos que alguma conveniência social reconhecida exija<br />

o contrário. Daí se segue que todas as desigualdades<br />

sociais, que tenham deixado de se considerar<br />

convenientes, assumam daqui por diante o caráter, não<br />

de mera inconveniência, mas de injustiça, e se mostrem<br />

tão tirânicas que as pessoas cheguem a se perguntar<br />

como foi possível algum dia suportá-las. (MILL, J.S. A<br />

liberdade. p. 275)<br />

A C r í t ica d e M ar x ao L ib er alism o<br />

Karl Marx (1818-1883), nos seus famosos escritos da<br />

juventude argumenta que a sociedade moderna, sob o<br />

domínio das forças cegas da religião, da economia e da<br />

política, move-se pela roda da fortuna, ao sabor do acaso<br />

e não pela intervenção virtuosa, que deveria ser o<br />

atributo maior do homem político. Esse processo faz<br />

parte da alienação do homem em relação a si mesmo, em<br />

relação ao seu trabalho e através dele, bem como em<br />

relação à vida política.<br />

Para o jovem Marx, o capitalismo, sendo uma doutrina<br />

da defesa dos interesses particulares e do individualismo<br />

egoísta, em detrimento dos interesses públicos, será visto<br />

como uma constante ameaça à dignidade humana.<br />

O Estado de direito burguês, na medida em que<br />

representa apenas os interesses de uma parcela da<br />

população, exercendo uma ação policial de controle<br />

sobre as demais classes da sociedade, é contra o bem<br />

comum, é uma ameaça às liberdades democráticas.<br />

O jovem Marx, dos primeiros escritos, entende que a<br />

verdadeira democracia só poderia nascer sobre os<br />

escombros desse Estado que não está a serviço do bem<br />

comum. Assim, se o individualismo egoísta é o espaço<br />

consagrado à fortuna, ao deixar fazer, à mão invisível do<br />

mercado, a virtude política proporcionada por uma<br />

democracia radical seria seu único antídoto. Ainda na<br />

juventude Marx defenderá que a reintegração do homem<br />

a si mesmo se daria através de um processo de superação<br />

que implicaria na abolição da propriedade privada e na<br />

instalação do comunismo.<br />

Sob r e M ar x e o M ar x ism o<br />

Marx, ao perceber que já contava com alguns seguidores<br />

de tendências dogmáticas, que começavam a cristalizar e<br />

divinizar o seu pensamento e fazer da sua filosofia uma<br />

espécie de religião, portanto, pouco afeitos à dialética,<br />

ironizou ao seu melhor estilo, que se aquelas pessoas<br />

eram marxistas, então ele próprio não era marxista.


Mas afinal, o que é o marxismo? É comum observarmos<br />

utilizações indiscriminadas do termo marxismo, de forma<br />

que tais utilizações, intencionais ou não, edificantes ou<br />

pejorativas, acabam tornando-se fontes de preconceitos,<br />

mitos e confusões que criam dificuldades adicionais e<br />

comprometedoras no estudo da obra de Marx. Contra<br />

esse contexto, o filósofo francês Michel Henry escreveu,<br />

com ironia, sobre a necessidade de uma leitura<br />

revolucionária de Marx, no sentido da superação da<br />

ignorância de sua obra e em busca de realidades<br />

perdidas, chegando a afirmar que “o marxismo é o<br />

conjunto dos contrassensos sobre Marx” (HENRY, M.<br />

1976, p. 9).<br />

Para evitarmos confusões acerca do termo m ar x ism o,<br />

vamos compreender um pouco da sua amplitude e<br />

complexidade:<br />

Entendeu-se por “marxismo”:<br />

(I) O pensamento de Marx, seja tomado em seu conjunto,<br />

ou sob o aspecto de sua evolução total, ou visando<br />

principalmente alguma de suas “fases”. Este pensamento<br />

inclui um método, uma série de pressupostos, um<br />

conjunto de ideias de tipos muito diversos e numerosas<br />

regras de aplicação, tanto teóricas como práticas;<br />

(II) Um grupo de doutrinas filosóficas, sociais,<br />

econômicas, políticas, etc. fundadas numa interpretação<br />

do marxismo e tendendo à sua sistematização. Este grupo<br />

de doutrinas tomou forma definida em Engels e foi<br />

transformado por Lênin, dando origem mais tarde ao<br />

chamado “marxismo ortodoxo”;<br />

(III) Uma variadíssima série de interpretações,<br />

procedentes de diversas épocas e formadas segundo<br />

tradições, temperamentos, circunstâncias históricas<br />

distintos etc. Podem ser incluídas neste item as<br />

interpretações de Marx que não se cristalizaram na forma<br />

mais ou menos monolítica que o marxismo adotou<br />

depois de Lênin na União Soviética; as interpretações de<br />

Marx que proliferaram uma vez rompido o marxismo<br />

ortodoxo antes citado; as que receberam o nome de<br />

“marxismo ocidental”; a prática do marxismo no<br />

pensamento de Mao-Tsé-Tung; as tentativas de<br />

revivificação do marxismo com base no retorno às fontes<br />

etc. Em alguns casos foram denominados “marxismo” os<br />

métodos, doutrinas e ideais políticos adotados em vários<br />

países e por numerosos grupos na época da luta contra o<br />

imperialismo e o colonialismo, tendo-se inclusive dado o<br />

nome de “marxismo” a todo programa político<br />

revolucionário. Evidentemente, recorreu-se ao marxismo<br />

de modo tão indiscriminado que com frequência o termo<br />

‘marxismo’ perdeu seu significado. Entretanto, não há<br />

dúvida de que o marxismo é um rio caudaloso, ao mesmo<br />

tempo ideológico e prático, capaz de diversificar-se de<br />

forma considerável e de suscitar constantes<br />

renascimentos e revivificações. Dicionário de <strong>Filosofia</strong><br />

Ferrater Mora, tomo III. pág. 1879 -1880.<br />

M ar x e a E m an cip aç ã o H u m an a<br />

Considerando as formas de alienação e dominação<br />

religiosa, política e econômica, pode-se dizer que a<br />

questão nuclear da filosofia política do Marx é a<br />

emancipação humana e que a consolidação dessa matriz<br />

do seu pensamento se dá através de uma <br />

exigência de que tal busca aconteça, concomitantemente,<br />

no plano das criações conceituais e da ação política<br />

transformadora.<br />

Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx expressa<br />

com clareza a sua idéia de que a emancipação humana se<br />

daria pelo reencontro do homem com ele mesmo. A<br />

superação da alienação passa, necessariamente, pelo<br />

rompimento dos elos de dominação do sistema<br />

capitalista, da propriedade privada e pela instalação do<br />

comunismo. “O comunismo é a supra-sunção<br />

(Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto<br />

estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano, e por<br />

isso enquanto apropriação efetiva da essência humana<br />

pelo e para o homem”. (MARX, K. Manuscritos<br />

econômico-filosóficos. p.105)<br />

A questão de Marx é que a alienação produzida pela<br />

propriedade privada na ideologia e nas formas de<br />

dominação do capitalismo separa o homem, enquanto<br />

indivíduo, da sua condição e consciência genérica e,<br />

portanto, da sua capacidade de construir uma vida<br />

política. Ora, sem a ação política, a liberdade individual<br />

torna-se uma impossibilidade ou, no máximo, toma a<br />

forma de uma ilusão.<br />

A emancipação só pode ser concebida em termos da<br />

conquista da igualdade. Nesse sentido, a liberdade<br />

política significa poder político do povo, em sua<br />

oposição ao poder do Estado de direito burguês.<br />

Marx faz a crítica ao Estado, sobretudo no que se refere<br />

ao formalismo jurídico. A igualdade é garantida na lei,<br />

mas a lei não se efetiva na prática. A objeção de Marx é<br />

que esse formalismo estatal que se apresenta, aliás, como<br />

meio de emancipação política, não passa de uma ilusão,<br />

16


26<br />

porque mantém o indivíduo alienado, porque não<br />

promove a esfera realmente pública e a cidadania.<br />

Vejamos como Marx define a questão da emancipação<br />

humana numa passagem famosa em A questão judaica:<br />

Toda emancipação constitui uma restituição do mundo<br />

humano e das relações humanas ao próprio homem.<br />

A emancipação política é a redução do homem, por um<br />

lado, o membro da sociedade civil, indivíduo<br />

independente e egoísta e, por outro lado, o cidadão, a<br />

pessoa moral.<br />

A emancipação humana só será plena quando o homem<br />

real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando<br />

como homem individual, na sua vida empírica, no<br />

trabalho e nas relações individuais, se tiver tornado um<br />

ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as<br />

suas próprias forças (forces propres) como forças<br />

sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força<br />

social como força política. (MARX, K. A questão<br />

judaica. p. 63)<br />

Feu er b ach e o C on ceit o d e A lien aç ã o<br />

A grande contribuição de Feuerbach à filosofia política, e<br />

particularmente a Marx, foi a sua teoria da alienação,<br />

construída a partir de uma crítica à religião cristã. Para<br />

compreender melhor esta questão, é importante que<br />

algumas passagens de sua obra sejam apresentadas e<br />

analisadas.<br />

A Essência do Cristianismo é uma crítica consistente,<br />

mas que não se pretende e não se constitui como uma<br />

desautorização da ideia do sagrado. Ao contrário, a<br />

estratégia feuerbachiana foi potencializar a ideia do<br />

sagrado e do religioso, com o objetivo de promover a<br />

substituição de Deus pelo homem, o que pode ser<br />

considerada uma tentativa extremamente ousada para a<br />

Alemanha protestante do século XIX.<br />

Segundo Feuerbach o verdadeiro fundamento do homem<br />

é apenas ele mesmo. Assim, o único fundamento<br />

absoluto de todo o pensamento humano é o homem como<br />

razão, como vontade, como coração.<br />

Neste sentido, ele argumenta que Deus é o homem que<br />

alienou a sua consciência e, portanto, a superação dessa<br />

condição de dominação tem como pressuposto a tomada<br />

de consciência da sua própria condição humana.<br />

O processo de alienação do homem é explicado por<br />

Feuerbach através de uma dialética da alienação. Na<br />

concepção feuerbachiana, o homem, ainda que através de<br />

modestas reflexões, é capaz de reconhecer em si mesmo<br />

a razão, a vontade e o coração e, mesmo reconhecendo<br />

sua incapacidade de ser perfeito nestas faculdades, sabe<br />

bem o que significam a perfeição da razão, da vontade e<br />

do coração, ao menos em termos de potencialidade. Nas<br />

palavras de Feuerbach, “a essência divina, pura, perfeita,<br />

sem defeitos é a consciência de si do entendimento, a<br />

consciência que o entendimento tem da sua própria<br />

perfeição.” (FEUERBACH, A essência do Cristianismo.<br />

p.42)<br />

Não podendo atingir a perfeição absoluta, mas<br />

desejando-a profundamente, o homem cria a<br />

representação da perfeição em um ser Absoluto Deus,<br />

que passa a ser potencialmente a única possibilidade de<br />

realização dos seus sonhos de perfeição inatingíveis.<br />

Para Feuerbach, “o pensamento do ser absolutamente<br />

perfeito deixa o homem frio e vazio, porque ele sente e<br />

apercebe-se do fosso entre si e esse ser, isto é, contradiz<br />

o coração humano.”(Ibid. p. 49) A essência e o potencial<br />

<br />

passam a ser domínios de um imaginário divinizado e<br />

exterior ao homem.<br />

Enfraquecido o homem, a religião se constitui num meio,<br />

através do qual ele pode projetar a realização dos seus<br />

sonhos de liberdade na totalidade absoluta de Deus.<br />

Como diz Feuerbach, “na religião, o homem quer<br />

satisfazer-se em Deus.”(Ibid.,45) No entanto, o preço<br />

dessa conquista se revela na cisão entre o homem e a sua<br />

consciência de si, a alienação da sua essência humana.<br />

Para Feuerbach o Deus do cristianismo, do qual o<br />

homem é servidor, tem sua origem na própria<br />

consciência humana. A essência de Deus é, portanto, o<br />

próprio homem. Logo, se Deus é a divindade e a essência<br />

da liberdade absoluta, só o é porque o homem também é<br />

divino e livre, ou porque pretende sê-lo. Na medida em<br />

que a liberdade e a perfeição são valores humanos e as<br />

esperanças depositadas na religião não se traduzem em<br />

conquistas concretas na direção desses objetivos, a<br />

decepção afasta o homem da crença religiosa e abre<br />

espaço para outras possibilidades, como a vida política.<br />

A lien aç ã o e C r í t ica ao E st ad o d e D ir eit o B u r gu ê s n o<br />

J ov em M ar x<br />

O trabalho alienado faz parte de um processo de<br />

dominação imposto aos sujeitos, indivíduos, que passam<br />

a ser tratados apenas como meios para a realização alheia<br />

e não como fins em si, são tratados como instrumentos e


não como pessoas e, por fim, são desapropriados da sua<br />

produção.<br />

“O trabalho alienado faz parte de um processo de<br />

dominação imposto aos sujeitos, indivíduos, que passam<br />

a ser tratados apenas como meios para a realização alheia<br />

e não como fins em si, são tratados com instrumentos e<br />

não como pessoas e, por fim, são” a objeção de Marx ao<br />

Estado de direito burguês, a um certo republicanismo<br />

formalista, parte da sua conclusão de que a sociedade<br />

civil não pode sustentar-se num Estado que se estrutura<br />

na alienação ou que apenas reivindica a ideia de<br />

liberdade, mas sem interesse ou condições de efetivá-la.<br />

E, se há interesse na constituição de um universal de<br />

emancipação e liberdade, ele se dissolve nos<br />

particularismos do modo de produção capitalista. Por<br />

isso, a realização da liberdade, para além do formalismo<br />

jurídico, só pode realizar-se se a esfera de produção<br />

estiver sujeita ao controle daqueles que produzem. Esse<br />

seria, segundo Marx, o primeiro passo para a conquista<br />

da emancipação.<br />

Um ser só se considera primeiramente como<br />

independente tão logo se sustente sobre os próprios pés,<br />

e só se sustenta primeiramente sobre os próprios pés tão<br />

logo deva sua existência a si mesmo. Um homem que<br />

vive dos favores de outro se considera como um ser<br />

dependente. Mas eu vivo completamente dos favores de<br />

outro quando lhes devo não apenas a manutenção da<br />

minha vida, mas quando ele, além disso, ainda criou a<br />

minha vida; quando ele é a fonte da minha vida, e minha<br />

vida tem necessariamente um tal fundamento fora de si<br />

quando ela não é minha própria criação. A criação é,<br />

portanto, uma representação (Vorstellung) muito difícil<br />

de ser eliminada da consciência do povo. O ser-por-simesmo<br />

(Durchsichselbstsein) da natureza e do homem é<br />

inconcebível para ele porque contradiz todas as<br />

probabilidades da vida prática. (MARX, K. Manuscritos<br />

econômico-filosóficos. p.113)<br />

Nesse sentido, Marx só concebe a possibilidade da<br />

existência de uma ética a partir da superação do<br />

individualismo egoísta e possessivo, a partir da<br />

superação da dicotomia entre indivíduo (burguês) e o<br />

cidadão que permite ora a dominação das forças egoístas<br />

da sociedade civil que isolam o indivíduo da sua essência<br />

comunitária, ora a dominação de uma entidade abstrata –<br />

o Estado -, desvinculada da vida real dos homens. Em<br />

ambas situações, ocorre a negação da liberdade no<br />

sentido republicano. Portanto, a política marxiana<br />

pressupõe a existência efetiva da res publica.<br />

Nos jogos de dominação, busca-se confundir o<br />

desenvolvimento de um pensamento político e de uma<br />

ação cidadã, que devem ser constituídos a partir de<br />

mediações questionadoras e valores éticos, com a<br />

simples retórica vazia, ou com a mera assimilação e<br />

reprodução de uma competência discursiva,<br />

supostamente democrática, mas cujo objetivo é tão<br />

somente a dominação e, portanto, a supressão das<br />

liberdades.<br />

Para alguns autores, o problema de Marx é a<br />

desconsideração do papel do Estado como um meio de<br />

constituição e promoção da liberdade. Mas, será que<br />

Marx, definitivamente, desconsidera o papel do Estado,<br />

ou estaria ele deslocando o eixo do político para além<br />

dos limites do Estado formal – pensando na politização<br />

da sociedade civil, exercendo a soberania do Estado, para<br />

então constituir um Estado verdadeiramente<br />

democrático?<br />

R ep u b lican ism o e a L ib er d ad e an t es d o L ib er alism o<br />

O republicanismo é uma corrente bem mais antiga que o<br />

liberalismo, e tem a sua origem na Roma antiga, ligada<br />

fundamentalmente ao nome de Cícero (106-43 a.C.),<br />

autor de Da República. Mais tarde, passada toda a Idade<br />

Média, ele ressurge na Itália renascentista e seu mais<br />

destacado nome é Maquiavel (1469-1527), que escreveu<br />

dentre outras obras, o famoso Príncipe e Discursos sobre<br />

a primeira década de Tito Lívio e cujo pensamento e<br />

trabalho teve grande influência na constituição das<br />

repúblicas do norte da Itália. Pode-se dizer que o<br />

republicanismo dominou a cena política europeia até o<br />

século XVIII, quando surgiu o liberalismo com a<br />

promessa de estar mais bem adaptado às características e<br />

necessidades do mundo moderno.<br />

As principais características do republicanismo estão<br />

ligadas à própria definição da res publica o regime da<br />

coisa pública, do bem público que se sobrepõe aos<br />

interesses privados: é o regime da abnegação cívica; da<br />

racionalidade que prevalece sobre os desejos e afetos, da<br />

virtude que controla a fortuna, da ética na política, do<br />

<br />

<br />

eles mesmos criaram ou de alguma forma participaram;<br />

são essas leis que garantem a liberdade, porque limitam<br />

poderes; por fim, por se tratar de um regime da intensa<br />

participação dos cidadãos, requer uma educação laica,<br />

intensiva e extensiva.<br />

36


R E FE R Ê N C I A :<br />

BOBBIO, N.; VIROLI, M. D iá logo em t or n o d a R ep ú b lica : os grandes temas da política e da cidadania. Tradução de<br />

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Boitempo, 2004.<br />

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PETTIT, P. R ep u b lican ism : A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press, 1997.<br />

46


FI L O SO FI A C O N T E M P O R Â N E A<br />

A s p r in cip ias cor r en t es<br />

As principais correntes da <strong>Filosofia</strong> Contemporânea são<br />

esboçadas por Padovani; Castagnola (1970):<br />

1 ) O iluminismo representa uma síntese prática,<br />

divulgadora, de empirismo e racionalismo. Kant<br />

representa-lhe a síntese crítica especulativa, fundindo os<br />

dois fenomenismos em fenomenismos superior, daí<br />

surgindo o idealismo, que em Kant toma o nome<br />

de criticismo. Neste afirma-se, explicita e<br />

sistematicamente, a concepção, como dissemos, é a<br />

significação profunda do pensamento moderno e<br />

contemporâneo, e culmina em Hegel.<br />

Pablo Picasso (1881 – 1973).<br />

Penrose collection, London, UK<br />

Entende-se por <strong>Filosofia</strong> Contemporânea o período que<br />

se estende de meados do século XIX até nossos dias, é o<br />

período mais complexo de definir, afinal está em<br />

construção, e não temos o distanciamento afetivo e<br />

cronológico para nos ajudar a entendê-lo.<br />

A(s) <strong>Filosofia</strong>(s) do século XX trouxe(ram) uma série de<br />

desenvolvimentos teóricos contrários em relação ao que<br />

se refere a validade do conhecimento através de<br />

conceitos e abstrações absolutas, isto é, afirmações<br />

universais ou leis gerais. As certezas decorrentes do<br />

pensamento clássico foram derrubadas, embora<br />

permaneçam como problemas sociais, econômicos e<br />

científicos, juntamente com formas novas de conflito e<br />

reivindicações concernentes à organização geopolítica e<br />

epistêmica do sistema-mundo contemporâneo. O que é a<br />

lógica e o que é a ética? São novas perguntas que<br />

existem a partir da filosofia do século XX.<br />

Entretanto, essa filosofia é demasiadamente diferente<br />

para que se possa fixar um padrão, que não seja uma<br />

série de tentativas de reformar, preservar ou alterar os<br />

limites antes concebidos. As formas e caminhos para<br />

estes empreendimentos são diversos e distintos. Contudo,<br />

suponhamos que seja essencial uma unidade de sentido,<br />

diríamos que estas filosofias contestam princípios da<br />

ciência moderna (aproximadamente do séc. XVI ao séc.<br />

XX).<br />

2 ) Ao idealismo (primeira metade do século XIX) opõese,<br />

no mesmo século, a filosofia espiritualista –<br />

tradicionalismo e ontologismo: tentativa desafortunadas<br />

para restaurar os valores supremos do espírito humano.<br />

3 ) Contra o idealismo se insurge também (na segunda<br />

metade do século XIX) o positivismo. Este se manifesta<br />

em oposição ao primeiro, da mesma maneira que, antes<br />

de Kant, o empirismo se manifestava em oposição ao<br />

racionalismo. Entretanto, como o empirismo e o<br />

racionalismo, no fundo, expressões de um fenomenismo<br />

comum, assim o positivismo representa a mesma<br />

exigência imanentista do idealismo, mais plenamente<br />

atualizada, porém, mediante uma aderência maior ao<br />

campo concreto dos fatos.<br />

4 ) O positivismo declina entre os fins do século [XIX] e<br />

os princípios do atual [XX]. Neste tempo aparecem e se<br />

afirmam várias tendências filosóficas, que, no conjunto,<br />

se denominam filosofias do século XX. Não obstante a<br />

sua variedade, tais tendências pressupõem, geralmente, a<br />

concepção imanentista e humanista moderna. Vão-se<br />

orientando para um ceticismo e um pessimismo<br />

profundos, especialmente perante a falência prática,<br />

moral, política das ideologias dos filósofos<br />

contemporâneos.<br />

5 ) As malogradas tentativas da filosofia espiritualista do<br />

século XIX, e o fracasso teorético das correntes<br />

filosóficas imanentistas determinaram a volta das mais<br />

profundas inteligências do mundo contemporâneo,<br />

especialmente neste últimos tempos, à filosofia helênicocristã,<br />

justamente definida a filosofia perene do espírito<br />

humano e da inteligência. Essa metafísica<br />

clássica (chamada também neotomismo, filosofia<br />

56


acional, filosofia aristotélico-tomista) encerra em suas<br />

fileiras, a cada dia mais extensas, os mais eminentes<br />

pensadores do mundo filosófico contemporâneo.<br />

À guisa de introdução desse tópico, pode-se afirmar que<br />

a filosofia contemporânea do século XIX, traz em seu<br />

rol, uma riqueza imensa de escolas e pensamentos que<br />

vão do romantismo alemão - Schlegel (1772-1829),<br />

Hörlerlin (1770-1843), Schiller (1759-1805);<br />

ao idealismo – Fichte (162-1813), Schelling (1775-<br />

1854), Hegel (1770-1831); utilitarismo inglês - Jeremy<br />

Bentahm (1748-1832), Stuart Mill (1806-<br />

1873); positivismo de Comte (1798-<br />

1857); pragmatismo de Charles Peirce (1839-1914) e<br />

William James (1842-1910), o materialismo dialético -<br />

Marx (1818-1883), Engels (1820-1895); as posturas de<br />

Schopenhauer (1788-1860), Kierkegaard (1813-1855) e<br />

Nietzsche (1844-1900) contra o racionalismo.<br />

Na filosofia contemporânea do século XX, com uma<br />

manifestação poderosa surge a fenomenologia de Husserl<br />

(1859-1938); a hermenêutica de Heidegger (1889-1976);<br />

as filosofias da existência - Gabriel Marcel(1889-1973),<br />

Karl Jaspers (1883-1969), Jean Paul Sartre (1905-1980);<br />

a Escola de Frankfurt – Horkheimer ( 1895-1973),<br />

Adorno (1903-1969), Benjamin (1892-1940), Marcuse<br />

(1898-1979) e Habermas(1929-); o estruturalismo de<br />

Lévi-Strauss (1908-2009) e Michel Foucault (1926-<br />

1984) (considerado por alguns como pós-estruturalista e<br />

pós-moderno).<br />

N iet z sch e e a C r í t ica aos M<br />

od elos E st ab elecid os<br />

As ideias-chave de Nietzsche incluíam a dicotomia<br />

apolíneo/dionisíaca, o perspectivismo, a vontade de<br />

poder, a "morte de Deus", o Übermensch (Além-<br />

Homem) e eterno retorno. Sua filosofia central é a ideia<br />

de "afirmação da vida", que envolve questionamento de<br />

qualquer doutrina que drene uma expansiva de energias,<br />

porém socialmente predominantes essas ideias poderiam<br />

ser. Seu questionamento radical do valor e da<br />

objetividade da verdade tem sido o foco de extenso<br />

comentário e sua influência continua a ser substancial,<br />

especialmente na tradição filosófica<br />

continental compreendendo existencialismo, pósmodernismo<br />

e pós-estruturalismo. Suas ideias de<br />

superação individual e transcendência além da estrutura e<br />

contexto tiveram um impacto profundo sobre pensadores<br />

do final do século XX e início do século XXI, que<br />

usaram estes conceitos como pontos de partida para o<br />

desenvolvimento de suas filosofias. Mais recentemente,<br />

as reflexões de Nietzsche foram recebidas em várias<br />

abordagens filosóficas que se movem além<br />

do humanismo, por exemplo, o transhumanismo.<br />

A cultura ocidental e suas religiões, assim como<br />

a moral judaico-cristã, foram temas comuns em suas<br />

obras. Nietzsche se apresenta como alvo de muitas<br />

críticas na história da filosofia moderna, isto porque,<br />

primariamente, há certas dificuldades de entendimento<br />

na forma de apresentação das figuras e/ou categorias ao<br />

leitor ou estudioso, causando confusões devido<br />

principalmente aos paradoxos dos conceitos de realidade<br />

ou verdade.<br />

Nietzsche, sem dúvida, considera o cristianismo e<br />

o budismo como "as duas religiões da decadência",<br />

embora ele afirme haver uma grande diferença nessas<br />

duas concepções. O budismo, para Nietzsche, "é cem<br />

vezes mais realista que o cristianismo". Religiões que<br />

aspiram ao nada, cujos valores dissolveram a<br />

mesquinhez histórica. Não obstante, também se auto<br />

intitula ateu: "Para mim o ateísmo não é nem uma<br />

consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo<br />

por instinto" (Ecce Homo, pt.II, af.1)<br />

Nietzsche criticou essa moral que leva à revolta dos<br />

indivíduos inferiores, das classes subalternas e escravas<br />

contra a classe superior e aristocrática que, por um lado,<br />

pela adoção dessa mesma moral, sofre de má consciência<br />

e cria a ilusão de que mandar é por si mesmo é adotar<br />

essa moral.<br />

A vida só se pode conservar e manter-se através de<br />

imbricações incessantes entre os seres vivos, através da<br />

luta entre vencidos que gostariam de sair vencedores e<br />

vencedores que podem a cada instante ser vencidos e,<br />

por vezes, já se consideram como tais. Neste sentido, a<br />

vida é vontade de poder ou de domínio ou de potência.<br />

Vontade essa que não conhece pausas e, por isso, está<br />

sempre criando novas máscaras para se esconder do<br />

apelo constante e sempre renovado da vida; pois, para<br />

Nietzsche, a vida é tudo e tudo se esvai diante da vida<br />

humana. Porém as máscaras, segundo ele, tornam a vida<br />

mais suportável, ao mesmo tempo em que a deformam,<br />

mortificando-a à base de cicuta e, finalmente, ameaçando<br />

destruí-la.<br />

Não existe vida média, segundo Nietzsche, entre<br />

aceitação da vida e renúncia. Para salvá-la, é mister<br />

arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como é: não<br />

para sofrê-la ou aceitá-la com resignação, mas para<br />

restituir-lhe o seu ritmo exaltante, o seu merismático<br />

júbilo.<br />

6


O homem é um filho do "húmus" e é, portanto, corpo e<br />

vontade não somente de sobreviver, mas de vencer. Suas<br />

verdadeiras "virtudes" são: o orgulho, a alegria, a saúde,<br />

o amor sexual, a inimizade, a veneração, os bons hábitos,<br />

a vontade inabalável, a disciplina da intelectualidade<br />

superior, a vontade de poder. Mas essas virtudes são<br />

privilégios de poucos, e é para esses poucos que a vida é<br />

feita. De fato, Nietzsche é contrário a qualquer tipo<br />

de igualitarismo e, principalmente, ao disfarçado<br />

legalismo kantiano, que atenta para o bom senso através<br />

de uma lei inflexível, ou seja, o imperativo categórico:<br />

"Proceda em todas as suas ações de modo que a norma<br />

de seu proceder possa tornar-se uma lei universal".<br />

Essas críticas se deveram à hostilidade de Nietzsche em<br />

face do racionalismo, que logo refutou como pura<br />

irracionalidade. Para ele, Kant nada mais é do que um<br />

fanático da moral, uma tarântula catastrófica.<br />

Nietzsche era um crítico das "ideias modernas", da vida e<br />

da cultura moderna, do neonacionalismo alemão. Para<br />

ele, os ideais modernos como democracia, socialismo,<br />

igualitarismo, emancipação feminina não eram senão<br />

expressões da decadência do "tipo homem". Por estas<br />

razões, é, por vezes, apontado como um precursor<br />

da pós-modernidade.<br />

O I d ealism o d e H egel<br />

Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo<br />

fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vértice<br />

metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico,<br />

concebendo a realidade como vir-a-ser,<br />

desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é racionalizado<br />

por Hegel, elevado a processo dialético; e este processo<br />

dialético não é um movimento a quo adi quod, e sim um<br />

processo circular, emanentista.<br />

Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stutgart, em<br />

1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos<br />

problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo<br />

criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao<br />

historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de<br />

Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até<br />

combatê-los quando professor nas universidades de Jena,<br />

Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade lecionou<br />

até há morte, adquirindo grande renome e exercendo<br />

vasta influência. Faleceu em 1831, vítima de cólera.<br />

Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários e<br />

críticos, para favorecer as tendências absolutistas e<br />

intransigentes do estado prussiano.<br />

Em seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo;<br />

alguns o ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von<br />

Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da<br />

imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era ao mesmo<br />

tempo suficientemente prudente e suficientemente<br />

hermético para que se tornasse muito difícil fazer-lhe<br />

acusações precisas dessa ordem! O poeta Heinrich<br />

Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823, conta, no<br />

entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um<br />

estudante que lhe falava do Paraíso: "O senhor então<br />

precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe<br />

enferma e porque não envenenou ninguém!" Em todo<br />

caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do<br />

pensador oficial da monarquia escondia um grande poder<br />

explosivo!<br />

Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia<br />

da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A razão<br />

aqui não é apenas, como em Kant, o entendimento<br />

humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo<br />

as quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade<br />

profunda das coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não<br />

só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de<br />

ser das coisas: "O racional é real e o real é racional".<br />

Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo<br />

idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo<br />

do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, em<br />

definitivo, Ideia, Espírito. Sua filosofia representa, ao<br />

mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do<br />

conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua<br />

totalidade que é significativo e cada acontecimento<br />

particular no mundo só tem sentido finalmente em<br />

função do Absoluto do qual não é mais do que um<br />

aspecto ou um momento.<br />

Hegel, porém se distingue de Spinoza e surge para nós<br />

como um filósofo essencialmente moderno, pois, para<br />

ele, o mundo que manifesta a Ideia não é uma natureza<br />

semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia<br />

que a leitura dos jornais era "sua prece matinal<br />

cotidiana", como todos os seus contemporâneos, muito<br />

76


meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra<br />

que as estruturas sociais, assim como os pensamentos<br />

dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no<br />

decurso da história. O que há de original em seu<br />

idealismo é que, para Hegel, a ideia se manifesta como<br />

processo histórico: "A história universal nada mais é do<br />

que a manifestação da razão".<br />

As principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do<br />

Espírito; A Lógica; A Enciclopédia das Ciências<br />

Filosóficas; A <strong>Filosofia</strong> do Direito. Foi um gênio<br />

poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua<br />

capacidade sistemática, tanto assim que se pode<br />

considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino do<br />

pensamento contemporâneo. No entanto, frequentemente<br />

deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico<br />

do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera<br />

este por interesses práticos e políticos.<br />

É preciso compreender também que a história é um<br />

progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não é senão a<br />

história do Espírito universal que se desenvolve e se<br />

realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a<br />

plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O<br />

absoluto, diz Hegel, só no final será o que ele é na<br />

realidade". O panteísmo de Spinoza identificava Deus<br />

com a natureza: Deus vive natura. O panteísmo<br />

hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o<br />

que é - ao menos só é parcial e muito provisoriamente o<br />

que atualmente é - Deus é o que se realizará na História.<br />

(Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na filosofia de<br />

Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para<br />

Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma,<br />

se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia".<br />

Consideremos a história da terra. De início só existem<br />

minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não<br />

temos a impressão de que seres cada vez mais<br />

complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais<br />

autônomos surgem no Universo? O Espírito, de início<br />

adormecido, dissimulado e como que estranho a si<br />

mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais<br />

manifestamente como ordem, como liberdade, logo<br />

como consciência. Esse progresso do Espírito continua e<br />

se concluirá através da história dos homens. Cada povo<br />

cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar<br />

uma etapa desse progresso do Espírito. O Espírito<br />

humano é de início uma consciência confusa, um espírito<br />

puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois, ele<br />

consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de<br />

civilizações, de instituições organizadas. Tal é o espírito<br />

objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o<br />

mundo da cultura". Enfim, o Espírito se descobre mais<br />

claramente na consciência artística e na consciência<br />

religiosa para finalmente apreender-se na <strong>Filosofia</strong><br />

(notadamente na filosofia de Hegel, que pretende<br />

totalizar sob sua alçada todas as outras filosofias) como<br />

Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de<br />

todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final,<br />

totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz<br />

Hegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo).<br />

Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofia<br />

puramente imanentista, Deus só se realiza na história.<br />

Em outras palavras, a forma de civilização que triunfa a<br />

cada etapa da história é aquela que, naquele momento,<br />

melhor exprime o Espírito. Após ter saudado em<br />

Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no<br />

estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita<br />

do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles<br />

que acham que a força não "oprime" o direito (essa<br />

fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada<br />

significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso<br />

na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e<br />

que a virtude, como ele diz, "exprime o curso do<br />

mundo".<br />

Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação<br />

da Razão com o Devir histórico é absolutamente<br />

paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma<br />

proposição fica demonstrada quando é reduzida,<br />

identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai<br />

do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, é o<br />

domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente<br />

do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razão à história,<br />

por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente,<br />

que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à<br />

história seria negar a história, recusar o tempo. Ora,<br />

contrariando tudo isso, o racionalismo de Hegel coloca o<br />

devir, a história, em primeiro plano. Como isso é<br />

possível?<br />

É possível porque Hegel concebe um processo racional<br />

original - o processo dialético - no qual a contradição não<br />

mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao<br />

contrário, se transforma no próprio motor do<br />

pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da<br />

história, já que esta última não é senão o Pensamento que<br />

se realiza. Repudiando o princípio da contradição de<br />

Aristóteles e de Leibniz, em virtude do qual uma coisa<br />

não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a<br />

contradição no próprio núcleo do pensamento e das<br />

coisas simultaneamente. O pensamento não é mais<br />

estático, ele procede por meio de contradições superadas,<br />

da tese à antítese e, daí, à síntese, como num diálogo em<br />

que a verdade surge a partir da discussão e das<br />

86


contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem<br />

se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada,<br />

transformada em outra que não ela mesma ("alienada").<br />

A primeira proposição encontrar-se-á finalmente<br />

transformada e enriquecida numa nova fórmula que era,<br />

entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação"<br />

(síntese).<br />

96


R E FE R Ê N C I A S:<br />

DURANT, Will. História da <strong>Filosofia</strong> - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição,<br />

