Filosofia e Sociologia
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<strong>Filosofia</strong> e <strong>Sociologia</strong><br />
1
FI L O SO FI A E SO C I O L O G I A<br />
3
O<br />
C oor d en aç ão e d it or ial:Estúdio Conejo, Zênite.<br />
P r ep ar aç ã o d e t ext Zênite, o: Euvaldo Cotimguiba.<br />
C oor d en aç ão d e d esign e p r oj et os vi su ais: Pedro Yañez.<br />
R evi são: Geisa Teixeira.<br />
I m p r essão: Gráfica Brasil.<br />
r gan iz ad or : E st ú d io C on ej o<br />
Obra coletiva concebida, desenvolvida<br />
e produzida pelo estúdio Conejo, Zênite.<br />
E d it or E xe cu t ivo:<br />
Pedro Yañez.<br />
L ivr o d o p r ofessor :<br />
E U V A L D O C O T I M G U I B A<br />
4
Aos Estudantes<br />
“Agir no sentido mais geral do termo significa tomar iniciativa, iniciar, imprimir movimento<br />
a alguma coisa. Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores, em<br />
virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativa, são impelidos a agir. (...) O<br />
fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele<br />
é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, por sua vez, só é possível porque cada<br />
homem é singular, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo.<br />
Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém.<br />
Se a ação, como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana<br />
da natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição<br />
humana da pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais”. (Hannah<br />
Arendt in A condição humana ).<br />
Partindo deste pequeno texto da Hannah Arendt tomamos a filosofia como esse início de<br />
busca da maturidade, de desejo pelo novo e por descobrir outros caminhos que não somente<br />
aqueles já trilhados e batidos por outros pés. Somos o novo sempre, mas para isso é necessário<br />
o desejo e ao mesmo tempo o desapego de todos os hábitos até aqui adquiridos. Não<br />
existem novidades para aqueles que acreditam saber tudo. É necessário, portanto, desprendimento<br />
incondicional de suas velhas metodologias, de seus vícios e até de algumas virtudes ou<br />
você não se deixará seduzir pelo novo e não alcançará o que veio aqui buscar.<br />
Esta compilação é um dos caminhos que lhe oferecemos para pensar outras coisas, outros<br />
problemas que talvez estivessem presentes em sua existência, mas que não foram pensados<br />
ainda a partir destes referenciais. Os modelos velhos e aparentemente bons podem não servir<br />
mais, é hora de construir o novo, buscar o novo. Se o velho lhe servisse não estaria aqui em<br />
busca do novo, portanto vamos embarcar nesta grande aventura que é o pensamento filosófico<br />
e que ele lhe desestruture para sedimentar nova forma de pensar e agir sobre o mundo.<br />
Esperamos de você o inesperado porque sabemos ser capaz de realizar o infinitamente improvável.<br />
Bem vindo à escada, sem corrimãos, do pensar.<br />
Euvaldo Cotinguiba Gomes<br />
B om est u d o!<br />
;)<br />
5
FILOSOFIA<br />
7
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA .............................................................<br />
A FILOSOFIA COMO SISTEMA ..........................................................<br />
O PROBLEMA POLÍTICO OU EM TORNO DA POLÍTICA ..............<br />
A FILOSOFIA MEDIEVAL ....................................................................<br />
A CIÊNCIA MODERNA – DESCARTES E GALILEU GALILEI ..........<br />
O ESTADO MODERNO E A QUESTÃO DEMOCRÁTICA .................<br />
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ........................................................<br />
O POSITIVISMO ...................................................................................<br />
SOCIEDADE DE CONTROLE ..............................................................<br />
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I N T R O D U Ç Ã O À FI L O SO FI A<br />
A s O r igen s d o P en sam en t o Filosó fico<br />
As origens do pensamento filosófico estão diretamente<br />
vinculadas aos gregos, embora tenhamos diversas obras e<br />
pensadores em diferentes partes do oriente, doutrinadores<br />
no Antigo Egito, líderes espirituais na Índia, contudo<br />
estes não foram ou atuaram efetivamente como filósofos;<br />
foram grandes reformadores religiosos e não<br />
propriamente filósofos no sentido puro do termo. Em<br />
consonância com aquilo que temos de registros históricos<br />
podemos atribuir ao mundo grego romano o nascimento<br />
do pensamento estritamente racional e desvinculado das<br />
verdades religiosas.<br />
Em sua origem a filosofia representa a superação do<br />
pensamento mítico e até mesmo uma forma de<br />
explicação racional do mito. Por se tratar de um povo<br />
cuja preocupação religiosa voltava-se mais para o culto<br />
que a doutrina pôde conciliar sem crises suas tradições<br />
fazendo de seus mitos objeto de estudo e problema da<br />
própria filosofia. No correr dos anos os mitos que antes<br />
eram os reveladores e donos da verdade vão cedendo<br />
espaço às explicações matemáticas, à astronomia e assim<br />
seguindo até o momento em que se tornam literatura.<br />
Estes fatos possibilitaram o desenvolvimento dessa gama<br />
de conhecimentos denominados filosofia, um<br />
pensamento que tem seu apogeu na síntese platônica e<br />
aristotélica nos séculos V e IV antes de Cristo no<br />
território grego, especificamente em Atenas, berço da<br />
civilização grega neste período.<br />
Cronologicamente podemos afirmar que o apogeu<br />
filosófico vivido nos séculos V e IV *a.e.c. i foram<br />
gestados nos dois séculos que o antecederam, ou seja, no<br />
período que vai do século VI e VII a.e.c. período em que<br />
surgiram os “pensadores originários” também<br />
conhecidos como pré-socráticos. Ao período de<br />
nascimento, desenvolvimento e ápice denominamos<br />
período Clássico ou Helenismo filosófico. Os períodos<br />
seguintes são momentos de crise, diversos são os<br />
acontecimentos que geram estas crises, a começar pela<br />
decadência da Democracia Ateniense, ascensão do<br />
Império Macedônico e em seguida do Império Romano,<br />
desenvolvimento e entrada em cena do pensamento<br />
cristão, a própria decadência do pensamento clássico<br />
greco-romano conhecido a partir de então como<br />
pensamento “pagão” etc. Fato é que a filosofia andou<br />
trôpega por alguns séculos e volta ou ressurge com o<br />
aparecimento do pensamento cristão que lhe reabilitam<br />
como instrumento a serviço da fé no período patrístico ii<br />
estendendo-se por toda a idade medieval; teremos aí o<br />
que se convencionou chamar de filosofia cristã,<br />
pensamento amplamente desenvolvido pelos pensadores<br />
cristãos. Outros pensadores existiram neste período, mas<br />
o mais marcante e que definiu nossa forma de pensar e<br />
fazer filosofia no período foi o pensamento filosófico<br />
cristão, sobretudo por questões vinculadas ao poder e<br />
autoridade da Igreja Católica no período.<br />
O terceiro momento claramente definido da filosofia dáse<br />
a partir do Renascimento, novos ares adentram pelas<br />
frestas das janelas das catedrais e universidades<br />
medievais. A verdade revelada vê-se substituída pela<br />
verdade racionalizada, filha da razão cartesiana ou da<br />
verdade experimentada oriunda do empirismo e não mais<br />
da fé como vinha ao longo de aproximadamente doze<br />
séculos de pensamento cristão. Neste período<br />
denominado Renascimento outros meios e métodos de<br />
conhecimento são buscados, novas ciências ganham<br />
espaço no espectro do mundo renascentista; é o período<br />
de grandes descobertas em diversos campos do<br />
conhecimento. Inaugura-se a era moderna e com ela uma<br />
filosofia mais aberta e voltada para os problemas do<br />
homem no mundo e não mais de um homem que<br />
estivesse de passagem ou em estágio para o paraíso<br />
somente.<br />
Desde a modernidade até nossos dias muito foi escrito e<br />
discutido em filosofia. A chegada ao mundo<br />
1 1
contemporâneo é marcada por um tempo de grandes<br />
desencantos, dentre eles com a própria razão iluminista<br />
posto em dúvida pelos “mestres da suspeita” no século<br />
XIX e revisado pelos pensadores frankfurtianos no<br />
século XX. A filosofia neste período tem buscado tornarse<br />
mais práxis e menos teoria, nem sempre acertou, mas<br />
tem conseguido apontar rumos menos tortuosos à<br />
existência nestes conturbados tempos em que nos<br />
encontramos. Segue-se assim o que foi escrito por<br />
Aristóteles em sua obra Metafísica: “...todas as ciências<br />
serão mais necessárias que esta (a filosofia), mas<br />
nenhuma lhe será superior”.<br />
social de moralizar a própria sociedade. As narrativas<br />
míticas ocupavam o imaginário dos cidadãos da polis<br />
grega direcionando suas condutas. A partir do século V<br />
a.C. em Atenas teremos o aparecimento de dois gêneros<br />
importantíssimos neste processo formativo, são as<br />
comédias que satirizavam os poderosos e personagens<br />
célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e<br />
prodígios dos heróis, bem como suas desventuras e<br />
fracassos. Haviam festivais em que os poetas e escritores<br />
competiam elegendo as melhores peças e textos, estes<br />
festivais eram muito importantes na vida da “polis”<br />
grega, era por meio destes eventos sociais que as<br />
narrativas míticas se difundiam.<br />
C on t r a o esq u ecim<br />
en t o<br />
Dentre as peças trágicas deste período ganha grande<br />
destaque a obra de Sófocles, O Mito de Édipo. Está obra<br />
veio a público por volta do ano 427 a. C. e retra a<br />
seguinte história:<br />
O soberano consulta o Oráculo, o que era comum na<br />
cultura grega antiga. O Oráculo afirma que seu<br />
primogênito irá desposar a própria mãe e assassinar seu<br />
pai, o Rei Laio. Então, Laio manda que eliminem o<br />
menino, mas a pessoa encarregada não cumpre a ordem e<br />
envia o menino para um reino distante onde ele se torna<br />
um grande guerreiro e herói, numa de suas andanças ele<br />
encontra um homem arrogante e o mata; chegando ao<br />
Reino de Jocasta, Édipo se apaixona e a desposa. Anos<br />
mais tarde, Édipo descobre que ele próprio é o<br />
personagem da profecia, e num gesto de desespero,<br />
arranca os próprios olhos e sai a vagar pelo mundo a<br />
fora. A profecia se cumpriu, porque o rei se recusou a<br />
matar a criança.<br />
21<br />
O M it o, A <strong>Filosofia</strong> e a H ist ó r ia<br />
O M it o<br />
Os mitos tem um papel fundamental no mundo antigo e<br />
na formação das sociedade primitivas, cumpre a função<br />
Esta narrativa possui um fundo moral, o alerta para os<br />
desígnios dos deuses, que não devem ser contrariados, e<br />
o percurso de Édipo, de toda sua saga, de ter vencido a<br />
Esfinge e decifrado seu enigma, seu destino não o<br />
poupou. Contudo, um novo pensamento se formava e a<br />
vida na polis cada vez mais é direcionada pela política, e<br />
aos poucos a moral estabelecida pelas narrativas míticas<br />
foram sendo substituídas pela ética e pelos valores da<br />
cidadania grega. O cidadão grego cada vez mais<br />
participativo não considerava a ideia de não controlar a<br />
própria vida. Na vida da pólis, os homens livres<br />
manifestavam suas posições escolhendo entre iguais o<br />
direcionamento das decisões e das ações da cidadeestado.
Os mitos cumpriam uma função social moralizante de tal<br />
forma que essas narrativas ocupavam o imaginário dos<br />
cidadãos da polis grega direcionando suas condutas. Na<br />
Atenas do século V a.C. existia também o espaço para as<br />
comédias que satirizavam os poderosos e personagens<br />
célebres, e as tragédias que narravam as aventuras e<br />
prodígios dos heróis, bem como suas desventuras e<br />
fracassos. Haviam festivais em que os poetas e escritores<br />
competiam elegendo as melhores peças e textos, estes<br />
festivais eram muito importantes na vida da “polis”<br />
grega, era por meio destes eventos sociais que as<br />
narrativas míticas se difundiam.<br />
O n ascim en t o d a cid ad e est ad o ( p olis) .<br />
Segundo Jean Pierre Vernant, em As origens do<br />
pensamento grego, esse pensamento racional<br />
denominado <strong>Filosofia</strong> foi propiciado pelas formas de<br />
organização social, política e econômica da cidadeestado,<br />
que tiveram início com a invasão dos dórios na<br />
Grécia e a derrubada do poder centralizado na figura do<br />
rei divino. Podemos afirmar que a filosofia é filha da<br />
polis grega.<br />
C on d iç õ es h ist ó r icas p ar a o su r gim<br />
en t o d a <strong>Filosofia</strong><br />
Diversas circunstâncias históricas contribuíram para o<br />
desenvolvimento da filosofia. São realidades que se<br />
entrecruzam e daí origina-se esse todo ao qual chamamos<br />
pensamento filosófico. Dentre os elementos que<br />
participam deste todo, destacamos os seguintes:<br />
surgimento das cidades ou polis, a invenção da escrita, as<br />
leis (escritas), a moeda, a invenção da democracia etc.<br />
O ponto inicial da <strong>Filosofia</strong> grega é a reflexão sobre o<br />
mito e o seu significado, mostrando que este é um saber<br />
afetivo, motivado por questões subjetivas. É um saber<br />
coletivo e possui caráter dogmático. Este conhecimento<br />
será questionado pela filosofia já nos primeiros<br />
pensadores, conhecidos como pré-socráticos, estavam<br />
preocupados essencialmente em buscar uma explicação<br />
que pudesse apontar a origem – arché - princípio<br />
fundamental de todas as coisas. Sua explicação é<br />
fundamentada na racionalidade e não mais nas<br />
explicações sobrenaturais.<br />
O mito antes transmitido oralmente teve a partir da<br />
invenção da escrita mais uma forma de transmissão; as<br />
poesias cosmogônicas, serão utilizadas como ponto de<br />
partida também para o pensamento filosófico, os poemas<br />
que interpretavam o surgimento do mundo por meio dos<br />
mitos serão agora utilizados pelos filósofos de forma<br />
distinta, são reinterpretados e em lugar da cosmogonia<br />
apresenta-se a cosmologia. Esta passagem faz-se de<br />
maneira gradual tendo como fatores influentes o<br />
desenvolvimento cultural pelo qual passa o mundo grego<br />
entre os séculos IX e VI a. e.c. Localiza-se aqui a<br />
invenção da escrita pelos fenícios, o surgimento da<br />
cidade-estado no mundo grego, a formulação de leis<br />
escritas, a invenção da moeda, o aparecimento e<br />
desenvolvimento da democracia ateniense etc.<br />
O aparecimento das cidades-estados constitui, na história<br />
do pensamento grego, um acontecimento decisivo. O<br />
palácio, antes elemento central do poder é substituído<br />
pela Ágora, praça pública, o lugar do diálogo, da<br />
discussão, da autonomia da palavra. A palavra passa a<br />
ser tão valorizada que os gregos a transformaram numa<br />
divindade, Pheitó, que representa a força, a capacidade<br />
da persuasão.<br />
Não mais a palavra de ordem do rei divino, mas a<br />
palavra humana buscando através do conflito, da<br />
discussão, um sentido e o convencimento pela persuasão.<br />
A palavra está exposta a contestação e à polêmica, à<br />
discussão, a argumentação são regras do jogo intelectual<br />
e político que é praticado à luz do sol, na Ágora, e tem<br />
como juiz o público, os cidadãos. Os conhecimentos, os<br />
conteúdos da cultura, não ficam mais restritos ao palácio,<br />
são agora expostos à praça pública à apreciação de todos,<br />
possuem um caráter de publicidade e passam a ser objeto<br />
de análise e de interpretação. Desenvolve-se assim o<br />
Logos(λόγος), iii essa capacidade de uso da palavra, do<br />
discurso, da razão.<br />
Outra característica importante é a ideia de semelhança<br />
entre os cidadãos. Essa semelhança une os gregos<br />
pela Philia (união, amizade) garantindo a unidade da<br />
31
polis. A ideia de semelhança se converterá em igualdade<br />
no plano político, no conceito de isonomia, de mesma<br />
participação no poder entre os cidadãos. As leis escritas<br />
são as mesmas para todos os cidadãos iv e os mesmos<br />
deveriam participar dos tribunais e das assembleias.<br />
A in v en ç ã o d a escr it a<br />
A consciência mítica predomina em culturas de tradição<br />
oral, quando ainda não há escrita. Mesmo após seu<br />
surgimento, a escrita reserva-se aos privilegiados, aos<br />
sacerdotes e aos reis, e geralmente mantém o caráter<br />
mágico: entre os antigos egípcios, por exemplo, a<br />
Palavra hieróglifo significa literalmente "sinal divino".<br />
Na Grécia, já existia uma escrita no período<br />
micênico, mas restrita aos escribas que exerciam funções<br />
administrativas de interesse da aristocracia palaciana.<br />
Com a violenta invasão dórica, no século XII a.C. a<br />
escrita desapareceu junto com a civilização micênica,<br />
para ressurgir apenas no final do século IX ou VIII a.C.<br />
por influência dos fenícios.<br />
Em seu surgimento, a escrita assumiu função diferente,<br />
desligada da influência religiosa passou a ser utilizada<br />
para formas mais democráticas de exercício do poder.<br />
Enquanto os rituais religiosos eram cheios de fórmulas<br />
mágicas, termos fixos e inquestionáveis, os escritos<br />
passaram a ser divulgados em praça pública, sujeitos à<br />
discussão e à crítica. Isso não significa que a escrita se<br />
tornasse acessível a todos, muito pelo contrário, já que a<br />
maioria da população era constituída de analfabetos. O<br />
que está em destaque é a dessacralização da escrita, ou<br />
seja, seu desligamento do sagrado.<br />
A escrita gera nova idade mental porque a postura de<br />
quem escreve é diferente daquela de quem apenas fala.<br />
Como a escrita fixa a palavra para além de quem a<br />
proferiu, exige maior rigor e clareza, o que estimula o<br />
espírito crítico. Além disso, a retomada posterior do que<br />
foi escrito_ não só por contemporâneos mas por outras<br />
gerações _ abre os horizontes do pensamento e<br />
proporciona o distanciamento do vivido e o confronto<br />
das ideias. Portanto, a escrita surge como possibilidade<br />
maior de abstração, de uma reflexão aprimorada que<br />
tenderá a modificar a própria estrutura do pensamento.<br />
Os aedos (poetas-cantores) são cultores da memória. Eles<br />
possuem a força da palavra e revelam a vida e a origem<br />
dos seres e do mundo. As concepções míticas são<br />
mantidas vivas pela tradição oral. Com a invenção e uso<br />
da escrita essas concepções passam a ser registradas. O<br />
rigor daquele que escreve é diferente do rigor daquele<br />
que fala e, as palavras, uma vez escritas, estão fixas,<br />
permitindo maior exame e reflexão posterior. Portanto, o<br />
uso da escrita tem uma contribuição fundamental para o<br />
questionamento das interpretações míticas.<br />
Enquanto o pensamento mítico não questiona o seu<br />
conteúdo, o pensamento filosófico caracteriza-se pelo<br />
questionamento, pela investigação e argumentação<br />
racional para explicação da realidade. Embora o<br />
conteúdo da explicação, desses primeiros filósofos, tenha<br />
muita semelhança com o mito a forma de explicar é<br />
diferente.<br />
Aedo em grego antigo significa “cantor”; os aedos eram<br />
os poetas que, antes da invenção do alfabeto, praticavam<br />
o culto da deusa Memória e das musas e recebiam dessas<br />
divindades o dom de compor canções ao som da lira.<br />
Posteriormente, com a popularização do alfabeto, essas<br />
canções foram escritas e os aedos desapareceram, e aos<br />
poucos deixou-se de cultuar a deusa Memória. Mas é<br />
daquela época remota que nos chegaram, entre outras<br />
canções, a Ilíada e a Odisséia, cujo autor os gregos<br />
acreditavam ter sido Homero, um aedo da rica região da<br />
Jônia, Ásia Menor, no século 8 a. C.<br />
Contemporâneo de Homero, um outro aedo chamado<br />
Hesíodo, que viveu na Beócia, região norte da Grécia<br />
continental, transmitiu-nos também importantes canções.<br />
Hesíodo e Homero estão nos umbrais da história grega,<br />
pois é a partir da época em que viveram que se divulgou<br />
mais intensamente o uso da escrita na Grécia. Mas foi<br />
como aedos (e não como escritores) que eles<br />
compuseram suas canções: inspirados pelas deusasmusas,<br />
guiados pela deusa Memória, e servindo-se de<br />
técnicas de composição oral que durante séculos foram<br />
transmitidas de geração a geração.<br />
Os mestres-escolas da Grécia clássica chamaram essa<br />
canção de Hesíodo Teogonia, que significa em grego<br />
41
“nascimento de deus” ou “dos deuses”. Esse nome teve<br />
tanto sucesso que até hoje essa canção é chamada assim.<br />