1926.<br />

FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da <strong>Filosofia</strong>.<br />

PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da <strong>Filosofia</strong>, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição,<br />

1974.<br />

VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da <strong>Filosofia</strong> Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª<br />

edição, 1980.<br />

JAEGER, Werner. Paidéia - A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.<br />

Coleção Os Pensadores. Georg Wilhelm Friedrich Hegel - Estética: A Idéia e o Ideal - Estética: O Belo Artístico ou o Ideal,<br />

Nova Cultural, São Paulo, 1999.<br />

07


O P O SI T I V I SM O<br />

dominaram o mesmo século XIX. Sendo grandemente<br />

valorizada a atividade econômica, produtora de bens<br />

materiais, é natural se procure uma base filosófica<br />

positiva, naturalista, materialista, para as ideologias<br />

econômico-sociais.<br />

Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue<br />

o positivismo, que ocupa, mais ou menos, a segunda<br />

metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo<br />

civilizado. O positivismo representa uma reação contra o<br />

apriorismo, o formalismo, o idealismo, exigindo maior<br />

respeito para a experiência e os dados positivos.<br />

Entretanto, o positivismo fica no mesmo âmbito<br />

imanentista do idealismo e do pensamento moderno em<br />

geral, defendendo, mais ou menos, o absoluto do<br />

fenômeno. "O fato é divino", dizia Ardigò. A diferença<br />

fundamental entre idealismo e positivismo é a seguinte: o<br />

primeiro procura uma interpretação, uma unificação da<br />

experiência mediante a razão; o segundo, ao contrário,<br />

quer limitar-se à experiência imediata, pura, sensível,<br />

como já fizera o empirismo. Daí a sua pobreza filosófica,<br />

mas também o seu maior valor como descrição e análise<br />

objetiva da experiência - através da história e da ciência -<br />

com respeito ao idealismo, que alterava a experiência, a<br />

ciência e a história. Dada essa objetividade da ciência e<br />

da história do pensamento positivista, compreende-se<br />

porque elas são fecundas no campo prático, técnico,<br />

aplicado.<br />

Além de ser uma reação contra o idealismo, o<br />

positivismo é ainda devido ao grande progresso das<br />

ciências naturais, particularmente das biológicas e<br />

fisiológicas, do século XIX. Tenta-se aplicar os<br />

princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia,<br />

como resolvedora do problema do mundo e da vida, com<br />

a esperança de conseguir os mesmos fecundos<br />

resultados. Enfim, o positivismo teve impulso, graças ao<br />

desenvolvimento dos problemas econômico-sociais, que<br />

Gnosiologicamente, o positivismo admite, como fonte<br />

única de conhecimento e critério de verdade, a<br />

experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis.<br />

Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação,<br />

justificação transcendente ou imanente, da experiência.<br />

A filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização<br />

das ciências. A lei única e suprema, que domina o mundo<br />

concebido positivisticamente, é a evolução necessária de<br />

uma indefectível energia naturalista, como resulta das<br />

ciências naturais.<br />

Dessas premissas teoréticas decorrem necessariamente as<br />

concepções morais hedonistas e utilitárias, que florescem<br />

no seio do positivismo. E delas dependem, mais ou<br />

menos, também os sistemas político-econômico-sociais,<br />

florescidos igualmente no âmbito natural do positivismo.<br />

Na democracia moderna - que é a concepção política,<br />

em que a soberania é atribuída ao povo, à massa - a<br />

vontade popular se manifesta através do número, da<br />

quantidade, da enumeração material dos votos (sufrágio<br />

universal). Oliberalismo, que sustenta a liberdade<br />

completa do indivíduo - enquanto não lesar a liberdade<br />

alheia - sustenta também a livre concorrência econômica<br />

através da lida mecânica, do conflito material das forças<br />

econômicas. Para o socialismo, enfim, o centro da vida<br />

humana está na atividade econômica, produtora de<br />

bens materiais, e a história da humanidade é acionada<br />

por interesses materiais, utilitários, econômicos<br />

(materialismo histórico), e não por interesses espirituais,<br />

morais e religiosos.<br />

O positivismo do século XIX pode semelhar ao<br />

empirismo, ao sensismo (e ao naturalismo) dos séculos<br />

XVII e XVIII, também pelo país clássico de sua floração<br />

(a Inglaterra) e porquanto reduz, substancialmente, o<br />

conhecimento humano ao conhecimento sensível, a<br />

metafísica à ciência, o espírito à natureza, com as<br />

relativas conseqüências práticas. Diferencia-se, porém,<br />

desses sistemas por um elemento característico: o<br />

conceito de vir-a-ser, de evolução, considerada como lei<br />

fundamental dos fenômenos empíricos, isto é, de todos<br />

os fatos humanos e naturais. Tal conceito representa um<br />

equivalente naturalista do historicismo romântico da<br />

17


primeira metade do século XIX, com esta diferença,<br />

entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como<br />

desenvolvimento racional, teológico, ao passo que o<br />

positivismo o concebe como evolução, por causas.<br />

Através de um conflito mecânico de seres e de forças,<br />

mediante a luta pela existência, determina-se uma<br />

seleção natural, uma eliminação do organismo mais<br />

imperfeito, sobrevivendo o mais perfeito. Daí acreditar o<br />

positivismo firmemente no progresso - como nele já<br />

acreditava o idealismo. Trata-se, porém, de um progresso<br />

concebido naturalisticamente, quer nos meios quer no<br />

fim, para o bem-estar material.<br />

Mas, como no âmbito do idealismo se determinou uma<br />

crítica ao idealismo, igualmente, no âmbito do<br />

positivismo, a única realidade existente, o cognoscível, é<br />

a realidade física, o que se pode atingir cientificamente.<br />

Portanto, nada de metafísica e filosofia, nada de espírito<br />

e valores espirituais. No entanto, atinge a ciência<br />

fielmente a sua realidade, que é a experiência? E a<br />

ciência positivista é pura ciência, ou não implica uma<br />

metafísica naturalista inconsciente e, involuntariamente,<br />

discutível pelo menos tanto quanto a metafísica<br />

espiritualista? Nos fins do século passado e nos<br />

princípios deste século se determina uma crise interior da<br />

ciência mecaniscista, ideal e ídolo do positivismo, para<br />

dar lugar a outras interpretações do mundo natural no<br />

âmbito das próprias ciências positivas. Daí uma revisão e<br />

uma crítica da ciência por parte dos mesmos cientistas,<br />

que será uma revisão e uma crítica do positivismo.<br />

Nessa crítica e vitória sobre o positivismo, pode-se<br />

distinguir duas fases principais: uma negativa, de crítica<br />

à ciência e ao positivismo; outra positiva, de<br />

reconstrução filosófica, em relação com exigências mais<br />

ou menos metafísicas ou espiritualistas.<br />

A u gu st o C om<br />

t- e V id a e O b r as<br />

Estudante da Politécnica aos 16 anos, Comte é nomeado<br />

em 1832 explicador de análise e de mecânica nessa<br />

mesma escola e, depois, em 1837, examinador de<br />

vestibular. Ver-se-á retirado desta última função em<br />

1844 e de seu posto de explicador em 1851. Apesar de<br />

seus reiterados pedidos, não obterá o desejado cargo de<br />

professor da Politécnica, nem mesmo a cátedra de<br />

história geral das ciências positivas no Collège de<br />

France, que quisera criar em benefício próprio. A obra de<br />

Comte guarda estreitas relações com os acontecimentos<br />

de sua vida. Dois encontros capitais presidem as duas<br />

grandes etapas desta obra. Em 1817, ele conhece H. de<br />

Saint-Simon: O Organizador, o Sistema Industrial, e<br />

concebe, a partir daí, a criação de uma ciência social e de<br />

uma política científica. Já de posse, desde 1826, das<br />

grandes linhas de seu sistema, Comte abre em sua casa,<br />

rua do Faubourg Montmartre, um Curso de filosofia<br />

positiva - rapidamente interrompido por uma depressão<br />

nervosa - (que lhe vale ser internado durante algum<br />

tempo no serviço de Esquirol). Retoma o ensino em<br />

1829. A publicação do Curso inicia-se em 1830 e se<br />

distribui em 6 volumes até 1842. Desde 1831 Comte<br />

abrirá, numa sala da prefeitura do 3.° distrito, um curso<br />

público e gratuito de astronomia elementar destinado aos<br />

"operários de Paris", curso este que ele levaria avante por<br />

sete anos consecutivos. Em 1844 publica o prefácio do<br />

curso sob o título: Discurso dobre o espírito positivo.<br />

É em outubro de 1844 que se situa o segundo encontro<br />

capital que vai marcar uma reviravolta na filosofia de<br />

Augusto Comte. Trata-se da irmã de um de seus alunos,<br />

Clotilde de Vaux, esposa abandonada de um cobrador de<br />

impostos (que fugira para a Bélgica após algumas<br />

irregularidades financeiras). Na primavera de 1845,<br />

nosso filósofo de 47 anos declara a esta mulher de 30 seu<br />

amor fervoroso. "Eu a considero como minha única e<br />

verdadeira esposa não apenas futura, mas atual e eterna".<br />

Clotilde oferece-lhe sua amizade. É o "ano sem par" que<br />

termina com a morte de Clotilde a 6 de abril de 1846.<br />

Comte sente então sua razão vacilar, mas entrega-se<br />

corajosamente ao trabalho. Entre 1851 e 1854 aparecem<br />

os enormes volumes do Sistema de política<br />

positiva ou Tratado de sociologia que institui a religião<br />

da humanidade. O último volume sobre o Futuro<br />

humano prevê uma reformulação total da obra sob o<br />

título de Síntese Subjetiva. Desde 1847 Comte<br />

proclamou-se grande sacerdote da Religião da<br />

Humanidade. Institui o "Calendário positivista" (cujos<br />

santos são os grandes pensadores da história), forja<br />

divisas "Ordem e Progresso", "Viver para o<br />

próximo"; "O amor por princípio, a ordem por base, o<br />

progresso por fim", funda numerosas igrejas positivistas<br />

(ainda existem algumas como exemplo no Brasil). Ele<br />

morre em 1857 após ter anunciado que "antes do ano de<br />

1860" pregaria "o positivismo em Notre-Dame como a<br />

única religião real e completas".<br />

Comte partiu de uma crítica científica da teologia para<br />

terminar como profeta. Compreende-se que alguns<br />

tenham contestado a unidade de sua doutrina,<br />

notadamente seu discípulo Littré, que em 1851 abandona<br />

a sociedade positivista. Littré - autor do célebre<br />

Dicionário, divulgador do positivismo nos artigos do<br />

Nacional - aceita o que ele chama a primeira filosofia de<br />

Augusto Comte e vê na segunda uma espécie de delírio<br />

27


político-religioso, inspirado pelo amor platônico do<br />

filósofo por Clotilde.<br />

Todavia, mesmo se o encontro com Clotilde deu à obra<br />

do filósofo um novo tom, é certo que Comte, já antes do<br />

Curso de filosofia positiva (e principalmente em seu<br />

"opúsculo fundamental" de 1822), sempre pensou que a<br />

filosofia positivista deveria terminar finalmente em<br />

aplicações políticas e nas fundação de uma nova religião.<br />

Littré podia sem dúvida, em nome de suas próprias<br />

concepções, "separar Comte dele mesmo". Mas o<br />

historiador, que não deve considerar a obra com um<br />

julgamento pessoal, pode considerar-se autorizado a<br />

afirmar a unidade essencial e profunda da doutrina de<br />

Comte.<br />

Comte, afirmando vigorosamente a unidade de seu<br />

sistema, reconhece que houve duas carreiras em sua vida.<br />

Na primeira, diz ele sem falsa modéstia, ele<br />

foi Aristóteles e na segunda será São Paulo.<br />

A L ei d os T r ê s E st ad os<br />

A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de<br />

certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para Comte<br />

"as ideias conduzem e transformam o mundo" e é a<br />

evolução da inteligência humana que comanda o<br />

desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa<br />

que nós não podemos conhecer o espírito humano senão<br />

através de obras sucessivas - obras de civilização e<br />

história dos conhecimentos e das ciências - que a<br />

inteligência alternadamente produziu no curso da<br />

história. O espírito não poderia conhecer-se<br />

interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o<br />

sujeito do conhecimento confunde-se com o objeto<br />

estudado e porque pode descobrir-se apenas através das<br />

obras da cultura e particularmente através da história das<br />

ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida<br />

interior, é a atividade científica que se desenvolve<br />

através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a<br />

filosofia comtista da história é "uma filosofia da história<br />

do espírito através das ciências".<br />

O espírito humano, em seu esforço para explicar o<br />

universo, passa sucessivamente por três estados:<br />

a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por<br />

meio de vontades análogas à nossa (a tempestade, por<br />

exemplo, será explicada por um capricho do deus dos<br />

ventos, Eolo). Este estado evolui do fetichismo ao<br />

politeísmo e ao monoteísmo.<br />

b ) O estado metafísico substitui os deuses por princípios<br />

abstratos como "o horror ao vazio", por longo tempo<br />

atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será<br />

explicada pela "virtude dinâmica" do ar. Este estado é no<br />

fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza<br />

tem "horror" do vazio exatamente como a senhora<br />

Baronesa tem horror de chá). O homem projeta<br />

espontaneamente sua própria psicologia sobre a natureza.<br />

A explicação dita teológica ou metafísica é uma<br />

explicação ingenuamente psicológica. A explicação<br />

metafísica tem para Comte uma importância sobretudo<br />

histórica como crítica e negação da explicação teológica<br />

precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são<br />

"metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem -<br />

reivindicação crítica contra os deveres teológicos<br />

anteriores, mas sem conteúdo real.<br />

c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia<br />

a procurar os fins últimos e a responder aos últimos "por<br />

quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa<br />

experiência interior do querer para a natureza) é por ele<br />

substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em<br />

descrever como os fatos se passam, em descobrir as leis<br />

(exprimíveis em linguagem matemática) segundo as<br />

quais os fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal<br />

concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o<br />

conhecimento das leis positivas da natureza nos permite,<br />

com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o<br />

fenômeno que se seguirá e, eventualmente agindo sobre<br />

o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência donde<br />

previsão, previsão donde ação").<br />

Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três<br />

estados não é somente verdadeira para a história da nossa<br />

espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada<br />

indivíduo. A criança dá explicações teológicas, o<br />

adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a<br />

uma concepção "positivista" das coisas.<br />

A C lassificaç ã o d as C iê n cias<br />

As ciências, no decurso da história, não se tornaram<br />

"positivas" na mesma data, mas numa certa ordem de<br />

sucessão que corresponde à célebre classificação:<br />

matemáticas, astronomia, física, química, biologia,<br />

sociologia.<br />

Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais<br />

simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais<br />

concreto e de uma proximidade crescente em relação ao<br />

homem.<br />

37


47<br />

Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição<br />

das ciências positivas. As matemáticas (que com os<br />

pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma<br />

mística do número), constituem-se, entretanto, desde a<br />

antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás,<br />

para Comte, antes um instrumento de todas as ciências<br />

do que uma ciência particular). A astronomia descobre<br />

bem cedo suas primeiras leis positivas, a física espera o<br />

século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se<br />

positiva. A oportunidade da química vem no século<br />

XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina<br />

positiva no século XIX. O próprio Comte acredita coroar<br />

o edifício científico criando a sociologia.<br />

As ciências mais complexas e mais concretas dependem<br />

das mais abstratas. De saída, os objetos das ciências<br />

dependem uns dos outros. Os seres vivos estão<br />

submetidos não só às leis particulares da vida, como<br />

também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos<br />

os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivo está submetido,<br />

como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso,<br />

os métodos de uma ciência supõem que já sejam<br />

conhecidos os das ciências que a precederam na<br />

classificação. É preciso ser matemático para saber física.<br />

Um biólogo deve conhecer matemática, física e química.<br />

Entretanto, se as ciências mais complexas dependem das<br />

mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzilas<br />

a estas últimas. Os fenômenos psicoquímicos<br />

condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia<br />

não é uma química orgânica. Comte afirma<br />

energicamente que cada etapa da classificação introduz<br />

um campo novo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe<br />

ao materialismo que é "a explicação do superior pelo<br />

inferior".<br />

Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta<br />

classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode ser<br />

repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.<br />

A H u m an id ad e<br />

A última das ciências que Comte chamara primeiramente<br />

física social, e para a qual depois inventou o nome de<br />

sociologia reveste-se de importância capital. Um dos<br />

melhores comentadores de Comte, Levy-Bruhl, tem<br />

razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o<br />

momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo<br />

parte, a ela tudo se reduz". Nela irão se reunir o<br />

positivismo religioso, a história do conhecimento e a<br />

política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva<br />

que compreenderemos que as duas doutrinas de Comte<br />

são apenas uma. Enfim, esobretudo, é a criação da<br />

sociologia que, permitindo aquilo que Kant denominava<br />

uma "totalização da experiência", nos faz compreender o<br />

que é, para Comte, fundamentalmente, a própria<br />

filosofia.<br />

Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência<br />

fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a<br />

"humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo:<br />

como diz excelentemente Gouhier - em sua admirável<br />

introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados<br />

por Aubier - "Quando a última ciência chega ao último<br />

estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma<br />

nova ciência. O nascimento da sociologia tem uma<br />

importância que não podia ter o da biologia ou o da<br />

física: ele representa o fato de que não mais existe no<br />

universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens<br />

metafísicas. Como cada ciência depende da precedente<br />

sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o<br />

essencial de todas as disciplinas que precedem a sua. Sua<br />

especialização própria se confunde, pois - diferentemente<br />

do que se passa para os outros sábios - com a totalidade<br />

do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao<br />

próprio filósofo, "especialista em generalidades", que<br />

envolve com um olhar enciclopédico toda a evolução da<br />

inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo,<br />

em todas as disciplinas do conhecimento. Comte repudia<br />

a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como<br />

interpretação totalizante da história e, por isto,<br />

identificação com a sociologia, a ciência última que<br />

supõe todas as outras, a ciência da humanidade, a<br />

ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do<br />

"universal concreto".<br />

O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é<br />

necessário compreender que a humanidade não se reduz<br />

a uma espécie biológica: há na humanidade uma<br />

dimensão suplementar - a história - o que faz a<br />

originalidade da civilização (da "cultura" diriam os<br />

sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte, "é<br />

um animal que tem uma história". As abelhas não têm<br />

história. Aquelas de que fala Virgílio nas Geórgicas<br />

comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A<br />

espécie das abelhas é apenas a sucessão de gerações que<br />

repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num<br />

sentido estrito, sociedades animais, ou ao menos a<br />

essência social dos animais reduz-se à natureza<br />

biológica. Somente o homem tem uma história porque é<br />

ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria<br />

línguas, instrumentos que transmitem este patrimônio<br />

pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita às<br />

gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas<br />

faculdades de invenção apenas dentro do quadro do que


elas receberam.As duas idéias de tradição e de<br />

progresso, longe de se excluírem, se completam. Como<br />

diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do<br />

mundo, e o inventor do arado trabalha, invisível, ao lado<br />

do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os<br />

progressos do futuro e "a humanidade compõe-se mais<br />

de mortos que de vivos".<br />

Comte distingue a sociologia estática da sociologia<br />

dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de toda<br />

a vida social, considerada em si mesma, em qualquer<br />

tempo e lugar. Três instituições sempre são necessárias<br />

para fazer com que o altruísmo predomine sobre o<br />

egoísmo (condição de vida social). A propriedade (que<br />

permite ao homem produzir mais do que para as suas<br />

necessidades egoístas imediatas, isto é, fazer provisões,<br />

acumular um capital que será útil a todos), a família<br />

(educadora insubstituível para o sentimento de<br />

solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que<br />

permite a comunicação entre os indivíduos e, sob a<br />

forma de escrita, a constituição de um capital intelectual,<br />

exatamente como a propriedade cria um capital<br />

material).<br />

A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução<br />

da sociedade: do estado teológico ao estado positivo na<br />

ordem intelectual, do estado militar ao industrial na<br />

ordem prática - do estado de egoísmo ao de altruísmo na<br />

ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os<br />

espíritos concluirá a obra de unidade (que a Igreja<br />

católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e<br />

tornará o altruísmo universal, "planetário". A sociedade<br />

positiva terá, exatametne como a sociedade cristã da<br />

Idade Média, seu poder temporal (os industriais e os<br />

banqueiros) e seu pdoer espiritual ( ³ ) (os sábios,<br />

principalemtne os sociólogos, que terão, à sua testa, o<br />

papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto<br />

é, o próprio Augusto Comte).<br />

Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a<br />

mudança de perspectiva, a mutação que faz do filósofo<br />

um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de<br />

todas as outras ciências tornadas positivas, transformase-á<br />

na política que guiará as outras ciências,<br />

"regenerando, assim, por sua vez, todos os elementos que<br />

concorreram para sua própria formação". Assim é que,<br />

em nome da "humanidade", a sociologia regerá todas as<br />

ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis.<br />

(Para Comte, o astrônomo deve estudar somente o Sol e<br />

a Lua, que estão muito próximos de n'so, para ter uma<br />

influência sobre a terra e sobre a humanidade e<br />

interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos<br />

corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que<br />

esta "síntese subjetiva", integrando-se inteiramente no<br />

sistema de Comte, tenha desencorajado os racionalistas<br />

que de saída viram no positivismo uma apologia do<br />

espírito científico!<br />

A religião positiva substitui o Deus das religiões<br />

reveladas pela própria humanidade, considerada como<br />

Grande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos<br />

ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandes<br />

homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto<br />

após a morte (esta sobrevivência na veneração de nossa<br />

memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o<br />

ar - meio onde vive a humanidade - podem, por isso<br />

mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o<br />

"Grande-Fetiche". A religião da humanidade, pois,<br />

transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até<br />

a linguagem da crenças anteriores. Filósofo do progresso,<br />

Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da<br />

Revolução, ele é, ao mesmo tempo, conservador e<br />

admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média.<br />

Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos<br />

tanto nos pensadores "de direita" como nos "de<br />

esquerda".<br />

O E x ist en cialism o<br />

O existencialismo é um movimento filosófico e literário<br />

distinto pertencente aos séculos XIX e XX, mas os seus<br />

elementos podem ser encontrados no pensamento (e<br />

vida) de Sócrates, Santo Agostinho e no trabalho de<br />

muitos filósofos e escritores pré-modernos.<br />

Culturalmente, podemos identificar pelo menos duas<br />

linhas de pensamento existencialista: Alemã-<br />

Dinamarquesa e Anglo-Francesa. As culturas judaica e<br />

russa também contribuíram para esta filosofia. O<br />

movimento filosófico é agora conhecido como<br />

existencialismo de Beauvoir. Após ter experienciado<br />

57


67<br />

vários distúrbios civis, guerras locais e duas guerras<br />

mundiais, algumas pessoas na Europa foram forçadas a<br />

concluir que a vida é inerentemente miserável e<br />

irracional.<br />

O existencialismo foi inspirado nas obras de Arthur<br />

Schopenhauer, Søren Kierkegaard, Fiódor Dostoiévski e<br />

nos filósofos alemães Friedrich Nietzsche, Edmund<br />

Husserl e Martin Heidegger, e foi particularmente<br />

popularizado em meados do século XX pelas obras do<br />

escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre e de sua<br />

companheira, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir.<br />

Os mais importantes princípios do movimento são<br />

expostos no livro de Sartre "L'Existentialisme est un<br />

humanisme" ("O existencialismo é um humanismo"). O<br />

termo existencialismo foi adotado apesar de ex ist ê n cia<br />

filosó fica ter sido usado inicialmente por Karl Jaspers, da<br />

mesma tradição.<br />

O termo "existencialismo" parece ter sido cunhado pelo<br />

filósofo francês Gabriel Marcel em meados da década de<br />

1940 e adoptado por Jean-Paul Sartre que, em 29 de<br />

Outubro de 1945, discutiu a sua própria posição<br />

existencialista numa palestra dada no Club<br />

Maintenant em Paris e publicada como O<br />

Existencialismo é um Humanismo, um pequeno livro que<br />

teve um papel importante na divulgação do pensamento<br />

existencialista. 20<br />

O rótulo foi aplicado retrospectivamente a outros<br />

filósofos para os quais a existência e, em particular, a<br />

existência humana eram tópicos filosóficos<br />

fundamentais. Martin Heidegger tornou a existência<br />

humana (Dasein) o foco do seu trabalho desde a década<br />

de 1920 e Karl Jaspers denominou a sua filosofia com o<br />

termo "Existenzphilosophie" na década de 1930 Quer<br />

Heidegger quer Jaspers tinham sido influenciados pelo<br />

filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Para<br />

Kierkegaard, a crise da existência humana foi um tema<br />

maior na sua obra. Ele tornou visto como o primeiro<br />

existencialista, 19 e mesmo chamado como o "pai do<br />

existencialismo". 9 De facto, foi o primeiro de maneira<br />

explícita a colocar questões existencialistas como foco<br />

principal da obra. 24 Em retrospectiva, outros escritores<br />

também discutiram temas existencialistas ao longo da<br />

história da literatura e filosofia. Devido à exposição dos<br />

temas existencialistas ao longo das décadas, quando a<br />

sociedade foi oficialmente introduzida ao tema, o termo<br />

tornou-se relativamente popular quase de imediato. Na<br />

literatura, após a Segunda Guerra Mundial, houve uma<br />

corrente existencialista que contou com Albert Camus<br />

e Boris Vian, além do próprio Sartre. É importante notar<br />

que Albert Camus, filósofo além de literato, ia contra o<br />

existencialismo, sendo este somente característica de sua<br />

obra literária. Já Boris Vian definia-se patafísico.<br />

J ean - P au l Sar t r e e a L ib er d ad e<br />

Filósofo francês, nascido em Paris, em 1905, falecido em<br />

1980. Sartre vivenciou e pôde refletir os acontecimentos<br />

mais marcantes do século XX. A Segunda Guerra<br />

Mundial só para relacionar um. Durante a guerra, Sartre<br />

atuou como soldado no serviço de meteorologia e foi<br />

preso pelos alemães, ficando entre 1940 e 1941 preso no<br />

Campo de Concentração de Trier na Alemanha.<br />

Foge do Campo de Concentração e passa a atuar no<br />

movimento de Resistência francês, mas sempre<br />

utilizando sua principal arma: a palavra. Em sua obra As<br />

Palavras, obra autobiográfica afirma: “(...) o mundo me<br />

utilizava para fazer-se palavra”. (SARTRE, 1984, p. 157)<br />

A discussão da liberdade está na obra, O existencialismo<br />

é um humanismo, de 1946, na qual Sartre procura<br />

mostrar o sentido ético do existencialismo diante das<br />

críticas a sua obra, O ser e o nada.<br />

Sartre destacou-se não somente com as obras filosóficas,<br />

mas, sobretudo com as literárias, foi inclusive agraciado<br />

com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, após a<br />

publicação de As Palavras. Porém recusou-se aceitá-lo<br />

por entender que seria reconhecer que os juízes tivessem<br />

autoridade sobre sua obra.<br />

A ex ist ê n cia p r eced e a essê n cia<br />

Sartre preocupa-se em esclarecer que há dois tipos de<br />

existencialismo, o cristão, que tem como representantes<br />

Jaspers e Gabriel Marcel; e o existencialismo ateu, que<br />

tem como representantes Heidegger, os existencialistas<br />

franceses e o próprio Sartre. O que há em comum entre<br />

os existencialistas cristãos e ateus é “(...) o fato de<br />

considerarem que a existência precede a essência.<br />

(SARTRE, 1987, p. 4-5)<br />

Isto significa que, diferente dos filósofos anteriores,<br />

sobretudo da <strong>Filosofia</strong> do século XVIII, os<br />

existencialistas não aceitam o fato de o homem possuir<br />

uma natureza humana. E o existencialismo ateu, do qual<br />

Sartre é um dos mentores, fundamenta a inexistência de<br />

uma natureza humana pelo fato de afirmarem a<br />

inexistência de Deus.<br />

Para o existencialismo, o homem ao nascer não está<br />

definido, mas irá através de sua existência fazer-se


homem. Quando nasce, diferente dos demais animais, o<br />

homem tem em suas mãos o que poderá tornar-se.<br />

Como afirma Silva (2004) “(...) liberdade implica que<br />

posso sempre ser um outro projeto, porque nenhuma<br />

escolha é em si justificada”. Sendo que “(...) nenhuma<br />

escolha decidirá sobre a própria liberdade, porque não<br />

posso escolher ser livre”. (SILVA, 2004, p. 144)<br />

Sartre alerta para o fato de que mesmo que a escolha seja<br />

subjetiva, seja individual, o homem está sempre<br />

relacionado aos limites da própria realidade humana.<br />

Escolher ser isto ou aquilo é afirmar,<br />

concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo,<br />

pois não podemos nunca escolher o mal; o que<br />

escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para<br />

nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência<br />

precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo<br />

tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é<br />

válida para todos e para toda a nossa época. (SARTRE,<br />

1987, p. 6-7)<br />

Na realidade, a existência de cada um de nós se dá<br />

inserida nos limites da subjetividade humana. O ser<br />

humano ao mesmo tempo em que é indivíduo, torna-se e<br />

realiza-se enquanto ser através da sua relação com os<br />

demais de sua espécie e, portanto as escolhas que faz são<br />

escolhas que engajam toda a humanidade. Porém, “(...)<br />

essa escolha de ser, como todas as que poderiam ser<br />

feitas, está sempre em questão, porque a realidade<br />

humana é uma questão: nenhuma resolução, nenhuma<br />

deliberação assegura a persistência da escolha”. (SILVA,<br />

2004, p. 145)<br />

É importante destacar que a ética sartreana fundamentase<br />

no valor e na responsabilidade.<br />

O h om em é lib er d ad e<br />

Para Sartre o homem é liberdade. Como entender essa<br />

afirmação? Entende-se que não há certezas e nem<br />

modelos que possam servir de referência, cabe ao<br />

homem inventar o próprio homem e jamais esquecer-se<br />

que é de sua responsabilidade o resultado de sua<br />

invenção. Pelo fato de ser livre é o homem quem faz suas<br />

escolhas e que ao fazê-las, torna-se responsável por elas.<br />

É por isso que:<br />

O existencialista declara frequentemente que o homem é<br />

angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem<br />

que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas<br />

aquele que escolheu ser, mas também um legislador que<br />

escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade<br />

inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total<br />

e profunda responsabilidade. (SARTRE, 1987, p. 7)<br />

O conceito angústia está relacionado ao binômio:<br />

liberdade – responsabilidade.<br />

Faço as escolhas e ao fazê-las sou eu, exclusivamente eu,<br />

o único responsável por elas. É a angústia o sentimento<br />

de cada homem diante do peso de sua responsabilidade,<br />

por não ser apenas por si mesmo, mas por todas as<br />

consequências das escolhas feitas.<br />

Com a angústia há um outro sentimento que é fruto<br />

também da liberdade: o desamparo. É preciso lembrar<br />

que o conceito de angústia foi desenvolvido pelo filósofo<br />

Kierkegaard e o conceito de desamparo, pelo filósofo<br />

Heidegger.<br />

O existencialista, pelo contrário, pensa que é<br />

extremamente incômodo que Deus não exista, pois, junto<br />

com ele, desaparece toda e qualquer possibilidade de<br />

encontrar valores num céu inteligível; não pode mais<br />

existir nenhum bem a priori, já que não existe uma<br />

consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está<br />

escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos<br />

ser honestos, que não devemos mentir, já que nos<br />

colocamos precisamente num plano em que só existem<br />

homens. Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse,<br />

tudo seria permitido. (SARTRE, 1987, p. 9)<br />

O desamparo se dá pelo fato de o homem saber-se só. É<br />

por isso que Sartre diz que “(...) o homem está<br />

condenado a ser livre”. (SARTRE,1987, p. 9) Pois não<br />

há nenhuma certeza, não há nenhuma segurança e tudo o<br />

que fizer é de sua irrestrita responsabilidade. De fato o<br />

homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a “(...)<br />

inventar o homem a cada instante”. (SARTRE, 1987, p.<br />

9)<br />

Diante da constatação de que “(...) somos nós mesmos<br />

que escolhemos nosso ser”. (SARTRE, 1987, p. 12)<br />

Surge o outro sentimento: o desespero. O que marca o<br />

desespero é o fato de que:<br />

Só podemos contar com o que depende da nossa vontade<br />

ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa<br />

7


ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre<br />

elementos prováveis. Posso contar com a vinda de um<br />

amigo. Esse amigo vem de trem ou de ônibus; sua vinda<br />

pressupõe que o ônibus chegue na hora marcada e que o<br />

trem não descarrilhará. Permaneço no reino das<br />

possibilidades; porém, trata-se de contar com os<br />

possíveis apenas na medida exata em que nossa ação<br />

comporta o conjunto desses possíveis. A partir do<br />

momento em que as possibilidades que estou<br />

considerando não estão diretamente envolvidas em<br />

minha ação, é preferível desinteressar-me delas, pois<br />

nenhum Deus, nenhum desígnio poderá adequar o<br />

mundo e seus possíveis a minha vontade. [...] Não posso,<br />

porém, contar com os homens que não conheço,<br />

fundamentando-me na bondade humana ou no interesse<br />

do homem pelo bem-estar da sociedade, já que o homem<br />

é livre e que não existe natureza humana na qual possa<br />

me apoiar. (SARTRE, 1987, p. 12)<br />

Pelo fato de a realidade ir além, extrapolar os domínios<br />

de minha vontade e de minhas ações, o reino das<br />

possibilidades passa a evidenciar que minha ação deverá<br />

ocorrer sem qualquer esperança. O desespero é, portanto,<br />

o sentimento de que não há certezas e verdades prontas, é<br />

o sentimento de insegurança que impregna a vontade e o<br />

agir, pelo fato de ambos serem confrontados com o reino<br />

das possibilidades e apontarem para o limite a liberdade<br />

de cada indivíduo.<br />

I n d ú st r ia C u lt u r al e C u lt u r a d e M<br />

assas<br />

de massa tem origem na ascensão do protestantismo, da<br />

democracia e principalmente do<br />

Capitalismo. Considerando que a expressão, meios de<br />

comunicação de massa refere-se à imprensa escrita, ao<br />

rádio, à televisão e a outras tecnologias de comunicação.<br />

Normalmente mídia e meio de comunicação são<br />

encarados como sinônimos para referirmos à transmissão<br />

da informação de uma pessoa ou grupo para o outro. O<br />

termo massa está muito bem direcionado a multidões<br />

padronizadas e homogêneas, não possui um grupo<br />

específico mais tem significado na sociedade como um<br />

todo.<br />

Segundo Tomazi podemos falar em indústria cultura a<br />

partir do século XVIII, com a multiplicação dos Jornais<br />

no continente Europeu. Para tanto o próprio processo de<br />

escolaridade da população ajudou no processo. A<br />

indústria precisava de indivíduos um pouco mais<br />

qualificados, nesse caso, o surgimento de um mercado<br />

consumidor (importância social, econômica e cultural)<br />

segundo Tomazi, contribuiu para o desenvolvimento do<br />

primeiro meio de comunicação de massa: o Jornal.<br />

Segundo Teixeira Coelho, a indústria cultural é fruto da<br />

sociedade industrializada, no período de consolidação de<br />

uma economia baseada no consumo de bens. Produtos<br />

culturais em série – revistas, jornais, filmes, livros etc. –<br />

produzidos para o consumo em massa, são característicos<br />

desse tipo de indústria.<br />

Os jornais acabam tendo um papel importante dentro dos<br />

centros urbanos criados e desenvolvidos com o<br />

capitalismo vigente. Segundo Tomazi, os jornais<br />

divulgam notícias, crônicas políticas e os folhetins<br />

(novelas impressas), ganhando uma popularidade<br />

grandiosa. Nesse sentido as noticiais se tornam cada vez<br />

mais acessíveis. Diferente da antiga sociedade feudal em<br />

que o conhecimento e as notícias ficavam reservados a<br />

pequenos grupos de privilegiados.<br />

I N D Ú ST R I A C U L T U R A L<br />

C u lt u r a d me<br />

Por Nelson Adrian<br />

assa ou I n d u st r ial C u lt u r al<br />

O desenvolvimento da cultura de massa possui uma<br />

relação muito forte como o próprio surgimento da<br />

modernidade. O crescimento dos meios de comunicação<br />

No início do século XX, os primeiros autores a estudar<br />

os meios de comunicação de massa foram filósofos<br />

Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1896-<br />

1973), pertencente ao grupo de intelectuais chamado<br />

Escola de Frankfurt. Ao analisar os meios de<br />

comunicação de massa, esses autores concluíram que<br />

esses recursos funcionavam como uma industrial na<br />

padronização de noticiais e serviços. Dentro dessa<br />

concepção, muda o sentido e a expressão de Cultura de<br />

Massa para Indústria Cultural.<br />

87


O ensaio A indústria cultural: O Esclarecimento como<br />

Mistificação das Massas, trabalho elaborado por dois dos<br />

principais integrantes do movimento Frankfurtiano,<br />

Adorno e Hohkheimer. Nesse texto – publicado no livro<br />

Dialética do Esclarecimento (1947) - os pensadores se<br />

esforçaram em evidenciar o caráter controlador e<br />

mercantil da indústria cultural – termo cunhado pelos<br />

autores. Para Adorno e Horkheimer, os produtos dessa<br />

indústria seriam parte integrante de uma lógica que<br />

visava, ao mesmo tempo, padronizar os indivíduos e<br />

gerar lucro para os detentores do poder econômico (E.<br />

Neto 2009)<br />

O conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer<br />

acabam por se opor ao termo cultura de massa. A<br />

indústria cultural, segundo os dois autores, equivale a<br />

qualquer indústria, organizada, planejada para atender o<br />

público, agora tratado como consumidor. Mais do que dá<br />

informações, segundo os dois filósofos, os meios de<br />

comunicação buscam o entretenimento dos indivíduos. A<br />

indústria cultura informa o consumidor de maneira<br />

homogênea, rápida e alienante o mundo em que se<br />

depara. Segundo Souza e Santos, os autores da Escola de<br />

Frankfurt para justificar sua tese, afirmam que o cinema<br />

e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. Na<br />

verdade, para tais autores, estes bens culturais, quando<br />

são produzidos em série, são apenas um negócio.<br />

Para Adorno e Horkheimer os meios de comunicação de<br />

massa compreendem uma proposta de alienação,<br />

diversão ou mesmo a desorientação sem permitir a<br />

reflexão sobre as coisas. Os dois autores destacam que a<br />

indústria cultural tem um objetivo: chegar aos seus<br />

consumidores a partir da venda. Por essa razão, pode-se<br />

dizer que a indústria cultural vai buscar legitimar tudo<br />

isso a partir de uma ideologia que, é uma falsa<br />

consciência ou uma inversão da realidade.<br />

A indústria cultural impõe gostos e preferências às<br />

massas, modelando suas consciências ao introduzir o<br />

desejo de necessidades supérfluas. Ela é tão eficaz nessa<br />

tarefa que os indivíduos não percebem o que ocorre,<br />

impedindo, assim, a formação, de pessoas capazes de<br />

julgar e de decidir conscientemente.<br />

Fenômeno similar ocorre na música popular produzida<br />

pela indústria cultural. O processo de padronização torna<br />

as canções parecidas umas às outras e reprime qualquer<br />

tipo de desafio, autenticidade ou estimulo intelectual na<br />

música elaborada para a venda, casos como os cantores<br />

de Axé Claudia Leite e Ivete ou os chamados Sertanejos<br />

Universitários, dentre outros casos. A padronização de<br />

estilos e músicas de acordo com as normas da industrial<br />

cultural é visível na falta de criatividade e estilos iguais.<br />

No processo de elaboração da indústria cultural segundo<br />

Adorno e Horkheimer, não existe a criatividade artística<br />

como se imagina, mas simplesmente a padronização de<br />

produtos e serviços para a venda e o consumo. Por<br />

conseguinte, a elaboração dos produtos culturais fica sob<br />

o encargo dos técnicos e diretores das empresas de<br />

entretenimento e comunicação da indústria cultural.<br />

Estes, por sua vez, têm como referência não o valor<br />

artístico do produto, mas sua possibilidade de lucro e<br />

comercialização. A consequência imediata dessa fórmula<br />

é a padronização dos “produtos”, dos “produtores” e dos<br />

“consumidores”.<br />

A P R O P A G A N D A<br />

A propaganda possui o poder de influenciar, marcar e<br />

mesmo domar o público consumidor através de seu apelo<br />

de imagens e dizeres que impressionam e destacam um<br />

novo estilo de vida. Na sociedade a propaganda, pode<br />

significa muito mais do que um mecanismo de<br />

divulgação. Ela pode persuadir e interferi, muitas vezes,<br />

no comportamento de toda uma geração, mostrar uma<br />

direção para o consumidor sobre o melhor gosto musical<br />

a melhor forma de fazer exercícios, a melhor roupa e<br />

mesmo a melhor sapato. Na TV e mesmo hoje na<br />

internet, é oferecido um mundo de sonhos sem conflito,<br />

em que a melhor margarina ou perfume abre as portas<br />

para a sociabilidade e o sucesso individual.<br />

Segundo Nelson Tomazi a propaganda menciona um<br />

mundo encantado de belos lares e sem sofrimentos<br />

sociais. É o caso dos anúncios das margarinas e outros<br />

produtos comestíveis que destacam famílias sorridentes,<br />

brancas, de classe média alta, reunidas à mesa e servidas<br />

por uma mãe Feliz e dedicada. O desejo de consumir<br />

atrelado ao formato de como é anunciado o consumo<br />

passa a ser sedutor. Independentemente de caráter útil de<br />

um objeto anunciado, está intimamente ligado ao prazer<br />

de adquirir ou experimentar algo diferente. Nesse sentido<br />

as grandes agenciais publicitárias, mostram, entre<br />

diversas técnicas de manipulação, figuras públicas,<br />

personagens de novelas e cantores e artistas de modo<br />

geral com peso de popularidade.<br />

Considerando a história da propaganda no Brasil, as<br />

mensagens desenvolvidas em direção ao consumidor<br />

mencionam sempre o prazer, dinheiro, saúde, felicidade<br />

da imagem como o belo corpo, aspectos esses que na<br />

vida real é conquistado por poucos.<br />

97


08<br />

Isso acontece por uma questão social; pois quem pode<br />

comprar e penetrar no mundo feliz do consumo é uma<br />

classe com um poder econômico mais significativo, e<br />

nesse caso, boa parte da população não adquire os bens<br />

de consumo tão bem divulgados nos meios de<br />

comunicação de massa.<br />

Os meios de comunicação acabam se tornando<br />

instrumentos de ideias propagandistas quanto à<br />

conformação do indivíduo com o mundo em que vive. A<br />

venda de imagens, ideologias e valores sobre produtos e<br />

serviços anunciados, atuariam como um eterno processo<br />

de alienação, no sentido de conformar o consumidor de<br />

forma passiva as mentiras destacadas.<br />

C om u n icaç ã o, C u lt u r a d e M assa e C u lt u r a P op u lar<br />

Fonte: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/errata/fadel.pdf<br />

Rádio, televisão, internet. Os meios de comunicação, na<br />

atual conjuntura, evoluem tão rapidamente quanto a<br />

velocidade das informações, atingindo um grande<br />

número de pessoas, daí surgindo a expressão “meios de<br />

comunicação de massa”. Estes meios de comunicação<br />

exercem uma grande influência sobre a mentalidade da<br />

população, podendo ser desde questões financeiras até<br />

emocionais. E como há uma fugacidade de informações,<br />

a dificuldade de memorização das mensagens cresce a<br />

cada dia.<br />

Segundo o Aurélio, “comunicação” define-se como o<br />

“ato ou efeito de transmitir mensagens por meio de<br />

métodos e/ou processos convencionados”, a exemplo de<br />

um a linguagem verbal ou não-verbal.<br />

A televisão é um dos mais amplos processos<br />

convencionados, denominando-se assim de meio de<br />

comunicação de massa, pois pode transmitir ao mesmo<br />

tempo, uma linguagem verbal e uma não-verbal,<br />

utilizando os recursos de som e imagem como forma de<br />

entreter o telespectador.<br />

O conjunto destes telespectadores pode ser chamado de<br />

“massa”, que significa o aglomerado de um grande<br />

número de pessoas, formando um grupo com pouca ou<br />

nenhuma coesão.<br />

Uma maneira de atingir esta massa são os meios de<br />

comunicação, pois dizem respeito à comunicação em<br />

larga escala, em termos de distância, pessoas e produtos<br />

envolvidos. Porém, os integrantes desta massa podem<br />

sofrer os mesmos estímulos sem necessidade de contato<br />

pessoal, pois os modernos veículos de comunicação<br />

massiva (a exemplo do jornal e da revista) oferecem<br />

condições excepcionais para proporcionar a grandes<br />

coletividades o comum excitante.<br />

Já a memorização, que se denomina como alguma<br />

informação a ser guardada, lembrada; é um fenômeno de<br />

cada vez mais difícil aplicação por conta da imensa<br />

quantidade de mensagens que chegam até o receptor.<br />

Isso ocorre bastante entre os meios de comunicação de<br />

massa e o telespectador.<br />

Como consequência das tecnologias de comunicação<br />

aparecidas no século XX, e das circunstâncias<br />

geopolíticas configuradas na mesma época, a cultura de<br />

massa desenvolveu-se a ponto de ofuscar os outros tipos<br />

de cultura anteriores e alternativos a ela. Antes de haver<br />

cinema, rádio e TV, falava-se em cultura popular, em<br />

oposição à cultura erudita das classes aristocráticas; em<br />

cultura nacional, componente da identidade de um povo;<br />

em cultura clássica, conjunto historicamente definido de<br />

valores estéticos e morais; e num número tal de culturas<br />

que, juntas e interagindo, formavam identidades<br />

diferenciadas das populações.<br />

A chegada da cultura de massa, porém, acaba<br />

submetendo as demais “culturas” a um projeto comum e<br />

homogêneo — ou pelo menos pretende essa submissão.<br />

Por ser produto de uma indústria de porte internacional<br />

(e mais tarde, global), a cultura elaborada pelos vários<br />

veículos então recém-chegados esteve sempre ligada<br />

intrinsecamente ao poder econômico do capital industrial<br />

e financeiro. A massificação cultural, para melhor servir<br />

esse capital, requereu a repressão às demais formas de<br />

cultura — de forma que os valores apreciados passassem<br />

a ser apenas os compartilhados pela massa.<br />

A cultura popular, produzida fora de contextos<br />

institucionalizados ou mercantis, teve de ser um dos<br />

objetos dessa repressão imperiosa. Justamente por ser<br />

anterior, o popular era também alternativo à cultura de<br />

massa, que por sua vez pressupunha — originalmente —<br />

ser hegemônica como condição essencial de existência.


O que a indústria cultura percebeu mais tarde, é que ela<br />

possuía a capacidade de absorver em si os antagonismos<br />

e propostas críticas, em vez de combatê-lo. Desta forma,<br />

sim, a cultura de massa alcançaria a hegemonia:<br />

elevando ao seu próprio nível de difusão e exaustão<br />

qualquer manifestação cultural, e assim tornando-a<br />

efêmera e desvalorizada.<br />

A “censura”, que antes era externa ao processo de<br />

produção dos bens culturais, passa agora a estar no berço<br />

dessa produção. A cultura popular, em vez de ser<br />

recriminada por ser “de mau gosto” ou “de baixa<br />

qualidade”, é hoje deixada de lado quando usado o<br />

argumento mercadológico do “isto não vende mais” —<br />

depois de ser repetida até exaurir-se de qualquer<br />

significado ideológico ou político.<br />

No contexto da indústria cultural — da qual a mídia é o<br />

maior porta-voz — são totalmente distintos e<br />

independentes os conceitos de “popular” e<br />

“popularizado”, já que o grau de difusão de um bem<br />

cultural não depende mais de sua classe de origem para<br />

ser aceito por outra. A grande alteração da cultura de<br />

massa foi transformar todos em consumidores que,<br />

dentro da lógica iluminista, são iguais e livres para<br />

consumir os produtos que desejarem. Dessa forma, pode<br />

haver o “popular” (ou seja, o produto de expressão<br />

genuína da cultura popular) que não seja popularizado<br />

(“que não venda bem”, na indústria cultural) e o<br />

“popularizado” que não seja popular (vende bem, mas é<br />

de origem elitista).<br />

A ev olu ç ã o d os M eios d e C om u n icaç ã o d e M assa: o<br />

ex em p lo d os b logs<br />

"No futuro, todos terão direito a quinze minutos de<br />

fama". A célebre e profética frase de Andy Warhol virou<br />

lugar-comum desde o surgimento da Internet. Mas o<br />

auge do conceito parece só ter sido atingido nos últimos<br />

doze meses, com a multiplicação dos weblogs pela rede<br />

mundial de computadores.<br />

Um weblog, ou blog, como é popularmente conhecido, é<br />

uma espécie de diário virtual hospedado na Internet, e<br />

por isso acessível a milhões de pessoas. Neste “diário”<br />

que não necessita de uma atualização regular, o autor<br />

pode escrever sobre o assunto que desejar, quando<br />

desejar, sem intermediários. Com a sua chegada, basta<br />

apenas um computador conectado à Internet para que<br />

qualquer mortal possa fazer comunicação em massa.<br />

Há blogs individuais e coletivos, com mais de um autor.<br />

Os textos, ou posts são dispostos de forma cronológica,<br />

de modo que o mais recente apareça no topo da página.<br />

A maioria desses sites dispõe também de um sistema de<br />

comentários, que gera uma lista de discussão para cada<br />

post.<br />

A simplicidade do sistema, sua gratuidade e as inúmeras<br />

possibilidades que oferece atraíram milhões de pessoas<br />

pelo mundo, transformando o novo meio em uma febre,<br />

quase um fenômeno sociológico. Hoje em dia a rede<br />

mundial de computadores já contabiliza mais de 500 mil<br />

blogs ativos, segundo o site “Blogcensus”. Apesar de a<br />

metodologia da pesquisa ser discutível (cataloga somente<br />

os blogs que encontra através de links), o número dá uma<br />

ideia da popularidade dos diários virtuais.<br />

Na mesma pesquisa do Blogcensus, o português é<br />

apontado como a segunda língua mais utilizada nos blogs<br />

(só perde para o inglês), mas isso se deve principalmente<br />

à explosão do meio no Brasil, que aconteceu há mais<br />

tempo que em Portugal. Estima-se que no Brasil o<br />

número de blogs seja 50 vezes maior que em Portugal, e<br />

no ranking dos 25 blogs em língua portuguesa mais<br />

visitados, todos são brasileiros.<br />

A história dos blogs tem início em 1997, quando os<br />

primeiros sites com um formato semelhante ao que<br />

conhecemos hoje apareceram. Mas o maior salto só<br />

ocorreu em 1999, com a criação do Pitas, o primeiro site<br />

do tipo “faça-seu-próprio-blog”, destinado ao internauta<br />

sem conhecimentos de linguagem HTML. Logo depois,<br />

surgiu o Blogger, hoje a mais popular ferramenta para a<br />

construção de blogs. Os blogs podem ser também<br />

grandes provedores de informação, o que levou muitos<br />

estudiosos a pensarem novamente no tão decantado “fim<br />

do jornalismo”. A verdade, no entanto, é que seus<br />

autores continuam buscando informações nos meios<br />

jornalísticos tradicionais, de modo que os blogs<br />

representam melhor os programas de discussão na<br />

televisão ou a coluna de cartas dos leitores do jornal do<br />

que propriamente o meio jornalístico em si. Além do<br />

mais, a questão da credibilidade sempre vem à tona.<br />

Alguns blogs sustentam-se apenas com a narrativa de<br />

fatos irrelevantes para a maioria das pessoas, como<br />

aquilo que se fez no dia, expressando um desejo de<br />

contar em capítulos a vida cotidiana. Essa “evasão de<br />

privacidade” é curiosa e ao mesmo tempo característica<br />

dos tempos atuais, em que celebridades convidam<br />

revistas para relatarem o fim de um namoro ou suas<br />

últimas férias em Bora Bora.<br />

Essa vaidade inerente ao autor de um diário virtual é o<br />

principal alvo de alguns de seus críticos. Porém, é fato<br />

que esse tipo específico de blog é geralmente aquele que<br />

18


menos interesse desperta nos cibernautas. Querer saber<br />

quem a celebridade da hora está namorando é muito<br />

diferente de querer saber o que o joão-ninguém comeu<br />

no pequeno almoço.<br />

Entre adeptos e não adeptos, todos concordam que o<br />

espírito do “faça você mesmo” ou, para ser mais<br />

otimista, do “pense em você mesmo” que os blogs<br />

disseminaram é fascinante, e ainda vai produzir muitos<br />

efeitos interessantes.<br />

É visível a evolução dos meios de comunicação e suas<br />

influências sobre a sociedade, mas não devemos<br />

condená-la pura e simplesmente como uma grande vilã,<br />

já que através dela se adquire conhecimento e cultura,<br />

além da atualização de notícias sobre o mundo.<br />

Os meios de comunicação de massa possuem dois lados,<br />

mas cabe a cada cidadão analisar e assimilar aquilo que<br />

seja de seu interesse, não se deixando influenciar pelo<br />

poder que a mídia exerce, por mais que esta seja uma<br />

difícil tarefa, já que cada vez mais se torna difícil a<br />

memorização desta grande quantidade de informações.<br />

28


R efer ê n cia:<br />

BELTRÃO, Luiz. Sociedade de massa: comunicação e literatura. 1ª ed. Petrópolis: Vozes, 1972.<br />

BELTRÃO, Luiz. QUIRINO, Newton de Oliveira. Subsídios para uma Teoria da Comunicação de Massa. Vol. 13. São<br />

Paulo: Summus, 1986.<br />

LAZARSFELD, Paul. MERTON, Robert. “Comunicação de massa, gosto popular e ação social organizada”. IN COHN,<br />

Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. 3ª ed. São Paulo: ETP/EDUSP, 1983.<br />