Os mestres-escolas gregos utilizavam-na para ensinar a<br />
ler e escrever: eles faziam leves marcas de letras em uma<br />
tabuinha de cera mole e mandavam a criança reforçar as<br />
marcas, tornando as letras bem visíveis, e depois<br />
explicavam o sentido dos versos assim escritos. A<br />
Teogonia constituía, com os poemas de Homero, a<br />
cartilha na qual os gregos aprendiam a ler, a pensar, a<br />
entender o mundo e a reverenciar o poder dos deuses.<br />
A s leis escr it as<br />
A escrita, que foi emprestada dos fenícios e modificada,<br />
permite perenizar a cultura torna-la pública e, ao mesmo<br />
tempo, possibilita uma análise mais detida dos seus<br />
conteúdos. A dike (Justiça) pode ser fixada em forma de<br />
leis e garantir sua permanência de forma comum a todos,<br />
não dependendo mais da arbitrariedade do monarca.<br />
A in v en ç ã o d a m<br />
oed a<br />
Entre os séculos VIII e VI a.C., deu-se o<br />
desenvolvimento do comércio marítimo, decorrente da<br />
expansão do mundo grego, com a colonização da Magna<br />
Grécia (atual sul da Itália e Sicília) e da Jônia (hoje<br />
litoral da Turquia). O enriquecimento dos comerciantes<br />
acelerou a substituição de valores aristocráticos por<br />
valores da nova classe em ascensão. As primeiras<br />
moedas a serem utilizadas foram pelos gregos, pela<br />
cidade de Eginia. Até o tempo de Alexandre, não era<br />
usado imagens de pessoas reais e sim de divindades e<br />
animais.<br />
O s P en sad or es O r igin á r ios ou P r -éSocr á t icos<br />
Os primeiros pensadores gregos também chamados de<br />
primeiros sábios criaram a filosofia, mesmo que não lhe<br />
tenham atribuído esse nome são eles os criadores<br />
originários dessa forma de conhecimento. Isso ocorre por<br />
volta do século VII antes da era cristã. Buscavam<br />
explicar o mundo de forma racional, escapando às<br />
armadilhas míticas, tais como encontradas em Homero e<br />
Hesíodo respectivamente nas obras Ilíada e Odisseia, e<br />
na Teogonia. Esse fato deu-se na Ásia Menor em uma<br />
colônia chamada Mileto que neste período viveu grande<br />
desenvolvimento comercial e cultural, foi uma das<br />
cidades mais movimentadas comercialmente no período<br />
entre os séculos VII e VI antes de Cristo, até sua queda<br />
pós invasão macedônica.<br />
Os gregos souberam aproveitar desses fatos recolhendo<br />
tudo aquilo que chegava de novo, tiveram acesso às<br />
descobertas egípcias e caldéias, duas das civilizações<br />
mais desenvolvidas do período. Ampliaram seus<br />
conhecimentos extraindo das culturas que chegavam<br />
tudo que pudesse lhes ajudar na explicação racional da<br />
natureza. Os primeiros filósofos estavam preocupados<br />
com o mundo exterior, são exímios observadores e<br />
intérpretes da natureza, esse fato acaba por lhes fazeres<br />
conhecidos como “filósofos naturalistas” ou<br />
“physiologois” como os denominavam Aristóteles.<br />
Querem entender o enigma da origem do mundo, são<br />
estudiosos da “Physis”. Eles querem entender a dinâmica<br />
da natureza, o que lhes possibilita evoluir<br />
incessantemente, são os filósofos do devir.<br />
Os pré-socráticos buscam a solução nas contradições,<br />
teremos aí duas formas propostas como resolução deste<br />
problema: a solução sensista, presa ao sensível, aos<br />
sentidos e a solução pelo viés racionalista, proposta pelos<br />
eleatas; Outras correntes ainda surgirão, teremos a<br />
tentativa conciliadora por meio do atomismo e por<br />
último o grupo que abandona todos os postulados<br />
anteriores, optam pelo ceticismo, são os sofistas que<br />
influenciaram profundamente o novo momento da<br />
filosofia já chegando às portas do século V a.C. Esse<br />
grupo no período clássico da filosofia acabará por tornarse<br />
desafetos dos pensadores Sócrates, Platão e<br />
Aristóteles que os criticam como pseudos filósofos.<br />
V ej am os cad a u m d est es gr u p os<br />
Os Sensistas – Inicialmente a grande contribuição destes<br />
filósofos é a superação do antropomorfismo presente nas<br />
teogonias mitológicas, buscam um elemento único que<br />
51
61<br />
sintetize toda a multiplicidade presente nos fenômenos.<br />
Esse grupo é bastante numeroso, encontramos aqui os<br />
filósofos Jônios Tales de Mileto e Anaximandro e<br />
Anaxímenes, todos da cidade de Mileto e que viveram o<br />
final do século VII a.C. e começo do VI a.C.; Deste<br />
grupo faz parte também o pensador Heráclito que é de<br />
uma região vizinha, chamada Éfeso e viveu já no século<br />
VI a.C.<br />
As informações sobre suas vidas e doutrinas são<br />
escassas, tudo que sabemos são informações que nos<br />
chegaram por fragmentos de suas obras ou citações<br />
conservadas por outros filósofos como o que nos trouxe<br />
Aristóteles a cerca do pensamento filosófico destes em<br />
sua obra Metafísica e na Física.<br />
P en sad or es P r é - Socr á t icos<br />
Tales de Mileto – Era grande conhecedor de astronomia,<br />
meteorologia, geometria, ciências em geral; este<br />
escolheu a água como elemento originário, pois esta<br />
pode tomar todas as formas e ainda se faz presente como<br />
necessária à vida de todos os seres assim como participa<br />
de todos os alimentos e está presente em todos os<br />
germes. É, sem dúvidas uma tese facilmente sustentável<br />
e que se conserva com grande probabilidade de verdade<br />
até nossos dias.<br />
Anaximandro – Foi discípulo de Tales, deste pensador<br />
chegou aos nossos dias alguns fragmentos de um tratado<br />
sobre a natureza. Segundo Aristóteles este pensador fala<br />
de uma coisa “indeterminada” ou infinita ( apeiron), este<br />
elemento seria anterior à água, uma mistura de contrários<br />
de onde tudo deriva e para onde tudo retorna.<br />
Anaxímenes – Deste filósofo sabemos apenas que<br />
acreditava ser o ar o elemento primordial, pois era mais<br />
necessário à vida que a própria água, pode vir a ser tudo<br />
por meio da condensação e dilatação.<br />
Heráclito de Éfeso – Originário da cidade de Éfeso e<br />
descendente direto do Rei Andrócles que era fundador da<br />
cidade, abre mão de ser governador da cidade para<br />
dedicar-se à filosofia. Segundo seu pensamento a origem<br />
de tudo encontra-se no Devir, na constante mudança. O<br />
que existe não é o ser, mas o devir.<br />
Para Heráclito “tudo muda nada permanece”; para o<br />
filósofo do devir o universo é como um rio onde<br />
ninguém pode banhar-se por duas vezes. O que é,<br />
enquanto é, não é porque muda. Defende a identidade no<br />
contraditório, “mergulhamos e não mergulhamos no<br />
mesmo rio”; “existimos e não existimos ao mesmo<br />
tempo”; “o bem e o mal são uma e mesmo coisa”.<br />
Este grupo de filósofos são denominados sensistas por<br />
não ultrapassarem os dados sensíveis, estão presos a um<br />
entendimento de mundo voltado a essa realidade, não<br />
conseguem separar a racionalidade como elemento que<br />
extrapola o sensível e como um elemento distinto desta.<br />
Sua forma de pensar apresenta-se ainda de maneira<br />
rudimentar. São sábios, mas não filósofos na acepção<br />
mais apurada do termo.<br />
O P it agor ism o<br />
Antes de passarmos ao segundo grupo vejamos um<br />
pouco sobre um pensador intermediário neste período,<br />
trata-se de Pitágoras de Samos, que se tornou figura<br />
legendária na própria Antiguidade, teria sido antes de<br />
mais nada um reformador religioso, pois realizou uma<br />
modificação fundamental na doutrina órfica,<br />
transformando o sentido da "via de salvação"; em lugar<br />
do deus Dioniso colocou a matemática.<br />
Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com<br />
certeza, já que ela foi objeto de uma série de relatos<br />
tardios e fantasiosos, como os referentes às suas viagens<br />
e a seus contatos com culturas orientais. Parece certo,<br />
contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na<br />
segunda metade do século VI a.C. fugindo à tirania de<br />
Polícrates, transferindo-se para Crotona (na Magna<br />
Grécia) fundou uma confraria científico-religiosa.<br />
Pitágoras criou um sistema global de doutrinas, cuja<br />
finalidade era descobrir a harmonia que preside à<br />
constituição do cosmo e traçar, de acordo com ela, as<br />
regras da vida individual e do governo das cidades.<br />
Partindo de ideias órficas, o pitagorismo pressupunha<br />
uma identidade fundamental, de natureza divina, entre<br />
todos os seres. Essa similitude profunda entre os vários<br />
existentes era sentida pelo homem sob a forma de um<br />
"acordo com a natureza", que, sobretudo, depois do<br />
pitagórico Filolau, será qualificada como uma<br />
"harmonia", garantida pela presença do divino em tudo.<br />
Natural que dentro de tal concepção - vista por alguns<br />
autores como o fundamento do "mito helênico" - o mal<br />
seja entendido sempre como desarmonia.<br />
A grande novidade introduzida certamente pelo próprio<br />
Pitágoras na religiosidade órfica foi a tranformação do<br />
processo de libertação da alma num esforço puramente<br />
humano, porque basicamente intelectual. A purificação<br />
resultaria do trabalho intelectual, que descobre a<br />
estrutura numérica das coisas e torna, assim, a alma
O<br />
semelhante ao cosmo, entendido como unidade<br />
harmônica, sustentada pela ordem e pela proporção, e<br />
que se manifesta como beleza.<br />
Pitágoras teria chegado à concepção de que todas as<br />
coisas são números através inclusive de uma observação<br />
no campo musical: verificou no monocórdio que o som<br />
produzido varia de acordo com a extensão da corda<br />
sonora. Ou seja, descobriu que há uma dependência do<br />
som em relação à extensão, da música, (tão importante<br />
como propiciadora de vivências religiosas estáticas) em<br />
relação à matemática.<br />
" T od as as coisas sã o n ú m er os" . ( P it á gor as)<br />
A partir do próprio Pitágoras, o pitagorismo primitivo<br />
concebe a extensão como descontínua: constituída por<br />
unidades indivisíveis e separadas por um "intervalo".<br />
Segundo a cosmologia pitagórica - que descreve o<br />
cenário cósmico, onde se processa a purificação da alma<br />
- esse "intervalo" resultaria da respiração do universo<br />
que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que<br />
estaria imerso. Mínimo de extensão e mínimo de corpo,<br />
as unidades comporiam os números. Estes não seriam,<br />
portanto - como virão a ser mais tarde -, meros símbolos<br />
a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, os<br />
números são reais, são essências realizadas (usando-se<br />
um vocabulário filosófico posterior), são a própria "alma<br />
das coisas", são entidades corpóreas constituídas por<br />
unidades contíguas e a prenunciar os átomos de Leucipo<br />
e Demócrito. Assim, quando os pitagóricos falam que as<br />
coisas imitam os números estariam entendendo essa<br />
imitação (mimesis) num sentido realista: as coisas<br />
manifestariam externamente a estrutura numérica<br />
inerente.<br />
De acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram<br />
uma representação figurada dos números, em<br />
substituição às representações literais mais arcaicas,<br />
usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A<br />
representação figurada permitia explicitar a lei de<br />
composição dos números e torna-se um fator de avanço<br />
das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os<br />
primeiros números, representados figurativamente,<br />
bastavam para justificar o que há de essencial no<br />
universo: o um é o ponto, mínimo de corpo, unidade de<br />
extensão; o dois determina a linha; o três gera a<br />
superfície, enquanto o quatro produz o volume. Já por<br />
sua própria notação figurativa evidencia-se que a<br />
primitiva matemática pitagórica constitui uma aritmogeometria,<br />
a associar intimamente os aspectos numéricos<br />
e geométricos, a quantidade e sua expressão espacial.<br />
"Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece<br />
justo". (Pitágoras)<br />
Por conta de todas estas características Pitágoras inserese<br />
de forma mais significativa no grupo dos Eleatas, pois<br />
traz em seu pensamento vínculos estreitos com a<br />
superação do sensível e a aproximação com um pensar<br />
mais racionalista típico da escola eleática.<br />
s E leat as<br />
Os Eleatas, em oposição a Heráclito que se fixou na<br />
experiência e afirmou que tudo no mundo é o devir, os<br />
eleat as, apoiando-se somente na razão,est ab elecem q u e<br />
t u d o é sere de uma maneira puramente racionalista<br />
identificam a ordem das coisas com a ordem das ideias e<br />
vão parar na negação de toda multiplicidade e<br />
no m on ism o est r it am en t e r acion alist. aEntão se o ser é<br />
tão somente uno, único e imutável e, com esse mesmo<br />
conceito do ser, surge a seguinte questão: C om o se<br />
ex p licam as m u d an ç as q u e v em os n as coisas? Ao<br />
resolver esta dificuldade os eleatas incorrem<br />
no fen om en ism o e, mais ainda, no ilu sion ism o, pois<br />
dizem que as mudanças não existem na realidade, sendo<br />
tão somente uma ilusão dos sentidos, que a razão deve<br />
corrigir. Decorrem então os p r in cí p ios su p r em os<br />
d o m on ism o eleá t ico:<br />
1 – O ser é uno, único, imutável<br />
2 – Nenhum ser pode se reproduzir nem perecer, pois,<br />
caso contrário, o ser o aumentaria ou diminuiria, o que é<br />
impossível.<br />
3 – Como só existe um ser, o mundo e Deus são a mesma<br />
coisa. A concepção de Deus é material e hilozoísta<br />
(Doutrina metafísica que considera que a materia é<br />
animada, sensível e espontânea em atuações e respostas).<br />
Os principais pensadores desta vertente são: Xenófanes,<br />
Parmênides, Zenão e Meliso. Temos ainda Pitágoras que<br />
pode ser visto como o grande precursor e influenciador<br />
das doutrinas presentes neste período<br />
X en ó fan es ( 5 7 0 a 4 8 0 a. C . )<br />
Este pensador foi tido por muito como o fundador da<br />
escola em Eleática. Pelo que temos de informação era<br />
um rapsodo e circulaba pela Sicília e Itália Meridional<br />
recitando poemas de temas variados, históricos e<br />
filosóficos. Por vezes refutava os mitos e apresentava<br />
uma visão do cosmos atrelada a ideias panteístas tendo-o<br />
71
m<br />
81<br />
como o Uno e o Todo. Esta escola será dignamente<br />
representada por Parmênides e Zenão de Eléia, o<br />
primeiro ganhando destaque no pensamento metafísico e<br />
o segundo por seu pensamento apologista.<br />
O monismo de Xenófanes não é inteiramente rígido, pois<br />
não nega todo o devir e admite certa multiplicidade, ao<br />
menos relativa. Pode ser chamado de o t eó logo d a escola<br />
eleat a porque é o primeiro que ensina a unidade e a<br />
imutabilidade de Deus: “Há um só deus, o supremo entre<br />
todos os deuses e os homens”. Desta forma, esta estrita<br />
doutrina se baseia num fundamento falso, ou seja, em seu<br />
monismo racionalista onde tudo é uno e imutável e que<br />
deus é o próprio mundo. Entretanto, por outro lado, crê<br />
que a água e a terra nascem e passam. Em um fragmento<br />
afirma “Terra e água são todas as coisas que nascem e<br />
crescem”.<br />
Repele a transmigração das almas defendida pelos<br />
pitagóricos. Há uma passagem citada onde provoca um<br />
pitagórico que pegava um cachorro: “Largue-o, porque é<br />
a alma de um homem querido”.<br />
P ar m ê n id es ( 5 4 0 a. C . )<br />
Sucessor e discípulo de Xenófanes, Parmênides é o<br />
et afí sico d a escola eleat. a Seu mérito principal<br />
consiste no descobrimento do ser. Parmênides inaugura o<br />
pensamento que a primeira coisa que se deve dizer da<br />
realidade é o que é, que é o ser. O que é esse ser? Antes<br />
de tudo ele deve ser. Daí o princípio: o ser é . Este<br />
princípio se contrapõe ao seu par: O n ã o- ser , n ã o é.<br />
Destes dois princípios deduz todo seu sistema. Em efeito,<br />
se só o ser é, deve ser ú n ico, pois, se existir algo junto ao<br />
ser, só poderia ser o não-ser e o não-ser não é, não existe.<br />
Deve também ser im ó v elporque o ser que muda não é<br />
ser. Finalmente o ser é n ã o- cr iad o já que ao contrário só<br />
poderia preceder do não-ser e o não-ser não é. E n t ã o o<br />
ser é , p ar a P ar m ê n id es, u n o, im ó v el, e n - ãcr oiad o.<br />
Ainda que infinito ou eterno, espacialmente é delimitado<br />
e finito. Parmênides concebe o ser como uma esfera<br />
compacta e contínua cujas partes desde o centro para<br />
qualquer direção têm o mesmo peso. Desenvolve o<br />
conceito do ser sem fixar-se na experiência, pois ela dirá<br />
o contrário. Então, de que parte está a verdade? Na<br />
experiência ou na razão? Parmênides não duvida em<br />
responder que está na razão. O mundo que nos oferece a<br />
experiência é todo de multiplicidade e movimento, é um<br />
mundo aparente, que nada tem a ver com a razão, sendo<br />
somente alimento dos pensamentos ilusórios dos mortais.<br />
Esta é a arquitetura da antologia parmenidiana. No fundo<br />
deste sistema está o princípio do r acion alism o<br />
ex ager ad o que Parmênides enuncia assim: “a mesma<br />
coisa é pensar e ser”. O erro fundamental de<br />
Parmênides é considerar o mundo conceitual tão ligado<br />
com a verdade que deixa o mundo real reduzido a mera<br />
aparência ilusória. Ao mesmo tempo o grande mérito não<br />
é só a descoberta do ser, mas também ter desenvolvido<br />
de tal forma sua metafísica que só se pode chegar a Deus<br />
para que seja verdadeira. San t o A gost in h o, séculos<br />
depois, reproduz seu mesmo conceito “não foi nem<br />
será, porque de uma só vez tudo é”.<br />
Z en ã o( n ascid o em 5 2 0 a. C . )<br />
Discípulo de Parmênides defende a mesma doutrina e<br />
com suas famosas ap or ias d ialé t icastenta demonstrar<br />
que toda multiplicidade e todo movimento são<br />
impossíveis. Por isso se chama o d ialé t icod a escola<br />
eleá t ica. Expões quatro argumentos contra a pluralidade<br />
dos corpos e a favor da unidade do Universo e outros<br />
quatro contra a mutabilidade dos corpos e contra seus<br />
movimentos.<br />
Seu mérito consiste em manifestar com grande agudeza<br />
as dificuldades lógicas contidas na multiplicidade, no<br />
movimento e na divisibilidade, sem, entretanto, dar<br />
propriamente a solução para estas questões.<br />
As antinomias ou p ar ad ox os d e Z en ã onão só foram<br />
muito celebradas pelos antigos como A r ist ó t elesque as<br />
resolveu depois engenhosamente, como mais<br />
adiante, B ay le, E sp in osa, L eib n it z, H egel e H er b ar t as<br />
estudaram profundamente. Ainda que seus argumentos<br />
não resolvam o problema da multiplicidade e do<br />
movimento, desenvolvem agudamente as dificuldades<br />
que envolvem essas questões e assim prepara a invenção<br />
do cálculo infinitesimal, obra de L eib n it z e N ew t on.<br />
Concluindo podemos dizer que a filosofia eleata, em<br />
geral, foi uma notável tentativa de impor-se sobre toda<br />
realidade por meio da razão. Os filósofos eleatas<br />
empreenderam esta tentativa de forma exagerada, mas<br />
assim plantaram as bases da persuasão, que hoje todos<br />
sustentamos firmemente, de que todo o Universo é<br />
governado por leis imutáveis.<br />
O s A t om ist as<br />
Os atomistas abandonam a consideração hilozoística da<br />
matéria e se vêem obrigados a buscar uma cau sa<br />
eficien t e das coisas e de suas
mudanças. E m p é d ocles colocou esta causa nas forças<br />
consideradas de uma maneira antropomórfica,<br />
A n ax á gor asno entendimento divino e D em ó cr it ono<br />
movimento eterno, como veremos a seguir.<br />
O atomismo é uma doutrina filosófica que considera toda<br />
a realidade como matéria constituída por uma<br />
combinação fortuita de partículas indivisíveis, chamadas<br />
átomos. O atomismo surge na antiga Grécia com Leucipo<br />
e Demócrito. Atualmente incluem-se também no<br />
atomismo, num sentido amplo, as teorias físicas e<br />
químicas que concebem a matéria como constituída por<br />
partículas elementares de caráter indivisível.<br />
Os atomistas postularam a existência duma infinidade de<br />
partículas separadas, espalhadas pelo espaço vazio<br />
infinito.<br />
Esta teoria atómica (átomo vem de "atomon" =<br />
indivisível) foi inventada por Leucipo, que a revelou nos<br />
meados do sec.V e foi desenvolvida mais tarde por<br />
Demócrito, cerca de 30 anos depois.<br />
Estes dois filósofos eram naturais da Ásia Menor.<br />
Leucipo era talvez de Eleia, ou de Abdera, ou de Mileto<br />
(esta mais provavelmente); Demócrito era certamente de<br />
Abdera.<br />
Leucipo teria começado na escola de Eleia, foi discípulo<br />