38


SO C I E D A D E D E C O N T R O L E<br />

Enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes<br />

transversais que se dissimulam através das instituições<br />

modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a<br />

sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade<br />

e pelo nomandismo que se expande junto às redes de<br />

informação.<br />

48<br />

Fonte:http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20dis<br />

ciplinar/Sociedade<br />

A passagem da modernidade para a contemporaneidade<br />

ocasionou a mudança de um modelo de sociedade. De<br />

uma sociedade vista por Foucault como “Disciplinar”,<br />

para um modelo de sociedade identificada por Gilles<br />

Deleuze (1992) como de “controle”. Hoje, nós<br />

encontramo-nos num momento de transição entre um<br />

modelo e outro. Estamos a sair de uma forma de<br />

encarceramento completo para uma espécie de controle<br />

aberto e contínuo.<br />

A chamada sociedade de controle é um passo à frente<br />

da sociedade disciplinar. Não que esta tenha deixado de<br />

existir, mas foi expandida para o campo social de<br />

produção. Segundo Foucault, a disciplina é interiorizada.<br />

Esta é exercida fundamentalmente por três meios globais<br />

absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Logo,<br />

com o colapso das antigas instituições imperialistas, os<br />

dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados.<br />

As instituições sociais modernas produzem indivíduos<br />

sociais muito mais moveis e flexíveis que antes. Essa<br />

transição para a sociedade de controle envolve uma<br />

subjetividade que não está fixada na individualidade. O<br />

indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence<br />

a todas. Mesmo fora do seu local de trabalho, continua a<br />

ser intensamente governado pela lógica disciplinar.<br />

A forma cíclica e o recomeço contínuo das sociedades<br />

disciplinares modernas dão lugar à modulação das<br />

sociedades de controle contemporâneas nas quais nunca<br />

se termina nada mas exige-se do homem uma formação<br />

permanente.<br />

Se nas sociedades disciplinares o modelo Panóptico é<br />

dominante, implica o observador estar de corpo presente<br />

e em tempo real a observar-nos e a vigiar-nos. Nas<br />

sociedades de controle esta vigilância torna-se rarefeita e<br />

virtual. As sociedades disciplinares são essencialmente<br />

arquiteturais: a casa da família, o prédio da escola, o<br />

edifício do quartel, o edifício da fábrica. Por sua vez, as<br />

sociedades de controle apontam uma espécie de antiarquitetura.<br />

A ausência da casa, do prédio, do edifício é<br />

fruto de um processo em que se caminha para um mundo<br />

virtual.<br />

É importante perceber que na sociedade de controle, o<br />

aspecto disciplinar não desaparece, apenas muda a<br />

atuação das instituições. Os dispositivos de poder que<br />

ficam circunscritos aos espaços fechados dessas<br />

instituições passam a adquirir total fluidez, o que lhes<br />

permite atuar em todas as esferas sociais. Entre os<br />

princípios norteadores desta dinâmica, destaca-se a<br />

abolição do confinamento enquanto técnica principal.<br />

As técnicas disciplinares originadas a partir do séc.<br />

XVIII destinavam-se a garantir que os indivíduos – por<br />

meio dos seus corpos – fossem submetidos a um<br />

conjunto de dispositivos de poder e de saber, baseados na<br />

vigilância permanente, na normalização dos seus<br />

comportamentos e na exposição a exames. Como forma<br />

de se produzir verdades sobre eles mesmos, essas<br />

práticas tinham como objectivo a extracção máxima das<br />

potencialidades e, portanto, as instituições como escolas,<br />

fábricas, hospitais – entre outros – cumpriam um papel<br />

fundamental na implementação desses mecanismos, com<br />

o objetivo de tornar os indivíduos dóceis.<br />

É neste sentido que a noção de confinamento,<br />

amplamente utilizada a partir do séc. XVIII, norteadora<br />

do funcionamento desses estabelecimentos, deixou de ser<br />

a estratégia principal do exercício do poder. O controle<br />

ao contrário, ultrapassa a fronteira entre o público e o<br />

privado. Aqui, reside um dos aspectos fundamentais na<br />

construção da passagem da sociedade disciplinar para a<br />

de controle: há um processo de instauração da lógica do


confinamento, em toda a sociedade, sem que seja<br />

necessária a existência de muros que separem o lado de<br />

dentro das instituições do seu exterior.<br />

Há uma vigilância contínua, concretizada pela<br />

propagação das câmaras espalhadas por toda a parte: no<br />

comercio, bancos, escolas e até mesmo nas ruas. Isto traz<br />

a dimensão da sociedade auto-vigiada, idealizada por<br />

Jeremy Bentham, cujo Panóptico expressa a sua<br />

concepção arquitetónica. Uma vigilância intensificada<br />

pela disseminação de dispositivos tecnológicos de<br />

vigilância presentes até mesmo ao “ar livre”. Todos<br />

podem e querem espiar todos. Trata-se da reinvenção do<br />

Panóptico benthaniano que passa a atuar com o objetivo<br />

de transformar, de maneira extensiva e intensiva, os<br />

modos de viver, pensar e agir dos indivíduos.<br />

Se a principal premissa da sociedade disciplinar era fazer<br />

com que o indivíduo modelasse o seu comportamento. A<br />

partir da possibilidade de estar a ser vigiado por alguém<br />

(inspetor), essa perspectiva transmutou-se. O que<br />

presenciamos na sociedade de controle é que houve uma<br />

espécie de incorporação da disciplina. A tal ponto, que os<br />

indivíduos podem estar sob os efeitos dos dispositivos<br />

disciplinares, independente, da presença de algum tipo de<br />

autoridade investida de poderes capazes de impor os<br />

procedimentos de poder e de saber.<br />

A sociedade de controle redimensiona e amplifica os<br />

pilares constituintes da sociedade disciplinar.<br />

Como argumenta G. Deleuze, a passagem de uma<br />

sociedade disciplinar a uma sociedade de controle, tem<br />

como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua<br />

virtualidade, para a tornar pura informação, parte dos<br />

dispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuir à<br />

imagem a potencialidade da informação, deslocamos a<br />

abordagem do campo de representação, passando a<br />

compreende-la enquanto a própria expressão dos<br />

acontecimentos. “Não creio que os media tenham muitos<br />

recursos ou vocação para captar um acontecimento.<br />

Primeiro, eles mostram com frequência o começo e o<br />

fim, ao passo que um acontecimento, mesmo breve,<br />

mesmo instantâneo prolonga-se” (Deleuze, 1992;<br />

Pág:198). Seja na cobertura de uma guerra, seja<br />

acompanhando as rotinas exibicionistas dos reality<br />

shows, as imagens que nos chegam parecem não se<br />

interessar mais pelo acontecimento, mas apenas em<br />

reafirmar o seu olhar omnipresente, sob o qual tudo se<br />

passa e nada passa despercebido.<br />

Um fenómeno recente que tem chamado a atenção de<br />

diversos estudiosos é os referidos reality shows. Tais<br />

programas expõem os seus participantes a situações<br />

limites e dão margem a uma série de análises. Um bom<br />

exemplo disso é o Big Brother que surgiu em 1999, na<br />

Holanda e foi criado pela produtora Endemol, uma das<br />

maiores empresas de entretenimento da Europa. O<br />

nome Big Brother foi inspirado no livro “1984” do<br />

escritor inglês George Orwell. Neste livro, todos os<br />

habitantes de um país fictício são vigiados diariamente,<br />

por câmaras que funcionam como olhos do governo. O<br />

autor alerta para o perigo de estarmos a caminhar para<br />

uma sociedade controlada por câmaras. Passados pouco<br />

mais de cinquenta anos da publicação do romance de<br />

Orwell, o receio do totalismo cedeu lugar à sedução,<br />

através da invasão de câmaras em programas televisivos.<br />

Em 2000, o programa Big Brother começou a ser<br />

exportado para outros países, como Alemanha, Espanha,<br />

Estados Unidos da América, Inglaterra, Portugal, Suiça,<br />

Suécia e Bélgica.<br />

Desde o início das sociedades modernas, os meios de<br />

comunicação contribuíram decisivamente para a<br />

construção da subjetividade dos seres humanos. Sempre<br />

em sintonia com o surgimento e consolidação das<br />

sociedades capitalistas modernas, os meios de<br />

comunicação desenvolveram-se de forma espantosa. É<br />

impossível pensar o mundo contemporâneo, sem levar<br />

em conta o papel dos “mass media”. Um dos traços<br />

fundamentais deste mundo contemporâneo é exatamente<br />

o inesgotável fluxo de imagens e de conteúdos<br />

simbólicos, disponibilizados pelos meios de<br />

comunicação a um número cada vez maior de pessoas, e<br />

que de certa maneira, conformam a realidade, as relações<br />

sociais e a subjetividade individual.<br />

A realidade do final do século exige cada vez mais que<br />

os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de<br />

informação que invadem diariamente a sua vida<br />

quotidiana, de uma forma desconhecida para as gerações<br />

precedentes. Lidar com o impacto deste fluxo acelerado<br />

de informações e, principalmente dar-lhe um significado,<br />

ou seja, interpretá-las integrando-as na sua visão do<br />

mundo, é hoje uma tarefa inevitável dos sujeitos<br />

modernos (Guareschi, 2000, pág.43).<br />

Uns dos aspectos a serem considerados no Big Brother<br />

são os valores implícitos no programa. Pode-se<br />

perceber estes valores através da sua estrutura e<br />

funcionamento, tais como: confinamento, vigilância,<br />

exclusão, fama, dinheiro, esforço, sorte, culto do herói,<br />

“salve-se quem puder”, negação do sofrimento psicosocial,<br />

“cada um por si e Deus por todos”.<br />

A vigilância, a fama e o confinamento são as<br />

características que conferem o carácter inédito do<br />

58


programa e<br />

telespectador.<br />

V igilâ n cia<br />

ficam em maior evidência para o<br />

A pergunta que se faz é, o que ocorreu, para que<br />

saíssemos do horror da vigilância, para imergirmos na<br />

apoteose voyerista, de contemplar supostamente em<br />

tempo integral, um grupo de indivíduos exibicionistas<br />

confinadas num espaço marcado por câmaras e<br />

microfones?<br />

O controle, na sociedade contemporânea, é exercido de<br />

modo “glamourizado” pela indústria cultural. Assim<br />

substituiu-se a guilhotina e a violência física por técnicas<br />

de controle social formadas dentro das ciências humanas<br />

e sociais, pela psicologia, psiquiatria e mais<br />

recentemente pelos meios de comunicação de massas.<br />

Em vez de usar a força física para fazer os corpos<br />

indóceis padecerem em razão de não se ajustarem, o que<br />

ocorre é tornar interna a ideológica exercida pelos meios<br />

de comunicação de massa, que produzem uma certa<br />

forma de ser, de viver, de pensar e de sentir.<br />

A estratégia atual é construir subjetividades, de forma a<br />

que estas se enquadrem no modo de vida oferecido pela<br />

sociedade, pois de acordo com Foucault, o poder<br />

moderno exerce-se na produção e na repressão.<br />

Hoje, os vigias do “Grande Irmão”, são todos os<br />

indivíduos, que auxiliados pela edição dos media ficam<br />

extasiados, fascinados diante da televisão, vigiando e<br />

controlando através dos votos (pois é um programa<br />

interativo), os passos dos doze participantes anónimos. O<br />

que, antes era temido – o controle e o vigiar – e também<br />

o que era protegido – a privacidade e a intimidade –<br />

tornam-se objetos de fascínio. Isto evidencia-se no<br />

primeiro imperativo para participar do show de realidade<br />

– Big Brother - que é a imposição da restrição do<br />

privado.<br />

Oferece-se aos participantes uma casa bem equipada em<br />

que se encontram 24 sobre 24 horas sob vigia, para que<br />

se tornem famosos, todavia, caso sejam excluídos e não<br />

ganhem o prémio máximo de cem mil euros, já tiveram a<br />

oportunidade de conquistar a fama. Troca-se desta<br />

maneira, a privacidade pela fama.<br />

A sociedade contemporânea é descrita por Debord<br />

(1994), como a sociedade do espetáculo, que substitui o<br />

lema “Penso logo existo”, por um outro ditado: “sou<br />

visto, logo existo” (Quinet, 2002). Ainda segundo este<br />

autor, a sociedade é dominada pelo olhar, que é<br />

omnividente sob diversas formas, que vão desde a<br />

proliferação dos programas televisivos de voyerismo e<br />

exibicionismo explícitos, até à difusão epidémica da<br />

vigilância, que multiplicam as câmaras encontradas a<br />

cada passo do indivíduo. Vive-se hoje, numa<br />

sociedade escópica que tem como espetáculo, a<br />

disciplina e controle. O olho que vigia e pune, é o mesmo<br />

que possibilita a fama.<br />

A fama parece ainda ser inseparável de um outro<br />

vínculo: a dor de se ter de separar do privado, da vida<br />

rotineira, para se lançar rumo a ser objeto do olhar do<br />

outro, desgarrado e desenraizado da sua forma de ser.<br />

Esta sociedade escópica impõe uma existência vinculada<br />

à visibilidade, e consequentemente à celebridade, mas<br />

por outro lado, amplia cada vez mais a vigilância e o<br />

controle sobre cada indivíduo. Quase já não é possível<br />

sair de casa sem nos depararmos com os dizeres “sorria,<br />

você está a ser filmado”. Verdade ou mentira, não<br />

importa, pois a frase faz existir um olhar invisível<br />

pousado no indivíduo. A instância desse olhar atribuído<br />

ao outro, é chamado por Freud de superego, que tem<br />

como um dos seus atributos vigiar e punir o indivíduo. A<br />

sociedade escópica, ao utilizar esta estrutura subjetiva,<br />

multiplica os seus dispositivos de vigilância electrónica e<br />

transforma-nos todos em objetos vistos e controláveis. A<br />

transparência, passa assim, a ser um ideal.<br />

C on fin am<br />

en t o<br />

Um dos meios utilizados pelos “mass media” para<br />

apresentar o programa “Big Brother” como um show de<br />

realidade, é afirmar que o confinamento deve traduzir<br />

sentimentos verdadeiros, pois não dá para protelar nem<br />

para recalcar emoções ou indisposições com os<br />

companheiros de cela. Na verdade, o confinamento sob<br />

esta perspectiva mantém uma tensão. De um<br />

determinado ponto de vista, poderia ser considerado um<br />

grande engano, pois como consta nas regras do<br />

programa os participantes são vigiados 24 horas por dia.<br />

Mas, “as pessoas uma vez observadas pela câmara<br />

começam a fazer poses, construindo uma real e própria<br />

encenação (Sodré, 1994, pág.36). “A partir desta fase, a<br />

real e própria encenação pode ser entendida como<br />

idealizada.<br />

Portanto, de outro ponto de vista, o desejo pela fama<br />

entendido “como a construção da auto imagem pela<br />

projeção de uma imagem para os outros” (Coelho, 1999),<br />

já produz uma amputação da subjetividade trazendo<br />

como um dos resultados, o impedimento de acionar<br />

instâncias psíquicas superiores.<br />

68


Assim, o que se mostra, não é fingimento ou teatro, pois<br />

a subjetividade sem a restrição da lei basta para se<br />

conformar as regras impostas pelo programa, e<br />

representar a sua identidade ideal, já capturada e ávida<br />

pela fama. Portanto, a vigilância já é um confinamento<br />

que determina uma forma de ser, uma vez que, sob<br />

vigilância, no palco, com os holofotes que potencializam<br />

a fama, há a transmutação de um ser pensante para um<br />

ser de origem. É bom lembrar, que a situação dos<br />

participantes dos reality shows, expostos a uma câmara<br />

24 horas por dia, e cientes de que a sua performance vai<br />

desembocar na sua exclusão ou permanência, tanto pelos<br />

seus parceiros como pelos telespectadores, são os<br />

elementos que confirmam a prisão do ser.<br />

Uma das propostas do Big Brother é a de transformar a<br />

privacidade em espetáculo. Importa salientar, que o que é<br />

apresentado na tela, não é a privacidade nua e crua de<br />

ninguém, pois a direção do programa seleciona alguns<br />

fragmentos de seu interesse. A partir disto, a intimidade é<br />

construída com música de fundo que sublinham ou criam<br />

climas, maquinados com lentes inusitadas que<br />

transformam o banal em inusitado. A intimidade exposta,<br />

é limitada não só pelas mudanças de comportamento já<br />

produzidas, via mudanças de valores da sociedade<br />

espetacular, regida pelos princípios do mercado, pelas<br />

regras do programa, como também elos recursos dos,<br />

mas media.<br />

O vencedor é o que padroniza um modelo de ser na<br />

cultura atual. É aquele que perde a intimidade e a<br />

identidade, aquele que se afasta dos seus e se submete a<br />

uma experiência de “prisão – show”, é julgado e<br />

sentenciado a cada comportamento e apresenta maior<br />

tolerância à privação. Enfim, aquele que muito perde, e<br />

no final é referenciado como vitorioso.<br />

A visibilidade “total” a que se submete um cidadão hoje<br />

em dia pode ser uma armadilha. A nossa sociedade vem<br />

criando cada vez mais uma condição de transparência<br />

dos seus participantes e, muitas vezes, estamos<br />

reivindicando para sermos modernos, a visibilidade.<br />

ampliada, como um direito, de alguns que permanecem<br />

na obscuridade e à margem da história recente ou num<br />

passado considerado longínquo.<br />

No entanto, convém lembrar que somos nós os<br />

produtores e produtos desta sociedade que criámos. Não<br />

somos simples marionetes deste jogo de forças, mas coautores<br />

no nosso silêncio, na “naturalidade” com que<br />

encaramos este estado das coisas.<br />

E st é t ica<br />

Por Luciano Ezequiel Kaminski Professor do Ensino Público em Curitiba, Paraná.<br />

Estética. As três Graças (1636-1638). Museu do Prado, Paris. http://cidade.usp.br<br />

B u sca d a B elez a<br />

A busca da beleza e a melhor forma de representá-la<br />

fazem parte do universo de preocupações humanas.<br />

Beleza essa que pode ser contemplada nas obras de arte,<br />

em objetos do uso cotidiano e no próprio corpo humano.<br />

Na história da humanidade, entretanto, pode-se notar que<br />

os padrões de beleza mudam de acordo com diferentes<br />

culturas e épocas e que esses padrões não estão somente<br />

presentes nas obras de arte.<br />

R eflet ir sob r e B elez a<br />

Mas o que faz um objeto (seja ele o corpo ou uma obra<br />

de arte) ser belo? A Estética, enquanto reflexão<br />

filosófica, busca compreender, num primeiro momento, o<br />

que é beleza, o que é belo. A preocupação com o belo,<br />

com a arte e com a sensibilidade, próprias da reflexão<br />

estética, nos permite pensar, segundo Vásquez em seu<br />

livro Convite à Estética, as nossas relações com o mundo<br />

sensível, o modo como as representações da<br />

sensibilidade dizem sobre o ser humano. Não se trata,<br />

portanto, de uma discussão de preferências,<br />

simplesmente com o fimde uniformizar os gostos. Então<br />

ela não poderá ser normativa, determinando o que deve<br />

ser, obrigatoriamente, apreciado por todos. Ela deve<br />

procurar, ao contrário, os elementos do conhecimento<br />

que permitem entender como funciona o nosso<br />

julgamento de gosto e nosso sentimento acerca da beleza,<br />

mas numa perspectiva geral, universal, isto é, válida e<br />

comum a todos<br />

78


8<br />

Ernest Fischer, em sua obra A Necessidade da Estética,<br />

mostra que a preocupação com a beleza sempre<br />

acompanhou o ser humano desde a fabricação de seus<br />

utensílios. O homem dedicou-se não apenas em fabricar<br />

objetos simplesmente para um uso prático. Além de<br />

serem funcionais esses objetos, por mais primitivos que<br />

fossem, demonstravam uma preocupação com a forma.<br />

Uma forma que facilitasse o manuseio, a funcionalidade,<br />

e que também os tornassemvisivelmente agradáveis –<br />

enfeites e adornos podiam compor esses objetos para<br />

enriquecê-los e torná-los mais atraentes aos sentidos.<br />

Essa preocupação estética tinha também uma função<br />

mágica e de culto.<br />

Objetos, danças, cantos, pinturas, templos, ligados aos<br />

mitos e ritos, tinham um objetivo religioso à medida em<br />

que poderiam invocar, por meio deles, a ação dos deuses.<br />

A beleza, demonstrada nessa preocupação com a forma<br />

está, nesse momento, muito ligada ao caráter prático ou<br />

mágico dos objetos. (FISCHER, 1987, p. 42-47)<br />

E n t r e os G<br />

r egos<br />

Foi entre os gregos antigos que a reflexão sobre o belo se<br />

abriu ao pensamento. Entretanto, como a arte, para eles,<br />

estava vinculada a alguma função (moral, social e<br />

política), ela não tinha sua identidade própria. Sócrates<br />

(470/469 a.C. – 399 a.C.) vai associar o belo ao útil.<br />

Portanto, um objeto que se adapta e cumpre sua função, é<br />

belo. Mesmo que não esteja adornado. Ele inaugura um<br />

tipo de estética funcional, utilitária que, se prestarmos<br />

atenção, está muito presente no nosso cotidiano, na<br />

produção dos objetos de uso corriqueiro, que também<br />

apresentam uma preocupação estética.<br />

Platão (427 – 348 a.C.) já não tem essa preocupação<br />

prática de encontrar objetos belos. Ele não se pergunta o<br />

que é belo, mas o que é “O Belo”. Ele não está<br />

preocupado com a beleza que se encontra nas coisas, mas<br />

numa beleza ideal. Isso quer dizer que os objetos só são<br />

belos na medida em que participam do ideal de beleza,<br />

que é perfeito, imutável, atemporal e supra-sensível, isto<br />

é, está além da dimensão material. Platão afirma que a<br />

beleza que percebemos no mundo material participa de<br />

um Belo ideal: “Quando se der a ocorrência de belos<br />

traços da alma que correspondam e se harmonizem com<br />

um exterior impecável, por participarem do mesmo<br />

modelo fundamental, não constituirá isso o mais belo<br />

espetáculo para quem tiver olhos de ver?” (PLATÃO,<br />

1997, p. 22) A característica fundamental nessa<br />

determinação do belo é a proporção do quanto um objeto<br />

consegue imitar o ideal de beleza; então pode-se<br />

caracterizá-lo como belo. A contemplação dessa beleza<br />

ideal também deve elevar a alma deixando o cidadão<br />

livre de suas paixões e dos prazeres do mundo material,<br />

afinal “... o mais belo é também o mais amável...”.<br />

(Ibidem)<br />

Outro importante filósofo grego é Aristóteles (384 – 322<br />

a.C.). Em contraposição a Platão, Aristóteles procurou o<br />

belo não num mundo ideal, mas na realidade. Em sua<br />

obra Poética ele constrói um manual de como se<br />

reproduz o belo nas diversas artes. Evidencia aí sua<br />

preferência pela tragédia, pois nela a imitação das ações<br />

humanas, as boas ou más, reproduziriam um efeito<br />

chamado catarse, isto é, uma purificação dos sentimentos<br />

ruins, a partir da sua visualização na arte, “... suscitando<br />

o terror e a piedade, tem por efeito, a purificação dessas<br />

emoções.” (ARISTÓTELES, 1997, p. 31), o que tornaria<br />

as pessoas melhores. O belo estava associado, em<br />

Aristóteles, ao conceito de bom e as artes tinham uma<br />

função moral e social, na medida em que reforçavam os<br />

laços da comunidade.<br />

Essas teorias a respeito do belo, principalmente de Platão<br />

e de Aristóteles, serão retomadas no final da Idade Média<br />

e, a partir do Renascimento, os filósofos recuperam a<br />

ideia de beleza relacionada à ordem, harmonia e<br />

proporção, que contribuem decisivamente para a<br />

formação da concepção de beleza clássica.<br />

No caso das esculturas gregas nota-se a busca de imitar<br />

as formas “perfeitas” do ser humano, a valorização da<br />

força física, da virilidade e da proporcionalidade, as<br />

quais ressaltam o equilíbrio e a unidade entre corpo e<br />

espírito, entre homem e cosmos, razão e sentimento, o<br />

que culminava na busca dessas formas consideradas<br />

perfeitas, nessas figuras idealizadas.<br />

N a I d ad e M<br />

é d ia<br />

Fonte: www.abcgallery.com<br />

A Virgem e a Criança com São Nícolas, São João Evangelhista, São Pedro e São<br />

Benedito (1300). Galeria de Uffizi, Florença, Itália. Têmpera em painel, de Giotto<br />

(1266-1337)


Observe nessa figura que, além do seu tema ser<br />

religioso, não existe a preocupação em retratar<br />

fielmente a figura dos corpos. As capelinhas, nas quais<br />

as personagens estão inseridas direcionam nosso olhar<br />

para o alto, embora os olhares delas estejam para baixo,<br />

numa referência à atenção e proteção dada aos homens.<br />

Essa visão grega sobre o corpo humano muda na Europa<br />

da Idade Média. A partir do século X, quando as<br />

invasões bárbaras terminaram, a Europa começou a se<br />

reorganizar politicamente e o cristianismo se tornou um<br />

dos elementos importantes dessa cultura. O corpo<br />

humano, nesse período, é associado ao mundo material,<br />

aos valores terrenos e é desprezado em relação aos<br />

valores espirituais. A força dos valores morais<br />

propagados pelo cristianismo, via Igreja Católica<br />

principalmente, privilegiam a fé, a religiosidade e a<br />

espiritualidade. O corpo é visto como o oposto da busca<br />

do divino, do eterno, uma vez que ele se torna símbolo<br />

do pecado, da tentação e do erro. Ainda desse período, e<br />

como exemplo desse privilégio do espiritual sobre o<br />

físico, pode-se notar a valorização do sofrimento, do<br />

martírio, do sacrifício do corpo, como forma de elevação<br />

espiritual. Nas muitas obras de arte medievais é possível<br />

verificar essa desconsideração pelas formas corporais<br />

quando percebemos as figuras humanas desenhadas de<br />

forma retilínea ou com formas triangulares, apontando<br />

para as alturas, numa referência ao céu, ao paraíso<br />

celeste.<br />

N o R en ascim<br />

en t o<br />

de Dionísio, o qual buscava o prazer na alegria, na<br />

embriagues do vinho e na força dos desejos. A beleza era<br />

vista como imitação da natureza, da realidade concreta,<br />

como representação do espiritual, do divino, na<br />

preocupação de encontrar a perfeita forma, a proporção e<br />

a harmonia.<br />

Os estudos de Leonardo da Vinci sobre o corpo nessa<br />

época, por outro lado, se apresentavam como pesquisas<br />

científicas no sentido de compreender a estrutura<br />

harmônica do corpo. Essas pesquisas forneceram a<br />

Leonardo o conhecimento sobre detalhes anatômicos do<br />

corpo e que influenciaram na criação de suas obras de<br />

arte.<br />

A partir da Idade Moderna, a visão científica,<br />

matemática e geométrica da natureza se desenvolve e<br />

também se estende ao corpo. Este torna-se objeto de<br />

pesquisas e passa a ser entendido como uma máquina<br />

que pode ser consertada, melhorada e, a partir desse<br />

conhecimento, elaboram-se discursos e práticas de<br />

controle e poder. As formas de controle e poder em torno<br />

do corpo visam a responder objetivos econômicos,<br />

sociais e morais, de contenção dos impulsos e instintos,<br />

de cura de enfermidades, para fins de produção, como no<br />

caso do sistema capitalista, onde os corpos são vistos<br />

como forças que devem ser preparadas e treinadas para o<br />

trabalho nas grandes indústrias. Ou ainda o corpo, que<br />

desde os suplícios e espetáculos punitivos medievais, e<br />

muito mais com o advento das prisões (ou mesmo nas<br />

indústrias e escolas) a partir do final do século XVIII, se<br />

torna objeto de controle político, pelo qual se mantém a<br />

ordem social e a dinâmica de dominação, como afirma o<br />

pensador francês contemporâneo Michel Foucault (1926-<br />

1985) “(...) o corpo é investido por relações de poder e<br />

de dominação; mas em compensação sua constituição<br />

como força de trabalho só é possível se ele está preso<br />

num sistema de sujeição (onde a necessidade é também<br />

um instrumento político cuidadosamente organizado,<br />

calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é<br />

ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”.<br />

(FOUCAULT, 1995, p. 28)<br />

Boticelli. Nascimento de Vênus.<br />

No Renascimento, movimento cultural ocorrido na<br />

Europa, a partir do século XV, os corpos são pintados<br />

retomando os ideais da antiguidade grega e romana. O<br />

corpo é representado com o objetivo de expressar a<br />

unidade entre o físico e o espiritual, numa referência à<br />

celebração da vida dionisíaca, que remete ao mito grego<br />

A E st é t ica M<br />

od er n a<br />

A Estética, enquanto uma reflexão própria sobre a<br />

beleza, surgiu no século XVIII, com o filósofo alemão<br />

Baumgarten (1714-1762). Seu surgimento se deu no<br />

contexto do Iluminismo, movimento filosófico cultural<br />

ocorrido na Europa, que conhecia, naquele momento, os<br />

grandes reis absolutistas. Foi contra aos abusos desses<br />

governantes que muitos pensadores se rebelaram. O<br />

98


Absolutismo era uma forma autoritária que os reis<br />

europeus utilizavam para governar suas nações. Controle<br />

absoluto das leis, das atividades econômicas, enfim, nada<br />

era feito sem o seu consentimento. A lei era o rei.<br />

A partir da Baixa Idade Média, entre os séculos XIV e<br />

XVI, com o crescimento das cidades a Europa sente<br />

algumas mudanças. No campo, os moinhos utilizados na<br />

estocagem da produção excedente, a rotatividade das<br />

terras que agilizava a produção e as feiras nos castelos<br />

que estimulavam o comércio, anunciavam que o sistema<br />

feudal precisava de mudanças. Na cidade, o avanço do<br />

comércio, inclusive entre cidades distantes e com outras<br />

nações, o avanço das cruzadas, que acabaram por levar<br />

não apenas a fé cristã para outras regiões da Europa, mas<br />

ampliaram as possibilidades de negócios, marcaram o<br />

surgimento de um novo sistema econômico: o<br />

capitalismo. Comerciantes que enriqueciam às custas da<br />

venda de excedentes, artesãos que aumentavam sua<br />

produção e suas rendas com a contratação de jovens,<br />

oriundos do campo que buscavam uma vida melhor nas<br />

cidades, surgia, dessa forma, uma classe social peculiar:<br />

a burguesia. O renascimento das cidades também<br />

estimulou o renascimento do comércio e com essas<br />

mudanças a burguesia, classe que impulsionou essas<br />

transformações, passou a enriquecer e conquistar espaço<br />

na sociedade europeia.<br />

Os reis, interessados nessas riquezas e na importância<br />

econômica da burguesia, ao mesmo tempo que protegia<br />

seus negócios (com soldados que acompanhavam<br />

caravanas e acordos comerciais com outras cidades ou<br />

com a cobrança de tarifas alfandegárias, por exemplo),<br />

dificultavam o enriquecimento e a participação política<br />

dessa classe. Os impostos pagos aos reis e dízimos, à<br />

Igreja, impediam a burguesia de crescer política e<br />

economicamente. Ao mesmo tempo em que havia uma<br />

certa proteção dos seus negócios pela monarquia também<br />

existia uma limitação das suas liberdades políticas e<br />

econômicas, pois a burguesia ficava limitada ao poder<br />

dos reis.<br />

O Iluminismo europeu veio responder e dar voz a essas<br />

exigências sociais. A partir dos ideais de liberdade,<br />

igualdade, fraternidade e de direitos políticos, os anseios<br />

políticos-econômicos da burguesia do século XVIII<br />

encontravam eco. Mas o Iluminismo não ficou restrito ao<br />

plano político e econômico. Ele também lançou suas<br />

luzes para a ciência, educação e para as artes.<br />

B au m<br />

gar t en e o B elo<br />

É no contexto acima que Baumgarten inaugura, em sua<br />

obra Estética, essa ciência ou teoria da beleza, “...como<br />

arte de pensar de modo belo, como arte análoga da<br />

razão...” (BAUMGARTEN, 1997, p. 74), como<br />

“...ciência do conhecimento sensitivo...” (Ibidem).<br />

O saber filosófico privilegia os conceitos: abstrações e<br />

sínteses que reúnem diversas ideias numa espécie de<br />

chave-geral, a partir da qual se compreende uma visão de<br />

mundo, uma teoria. Esses conceitos, por serem abstratos,<br />

foram supervalorizados e passaram a ter como que<br />

existência própria. Assim a filosofia construiu a chamada<br />

Metafísica.<br />

Uma dimensão do saber que, por referir-se ao que está<br />

além do físico, do material, parece ter dado as costas ao<br />

que é sensível. O pensamento conceitual, próprio da<br />

filosofia, durante muitos séculos deixou em segundo<br />

plano o terreno do mundo prático, da sensibilidade e dos<br />

afetos humanos.<br />

Nesse sentido é que Baumgarten refere-se à Estética<br />

como um conhecimento do sensível, que se utilizará de<br />

um instrumento análogo à razão: a representação<br />

sensível. Não se pode compreender a dimensão da<br />

sensibilidade humana com os mesmos instrumentos do<br />

pensamento abstrato. O que não quer dizer que se<br />

abandonará a razão, ou se reduzirá à natureza pura, mas<br />

que, como conhecimento, com sua pretensão de garantia,<br />

universalidade e generalidade, de validade enfim,<br />

precisaremos tanto da razão quanto do corpo.<br />

Na história da filosofia esse impasse entre conhecimento<br />

sensível e racional é recorrente. É próprio da filosofia a<br />

discussão sobre a relação entre o particular e o universal,<br />

sensível e racional, natural e o espiritual.<br />

Como se dá, por exemplo, a relação entre a reflexão<br />

teórica, abstrata e a experiência sensível, na produção do<br />

conhecimento dito verdadeiro? O que garante a verdade?<br />

Essa é uma das questões que a filosofia aborda ao se<br />

deparar com a realidade sensível.<br />

É preciso compreender a sensibilidade como uma<br />

companheira do pensamento conceitual, abstrato. Na<br />

discussão estética não se pode cair numa disputa sobre<br />

qual gosto é melhor ou pior, nem contentar-se com as<br />

simples impressões sensíveis que cada sujeito possui.<br />

Deve-se compreender intelectualmente como se dá o<br />

conhecimento sensível e como ele se relaciona com a<br />

razão.<br />

09


O meio-termo entre os objetos matérias, as coisas e o<br />

pensamento, a partir do qual se pode falar em<br />

conhecimento é a representação. O mundo sensível se dá<br />

ao pensamento a partir da representação, isto é, as coisas<br />

reais são apreendidas em nossa mente ao se converterem<br />

em imagens. Esse conhecimento sensitivo, segundo<br />

Baumgarten é um “...complexo de representações que<br />

subsistem abaixo da distinção” (Idem, p.79). Distinção<br />

entende-se por compreensão científica do mundo. Ocorre<br />

que, antes de conhecermos algo cientificamente, ele se<br />

nos apresenta como representação, ou seja, o objeto do<br />

saber não vai ao pensamento diretamente. Entre a esfera<br />

do pensamento puro e da realidade objetiva a<br />

representação é uma forma que o homem tem de<br />

conhecer a realidade. A compreensão da sensibilidade<br />

passa pelo contorno das representações. Aí não se trata<br />

de uma realidade pura e abstrata das coisas, nem de uma<br />

idealidade racional, mas de como aquilo que é sensível<br />

se torna representável e belo.<br />

Para Baumgarten, o belo é fruto de um consenso, de um<br />

acordo comum. Na parte III da sua Estética ele insere as<br />

três noções de consenso: “...o consenso dos pensamentos<br />

entre si em direção à unidade...” (Ídem, p. 79); “...o<br />

consenso da ordem...” (Idem, p. 80); “...consenso interno<br />

dos signos e o consenso dos signos com a ordem e com<br />

as coisas...” (Ibidem).<br />

Isso quer dizer que não se está falando do gosto<br />

individual, subjetivo apenas. Mas num acordo comum.<br />

Esse acordo entre pensamento, ordem e signos exige que<br />

os indivíduos tenham uma destreza, uma perspicácia,<br />

imaginação, sutileza de espírito, gosto refinado e<br />

apurado, enfim uma aptidão para reconhecer e expressar<br />

a força e a elegânciade objetos belos.<br />

O consenso e harmonia que se dão entre os que possuem<br />

essas qualidades, se conquistam pelo “exercício<br />

estético”, isto é, uma contemplação constante, um<br />

convívio regular com as obras de arte, o que permitiria<br />

uma “...gradual aquisição do hábito de pensar com<br />

beleza...”<br />

(Idem, p. 87), podem garantir a universalidade do belo.<br />

E st é t ica C on t em<br />

p or â a n e<br />

Os Comedores de Batata (1885), óleo sobre tela de Van Gogh (1853-1890).<br />

Fundação Vincent van Gogh, Amesterdã. Observe nessa obra a<br />

despreocupaçãoem retratar a beleza, mas representar o cotidiano de uma família.<br />

www.pralmassi.blig.ig.com.<br />

A partir do século XIX, com o desenvolvimento da<br />

sociedade industrial e nova realidade urbana, esse ideal<br />

de beleza vai mudando e as artes passam a representar os<br />

problema gerados pela nova estrutura social, como a<br />

exploração do trabalho, as guerras, os contrastes entre<br />

cidade e campo e os demais conflitos sociais.<br />

O desenvolvimento das novas tecnologias de<br />

comunicação interfere na formação de novos padrões de<br />

gosto e redimensionam as noções de beleza. Essas<br />

mudanças podem ser percebidas mais facilmente com o<br />

advento da mídia, e são fortemente influenciadas por ela.<br />

Pelo poder desses veículos de comunicação de massa,<br />

esses ideais de beleza tornam-se cada vez mais<br />

uniformizados e voltados para o consumo.<br />

A comercialização que se faz em torno desses novos<br />

padrões de beleza geram novas preocupações com o<br />

corpo, que torna-se um objeto de propaganda e de<br />

consumo. Por trás desse olhar sobre o corpo, produzemse<br />

discursos que visam controle e poder. Neste caso, com<br />

fins econômicos explícitos e com sérias consequências<br />

éticas a serem discutidas.<br />

19


29<br />

K an t e o Sen t im en t o d o B elo<br />

Emmanuel Kant (1704-1804).<br />

Immanuel Kant escreveu, dentre outras, três grandes<br />

obras, consideradas as principais por representarem o<br />

cerne do seu pensamento: A Crítica da Razão Pura, A<br />

Crítica da Razão Prática e a Crítica dos Juízos. Discute<br />

sobre o conhecimento na primeira, e sobre a moral na<br />

segunda. O filósofo refletiu, na terceira Crítica, sobre os<br />

juízos estéticos.<br />

Entre os problemas relacionados à dimensão prática da<br />

vida, das ações humanas e da dimensão do conhecimento<br />

racional, intelectual está a dificuldade de se compreender<br />

melhor a dimensão da sensibilidade.<br />

Qual a relação entre o mundo concreto e as ideias? Como<br />

é possível que as coisas sensíveis, materiais, possam se<br />

tornar conhecimento intelectual? Como se dá a relação<br />

entre o que é natural, determinado e limitado com as<br />

ideias, com o que é indeterminado e livre?<br />

Para Kant a ponte entre a faculdade cognitiva (o<br />

intelecto) e a dimensão da sensibilidade, é a faculdade do<br />

juízo, relacionada aos sentimentos.<br />

Sentimentos esses que não devem ser compreendidos em<br />

termos de emoções (ódio ou amor, por exemplo). Esse<br />

sentimento que Kant vai investigar na Crítica da<br />

faculdade do Juízo é o sentimento estético, o sentimento<br />

de prazer e desprazer que se tem a partir de um tipo<br />

específico de objetos representados. Observe que Kant<br />

fala em sentimentos e não em sensação de agradável ou<br />

desagradável. Enquanto apenas a sensação de gostar ou<br />

não de algo parece muito subjetiva, o que<br />

impossibilitaria qualquer pretensão à universalidade, a<br />

ideia de sentimento dá mais força à impressão que as<br />

representações da sensibilidade causam no sujeito. Essa<br />

força nos faz pensar na possibilidade de que os<br />

sentimentos seriam mais comuns, isto é, que eles se<br />

apresentem da mesma forma a outras pessoas e, por isso,<br />

comunicáveis.<br />

Kant afirma que o juízo de gosto “...não é (...) nenhum<br />

juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e<br />

sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo<br />

fundamento de determinação não pode ser, senão,<br />

subjetivo” (KANT, 1997, p. 93). Esses juízos, embora se<br />

remetam a algum objeto em particular, um objeto real,<br />

uma obra de arte, por exemplo, ou uma paisagem da<br />

natureza, não dizem a respeito do objeto. No juízo de<br />

gosto não se faz referência ao objeto, como num juízo de<br />

conhecimento, mas se refere ao modo como o sujeito é<br />

afetado pela representação pura deste objeto.<br />

Esses juízos de gosto ou juízos estéticos, segundo Kant,<br />

possuem três alcances: o belo, o agradável e o útil.<br />

Quanto ao agradável e ao útil, que são sentimentos<br />

despertados em vista de fins e interesses particulares,<br />

eles são contrários ao sentimento do belo, pois este é<br />

desprovido de qualquer interesse ou finalidade que não<br />

seja ele próprio.<br />

O sentimento de beleza que se tenha diante de algum<br />

objeto não pode estar atrelado, segundo Kant, a nenhum<br />

interesse ou utilidade a que ele possa estar ligado.<br />

Quando utilizamos ou temos muita necessidade dele em<br />

vista de algum fim, não estamos em condições de<br />

vislumbrar sua beleza: “Cada um tem de reconhecer que<br />

aquele juízo sobre beleza, ao qual se mescla o mínimo<br />

interesse, é muito faccioso e não é nenhumjuízo-de-gosto<br />

puro” (Idem, p. 96).


O<br />

b ser v aç ã o<br />

Este material foi elaborado tomando como base o Livro de filosofia utilizado no Estado do Paraná. Adaptando textos e<br />

fazendo os recortes de acordo com as necessidades do material aqui disponível.<br />

Duas partes, o pleno e o vazio. O pleno é dividido em pequenas partículas, chamadas átomos. Os átomos são indivisíveis,<br />

infinitos, eternos, absolutamente simples; são todos iguais em qualidade, diferem em forma, ordem e posição. Qualquer<br />

substância é feita desses átomos, cujas possíveis combinações são infinitas. Os objetos existem enquanto os átomos que os<br />

constituem se mantiverem juntos. As mudanças da realidade explicam-se pela contínua agregação e desagregação de<br />

átomos.<br />

Os átomos são indestrutíveis e a teoria aparece como um princípio de conservação da matéria.<br />

Como se movem os átomos, como se aproximam ou ligam, como se separam, porque se agrupam de uma maneira ou outra,<br />

são questões que nem sequer eram formuladas e só mais de 20 séculos depois começaram a ser abordadas.<br />

Para Demócrito a alma (psyche) é corpórea, mas feita dos átomos mais leves e mais móveis (esféricos por terem mais<br />

mobilidade).<br />

Existe um pouco destes átomos leves em todas as coisas, o que significa que há alma em tudo. Assim explicava a<br />

capacidade das coisas causarem sensações. O "materialismo" de Demócrito era pois de tipo especial. A sua teoria atómica<br />

era bastante completa pois procurava explicar também os sonhos, os mistérios e o destino.<br />

Alguns autores atribuem a origem da teoria atómica de Leucipo e Demócrito a teorias que teriam sido desenvolvidas na<br />

Índia, e outros a origens fenícias. Não é provável que tal acontecesse embora influências estranhas possam estar na base da<br />

teoria de Leucipo e Demócrito.<br />

As analogias entre a teoria atómica grega e as modernas teorias desenvolvidas a partir de Dalton, são por vezes exageradas.<br />

Há uma diferença abismal entre uma teoria filosófica que não pode ser testada e uma teoria científica sujeita a inúmeras<br />

confirmações experimentais.<br />

Fontes:<br />

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />

FERNANDES, Vladimir. Seminários de Estudos em Epistemologia e Didática. Universidade de São Paulo; Faculdade de<br />

Educação, 2007.<br />

HRYNIEWICZ, Severo. Para filosofar hoje. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2008.<br />

TORRANO, José Antônio Alves. O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo:<br />

Iluminuras, 1996.<br />

VASCONCELOS, Ana. Manual compacto de filosofia. São Paulo: Rideel, 2010.<br />

http://historiadafilosofia.wordpress.com/2009/01/25/capitulo-3-%E2%80%93-as-novas-cosmologias-dos-atomistas/<br />

39


SOCIOLOGIA<br />

59


SUMÁRIO<br />

A ”GÊNESIS SOCIOLÓGICA” .....................................................................<br />

AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS NA COMPREENSÃO DO PRESENTE ....<br />

A PRODUÇÃO SOCIOLÓGICA BRASILEIRA ..........................................<br />

O PROCESSO DE TRABALHO E A DESIGUALDADE SOCIAL ...............<br />

O MUNDO DO TRABALHO .......................................................................<br />

MOVIMENTOS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE ........................<br />

99<br />

104<br />

114<br />

119<br />

124<br />

129<br />

79


A ”GÊNESIS SOCIOLÓGICA”<br />

acreditava que o aspecto material do mundo seria um<br />

tipo de fruto imperfeito das idéias universais, as quais<br />

existem por si mesmas. Aristóteles já mencionava que o<br />

homem era um ser que, necessariamente, nasce para estar<br />

vivendo em conjunto, isto é, em sociedade. No seu livro<br />

chamado Política, no qual consta um estudo dos<br />

diferentes sistemas de governo existentes, percebe-se o<br />

seu interesse em entender a sociedade.<br />

I d ad e M<br />

é d ia<br />

Por Everaldo Lorensetti – Professor de <strong>Sociologia</strong> no Estado do Paraná.<br />

Nesse início de trabalho, buscaremos conhecer como a<br />

<strong>Sociologia</strong> surgiu, para depois sabermos como é que ela<br />

pode nos ajudar a entender a sociedade, bem como os<br />

problemas levantados pela atividade anterior. Vamos<br />

fazer um passeio pela história para encontrarmos suas<br />

bases. Acompanhe:<br />

C om o t u d o com eç ou !<br />

Apesar da ciência sociológica ser considerada nova, pois<br />

ela se consolidou por volta do século XIX, a angústia de<br />

se entender as sociedades, por sua vez, não é tão nova<br />

assim. Se olharmos para a Grécia Antiga, vamos ver que<br />

lá já havia o desejo de se entender a sociedade.<br />

No século V a.C, havia uma corrente filosófica, chamada<br />

sofista, que começava a dar mais atenção para os<br />

problemas sociais e políticos da época. Porém, não foram<br />

os gregos os criadores da <strong>Sociologia</strong>.<br />

Mas foram os gregos que iniciaram o pensamento crítico<br />

filosófico. Eles criaram a <strong>Filosofia</strong> (que significa amor<br />

ao conhecimento) e que, por sua vez, foi um impulso<br />

para o surgimento daquilo que chamamos, hoje, de<br />

ciência, a qual se consolidaria a partir dos séculos XVI e<br />

XVII, sendo uma forma de interpretação dos<br />

acontecimentos da sociedade mais distanciada das<br />

explicações míticas.<br />

Foram com os filósofos gregos Platão (427-347 a.C) e<br />

Aristóteles (384-322 a.C), que surgiram os primeiros<br />

passos dos trabalhos mais reflexivos sobre a sociedade.<br />

Platão foi defensor de uma concepção idealista e<br />

Séculos mais tarde, no período chamado de Idade Média<br />

(que vai do século V ao XV, mas exatamente entre os<br />

anos 476 a 1453), houve, segundo os renascentistas (que<br />

vamos conhecer mais à frente), um período de “trevas”<br />

quanto à maneira de ver o mundo.<br />

Segundo eles, havia um prevalecer da fé, onde os campos<br />

mítico e religioso, tendiam a oferecer as explicações<br />

mais viáveis para os fatos do mundo. Na Europa<br />

Medieval, esse predomínio religioso foi da Igreja<br />

Católica.<br />

Tal predomínio da fé, de certo modo, e segundo os<br />

humanistas renascentistas, asfixiava as tentativas de<br />

explicações mais especulativas e racionais (científicas)<br />

sobre a sociedade. Não cumprir uma regra ou lei<br />

estabelecida pela sociedade, poderia ser entendido como<br />

um pecado, tamanha era a mistura entre a vida cotidiana<br />

e a esfera sobrenatural.<br />

É claro que se olharmos a Idade Média somente pela<br />

ótica dos renascentistas ela pode ficar com uma “cara<br />

meio tenebrosa”. Na verdade, ela também foi um período<br />

muito rico para a história da humanidade, importante,<br />

inclusive, para a formação da nossa casa, o mundo<br />

9


ocidental. Vale a pena conhecermos um pouco mais<br />

sobre essa história.<br />

E, na continuidade da história...<br />

T u d o cam<br />

in h av a p ar a o u so d a r az ã o<br />

O predomínio, na organização das relações sociais, dos<br />

princípios religiosos durou até pelos menos o século XV.<br />

Mas já no século XIV começava a acontecer uma<br />

renovação cultural. Era o início do período conhecido<br />

por Renascimento.<br />

Os renascentistas, com base naquilo que os gregos<br />

começaram, isto é, a questionar o mundo de maneira<br />

reflexiva (como já contamos anteriormente), rejeitavam<br />

tudo aquilo que seria parte da cultura medieval, presa aos<br />

moldes da igreja, no caso, a Católica.<br />

O renascimento espalhou-se por muitas partes da Europa<br />

e influenciava a arte, a ciência, a literatura e a filosofia,<br />

defendendo, sempre, o espírito crítico.<br />

Nesse tempo, começaram a aparecer homens que, de<br />

forma mais realista, começavam a investigar a sociedade.<br />

A exemplo disso temos Nicolau Maquiavel (1469-1527)<br />

que, em sua obra intitulada de O Príncipe, faz uma<br />

espécie de manual de guerra para Lorenzo de Médici.<br />

Ali comenta como o governante pode manipular os<br />

meios para a finalidade de conquistar e manter o poder<br />

em suas mãos.<br />

Obras como estas davam um novo olhar para sociedade,<br />

olhar pelo qual, através da razão os homens poderiam<br />

dominar a sociedade, longe das influências divinas.<br />

Era a doutrina do antropocentrismo ganhando força. O<br />

homem passava a ser visto como o centro de tudo,<br />

inclusive do poder de inventar e transformar o mundo<br />

pelas suas ações.<br />

Além de Maquiavel, outros autores renascentistas, como<br />

Francis Bacon (1561-1626), filósofo e criador do método<br />

científico conhecido por experimental, ajudavam a dar<br />

impulso aos tempos de domínio da ciência que se<br />

iniciavam.<br />

N ã o p er d en d o d e v ist a. . .<br />

Estamos contando tudo isso para que você perceba que<br />

nem sempre as pessoas puderam contar com a ciência<br />

para entender o mundo, sobretudo o social, que é o<br />

queremos compreender.<br />

Dessa maneira, muitas pessoas no passado, ficaram<br />

‘presas’ principalmente, àquelas explicações a respeito<br />

da realidade que eram baseadas na tradição, em mitos<br />

antigos ou em explicações religiosas.<br />

O I lu m in ism o<br />

Já no século XVIII, houve um momento na Europa,<br />

chamado de Iluminismo, que começou na Inglaterra e na<br />

França, mas que posteriormente espalhou-se por todo o<br />

continente em que a ideia de valorizar a ciência e a<br />

racionalidade no entendimento da vida social tornou-se<br />

ainda mais forte.<br />

Uma característica das ideias do Iluminismo era o<br />

combate ao Estado absoluto, ou absolutismo, que<br />

começou a surgir na Europa ainda no final da Idade<br />

Média, no século XV, em que o rei concentrava todo o<br />

poder em suas mãos e governava sendo considerado um<br />

representante divino na terra, uma voz de Deus, a qual<br />

até a igreja, não raramente, se sujeitava.<br />

Com a ciência ganhando força, era, digamos, inviável o<br />

fato de voltar a pensar a vida e a organização social por<br />

vias que não levassem em conta as considerações da<br />

ciência em debate com as de fundo religioso. Como por<br />

exemplo, imaginar os governantes como sendo<br />

representantes sobrenaturais.<br />

Nesse período, a continuada consolidação da reflexão<br />

sistemática sobre a sociedade foi ajudada por autores<br />

como Voltaire (1694-1778), filósofo que defendia a<br />

razão e combatia o fanatismo religioso; Jean-Jacques<br />

Rousseau (1712-1778), que estudou sobre as causas das<br />

desigualdades sociais e defendia a democracia;<br />

Montesquieu (1689-1755), que criticava o absolutismo, e<br />

defendia a criação de poderes separados (legislativo,<br />

judiciários e executivo), os quais dariam maior equilíbrio<br />

ao Estado, uma vez que não haveria centralidade de<br />

poder na mão do governante.<br />

P or t an t o, com a con t r ib u iç ã o I lu m in ist a a partir das<br />

teorias sobre a sociedade que no período Iluminista<br />

surgiram, é que começa a ser impulsionada, ou<br />

preparada, a ideia da existência de uma ciência que<br />

pudesse ajudar a interpretar os movimentos da própria<br />

sociedade.<br />

01


M<br />

C d C R<br />

I n d r<br />

on solid aç ã o o ap it alism o e a ev olu ç ã o<br />

u st ial!<br />

Estamos mudando de assunto?<br />

Mudando em parte, porém não estamos deixando de falar<br />

do surgimento da <strong>Sociologia</strong>. Há outros elementos que a<br />

motivaram surgir.<br />

As transformações na sociedade europeia não estavam<br />

ocorrendo somente no campo das ideias, como era o caso<br />

da consolidação da ciência como ferramenta de<br />

interpretação do mundo, que vimos até aqui.<br />

Há também a consolidação do sistema capitalista,<br />

culminando com a Revolução Industrial, que ocorreu em<br />

meados do século XVIII, na Inglaterra, gerando grandes<br />

alterações no estilo de vida das pessoas, sobretudo nas<br />

das que viviam no campo ou do artesanato. Estes temas<br />

despertavam o interesse de críticos da época.<br />

Dessa maneira, quando a <strong>Sociologia</strong> iniciou os seus<br />

trabalhos, ela o fez com base em pensadores que viram<br />

os problemas sociais ocasionados a partir da crise gerada<br />

pelos fatos acima mencionados.<br />

R ecor r en d o à H ist ó r ia p ar a en t en d er m os<br />

Podemos dizer que o início do sistema capitalista se deu<br />

na chamada Baixa Idade Média, entre os séculos IX e<br />

XV, na Europa Ocidental.<br />

A partir do século XI, com as “cruzadas” realizadas pela<br />

Igreja Católica, para conquistar Jerusalém que estava<br />

dominada pelos muçulmanos, um canal de circulação de<br />

riquezas na Europa foi aberto.<br />

O contato cultural e o comércio do ocidente com o<br />

oriente europeu foram retomados via Mar Mediterrâneo.<br />

Com a movimentação de pessoas e riquezas houve, na<br />

Europa ocidental, o surgimento de núcleos urbanos,<br />

conhecidos por burgos. Destes, ressurgiram as cidades,<br />

pois existiam poucas naquele tempo.<br />

As chamadas corporações de ofício, que eram uma<br />

espécie de associação que organizava as atividades<br />

artesanais para ter acordo entre os preços de venda e<br />

qualidade do produto, por exemplo, começaram a<br />

aparecer a fim de regular o trabalho dos artesões que<br />

vinham para as cidades exercer sua profissão. Aqui<br />

vemos que a ideia do lucro se fortalecia.<br />

“Quase não existiam cidades...”<br />

Descubra pela história o porquê do fato que acima é<br />

mencionado. Não lhe soa estranho? O que fez com que<br />

isso ocorresse? Tal fato poderá se repetir algum dia em<br />

alguma sociedade? Vamos discutir pensando o nosso<br />

mundo, hoje.<br />

ais t ar d e, os eu r op eu s começaram a explorar o<br />

comércio em termos mundiais, principalmente depois<br />

dos séculos XV e XVI e das chamadas Grandes<br />

Navegações.<br />

Por exemplo, com o descobrimento da América, muita<br />

riqueza daqui era levada à Europa para a criação de<br />

mercadorias que seriam vendidas nesse mercado mundial<br />

que estava surgindo. A ideia de uma produção em série<br />

de mercadorias começava a surgir.<br />

As antigas corporações de ofícios foram transformadas<br />

pelos comerciantes da época em manufatura. O trabalho<br />

manufatureiro acontecia com vários artesãos, em locais<br />

separados e dirigidos por um comerciante que dava a eles<br />

a matéria-prima e as ferramentas. No final do trabalho<br />

encomendado, os artesões recebiam um pagamento<br />

acertado com o comerciante.<br />

Mais à frente ainda, os comerciantes (futuros<br />

empresários capitalistas) pensaram que seria melhor<br />

reunir todos esses artesãos num só lugar, pois assim<br />

poderiam ver o que eles estavam produzindo. Além de<br />

cuidar da qualidade do produto, o controle sobre a<br />

matéria-prima e ritmo da produção poderia ser maior.<br />

A id eia d a fá b r ica. . .<br />

Um lugar com uma produção mais organizada, com a<br />

acentuação da divisão de funções, onde o artesão ia<br />

deixando de participar do processo inteiro de produção<br />

da mercadoria e onde passava a operar apenas parte da<br />

produção. Desse ponto para a implantação das máquinas<br />

movidas a vapor, restava somente o tempo da invenção<br />

das mesmas.<br />

Quando o inventor escocês James Watt (1736-1819)<br />

conseguiu patentear a máquina a vapor, em abril de<br />

1784, ela veio dar grande impulso à industrialização que<br />

se instalava, aumentando a produção, diminuindo os<br />

gastos com mão-de-obra e aumentando o acúmulo de<br />

capital.<br />

101


201<br />

V ej a o q u ad r o q u e se m<br />

on t av a<br />

O sistema feudal da Europa Ocidental, estava sendo<br />

superado. Ele não conseguiria suprir as necessidades dos<br />

novos mercados que se abriam. O sistema capitalista,<br />

com base na propriedade privada e no lucro, isto é, na<br />

acumulação de capital, estava sendo consolidado.<br />

A partir da Revolução Industrial (século XVIII), as<br />

cidades da Europa Ocidental começavam a se<br />

transformar em grandes centros urbanos comerciais e,<br />

posteriormente, industriais. Muitas delas “inchadas” por<br />

desempregados. O estilo de vida das pessoas estava se<br />

transformando – para alguns de forma violenta e radical<br />

– como era o caso de muitos camponeses que eram<br />

expulsos pelos senhores das terras que as cercavam para<br />

criar ovelhas e fornecer lã às fábricas de tecidos.<br />

Já no caso dos artesãos, esses “perdiam” sua qualificação<br />

profissional e o controle sobre o que produziam, ou seja,<br />

de profissionais, passavam a “não ter profissão”, pois a<br />

indústria era quem ditava que tipo de profissional<br />

precisava ser. Não importava se fossem grandes artesãos,<br />

só precisariam aprender a operar a máquina da fábrica.<br />

Se fosse hoje, usaríamos o termo aprender a “apertar<br />

botões”. Dessa maneira, como não tinham capital para<br />

ter uma produção autônoma e competir com a fábrica,<br />

submetiam-se ao trabalho assalariado.<br />

Novas e grandes invenções estavam sendo realizadas no<br />

campo tecnológico, como as próprias máquinas a vapor<br />

das indústrias. O comércio mundial estava aumentando<br />

cada vez mais. O mundo estava “encolhendo”, em<br />

termos de fronteiras comerciais e ficando “europeizado”.<br />

E em meio a isto, duas classes distintas emergiam: a<br />

composta pelos empresários e banqueiros, chamada de<br />

classe burguesa, e a classe assalariada, ou proletária.<br />

A classe burguesa é aquela que ao longo do tempo veio<br />

acumulando capital com o comércio e reteve os meios de<br />

produção em suas mãos, isto é, as ferramentas, os<br />

equipamentos fabris, o espaço da fábrica, etc., bem como<br />

o poder político. Já a classe proletária, sem capital e<br />

expropriada dos meios de produção por meio de sua<br />

expulsão<br />

dos feudos e das terras comuns, tornava-se fornecedora<br />

de mão-de-obra aos donos das fábricas.<br />

O quadro social na Europa Ocidental do período passava,<br />

então, por transformações profundas, provocadas pela<br />

consolidação do sistema capitalista, pela valorização da<br />

ciência contrapondo as explicações míticas a respeito do<br />

mundo, pela abertura de mercados mundiais e pelos<br />

conflitos derivados das condições de vida miseráveis dos<br />

operários, confrontadas com o enriquecimento da classe<br />

burguesa. É em meio a todas essas mudanças que a<br />

<strong>Sociologia</strong> começa a ser pensada como sendo uma<br />

ciência para dar respostas mais elaboradas sobre os<br />

novos problemas sociais.<br />

A <strong>Sociologia</strong> e suas teorias, se constituem ferramentas de<br />

reflexão sobre a sociedade industrial e científica que<br />

surgia.<br />

O Q u e é o Sist em a C ap it alist a:<br />

A propriedade privada é sua característica mais forte. O<br />

capitalista é aquele que a possui, isto é, a empresa ou os<br />

meios de produção.<br />

Os empregados são aqueles que vendem sua força de<br />

trabalho para o capitalista.<br />

E o lucro, além da recuperação do capital investido na<br />

fabricação dos bens a serem vendidos, é a meta deste<br />

sistema.<br />

Distinção de classes: embora não a única, a propriedade<br />

ou não dos meios de produção é a primeira e mais<br />

importante condição que separa os indivíduos em<br />

diferentes classes sociais.


R E FE R Ê N C I A S:<br />

ALVES, R. <strong>Filosofia</strong> d a ciê n cia. São Paulo: Ars Poética, 1996.<br />

AZEVED , F. P r in cí p ios d e <strong>Sociologia</strong>: pequena introdução ao estudo da sociologia<br />

geral. 11ª ed. – São Paulo: Duas Cidades, 1973.<br />

CASTRO, A. M. DIAS, Edmundo Fernandes. C on t ex t o h ist ó r ico d o ap ar ecim<br />

en t o<br />

d a sociologia. In.: Introdução ao pensamento sociológico. São Paulo:<br />

Centauro, 2001.<br />

CHAUI, M. S. O q u e é id eologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.<br />

MAQUIAVEL, N. O p r í n cip e. São Paulo: Martins Fontes, 1990.<br />

MARX, K. O cap it al: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 1994.<br />

MARX, K; ENGELS, F. O m an ifest o d o p ar t id o com u n ist. aRio de Janeiro: Paz<br />

e Terra, 1998.<br />

301


A S T E O R I A S SO C I O L Ó G I C A S N A C O M P R E E N SÃ O D O<br />

P R E SE N T E<br />

Por Everaldo Lorensetti – professor no Estado do Paraná.<br />

colocava toda sua crença de que poderia estudar e<br />

entender os problemas sociais que surgiam e<br />

reestabelecer a ordem social e o progresso da civilização<br />

moderna. Ele queria que a <strong>Sociologia</strong> estudasse de forma<br />

aprofundada os movimentos das sociedades no passado<br />

para se entender o presente e, inclusive, para imaginar o<br />

futuro da sociedade.<br />

Vamos começar por Auguste Comte (1798-1857), pois<br />

foi ele quem criou o termo “sociologia” a partir da<br />

organização do curso de <strong>Filosofia</strong> Positiva em 1839.<br />

O que desejava Comte com esse curso? Ele pretendia<br />

fazer uma síntese da produção científica, ou seja,<br />

verificar aquilo que havia sido acumulado em termos de<br />

conhecimento bem como os métodos das ciências já<br />

existentes, como os da matemática, da física e da<br />

biologia. Ele queria saber se os métodos utilizados nessas<br />

ciências, os quais já haviam alcançado um “status” de<br />

positivo, poderiam ser utilizados na física social,<br />

denominada, por ele de <strong>Sociologia</strong>.<br />

Este pensador era de uma linha positivista, o que quer<br />

dizer que acreditava na superioridade da ciência e no seu<br />

poder de explicação dos fenômenos de maneira<br />

desprendida da religiosidade, com o er a com u m se<br />

p en sar n aq u ela é p oca. E tem mais, como positivista ele<br />

acreditava que a ciência deveria ser utilizada para<br />

organizar a ordem social.<br />

Comte via a consolidação do sistema capitalista como<br />

sendo algo necessário ao desenvolvimento das<br />

sociedades. Esse novo sistema, bem como o abandono da<br />

teologia para explicação do mundo seriam parte do<br />

progresso das civilizações. Já, os problemas sociais ou<br />

desordens que surgiam eram considerados obstáculos<br />

que deveriam ser resolvidos para que o curso do<br />

progresso pudesse continuar.<br />

Portanto, a <strong>Sociologia</strong> se colocaria, na visão deste autor,<br />