de Zenão. A ideia do atomismo teria surgido como<br />
reação às ideias fantásticas de Parménides. Das suas<br />
obras nada chegou até hoje.<br />
Demócrito é bem mais conhecido. Terá nascido em<br />
Abdera entre 460 e 457. Curiosamente, Abdera tinha<br />
fama de ser a terra da gente estúpida.<br />
Demócrito foi para Atenas e viu Sócrates. Com<br />
vergonha, não se apresentou e disse "Vim a Atenas e<br />
ninguém me reconheceu". Viajou muito, ao Egipto, Ásia<br />
Menor, Babilónia, Pérsia e talvez Índia. Terá trazido a<br />
teoria atómica do Oriente?<br />
Demócrito sabia de astronomia, matemática, medicina,<br />
psicologia e ética. Os seus ditos são notáveis. Por<br />
exemplo: "Não tentes conhecer tudo a não ser que não<br />
desejes não conhecer algo", "Os grandes prazeres<br />
derivam da contemplação das obras belas"; "Aquele que<br />
engana é mais infeliz do que aquele que é enganado"; "É<br />
melhor aconselhar-se antes de atuar do que arrepender-se<br />
depois"; "O homem que não tem um bom amigo não<br />
merece viver".<br />
Eis a sua teoria atómica. O mundo é feito de duas partes,<br />
o pleno e o vazio. O pleno é dividido em pequenas<br />
partículas, chamadas átomos. Os átomos são indivisíveis,<br />
infinitos, eternos, absolutamente simples; são todos<br />
iguais em qualidade, diferem em forma, ordem e posição.<br />
Qualquer substância é feita desses átomos, cujas<br />
possíveis combinações são infinitas. Os objetos existem<br />
enquanto os átomos que os constituem se mantiverem<br />
juntos. As mudanças da realidade explicam-se pela<br />
contínua agregação e desagregação de átomos.<br />
Os átomos são indestrutíveis e a teoria aparece como um<br />
princípio de conservação da matéria.<br />
Como se movem os átomos, como se aproximam ou<br />
ligam, como se separam, porque se agrupam de uma<br />
maneira ou outra, são questões que nem sequer eram<br />
formuladas e só mais de 20 séculos depois começaram a<br />
ser abordadas.<br />
Para Demócrito a alma (psyche) é corpórea, mas feita<br />
dos átomos mais leves e mais móveis (esféricos por<br />
terem mais mobilidade).<br />
Existe um pouco destes átomos leves em todas as coisas,<br />
o que significa que há alma em tudo. Assim explicava a<br />
capacidade das coisas causarem sensações. O<br />
"materialismo" de Demócrito era pois de tipo especial. A<br />
sua teoria atómica era bastante completa pois procurava<br />
explicar também os sonhos, os mistérios e o destino.<br />
Alguns autores atribuem a origem da teoria atómica de<br />
Leucipo e Demócrito a teorias que teriam sido<br />
desenvolvidas na Índia, e outros a origens fenícias. Não é<br />
provável que tal acontecesse embora influências<br />
estranhas possam estar na base da teoria de Leucipo e<br />
Demócrito.<br />
As analogias entre a teoria atómica grega e as modernas<br />
teorias desenvolvidas a partir de Dalton, são por vezes<br />
exageradas. Há uma diferença abismal entre uma teoria<br />
filosófica que não pode ser testada e uma teoria científica<br />
sujeita a inúmeras confirmações experimentais.<br />
91
R E FE R Ê N C I A S:<br />
GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />
FERNANDES, Vladimir. Seminários de Estudos em Epistemologia e Didática. Universidade de São Paulo; Faculdade de<br />
Educação, 2007.<br />
HRYNIEWICZ, Severo. Para filosofar hoje. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2008.<br />
TORRANO, José Antônio Alves. O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo:<br />
Iluminuras, 1996.<br />
VASCONCELOS, Ana. Manual compacto de filosofia. São Paulo: Rideel, 2010.<br />
http://historiadafilosofia.wordpress.com/2009/01/25/capitulo-3-%E2%80%93-as-novas-cosmologias-dos-atomistas/<br />
1<br />
- a.e.c. – antes da era comum.<br />
1<br />
- patrística – período inicial do pensamento cristão fundado pelos padres da igreja. Vai do século III até aproximadamente<br />
o século VII.<br />
1<br />
- O L ogos (em grego λόγος palavra), no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada - o Verbo. Mas a<br />
partir de filósofos gregos como Heráclito passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico<br />
traduzido como r az ã o, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da Ordem e da<br />
Beleza.<br />
1<br />
- Eram considerados cidadãos os nascidos em Atenas do sexo masculino e que tivessem cumprido o serviço militar. De<br />
uma população de cerca de meio milhão de habitantes, excluía-se: os escravos (50%), de estrangeiros (entre 20% e 23%),<br />
de mulheres e crianças (entre 10% a 12%), restavam os cidadãos atenienses (entre 10% a 13%), não há possibilidade de<br />
definição precisa destes números, em geral variavam próximo aos percentuais aqui apresentados.<br />
02
A FI L O SO FI A C O M O SI ST E M A<br />
Só cr at es<br />
contradições, resultantes de crenças aceitas de modo<br />
dogmático, de pretensas verdades admitidas sem crítica.<br />
A ironia tinha que ser acompanhada da maiêutica, isto é,<br />
o método socrático constituía-se de duas partes: a<br />
primeira mostrava os limites, as falhas, os preconceitos<br />
do pensamento comum e a segunda iniciava no processo<br />
de busca da verdadeira sabedoria. Numa situação de<br />
conflito e de incertezas o ironista, depois de realizar o<br />
exercício da desconstrução e da negatividade, deve<br />
ajudar as pessoas a darem a luz às verdades que, no<br />
entender de Sócrates, traziam dentro de si. O exercício<br />
do filosofar, a partir das verdades encontradas, abria<br />
caminhos para múltiplas possibilidades de escolha e<br />
ação.<br />
A <strong>Filosofia</strong> Socr á t ica<br />
Por Ademir Aparecido Pinhelli Mendes professor em Curitiba Paraná.<br />
A <strong>Filosofia</strong> com<br />
o E x er cí cio d a I r on ia<br />
O surgimento da pólis como a primeira experiência da<br />
vida pública enquanto espaço de debate e deliberação,<br />
tornou o campo fértil para a fecundação e o<br />
florescimento da filosofia. E a figura emblemática dessa<br />
época, que nada escreveu e da qual se fala até os nossos<br />
dias como o modelo de filósofo, foi Sócrates.<br />
Na praça pública, Sócrates interrogava os homens e<br />
instigava-os a refletir sobre si e sobre o mundo. Sócrates<br />
foi uma figura misteriosa, que questionava as pessoas<br />
que encontrava dizendo buscar a verdade. Conforme<br />
acentua Lefebvre, (1969, p. 11) “(...) voltando-se para<br />
fora e para o público, Sócrates interroga os atores para<br />
saber se eles sabem exatamente porque arriscam suas<br />
vidas, a felicidade ou a falta de felicidade (...)”, assim<br />
como a felicidade dos outros. Sócrates é aquele que<br />
chega de mansinho e, sem que se espere, lança uma<br />
pergunta que faz o sujeito olhar para si e perguntar:<br />
afinal, o que faço aqui? É isso o que realmente procuro<br />
ou desejo?<br />
O que é a ironia socrática? O próprio Sócrates, nos<br />
diálogos platônicos, diz que seu destino é investigar, já<br />
que a única verdade que detém é a certeza de que nada<br />
sabe. Interrogava, portanto, para saber e, empenhado<br />
nessa tarefa, não raro surpreendia as pessoas em<br />
As perguntas de Sócrates não visavam confundir as<br />
pessoas e ridicularizar seu conhecimento das coisas, mas,<br />
motivá-las a alcançar um conhecimento mais profundo,<br />
não só de si próprias, mas também dos outros, dos<br />
objetos e do mundo que as rodeava, provocando nelas<br />
novas idéias. Essa era a sua maneira de filosofar, sua<br />
“arte de partejar”, de ajudar as pessoas a parir, dar a luz<br />
às novas idéias, arte que dizia ter aprendido com sua<br />
mãe, que ajudava as mulheres a dar a luz aos seus filhos.<br />
A interrogação de Sócrates expunha os saberes dos<br />
sujeitos e, ao mesmo tempo, mostrava o quanto as<br />
pessoas não tinham consciência daquilo que realmente<br />
sabiam.<br />
Essa atitude, como dizem os historiadores, fez de<br />
Sócrates uma figura singular e lhe angariou alguns<br />
amigos e muitos inimigos. Embora parecesse neutra e<br />
sem um objetivo preciso (Sócrates parecia não ser<br />
partidário de nenhuma das tendências da época e não<br />
defendeu explicitamente nenhum regime político), essa<br />
atitude questionava poderes instituídos, valores<br />
consolidados e, por isso, também pedia mudanças. Com<br />
a ironia, ao trazer à tona os limites dos argumentos<br />
comuns, ao mostrar as contradições ocultas na ordem<br />
comumente aceita, ao revelar, ao abalar as certezas que<br />
fundavam o cotidiano, Sócrates convida ao filosofar<br />
como um processo metódico de elaboração de novos<br />
saberes.<br />
Ao afirmar que também ele nada sabia, queria apenas<br />
dizer que um novo caminho para chegar-se a uma nova<br />
verdade seria indispensável. Se ele soubesse esta nova<br />
verdade, ele não diria que nada sabia, pois apenas sabia o<br />
12
M<br />
caminho, isto é, o começo do conhecimento e ele queria<br />
saber mais. Sócrates proclama que ele não sabe nada, e<br />
esta é sua maneira de trazer à luz o que ele sabe e o que<br />
já sabiam as pessoas honestas à sua volta, (hora pessoas<br />
honestas, acreditam saber tudo e é preciso ironizar um<br />
pouco delas para confrontá-las entre si e ensinar-lhes que<br />
elas só tinham opiniões contraditórias, cuja verdade<br />
devia extrair-se do que tivesse verdade!).<br />
“Sócrates, por meio de sua atividade, mostra-nos que o<br />
exercício do filosofar é, essencialmente, o exercício do<br />
questionamento, da interrogação sobre o sentido do<br />
homem e do mundo. A partir dessa atividade Sócrates<br />
enfrentou problemas, foi julgado e condenado à morte.<br />
Na história, a filosofia questionadora incomoda o poder<br />
instituído, porque põe em discussão relações e situações<br />
que são tidas como verdadeiras. A filosofia procura a<br />
verdade para além das aparências”. (LEFEBVRE, 1969,<br />
p. 14)<br />
ele que, se eu lograr absolvição, logo todos os vossos<br />
filhos, pondo em prática os ensinamentos de Sócrates,<br />
estarão inteiramente corrompidos; mesmo que, apesar<br />
disso, me dissésseis: ‘Sócrates, por ora não atenderemos<br />
a Ânito e te deixamos ir, mas com a condição de<br />
abandonares essa investigação e a filosofia; se fores<br />
apanhado de novo nessa prática, morrerás’; mesmo,<br />
repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos<br />
responderia: ‘Atenienses, eu vos sou reconhecido e vos<br />
quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós;<br />
enquanto tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de<br />
filosofar, de vos dirigir exortações, de ministrar<br />
ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que eu<br />
deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um<br />
ateniense, da cidade mais importante e mais reputada por<br />
sua cultura e poderio, não te pejas de cuidares de adquirir<br />
o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te<br />
importares nem cogitares da razão, da verdade e de<br />
melhorar quanto mais a tua alma?’ E se alguém de vós<br />
redargüir que se importa, não me irei embora deixandoo,<br />
mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me<br />
parecer que afirma ter adquirido a virtude e não a<br />
adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar menos o que<br />
vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a<br />
quem eu encontrar, moço ou velho, forasteiro ou<br />
cidadão, principalmente aos cidadãos, porque me estais<br />
mais próximos no sangue. Tais são as ordens que o deus<br />
me deu, ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu<br />
à cidade maior bem que minha obediência ao deus”.<br />
(PLATÃO, 1972, p. 21)<br />
A m<br />
issã o d e Só cr at es segu n d o P lat ã o<br />
“A ignorância mais condenável não é essa de supor saber<br />
o que não sabe? É talvez nesse ponto, senhores, que<br />
difiro do comum dos homens; se nalguma coisa me<br />
posso dizer mais sábio que alguém, é nisto de, não<br />
sabendo o bastante sobre o Hades1, não pensar que o<br />
saiba. Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o<br />
mal, desobedecer a um melhor do que eu, seja deus, seja<br />
homem; por isso, na alternativa com males que conheço<br />
como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será<br />
um bem.<br />
“Portanto, mesmo que agora me dispensásseis,<br />
desatendendo ao parecer de Ânito, segundo o qual, antes<br />
do mais, ou eu não devia ter vindo aqui, ou, já que vim, é<br />
impossível deixar de condenar-me à morte, asseverando<br />
aiê u t ica e I r on ia<br />
A ironia é uma forma de tratar o saber e aparece na<br />
história também como reação ao dogmatismo, isto é,<br />
quando existem verdades impostas pelas crenças ou pela<br />
autoridade, impedindo as pessoas de pensar e manifestar<br />
suas opiniões. Conforme Merleau-Ponty, (...) a vida e a<br />
morte de Sócrates são a história das difíceis relações que<br />
o filósofo, que não é protegido pela imunidade literária,<br />
mantém com os deuses da cidade, isto é, com os outros<br />
homens e com o absoluto imobilizado cuja imagem lhe<br />
apresentam(...) ( MERLEAU-PONTY, s/d., p. 46).<br />
A ironia socrática interroga para buscar um sentido<br />
oculto e desconhecido pelo homem, ancorado em crenças<br />
e dogmas. A ironia moderna descobre o duplo sentido e,<br />
com ele, a relatividade da verdade, a fragmentação e a<br />
fraqueza do pensamento que não consegue consolidarse<br />
em sistema. Ambos se aproximam na prática do duvidar<br />
e interrogar, no valor que atribuem ao homem, na sua<br />
2
dignidade sedimentada na liberdade de pensamento e em,<br />
principalmente, no reconhecimento de sua fragilidade<br />
existencial.<br />
Através da maiêutica ele procura dentro do Homem a<br />
verdade. É famosa sua frase “conhece-te a ti mesmo”,<br />
que dá início à jornada interior da Humanidade, na busca<br />
do caminho que conduz à prática das virtudes morais.<br />
Através de questões simples, inseridas dentro de um<br />
contexto determinado, a Maiêutica dá à luz ideias<br />
complexas.<br />
O filósofo busca o conhecimento através de questões que<br />
revelam uma dupla face – a ironia e a maiêutica. Através<br />
da ironia, o saber sensível e o dogmático se tornam<br />
indistintos. Sócrates dava início a um diálogo<br />
com perguntas ao seu ouvinte, que as respondia através<br />
de sua própria maneira de pensar, a qual ele parecia<br />
aceitar. Posteriormente, porém, ele procurava convencêlo<br />
da esterilidade de suas reflexões, de suas contradições,<br />
levando-o a admitir seu equívoco.<br />
Por intermédio da maiêutica, ele mergulha no<br />
conhecimento, ainda superficial na etapa anterior, sem<br />
atingir, porém, um saber absoluto. Ele utilizava este<br />
termo justamente porque se referia ao ato da parteira –<br />
profissão de sua mãe -, que traz uma vida á luz. Assim<br />
ele vê também a verdade como algo que é parido. Seu<br />
senso de humor costumava desorientar seus ouvintes,<br />
que na conclusão do debate acabavam admitindo seu<br />
desconhecimento. Deste diálogo nascia um novo<br />
conhecimento, a sabedoria. Um exemplo comum deste<br />
método é o conhecido diálogo platônico ‘Mênon’ – nele<br />
Sócrates orienta um escravo sem instrução a adquirir tal<br />
conhecimento que ele se torna capaz de elaborar diversos<br />
teoremas de geometria<br />
O P r ob lem a d o C on h ecim en t o<br />
Por Aderson de Paula Borges – Professor do Ensino Público no Estado do Paraná<br />
A questão do conhecimento é, provavelmente, o<br />
problema mais antigo da filosofia. É verdade que a<br />
produção e organização de conhecimentos técnicos,<br />
artísticos, agrícolas, etc., é anterior ao conhecimento<br />
filosófico iniciado pelos pré-socráticos.<br />
(...) no espaço de alguns séculos, a Grécia conheceu, em<br />
sua vida social e espiritual, transformações decisivas.<br />
Nascimento da Cidade e do Direito, advento, entre os<br />
primeiros filósofos, de um pensamento de tipo racional e<br />
de uma organização progressiva do saber em um corpo<br />
de disciplinas positivas diferenciadas: ontologia,<br />
matemática, lógica, ciências da natureza, medicina,<br />
moral, política, criação de formas de arte novas, de<br />
novos modos de expressão, correspondendo à<br />
necessidade de autentificar os aspectos até então<br />
desconhecidos da experiência humana: poesia lírica e<br />
teatro trágico nas artes da linguagem, escultura e<br />
pintura concebidas como artifícios imitativos nas artes<br />
plásticas.(VERNANT, 1973, p. 04)<br />
Antes mesmo do nascimento da filosofia na Grécia<br />
antiga do séc. V a.C. já há uma cultura estabelecida,<br />
sobretudo nos textos épicos de Hesíodo e Homero, mas<br />
também na poesia lírica e nos conhecimentos<br />
rudimentares que os gregos do século VI a.C. tinham<br />
sobre astronomia.<br />
Ao se constituir, a filosofia provoca um afastamento<br />
gradual e doloroso desta tradição. Os heróis e os valores<br />
presentes nas histórias de Homero e Hesíodo são<br />
questionados pelos primeiros filósofos. A tradição mítica<br />
entra em crise e a filosofia passa a absorver questões<br />
como a origem do universo, o bem universal, o que é o<br />
ser, a organização política de uma cidade, etc. É<br />
provavelmente neste momento, por volta da metade do<br />
século V a.C. em Atenas, que podemos situar o<br />
nascimento de uma preocupação com as condições em<br />
que se dá o conhecimento.<br />
Mas por que o conhecimento é um tema exclusivamente<br />
filosófico? Antes do advento da filosofia não existe o<br />
problema? O helenista Jean-Pierre Vernant diz que a<br />
preocupação com o conhecimento puro, isto é, o saber<br />
que não carrega traços religiosos ou míticos, é uma<br />
característica dos primeiros filósofos. Homens como<br />
Tales, Anaximandro, Anaxímenes apresentam em suas<br />
investigações uma teoria, uma visão geral do mundo que<br />
explica racionalmente a estrutura física e espiritual desse<br />
mundo. Vernant afirma ainda que esses primeiros<br />
pensadores tinham plena consciência de que produziam<br />
um conhecimento radicalmente novo e, em muitos<br />
pontos, oposto à tradição religiosa.<br />
(VERNANT, 1973, p. 156-8)<br />
P lat ã o e P r ot á gor : as Racionalismo e Relativismo<br />
O que de fato diferencia esses níveis de conhecimento de<br />
que falamos, ou seja, qual a natureza específica da<br />
sensação, da crença e do conhecimento? Vejamos o que<br />
Platão e Protágoras escreveram a respeito. Platão é um<br />
filósofo nascido em Atenas do período clássico. Sua obra<br />
trata de política, moral, ciência e arte. Platão descrevia<br />
suas teses em textos escritos na forma de diálogos<br />
32
42<br />
temáticos, isto é, cada diálogo tratava de um tema<br />
específico como Justiça, Conhecimento, Coragem, etc.<br />
Já Protágoras é um “sofista” nascido alguns anos antes<br />
de Platão. Um sofista é um sujeito tido como conhecedor<br />
de técnicas de aprendizado de oratória, matemática,<br />
geometria, etc.. É alguém que tem uma “especial perícia<br />
ou conhecimento para comunicar. Sua sophia [sabedoria]<br />
é prática, quer nos campos da conduta e política, quer<br />
nas artes técnicas” (GUTHRIE, 1995, p. 34). A relação<br />
entre as posições de Platão e Protágoras acerca do<br />
conhecimento é, para dizer o mínimo, tensa.<br />
Protágoras é considerado, do ponto de vista do<br />
conhecimento, um relativista. Ele defendia, por exemplo,<br />
que para cada tema havia um argumento a favor e outro<br />
contra. Dizia que podia fazer do “argumento mais fraco o<br />
mais forte”. No Teeteto de Platão ele aparece defendendo<br />
sua tese mais famosa, a ideia de que “(...)o homem é a<br />
medida de todas as coisas, das que são e das que não são.<br />
(Teeteto, 152c).<br />
No Teeteto Platão faz um exame cuidadoso dessa<br />
doutrina, destacando que não se trata apenas de uma<br />
frase de efeito criada pelo sofista para agradar às<br />
multidões, estratégia típica nas atividades de Protágoras.<br />
Protágoras realmente defendeu a tese de que em assuntos<br />
como<br />
política, moral, religião, saúde, o indivíduo é a medida,<br />
isto é, não existe nada além daquilo que cada um percebe<br />
em seu campo de visão, audição, etc. Essa filosofia gera<br />
um relativismo, uma perspectiva que leva em conta<br />
apenas aquilo que a sensibilidade de uma pessoa capta.<br />
Mas por quê? Que tem a ver sensibilidade com a ideia de<br />
que o homem individual é medida de todas as coisas?<br />
Em primeiro lugar, é preciso considerar que Protágoras<br />
lecionava, segundo Platão, duas qualidades diferentes de<br />
ensino. Um ensino mais popular e acessível era dado à<br />
multidão que, ocasionalmente, pagava e freqüentava seus<br />