como uma ciência para solucionar a crise das sociedades<br />

daquela época. Mas Comte não chegou a viabilizar a sua<br />

aplicação. Seu trabalho apenas iniciou uma discussão<br />

que deveria ser continuada, a fim de que a <strong>Sociologia</strong><br />

viesse a alcançar um estágio de maturidade e<br />

aplicabilidade.<br />

Você já reparou no lema da nossa bandeira? Tem alguma<br />

relação com o pensamento de Comte? O Brasil pode ser<br />

visto como uma sociedade que orienta-se pelo<br />

cumprimento da “Ordem e Progresso” inscritos na nossa<br />

bandeira?<br />

Na visão dele, naquela época, a sociedade estava em<br />

desordem, orientada pelo caos. Devemos considerar que<br />

Comte vislumbrava o mundo moderno que surgia, isto é,<br />

um mundo cada vez mais influenciado pela ciência e pela<br />

consolidação da indústria, e a crise gerada por uma certa<br />

anarquia moral e política quando da transição do sistema<br />

feudal (baseado nas atividades agrárias, na hierarquia, no<br />

patriarcalismo) para o sistema capitalista (baseado na<br />

indústria, no comércio, na urbanização, na exploração do<br />

trabalhador).. Era essa positividade (instaurar a disciplina<br />

e a ordem) que ele queria para a <strong>Sociologia</strong>.<br />

401<br />

Assim sendo quando Comte pensava a <strong>Sociologia</strong>, era<br />

como se fosse uma “criança” sendo gestada, na qual


U m p ou co d e H ist ó r ia d o B r asil: A B an d eir a<br />

N acion al.<br />

O s fat os sociais – ob j et os n as m ã os<br />

Símbolo nacional idealizado por Raimundo Teixeira<br />

Mendes e Miguel Lemos, baseada na antiga bandeira do<br />

Brasil Império. Ela tremulou pela primeira vez no dia 19<br />

de novembro de 1889, na cidade do Rio de Janeiro.<br />

Este dia ficou marcado como sendo o da sua adoção<br />

oficial. E hoje vemos em nossos calendários que em todo<br />

19 de novembro é comemorado o dia da bandeira.<br />

Bordada em pano de algodão suas estrelas foram<br />

projetadas por um astrônomo. A inscrição ao centro<br />

substituiu o símbolo da “coroa” e foi um resumo feito<br />

por Miguel Lemos, um de seus idealizadores, com base<br />

em princípios positivistas de ordem e progresso.<br />

Continuando o trabalho iniciado por Comte, o de fazer<br />

da <strong>Sociologia</strong> uma ciência, numa visão positiva, surge<br />

nessa história o sociólogo francês Émile Durkheim<br />

(1858-1917). Dar à <strong>Sociologia</strong> uma reputação científica<br />

foi o seu principal trabalho.<br />

É a partir desse pensador que a <strong>Sociologia</strong> ganha um<br />

formato mais “técnico”, sabendo o q u e e com o ela iria<br />

buscar na sociedade. Com métodos próprios, a<br />

<strong>Sociologia</strong> deixou de ser apenas uma ideia e ganhou<br />

“status” de ciência.<br />

Durkheim presenciou algumas das mais importantes<br />

criações da sociedade moderna, como a invenção da<br />

eletricidade, do cinema, dos carros de passeio, entre<br />

outros. No seu tempo, havia um certo otimismo causado<br />

por essas invenções, mas Durkheim também percebia<br />

entraves nessa sociedade moderna: eram os problemas de<br />

ordem social.<br />

E uma das primeiras coisas que ele fez foi propor regras<br />

de observação e de procedimentos de investigação que<br />

fizessem com que a <strong>Sociologia</strong> fosse capaz de estudar os<br />

acontecimentos sociais de maneira semelhante ao que faz<br />

a Biologia quando olha para uma célula, por exemplo.<br />

Falando em Biologia nota-se que o seu objeto de estudo<br />

é a vida em toda a sua diversidade de manifestações. As<br />

pesquisas dos fenômenos da natureza feitas pela Biologia<br />

são resultantes de várias observações e experimentações,<br />

manipuláveis ou não.<br />

Já para a <strong>Sociologia</strong>, manipular os acontecimentos<br />

sociais, ou repeti-los, é muito difícil. Por exemplo, como<br />

poderíamos reproduzir uma festa ou um movimento de<br />

greve “em laboratório” e sempre de igual modo? Seria<br />

impossível.<br />

Mas Durkheim acreditava que os acontecimentos sociais<br />

– como os crimes, os suícidios, a família, a escola, as leis<br />

– poderiam ser observados como coisas (objetos), pois<br />

assim, seria mais fácil de estudá-los.<br />

Então o que ele fez ? Propôs algumas das regras que<br />

identificam que tipo de fenômeno poderia ser estudado<br />

pela <strong>Sociologia</strong>. A esses fenômenos que poderiam ser<br />

estudados por uma ciência da sociedade ele denominou<br />

de fat os sociais.<br />

E as características dos fatos sociais são:<br />

C olet iv o ou ger al – significa que o fenômeno é comum<br />

a todos os membros de um grupo;<br />

E x t er ior ao in d iv í d u – o ele acontece independente da<br />

vontade individual;<br />

C oer cit iv o – os indivíduos são “obrigados” a seguir o<br />

comportamento estabelecido pelo grupo.<br />

As pessoas pensam, em um dia, se casar. Salvo algumas<br />

exceções, pois não pensamos todos da mesma forma,<br />

certo? Mas se fizermos uma pesquisa, veremos que a<br />

grande maioria das pessoas deseja se unir a alguém.<br />

Então podemos dizer que o casamento é um fato colet iv o<br />

ou ger al, pois existe pela vontade da maioria de um<br />

grupo ou de uma sociedade.<br />

501


Mas ainda que alguém não<br />

queira se casar, a grande maioria<br />

das pessoas vai continuar<br />

querendo, não é mesmo?<br />

Outra coisa. Não é verdade que os mais velhos ficam nos<br />

“incentivando” a casar? “Não vá ficar pra titia, heim!”,<br />

“Onde já se viu! Todo mundo, um dia, tem que se<br />

casar!”. Com certeza você já ouviu alguém dizendo isso.<br />

Pois é. Esses dizeres nos levam a crer que o casamento<br />

também é coer cit iv o, pois nos vemos “obrigados” a fazer<br />

as mesmas coisas que fazem os demais membros do<br />

grupo ou da sociedade a que pertencemos.<br />

Para Durkheim, a sociedade só pode ser entendida pela<br />

própria sociedade. As ações das pessoas não acontecem<br />

por acaso. A sociedade as influencia. Você concorda<br />

com isso? Veja o exemplo na página seguinte e tire suas<br />

conclusões.<br />

O Su icí d io = Fat o Social<br />

O q u e lev a u m a p essoa a se su icid ar ? L ou cu r a?<br />

Durkheim utilizou sua teoria para explicar, por exemplo,<br />

o suicídio. O que aparentemente seria um ato individual,<br />

para ele, estava ligado com aquilo que ocorria na<br />

sociedade.<br />

Esse pensador compreende a sociedade como um corpo<br />

organizado. Assim como a Biologia que compreende o<br />

corpo humano e todas suas partes em pleno<br />

funcionamento.<br />

O médico Joaquim Monte, em seu livro “Promoção da<br />

qualidade de vida” (1997) considera o corpo humano<br />

como sendo um “organismo vivo concebido sob forma<br />

de uma estrutura que apresenta constituição e função<br />

(um conjunto organizado de elementos bióticos de<br />

anatomiae fisiologia). A estrutura do corpo humano<br />

representa a dimensão orgânica da pessoa: a carne da<br />

qual somos constituídos (matéria orgânica<br />

com suas características constitucionais e suas<br />

propriedades funcionais) e que tem a potencialidade de<br />

reproduzir, nascer, maturar, crescer, desenvolver, agir,<br />

adaptar, adoecer, sarar e morrer” (p. 257).<br />

É de maneira semelhante que Durkheim entende a<br />

sociedade: com suas partes em operação e cumprindo<br />

suas funções. E, caso a família, a igreja, o Estado, a<br />

Isso significa que o fato social “casamento” é ex t er ior<br />

ao in d iv í d u . oO que quer dizer que ele se constitui não<br />

como resultado das intenções particulares dos indivíduos,<br />

mas como resposta às necessidades ou influências do<br />

grupo, da comunidade ou da sociedade.<br />

Todo fato que reúna essas três características<br />

(generalização, exterioridade e coerção) é denominado<br />

social, segundo Durkheim, e pode ser estudado pela<br />

<strong>Sociologia</strong>. Quanto ao casamento, poderíamos estudar e<br />

descobrir, por exemplo, quais fatores influem na decisão<br />

das pessoas em se casarem e se divorciarem para depois<br />

se casarem novamente.<br />

escola, o trabalho, os partidos políticos, etc., que são<br />

elementos da sociedade com funções específicas,<br />

venham a falhar no cumprimento delas, surge no corpo<br />

da sociedade aquilo que Durkheim chamou de an om ia,<br />

ou seja, uma patologia. Assim, como no corpo humano,<br />

se algo não funcionar bem, em “ordem”, significa que<br />

está doente.<br />

Dê uma olhada nas manchetes abaixo e reflita: o que leva<br />

esse fato a ocorrer com muito mais frequência no Japão<br />

do que aqui no Brasil, ou em outro país?<br />

E x em<br />

p los<br />

P r ob lem as fin an ceir os e d e saú d e au m en t am su icí d ios<br />

n o J ap ã o 23/07/2004 – 09h38 - data de publicação.<br />

http://opt.zip.net/arch2004-07-18_2004-07-24.html -<br />

acesso em 20/mar/2005.<br />

N ov e m or r em em su icí d io colet iv o n o J ap ã o<br />

O5/02/2005 – 08h24 – data de publicação.<br />

http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0%2C%2COI<br />

467123-EI294%2C00.html - acesso em 20/Mar/2005<br />

Andar em ‘desconformidade’ com o que seria tido como<br />

ideal na sociedade pode ser fator altamente propício ao<br />

suicídio no Japão. Não ser aprovado no vestibular ou se<br />

endividar podem ser exemplos de ‘desconformidade’<br />

nessa sociedade.<br />

A propósito desse tema, Durkheim verificou que existem<br />

três categorias de suicídios. Analise-os:<br />

Su icí d io A lt r u í st a : ocorre quando um indivíduo valoriza<br />

a sociedade mais do que a ele mesmo, ou seja, os laços<br />

601


m<br />

que o unem à sociedade são muito fortes. Deixe-me<br />

lembrar você do ocorrido em 11 de Setembro de 2001.<br />

Homens, em atos aparentemente loucos”, pilotavam<br />

aviões que se chocaram contra o World Trade Center em<br />

Nova York, lembra? Para Durkheim, os agentes dessa<br />

aparente “loucura” poderiam ser classificados como<br />

suicidas altruístas, pois se identificavam de tal forma<br />

como o grupo Al Qaeda, ao qual pertenciam, que se<br />

dispuseram a morrer por ele. Da mesma maneira<br />

aconteceu com os kamikases japoneses durante a 2º<br />

, uma vez que ninguém a controlaria? Pois é, segundo<br />

Durkheim, a falta de redes de convívio ou limites para a<br />

ação poderia levar a pessoa a desejar ilimitadas coisas.<br />

Mas caso tal pessoa não consiga realizar os seus desejos,<br />

a frustração poderia levá-la a um suicídio.<br />

Su icí d io A n ô m ico : este tipo pode acontecer quando as<br />

partes do corpo social deixam de funcionar e as normas<br />

ou laços que poderiam “abraçar”(solidarizar) os<br />

indivíduos perdem sua eficácia, deixando-os viver de<br />

forma desregrada ou em crise. Um exemplo disso pode<br />

ser pensado quando, na nossa sociedade, uma família<br />

abandona o filho, ou o idoso, ou o doente.<br />

E o m u n d o m od er n o p ar a D u r k h eim ?<br />

A humanidade, para esse autor, está em constante<br />

ev olu ç ã, o que seria caracterizado pelo aumento dos<br />

papéis sociais ou funções. Por exemplo, para Durkheim,<br />

existem sociedades que organizam-se sob a forma de um<br />

tipo de solidariedade denominada m ecâ n ica e outras<br />

sociedades organizam-se sob a forma de solidariedade<br />

or gâ n ica.<br />

As sociedades organizadas sob a forma de solid ar ied ad e<br />

ecâ n ica seriam aquelas nas quais existiriam poucos<br />

papéis sociais. Segundo Durkheim, nessas sociedades, os<br />

membros viveriam de maneira semelhante e, geralmente,<br />

ligados por crenças e sentimentos comuns, o que ele<br />

chama de con sciê n cia colet iv . aNeste tipo de sociedade<br />

existiria pouco espaço para individualidades, pois<br />

qualquer tentativa de atitude “individualista” seria<br />

percebida e corrigida pelos demais membros.<br />

A organização de algumas aldeias indígenas poderiam<br />

servir de exemplo de como se dá a solidariedade<br />

mecânica: grupos de pessoas vivendo e trabalhando<br />

semelhantemente, ligados por suas crenças e valores.<br />

Nesses grupos, se alguém começasse a agir por conta<br />

Guerra Mundial (1939-1945) e que, de certa forma,<br />

continua acontecendo com os “homens-bomba” de hoje.<br />

Se você assistir ao filme “O Patriota”, com Mel Gibson,<br />

poderá ver um exemplo de alguém que se dispôs a<br />

morrer por uma causa que acreditava em relação ao seu<br />

país, no caso, a Inglaterra.<br />

Su icí d io E goí st: ase alguém se desvinculasse das<br />

instituições sociais (família, igreja, escola, partido<br />

político, etc.) por conta própria, para viver de maneira<br />

livre, sem regras, qual seria o limite para essa pessoa<br />

própria, seria fácil perceber quem estaria “tumultuando”<br />

o modo de vida local.<br />

Outro exemplo que pode caracterizar a solidariedade<br />

mecânica são os mutirões para colheita em regiões<br />

agrárias ou para reconstruir casas devastadas por<br />

vendavais e, ainda, são exemplos também as campanhas<br />

para coletar alimentos.<br />

Diferentemente das sociedades organizadas em<br />

solidariedade mecânica, nas sociedades de solid ar ied ad e<br />

or gâ n ica – típicas do mundo moderno - existem muitos<br />

papéis sociais. Pense na quantidade de tarefas que pode<br />

haver nas áreas urbanas, nas cidades: são muitas as<br />

funções e atividades. Durkheim acreditava que mesmo<br />

com uma grande<br />

divisão e variedade de atividades, todas elas deveriam<br />

cooperar entre si. Por isso, deu o nome de orgânica<br />

(como se fosse um organismo).<br />

Mas, nessas sociedades, diante da existência de inúmeros<br />

papéis sociais, diminui o grau de controle da sociedade<br />

sobre cada pessoa. A individualidade, sob menor<br />

controle, passa a ser uma porta para que a pessoa<br />

pretenda aumentar, ainda mais, o seu raio de ação ou de<br />

posições dentro da sociedade.<br />

Uma das maiores expressões da anomia no mundo<br />

moderno, segundo Durkheim, seria esta: o egoísmo das<br />

pessoas. E a causa desta atitude seria a fragilidade das<br />

normas e controles sobre a individualidade, normas e<br />

controles que nas sociedades de solidariedade mecânica<br />

funcionam com maior eficácia Qual seria, então, a<br />

solução para o mundo moderno, segundo Durkheim?<br />

Já que ele compara a sociedade com um corpo, deve<br />

haver algo nela que não está cumprindo sua função e<br />

gerando a patologia (a anomia, a doença). O corpo<br />

precisa de diagnóstico e remédio. Segundo ele, a<br />

<strong>Sociologia</strong> teria esse papel, ou seja, o de encontrar as<br />

“partes” da sociedade que estão produzindo fatos sociais<br />

patológicos e apontar para a solução do problema.<br />

701


801<br />

Durkheim chegou a fazer, para as escolas francesas,<br />

propostas de valores tais como ‘o respeito da razão, da<br />

ciência, das ideias e sentimentos em que se baseia a<br />

moral democrática’, visando contribuir à restauração da<br />

ordem social naquela sociedade.<br />

Uma outra maneira de ver a sociedade<br />

O pensamento do sociólogo que estudaremos a seguir vai<br />

em direção diferente ao que<br />

vimos até agora. Max Weber (1864-1920), ao contrário<br />

de Durkheim e Comte, acreditou na possibilidade da<br />

interpretação da sociedade partindo não dos fatos sociais<br />

já consolidados e suas características externas (leis,<br />

instituições, normas, regras, etc). Propôs começar pelo<br />

indivíduo que nela vive, ou melhor, pela verificação das<br />

“intenções”, “motivações”, “valores” e “expectativas”<br />

que orientam as ações do indivíduo na sociedade. Sua<br />

proposta é a de que os indivíduos podem conviver,<br />

relacionar-se e até mesmo constituir juntos algumas<br />

instituições (como a família, a igreja, a justiça),<br />

exatamente porque quando agem eles o fazem<br />

partilhando, comungando uma pauta bem parecida de<br />

valores, motivações e expectativas quanto aos objetivos e<br />

resultados de suas ações. E mais, seriam as ações<br />

recíprocas (repetidas<br />

e “combinadas”) dos indivíduos que permitiriam a<br />

constituição daquelas formas duráveis (Estado, Igreja,<br />

casamento, etc.) de organização social.<br />

Weber desenvolve a teoria da <strong>Sociologia</strong> Compreensiva,<br />

ou seja, uma teoria que vai entender a sociedade a partir<br />

da compreensão dos ‘motivos’ visados subjetivamente<br />

pelas ações dos indivíduos.<br />

Uma crítica de Weber aos positivistas, entre os quais se<br />

encontrariam Comte e Durkheim, deve-se ao fato de que<br />

eles pretendiam fazer da <strong>Sociologia</strong> uma ciência positiva,<br />

isto é , baseada nos mesmos métodos de investigação das<br />

ciências naturais. Segundo Weber, as ciências naturais<br />

(biologia, física, por exemplo) conseguiriam explicar<br />

aquilo que estudam ( a natureza) em termos de descobrir<br />

e revelar relações causais diretas e exclusivas, que<br />

permitiriam a formulação de leis de funcionamento<br />

de seus eventos, como as leis químicas e físicas que<br />

explicam o fenômeno da chuva. Mas a ciência social não<br />

poderia fazer exatamente o mesmo. Segundo Weber, não<br />

haveria como garantir que uma ação ou fenômeno social<br />

ocorrerá sempre de determinada forma, como resposta<br />

direta a esta ou aquela causa exclusiva. No caso das<br />

Ciências Humanas, isso ocorre porque o ser humano<br />

possui “subjetividade”, que aparece na sua ação na forma<br />

de valores, motivações, intenções, interesses e<br />

expectativas.<br />

Embora esses elementos que compõem a subjetividade<br />

humana sejam produtos culturais, quer dizer, produtos<br />

comuns acolhidos e assumidos coletivamente pelos<br />

membros da sociedade, ou do grupo, ainda assim se vê<br />

que os indivíduos vivenciam esses valores, motivações e<br />

expectativas de modos particulares. Às vezes com<br />

aceitação e reprodução dos valores e normas propostas<br />

pela cultura comum do grupo; outras<br />

vezes, com questionamentos e reelaboração dessas<br />

indicações e até rejeição das mesmas.<br />

Decorre dessa característica (de certa autonomia,<br />

criatividade e inventividade do ser humano diante das<br />

obrigações e constrangimentos da sociedade) a<br />

dificuldade de se definir leis de funcionamento da ação<br />

social que sejam definitivas e precisas.<br />

Por isso, o que a <strong>Sociologia</strong> poderia fazer, seria<br />

desenvolver procedimentos de investigação que<br />

permitissem verificar que conjunto de “motivações”,<br />

valores e expectativas compartilhadas, estaria orientando<br />

a ação dos indivíduos envolvidos no fenômeno que se<br />

quer compreender, como uma eleição, por exemplo.<br />

Seria possível sim, prever, com algum acerto, como as<br />

pessoas votarão numa eleição, pesquisando sua<br />

“subjetividade”, ou seja, levantando qual é, naquela<br />

ocasião dada, o conjunto de valores, motivações,<br />

intenções e expectativas compartilhadas pelo grupo de<br />

eleitores em foco, e que servirão para orientar sua<br />

escolha eleitoral.<br />

Esses pressupostos estão por detrás das conhecida<br />

“pesquisas de intenção de voto”, bastante frequentes em<br />

vésperas de eleições.<br />

V am<br />

os t en t ar v er isso n a p r á t ica.<br />

Segundo Weber, as pessoas podem atuar, em geral,<br />

mesclando quatro tipos básicos de ação social. São eles:<br />

A aç ã o r acion al com relação a fins: age para obter um<br />

fim objetivo previamente definido. E para tanto,<br />

seleciona e faz uso dos meios necessários e mais<br />

adequados do ponto de vista da avaliação. O que se<br />

destaca, aqui, é o esforço em adequar, racionalmente, os<br />

fins e os meios de atingir o objetivo. Na ação de um


político, por exemplo, podemos ver um foco: o de obter<br />

o cargo com o poder que deseja a fim de...Bom. Aí<br />

depende do político.<br />

Agora, “dando um tempo” nas teorias, veja o que Weber<br />

pensa sobre a política: ele nos fala no livro Ciência e<br />

Política – Duas vocações (2002), que há dois tipos de<br />

políticos que por nós são eleitos. Acompanhe:<br />

a) Os políticos que exercem essa profissão por vocação,<br />

ou seja, os que têm o poder como meta para trabalhar<br />

arduamente em prol da sociedade que os elegeu.<br />

Podemos dizer, em concordância com Weber, que estes<br />

são os que v iv em p ar a a p olí t ica , certo?<br />

b) E os que são políticos sem vocação, ou seja, que<br />

olham para a política como se fosse um “emprego”<br />

apenas. São aqueles que, uma vez eleitos, geralmente se<br />

esquecem dos compromissos sociais que assumiram,<br />

pouco fazem pelo social, trabalham apenas para manterse<br />

no poder a fim de continuar ganhando o salário.<br />

Weber diz que estes são os que v iv em d a p olí ca. t i<br />

Bem. Fechados os parênteses teóricos, voltemos aos<br />

demais tipos de ação.<br />

A aç ã o r acion al com relação a valores, ocorreria porque,<br />

muitas vezes, os fins últimos de ação respondem a<br />

convicções, ao apego fiel a certos valores (honra, justiça,<br />

honestidade...). Neste tipo, o sentido da ação está inscrito<br />

na própria conduta, nos valores que a motivaram e não<br />

na busca de algum resultado previa e racionalmente<br />

proposto. Por esse tipo de ação podemos pensar as<br />

religiões. Ninguém vai a uma igreja ou pertence a<br />

determinada religião, de livre vontade, se não acredita<br />

nos valores que lá são pregados. Certo?<br />

Na aç ã o afet iv a pessoa age pelo afeto que possui por<br />

alguém ou algo. Uma serenata pode ser vista como uma<br />

ação afetiva para quem ama, não é mesmo?<br />

A aç ã o socialt r ad icion al é um tipo de ação que nos leva<br />

a pensar na existência de um costume. O ato de tomar<br />

chimarrão ou pedir a benção dos pais na hora de dormir<br />

são ações que podem ser pensadas pela ação tradicional.<br />

expectativas quanto à religião, o que resultaria no que<br />

Weber chama de r elaç ã o social .<br />

A existência da relação social dos indivíduos, ou seja,<br />

uma combinação de ações que se orientam para objetivos<br />

parecidos, é que faz compreender o ‘porquê’ da<br />

existência do todo, como neste próprio exemplo da<br />

igreja. É assim que, as normas, as leis e as instituições<br />

são formas de relações sociais duráveis e consolidadas.<br />

Os tipos de ação, para Weber, sempre serão construções<br />

do pensamento, isto é, suposições teóricas baseadas no<br />

conhecimento acumulado, que o sociólogo fará para se<br />

aproximar ao máximo daquilo que seria a ação real do<br />

indivíduo nas circunstâncias ou no grupo em que vive.<br />

Com esse instrumento, o sociólogo pode avaliar, na<br />

análise de<br />

um fenômeno, o que se repete, com que intensidade, e o<br />

que é novo ou singular, comparando-o com outros casos<br />

parecidos, já conhecidos e resumido numa tipologia.<br />

Por exemplo, se há alguém apaixonado que você<br />

conheça, qual seria o tipo ideal de ação desta pessoa? A<br />

afetiva! Assim sendo, seria “fácil” prever quais seriam as<br />

possíveis atitudes desta pessoa: mandar flores e<br />

presentes, querer que a hora passe logo para estar com<br />

ela(e), sonhar acordado e coisas do tipo. E assim<br />

poderíamos entender, em parte, como se forma a<br />

instituição família. Uma coisa liga a outra.<br />

Outro exemplo. Pode ser que alguém perto de você nem<br />

pense em querer se apaixonar para não atrapalhar os<br />

estudos. Sua meta é a universidade e uma ótima<br />

profissão. Então, o que temos aqui? Uma ação racional!<br />

Para esta pessoa nem adiantaria mandar flores ou<br />

“torpedos”, certo? O que não significa que não possamos<br />

tentar, não é mesmo?<br />

A gor a, en t en d en d o a socied ad e p or W<br />

eb er<br />

Muito bem. A ideia de Weber para se entender a<br />

sociedade é a seguinte: se quisermos compreender a<br />

instituição igreja, por exemplo, vamos ter que olhar os<br />

indivíduos que a compõem e suas ações. Provavelmente<br />

haverá um grupo significativo de pessoas que agem do<br />

mesmo modo, quer dizer, partilhando valores, desejos e<br />

901


Q u an t o ao sist em a cap it alist a e m u n d o m od er n o<br />

O q u e p en sa W eb er ?<br />

Uma contribuição relevante de Weber, neste caso, é<br />

demonstrar que a montagem do modo de produção<br />

capitalista, no ocidente europeu, principalmente, contou<br />

com a existência, em alguns países, de uma ‘pauta’ de<br />

valores de fundo religioso que ajudou a criar entre certos<br />

indivíduos, predisposições morais e motivações para se<br />

envolverem<br />

na produção e no comércio de tipo capitalista.<br />

Na crença dos calvinistas, os homens já nasceriam<br />

predestinados à salvação ou ao inferno, embora não<br />

pudessem saber, exatamente, seu destino particular.<br />

Assim sendo, e para fugir da acusação de pecadores e<br />

desmerecedores do melhor destino, dedicavam-se a<br />

glorificar Deus por meio do trabalho e da busca do<br />

sucesso na profissão.<br />

Com o passar dos tempos, essa idéia de que a<br />

predestinação e o sucesso profissional seriam indícios de<br />

salvação da alma foi perdendo força. Mas o interessante<br />

é que a ética estimuladora do trabalho disciplinado e da<br />

busca do sucesso nos negócios ganhou certa autonomia e<br />

continuou a existir independente da motivação religiosa.<br />

Para Weber, ser capitalista é sinônimo de ser<br />

disciplinado no que se faz. Seria da grande dedicação ao<br />

trabalho que resultaria o sucesso e o enriquecimento.<br />

Herança da ética protestante, válida também para os<br />

trabalhadores.<br />

Mas por que os católicos e as outras religiões orientais<br />

não tiveram parte nesta construção capitalista analisada<br />

por Weber?Porque a ética católica privilegiava o<br />

discurso da pobreza, reprovando a pura busca do lucro e<br />

da usura e não viam o sucesso no trabalho como indícios<br />

de salvação e nem como forma de glorificar a Deus,<br />

como faziam os calvinistas. Assim sendo, sem motivos<br />

Também criam que os homens eram predes-tinados à<br />

salvação.<br />

divinos para dedicarem-se tanto ao trabalho, não fizeram<br />

parte da lista weberiana dos primeiros capitalistas.<br />

Quanto às religiões do mundo oriental, a explicação seria<br />

de que essas tinham uma imagem de Deus como sendo<br />

parte do mundo secular, ao contrário da ética protestante<br />

ocidental que o concebia como estando fora do mundo e<br />

puro. Assim sendo, os orientais valorizavam o mundo,<br />

pois Deus estaria nele. O Budismo e o Confucionismo<br />

são exemplos do que falamos. E daí a ideia e a prática de<br />

não se viver apenas para o trabalho, mas sim de poder<br />

aproveitar tudo o que se ganha pelo trabalho com as<br />

coisas<br />

desta vida, entende?<br />

Em relação ao mundo moderno (científico), Weber<br />

demonstrava um certo pessimismo<br />

e não encontrava saída para os problemas culturais que<br />

nele surgiam, assim como para a “prisão” na qual o<br />

homem se encontrava por causa do sistema capitalista.<br />

Antes da sociedade moderna, a religião era o que<br />

motivava a vida das pessoas e dava sentido para suas<br />

ações, inclusive ao trabalho. Mas com o pensamento<br />

científico tomando espaço como referencial de mundo,<br />

certos apegos culturais – crenças, formas<br />

de agir – vindos da religiosidade foram confrontados. O<br />

problema que Weber via era que a ciência não poderia<br />

ocupar por completo o lugar que a religião tinha ao dar<br />

sentido ao mundo.<br />

Se, em contextos históricos anteriores, o trabalho poderia<br />

ser motivado pela religião, como foi explicado<br />

anteriormente, e agora não é mais, devido à<br />

racionalização do mundo, por que, então, o homem se<br />

prende tanto ao trabalho?<br />

Porque o sistema capitalista – da produção industrial em<br />

série e da exploração da mão-de-obra – deixou o homem<br />

ocidental sem uma “válvula de escape”. Preso, agora ele<br />

vive d o e p ar a o trabalho.<br />

P ar a r elem b r ar . . .<br />

O Calvinismo tem sua origem nas ideias protestantes<br />

pregadas por João Calvino (1509-1564) que, a exemplo<br />

de Martinho Lutero (1483-1546), fundador da Igreja<br />

Luterana, rompeu com os ensi-namentos da Igreja<br />

Católica. Na intensa busca do conhecimento bíblico, os<br />

calvinistas tornaram-se altamente moralistas (puritanos)<br />

e muito disciplinados.<br />

1 1 0


P ar a lem b r ar . . . Budismo: Sidarta Gautama – o Buda – (563a.C-486a.<br />

C) foi o fundador do Budismo, uma religião e filosofia<br />

que surgiu na Índia e que tem como moral a preservação<br />

da vida e a moderação, além de praticar o ensino de boas<br />

P ar a lem b r ar . . .<br />

Confucionismo: <strong>Filosofia</strong> criada pelo pensador chinês<br />

Kung-Fu-Tzu – o Confúcio – (551a.C – 479a.C). Tal<br />

Seguindo para mais um clássico da <strong>Sociologia</strong>: A crítica<br />

da sociedade capitalista.<br />

Vamos falar agora de quem também viu a consolidação<br />

da sociedade capitalista e fez uma forte crítica a ela. O<br />

alemão, filósofo e economista K ar l M ar x ( 1 8 1 8 –1 8 8 3 ) ,<br />

foi um dos responsáveis, se não o maior deles, em<br />

promover uma discussão crítica da sociedade capitalista<br />

que se consolidava, bem como da origem dos problemas<br />

sociais que este tipo de organização social originou.<br />

E veja, também, que interessante. Para ele “a história de<br />

todas as sociedades tem sido a história da luta de<br />

classes”.<br />

Mas como assim, lutas de classe? Quais são elas? Nas<br />

sociedades de tipo capitalista a forma principal de<br />

conflito ocorre entre suas duas classes sociais<br />

fundamentais: a burguesia versus o proletariado.<br />

Você se lembra que comentamos no primeiro “Folhas”<br />

como foi que surgiu a chamada burguesia e por que ela<br />

ficou conhecida assim ?<br />

Pois bem, segundo Marx, a burguesia foi tendo acesso, a<br />

partir da atividade comercial à posse dos meios de<br />

produção, enriqueceu e também passou a fazer parte<br />

daqueles que controlavam o aparelho estatal, o que<br />

acabou, por fim funcionando, principalmente como uma<br />

espécie de “escritório burguês”. Com esse acesso ao<br />

poder do aparelho estatal, a burguesia foi capaz de usar<br />

sua influência sobre ele para ir criando leis que<br />

protegessem a propriedade privada (particular), condição<br />

ações, purificação e treino da mente (meditação). Os<br />

budistas não crêem que há um Deus criador de todas as<br />

coisas.<br />

filosofia tem quatro pilares: a religião, a política, a<br />

pedagogia e a moral.<br />

indispensável para sua sobrevivência, além de usar o<br />

Estado para facilitar a difusão de sua ideologia de classe,<br />

isto é, os seus valores de interpretação do mundo.<br />

Enquanto isso, a classe assalariada (os proletários), sem<br />

os meios de produção e em desvantagem na capacidade<br />

de influência política na sociedade, transforma-se em<br />

parte fundamental no enriquecimento da burguesia, pois<br />

oferecia mão-de-obra para as fábricas, (as novas<br />

unidades de produção do mundo moderno).<br />

Marx se empenhava em produzir escritos que ajudassem<br />

a classe proletária a organizar-se e assim sair de sua<br />

condição de alien aç ã o.<br />

Alienado, segundo Marx, seria o homem que não tem<br />

controle sobre o seu próprio trabalho, em termos de<br />

tempo e em termos daquilo que é produzido, coisa que o<br />

capitalismo faz em larga escala, pois o tempo do<br />

trabalhador e o produto (a mercadoria) pertencem à<br />

burguesia, bem como a maior parte da riqueza gerada por<br />

meio do trabalho.<br />

O L u cr o<br />

O objetivo do sistema capitalista, como modo de<br />

produção, é justamente a ampliação e a acumulação de<br />

riquezas nas mãos dos proprietários dos meios de<br />

produção. Mas de onde sai essa riqueza? Marx diria que<br />

é do trabalho do trabalhador.<br />

Veja um exemplo. Quantos sofás por mês um trabalhador<br />

pode fazer?<br />

Vamos imaginar que sejam 15 sofás, os quais<br />

multiplicados a um preço de venda de R$ 300,00 daria o<br />

total de R$ 4.500,00.<br />

E quanto ganha um trabalhador numa fábrica? Imagine<br />

que seja uns R$ 1.000,00, para sermos mais ou menos<br />

generosos.<br />

Bem, os R$ 4.500,00 da venda dos sofás, menos o valor<br />

do salário do trabalhador, menos a matéria-prima e<br />

impostos (imaginemos R$ 1.000,00) resulta na<br />

acumulação de R$ 2.500,00 para o dono da fábrica.<br />

1 1 1


Esse lucro Marx chama de m ais- v alia, pois é um<br />

excedente que sai da força de cada trabalhador. Veja, se<br />

os meios de produção pertencessem a ele, o seu salário<br />

seria de R$ 3.500,00 e não apenas R$ 1.000,00.<br />

Então podemos dizer que o trabalhador está sendo<br />

roubado? Não podemos dizer isso, pois o que aqui<br />

exemplificamos é consequência da existência da<br />

propriedade privada e de os meios de produção nas mãos<br />

de u m a classe, a burguesia.<br />

P ar a en t en d er a socied ad e, p or M<br />

ar x<br />

Devemos partir do entendimento de que as coisas<br />

materiais fazem a sociedade acontecer. De outra maneira,<br />

seria dizer que tudo o que acontece na sociedade tem<br />

ligação com a economia e que ela se transforma na<br />

mesma medida em que as formas de produção também se<br />

transformam. Por exemplo, com a consolidação do<br />

sistema capitalista, toda a sociedade teve que organizarse<br />

de acordo com os novos moldes econômicos.<br />

Marx também via o homem como aquele que pode<br />

transformar a sociedade fazendo su a h ist ó r ia , mas<br />

enfatiza que nem sempre ele o faz como deseja, pois as<br />

heranças da estrutura social influenciam-no. Assim<br />

sendo, não é unicamente o homem quem faz a história da<br />

sociedade, pois a história da sociedade também constrói<br />

o homem, numa relação recíproca. Entendeu?<br />

Vamos tentar explicar melhor. As condições em que se<br />

encontram a sociedade vão dizer até que ponto o homem<br />

pode construir a sua história.<br />

Por essa lógica podemos pensar que a classe dominante,<br />

a burguesia, tem maiores oportunidades de fazer sua<br />

história como deseja, pois tem o poder econômico e<br />

político nas mãos, ao contrário da classe proletária que,<br />

por causa da estrutura social, está desprovida de meios<br />

para tal transformação. Para modificar essa situação<br />

somente por intermédio de uma r ev olu ç ã, opois assim a<br />

classe trabalhadora pode assumir o controle dos meios de<br />

produção e tomar o poder político e econômico da<br />

burguesia.<br />

Para Marx, a classe trabalhadora deveria organizar-se<br />

politicamente, isto é, conscientizar-se de sua condição de<br />

explorada e dominada por meio do trabalho e<br />

transformar a sociedade capitalista em socialista por<br />

intermédio da revolução.<br />

1 1 2


R E FE R Ê N C I A S:<br />

COMTE, A. <strong>Sociologia</strong> [organização e tradução de Evaristo de Morais Filho] São Paulo: Ática, 1978.<br />

DURKHEIM, É. <strong>Sociologia</strong> [organizador da coletânea: Albertino Rodrigues]. São Paulo: Ática, 1978.<br />

_______________. D a d iv isã o social d o t r ab alh . oSão Paulo: Martins Fontes, 1995.<br />

_______________. A s r egr as d o m<br />

Nacional, 1974.<br />

_______________. O su icí d io. 6. Ed. Lisboa: Presença, 1996.<br />

é t od o socioló gico . Tradução. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Cia. Editora<br />

MARX, K. O cap it al: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.<br />

__________. O m an ifest o d o p ar t id o com u n ist: aKarl Marx e Friedrich Engels; tradução de Maria Lúcia Como: Rio de<br />

Janeiro: Paz e Terra, 1998.<br />

__________. O s p en sad or es. São Paulo: Abril Cultural, 1978.<br />

MONTE, J. P r om<br />

oç ã o d a q u alid ad e d e v id. aCuritiba: Letras, 1997.<br />

SELL, C. E. Émile Durkheim. In.: <strong>Sociologia</strong> C lá ssica: Durkheim, Weber e Marx – 3ª ed. – Itajaí: Ed. Univali, 2002.<br />

WEBER, M. A é t ica p r ot est an t e e o esp í r it o d o cap it alism . 11ª.Ed. o São Paulo: Pioneira, 1996.<br />

___________. C iê n cia e P olí t ica : duas vocações – coleção: A obra-prima de cada autor. São Paulo: Martin Claret, 2002.<br />