cursos. Um outro tipo de lição, bem mais detalhada, era<br />
ministrada aos chamados “iniciados”, discípulos assíduos<br />
que recebiam as explicações pormenorizadas das teses de<br />
Protágoras.<br />
Em segundo lugar, sempre de acordo com Platão no<br />
Teeteto, o sofista utilizava em suas lições aos iniciados o<br />
núcleo principal da filosofia do pré-socrático Heráclito<br />
para dar um fundamento à tese do homem-medida. De<br />
Heráclito Protágoras emprestava a ideia de que “tudo<br />
está em movimento”. Com esse pensamento, Protágoras<br />
negava que alguma coisa pudesse manter suas qualidades<br />
essenciais de forma perene. Por exemplo, com a ideia de<br />
que tudo está sob efeito de um fluxo constante justificase<br />
porque não há razão para acreditar em ideias gerais<br />
acerca da humanidade, do destino humano, de<br />
conhecimento, etc. Protágoras chega a dizer que o<br />
conhecimento de medicina, mesmo que se defina por um<br />
conjunto de técnicas sobre o bem-estar do corpo, não é<br />
um caso de verdade absoluta. Os preceitos médicos não<br />
fazem mais do que substituir uma sensação ruim, como a<br />
febre, por uma sensação boa, a saúde. Estamos aqui no<br />
plano da sensação e, sobretudo, bem de acordo com a<br />
doutrina de que cada um é juiz solitário de tudo que é<br />
verdadeiro e falso.<br />
Em suma: é porque tudo se move que o homem, ser<br />
sensível capaz de reter momentaneamente alguns traços<br />
das coisas, é a medida de tudo. Protágoras pode ser<br />
considerado, desse modo, o primeiro relativista da<br />
história.<br />
Platão escreveu que os homens estão ligados desde o<br />
nascimento às sensações primitivas. Por conta disso,<br />
vivem num estado mental permeado por “imagens” dos<br />
objetos existentes. Para Platão poucos alcançam o<br />
verdadeiro conhecimento. Platão crê que é definitivo o<br />
apego da maioria das pessoas a realidades transitórias,<br />
mas não deixa de indicar, repetidas vezes e em vários<br />
textos, o caminho que leva ao verdadeiro conhecimento.<br />
Esse caminho é diferente daquele indicado por<br />
Protágoras em muitos pontos essenciais, como veremos.<br />
A principal obra de Platão é um diálogo chamado<br />
República. É uma síntese de seu pensamento. Não por<br />
acaso é o texto mais divulgado de Platão. Nessa obra<br />
Platão desenvolve uma série de teses sobre<br />
conhecimento.<br />
A principal obra de Platão é um diálogo chamado<br />
República. É uma síntese de seu pensamento. Não por<br />
acaso é o texto mais divulgado de Platão. Nessa obra<br />
Platão desenvolve uma série de teses sobre<br />
conhecimento. Mas o autor escreveu uma outra obra que<br />
tratava exclusivamente da questão do conhecimento.<br />
Trata-se do diálogo Teeteto, já citado. Confeccionado<br />
após a República, provavelmente num momento onde<br />
Platão já não estava contente com os resultados expostos<br />
em sua obra anterior, é nessa obra que Platão desafia de<br />
forma definitiva o relativismo de Protágoras.<br />
Para dar cabo dessa tarefa, Platão desenvolve três<br />
alternativas para a definição de conhecimento:<br />
1 ) conhecimento é sensação;<br />
2 ) crença-opinião verdadeira é conhecimento e
m<br />
3 ) opinião verdadeira justificada com a razão é<br />
conhecimento.<br />
A primeira alternativa é a opinião de Protágoras. Na<br />
passagem 186c do Teeteto Platão é categórico ao rebatêla:<br />
Naquelas impressões (sensações), por conseguinte, não é<br />
que reside o conhecimento, mas no raciocínio a seu<br />
respeito; é o único caminho, ao que parece, para atingir<br />
a essência e a verdade; de outra forma é impossível.<br />
Ao dizer que o raciocínio sobre as impressões é o que<br />
caracteriza o conhecimento, Platão condena a tese de<br />
Protágoras à inconsistência epistemológica, isto é, nada<br />
na tese permite retratar o processo de conhecimento. Um<br />
pouco antes deste trecho, o diálogo apresenta a noção de<br />
alma como responsável pela “síntese” da sensação.<br />
Platão insiste ali que o que organiza em nós o fluxo de<br />
dados captados pelos sentidos é o que hoje chamamos<br />
en t e ou esp í r it o. Platão avalia que a sensação não<br />
pode ser responsável por um conhecimento porque ela<br />
não opera no nível do “por que”, mas no nível do<br />
“através de que” (Diès, 1972, p. 458). Em outras<br />
palavras, Platão está dizendo que a sensibilidade não é<br />
capaz de fazer um juízo da forma “esta flor é bela”.<br />
Mesmo que meus órgãos sejam tocados pela beleza da<br />
flor, a expressão “é bela”, e seu sentido, é uma operação<br />
realizada pelo espírito. Platão rejeita também a idéia de<br />
que opinião ou crença, ainda que verdadeira, possam ser<br />
conhecimento. No diálogo Mênon (98a) Platão escreve:<br />
desenvolveu posteriormente a idéia de que, se uma<br />
pessoa tem conhecimento, ela deve dominar<br />
necessariamente o saber da causalidade dos eventos e<br />
coisas. Ciência ou Conhe-imento, tanto para Aristóteles<br />
como para Platão, é o domínio das conexões causais<br />
verificadas na realidade.<br />
No que toca à crença, para Platão trata-se de um tipo de<br />
fluxo de ideias que se caracteriza por uma tendência<br />
natural à mudança. Nossas crenças podem até ser<br />
verdadeiras ou plausíveis, como, por exemplo, no caso<br />
de dizermos que “o egoísmo é uma propriedade natural<br />
do ser humano”. Mas até que saibamos expor a cau sa,<br />
dizer o p or q u ê, ou enunciar a fu n ç ã o que a natureza<br />
reservou a esse sentimento, não estamos autorizados a<br />
emitir aquele juízo com pretensão de conhecimento. Se<br />
alguém lançar contra essa ideia uma série de argumentos,<br />
podemos modificar nossa posição sobre o problema,<br />
sem, no entanto, conhecer de fato a questão. Platão dizia<br />
que a estrutura de nossas opiniões segue mais ou menos<br />
o esquema de nossas sensações. Esse esquema é o<br />
seguinte:<br />
Pois também as opiniões que são verdadeiras, por tanto<br />
tempo quanto permaneçam, são uma bela coisa e<br />
produzem todos os bens. Só que não se dispõem a ficar<br />
muito tempo, mas fogem da alma do homem, de modo<br />
que não são de muito valor, até que alguém as encadeie<br />
por um cálculo de causa. (...) e quando são encadeadas,<br />
em primeiro lugar, tornam-se ciências, em segundo<br />
lugar, estáveis. E é por isso que a ciência é de mais<br />
valor que a opinião correta, e é pelo encadeamento que<br />
a ciência difere da opinião correta.<br />
Esse “encadeamento” de que fala o filosofo é o<br />
r aciocí n io que cada um é capaz de fazer sobre os<br />
elementos que compõem sua opinião. Trata-se, como<br />
disse Da Costa na passagem já citada no texto, de ter<br />
uma justificação para sua crença. Em Platão essa<br />
j u st ificaç ã é o o con h ecim en t o d as cau sas. Aristóteles<br />
No caso da visão, ter uma experiência sensória é ter um<br />
olho que recebe, com ajuda da luz, aspectos dos objetos.<br />
À medida que o objeto se movimenta, nossa visão<br />
também se modifica. Se estiver mais próximo, vejo com<br />
mais nitidez o tom de cinza. Se me afastar demais, não<br />
consigo distinguir a cor. Para Platão, toda sensação, seja<br />
auditiva, gustativa ou tátil, é um caso de aproximação<br />
entre um órgão sensível (olho, ouvido, etc.) e um objeto.<br />
A crença/opinião, para Platão, tem essa estrutura porque<br />
as informações que adquirimos mediante opinião se<br />
mantêm apenas até que outra sensação, mais forte ou<br />
mais adequada, substitua a sensação anterior que nos<br />
52
fazia emitir aquela opinião. Desse modo, toda<br />
informação que administramos a título de opinião está<br />
sujeita a mudança, da mesma forma que nossa visão dos<br />
objetos se modifica pelo deslocamento de posição, seja<br />
do nosso olho ou do objeto.<br />
Não é o que ocorre quando temos con h ecim en t o. De<br />
modo similar à crença, o conhecimento retém um feixe<br />
de aspectos dos objetos. Mas o que o distingue é o fato<br />
de focalizar os traços permanentes do objeto. Desse<br />
modo, a grande diferença, para Platão, entre opinião e<br />
conhecimento é que a primeira fornece ao sujeito um<br />
quadro provisório do mundo, ao passo que o<br />
conhecimento é o estudo daquilo que jamais muda.<br />
No Teeteto Platão diz que é preciso que a mente se ponha<br />
a r aciocin ar sobre os dados para que haja a formulação<br />
de um conhecimento. O raciocínio é uma atividade do<br />
pensamento, para Platão a mais nobre, porque é por meio<br />
dele que conseguimos atingir o verdadeiro núcleo de<br />
cada realidade.<br />
do conhecimento. Essa também é a preocupação que dá<br />
corpo ao desenvolvimento da matemática grega. Em<br />
outras culturas o processo de construção do<br />
conhecimento matemático deu-se de maneira diferente.<br />
Sabemos hoje que entre os babilônios e egípcios, por<br />
volta de 3.500 a.C. já existia um primitivo sistema de<br />
escrita numérica. Alguns historiadores consideram,<br />
inclusive, a África e não a Grécia o berço da<br />
matemática, devido ao material encontrado que sugere<br />
que há mais de dezenove mil anos já se pensava<br />
matematicamente. Porém, é na Grécia que se verifica um<br />
surpreendente nível de abstração de problemas<br />
matemáticos, culminando na obra do matemático<br />
Euclides, que viveu por volta do ano 300 a.C. Os<br />
“Elementos” de Euclides comportam 465 proposições<br />
em 13 livros que tratam de geometria, teoria dos<br />
números, irracionais e geometria do espaço.<br />
A r ist ó t eles e su as cr í t icas a P lat ã o<br />
T eor em a d e P it á gor as. . .. <strong>Filosofia</strong> e M at em á t ica<br />
62<br />
Se hoje o conceito de “ângulo”, a “teoria das<br />
proporções”, a “raiz quadrada”, os números nãointeiros<br />
ou negativos, etc., são coisas comuns nas aulas<br />
de matemática, isso se deve ao fato dos gregos terem<br />
dado grande impulso na sistematização dessas fórmulas.<br />
Entre os gregos, a filosofia começa com uma tomada de<br />
consciência sobre os limites da experiência na obtenção<br />
Aristóteles (384-322 a. C.).<br />
A teoria do conhecimento se caracteriza por uma<br />
preocupação com a busca de princípios gerais que<br />
permitam formular crenças verdadeiras sobre a realidade.
Essa idéia está presente na obra de Platão e é, em larga<br />
medida, o que caracteriza também o pensamento de<br />
Aristóteles.<br />
É com Aristóteles que a filosofia ganha uma consciência<br />
mais definida acerca do método a ser adotado quando o<br />
assunto é o conhecimento. Aristóteles contestou Platão<br />
porque via problemas em alguns pontos da explicação<br />
platônica do conhecimento. Platão tinha chegado numa<br />
tese importante: para haver conhecimento da realidade, é<br />
preciso encontrar um caminho que dê acesso a ideias que<br />
sejam imutáveis, que não sofram transformações<br />
decorrentes da interpretação ou do capricho.<br />
Aristóteles concorda com isso, mas dirige uma crítica a<br />
Platão: para garantir a certeza e validade do<br />
conhecimento não é necessário postular uma teoria que<br />
duplique o real, isto é, que crie duas dimensões na<br />
realidade: o sensível e o inteligível, como fez Platão.<br />
Para entendermos bem a crítica de Aristóteles é<br />
necessário demorar-se um pouco mais na teoria platônica<br />
que Aristóteles ataca: a chamada “teoria das Formas.”<br />
Com efeito, em obras como República e Fédon, Platão<br />
defende que o conhecimento só é alcançado quando<br />
atingimos a “ideia” ou “conceito” do objeto. Platão<br />
utilizava, prioritariamente, o termo “Forma” para referirse<br />
a essa ideia. Por Forma Platão entende um núcleo de<br />
características de um determinado objeto ou realidade<br />
que mantém seus componentes independentemente dos<br />
exemplares destes objetos encontrados no mundo ou na<br />
linguagem.<br />
Um exemplo que nos ajuda a entender isso é pensar<br />
naquilo que você compreende quando houve a palavra<br />
Justiça. Se relacionarmos o que as pessoas entendem por<br />
justiça, teremos uma gama variada de definições, muitas<br />
contraditórias entre si. Além disso, a própria aplicação<br />
do conceito à realidade, no sentido de esforçar-se por ser<br />
justo, não é condição suficiente para que saibamos<br />
exatamente o que é justiça.<br />
Suponhamos que você diz que agir com justiça é<br />
devolver a alguém o que lhe pertence (cf. República<br />
331e-332c), e dá como exemplo a devolução, ao dono,<br />
de uma arma que você encontrou. Alguém pode protestar<br />
que teria sido mais racional e justo evitar a devolução,<br />
pois a arma poderia ser usada para ferir alguém. É isso<br />
que preocupava Platão.<br />
Muitas noções que temos sobre justiça e outros conceitos<br />
importantes esfacelam-se diante de certas circunstâncias.<br />
Platão se perguntava se não haveria um meio de evitar<br />
essa ambigüidade em que diferentes situações exigirão<br />
de nós diferentes noções disto ou daquilo. Ele estava<br />
consciente de que se não houvesse um modo de chegar a<br />
uma visão unitária da justiça, jamais haveria<br />
possibilidade de entendermos a real essência do conceito.<br />
Pior que isso, os que cometem crimes ou violência<br />
teriam sempre à mão um argumento para justificar suas<br />
ações.<br />
Daí porque Platão defendia que, para um conjunto<br />
específico de coisas como Justiça, Beleza,<br />
Conhecimento, Coragem, Igualdade, etc., deveria existir<br />
uma única Forma que desse sustentação ao pensamento<br />
sobre essas coisas. Desse modo, ao aplicar o conceito de<br />
Justiça a determinada realidade, no entendimento de<br />
Platão, estaríamos aplicando o conhecimento do objeto<br />
aos casos particulares. Dito de outra forma: não é porque<br />
uma cidade foi devastada que a população local deve se<br />
unir e reconstruí-la novamente. Antes mesmo da<br />
devastação a população deve saber que o que define a<br />
justiça é cada um fazer a sua parte (cf. República, livro<br />
IV) com vistas ao bem comum. Desse modo, no<br />
momento em que a cidade for arruinada não será<br />
necessário nenhum esforço de conscientização para que<br />
uns ajudem os outros, uma vez que aquela população já<br />
sabia agir assim bem antes do aconteci- mento trágico.<br />
Isto posto, voltemos às críticas de Aristóteles. Elas estão,<br />
sobretudo, no capítulo nove da Metafísica. Aristóteles<br />
critica vários pontos da teoria. Vamos nos deter no<br />
núcleo comum de suas análises. A preocupação de<br />
Aristóteles é que a teoria das Formas de Platão conduz a<br />
um tipo bem particular de problema: ela torna o<br />
pensamento de um objeto in- dependente deste objeto, ou<br />
seja, faz pairar acima dos objetos conceitos abstratos.<br />
Isso não é necessário, pensa Aristóteles. Ele concorda,<br />
por exemplo, que a observação e comparação de<br />
diferentes tipos de cavalo levam a um grupo de aspectos<br />
que definem o “conceito de cavalo”. Isso só pode ser<br />
feito pelo pensamento. Mas Aristóteles não concorda<br />
quando Platão imagina que existe algo abstrato e formal<br />
como “a cavalidade”, independentemente da existência<br />
de cavalos particulares. Para Aristóteles, chegamos ao<br />
conceito de cavalo mediante estudo dos exemplares<br />
existentes, chegamos ao conceito de humanidade<br />
mediante estudo de homens concretos e assim por diante.<br />
Aristóteles se pergunta: por que postular propriedades<br />
essenciais de cada objeto que existam separadamente<br />
quando sabemos que conceitos, termos, palavras, frases<br />
são produto do próprio pensamento e só existem<br />
enquanto pensamento? Para Aristóteles um homem é<br />
mais real que a humanidade, e é por meio do primeiro<br />
que chegamos ao conceito do segundo.<br />
72
D o p ar t icu lar ao ger al: 1 º m ov im en t o d o<br />
en t en d im en t o<br />
Numa obra chamada “Física” Aristóteles esclarece o<br />
passo do conheci- mento: “o percurso naturalmente vai<br />
desde o mais cognoscível e mais claro para nós em<br />
direção ao mais claro e mais cognoscível por natureza...”<br />
(Física I,184a16-17)<br />
Não é difícil entender o que Aristóteles está dizendo. Se<br />
você é um especialista em teoria da relatividade e foi<br />
chamado para uma palestra a um público que não<br />
entende coisa alguma de física, será melhor iniciar sua<br />
fala por alguns exemplos triviais do cotidiano para<br />
cativar o público e só então arriscar conceitos mais<br />
técnicos ou fórmulas. Em outras palavras, você fará um<br />
caminho que vai do “particular” (o que faz parte da<br />
experiência do público) ao “geral” (a visão de conjunto,<br />
mais técnica e elaborada, sobre a qual você vai falar). A<br />
marcha do nosso entendimento vai do simples ao<br />
complexo. Isso significa que compreendemos melhor um<br />
assunto quando podemos fazer a passagem daquilo que<br />
conhecemos para aquilo que desconhecemos. Observe<br />
como os grandes oradores começam seus discursos por<br />
analogias ou casos que a plateia logo se identifica. No<br />
texto da “Física” Aristóteles dá o exemplo da criança<br />
para ilustrar sua tese: inicialmente ela chama qualquer<br />
homem ou mulher de pai e mãe. Só mais tarde aprenderá<br />
a identificar quem é pai e mãe, e com o tempo formará<br />
um conceito de paternidade e maternidade. Há aqui um<br />
curso do entendimento que vai do particular ao universal,<br />
fazendo com que o conhecimento amplie-se. Aristóteles,<br />
que era considerado um professor brilhante, já dominava<br />
em seu tempo noções de psicologia e pedagogia para<br />
saber que ser humano algum adquire conhecimento se<br />
não puder partir daquilo que já sabe.<br />
D o u n iv er sal ao p ar t icu lar : 2 º m ov im en t o d o<br />
en t en d im en t o<br />
Atenção: a regra anterior é absoluta no que toca ao<br />
aprendizado, mas ela não diz tudo. O texto da Física<br />
também indica que o “claro” para nós é, frequentemente,<br />
um dado muito geral e simplista. O conhecimento só é<br />
efetivo quando puder descer às minúcias. É isso que<br />
Aristóteles quer dizer com “(...) mais claro e mais<br />
cognoscível para nós em direção ao mais claro e mais<br />
cognoscível por natureza”. A marcha é do que nós<br />
sabemos em direção ao que as coisas são de fato. Procure<br />
não fazer confusão sobre esse ponto. Essa é a razão pela<br />
qual os melhores alunos na escola são aqueles que<br />
desenvolvem o hábito de acompanhar os pontos<br />
principais do conteúdo. A regra de ouro é: compreenda<br />
os conceitos principais, mais gerais, só então se dedique<br />
ao estudo dos pontos particulares. Muitas vezes esses<br />
alunos são toma- dos por “inteligentes”, mas não é nada<br />
disso. Adquirir conhecimento é uma questão de saber<br />
como procede o aprendizado. Muitos que tiram os<br />
primeiros lugares nos vestibulares não dedicam mais do<br />
que 4 horas de estudo por dia no período de preparação,<br />
o que escandaliza os demais que no mesmo período<br />
chegam a estudar 10 horas por dia e não alcançam os<br />
mesmos resultados.<br />
O P r ob lem a É t ico<br />
Por Djaci Pereira Leal – Professor na cidade de Nova Londrina no Estado do<br />
Paraná<br />
É t ica e Felicid ad e<br />
Partindo de um conceito básico de ética como “saberviver,<br />
ou a arte de viver” (SAVATER, 2002), pode-se<br />
dizer que os homens tudo fazem para viver e viver bem.<br />
É preciso esclarecer um outro conceito muito importante<br />
para a ética – a felicidade.<br />
Pode-se afirmar que, para Aristóteles, a felicidade é o<br />
resultado do saber viver. Entendendo a ética como a arte<br />
de viver, o resultado desse viver será a felicidade. Ao<br />
discutir o que é felicidade é possível perceber que não há<br />
um único conceito e entendimento, mas vários. Assim,<br />
vamos buscar entender o que na Antiguidade orientavam<br />
os filósofos Aristóteles e Sêneca aos seus<br />
contemporâneos: o que fazerem para atingir a virtude, e,<br />
portanto, serem felizes.<br />
A virtude, que segundo Aristóteles, é o que vai garantir<br />
ao homem a felicidade, é “o hábito que torna o homem<br />
bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa”, a virtude é<br />
“racional, conforme e constante”. (ARISTÓTELES,<br />
2001)<br />
Para o Estoicismo, escola filosófica da qual participa<br />
Sêneca, a felicidade consiste em viver segundo a razão –<br />
o Logos. Viver segundo a natureza, pois o homem é de<br />
natureza racional. Portanto, entendem os estoicos que ser<br />
virtuoso é viver segundo a razão.<br />
A felicidade não é a mesma e única para todos os<br />
filósofos e momentos históricos. No entanto, vamos<br />
trabalhar aqui com apenas dois filósofos da Antiguidade,<br />
com concepções e momentos históricos bem diferentes, e<br />
teremos como norte das discussões a virtude, ou seja, o<br />
82
que ambos apresentam como necessário aos homens na<br />
busca do bem viver.<br />
Vamos buscar o que Aristóteles e Sêneca apresentam<br />
como referencial para os homens de sua época no sentido<br />
de orientá-los em busca da felicidade. Como cada<br />
filósofo apresentou suas ideias em busca de respostas<br />
para o que acontecia em sua época, ou seja, pensaram<br />
sua época e buscaram discutí-la, explicá-la e, sobretudo,<br />
apresentar o que era necessário para sobreviver àquele<br />
momento, portanto, assim como qualquer um de nós,<br />
também os filósofos são homens de seu tempo, e para<br />
entendê-los é preciso estudar um pouco o momento<br />
histórico que viveram.<br />
Aristóteles (384-322 a.C.) é proveniente da Macedônia e<br />
vem para Atenas, centro intelectual e artístico da Grécia,<br />
no século IV a.C. para estudar, onde ingressou na<br />
Academia de Platão. Permaneceu na Academia até a<br />
morte de Platão.<br />
A P ó lis e a Felicid ad e<br />
Em Atenas, no século IV a.C., o regime político era a<br />
democracia. E para o regime democrático uma figura<br />
fundamental é o cidadão. Porém, para os gregos<br />
atenienses, a cidadania estava reservada apenas aos<br />
nascidos em Atenas, pois cada cidade possuía os seus<br />
deuses e era a religião e o culto aos deuses que<br />
determinavam a cidadania. Em Atenas eram cidadãos os<br />
homens atenienses livres a partir dos 18 anos. Observe<br />
que as mulheres, os escravos e os estrangeiros não eram<br />
cidadãos. A eles estava reservado apenas o espaço do<br />
“oikos”, da casa e não o da pólis, da cidade.<br />
Segundo o historiador Fustel de Colanges (1981), aos<br />
estrangeiros, apesar de serem admitidos nas cidades, era<br />
praticamente impossível conseguir a cidadania, pois<br />
assim como não é possível pertencer a duas famílias<br />
também não o é a duas religiões.<br />
Pode-se perceber que, de acordo com a explicação<br />
histórica da cidadania, o que definia o cidadão era o<br />
pertencer a uma cidade. E o pertencer a uma cidade<br />
estava ligado à religião e aos deuses da cidade. Para a<br />
ética de Aristóteles a cidade, comunidade política, é o<br />
lugar da vida do homem, animal político e social,<br />
portanto, é nesse espaço que o homem desenvolve a arte<br />
de viver e atingir a felicidade.<br />
Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômacos, discute a<br />
finalidade de toda arte, indagação, ação e propósito da<br />
vida humana e conclui que é sempre o bem a que todas<br />
visam. Ao discutir qual seria este bem que é a finalidade<br />
da vida humana, Aristóteles nos apresenta a felicidade.<br />
Só que ao mesmo tempo em que afirma que a felicidade<br />
é o bem supremo, pergunta-se pela função própria do<br />
homem.<br />
[...] o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das<br />
faculdades da alma de conformidade com a excelência, e<br />
se há mais de uma excelência, de conformidade com a<br />
melhor e mais completa entre elas. Mas devemos<br />
acrescentar que tal exercício ativo deve estender-se por<br />
toda a vida, pois uma andorinha não faz verão [...]; da<br />
mesma forma um dia só, ou um certo lapso de tempo,<br />
não faz um homem bem- aventurado e feliz.<br />
(ARISTÓTELES, 2001, p. 24-25)<br />
Pressupondo que a felicidade é a finalidade de nossa<br />
vida, Aristóteles preocupa-se em demonstrar que a vida<br />
humana possui em si uma finalidade, ou seja, uma<br />
função para a qual está dada. E, portanto, tal finalidade<br />
se objetiva dentro da função a que a vida acontece.<br />
Sendo assim, a felicidade resultará do atendimento a esta<br />
função. O que está pressuposto não é a felicidade em si<br />
mesma, mas a relação da mesma com a arte de viver,<br />
com o saber viver que estamos discutindo desde o início.<br />
E aqui cabe então atentarmos para o que Aristóteles nos<br />
apresenta como sendo a felicidade:<br />
[...] Parece que a felicidade, mais que qualquer outro<br />
bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos<br />
sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais;<br />
mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as<br />
outras formas de excelência, embora as escolhamos por<br />
si mesmas /.../, escolhemo-las por causa da felicidade,<br />
pensando que através delas seremos felizes. Ao<br />
contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das<br />
várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por<br />
qualquer outra coisa além dela mesma. (ARISTÓTELES,<br />
2001, p. 23)<br />
Aristóteles fundamenta a ética, arte de bem viver, tendo<br />
como referência a função do homem, ou seja, da vida<br />
humana, pois não se trata da vida de um homem, mas do<br />
ser humano, e aponta para a felicidade como sendo a<br />
busca, em si mesma, da vida humana, ou seja, o bem<br />
supremo a que toda arte, indagação, ação e propósito<br />
devam ter em vista. A partir da obra Ética a Nicômacos<br />
busca-se entender o que, segundo Aristóteles, é preciso<br />
para ser feliz.<br />
92
03<br />
[...] Devemos observar que cada uma das formas de<br />
excelência moral, além de proporcionar boas condições à<br />
coisa a que ela dá excelência, faz com que esta mesma<br />
coisa atue bem; por exemplo, a excelência dos olhos faz<br />
com que tanto os olhos quanto a sua atividade sejam<br />
bons, pois é graças à excelência dos olhos que vemos<br />
bem. De forma idêntica a excelência de um cavalo faz<br />
com que ele seja ao mesmo tempo bom em si e bom para<br />
correr e levar seu dono e para sustentar o ataque do<br />
inimigo. Logo, se isto é verdade em todos os casos, a<br />
excelência moral do homem também será a disposição<br />
que faz um homem bom e o leva a desempenhar bem a<br />
sua função. (ARISTÓTELES, 2001, p. 41)<br />
O termo excelência utilizado por Aristóteles é<br />
corriqueiramente entendido também por virtude. Há duas<br />
espécies de excelência: a intelectual e a moral. A<br />
intelectual nasce e se desenvolve com a instrução, ou<br />
seja, com o processo educativo e formativo. Por isso,<br />
desenvolvesse com o tempo e a experiência. É o que de<br />
certa forma estamos fazendo desde que iniciamos nossa<br />
vida escolar e que vai se aprimorando à medida em que<br />
nos dedicamos mais aos estudos. Cada um de nós pode<br />
perceber o quanto se aprimorou desde o dia em que<br />
esteve pela primeira vez em uma sala de aula.<br />
Já a excelência moral é produto do hábito, é tudo aquilo<br />
que podemos alterar pelo hábito. Observe que a palavra<br />
ética tem sua raiz grega – ethiké e ethos - que significam<br />
hábito.<br />
Então a excelência moral é adquirida através da prática,<br />
assim como as artes, por exemplo, você toca violão na<br />
medida em que passa a praticar e quanto mais tempo<br />
praticar, maior será sua habilidade e chances de se tornar<br />
um exímio tocador. Por que o desenvolvimento da<br />
excelência moral é tão importante para nós? Porque está<br />
relacionada com as ações e emoções, que por sua vez<br />
estão relacionadas com o prazer ou sofrimento e por isso,<br />
a excelência moral se relaciona com os prazeres e<br />
sofrimentos. Pode-se dizer que a excelência moral é a<br />
capacidade que vamos desenvolver para lidar com nossas<br />
emoções e ações na relação direta com o prazer e o<br />
sofrimento. E disso resultará o bom uso que faremos ou<br />
não do prazer e do sofrimento.<br />
Para Aristóteles “toda a preocupação, tanto da excelência<br />
moral quanto da ciência política, é com o prazer e com o<br />
sofrimento, porquanto o homem que os usa bem é bom, e<br />
o que os usa mal é mau”. (ARISTÓTELES, 2001, p.38)<br />
Mas o fato de a excelência estar relacionada ao domínio<br />
que fará do prazer e sofrimento implica que a excelência<br />
garantirá atingir o alvo do meio-termo.<br />
Vamos retomar o que ele entende por disposição de<br />
caráter para que possamos entender o que seja a<br />
excelência moral ou virtude do homem. Ora, disposições<br />
de caráter são “os estados de alma em virtude dos quais<br />
estamos bem ou mal em relação às emoções”<br />
(ARISTÓTELES, 2001, p. 40).<br />
Isto nada mais seria que a nossa disposição em relação às<br />
coisas, ou melhor como sentimos, encaramos a realidade<br />
que nos cerca, com certo grau de intensidade e/ou<br />
indiferença.<br />
Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos,<br />
cólera, piedade, e de um modo geral prazer e sofrimento,<br />
demais ou muito pouco, e em ambos os casos isto não é<br />
bom; mas experimentar estes sentimentos no momento<br />
certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e<br />
de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é<br />
característico da excelência. (ARISTÓTELES, 2001, p.<br />
41-42)<br />
Fala-se que a excelência moral é o desenvolvimento de<br />
hábitos que nos farão escolher nossas ações e emoções,<br />
que são marcadas pelo excesso, falta e meio termo. Mas<br />
o que é o meio termo?<br />
De tudo que é contínuo e divisível é possível tirar uma<br />
parte maior, menor ou igual, e isto tanto em termos da<br />
coisa em si quanto em relação a nós; e o igual é um meio<br />
termo entre o excesso e a falta. Por “meio termo” quero<br />
significar aquilo que é equidistante em relação a cada um<br />
dos extremos, e que é único e o mesmo em relação a<br />
todos os homens; por “meio termo em relação a nós”<br />
quero significar aquilo que não é nem demais nem muito<br />
pouco, e isto não é único nem o mesmo para todos.<br />
(ARISTÓTELES, 2001, p. 41)<br />
Portanto, para Aristóteles a busca é pelo meio termo, ou<br />
seja, o equilíbrio entre o excesso e a falta. É o desafio e<br />
enfrentamento diante de cada ação e emoção. É por isso,<br />
que a formação da excelência moral é uma busca<br />
constante e depende da capacidade racional, pois exige a<br />
todo o momento reflexão e escolha. A mediania não é<br />
algo pronto e dado, mas escolhido e que precisa ser<br />
entendido para que se chegue a atingi-la.
Portanto, não pode o homem levar uma vida moral como<br />
indivíduo isolado, pois vive e é membro de uma<br />
comunidade. E como a vida moral não é um fim em si<br />
mesmo, mas um meio para se alcançar a felicidade, não<br />
se pensa a ética fora dos limites das relações sociais, ou<br />
seja, não se pressupõe a ética sem a política.<br />
É por isso que, segundo Savater, “(...) os antigos gregos<br />
chamavam quem não se metia em política de idiotés,<br />
palavra que significava pessoa isolada, sem nada a<br />
oferecer às demais, obcecada pelas mesquinharias de sua<br />
casa e, afinal de contas, manipulada por todos”.<br />
(SAVATER, 1996, p. 16)<br />
Não sei se isto responde a questão: como fazer para<br />
atingir o meio termo? Mas penso que traduza o que está<br />
pressuposto em Aristóteles no sentido de orientar os<br />
homens, daquele momento histórico, Grécia, no século<br />
IV a.C., a atingirem a finalidade de suas vidas, que para<br />
Aristóteles é a felicidade.<br />
Pierre Lévêque apresenta o estoicismo em dois<br />
momentos específicos. São eles: o Antigo Estoicismo e o<br />
Médio Estoicismo.<br />
“O estoicismo, assim chamado por causa do nome do<br />
Pórtico (em grego Stoá) do Poecilo onde os discípulos de<br />
Zenão se reuniam em Atenas, nasceu da mesma<br />
necessidade de paz e certeza, de paz pela certeza, num<br />
dos períodos mais perturbados da história grega”.<br />
(LÉVÊQUE, s/d, p. 118)<br />
Em relação ao Médio Estoicismo, ocorre no século II<br />
a.C. em função das violentas críticas de Carnéades (215-<br />
129 a.C. - filósofo que defendia o probabilismo, ou seja,<br />
que não existe verdade, mas opiniões mais ou menos<br />
prováveis).<br />
Diz Lévêque: “A evolução testemunhada pelo médio<br />
estoicismo é o melhor sinal da vitalidade de uma<br />
doutrina cuja ética representa, sem dúvida, a mais bela<br />
criação do espírito humano na Antigüidade”<br />
(LÉVÊQUE, s/d, p. 119)<br />
Sê n eca e a Felicid ad e<br />
Vimos o caminho proposto por Aristóteles para que o<br />
homem possa viver bem e, portanto, atingir a finalidade<br />
de sua vida: a felicidade. Enquanto Aristóteles distingue<br />
felicidade de virtude, entendendo a felicidade como fim<br />
último do homem, e a virtude como meio para atingi-la,<br />
os estoicos entendem felicidade e virtude como uma<br />
coisa só.<br />
Portanto, para os estoicos, a felicidade consiste em viver<br />
segundo a natureza, pois “(...) postulam que a Natureza é<br />
permeada de racionalidade: o mundo é um todo orgânico,<br />
solidário e dirigido por uma razão universal, que é deus.<br />
[...] Tudo se submete a essa ordem universal: na filosofia<br />
estoica, não há lugar para o acaso, a desordem e a<br />
imperfeição como em Aristóteles e Platão”. (WILLIAN<br />
LI, p. 14)<br />
Entre os estóicos destaca-se Sêneca que viveu três<br />
séculos depois de Aristóteles, ou seja, do ano 4 a.C. ao<br />
65 d.C. É considerado o maior estoico do mundo latino.<br />
Sêneca viveu em Roma no período denominado<br />
Helenismo, datado entre o século IV a.C. até III d.C.<br />
Sabe-se que Sêneca foi um dos principais filósofos<br />
estoicos do mundo latino e o Estoicismo uma escola<br />
filosófica que teve uma longa trajetória histórica.<br />
Devemos igualmente mostrar docilidade e não ser<br />
escravos demais das resoluções que tomamos; ceder de<br />
boa vontade à pressão das circunstâncias e não temer<br />
mudar, seja de resolução, seja de atitude, contanto que<br />
não caiamos na versatilidade, que é de todos os caprichos<br />
o mais prejudicial à nossa tranqüilidade. Porque se a<br />
obstinação é inevitavelmente inquieta e deplorável, visto<br />
que a fortuna lhe arranca a todo momento qualquer coisa,<br />
a leviandade é ainda muito mais penosa, porque ela não<br />
se fixa em nada. Estes dois excessos são funestos à<br />
tranqüilidade da alma: recusar-se a toda alteração e nada<br />
suportar. (SÊNECA, 1973, p. 71)<br />
Para entender melhor o que nos diz Sêneca é bom<br />
esclarecer o que seja fortuna e versatilidade. Fortuna é<br />
uma divindade romana responsável pela sorte, pelo acaso<br />
e pelo imprevisto. Os gregos a chamavam de Tique. Para<br />
a filosofia adota-se o termo acaso. O acaso é para os<br />
estoicos um erro ou ilusão, pois entendiam que tudo<br />
acontecia no mundo<br />
por necessidade racional. Portanto, para os estoicos em<br />
tudo o que acontece há uma razão, pois nada é visto<br />
como acaso. Já para Aristóteles, a fortuna é uma causa<br />
superior e divina, desconhecida, ignorada pela<br />
inteligência humana.<br />
13
23<br />
Observe que entre nós é comum o entendimento da<br />
fortuna como sinônimo de sorte. É bom destacar que<br />
para Aristóteles e Sêneca o conceito de fortuna e acaso<br />
são distintos e claro que também para os demais<br />
filósofos, sobretudo os modernos e contemporâneos.<br />
O outro conceito que precisamos esclarecer é o de<br />
versatilidade. Observe que no texto de Sêneca possui um<br />
caráter negativo, ao passo que para nós a versatilidade é<br />
algo positivo. Cada vez mais se defende a necessidade de<br />
sermos versáteis. No caso do texto de Sêneca podemos<br />
substituir o termo versátil por volúvel e assim nos<br />
aproximarmos mais da ideia que Sêneca quer nos passar.<br />
Você pôde observar que a recomendação chave de<br />
Sêneca está em “ceder de boa vontade a pressão das<br />
circunstâncias e não temer mudar”. É interessante que<br />
Sêneca pressupõe a tranquilidade diante do mundo que<br />
nos cerca. É preciso para isso nem cair em obstinação,<br />
nem em leviandade.<br />
É preciso lembrar que o momento histórico em que viveu<br />
Sêneca foi um momento de ruína do Império Romano. O<br />
Império Romano estava em decadência e cada dia mais<br />
isso era perceptível aos olhos daqueles que viviam<br />
aquele momento, sobretudo os pensadores da época. É<br />
nesse contexto de ruína, decadência, que a proposição de<br />
Sêneca, uma ética individualista, ou seja, centrada no<br />
indivíduo pode ser entendida e explicada.<br />
O que é comum ocorrer com as pessoas em momentos de<br />
crises profundas? É a dúvida em relação ao que fazer<br />
para sobreviver a ela. E diante de tal dúvida é comum o<br />
isolamento e a falta de um ponto de referência que seja<br />
claro e que garanta tranquilidade. É comum também as<br />
pessoas se angustiarem e passarem a ser atacadas de<br />
sentimentos de medo e insegurança. Então o que Sêneca<br />
está procurando oferecer aos seus contemporâneos nada<br />
mais é que uma forma de encararem a realidade que os<br />
cerca, ou seja, a decadência que ameaça o mundo em que<br />
habitam e diante da qual não possuem mais nenhuma<br />
certeza.<br />
Os séculos I e II da Era Cristã marcam o momento da<br />
consolidação e apogeu do Império Romano. É o<br />
momento da Pax Romana, ou seja, quando a expansão<br />
está encerrada e detêm-se todos os esforços pela<br />
manutenção das fronteiras.<br />
É bom lembrar que no momento de expansão Roma<br />
invadiu e dominou territórios e povos. E agora lhes cobra<br />
lealdade e defesa de ataques por estas fronteiras em que<br />
vivem em troca da paz com os romanos.<br />
Porém, ao mesmo tempo em que é o auge do Império<br />
Romano é o momento em que se vive crises intensas em<br />
função da vivência de novos valores em virtude da<br />
riqueza e das facilidades que são próprias de momentos<br />
de apogeu.<br />
É diferente de Aristóteles, pois no momento histórico em<br />
que viveu Aristóteles, era um tempo de confiança, de<br />
crescimento e avanço da democracia ateniense, que neste<br />
momento exigia novas discussões e reelaboração de<br />
ideias e princípios referentes a vida na pólis.<br />
Para entender um pouco o momento histórico de<br />
Aristóteles, vamos retornar um pouco no tempo, até<br />
Sócrates (470-399 a.C.), que é a época denominada o<br />
“Século de Ouro de Atenas”, período do governo de<br />
Péricles (461-429 a.C.), e quando a democracia ateniense<br />
atingiu a sua plenitude pelo fato de estabelecer alguns<br />
princípios que passarama reger a vida de todos os<br />
habitantes da cidade de Atenas.<br />
Os princípios estabelecidos foram a Isonomia – que é a<br />
igualdade de todos perante a lei; a Isegoria – que é a<br />
igualdade de direito ao acesso à palavra na assembleia e<br />
o de Isocracia – que é a igualdade de participação no<br />
poder.<br />
Ora, todas essas mudanças estão ocorrendo em Atenas e<br />
sendo formuladas, discutidas e analisadas pelos filósofos<br />
que vivem em Atenas naquele momento. É por isso que a<br />
questão da pólis é tão importante para a obra de<br />
Aristóteles, aliás, já desde Sócrates a discussão passa a<br />
focar o homem e a busca do como viver na pólis.<br />
Aristóteles vive justamente o momento de conflito de<br />
projetos políticos entre as cidades gregas, que buscam<br />
liderar as demais. Há uma disputa bastante acirrada entre<br />
Atenas e Esparta. Pode-se afirmar que os filósofos, entre<br />
eles Aristóteles, percebem que é preciso que as cidades<br />
gregas sejam unidas por um projeto político e que as<br />
disputas sejam pacíficas, pois o risco que correm é o de<br />
divisão e, portanto, o enfraquecimento diante dos<br />
impérios vizinhos que estão em expansão, mas que não<br />
querem enfrentar uma Grécia unida.<br />
No entanto, o que ocorreu foi, já na época de Aristóteles,<br />
as disputas entre Esparta e Atenas resultaram no<br />
enfraquecimento e derrota dos gregos frente aos<br />
macedônios, em 338 a.C., na batalha de Quironeia.<br />
Ao lermos as obras de Aristóteles é bom que tenhamos<br />
em mente as disputas existentes e as lutas internas da<br />
própria sociedade ateniense, para que possamos entender
o que o filósofo discute e apresenta como necessário aos<br />
homens de seu tempo na busca da felicidade.<br />
É claro que para atingir o estado de espírito que Sêneca<br />
pressupõe o uso da razão é fundamental, ou seja, o sábio<br />
é quem irá conseguir. E assim como Aristóteles,<br />
pressupõe a racionalidade por ser da própria natureza do<br />
homem.<br />
Quando lhe foi anunciado o naufrágio no qual tudo o que<br />
possuía foi tragado pelo mar, nosso Zenão disse: “A<br />
fortuna quer que eu filosofe mais desembaraçadamente”.<br />
Um tirano ameaçava o filósofo Teodoro de mandar matálo<br />
e mesmo privá-lo da sepultura: “Tu podes”, disse-lhe<br />
este, “dar-te este prazer: existem aí 2,7 decilitros de<br />
sangue, sobre os quais tens todo os direitos; quanto à<br />
sepultura, és estranhamente ingênuo, se crês que me<br />