___________. <strong>Sociologia</strong> [organizador da coletânea: Gabriel Cohn]. São Paulo: Ática, 1979.<br />

Pesquisado em: http://www.estadao.com.br Acesso em: 19.03.05<br />

Pesquisado em: http://www.wikipedia.org/ Acesso em 14.10.05<br />

1 1 3


O<br />

A P R O D U Ç Ã O SO C I O L Ó G I C A B R A SI L E I R A<br />

A <strong>Sociologia</strong> n o B r asil<br />

Podemos dizer que a <strong>Sociologia</strong> brasileira começa a<br />

“engatinhar” a partir da década de 1930, vindo a se<br />

fortalecer nas décadas seguintes.<br />

Apesar de alguns autores da sociologia dizerem que não<br />

há uma data correta que marca o seu começo em solo<br />

brasileiro, essa época parece ser a mais adequada para se<br />

falar em início dos estudos sociológicos no Brasil.<br />

Quando dizemos “data mais adequada”, é porque as<br />

produções literárias que surgem a partir dessa década<br />

(1930) começam a demonstrar um interesse na<br />

compreensão da sociedade brasileira quanto à sua<br />

formação e estrutura.<br />

Mas note não estamos afirmando que antes da data acima<br />

ninguém havia se proposto a entender nossa sociedade.<br />

Antes da década de 1930 muitos ensaios sociológicos<br />

sobre o Brasil foram elaborados por historiadores,<br />

políticos, economistas, etc. No entanto, na maioria destes<br />

trabalhos, os autores apresentavam a tendência de<br />

escrever sobre raça, civilização e cultura, mas não<br />

tentavam explicar a formação e a estrutura da sociedade<br />

brasileira.<br />

A partir de 1930, surge no Brasil um período no qual a<br />

reflexão sobre a realidade social ganha um caráter mais<br />

investigativo e explicativo.<br />

Esse caráter mais investigativo e explicativo foi<br />

impulsionado pelos muitos movimentos que estimularam<br />

uma postura mais crítica sobre o que acontecia na<br />

sociedade brasileira. Dentre alguns destes movimentos<br />

estão o Modernismo, a formação de partidos (sobretudo<br />

o partido comunista) e os movimentos armados de 1935.<br />

Movimentos como esses, de alguma forma, traziam<br />

transformações de ordem social, econômica, política e<br />

cultural ao país, e despertavam o interesse de pensadores<br />

em dar explicações a tais fenômenos. Aos poucos a<br />

<strong>Sociologia</strong> passa a constituir-se como uma forma de<br />

reflexão sobre a sociedade brasileira. Veja como isso<br />

aconteceu:<br />

Fases d a su a im<br />

p lan t aç ã o<br />

Dividindo os acontecimentos da implantação da<br />

<strong>Sociologia</strong> no Brasil como ciência, em fases, ou em<br />

geração de autores, de acordo com o sociólogo brasileiro<br />

Otávio Ianni (1926-2003), destacamos aqui três delas, as<br />

quais se complementam:<br />

A fase “A” da implantação da <strong>Sociologia</strong> no Brasil:<br />

A primeira geração da <strong>Sociologia</strong> brasileira seria<br />

composta por aqueles autores que se preocuparam em<br />

fazer estudos históricos sobre a nossa realidade, com um<br />

caráter mais voltado à Literatura do que para a<br />

<strong>Sociologia</strong>.<br />

Desta geração de autores, queremos destacar Euclides da<br />

Cunha (1866-1909). Cunha nasceu no Rio de Janeiro, foi<br />

militar engenheiro, além de ter estudado Matemática e<br />

Ciências Físicas e Naturais. Porém, o que gostava de<br />

fazer, como profissional, era o jornalismo.<br />

Em 1895, abandonou o Exército e começou a trabalhar<br />

como correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”.<br />

Nessa função foi enviado para a Guerra de Canudos, no<br />

interior da Bahia, de onde surgiu sua maior contribuição<br />

à <strong>Sociologia</strong> brasileira: o livro<br />

s Ser t õ es.<br />

Se analisarmos este livro pelo enfoque literário, podemos<br />

perceber que Cunha faz, usando seus conhecimentos de<br />

Ciências e Físicas Naturais, relatos sobre como era a<br />

terra e a paisagem de Canudos. Também faz a descrição<br />

dos homens que ali viviam, ou seja, os sertanejos, nos<br />

quais percebe que, ao contrário do que pensava antes de<br />

conhecê-los, eram fortes e valentes, ainda que a<br />

aparência dos mesmos não demonstrasse isso.<br />

Por fim, Cunha descreve a guerra, isto é, como foi que o<br />

governo da época conseguiu acabar com o que<br />

considerava ser uma revolução que reivindicava a volta<br />

do sistema monárquico no Brasil. Na verdade Antônio<br />

Conselheiro (o líder da Revolução de Canudos) e seus<br />

seguidores apenas defendiam seus lares, sua<br />

sobrevivência.<br />

“É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da<br />

República...” Diziam-no informes surpreendedores;<br />

aquilo não era um arraial de bandidos truculentos<br />

apenas. Lá existiam homens de raro valor – entre os<br />

quais se nomeavam conhecidos oficiais do exército e da<br />

armada, foragidos desde a Revolução de Setembro, que<br />

o Conselheiro avocara ao seu partido.” (CUNHA, 1979:<br />

250).<br />

1 1 4


Olhando mais pelo lado sociológico, podemos perceber<br />

que Cunha estava fazendo revelações quanto à<br />

organização da República que estava sendo consolidada.<br />

Canudos era um retrato de uma sociedade republicana<br />

que não conseguia suprir as necessidades básicas de seu<br />

povo.<br />

Coisa que Antônio Conselheiro, com sua maneira<br />

missionária de ser, acreditava e lutava para acontecer,<br />

pois...<br />

“...abria aos desventurados os celeiros fartos pelas<br />

esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia<br />

que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne<br />

vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por<br />

terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados<br />

sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria<br />

vida; bem-venturados porque o passo trôpego, remorado<br />

pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade<br />

máxima, no avançar para a felicidade eterna”.<br />

(CUNHA,1979:132).<br />

Após duas tentativas sem sucesso de “tomar” Canudos –<br />

pois os sertanejos tornavam difícil a vida dos soldados,<br />

por conhecerem muito bem a caatinga sertaneja – o<br />

governo federal republicano deixou de subestimar a força<br />

daquelas pessoas que se uniram a Conselheiro.<br />

Convocou para uma terceira expedição batalhões<br />

armados de vários estados brasileiros e promoveu uma<br />

grande guerra e matança naquela região, em prol da<br />

República.<br />

A observação de Euclides da Cunha e as revelações que<br />

faz quanto à sociedade brasileira em O s Ser t õ es,<br />

transforma esta obra em um dos referenciais de início do<br />

pensamento sociológico no Brasil.<br />

A fase “B” da implantação da <strong>Sociologia</strong> no Brasil:<br />

Numa segunda fase de geração de autores, a preocupação<br />

em se fazer pesquisas de campo, que é uma característica<br />

das pesquisas sociológicas, começa a ser levada em<br />

conta.<br />

Existem vários autores desta geração que poderíamos<br />

referenciar, como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior,<br />

Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo,<br />

Nelson Wernek Sodré, Raymundo Faoro, etc. No<br />

entanto, vamos nos fixar em dois deles, os quais podem<br />

No entanto, vale ressaltar aqui que Gilberto Freyre tinha<br />

um “olhar” aristocrático e conservador sobre a sociedade<br />

brasileira, pois além de justificar as elites no governo,<br />

ser vistos como clássicos do pensamento social<br />

brasileiro: Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior.<br />

Gilberto Freyre foi o autor de C asa G r an d e & Sen z ala<br />

(1933), livro no qual demonstrou as características da<br />

colonização portuguesa, a formação da sociedade<br />

agrária, o uso do trabalho escravo e, ainda, como a<br />

mistura das raças ajudou a compor a sociedade brasileira.<br />

Freyre foi um sociólogo que nasceu em Pernambuco no<br />

ano de 1900 e, no desenvolver de sua profissão, criou<br />

várias cátedras de <strong>Sociologia</strong>, como na Universidade do<br />

Distrito Federal, fundada em 1935. Freyre faleceu em<br />

1987.<br />

Quando escreveu C asa G r an d e & Sen z ala tinha 33 anos<br />

e, anti-racista que era, inaugurou uma teoria que<br />

combatia a visão elitista existente na época, importada da<br />

Europa, a qual privilegiava a cor branca.<br />

Segundo tal visão racista, a mistura de raças seria a causa<br />

de uma formação “defeituosa” da sociedade brasileira, e<br />

um atraso para o desenvolvimento da nação. Freyre<br />

propõe um caminho inverso. Em C asa G r an d e &<br />

Sen z ala ele começa justamente valorizando as<br />

características do negro, do índio e do mestiço<br />

acrescentando, ainda, a idéia de que a mistura dessas<br />

raças seria a “força”, o ponto positivo, da nossa cultura.<br />

Este autor forneceu, para o seu tempo, uma nova maneira<br />

de ver a constituição da nacionalidade brasileira, isto é, o<br />

Brasil feito por uma harmoniosa união entre o branco (de<br />

origem européia), o negro (de origem africana), o índio<br />

(de origem americana) e o mestiço, ressaltando que essa<br />

“mistura” contribuiu, em termos de ricos valores, para a<br />

formação da nossa cultura.<br />

Veja alguns trechos de sua obra a este respeito:<br />

“Um traço importante de infiltração de cultura negra na<br />

economia e na vida doméstica do brasileiro resta-nos<br />

acentuar: a culinária” (FREYRE, 2002.<br />

“Foi ainda o negro quem animou a vida doméstica do<br />

brasileiro de sua maior alegria.”(FREYRE, 2002).<br />

“Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro de<br />

casa, nos tanques de bater roupa... carregando sacos de<br />

açúcar... os negros trabalhavam sempre cantando.”<br />

(FREYRE, 2002).<br />

sua descrição do tempo da escravidão em C asa G r an d e<br />

& Sen z ala adquire uma conotação harmoniosa, ele não<br />

via conflitos nessa estrutura.<br />

1 1 5


1 1 6<br />

Mas se para Gilberto Freyre era um erro pensar que a<br />

mistura das raças seria um atraso para o Brasil, há um<br />

outro autor que se propôs a verificar qual seria e onde<br />

estaria a origem do atraso da nação brasileira.<br />

Estamos falando de Caio Prado Júnior. Este autor vai nos<br />

fornecer uma visão muito mais crítica sobre a formação<br />

da nossa sociedade. Veja por quê.<br />

Enquanto Gilberto Freyre fazia uma análise<br />

conservadora da formação da sociedade brasileira, Caio<br />

Prado recorria à visão marxista, isto é, partindo do ponto<br />

de vista material e econômico para o entendimento da<br />

nossa formação.<br />

C aio P r ad o J ú n ior nasceu em 1907 e faleceu em 1990.<br />

Formou-se em direito e, de forma auto-didata, leu e<br />

tomou para si os ideais de Marx, o que o fez uma pessoa<br />

comprometida com o Socialismo.<br />

Caio Prado também era uma espécie de “contra-mão” do<br />

Partido Comunista Brasileiro no seu tempo, pois um dos<br />

militantes daquele partido, Octávio Brandão (1896-<br />

1980), havia escrito um livro na década de 1920,<br />

chamado A gr ar ism o e I n d u st r ialism o no qual<br />

apresentava a tese de que o atraso do Brasil, em termos<br />

econômicos, estava no fato<br />

dele ter tido um passado feudal. E esta tese continuou a<br />

ser defendida pelo PCB com o historiador N elson<br />

W er n ek Sod r é ( 1 9 1 1 - 1 9 9 9 ) , que interpretava o<br />

escravismo, no Brasil Colonial, como uma característica<br />

do feudalismo.<br />

É por essa razão que Caio Prado era contrário ao Partido<br />

Comunista, pois a idéia de que no passado o Brasil havia<br />

sido feudal era “importada” do marxismo oficial, da<br />

Europa, e que na sua opinião, não funcionava aqui. E,<br />

para Caio Prado, a prova disso estaria no fato de que no<br />

sistema feudal o servo não era considerado uma<br />

mercadoria, coisa que ocorria aqui com os escravos, o<br />

que denota uma característica do sistema capitalista (e<br />

não feudal) no que tange à análise da mão-de-obra.<br />

No seu livro For m aç ã o d o B r asil C on t em p or â n eo,<br />

publicado em 1942, Caio Prado apresenta a tese de que a<br />

origem do atraso da nação brasileira estaria vinculada ao<br />

tipo de colonização a que o Brasil foi submetido por<br />

Portugal, isto é, uma colonização periférica e<br />

exploratória.<br />

Traduzindo para melhor compreendermos, Caio Prado<br />

explica que Portugal teve grande contribuição no “nosso<br />

atraso” como nação, pois o centro do capitalismo, na<br />

época do “descobrimento” do Brasil, estava na Europa, o<br />

que fazia com que as riquezas daqui fossem levadas para<br />

lá. Este tipo de organização econômica foi denominado<br />

de primária e exportadora, pois os produtos extraídos<br />

das monoculturas brasileiras, nos latifúndios, eram<br />

exportados para os países que estavam em processo de<br />

industrialização.<br />

Segundo Caio Prado, a América era vista pelos europeus<br />

como sendo<br />

“...um território primitivo habitado por rala população<br />

indígena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente<br />

aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham em<br />

vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples<br />

feitorias comerciais, com um reduzido pessoal<br />

incumbido apenas do negócio, sua administração e<br />

defesa armada; era preciso ampliar estas bases, criar um<br />

povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que<br />

se fundassem e organizar a produção dos gêneros que<br />

interessassem ao seu comércio. A idéia de povoar surge<br />

daí, e só daí”. (PRADO JÚNIOR, 1942: 24).<br />

As teses desse autor rompem com as análises dos autores<br />

que antes dele apresentaram um pensamento conservador<br />

restrito, isto é, de reprodução daquilo que estava posto na<br />

sociedade brasileira e, conseqüentemente, sem a intenção<br />

de apresentar propostas para sua transformação.<br />

Assim sendo, segundo a visão de Caio Prado, Gilberto<br />

Freyre, em C asa G r an d e e Sen z ala, pode ser<br />

considerado “conservador”.<br />

V ej a p or q u e:<br />

a) seus escritos nos levam a pensar que a miscigenação<br />

acontecia sempre de maneira harmoniosa. Mas e a<br />

relação entre os senhores brancos e suas escravas negras,<br />

por exemplo? Se verificarmos relatos da história veremos<br />

que as negras eram forçadas a terem relações sexuais<br />

com eles, o que é bem diferente de harmonia.<br />

b) sobre os problemas sociais da época, Freyre não<br />

apresenta nenhuma proposta para a solução dos mesmos,<br />

ou para a transformação da sociedade.<br />

Para Caio Prado Júnior, os pontos “a” e “b” mencionados<br />

acima demonstram a postura conservadora de Gilberto<br />

Freyre, pois transparece um certo conformismo com a<br />

situação em que se apresentava a sociedade.<br />

Conformismo que pressupõe continuidade, sem<br />

transformação.


E a fase “C” da implantação da <strong>Sociologia</strong> n o B r asil:<br />

Um outro aspecto de sua maneira crítica de fazer<br />

<strong>Sociologia</strong> foi a sua afinidade com o pensamento<br />

marxista, principalmente sobre o modo de analisar a<br />

sociedade, o que se constituiu numa espécie de “norte”<br />

crítico orientador de seu pensamento.<br />

As transformações sociais que ocorreram a partir de<br />

1930 no Brasil foram, também, uma espécie de “motor”<br />

para os trabalhos de Florestan.<br />

Já a partir dos anos de 1940 novos sociólogos começam<br />

a aparecer no cenário brasileiro.<br />

Esta terceira geração é formada por sociólogos que<br />

vieram de diferentes instituições universitárias, fundadas<br />

a partir de 1930 e inauguram estilos mais ou menos<br />

independentes de fazer <strong>Sociologia</strong>.<br />

Dessa forma, e progressivamente, a intelectualidade<br />

sociológica no Brasil começa a ganhar corpo. Também<br />

começam a surgir estilos ou tendências, o que fez com<br />

que surgissem diferentes “escolas” de <strong>Sociologia</strong> em São<br />

Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte<br />

e em outros lugares.<br />

Dos autores que fazem parte dessa terceira geração,<br />

podemos citar Oliveira Viana, Florestan Fernandes,<br />

Guerreiro Ramos, dentre vários outros. Mas vamos nos<br />

deter na obra do sociólogo paulista Flor est an Fer n an d es<br />

( 1 9 2 0 - 1 9 9 5 ) , importante nome da <strong>Sociologia</strong> crítica no<br />

Brasil.<br />

Qual é a proposta de <strong>Sociologia</strong> que ele apresenta?<br />

Florestan Fernandes foi um sociólogo que fez um<br />

contínuo questionamento sobre a realidade social e das<br />

teorias que tentavam explicar essa realidade. O objetivo<br />

deste autor foi de, numa intensa busca investigativa e<br />

crítica, ir além das reflexões já existentes.<br />

Florestan Fernandes tinha como metodologia “dialogar”,<br />

de maneira muito crítica, com a produção sociológica<br />

clássica.<br />

Florestan também mantinha contínuo diálogo com o<br />

pensamento crítico brasileiro. Autores como Euclides da<br />

Cunha e Caio Prado Júnior, os quais vimos<br />

anteriormente, fazem parte de sua lista de interlocutores.<br />

O diálogo com esses autores foi fundamental para o seu<br />

trabalho de análise dos movimentos e lutas existentes na<br />

sociedade, principalmente aquelas travadas pelos setores<br />

populares.<br />

Mas não apenas para ele, pois como já mencionamos,<br />

essas transformações serviram de impulso para os<br />

trabalhos sociológicos no Brasil como um todo. E isso se<br />

deu principalmente a partir de 1940, pois essas<br />

transformações se intensificaram muito por causa do<br />

aumento da industrialização e da urbanização.<br />

Algumas das consequências da urbanização, inclusive<br />

gerada pela migração de pessoas que, vindas do campo,<br />

procuravam trabalho nas indústrias das grandes cidades,<br />

foram o surgimento de problemas de falta de moradia,<br />

desemprego e criminalidade. Essas situações emergentes,<br />

logicamente, tornavam-se temas para a análise<br />

sociológica.<br />

Para finalizar, vale ressaltar que a <strong>Sociologia</strong> crítica que<br />

Florestan inaugura também tinha o “olhar” voltado aos<br />

mais diversos grupos e classes existentes na sociedade.<br />

Algumas de suas pesquisas com grupos indígenas e sobre<br />

as relações raciais em São Paulo, por exemplo, tiveram o<br />

mérito de fornecer explicações que se contrapunham às<br />

explicações dadas pelas classes dominantes da sociedade<br />

brasileira.<br />

1 1 7


R E FE R Ê N C I A S:<br />

CUNHA, E. O s ser t õ es – Campanha de Canudos. 29ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.<br />

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VIANNA, M. A. G. R ev olu cion á r ios d e 3 : 5 sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.<br />

1 1 8


O P R O C E SSO D E T R A B A L H O E A D E SI G U A L D A D E<br />

SO C I A L<br />

Por Katya Picanço – Professor no estado do Paraná.<br />

Sabemos que para viver temos que ter comida, água<br />

potável, roupas e uma moradia segura. Mas sabemos<br />

também que na sociedade capitalista o caminho para ter<br />

o acesso à “comida, diversão e arte” não é nada fácil, é<br />

uma verdadeira odisseia. Então, como é possível suprir<br />

estas necessidades básicas?<br />

Se “(...) a gente não quer só comida, a gente quer saída<br />

para qualquer parte(...)”, o que fazemos afinal, para<br />

conseguirmos garantir e resolver estas questões? O que<br />

você faz?<br />

Agora, como estão nos versos da música, queremos ter a<br />

garantia que as chamadas questões materiais – a comida,<br />

a água potável, as roupas adequadas para cada tipo de<br />

estação, a casa com segurança – e as questões subjetivas<br />

– sentimentos, desejos, gostos – sejam resolvidas.<br />

Temos aqui, portanto, duas questões essenciais: o que é<br />

imediato ou básico são necessidades materiais do ser<br />

humano; o que é subjetivo são necessidades imateriais.<br />

Mas esta preocupação não é somente uma preocupação<br />

particular, mas de todas as sociedades ao longo da<br />

história humana. Como “(...) a gente não quer só comida<br />

(...)”, estas duas necessidades devem ser resolvidas, e na<br />

busca destas soluções, novas necessidade vão surgindo.<br />

Assim, o contorno do nosso cotidiano vai sendo<br />

desenhado na medida em que as soluções de todos os<br />

tipos vão se realizando. Para pensar sobre isso, vejamos<br />

como a <strong>Sociologia</strong> pode nos auxiliar.<br />

O pensador alemão Karl Marx (1818-1883) afirmou que,<br />

para resolver as suas necessidades básicas, o ser humano<br />

vai se apropriando da natureza, estabelecendo relações<br />

com outros seres humanos, pensando sobre a sua vida e<br />

criando novas e novas necessidades. Como isso é<br />

possível? Imagine que você tem que construir um banco<br />

de praça e a matéria-prima é de “segunda mão”. Tendo o<br />

material, o que mais é necessário para construir o banco?<br />

Bem, o conhecimento de como fazê-lo, e de como<br />

utilizar o material reciclável e as ferramentas. Temos,<br />

portanto:<br />

(1) você – um SER HUMANO;<br />

(2) o CONHECIMENTO;<br />

(3) a natureza que já foi modificada, a MATÉRIA-<br />

PRIMA;<br />

(4) e os INSTRUMENTOS – máquinas, ferramentas e<br />

utensílios.<br />

São necessários todos estes elementos juntos para que o<br />

banco seja construído. Temos uma unidade que permite<br />

que você produza ou melhor construa o banco. Esta<br />

unidade é o que chamamos de PROCESSO DE<br />

TRABALHO.<br />

Foi com este processo que a humanidade construiu tudo<br />

o que existe na vida: ferramentas, máquinas, a matériaprima<br />

transformada ou não (um exemplo disto é o ferro<br />

encontrado bruto na natureza, transformado em aço para<br />

a fabricação de tratores, ônibus, geladeiras, bicicletas), os<br />

prédios, os estádios de futebol, as escolas, as ruas e<br />

estradas, os ônibus espaciais... enfim um conjunto<br />

imenso de coisas. Se isolarmos o conhecimento, as<br />

ferramentas e a matéria-prima e retirarmos você da<br />

construção do banco, vamos observar que o banco não<br />

será construído. Então consideramos você – o ser<br />

humano – o principal elemento desta unidade. Isto<br />

porque é você quem vai dar asas à imaginação (pois não<br />

é só de pão que vive o homem) e construir e transformar<br />

tudo que o cerca.<br />

Então, seguindo o raciocínio anterior, sabemos que para<br />

viver temos que resolver problemas de ordem material e<br />

básica como comer, beber, vestir e morar. Mas como nos<br />

indica a música não é só disto que vivemos. Ir ao cinema,<br />

sair com os amigos, ir ao futebol, participar das<br />

festividades na família, exercitar e exercer nossa<br />

sensibilidade e gosto por um tipo de roupa, de música, de<br />

filme, de time de futebol, de professor, e de amigo fazem<br />

parte desta busca de resoluções. Para isto, os seres<br />

humanos vêm modificando a natureza e tudo ao seu<br />

redor, até a nós mesmos. Já sabemos que o ser humano é<br />

o principal elemento do processo de produção.<br />

Se acompanhamos os jornais vamos perceber que as<br />

ações não caminham para a resolução das necessidades<br />

materiais e imateriais. A destruição do planeta e de<br />

outros seres humanos ocorrem indiscriminadamente em<br />

quase todos os lugares do mundo. Isto é o que em<br />

<strong>Sociologia</strong> foi chamado de contradição, por Karl Marx,<br />

pensador alemão já citado anteriormente neste texto: a<br />

1 1 9


não-resolução das necessidades humanas mesmo tendo<br />

condições para fazê-lo. São problemas que a humanidade<br />

não resolveu desde que o gênero homo começou a<br />

dominar o planeta.<br />

Então, o que significa dizer que essas relações eram<br />

coletivas?<br />

021<br />

Você sabe que nesta caminhada do ser humano, para<br />

resolver estas necessidades, ele desenvolve ligações com<br />

os outros seres humanos e várias formas de organizações<br />

sociais vão surgindo. Seguindo este raciocínio, é a<br />

unidade entre o ser humano, o conhecimento, os<br />

instrumentos e a matéria-prima, que possibilita a relação<br />

como o mundo natural e a criação do mundo social<br />

modificado. Vamos tentar entender como se<br />

desenvolvem estas ligações.<br />

Quando o homem se espalhou pelo mundo, saindo da<br />

África e convivendo, segundo as recentes pesquisas da<br />

Paleoantropologia, com outras espécies do gênero, criou<br />

laços com os membros do seu grupo.<br />

Estes laços se estreitaram, ficando cada vez mais fortes,<br />

pois enfrentar a natureza – clima, vegetação, relevo,<br />

animais selvagens – revela-se uma aventura difícil e<br />

perigosa. Por isso, a união para garantir a existência<br />

passa a ser o elemento principal para continuar vivendo.<br />

Essas ligações são denominadas de relações sociais.<br />

Estamos vendo que, no início do processo de surgimento<br />

das primeiras formas de organização social estas relações<br />

eram coletivas.<br />

Imagine que você e seus amigos estão perdidos na<br />

floresta Amazônica e não conhecem o território, e<br />

necessitem fabricar instrumentos e utensílios. O mundo<br />

natural parece ameaçador e com certeza vocês buscarão<br />

ficar unidos, dividir igualmente a comida, a água, os<br />

cuidados com aqueles que estão doentes e com medo.<br />

Querem resolver tudo para que todos fiquem bem. Então,<br />

unidos, zelarão para que o grupo consiga sobreviver em<br />

um ambiente inóspito para o forasteiro. É muito<br />

Então, no início da existência da humanidade (40.000<br />

a.C.), havia uma relativa igualdade entre os membros de<br />

um mesmo agrupamento social. Relativa porque do<br />

ponto de vista das questões básicas de sobrevivência<br />

todos têm acesso a eles. Ao mesmo tempo estas<br />

sociedades eram hierarquizadas tanto com a divisão<br />

sexual do trabalho quanto com as demarcações etárias.<br />

Como sabemos disto? É só observarmos os povos<br />

indígenas brasileiros, antes da chegada dos europeus<br />

(século XIV da Era Cristã). A forma de organização e de<br />

resolução dos problemas de sobrevivência destes povos é<br />

exemplo deste período quando havia a necessidade de<br />

agir coletivamente, para enfrentar a natureza.<br />

importante observar que no processo de transformação<br />

da natureza, o homem vai modificando o espaço natural<br />

considerando as suas capacidades e as ferramentas que<br />

possui.<br />

É uma combinação e uma escolha entre a capacidade<br />

humana de transformação e aquilo que ele vai encontrar<br />

na natureza. O que resulta desta relação é uma nova<br />

realidade que continua a ser explorada.<br />

Veja, os indígenas que habitam o Parque Nacional do<br />

Xingu e os Bosquínamos da África setentrional.<br />

Atualmente, são exemplos deste período (quando havia a<br />

igualdade descrita acima – 700.000 a.C. a 40.000 a.C.)<br />

em que, ao resolver suas necessidades básicas, o ser<br />

humano o fazia coletivamente. Com o aprimoramento<br />

dos instrumentos<br />

e dos utensílios, e um controle maior sobre a natureza,<br />

com a agricultura e a domesticação dos animais, passa a<br />

existir em algumas regiões e entre alguns povos o<br />

acúmulo de alimentos. As casas são melhoradas para<br />

garantir um abrigo mais seguro e as roupas também<br />

acompanham estas mudanças com a utilização de novas<br />

matérias-primas para a sua confecção. Essas alterações


acompanham a ocupação do espaço geográfico fazendo<br />

com que deixem de ser nômades e se transformem em<br />

povos sedentários. A Geografia, a História e a <strong>Sociologia</strong><br />

são as Ciências que vão pensar o processo de trabalho<br />

interpretando como este se desenvolve nesta busca do ser<br />

humano de resolução das necessidades materiais e<br />

subjetivas.<br />

O armazenamento da água e alimentos fica mais<br />

aprimorado com a utilização da cerâmica como matériaprima.<br />

O aperfeiçoamento da navegação e a utilização da<br />

roda e do transporte acompanham este ritmo.<br />

É importante frisar que estas transformações não são<br />

lineares nem evolutivas. Elas são desiguais e<br />

acompanham a forma utilizada por cada povo na sua<br />

região na ocupação do espaço e na criação da sociedade.<br />

Não podemos achar que todos fizeram da mesma<br />

maneira. Ao contrário, a forma de ocupação e o processo<br />

cultural revelam como cada povo enfrentou a natureza e<br />

foi resolvendo suas necessidades básicas.<br />

As formas mais apuradas de solução dos problemas<br />

imediatos: comer, beber, vestir e morar, na medida em<br />

que são resolvidos acabam criando outras e novas<br />

necessidades. Assim, locais onde é possível guardar os<br />

alimentos e a água vão sendo construídos para que estes<br />

sejam utilizados nos momentos de escassez, que são<br />

frequentes e fazem com que as contradições (Lembra? A<br />

não-resolução das primeiras necessidades) assombrem os<br />

seres humanos. Vai ser necessário que alguns cuidem<br />

deste acúmulo e da sobra do que foi produzido ou<br />

consumido.<br />

Estes que vão cuidar do que todos produziram vão criar<br />

um grupo de segurança para auxiliá-los nesta nova tarefa.<br />

Este corpo de segurança, provavelmente são os mais<br />

fortes ou os que já tinham a tarefa de serem os guerreiros<br />

do grupo. Temos aqui um conjunto de pessoas que se<br />

desliga, se afasta daqueles que estão produzindo o<br />

necessário para a sobrevivência de todos. Você pode<br />

perguntar: quando isso ocorreu?<br />

Essas mudanças ocorrem na passagem do Neolítico para<br />

o surgimento da sociedade desigual (III milênio antes da<br />

Era Cristã), quando vai existir a propriedade e esta não<br />

vai ser coletiva. Este distanciamento em que alguns vão<br />

viver do TRABALHO que outros executam, permitiu o<br />

surgimento da desigualdade entre os seres humanos<br />

dentro da mesma sociedade. Essa desigualdade foi se<br />

aprofundando e as decisões sobre a distribuição do que<br />

foi produzido passam a ser realizadas por estes, que vão<br />

se tornando donos/proprietários das terras, dos animais,<br />

das ferramentas...<br />

Como isso é possível? Imagine que você está<br />

trabalhando no campo e as pessoas que cuidam do<br />

armazenamento observam que se não for estipulada uma<br />

cota de consumo para cada família, não terão comida<br />

suficiente para o próximo período de escassez. Então<br />

devem, para garanti-la, criar punições para aqueles que<br />

não cumprirem o que foi determinado. Que tipo de<br />

punição? Algo como ter que trabalhar em dobro, dar os<br />

seus animais, dar as ferramentas que utilizam – daí, para<br />

trabalhar tem que utilizar as ferramentas de outros. Viu<br />

como começou a propriedade do que chamamos meios<br />

de produção – ferramentas, matérias-primas, os galpões e<br />

prédios.<br />

A forma de divisão da sociedade em que uns são<br />

p r op r iet á r ios d os m eios d e p r od u ç ã – o ferramentas,<br />

matérias-primas, conhecimentos – e outros são somente<br />

p r op r iet á r ios d a for ç a d e t r ab alh o – energia gasta no<br />

dia-a-dia e o conhecimento de como executar a sua tarefa<br />

no processo produtivo – é a base para o que chamamos<br />

de sociedade capitalista.<br />

Esta diferença entre os seres humanos vão marcar as<br />

relações sociais que passaram a estabelecer a partir do<br />

fortalecimento das duas classes sociais: os donos dos<br />

meios de produção e os proletários. Podemos, assim,<br />

buscar no passado da humanidade muitas das explicações<br />

para a situação complicada que é a busca do emprego<br />

hoje.<br />

As soluções se inscrevem no plano daquilo que<br />

chamamos de conquistas da humanidade; mas não<br />

podemos esquecer o que chamamos de contradições. São<br />

elas que vão marcar estas conquistas e nos alertar para<br />

perguntar sobre o principal elemento do trabalho que é o<br />

ser humano.<br />

Bem, voltando às questões do início do texto, vamos ver<br />

que a humanidade, para resolver as questões materiais e<br />

subjetivas (ter “comida, diversão e arte”) vai<br />

construindo o seu cotidiano, e que este já foi<br />

predominantemente coletivo, mas se modificou com a<br />

transformação da natureza.<br />

Surge a desigualdade entre os seres humanos e essa, por<br />

sua vez, vai marcar o dia-a-dia da sociedade.<br />

Assim, o que não podemos esquecer é que, na medida<br />

em que a humanidade vai se apropriando da natureza,<br />

modifica o espaço que a cerca e desenvolve não só ações<br />

criativas, mas também destrutivas – o aquecimento<br />

global – consequência do desmatamento, da poluição<br />

pelo dióxido de carbono, pela poluição de rios e solos,<br />

121


pela retirada de minerais de maneira predatória– sem<br />

citar a matança de animais e a destruição do seu hábitat.<br />

E é justamente por isso que não podemos desejar<br />

somente a comida, pois junto dela deve vir a água<br />

potável, a vestimenta adequada, a casa segura, o acesso<br />

ao conhecimento, às artes, à <strong>Filosofia</strong>. Tudo o que foi<br />

criado pelo ser humano com a intenção de resolver os<br />

problemas para viver, e também as soluções para os<br />

problemas como os indicados acima relacionados com as<br />

ações destrutivas. Pense sobre as soluções que podem ser<br />

dadas para resolver estas novas questões – a destruição<br />

da natureza, que estão diretamente ligadas às<br />

necessidades materiais e subjetivas apontadas no início e<br />

nas indagações finais da música “Comida” referenciada<br />

no texto.<br />

Essa busca de saídas para resolver as contradições entre<br />

produção e escassez – de alimentos, de água, de moradia,<br />

de escolas, de segurança, de saúde, de lazer.... de acesso<br />

à “diversão e arte” – transforma o ser humano em um ser<br />

que supera limites. Assim, uma indagação deve<br />

permanecer quando olhamos os problemas e vemos a dor<br />

e o sofrimento de muitos: “Você tem fome de quê?”<br />

Podemos fazer uma lista interminável de necessidades<br />

materiais e subjetivas que não foram resolvidas, mas com<br />

certeza o item Justiça deve aparecer. Sabia que a idéia (e,<br />

portanto uma necessidade subjetiva) de justiça é uma<br />

construção humana? Muitas vezes para resolvermos<br />

questões materiais, nós recorremos a uma questão<br />

subjetiva, como<br />

a justiça. Então para sobreviver, o ser humano construiu<br />

tudo que temos – transformando a natureza, construindo<br />

relações sociais e também elaborando discussões<br />

complexas sobre as necessidades subjetivas.<br />

Leia nos versos da música e perceba como eles formam<br />

uma unidade: “(...)bebida é água /comida é pasto / você<br />

tem sede de quê? / você tem fome de quê? / a gente não<br />

quer só comida /a gente quer comida,diversão e arte”(...)<br />

!<br />

21


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ALBORNOZ, S. O q u e é t r ab alh . oSão Paulo: Brasiliense, 1989.<br />

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POCHMANN, M. O em p r ego n a glob aliz aç ã . oSão Paulo: Boitempo, 2002.<br />