aflijo por apodrecer sobre ou debaixo da terra”.<br />
(SÊNECA, 1973, p. 71)<br />
Os exemplos demonstram pessoas que conseguiram<br />
chegar a um estágio de controle de suas paixões e<br />
emoções de tal forma que assim conseguem superar as<br />
dificuldades com mais facilidade. Não se pode ignorar<br />
que esta capacidade esteja ligada a dimensão racional<br />
humana, uma vez que graças a mesma somos capazes de<br />
perceber o que nos ameaça.<br />
na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem<br />
acabarem mal – Sócrates constrangido a morrer<br />
prisioneiro; Rutílio a viver no exílio; Pompeu e Cícero a<br />
se entregarem aos seus clientes; e Catão, este Catão,<br />
enfim, viva imagem da virtude, reduzido a testemunhar<br />
publicamente, atirando-se contra sua espada, que a<br />
República perecia ao mesmo tempo que ele. Como não<br />
se afligir com a idéia de que a fortuna paga tão<br />
injustamente os méritos dos homens? E que esperar para<br />
si mesmo, quando os melhores dentre eles são os mais<br />
maltratados? (SÊNECA, 1973, p. 73-74)<br />
Alguns exemplos da contemporaneidade, do sentimento<br />
de que nos fala Sêneca em relação às pessoas de bem que<br />
acabam mal: Martin Luther King, militante negro<br />
assassinado; Che Guevara, guerrilheiro argentino,<br />
também assassinado; Nelson Mandela, líder negro na<br />
luta contra o Apartheid na África do Sul e que, em<br />
função disso, ficou vários anos preso; Francisco Alves<br />
Mendes Filho, Chico Mendes, líder seringueiro,<br />
sindicalista e ativista ambiental, assassinado no Acre, no<br />
dia 22 de dezembro de 1988.<br />
Afirmamos que diferente de Aristóteles, Sêneca entende<br />
o homem em relação à natureza e não à pólis. Por isso, é<br />
interessante destacar que não está ausente também aqui o<br />
outro, pois somos seres racionais e sociais.<br />
Sê n eca aler t a:<br />
Mas não adianta nada ter eliminado as causas da tristeza<br />
pessoal, pois algumas vezes acontece que um desgosto<br />
pelo gênero humano se apossa de nós, quando<br />
percebemos quão grande é a quantidade de crimes<br />
felizes; quando refletimos até que ponto é rara a retidão e<br />
desconhecidas a inocência e a sinceridade, desde que ela<br />
não convenha... (SÊNECA, 1973, p. 73-74)<br />
Além do “desgosto pelo gênero humano”, que segundo<br />
Sêneca deve ser superado, para que nosso espírito não<br />
“mergulhe em noite escura”, Sêneca alerta para mais um<br />
motivo que pode afligir espírito.<br />
Vem em seguida uma consideração que muitas vezes, e<br />
não sem motivo, entristece nosso espírito e o mergulha<br />
3
R E FE R Ê N C I A S:<br />
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4ª ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade<br />
de Brasília - UNB, 2001.<br />
_________. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultura, 1991.<br />
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43
O P R O B L E M A P O L Í T I C O O U E M T O R N O D A P O L Í T I C A<br />
Em Busca da Essência do Político por Jairo Marçal –<br />
Professor do ensino público em Curitiba Paraná.<br />
A política pode superar a sua imagem negativa de poder<br />
de opressão e corrupção e ser concebida como uma<br />
possibilidade de construção de um mundo melhor? O<br />
ideal político de bem comum já se realizou algum dia, na<br />
materialidade das relações sociais, para além do mundo<br />
das ideias e do formalismo das leis?<br />
O P r econ ceit o con t r a a P olí t ica e a P olí t ica d e Fat o<br />
É comum que numa conversa sobre política se chegue,<br />
rapidamente, à conclusão de que ela nada tem a ver com<br />
a ética, em outras palavras, que o poder político e suas<br />
realizações não se conduzem por princípios e valores<br />
voltados aos interesses coletivos, mas sim, por interesses<br />
utilitários de ordem individual ou corporativa, do tipo:<br />
“Mas<br />
... o que eu ganho votando em fulano?”, ou “Votem em<br />
mim e eu lhes darei privilégios ...”.<br />
Essa é a percepção que o senso comum da sociedade tem<br />
da política, e seria profundamente ingênuo afirmar que a<br />
política não passa por esses descaminhos. No entanto,<br />
não é menos ingênuo e preocupante o fato de aceitarmos<br />
tão rapidamente essa perspectiva exclusivamente<br />
negativa da política como algo óbvio, natural e<br />
inelutável.<br />
Em geral, as conversas sobre política enveredam por<br />
caminhos que podem parecer interessantes, mas que no<br />
fundo são pouco produtivos e frustrantes. Isso se dá<br />
porque, estimulados pelos acontecimentos e pelas<br />
notícias da imprensa, fazemos questionamentos e<br />
afirmações sobre a honestidade ou desonestidade dos<br />
políticos; sobre seus salários; negociações supostamente<br />
ilícitas; sobre os partidos; tendências; alianças<br />
questionáveis; sobre quem será candidato; sobre um<br />
projeto que está tramitando e suas possíveis<br />
consequências. Quase sempre estamos reproduzindo,<br />
diga-se de passagem, com poucos ou insuficientes dados<br />
e questionamentos, informações veiculadas pelos jornais,<br />
pelas rádios ou telejornais, e mesmo aquelas que<br />
circulam pela internet.<br />
Em O que é Política?, a pensadora Hannah Arendt<br />
escreve sobre a necessidade de avaliar os preconceitos<br />
que todos nós temos contra a política, decorrentes, em<br />
grande medida, do fato de estarmos alienados da vida<br />
política e de não sermos políticos profissionais.<br />
Arendt estabelece duas categorias de preconceitos contra<br />
a política: no âmbito internacional – o medo de um<br />
governo mundial totalitário e violento; no âmbito local<br />
ou interno – a política é reduzida a interesses<br />
mesquinhos, particularistas e à corrupção.<br />
No instigante ensaio A invenção da política, o filósofo<br />
contemporâneo Francis Wolff argumenta que, para<br />
compreender a essência universal da política e sua<br />
ligação com o ser humano em geral, é preciso romper<br />
com certas imagens particulares da política.<br />
Quais seriam essas imagens? Ora, são as questões<br />
cotidianas que estão na base do nosso entendimento mais<br />
imediato da política, citadas já no início deste texto. Mas,<br />
por que romper com elas? Por que evitar essas questões<br />
particulares ou específicas? Elas não são relevantes?<br />
É claro que elas são muito importantes e devem ser<br />
profundamente discutidas e elucidadas, porém, num<br />
segundo momento. Se enfrentarmos essas questões, antes<br />
de tentarmos responder aquelas que as antecedem, elas<br />
não serão bem respondidas, além do que, poderão nos<br />
distanciar das questões fundamentais – a saber: O que é a<br />
política?<br />
Qual é a sua essência? Por que ela existe em todas as<br />
culturas e civilizações, ainda que de maneiras diferentes?<br />
Ética e política já estiveram juntas algum dia?<br />
Na busca da resposta, Wolff nos desafia: – é preciso um<br />
primeiro esforço no sentido de “imaginar o que<br />
aconteceria sem a política.” (WOLFF, 2003, p. 27)<br />
Ainda segundo Wolff (2003), a vida humana pode<br />
acontecer a partir das três possibilidades que se seguem:<br />
a) Em comunidade, organizada pela existência de uma<br />
instância externa à sociedade (o Estado, por exemplo),<br />
cuja função seria a efetivação e a manutenção da unidade<br />
da sociedade. A política, neste caso, seria coercitiva e o<br />
53
63<br />
poder estaria localizado fora da sociedade, mas agindo<br />
sobre ela.<br />
b ) Isolada, como a maioria dos animais, talvez em<br />
pequenos grupos ou famílias. Essa condição seria<br />
praticamente impossível.<br />
c) Em comunidade, mas sem a necessidade da política. A<br />
vida transcorreria em harmonia, sem diferenças, sem<br />
conflitos, nem confrontos, sem a necessidade de leis ou<br />
limites.<br />
Retornemos às proposições de Wolff. A primeira é<br />
indesejável, afinal, quem gosta de viver sob coerção? A<br />
segunda possibilidade, que é a ideia de viver<br />
isoladamente, transita entre o romântico e o patético e é<br />
anacrônica. A terceira, que propõe a vida sem política, é<br />
uma utopia sem sustentação material. Sendo assim, o que<br />
nos resta?<br />
Sabemos que vivemos juntos, em sociedade, e não<br />
isoladamente. Sabemos que temos diferenças e que os<br />
confrontos e conflitos fazem parte da vida em sociedade.<br />
Sabemos que existem profundas contradições sociais.<br />
Portanto, seja através do ideal de autogoverno ou de uma<br />
instância externa à sociedade e, portanto, coercitiva (o<br />
Estado), a política é uma dimensão necessária e<br />
constitutiva da existência humana; assim, onde houver<br />
uma sociedade, haverá política.<br />
Resta saber então: Que tipo de política temos? Que tipo<br />
de política queremos? Que política podemos construir?<br />
O I d eal P olí t ico<br />
O ideal político se caracteriza pela existência de uma<br />
comunidade e pela construção e manutenção de uma<br />
unidade desta comunidade, sem que para isso ela precise<br />
submeter-se a um poder externo (do tipo: “eles” são o<br />
poder; eles fazem as leis que nós devemos obedecer).<br />
Não se trata, contudo, de uma defesa da anarquia. É<br />
importante registrar que não é possível a vida em comum<br />
sem que haja regras e sanções muito claras. Logo, uma<br />
comunidade política ideal deve estabelecer suas<br />
finalidades, suas regras, suas prioridades, enfim, deve<br />
autogovernar-se (nós somos o poder; nós fazemos as leis<br />
que normatizam a vida na comunidade e isso constitui a<br />
nossa liberdade). No entanto, a história testemunha o<br />
quão difícil é a consecução desse ideal do político.<br />
Se houvesse uma comunidade que, em lugar de manterse<br />
por meio de um poder distinto dela mesma (uma<br />
instância organizada para esse fim, um chefe todo-<br />
poderoso, um grupo dirigente, uma classe dominante, um<br />
Estado), se conservasse<br />
em sua unidade apenas por sua própria potência, uma<br />
sociedade na qual o poder político só pudesse ser<br />
localizado na comunidade política em seu conjunto,<br />
poderíamos dizer dessa sociedade que ela realizou a ideia<br />
do político. (WOLFF, 2003, p.31)<br />
Wolff (2003) defende a tese de que apenas duas<br />
sociedades conseguiram realizar o ideal político, que é a<br />
unidade da comunidade política, sem coerção externa.<br />
Quais foram essas sociedades? Essas sociedades foram,<br />
os atenienses da Antigüidade e os índios do Brasil, de<br />
antes da descoberta.<br />
Certamente você já ouviu falar da genialidade dos gregos<br />
e da sua famosa invenção: a democracia na Atenas da<br />
Antigüidade. Mas alguma vez já ouviu falar que os<br />
índios brasileiros, particularmente os tupis-guaranis,<br />
também foram, de maneira diferente, bem sucedidos na<br />
aventura de construir uma comunidade política que<br />
garantisse uma vida boa aos seus integrantes?<br />
Sabemos pouco sobre as comunidades políticas dos<br />
índios brasileiros, e isso se deve, em grande parte, às<br />
concepções eurocêntricas e etnocêntricas às quais nossa<br />
formação e nossa cultura foram e ainda são submetidas.<br />
O antropólogo francês Pierre Clastres é um dos poucos<br />
pesquisadores que se dedicaram a essa questão. Sobre<br />
seu trabalho, falaremos mais adiante.<br />
Vamos, agora, buscar compreender, num primeiro<br />
momento, o que caracterizou a realização da essência do<br />
político para os atenienses e para os índios do Brasil.<br />
Quais são as aproximações e quais os distanciamentos<br />
entre essas culturas tão distantes e, aparentemente, tão<br />
distintas? O que diferencia suas políticas daquela que<br />
caracteriza a modernidade e a contemporaneidade?<br />
O s G r egos e a I n v en ç ã o d a E sfer a P ú b lica<br />
Dizer que os gregos inventaram a política é um exagero.<br />
Afinal, como viviam as outras sociedades e civilizações<br />
do seu tempo e também aquelas que os antecederam? É<br />
claro que elas também se organizavam politicamente,<br />
portanto, a diferença entre os gregos, particularmente os<br />
atenienses, e outros povos se deu pela forma da<br />
constituição e do exercício do poder.<br />
A organização de uma sociedade pode acontecer de<br />
forma coercitiva e a força que a organiza pode ser<br />
exterior a ela – um tirano, um rei (monarquia), um grupo
(oligarquia), o Estado. Assim, dizer que os gregos<br />
inventaram a política significa afirmar que eles<br />
inventaram um tipo de política que se diferenciou dos<br />
modelos anteriormente existentes. Os gregos inventaram<br />
a democracia, ou seja, a esfera pública. Eles criaram<br />
instituições que não permitiam que o poder fosse<br />
exercido de forma privada, às escondidas, mas<br />
obrigavam que ele fosse exercido publicamente. A<br />
soberania deixava de ser privilégio de um ou de poucos,<br />
para ser exercida pelo povo (demos).<br />
É importante lembrar que a Grécia de hoje pouco tem a<br />
ver com aquilo que se convencionou chamar de Grécia<br />
da Antiguidade, que não se caracterizava como um<br />
Estado unificado, mas como um conjunto de cidades, de<br />
comunidades políticas (pólis). A Política, de Aristóteles,<br />
pode ser considerada o primeiro estudo de política<br />
comparada e foi organizada e escrita, segundo o<br />
historiador helenista Moses Finley (2002, p. 115), “a<br />
partir de uma análise refinada das instituições políticas<br />
existentes; as matérias-primas eram agrupadas em<br />
monografias, que ele e os seus discípulos prepararam<br />
sobre a história constitucional de 158 comunidades<br />
políticas”.<br />
Agora, vamos examinar alguns elementos constituintes<br />
da chamada democracia grega e, para facilitar a<br />
compreensão do texto, apresentamos inicialmente um<br />
pequeno glossário dos termos gregos.<br />
A D em<br />
ocr acia A t en ien se<br />
Em Atenas, o princípio de soberania do povo significava,<br />
sobretudo, a igualdade entre os cidadãos, membros da<br />
comunidade política, e se sustentava fundamentalmente<br />
pelo exercício da cidadania ativa, através da isonomia, da<br />
isegoria e também da rotatividade dos cargos e sorteio.<br />
Aristóteles define a cidade e sua finalidade como “uma<br />
comunidade completa, formada a partir de várias aldeias<br />
e que, por assim dizer, atinge o máximo de<br />
autossuficiência. Formada a princípio para preservar a<br />
vida, a cidade subsiste para assegurar a vida boa”.<br />
(ARISTÓTELES, Política. p. 53; 1252 b – 30)<br />
É preciso reconhecer que a igualdade jamais foi plena,<br />
mesmo no auge da democracia ateniense, quando eram<br />
considerados cidadãos apenas os homens adultos,<br />
nascidos em<br />
Atenas, sobretudo pelo fato de falarem a língua grega.<br />
Portanto, eram excluídos da vida política: as mulheres, as<br />
crianças, os escravos e os estrangeiros (metecos).<br />
Q u an d o n asce a d em ocr acia?<br />
Segundo Sólon, o autor da Constituição de Atenas, no<br />
início do século IV a.C. o exercício da cidadania já<br />
começava a se ampliar, deixando de ser privilégio da<br />
classe dos aristocratas e dos camponeses abastados, para<br />
incorporar também a classe dos tetas. No entanto, é<br />
durante o século V que ela se torna uma realidade na<br />
vida cotidiana dos atenienses.<br />
A última (classe) que reunia todos aqueles que tinham<br />
rendimentos inferiores a duzentas medidas de grãos. Na<br />
época clássica, os tetas correspondiam sensivelmente à<br />
metade da comunidade cívica e serviam na armada,<br />
como remadores. Ao acreditar no autor da Constituição<br />
de Atenas, os tetas não podiam ascender às<br />
magistraturas. Mas tinham, por direito assento na<br />
assembleia e nos tribunais. (...)<br />
É perfeitamente legítimo supor que o acesso dos tetas às<br />
assembleias não tenha sido o resultado de uma reforma<br />
concebida por um legislador, mas sim uma situação de<br />
facto, resultante dos tumultos que caracterizaram a<br />
história de Atenas no séc. VI (...). (MOSSE, 1999, p.24,<br />
25)<br />
Uma das diferenças essenciais da democracia ateniense<br />
para as democracias contemporâneas é que na sua<br />
política não havia o Estado, essa instituição que<br />
caracteriza a política moderna e contemporânea.<br />
Os atenienses viviam e praticavam a democracia direta;<br />
para eles, o político e o social não se separam. Os<br />
cidadãos são políticos, eles não têm representantes. Daí<br />
que toda decisão no campo político é imediatamente uma<br />
conquista social. Na democracia moderna, o povo exerce<br />
sua soberania através de representantes – os políticos.<br />
Vale a pena observar como Jean-Jacques Rousseau<br />
(1712-1778), um autor da modernidade, critica a<br />
alienação da soberania e a ameaça da perda da liberdade<br />
política, como consequências diretas das formas<br />
representativas de governo:<br />
Desde que o serviço público deixa de constituir a<br />
atividade principal dos cidadãos e eles preferem servir<br />
com sua bolsa a servir com sua pessoa, O Estado já se<br />
encontra próximo da ruína. (...) A soberania não pode ser<br />
representada pela mesma razão porque não pode ser<br />
alienada, consiste essencialmente na vontade geral e a<br />
vontade absolutamente não se representa. É ela mesma<br />
ou é outra, não há meio-termo. Os deputados do povo<br />
não são nem podem ser seus representantes; não passam<br />
73
de comissários seus; nada podendo concluir<br />
definitivamente. É nula toda a lei que o povo diretamente<br />
não ratificar; em absoluto não é lei. O povo inglês pensa<br />
ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição<br />
dos membros do parlamento; uma vez esses eleitos, ele é<br />
escravo, não é nada. (...) A idéia de representantes é<br />
moderna; vem-nos do Governo feudal, desse governo<br />
iníquo e absurdo no qual a espécie humana só se degrada<br />
e o nome de homem cai em desonra. Nas antigas<br />
repúblicas e até nas monarquias, jamais teve o povo<br />
representantes, e não se conhecia essa palavra.<br />
(ROUSSEAU, 1987, p. 106-108)<br />
De volta à Antigüidade. Os atenienses exerciam seu<br />
poder, sua soberania, diretamente na ekklesia e faziamno<br />
porque eram iguais. Uma vez assegurada a igualdade<br />
de direitos perante a lei (isonomia) e também o igual<br />
direito ao uso público e político da palavra (isègoria) nas<br />
assembléias, os atenienses, após debates e deliberações,<br />
tomavam decisões que deveriam ser executadas. Como<br />
isso acontecia? É preciso saber que, no governo da coisa<br />
pública, os cargos fixos eram raros, em geral, os<br />
cidadãos eram encarregados de executar tarefas.<br />
De que forma se decidia a distribuição das tarefas ou dos<br />
cargos? Havia escolha, indicação, eleição?<br />
Não nos esqueçamos que, para os atenienses, a eleição<br />
era um princípio antidemocrático, portanto, deveria ser<br />
evitado. Eles entendiam que a eleição, poderia criar<br />
distinções na sociedade, afinal, escolheriam-se os<br />
melhores (princípio da aristocracia) e com isso se abriria<br />
espaço para que os interesses comuns fossem<br />
administrados por alguns (princípio da oligarquia). Por<br />
essa razão, os atenienses optavam pelo sorteio. Os<br />
críticos da democracia ficavam estarrecidos com essa<br />
prática, afinal, os cargos públicos sorteados eram muito<br />
importantes.<br />
Uma vez colocados esses pressupostos, e sendo este o<br />
princípio da democracia, são de índole democrática os<br />
seguintes procedimentos: eleger todas as magistraturas<br />
entre todos os cidadãos; governar todos a cada um, e<br />
cada um a todos, em alternância; sortear as magistraturas<br />
ou na totalidade, ou então só as que não exijam<br />
experiência ou habilitação; não estipular qualquer nível<br />
de riqueza para se aceder às magistraturas, ou então<br />
estipular um limiar muito baixo; impedir que o mesmo<br />
cidadão exerça duas vezes a mesma magistratura, a não<br />
ser em raras circunstâncias e apenas naquelas escassas<br />
magistraturas que não se relacionam com a guerra;<br />
reduzir ao mínimo o período de vigência de todas as<br />
magistraturas, ou então, do maior número possível delas;<br />
atribuir administração da justiça a todos os cidadãos<br />
escolhidos entre todos, discernindo as questões em litígio<br />
ou a maioria delas, e entre essas as mais importantes e<br />
decisivas, como sejam, por exemplo, as relacionadas à<br />
fiscalização de contas públicas, com a constituição, e<br />
com os contratos do foro privado; depor a supremacia<br />
das decisões nas mãos da assembleia no tocante a todos<br />
os assuntos (...). Outro aspecto decisivo é o fato de<br />
nenhuma magistratura ser vitalícia e, no caso de um<br />
determinado cargo ter resistido a uma antiga reforma, ser<br />
democrático o facto de restringir o seu poder fazendo que<br />
a magistratura seja ocupada por sorteio em vez de<br />
eleição. (ARISTÓTELES, Política, p. 445. 1317 b – 18 a<br />
28; 1318 a)<br />
Considerando-se a enorme responsabilidade do exercício<br />
da cidadania e as responsabilidades implicadas, o sorteio<br />
só poderia ser realizado se o candidato fosse voluntário e<br />
capaz de uma rigorosa auto avaliação. Uma vez disposto<br />
a exercer a cidadania, o candidato era submetido à<br />
dokimasia, que era “um exame, não das suas<br />
competências, mas das suas virtudes cívicas” (ibid, 2003.<br />
p. 38).<br />
Outro procedimento adotado na democracia ateniense era<br />
que os cargos eram assumidos de forma colegiada, com o<br />
objetivo de salvaguardar o poder das deliberações<br />
coletivas e minimizar os possíveis equívocos individuais<br />
na condução dos trabalhos; “por fim, cada magistrado<br />
poderia ser suspenso em curso de mandato, por um voto<br />
da Assembleia”.<br />
A I m<br />
p or t â n cia d a R et ó r ica p ar a os A t en ien ses<br />
Um dos grandes méritos da democracia ateniense era o<br />
fato que ela não valorizava apenas o resultado final da<br />
ação política, ou seja, as decisões tomadas e executadas<br />
valorizavam, sobretudo, o processo de constituição e<br />
fortalecimento da democracia por meio das assembleias,<br />
dos debates públicos e da defesa argumentada das<br />
posições dos cidadãos.<br />
Ora, se a autoridade era pública e coletiva, e não privada,<br />
se as deliberações se davam coletivamente, então pensar,<br />
falar e discutir bem, para poder persuadir o opositor,<br />
eram condições absolutamente necessárias à participação<br />
na política. Por isso, a retórica ocupava um papel central<br />
na vida política de Atenas e estava na base da sua<br />
educação.<br />
83
Wolff afirma que “é notável que essa ligação entre o<br />
político e a linguagem está inscrita na instituição mesma<br />
da isègoria: todos os homens, e todos os homens<br />
igualmente, simplesmente na medida em que falam,<br />
estão aptos a viver em comunidade e, precisamente<br />
porque falam e podem dizer o justo e o injusto, a<br />
participar do poder da referida comunidade”. (WOLFF,<br />
2003, p.40)<br />
Aristóteles argumenta que “o discurso serve para tornar<br />
claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o<br />
injusto. É que, perante os outros seres vivos, o homem<br />
tem as suas peculiaridades: só ele sente o bem e o mal, o<br />
justo e o injusto; é a comunidade destes sentimentos que<br />
produz a família e a cidade”. (ARISTÓTELES, Política,<br />
p. 55, 1253ª -10)<br />
A retórica política era o instrumento pelo qual os gregos<br />
interpretavam o passado, mas sem apegar-se a ele, e<br />
construíam a sua consciência do presente com o objetivo<br />
maior de projetar o futuro da comunidade política.<br />
Para finalizar, podemos pensar que a busca da essência<br />
do político se dá pela investigação dos fundamentos e<br />
das finalidades que organizam e determinam a vida<br />
política de um povo, e não apenas pelas formas imediatas<br />
de sua aparência.<br />
93
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ARENDT, H. O que é política? (editoria Ursula Ludz); Tradução Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.<br />
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04
A FI L O SO FI A M E D I E V A L<br />
poderiam, porventura, contrariar dogmas religiosos e os<br />
demais pressupostos cristãos. Pelo seu caráter em alguns<br />
aspectos manipulador, a filosofia medieval não costuma<br />
receber muita atenção de indivíduos engajados na busca<br />
científica da existência humana e do próprio universo.<br />
(Fonte: http://www.portaleducacao.com.br/) .<br />
É comum dividirmos o período Medieval Cristão em<br />
dois momentos: O primeiro período denomina-se<br />
Patrística e o segundo momento conhecido como<br />
Escolástica.<br />
Mil anos. Foi esse o período aproximado que<br />
denominamos como idade medieval, da queda do<br />
império romano no século V até o século XV e o início<br />
do renascimento foram desenvolvidas duas correntes<br />
filosóficas distintas: A filosofia patrística e a filosofia<br />
escolástica, ambas possuíam concepções religiosas,<br />
porém com diferentes abordagens.<br />
<strong>Filosofia</strong> Patrística (século I ao VII): a filosofia<br />
desenvolvida nessa época teve como objetivo consolidar<br />
o papel da igreja e propagar os ideais do cristianismo.<br />
Baseadas nas Epístolas de São Paulo e o Evangelho de<br />
São João, a escola patrística advogou a favor da igreja e<br />
propagou diversos conceitos cristãos como o pecado<br />
original, a criação do mundo por Deus, ressureição de<br />
juízo final.<br />
<strong>Filosofia</strong> da Escolástica (séc. IX ao séc. XV): nesse<br />
período ocorreu uma retomada de muitos princípios<br />
filosóficos gregos. A grande preocupação da igreja era<br />
aliar a razão e a ciência aos ideais da igreja católica.<br />
Nesse contexto, surgiu a teologia que foi uma ciência<br />
que buscava explicar racionalmente a existência de Deus,<br />
da alma, do céu e inferno e as relações entre homem,<br />
razão e fé.<br />
Apesar das contribuições ideológicas e em alguns<br />
aspectos científicos, especialmente na geometria,<br />
aritmética, música, astronomia entre outras, a filosofia<br />
patrística e escolástica se diferencia das demais correntes<br />
de pensamento pelo fato de não aceitar verdades que<br />
A Patrística designa a primeira exposição racional da<br />
doutrina religiosa; em outras palavras, a patrística diz<br />
respeito à filosofia cristã dos primeiros séculos<br />
(Abbagnano, 2007, p.868); essa<br />
primeira tendência interpretativa e doutrinária se situa na<br />
Alta Idade Média, ou seja, no começo da formação<br />
medieval. Nela vemos uma retomada da teoria de Platão;<br />
teoria essa que nas mãos dos padres da Igreja (Católica)<br />
recebe um tratamento e um sentido cristãos. Na Patrística<br />
é pregada uma rigorosa ética moral que se vê expressa na<br />
prática ascética, no controle racional das paixões – o que<br />
deixa entrever a predileção pelas coisas espirituais,<br />
suprasensíveis.<br />
A finalidade da educação é fornecer o caminho para<br />
Deus, para sua verdade e bondade, para a iluminação.<br />
Vale salientar, contudo, que esse conhecimento não era<br />
facultado para todos os indivíduos, uma vez que apenas<br />
alguns eleitos teriam acesso a ele, pois trariam desde seu<br />
nascimento tal conhecimento consigo – o que explicaria<br />
também porque somente alguns indivíduos seriam<br />
capazes de transmitir tal verdade.<br />
A verdade, por sua vez, era concebida como algo<br />
incontestável e irrefletido, porquanto era revelação e não<br />
descoberta. A crença religiosa condenava, inclusive,<br />
qualquer conhecimento experimental. Tal proibição<br />
atesta a retração do pensamento e da ciência à época<br />
medieval – que justifica, ao fim e ao cabo, a remissão<br />
dos renascentistas como idade das trevas. A autoridade<br />
14
aseava-se na detenção do saber real, verdadeiro, divino,<br />
e pertencia aos indivíduos que supostamente teriam<br />
acesso em maior grau de Deus – por força de uma vida<br />
ascética e contemplativa: os padres e os monges.<br />
C ar act er í st icas d a <strong>Filosofia</strong> M<br />
ed iev al<br />
Assim como a filosofia antiga, a filosofia medieval<br />
possuía suas características próprias, o que contribuía<br />
para que ela pudesse ser analisada não apenas por uma<br />
época diferente, mas também por uma forma de pensar<br />
mais analítica, que em sua grande maioria, era ligada a<br />
um mesmo foco, a religiosidade. As principais questões<br />
debatidas pelos filósofos medievais eram:<br />
A relação entre a razão e a fé;<br />
A existência e a natureza de Deus;<br />
Fronteiras entre o conhecimento e a liberdade humana;<br />
Individualização das substâncias divisíveis e indivisíveis.<br />
Em resumo, o que vemos é que os principais temas estão<br />
relacionados à fé, o que prova o argumento da<br />
intervenção da igreja neste período da filosofia.<br />
Relacionar a fé, que é algo sem uma explicação lógica ou<br />
científica com a razão, que busca o entendimento das<br />
coisas, era uma forma que a igreja tinha de tentar<br />
explicar o que até ali não tinha explicação. A existência e<br />
a natureza de D eu s, para a filosofia, era algo complexo,<br />
pois se partirmos do pressuposto de que a filosofia busca<br />
explicar as coisas desde o seu início, buscando formas de<br />
provar o que está sendo apresentado, agora era uma<br />
obrigação filosófica explicar a existência de Deus.<br />
Neste período não era difícil encontrar pensadores que<br />
defendessem a tese de que fé e religião não deveriam<br />
estar subordinadas uma a outra, de que o indivíduo não<br />
precisaria ter sua fé ligada diretamente as racionalidades<br />
com as quais está acostumada a viver, porém, um nome<br />
se destacou em meio aos filósofos quanto a buscar uma<br />
forma racional de justificar as crenças. Conhecido como<br />
San t o A gost in h o d e H ip on a, esse filó sofo cristão<br />
desenvolveu uma ideia de que todo homem possui uma<br />
consciência moral e um livre arbítrio, que todos temos a<br />
consciência do que é certo e errado, do mesmo jeito que<br />
temos o direito de escolha, para fazer ou não cada coisa,<br />
mesmo sabendo que acarretarão consequências.<br />
E scolá st ica<br />
A Escolástica, por sua vez, é uma especulação filosófica<br />
e teológica que buscava fazer com que o homem<br />
compreendesse a verdade revelada (Abbagnano, 2007,<br />
p.401). É a partir dela que se fundam as universidades,<br />
visto que essas instituições tinham como objetivo<br />
sistematizar a doutrina. Se na Alta Idade Média<br />
predominava o misticismo, na baixa idade média,<br />
período em que se situa a Escolástica, é perceptível um<br />
progressivo interesse pelo exame racional do mundo.<br />
Ainda assim, na Escolástica, os teólogos procuravam<br />
“apoiar a fé na razão, a fim de melhor justificar as<br />
crenças, converter os não-crentes e combater os infiéis”<br />
(Aranha, 2006, p.114). Nela, para crer era necessário<br />
compreender, assim como para compreender era<br />
necessário crer. A maior contribuição da Escolástica diz<br />
respeito ao método. O próprio sentido de escolástico está<br />
ancorado nesse aspecto de fundo mais pedagógico,<br />
porquanto Escolástica designa a filosofia ensinada nas<br />
escolas, e, Escolástico, tanto o professor das artes liberais<br />
(numa primeira fase de desenvolvimento), como, mais<br />
tarde, o professor de filosofia e teologia, o magister<br />
(Aranha, 2006, p.114). A Escolástica compreendia um<br />
currículo e um método. O currículo tinha por base as sete<br />
artes liberais – porque decorrentes da razão –, divididas<br />
entre o trivium e o quadrivium. O trivium abarcava a<br />
gramática, a retórica e a dialética, ao passo que o<br />
quadrivium a aritmética, a música, a geometria e a<br />
astronomia. O método escolástico de ensino consistia,<br />
por sua vez, na lectio (leitura) e na disputatio (discussão,<br />
disputa). Esse exercício era, contudo, realizado sob a<br />
orientação e rígida supervisão do magister, que era a<br />
autoridade do saber e, por conseguinte, representante da<br />
Igreja (Aranha, 2006, p.115).<br />
E x p oen t es d a P at r í st ica e d a E scolá st ica<br />
O maior expoente da Patrística foi Santo Agostinho. Sua<br />
escrita é confessional, ela consiste na verdade, no<br />
testemunho, ou melhor, na apresentação de seu processo<br />
de conversão – da passagem de uma vida desregrada para<br />
uma vida nova, dedicada à verdade e sua contemplação,<br />
ancorada nos preceitos da Igreja. Santo Agostinho adapta<br />
a teoria platônica das ideias para justificar a crença<br />
religiosa na existência de um mundo ideal, onde se<br />
encontra a verdade, a luz, e um mundo de aparências,<br />
ilusões e erro, o mundo material.<br />
O maior expoente da Escolástica foi São Tomás de<br />
Aquino, filósofo/teólogo que adaptou o pensamento de<br />
Aristóteles (mais sistemático e categórico que Platão) à<br />
visão cristã. Para São Tomás de Aquino, a razão não era<br />
inimiga da revelação, posto que algumas verdades, ainda<br />
24
M<br />
que divinas, não poderiam ser provadas se não pelo uso<br />
da razão.<br />
Bom, como pudemos perceber, a Idade Média foi<br />
sobremaneira influenciada pela Igreja Católica que se<br />
utilizou da <strong>Filosofia</strong> para defender a fé cristã e propor<br />
um sentido de humano, de conhecimento, de verdade e,<br />
por conseguinte, de pedagogia. O predomínio da<br />
temática religiosa no Medievo não determinou apenas<br />
um currículo, mas uma finalidade educativa: a de<br />
converter os pagãos em cristãos.<br />
O P en sam en t o M od er n o<br />
aq u iav el e o P od er<br />
Por João Vicente Hadich Ferreira professor do Ensino Público em Londrina PR.<br />
Nascido em Florença, Itália, Maquiavel foi um dos<br />
grandes responsáveis pela noção moderna de poder. Em<br />
Maquiavel também encontramos uma renovação do<br />
sentido e da relação entre ética e política. Desta forma,<br />
muito folclore se construiu em torno de seu nome e de<br />
sua pessoa, principalmente pela interpretação precipitada<br />
que se fez muitas vezes de seu pensamento. Conforme o<br />
texto de RUSSELL: “é costume sentir-se a gente<br />
chocada por ele, e não há dúvida de que, às vezes, ele é<br />
realmente chocante. Mas muitos outros homens também<br />
o seriam, se fossem igualmente livres de hipocrisia”<br />
(RUSSELL, 1967, p. 20).<br />
Maquiavel foi compreendido como alguém imoral e<br />
desprovido de quaisquer valores. Por isso a perspectiva<br />
do termo “maquiavélico” é sempre pejorativa. Mas, seria<br />
Maquiavel digno desta fama? O que ele pretendia?<br />
Vamos por partes.<br />
Maquiavel choca por fazer uma análise do homem<br />
considerando-o a partir de uma de suas facetas, a do<br />
egoísmo. Se para Aristóteles e para o pensamento grecocristão<br />
no geral o homem buscava a vida em sociedade, o<br />
bem viver como algo natural, para Maquiavel “os<br />
homens tendem /.../ à divisão e à desunião.” (PINZANI,<br />
2004, p. 19)<br />
Maquiavel era um homem do seu tempo, do<br />
Renascimento. Homem de ideias políticas, ele procurou<br />
entender a natureza e os limites do poder político.<br />
Maquiavel contemplou uma realidade; a realidade da sua<br />
Itália, dividida, fragmentada em diversos principados e<br />
ducados. Numa constante briga pelo poder e,<br />
inevitavelmente alternâncias constantes dos governantes,<br />
a Florença de Maquiavel refletia o que ocorria também<br />
com as demais cidades italianas importantes do período.<br />
Para ele não se apresentava logicamente o ideal cristão,<br />
mas sim algo que lhe seria entendido como próprio do<br />
homem, a luta pelo poder. Por isso, os homens mentiam,<br />
matavam e julgavam-se acima da moral.<br />
Contudo, Maquiavel considera a necessidade de<br />
governantes bons e virtuosos. Para ele a diferença está<br />
em que a bondade e a virtude não pertencem à natureza<br />
humana do governante, mas sim resultam da sua<br />
compreensão e atuação sobre o real. Sem preocupar-se<br />
em desenvolver teorias, como fizeram outros pensadores,<br />
Maquiavel avalia a realidade e “interpreta os seus<br />
escritos como compêndios de conselhos práticos e de<br />
instruções para a ação.” (PINZANI, 2004, p. 16) Por<br />
isso, “influenciar a realidade, e não desenvolver teorias é<br />
o seu propósito.” (PINZANI, 2004, p. 16)<br />
Ao contrário dos manuais que indicavam como devia<br />
agir um soberano, obras comuns na idade Média e no<br />
Renascimento, o verdadeiro propósito de sua obra O<br />
P r í n cip e é a exortação para se tomar a Itália e libertá-la<br />
das mãos dos bárbaros, como pode ser constatado no<br />
capítulo final da mesma:<br />
Depois de considerarmos tudo o que vimos aqui, de ter<br />
refletido sobre se o momento histórico não seria propício<br />
para termos um novo monarca na Itália, se não seria<br />
agora a oportunidade para que um homem prudente e<br />
capaz introduzisse no país uma nova forma de governo,<br />
que honrasse e beneficiasse o povo, parece-me que são<br />
muitas as circunstâncias que concorrem para a subida ao<br />
trono de um novo soberano; de fato, não sei de nenhuma<br />
outra época mais oportuna para tanto. /.../ E embora já<br />
tenhamos tido algum vislumbre de esperança, fazendo<br />
pensar que Deus teria enviado alguém para redimi-la, a<br />
sorte o derrubou no ponto culminante da sua carreira;<br />
agora, quase sem vida, a Itália espera por quem lhe possa<br />
curar as feridas e ponha fim à pilhagem na Lombardia, à<br />
34
4<br />
capacidade e à extorsão no reino de Nápoles e na<br />
Toscana, curando-as das chagas abertas há tanto tempo.<br />
Pede a Deus que lhe envie alguém capaz de libertá-la<br />
dessa insolência, dessa bárbara crueldade. Está disposta a<br />
seguir uma bandeira, desde que alguém a empunhe.<br />
(MAQUIAVEL, 2005, p. 150-151)<br />
Detectando a tensão entre o desejo de dominar e de não<br />
ser dominado que move o homem, Maquiavel constrói<br />
em sua obra uma reflexão sobre o poder. O poder é<br />
entendido portanto, “como correlação de forças, fundada<br />
no antagonismo que se estabelece em função dos desejos<br />
de comando e opressão, por um lado, e liberdade, por<br />
outro, pelos quais se formam as relações sociais.”<br />
(SCHLESENER, 1989, p. 2) Estas relações implicam<br />
tanto na questão política como na econômica. De acordo<br />
com LEFORT (1979),<br />
O objeto de Maquiavel não é a técnica do poder mais do<br />
que a do comércio. Podemos certamente dizer que sua<br />
questão recai essencialmente sobre a política, mas com a<br />
condição de entender este termo em sua mais ampla<br />
acepção, isto é, clássica. É a questão da forma das<br />
relações sociais que ele coloca através da divisão<br />
grandes-povo. A reflexão sobre o poder está no centro<br />
de sua obra, mas pela razão de que, a seus olhos, a sorte<br />
da divisão social se decide em função do modo de<br />
divisão do poder e da sociedade civil e que assim se<br />
determinam as condições gerais dos diversos tipos de<br />
sociedade. (LEFORT, 1979, p. 144).<br />
É t ica e P olí t ica<br />
Ao apresentar seus argumentos, Maquiavel busca<br />
demonstrar como seria possível o estabelecimento deste<br />
Estado Italiano, a partir de um governante forte e de um<br />
governo efetivo. Secretário da Segunda Chancelaria de<br />
Florença, cargo que recebeu em 1498, Maquiavel foi<br />
empossado num governo republicano que foi deposto em<br />
1512 pela monarquia dos Médicis. Considerado traidor<br />
em 1513, foi afastado de suas funções públicas e exilado<br />
em San Casciano, região próxima de Florença. Neste<br />
período escreveu O Príncipe, provavelmente sua obra<br />
mais popular e, provavelmente, a mais complexa.<br />
Quando escreveu O Príncipe, Maquiavel interrompeu<br />
temporariamente outra obra, intitulada os Comentários<br />
sobre a Primeira Década de Tito Lívio, sua obra<br />
republicana. O que parece claro dos escritos de<br />
Maquiavel é que ele busca uma solução política para a<br />
sua Itália. Por isso, endereça O Príncipe ao magnífico<br />
Lorenzo, filho de Piero de Médicis, governante de<br />
Florença. Maquiavel sugere ao monarca que ele pode ser<br />
o príncipe que unificaria a Itália. Na obra, Maquiavel<br />
fornece praticamente as diretrizes seguras para que isto<br />
se realize. É dentro disto que discute e estabelece uma<br />
nova relação entre ética e política. Como nos esclarece<br />
WEFFORT, “a política tem uma ética e uma lógica<br />
próprias. Maquiavel descortina um horizonte para se<br />
pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional<br />
moralismo piedoso.” (WEFFORT, 1989, p. 21)<br />
Ao fazer a análise da realidade, Maquiavel distingue a<br />
moral individual da moral política. A atitude do<br />
indivíduo não é necessariamente a atitude do chefe de<br />
Estado. Se para um indivíduo a ação moral é de decisão<br />
particular, para o monarca, por exemplo, é necessário<br />
pesar em que isto implicará para o Estado. Não há uma<br />
exclusão entre ética e política, mas a primeira deve ser<br />
entendida a partir da segunda. Uma das implicações disto<br />
é a de que “os valores morais só possuem sentido a partir<br />
da vida social, apresentando-se como momentos de uma<br />