321


5 – O Mundo do Trabalho<br />

A organização do trabalho no Mundo Contemporâneo<br />

Entre os anos do pós-guerra (Segunda Guerra Mundial e<br />

os anos 70) a organização do trabalho na fábrica estava<br />

baseada nas idéias de J. Ford (1863-1947) e F. Taylor<br />

(1856-1915). Ford era dono da fábrica norte-americana<br />

Ford e Taylor era um engenheiro que trabalhava na<br />

Fábrica Midvale Steel Company. Eles foram os<br />

responsáveis, cada um a sua maneira, por estabelecerem<br />

medidas para um controle sobre os trabalhadores, no<br />

cotidiano da fábrica. A compreensão de Henry Ford,<br />

conhecida como a proposta fordista, estava baseada na<br />

seguinte premissa: ”(...) para um consumo em massa uma<br />

produção em massa (...)”. Para isso, a produção deveria<br />

ser organizada de maneira a impedir desperdício de<br />

tempo do operário na execução das tarefas. Para que isso<br />

ocorra o trabalho deveria ser partido em várias funções e<br />

o trabalhador executaria somente<br />

uma função. Para que haja continuidade entre estas<br />

tarefas parceladas, criou-se uma esteira rolante, na qual<br />

os objetos vão sendo produzidos na medida em que os<br />

trabalhadores executam a sua função um ao lado do<br />

outro. Para que não ocorressem interrupções nesta “linha<br />

de montagem”, Ford propôs a padronização das peças.<br />

Já as ideias de Frederick Taylor, conhecida como a<br />

proposta taylorista, estavam baseadas nas seguintes<br />

questões, em que deveria haver: a separação entre quem<br />

planeja a atividade de produção de um objeto e quem de<br />

fato vai executá-la; um processo de seleção de operários<br />

que sejam adequados para o trabalho, sem que tenham<br />

um perfil rebelde, capaz de questionar as regras na<br />

seleção dos trabalhadores; um controle sobre o tempo e<br />

sobre o movimento que o trabalhador leva para executar<br />

uma atividade. Esse controle deveria ser realizado pela<br />

chefia utilizando um cronômetro, medindo a ação deste<br />

operário.<br />

Essas ideias já estavam sendo aplicadas na Ford, no<br />

início do século XX. Mas é somente com o pós-guerra<br />

que há uma disseminação desse sistema pelo mundo,<br />

atingindo até as fábricas rivais da Ford como a General<br />

Motors e a Chrysler. (GOUNET, T. 2002).<br />

Assim, uma questão deve ser respondida: como é que<br />

foram produzidos os carros a partir da crise que afetou a<br />

produção capitalista mundial? Para responder a essa<br />

questão veja o que se segue:<br />

Os anos 70 foram marcados pela crise do petróleo (1973)<br />

o que impulsionou a crise de superprodução e uma<br />

mudança na forma de organização da produção, e na<br />

intensificação do processo de globalização da economia.<br />

As mudanças na forma de organização da produção<br />

significaram um reordenamento das funções cotidianas<br />

nas fábricas e a utilização de novas tecnologias –<br />

acelerando a utilização da robótica na linha de<br />

montagem. A indústria automobilística foi a primeira a<br />

passar por essas mudanças.<br />

Veja que na organização fordista a produção ocorreu<br />

primeiro nas fábricas de automóveis e depois se<br />

dissemina pela sociedade; isso ocorre pelo complexo<br />

industrial e de serviços que estão ao longo da cadeia<br />

produtiva da indústria automobilística que é muito<br />

extenso e atinge a produção industrial como um todo. A<br />

produção do aço, do vidro, das borrachas e outras fibras,<br />

tintas, estofamento, peças e acessórios, propaganda,<br />

financiamentos, pontos de venda e revenda, postos de<br />

combustíveis, enfim, uma amplitude que atinge todas as<br />

esferas da economia da sociedade.<br />

Essas mudanças possibilitaram que uma outra forma de<br />

organização da produção, mais enxuta, que produzia de<br />

acordo com a demanda do mercado, passasse a ser<br />

utilizada como uma das saídas para resolver a crise da<br />

sociedade na esfera produtiva. É o padrão toyotista que<br />

tem origem na fábrica japonesa Toyota, nos anos 50, e se<br />

diferencia do Fordismo nos seguintes aspectos: enquanto<br />

o fordismo produzia em massa; o toyotismo produzia na<br />

medida em que ocorre uma procura por determinado<br />

modelo de automóvel; o trabalho parcelar e<br />

individualizado passa a conviver com o trabalho em<br />

equipe, em que as máquinas vão sendo utilizadas pelo<br />

grupo de trabalhadores responsáveis que vão operando<br />

várias máquinas.<br />

421


Essa característica intensifica um processo de<br />

convencimento do trabalhador, quando das mais diversas<br />

formas – reuniões, jornais internos, premiações – ele é<br />

instigado a “vestir a camisa da empresa”, e passa a achar<br />

que faz parte de uma equipe e que é capaz de participar<br />

efetivamente do processo. Esse convencimento não<br />

aponta que as decisões sobre o que vai ser produzido,<br />

quem vai ser demitido, em qual região do mundo a<br />

fábrica vai se instalar, não passa pelo seu crivo; o<br />

trabalho deixa de ser especializado em uma única tarefa e<br />

passa a ser feito por um operador preparado para realizar<br />

mais de uma função dentro do processo produtivo; o<br />

planejamento da produção é adequado à demanda e a<br />

produção de mais de um modelo e automóvel pode ser<br />

realizada na mesma fábrica, o que é diferente do<br />

fordismo, quando se produz somente um modelo de<br />

automóvel.<br />

Mas fundamentalmente, o toyotismo permite que a<br />

fábrica funcione comum número menor de funcionários<br />

ao ser comparada com o fordismo, já que é possível que<br />

um operário realize mais de uma função. Na Toyota, por<br />

exemplo, um operário pode operar mais de cinco<br />

máquinas e ao atuar com outros operários, passa a<br />

realizar funções que antes eram da chefia. Isso diminui<br />

as funções, possibilitando um “enxugamento” no<br />

processo produtivo. (GOUNET, 2002).<br />

Neste processo de desenvolvimento do capitalismo, a<br />

globalização assume uma dinâmica interessante quando<br />

há o encontro entre o que é global, e o que é local. Neste<br />

caso, em muitos lugares temos a tradição se defrontando<br />

com uma dinâmica que modifica as características ou<br />

que as remodelam. A instalação das montadoras de<br />

automóveis na região metropolitana de Curitiba são um<br />

exemplo de relação global e local.<br />

Elas se instalam e há um conjunto de mudanças na região<br />

que modificam hábitos e costumes, como a busca intensa<br />

dos trabalhadores da região de realizarem cursos que os<br />

habilitem ao trabalho nestas fábricas. Por isso, nesta<br />

região, aumentaram as ofertas de cursos e faculdades<br />

voltados à capacitação industrial, à informática e às<br />

línguas estrangeiras.<br />

A sociedade capitalista é organizada a partir de leis, da<br />

ideologia, das instituições, que vão se desenvolvendo na<br />

medida em que os seres humanos vão atuando sobre elas<br />

e vice-versa. Como vivemos em uma sociedade<br />

capitalista, estas leis estão determinadas pelos interesses<br />

daqueles que dominam a sociedade: os capitalistas. Em<br />

contrapartida existem aqueles que se organizam em<br />

movimentos sociais e que estão contrários a esses<br />

interesses. Neste embate, entre quem domina e quem é<br />

dominado, o Estado – uma instituição com muitas<br />

ramificações – aparece para as pessoas como além deste<br />

conflito, como se fosse um juiz.<br />

Esta aparência reside na concepção disseminada na<br />

sociedade de que o Estado é uma entidade acima dos<br />

seres humanos como se fosse superior aos interesses das<br />

classes sociais. Mas ele não é, pois é administrado por<br />

pessoas que representam os interesses dominantes,<br />

ficando para os dominados a tarefa de denunciar essa<br />

situação e tentar mudar o Estado e a sociedade. Isso fica<br />

observável quando entendesse que esta ação aparece no<br />

Estado via políticas governamentais, isto é, via governo.<br />

A concepção de Estado demonstrada acima, como um<br />

conjunto de instituições, é diferente da concepção<br />

Marxista (baseada nas ideias do pensador Karl Marx)<br />

que entende o Estado como um aparelho, ou um<br />

instrumento a serviço da dominação capitalista, formado<br />

por aparelhos repressores e ideológicos.<br />

Lendo o texto ao lado você observa duas ideias que são<br />

rivais sobre o funcionamento da sociedade capitalista. É<br />

muito importante você entender a existência destas duas<br />

concepções, e analisar que o Estado é um conjunto<br />

complexo de instituições, mas que essas instituições são<br />

administradas por pessoas, que vão representar os mais<br />

variados interesses na sociedade. Sendo este um<br />

complexo de instituições, vamos compreender que existe<br />

uma dinâmica no funcionamento do Estado que vai<br />

variar na medida em que variam as pessoas e as<br />

propostas que elas utilizam para governar.<br />

Assim, entenda primeiro, que o Estado não é uma<br />

entidade que está acima dos interesses dos seres<br />

humanos. E segundo que ele pode ser modificado na<br />

medida em que as políticas adotadas impulsionam<br />

mudanças no conjunto de instituições que o constituem,<br />

modificando-o.<br />

521


621<br />

Essas políticas têm como objetivo central, diminuir a<br />

influência do Estado sobre a economia, a sociedade, a<br />

cultura. Como será que essas políticas são<br />

compreendidas na atualidade do final do século XX e<br />

começo do século XXI? Vejamos.<br />

Segundo o historiador inglês Perry Anderson (1995), o<br />

Neoliberalismo tem uma história que remonta os anos<br />

posteriores a Segunda Guerra Mundial quando um grupo<br />

de pensadores neoliberais se organizou e elaborou um<br />

conjunto de medidas, tais como: liberar o Estado das<br />

questões sociais e coletivistas que segundo estes<br />

pensadores são onerosas para os cofres públicos; liberar<br />

as fronteiras comerciais de taxas que dificultassem as<br />

relações comerciais internacionais; controlar a emissão<br />

da moeda; modificar as leis que controlam o Estado no<br />

que diz respeito à Previdência, às leis trabalhistas, aos<br />

impostos, à propriedade intelectual, às empresas e<br />

instituições públicas e a relação com o movimento<br />

sindical; a estas modificações na lei damos o nome de<br />

Reforma do Estado.<br />

Estas ideias passaram a ser aplicadas nos países na<br />

década de 1970 e têm significado a diminuição da<br />

presença do Estado na sociedade, na economia, na<br />

cultura. Essa diminuição vai encontrar na Reforma do<br />

Estado a sua legitimação. Precisamos entender o que é a<br />

Reforma do Estado: é uma mudança nas leis, que liberam<br />

ou diminuem a presença do Estado na fiscalização das<br />

questões trabalhistas; no cuidado com a escola e com a<br />

saúde pública; no cuidado com os aposentados; com a<br />

infraestrutura – estradas, portos, aeroportos. A solução<br />

dada por aqueles que defendem o Neoliberalismo é a<br />

privatização dos órgãos e serviços que estão sob a tutela<br />

do Estado.<br />

O Neoliberalismo é uma retomada, no século XX e XXI,<br />

da proposta liberal, defendida por John Locke (1632-<br />

1704), no século XVII. Locke, pensador inglês afirma<br />

que os homens são livres e iguais entre si, na medida em<br />

que não existe uma desigualdade natural. Tudo está ao<br />

acesso de todos, não devendo nada regular o acesso aos<br />

bens. Assim, operários e capitalistas como proprietários,<br />

cada um à sua maneira, de qualidades diferentes podem<br />

trocá-las como se fosse uma troca entre iguais, entre<br />

seres livres, não devendo o Estado se colocar entre eles.<br />

No pensamento liberal, o trabalhador pode escolher entre<br />

trabalhar para este ou para aquele patrão, de acordo com<br />

a sua conveniência, pois ele é livre para escolher. É aqui<br />

que entra o pensamento marxista para fazer a crítica a<br />

esta questão e desvendar o papel do Estado, como<br />

representante dos interesses capitalistas.<br />

Na grande maioria das vezes o trabalhador não pode<br />

escolher a tarefa, o salário e muitas vezes para quem vai<br />

trabalhar. Há na sociedade dividida em classes a<br />

hegemonia da classe dominante no controle da<br />

organização do trabalho, do Estado, da economia, da<br />

cultura. Essa hegemonia é a própria dominação que os<br />

capitalistas exercem sobre os trabalhadores e sobre o<br />

conjunto da sociedade, o que impede que os indivíduos<br />

possam escolher incondicionalmente para quem vão<br />

trabalhar.<br />

As pessoas que trabalham já devem ter ouvido, quando<br />

pedem um aumento de salário ou melhores condições de<br />

trabalho, que se não estiverem satisfeitas, podem pedir a<br />

conta, pois existem pessoas que trabalhariam por um<br />

salário menor. Essa pressão faz com que as pessoas<br />

muitas vezes aceitem a imposição hegemônica do patrão.<br />

O Neoliberalismo, como uma reedição das ideias<br />

liberais, vêm modificando a relação do Estado com a<br />

sociedade. Por exemplo, no Brasil ocorreu a privatização<br />

de estradas com a cobrança de pedágio; do Sistema<br />

Brasileiro de Telecomunicações; dos bancos estaduais,<br />

como o Banestado (Banco do Estado do Paraná); da<br />

CSN, Companhia Siderúrgica Nacional, empresa que<br />

produz aço para a indústria de bens duráveis – como<br />

carros, eletrodomésticos.<br />

Desta lista o que você concluiu? Já parou para pensar<br />

como ficará a situação daqueles que não podem ter<br />

acesso ao serviço de telefonia, luz, água, gás, escola,<br />

saúde, sem que o Estado financie e garanta o acesso de<br />

todos às conquistas tecnológicas e sociais? São questões<br />

importantes que envolvem a adoção por parte dos<br />

governos, das políticas neoliberais, e que dizem respeito<br />

à sua existência.<br />

Existe uma questão muito importante nesta discussão de<br />

globalização e neoliberalismo. Não podemos ficar com<br />

“raiva” do que é estrangeiro e passarmos a praticar atos


preconceituosos, atos de xenofobia – preconceito contra<br />

os estrangeiros.<br />

O problema central é que a globalização e o<br />

neoliberalismo passaram a ser mundiais e atingem os<br />

trabalhadores e as populações mais pobres do mundo<br />

todo. As manifestações contra a globalização apontam,<br />

para ações globais na defesa dos mais pobres, dos<br />

trabalhadores, contra o trabalho infantil, contra o tráfico<br />

de crianças e mulheres, contra a prostituição infantil em<br />

todo o mundo. Você sabia, por exemplo, que existem os<br />

homeless (sem casa ou sem teto) nos países europeus e<br />

nos EUA?<br />

A globalização também significou o aumento das<br />

contradições do capitalismo em todos os países (essas<br />

contradições são os problemas básicos que a humanidade<br />

ainda não resolveu para todos como moradia, comida,<br />

segurança, vestuário, educação, saúde); o que pode<br />

significar em contra partida um crescimento da<br />

solidariedade mundial.<br />

721


R E FE R Ê N C I A S:<br />

ANDERSON, P. U m m ap a d a esq u er d a n a E u r op a O cid en t al . Rio de Janeiro:<br />

Contraponto, 1996.<br />

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Estado Democrático. São Paulo: Paz<br />

o: as políticas sociais e o<br />

e Terra, 1995.<br />

GOUNET, T. For d ism o e T oy ot ism o n a civ iliz aç ã o d o au t om . óSão v elPaulo:<br />

Bomtempo Editorial, 2002.<br />

HARVEY, David. C on d iç ã o p ó - ms<br />

od er n a. São Paulo: Loyola, 1994.<br />

HOBSBAWN, E. A er a d os ex t r em<br />

os: o breve século XX (1914-1991). São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />

IANNI, Octavio. Neoliberalismo e neosocialismo. IN: IANNI, Octavio. A er a d o<br />

glob alism o. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.<br />

KURZ, R. O s ú lt im os com b at es . Petrópolis: Vozes, 1997.<br />

_________. O colap so d a m od er n iz aç ã o: da derrocada do socialismo de caserna<br />

à crise da economia mundial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.<br />

SANTOS, B. de S. D ilem as d e n osso t em p o: globalização, multiculturalismo<br />

e conhecimento. Revista Educação e Realidade. nº 26 (1) 13-32. jan/jul., 2001.<br />

821


MOVIMENTOS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE<br />

(TFP), os movimentos anticapitalistas, dentre outros. A<br />

lista de movimentos sociais existentes é longa, isso<br />

pensando apenas nos séculos XX e XXI.<br />

É pelo significado social e político e, ainda, pela<br />

quantidade de movimentos sociais existentes que tal<br />

tema é de extrema importância para a <strong>Sociologia</strong>.<br />

É importante dizer que abordaremos a temática dos<br />

movimentos sociais sempre pensando na forma de<br />

organização social atual em que vivemos. Portanto,<br />

estaremos tratando dos movimentos vinculados ao<br />

sistema capitalista. Quer dizer, priorizaremos aqueles<br />

movimentos sociais que nascem de demandas próprias<br />

desta forma de organização social.<br />

As cidades, organizadas na forma que conhecemos hoje,<br />

desenvolveram-se a partir do século XII, ligadas às<br />

necessidades dos homens medievais de realizarem trocas<br />

comerciais. Mas, no entanto, sabendo que durante a<br />

Idade Média a forma de organização social dava-se<br />

principalmente dentro dos feudos, essas cidades ainda<br />

não assumiam a importância que as mesmas possuem<br />

numa sociedade industrial.<br />

Por Valéria Pilão – Professora do Ensino Público em<br />

Curitiba no Paraná.<br />

Por que há pessoas que teimam em se<br />

organizar e propor mudanças para a sociedade?<br />

Você já ouviu falar em movimentos sociais, não é?<br />

Afinal, o que são os movimentos sociais,<br />

e mais, qual a importância deles para nossa vida<br />

cotidiana?<br />

Na história contemporânea temos diversos exemplos de<br />

formas de organizações coletivas, reivindicando as mais<br />

diferentes coisas ou ações caracterizando o que é um<br />

movimento social.<br />

Como exemplo, citamos o Movimento dos Trabalhadores<br />

Rurais Sem-Terra (MST), o Fórum Social Mundial<br />

(FSM), o movimento hippie, movimento feminista, o<br />

movimento estudantil, o movimento dos sem-teto, o<br />

movimento pela “Tradição, Família e Propriedade”<br />

Com a consolidação do capitalismo a partir do século<br />

XVIII, continuou existindo uma separação entre campo e<br />

cidade, mas tal distinção não criava um isolamento do<br />

campo, ao mesmo tempo em que, o desenvolvimento e o<br />

progresso não se restringiam à cidade. Em suma, estamos<br />

tratando da importância do rural e do urbano para o<br />

desenvolvimento capitalista, que cria duas realidades<br />

diversas, mas que, no entanto, nunca deixam de estar<br />

vinculadas e apresentando novas necessidades.<br />

Considerando que a sociedade capitalista tem sua<br />

organização e sua dinâmica marcadas pelas disputas e<br />

conflitos entre as classes sociais presentes nela,<br />

principalmente, entre as duas classes fundamentais, a<br />

burguesia e os trabalhadores, boa parte dos movimentos<br />

sociais será motivada diretamente, por interesses de<br />

classe ou manifestará aspectos daquelas disputas como<br />

são os casos dos movimentos sindical, de camponeses,<br />

dos sem-teto. Já outros movimentos, como o feminista,<br />

os de juventude, o hippie, os ecológicos, podem ou não<br />

estar, também, motivados diretamente por “interesses de<br />

classe” de seus participantes.<br />

921


Ocorre, muitas vezes, de suas razões mais evidentes<br />

serem da ordem de outros interesses, como os ligados a<br />

lutas contra discriminações de gênero, étnicas, de<br />

geração ou culturais.<br />

Assim, na sociedade contemporânea, tanto quem vive<br />

nas zonas urbanas, como quem vive nas zonas rurais,<br />

organiza-se em torno de seus interesses particulares e<br />

forma os mais diversos movimentos sociais.<br />

Não negamos a diferença quanto ao ritmo de vida<br />

existente para quem mora no campo e para quem vive na<br />

cidade. Por exemplo: quem mora na cidade sempre se<br />

assusta, num primeiro momento, com os horários que as<br />

pessoas da zona rural acordam, almoçam e jantam, pois,<br />

na maioria das vezes, isso ocorre sempre mais cedo, em<br />

comparação à vida urbana.<br />

A comparação contrária também é verdadeira: quem<br />

sempre morou no campo fica alucinado com o número de<br />

pessoas nas ruas, com a quantidade de carros, de prédios<br />

e da corrida contra o tempo de quem vive nas cidades.<br />

Diferenças entre o campo e a cidade existem e,<br />

certamente vão muito além destes dois exemplos acima,<br />

mas há também um elemento que une essas duas formas<br />

de vida aparentemente distintas: o fato de que tanto o<br />

trabalhador da cidade como o do campo e seus pequenos<br />

produtores, para obter a sua sobrevivência, submetem-se<br />

às regras e leis da produção de mais-valia. Os primeiros<br />

quando vendem sua força de trabalho no mercado, os<br />

segundos quando têm a sua produção sujeitada às<br />

demandas e obrigações impostas pelas leis de mercado<br />

capitalista e da prioridade dos interesses do capital<br />

urbano.<br />

Sendo assim, boa parte dos movimentos sociais que se<br />

organizam a partir desta realidade social nasce ou se<br />

relaciona, direta ou indiretamente, com questões ligadas<br />

à estrutura de classes e aos conflitos de interesses entre<br />

as diversas classes e frações de classe. Isto pode ser<br />

observado, por exemplo, no movimento feminista, onde<br />

demandas pelo fim do machismo estão ao lado de<br />

reivindicações pela redução da exploração no trabalho. O<br />

mesmo pode ser observado em movimentos como o dos<br />

negros no Brasil, onde a luta contra a discriminação por<br />

cor da pele está associada a demandas por emprego e<br />

escolaridade. Ou, ainda, quando se vê, no movimento<br />

social que luta por terra, surgir a organização das<br />

mulheres exigindo dos “homens sem-terra” tratamento<br />

igualitário dentro da organização do próprio movimento.<br />

Os movimentos caracterizam-se por reivindicações<br />

diferentes, mas a ideia do movimento social como forma<br />

de organização coletiva é extremamente importante neste<br />

sistema, pois é a partir deles que se consegue suprir<br />

determinadas necessidades dos mais diversos grupos.<br />

Quando tratamos dos movimentos sociais encontramos<br />

diversas características gerais que permeiam a todos eles,<br />

uma delas, por exemplo, é o fato de que estes<br />

demonstram a possibilidade de atuarem na História de<br />

modo a “determinar” como será o seu desenvolvimento.<br />

Estamos falando que os indivíduos tornam-se sujeitos<br />

históricos quando organizados de forma coletiva e com<br />

objetivos em comum, e, portanto, apesar de não terem<br />

certezas sobre o futuro do movimento, podem lutar (seja<br />

qual for a reivindicação e o projeto) para a inclusão,<br />

exclusão ou transformação radical da sociedade.<br />

Esta forma de movimento é muito importante numa<br />

sociedade como a que vivemos, pois políticas públicas,<br />

tais como: econômicas, sociais, educacionais,<br />

trabalhistas, dentre tantas outras, podem ser<br />

modificadas, quando indivíduos que isoladamente não<br />

possuiriam um grande poder de transformação<br />

organizam-se, e com isso, conseguem interferir na<br />

sociedade, transformando-a, ou até, mantendo-a de forma<br />

a garantir seus interesses.<br />

Podemos citar, como exemplo de manifestações sociais<br />

que extrapolam a tentativa de reformas e desejam uma<br />

transformação social radical da sociedade, a Revolução<br />

Cubana, que surge como uma manifestação contrária ao<br />

regime ditatorial presente no país, e acaba por culminar<br />

num governo socialista, a partir de 1959.<br />

Inúmeros exemplos poderiam ser citados para mostrar o<br />

homem enquanto sujeito histórico. A partir do momento<br />

em que no Brasil tem-se o movimento social dos negros<br />

buscando a sua inclusão, uma série de benefícios foram<br />

por este grupo conquistados, como por exemplo: as<br />

políticas afirmativas (sobre este assunto ver mais no<br />

“Folhas” sobre cultura), isso representa um processo de<br />

transformação na organização da sociedade, que para<br />

acontecer necessitou que o indivíduo compreendesse seu<br />

papel na sociedade como sujeito histórico.<br />

Portanto, afirmar que a sociedade é desta ou daquela<br />

forma, e que não adianta tentar interferir, é reproduzir<br />

um pensamento que na verdade atende aos interesses<br />

daquelas pessoas, grupos ou classes sociais que se<br />

encontram privilegiadas nas relações sociais, já que os<br />

movimentos sociais estão presentes na História para<br />

demonstrar exatamente o contrário: quando os indivíduos<br />

organizam-se coletivamente muito da estrutura social<br />

pode ser alterada.<br />

031


A princípio, abordaremos este tema de forma mais<br />

teórica para melhor definir o que é, quando, como e<br />

porque se desenvolvem os movimentos sociais.<br />

Os movimentos sociais apresentam-se ao longo da<br />

História de diversas maneiras e por diversos motivos<br />

mas, como se verá em seguida, há algumas<br />

características em comum a todos eles, por exemplo: em<br />

todo movimento social há um princípio norteador.<br />

O que seria este princípio norteador?<br />

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).<br />

Este tem como projeto a realização da reforma agrária<br />

que significa o fim dos latifúndios e a possibilidade da<br />

existência de pequenas propriedades rurais, nas quais os<br />

menos favorecidos, nesta sociedade capitalista, poderiam<br />

estabelecer-se de forma a criarem seu sustento através de<br />

uma agricultura de subsistência ou organizada em<br />

cooperativas.<br />

É importante salientar que a questão da terra no Brasil<br />

sempre foi uma das bandeiras dos movimentos sociais,<br />

pois em nossa estrutura agrária a concentração de terras e<br />

a existência de latifúndios estão presentes desde o início<br />

de nossa colonização. Isto porque nossa formação social<br />

deu-se em dependência de outros países,<br />

consequentemente, nossa produção agrária também.<br />

Assentamento João Batista – Pará<br />

Trata-se de um projeto construído coletivamente, na<br />

maioria das vezes buscando a solução de um problema, a<br />

transformação de uma situação, ou ainda, o retorno a<br />

uma situação anterior, na qual os indivíduos entendem<br />

que havia uma melhor condição para suas vidas.<br />

Os tipos de projetos dos movimentos sociais variam,<br />

principalmente, a partir do posicionamento quanto a<br />

características do status quo. Alguns movimentos ligados<br />

à luta por terra e por moradia podem pôr em dúvida a<br />

própria lógica do sistema social, questionando, por<br />

exemplo, a forma da propriedade e de distribuição da<br />

riqueza social. Outros movimentos sociais, como o<br />

feminista, os de juventude, os étnicos, podem pretender,<br />

primeiramente, modificar valores e comportamentos<br />

sociais. É o que ocorre quando movimentos sociais<br />

feministas “pedem” tratamento igual para as mulheres no<br />

mercado de trabalho, mesmo sem questionar,<br />

exatamente, o trabalho assalariado como forma de<br />

exploração do trabalho.<br />

Para uma melhor compreensão do que está sendo dito<br />

acima podemos usar como exemplo as reivindicações do<br />

Para elucidar o que estamos dizendo, podemos citar a<br />

criação das Capitanias Hereditárias — cuja produção era<br />

destinada ao mercado português; um exemplo disso na<br />

atualidade é a produção da soja e da laranja que também<br />

é destinada ao mercado internacional.<br />

Assim, temos como característica estruturante em nosso<br />

país, a subordinação de parte importante da produção<br />

agrícola a uma produção em larga escala e às<br />

necessidades do exterior, o que leva a um modelo<br />

baseado na utilização de grandes propriedades rurais,<br />

produzindo uma pequena variedade de produtos.<br />

Podemos ter uma maior clareza desse processo no Brasil<br />

quando utilizamos algumas informações obtidas a partir<br />

dos dados cadastrais do INCRA (Instituto Nacional de<br />

Colonização e Reforma Agrária) de 1992, a partir dos<br />

quais fica claro que a concentração de terra no Brasil só<br />

tem aumentado. Conforme podemos observar no gráfico<br />

abaixo, desde a década de 1960, vem aumentando a<br />

porção de terras abarcadas pelas propriedades com mais<br />

de 1000 hectares e, em contrapartida, diminuindo aquela<br />

ocupada pelas propriedades com menos de 100 hectares.<br />

Para facilitar a visualização da imensidão de terras de<br />

que estamos tratando, cada 1 hectare equivale a 10.000<br />

m2.<br />

131


231<br />

Essa concentração fundiária causa sérios problemas. Os<br />

pequenos produtores não conseguem obter rendimentos<br />

significativos, pois lhes falta o essencial – a terra.<br />

Considerando que esses produtores são a maioria e que<br />

empregam grande parte da força de trabalho do campo,<br />

podemos entender muitos fatos, como as precárias<br />

condições de vida da maioria da população rural e a<br />

venda de terras por parte dos pequenos proprietários para<br />

os produtores maiores ou para as grandes empresas.<br />

Em suma, a questão da terra torna-se uma bandeira para<br />

os movimentos sociais, pois sua concentração<br />

transforma-se em um problema num país de grandes<br />

dimensões, e com uma população sem acesso à terra e<br />

sem condições de ter acesso àquilo que ela produz.<br />

No caso dos movimentos sociais que lutam pela<br />

mudança na estrutura agrária, fica evidente a presença de<br />

“ interesses de classe” em jogo. Por exemplo,<br />

trabalhadores do campo X grandes proprietários.<br />

Conhece-se também, movimentos sociais do campo<br />

organizados por pequenos proprietários, que buscam, às<br />

vezes, melhores políticas estatais para suas necessidades<br />

(crédito, política de preços mínimos) ou se organizam<br />

para enfrentar ameaças de desapropriação por causa da<br />

instalação de barragens e usinas de energia em suas<br />

terras. Aqui, já se tem um conflito de classes direto. O<br />

enfrentamento se dá entre pequenos proprietários e o<br />

Estado. Vê-se, portanto, que há movimentos cujas<br />

motivações e propostas visam mais a defesa do status<br />

quo, conforme já observado anteriormente<br />

Na atualidade, um movimento que pode explicar de<br />

maneira clara o que são essas organizações coletivas, que<br />

não pensam na organização social de forma a<br />

transformá-la e sim de modo a voltar a formas anteriores<br />

são os movimentos neonazistas, também conhecidos<br />

como skinheads.<br />

Não só no Brasil, mas por todo mundo, crescem as<br />

manifestações fóbicas a diferentes culturas,<br />

nacionalidades ou etnias; especificamente aqui, há<br />

movimentos oriundos da ideologia nazista, que chegam a<br />

tratar com violência indivíduos que se vestem ou<br />

comportam-se diferentemente do eles definem como<br />

correto.<br />

Há um grupo na grande São Paulo chamado “Carecas do<br />

ABC”, cuja atividade coletiva chegou ao extremo da<br />

agressão física contra outros jovens como os de grupos<br />

punks. Encontra-se, também entre os “Carecas”, o<br />

preconceito contra os negros, os homossexuais e os<br />

nordestinos.<br />

Na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná,<br />

recentemente (set/2005) um grupo pregando ‘o orgulho<br />

branco’ agrediu uma pessoa negra na região denominada<br />

setor histórico da cidade. Suas atitudes não pararam por<br />

aí, panfletos cujo conteúdo propunha o preconceito aos<br />

homossexuais e aos negros foram afixados nos postes do<br />

local.<br />

Como já adiantamos atrás, temos um terceiro tipo de<br />

movimento social que não só luta pela transformação de<br />

uma dada situação, mas também tem como objetivo a<br />

transformação radical da forma de organização da<br />

sociedade.<br />

O que estamos dizendo, neste caso, é que o coletivo<br />

organiza-se a partir de uma necessidade cotidiana, como,<br />

por exemplo, melhores condições de trabalho; mas<br />

quando o movimento começa a desenvolver seus


objetivos transformam-se, a luta intensifica-se, e iniciase<br />

uma tentativa de mudança radical do sistema.<br />

Certamente, o que estamos descrevendo não é nenhuma<br />

receita de como o movimento social deve se organizar<br />

para se tornar revolucionário, na verdade, para que tal<br />

dimensão possa ser atingida há fatores sociais e<br />

históricos do momento vivenciado que contribuem para<br />

tal formação, portanto, há uma indeterminação histórica,<br />

isso quer dizer que há uma impossibilidade, a priori de<br />

afirmar o que acontecerá ou não no futuro, se esse caráter<br />

revolucionário pode ocorrer ou não.<br />

Esses movimentos geralmente organizam-se a partir de<br />

uma reivindicação local e específica, mas, à medida que<br />

se desenvolvem, começam a adquirir maior expressão<br />

social, extrapolando suas reivindicações iniciais, o que<br />

exige do próprio movimento um novo projeto e uma<br />

nova proposta para o futuro.<br />

Estamos dizendo agora que, se por um lado, é possível<br />

pensar em movimentos que querem alterar algumas<br />

A vontade de fazer oposição ao neoliberalismo no Fórum<br />

Social é tão séria que, as datas para as suas realizações<br />

foram programadas sempre concomitantes a do Fórum<br />

Econômico Mundial em Davos, Suíça. Esse Fórum<br />

Econômico é realizado anualmente para discutir os<br />

rumos a serem dados à economia dos países centrais e<br />

periféricos.<br />

A partir do momento em que surgiu a ideia, criou-se um<br />

Comitê Organizador a fim de por em prática o Fórum; o<br />

mesmo acabou ocorrendo no ano de 2001, em Porto<br />

Alegre, na sua primeira edição, e no mesmo ano foi<br />

criado um Conselho Internacional para melhor<br />

desenvolver a sua organização e eventos.<br />

O FSM é também composto por outros Fóruns realizados<br />

paralelamente nas mais diversas regiões, com os mais<br />

diversos propósitos. Há os chamados fóruns temáticos:<br />

Fórum Mundial da Educação, Fórum sobre “Democracia,<br />

características da realidade social, outros pedem uma<br />

volta a antigas formas de pensamento preconceituosas e<br />

autoritárias, e ainda, existem os movimentos sociais que<br />

criam a possibilidade de uma nova forma de organização<br />

social, na tentativa de superarem suas necessidades.<br />

Desta forma, trataremos um pouco mais cuidadosamente<br />

dos movimentos sociais que apresentam pouca<br />

possibilidade de ruptura (transformação radical da<br />

sociedade) com a realidade social posta, mas que de<br />

alguma forma apresentam alternativas. Um bom exemplo<br />

para estas formas de movimento encontra-se no Fórum<br />

Social Mundial, realizado desde 2001, que já ocorreu no<br />

Brasil, em Porto Alegre, e na Índia, em Mumbai.<br />

O Fórum Social Mundial (FSM) foi idealizado e criado a<br />

partir da iniciativa de alguns brasileiros que desejavam<br />

desenvolver uma resistência ao pensamento dominante, e<br />

principalmente, a forma neoliberal de organização<br />

política e econômica em que a sociedade encontrasse na<br />

atualidade.<br />

Direitos Humanos, Guerra e Tráfico de Droga”; e ainda,<br />

os fóruns nacionais e regionais: como por exemplo,<br />

Fórum Pan-Amazônico, Fórum Social Africano, entre<br />

tantos outros mais.<br />

Esta formação caracteriza o FSM como uma série de<br />

grandes eventos, nos quais são discutidas as mais<br />

diversas temáticas sempre preocupadas com a criação de<br />

alternativas para a realidade social. Desta forma, o FSM<br />

constitui-se como um espaço de articulação, debate,<br />

discussão e reflexão teórica pelos mais diversos<br />

movimentos sociais que participam de suas atividades.<br />

Estes movimentos sociais, por sua vez, possuem os<br />

interesses mais diversos, não havendo, portanto, uma<br />

prioridade na defesa das lutas.<br />

Todas são importantes e válidas, pois seguindo o projeto<br />

norteador do Fórum, cada uma delas possui um contexto<br />

específico que as fazem necessárias. Segundo o que diz<br />

Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e participante do<br />

Fórum: “As prioridades políticas estão sempre situadas e<br />

dependentes do contexto” (Santos, 2005: 37)<br />

Assim, a impossibilidade da construção de uma<br />

alternativa coletiva, geral, ao mesmo tempo que,<br />

possibilita a diversidade e a não imposição de um único<br />

modelo como alternativa, também faz com que o<br />

ambiente de debate perca-se na preocupação individual<br />

de cada movimento.<br />

Geralmente, é pensado como uma saída que reforme o<br />

sistema, pois para uma transformação radical da<br />

31


sociedade é necessário a existência de um grande<br />

movimento social.<br />

Portanto, cada movimento possui suas necessidades,<br />

buscam alternativas diferenciadas para seus problemas e<br />

utiliza-se do FSM como um momento para suas<br />

articulações e debates. Esta característica é tão forte<br />

dentro da organização ou realização do Fórum que na sua<br />

carta de princípios consta que nenhum dos participantes<br />

pode falar em nome do FSM, tamanha é a diversidade de<br />

reivindicações e propostas lá encontradas.<br />

Para maiores informações sobre a Carta de Princípios do<br />

FSM pode ser consultado o site do Fórum:<br />

www.forumsocialmundial.org.br.<br />

Uma outra característica peculiar quanto à constituição<br />

do Fórum é o fato do mesmo não possuir qualquer<br />

liderança; os seus dois conselhos e o caráter democrático<br />

das decisões não permitem que exista uma hierarquia, e<br />

ainda é atribuída, por parte dos movimentos sociais que<br />

participam do Fórum uma grande importância às redes<br />

que são criadas ou possibilitadas por intermédio da<br />

Internet.<br />

Assim, como afirma o próprio Boaventura: “O FSM é<br />

uma utopia radicalmente democrática que celebra a<br />

diversidade, a pluralidade e a horizontalidade. Celebra<br />

um outro mundo possível, ele mesmo plural nas suas<br />

possibilidades”. (Santos, 2005: 89)<br />

O que há em comum entre todos eles, e os fazem se<br />

reunir, é a luta contra as formas devastadoras assumidas<br />

pelo neoliberalismo contra as minorias e os nãodetentores<br />

de capital. Há também, a opção pela busca da<br />

transformação, seja ela qual for, por intermédio da<br />

intervenção e pressão política, lutando e idealizando a<br />

construção de um outro mundo por meio de mecanismos<br />

pacíficos.<br />

Na verdade essa caracterização atual do Fórum enquanto<br />

espaço de movimentos sociais, não é um consenso. Esta<br />

é uma posição, por exemplo, de Francisco Withaker (um<br />

dos fundadores do FSM e membro das comissões),<br />

defensor da ideia de que se uma linha comum for<br />

estabelecida, o espaço será perdido e se estará<br />

“asfixiando” a própria<br />

fonte de vida do Fórum.<br />

Outra posição também encontrada é a de que o Fórum<br />

deve ser sim um movimento dos movimentos, isso quer<br />

dizer que o Fórum deve assumir uma posição política,<br />

pois caso contrário, será um espaço que se perderá e não<br />

canalizará nenhuma ação concreta, perdendo seu sentido<br />

de existência.<br />

É assim que o Fórum, tomado como exemplo, sintetiza<br />

algumas das características e dilemas dos movimentos<br />

sociais atuais.<br />

As diferenças dos movimentos sociais participantes do<br />

FSM, portanto, são inúmeras, como já foi afirmado. Há<br />

uma pluralidade quanto à sua constituição que fica ainda<br />

mais clara quando são discutidas as possibilidades e<br />

alternativas para a sociedade. Encontram-se desde os que<br />

querem romper drasticamente com esta forma de<br />

organização social em que vivemos, até os que<br />

reivindicam uma reforma no sistema<br />

político, econômico e social, garantindo sua inclusão<br />

neste.<br />

431


R E FE R Ê N C I A S:<br />

GOHN, M. G. (Org.). M ov im en t os Sociais n o in í cio d o sé cu lo X X antigos I :<br />

e novos atores sociais. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.<br />

_______. M ov im en t os Sociais e lu t a p ela m or ad . iaSão Paulo: Edições<br />

Loyola, 1991.<br />

HOBSBAWN. E. R eb eld es P r im<br />

it iv os: estudo sobre formas arcaicas de<br />

movimentos sociais nos séculos XIX e XX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.<br />

______. A er a d o cap it al: 1 8 4 8 - 1 8 7 5 . 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />

1982.<br />

MARX, K. M an ifest o d o P ar t id o C om u n ist a. São Paulo: Boitempo Editorial,<br />

1998.<br />

SANTOS, B. S. O Fó r u m Social M u n d ial : manual de uso. São Paulo: Cortez<br />

Editora, 2005.<br />

TOURAINE, A. A socied ad e p ó s- in d u st r ial . Lisboa: Moraes editores, 1970.<br />

Site:<br />

www.forumsocialmundial.org.br<br />

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