luta que está na raiz do poder e lhe dá sentido”<br />
(SCHLESENER, 1989, p. 10). Com isto Maquiavel está<br />
afirmando que temos virtudes que podem arruinar um<br />
Estado e vícios que podem salvá-lo o que, na análise<br />
moral tradicional seria condenável, mas na “ética<br />
política” poderia ser plenamente aceitável. Logicamente<br />
tais questões dependeriam das circunstâncias e das forças<br />
em luta (SCHLESENER, 1989, p. 10). Por isso, o que<br />
pode parecer inadmissível, para Maquiavel faz parte da<br />
política:<br />
De onde se deve observar que, ao tomar um Estado, o<br />
conquistador deve praticar todas as necessárias<br />
crueldades ao mesmo tempo, evitando ter de repetí-las a<br />
cada dia; assim tranqüilizará o povo, sem fazer<br />
inovações, seduzindo-o depois com benefícios. Quem<br />
agir diferentemente, por timidez ou maus conselhos,<br />
estará obrigado a estar sempre de arma em punho, e<br />
nunca poderá confiar em seus súditos que, devido às<br />
contínuas injúrias, não terão confiança no governante.<br />
(MAQUIAVEL, 2005, p. 69).<br />
Podemos perceber em Maquiavel a proposta de uma<br />
nova ética, com um novo conceito de virtude, voltada<br />
mais para a política e não para o ideal moral do<br />
pensamento medieval. É uma moral prática, que olha<br />
para o bem do Estado e se apresenta inversa à
perspectiva tradicional. Por isso, voltando à questão da<br />
virtude que pode ser prejudicial” e do vício que pode ser<br />
“bom”, podemos compreender que uma generosidade<br />
excessiva, por exemplo, poderia levar o Príncipe à ruína<br />
financeira e os súditos a sentirem-se oprimidos, o que<br />
suscitaria o ódio. Por outro lado, a sobriedade, que seria<br />
identificável com a avareza, tornando a figura do<br />
Príncipe antipática, possibilitaria gestos de grandeza e<br />
prodigalidade que, com certeza, seriam reconhecidos<br />
pelos súditos sem que estes se sentissem oprimidos e tão<br />
pouco descontentes.<br />
Por isso, para Maquiavel, há uma distinção entre os<br />
espaços da moral e da política. Isto não significa que se<br />
pode “fazer o que se quer”, de qualquer modo, sem<br />
sentido algum. A máxima segundo a qual “os fins<br />
justificam os meios” tem uma implicação muito mais<br />
coerente e profunda. Ser acusado de crueldade não deve<br />
ser o temor do Príncipe, desde que tal atitude seja<br />
necessária para unificar o povo e manter a paz.<br />
V ir t ù e For t u n a<br />
Maquiavel tem uma visão do homem de como ele é e não<br />
de como deveria ser necessariamente. Para ele,<br />
certamente, devemos olhar para o real e não para o ideal<br />
moral. Por isso Maquiavel trata da questão da virtù e da<br />
fortuna.<br />
A virtù refere-se à capacidade de decidir diante de<br />
determinada situação, cuja necessidade deve-se à<br />
fortuna. O agir pressupõe a compreensão da natureza<br />
humana, assim entendida por Maquiavel: os homens<br />
buscam quem lhes proporcione vantagens, melhorias.<br />
Atribuem este papel e responsabilidade ao governante.<br />
Esclarece num trecho da obra que “os homens mudam de<br />
governantes com grande facilidade, esperando sempre<br />
uma melhoria”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 32) O que<br />
importa, para os homens na sua maioria, são os<br />
benefícios e acreditar que é o príncipe quem pode<br />
proporcioná-los. Contudo, o governante deve estar<br />
atento. A estabilidade política é sempre precária e<br />
“qualquer mudança pode desencadear um processo de<br />
transformação difícil de conter.” (SCHLESENER, 1989,<br />
p. 3)<br />
Contrariando a concepção cristã de virtude, Maquiavel<br />
entende virtù como o que faz os grandes homens. Atingir<br />
os objetivos propostos implica em utilizar os meios<br />
necessários para fazê-lo. Encontrar os meios necessários<br />
para chegar aos fins é virtù em Maquiavel, pois os fins<br />
são construídos pelos meios. O homem virtuoso em<br />
Maquiavel é aquele capaz de conquistar a fortuna e<br />
mantê-la. E aqui é importante entendermos o conceito de<br />
fortuna em Maquiavel.<br />
O conceito de fortuna para o filósofo em questão,<br />
também é retomado dos antigos. Ele recorre à imagem da<br />
deusa fortuna, possível aliada dos homens e cuja<br />
simpatia era importante atrair. Representava uma figura<br />
feminina que despejava riquezas de sua cornucópia<br />
àqueles que sabiam conquistá-la. Para tanto, era<br />
necessário ser um homem de virtù. Como nos esclarece<br />
WEFFORT (1989), durante o período medievo, a figura<br />
da “boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por<br />
um ‘poder cego’, inabalável, fechado a qualquer<br />
influência, que distribui seus bens de forma<br />
indiscriminada.” (WEFFORT, 1989, p. 21) Contrariando<br />
o pensamento dos antigos, “a fortuna não tem mais como<br />
símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira<br />
indefinidamente sem que se possa descobrir o seu<br />
movimento.” (WEFFORT, 1989, p. 21) Apresentando<br />
uma perspectiva mais próxima à da Roda de Heródoto,<br />
que girava indiscriminadamente, esta visão considerava<br />
os bens valorizados no período clássico como um nada,<br />
compreendendo que a felicidade não se realizava no<br />
mundo terreno e que o destino é uma força da<br />
providência divina tendo o homem como sua vítima<br />
impotente. (WEFFORT, 1989, p. 21) Em Maquiavel,<br />
...ao se indagar sobre a possibilidade de se fazer uma<br />
aliança com a Fortuna, esta não é mais uma força<br />
impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada<br />
pelos antigos. Ela é mulher, deseja ser seduzida e está<br />
sempre pronta a entregar-se aos homens bravos,<br />
corajosos, aqueles que demonstram ter virtù.<br />
(WEFFORT, 1989, p. 22)<br />
Fortuna, portanto, não está relacionado à sorte ou<br />
predestinação, mas sim ao exercício da virtù no mais alto<br />
grau. É aproveitar a ocasião dada pelas circunstâncias<br />
para amoldar as coisas como melhor aprouver ao<br />
virtuoso. (MAQUIAVEL, 005, p. 49. Virtù e fortuna em<br />
Maquiavel, portanto, estão intimamente ligadas. E ser<br />
honrado, para Maquiavel, não implica numa questão de<br />
valores morais, mas de justiça política, onde o que<br />
importa são os resultados obtidos.<br />
O E st ad o<br />
Para Maquiavel, o conflito que existe entre os homens é<br />
o que fundamenta a ação política. Tendo em vista a<br />
54
64<br />
liberdade, exige-se a administração dos conflitos, de tal<br />
modo que não se permita o crescimento do poder de um<br />
determinado grupo em detrimento de outro, o que levaria<br />
a perda da liberdade. Para Maquiavel os homens não<br />
desejam a liberdade do mesmo modo e também a<br />
liberdade é objeto de uma paixão. Alguns querem<br />
liberdade para estar seguros e outros para dominar. Por<br />
isso, “tudo o que é capaz de unir os homens e de subtraílos<br />
ao temor que eles se inspiram mutuamente é,<br />
portanto, um bem; a política é sua prática, pois se trata de<br />
uma arte cujo objetivo é garantir “para sempre a<br />
tranquilidade do Estado e a felicidade das pessoas.”<br />
(SPITZ, 2003, p. 126).<br />
“Nada faz com que um príncipe seja mais estimado do<br />
que os grandes empreendimentos e os altos exemplos<br />
que dá.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 130).<br />
Estes empreendimentos referem-se às grandes conquistas<br />
militares e aos exemplos do seu poderio. Orienta ainda<br />
que “é muito útil também para o príncipe dar algum<br />
exemplo notável de sua grandeza no campo da<br />
administração interna”. (MAQUIAVEL, 2005, p. 131).<br />
Maquiavel alerta que “nenhum Estado deve crer que<br />
pode sempre seguir uma política segura”, mas “ao<br />
contrário, deve pensar que todos os caminhos são<br />
duvidosos.” (MAQUIAVEL, 2005, p. 134) Para bem<br />
administrar o Estado é preciso entender a natureza das<br />
coisas, o fato de que não se consegue evitar uma<br />
dificuldade sem cair em outra. A prudência do príncipe<br />
consiste em saber reconhecer estas questões e escolher<br />
entre o que é menos mau para a sociedade.<br />
Por fim, Maquiavel propõe o apreço pelas virtudes e<br />
praticamente uma participação popular de tempos em<br />
tempos, construindo assim a ideia de solidariedade e<br />
generosidade por parte do príncipe.<br />
Para o pensador italiano, Antônio Gramsci, “em todo o<br />
livro, Maquiavel mostra como deve ser o Príncipe para<br />
levar um povo à fundação do novo Estado, e o<br />
desenvolvimento é conduzido com rigor lógico, com<br />
relevo científico”. (GRAMSCI, 1991, p. 4) Maquiavel<br />
trata com seriedade a política e sente-se parte do povo<br />
que ele supõe constituirá este novo Estado. Como<br />
esclarece Gramsci, “Maquiavel faz-se povo, confunde-se<br />
com o povo, mas não com um povo ‘genericamente’<br />
entendido, mas com o povo que Maquiavel convenceu<br />
com o seu desenvolvimento anterior, do qual ele se torna<br />
e se sente consciência e expressão, com o qual ele se<br />
sente identificado”. (GRAMSCI, 199, p. 4) Neste<br />
sentido, toda lógica em Maquiavel parece atender a uma<br />
reflexão do povo, de “um raciocínio interior que se<br />
manifesta na consciência popular e acaba num grito<br />
apaixonado, imediato”. (GRAMSCI, 1991, p. 4) No<br />
pensamento gramsciano há uma verdadeira perspectiva<br />
de “manifesto político” na obra de Maquiavel. Não é<br />
algo que vem de fora, de teóricos, de tratados políticos,<br />
mas do próprio pensamento popular interpretado por<br />
Maquiavel. Ainda com Gramsci podemos entender que<br />
“a doutrina de Maquiavel não era, no seu tempo, uma<br />
coisa puramente ‘livresca’, um monopólio de pensadores<br />
isolados, um livro secreto que circula entre iniciados”<br />
(GRAMSCI, 1991, p. 10). Escrevendo coisas aplicáveis,<br />
Maquiavel pretende ensinar, educar, mas não a quem já<br />
sabe, ou que estaria numa “elite dominante”<br />
necessariamente. Para Gramsci não parece este o intento<br />
de Maquiavel.<br />
Em Maquiavel, há uma construção da política de forma<br />
autônoma, fundada na realidade, mas também na<br />
necessidade de mudar esta realidade para conseguir o<br />
intento maior: a unificação da Itália e a fundação do<br />
Estado italiano.<br />
Maquiavel apresenta-se tão atual quanto no momento em<br />
que escreve O Príncipe. Dentro desta atualidade do<br />
pensamento maquiaveliano, e agora podemos afirmar<br />
não maquiavélico, não validamos uma política<br />
despreocupada com valores, mas propõe-se uma política<br />
que seja efetiva, que resolva os problemas e construa<br />
valores práticos. Não é validada a esperteza sem sentido<br />
algum e nem tampouco a bondade sem coerência e<br />
domínio de poder do governante.<br />
Não basta um governante honesto, com uma excelente<br />
proposta política, mas que escolhe mal seus ministros e<br />
assessores. Neste sentido, tratar dos problemas políticos<br />
atuais à luz da leitura do pensamento de Maquiavel<br />
parece-nos uma indispensável contribuição para<br />
entendermos a política de forma mais real, ou seja, como<br />
ela é, como se faz, como se costura em conchavos e<br />
alianças. Menos iludidos, mais realistas, podemos<br />
perceber a importância da política e dos nossos políticos.<br />
Com certeza também poderemos agir de forma<br />
esclarecida quanto aos nossos direitos e deveres,<br />
principalmente no trato com o poder que delegamos aos<br />
nossos representantes.
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ABBAGNANO, N. D icion á r io d e <strong>Filosofia</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 2000.<br />
BIGNOTTO, N. M<br />
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74
A C I Ê N C I A M O D E R N A – D E SC A R T E S E G A L I L E U<br />
G A L I L E I<br />
Descartes e as Regras para Bem Conduzir a Razão<br />
que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.<br />
O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que<br />
eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e<br />
quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O<br />
terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos,<br />
começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de<br />
conhecer, para subir, pouco, como por degraus, até o<br />
conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo<br />
uma ordem entre os que não se precedem naturalmente<br />
uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte<br />
enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu<br />
tivesse a certeza de nada omitir. (DESCARTES, 1962)<br />
Uma das obras mais fundamentais da filosofia chama-se<br />
Discursodo Método e traz o seguinte subtítulo: “p ar a<br />
b em con d u z ir su a r az ã o e b u scar a v er d ad e n as<br />
ciê n cias”. Será que não é pretensão demais para um<br />
texto escrito de forma autobiográfica? A trajetória do<br />
texto e o poder que exerceu sobre a tradição posterior<br />
revelam que não. O Discursodo Método é uma obra<br />
destinada, inicialmente, a servir de prefácio a três ensaios<br />
do filósofo e matemático Descartes: a Dióptrica, os<br />
Meteoros e a Geometria. Os dois primeiros só interessam<br />
hoje aos historiadores do pensamento cartesiano. Já o<br />
terceiro teve ampla divulgação entre os matemáticos, por<br />
razões que veremos mais tarde. Quanto ao Discurso,<br />
dividido em seis partes, apesar de Descartes dizer que<br />
seu propósito era apenas “(...) mostrar de que maneira ele<br />
se esforçou para bem conduzir sua razão.” (Descartes,<br />
1962) frase que devemos atribuir à modéstia de<br />
Descartes, na verdade a obra expõe com clareza uma<br />
série de argumentos que permitem à filosofia<br />
fundamentar todo o edifício do saber.<br />
Na segunda parte do Discurso, Descartes enumera<br />
q u at r o preceitos que devem conduzir a ciência.<br />
Acompanhemos o texto do filósofo:<br />
O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como<br />
verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como<br />
tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a<br />
prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se<br />
apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito,<br />
A primeira regra, também conhecida por “regra da<br />
evidência”, sintetiza um ponto muito importante na<br />
filosofia cartesiana. Descartes entende que a razão é uma<br />
capacidade que o homem possui para examinar os dados<br />
que os sentidos captam. Nisto ele não se distingue de<br />
filósofos anteriores. Mas, Descartes também pensa que a<br />
v er d ad e e a cer t ez a são condições sem as quais um<br />
homem não pode dizer que possui conhecimento. O<br />
filósofo foi educado em La Flèche, uma escola jesuíta<br />
que reunia o que havia de melhor em termos de<br />
Metafísica e Teologia do século XVII. Por meio dessa<br />
instrução, Descartes pôde exercitar-se durante anos em<br />
investigações metafísicas oriundas da Idade Média cujas<br />
teses e argumentos são, em sua maior parte, raciocínios<br />
prováveis. É contra esse tipo de procedimento que o<br />
método cartesiano ganha força. Para Descartes é<br />
importante rejeitar todos os juízos, demonstrações e<br />
dados que não possam ser tidos como verdadeiros e<br />
indubitáveis. Quando Descartes recomenda a certeza ele<br />
pensa naquela “luz natural” que cada homem possui,<br />
permitindo-lhe “intuir” (no sentido preciso de ver) a<br />
verdade de cada coisa. Veja como o filósofo delineia o<br />
método que orienta essa “visão mental”:<br />
Todo método consiste inteiramente em ordenar e em<br />
agrupar os objetos nos quais deveremos concentrar o<br />
nosso poder mental se pretendermos descobrir alguma<br />
verdade. Seguiremos este método com exatidão se desse<br />
início reduzirmos as questões complicadas e obscuras,<br />
substituindo-as, passo a passo, por outras mais simples e<br />
depois, começando pela intuição das mais simples de<br />
84
todas, tentarmos conhecer todas as outras, através dos<br />
mesmos processos. (In: COTTINGHAM, 1989)<br />
G alilei G alilei<br />
Você pode aplicar esse método no estudo de qualquer<br />
coisa, mas não deixe de atentar para o seguinte: a<br />
mensagem de Descartes é que sua razão segue um passo<br />
que vai do simples ao complexo por meio de graus de<br />
entendimento na matéria. Além disso, o trecho acima<br />
revela que o entendimento é uma espécie de visão<br />
mental, ou in t u iç ã, otermo redefinido por Descartes e<br />
cujo significado não pode ser confundido com a tradição<br />
aristotélica. Em Descartes intuição é uma capacidade<br />
análoga à faculdade da visão. A clareza que o<br />
entendimento busca é uma capacidade de ver<br />
mentalmente as estruturas e qualidades dos corpos<br />
existentes, do mesmo modo que a projeção de mais luz<br />
sobre um corpo permite uma visão mais detalhada e<br />
precisa desse corpo.<br />
Segundo Granger, o espírito do cartesianismo é o espírito<br />
da matemática:<br />
Dividir a dificuldade, ir do simples ao complexo, efetuar<br />
enumerações completas, é o que observa rigorosamente o<br />
geômetra quando analisa um problema em suas<br />
incógnitas, estabelece e resolve suas equações. A<br />
originalidade de Descartes consiste em ter determinado,<br />
de forma por assim dizer canônica, essas regras de<br />
manipulação que somente se esboçam em seus<br />
contemporâneos na sua aplicação particular às grandezas,<br />
e de havê-las ao mesmo tempo oposto e substituído à<br />
Lógica da Escola, na qual vê apenas um instrumento de<br />
Retórica, inutilmente sofisticado. (DESCARTES, 1962)<br />
Como se vê, o método cartesiano é uma projeção de<br />
princípios e regras que orientam o raciocínio<br />
matemático-geométrico. A terceira e quarta regras,<br />
respectivamente, apenas confirmam um procedimento de<br />
resolução de problemas na geometria: as linhas e as<br />
figuras simples estão contidas nas compostas, etc.<br />
Vale ressaltar uma caracterização do conhecimento em<br />
Descartes que podemos chamar de “unitária”. Talvez<br />
sem o saber, Descartes retoma a opinião de Platão, para<br />
quem é possível identificar uma natureza comum do<br />
conhecimento, e se põe contra Aristóteles nesse ponto, o<br />
qual defendia a necessidade de distintas metodologias e<br />
perfis diferentes para cada ramo do saber.<br />
Nascido em Pisa em fevereiro de 1564, foi responsável<br />
pela criação de inventos e aperfeiçoamento de teorias<br />
que caracterizaram as novas descobertas do<br />
Renascimento. Em 1581, Galileu matriculou-se na<br />
Escola de Artes da Universidade de Pisa para estudar<br />
medicina. Quatro anos mais tarde abandonou o curso<br />
para dedicar-se à matemática. Em 1589, tornou-se<br />
catedrático da Universidade de Pisa. Nessa época<br />
começa a fazer as primeiras investigações no campo da<br />
física, particularmente em mecânica, tentando descrever<br />
os fenômenos em linguagem matemática.<br />
A Europa de Descartes ainda estava, no entanto, sob o<br />
efeito da longa tradição medieval que durante séculos<br />
valorizou os estudos teológicos em detrimento dos<br />
fenômenos naturais. O que teria levado a Igreja a retardar<br />
durante tanto tempo o avanço do conhecimento<br />
científico?<br />
Segundo o físico e historiador da ciência Marcelo<br />
Gleiser, para se entender esse fato é preciso entender o<br />
contexto político que se formou desde o século IV d.C.<br />
Devemos lembrar que a Igreja sempre foi uma guardiã,<br />
no sentido literal, de todo o saber que foi transmitido<br />
pelos antigos. Mas esse zelo também impedia que teorias<br />
modernas ganhassem espaço e ameaçassem o<br />
conhecimento tradicional. O pensamento cartesiano não<br />
deixa de se chocar com esse panorama. Sua fí sica, por<br />
exemplo, diz que os dois principais conceitos do<br />
universo são “matéria” e “movimento”. Não há para<br />
Descartes, como havia para os teólogos católicos e<br />
aristotélicos, algum tipo de finalidade no mundo, ou seja,<br />
94
05<br />
um sentido e função prévios definidos por alguma<br />
inteligência divina.<br />
A b iologia cartesiana também entra em conflito com a<br />
descrição medieval do homem. Para Descartes o corpo<br />
humano tem a estrutura de uma máquina, funcionando<br />
em perfeita harmonia como um relógio.<br />
Para os medievais o que move o corpo é a alma, mas<br />
Descartes não aceita isso. Para ele o corpo deve ser<br />
explicado a partir de sua estrutura física: veias, sangue,<br />
circulação, cérebro, músculos, membros, etc. É uma<br />
revolução que deixou perplexa sua época. O corpo em<br />
Descartes deixava de ser um receptáculo do espírito para<br />
se tornar um mecanismo complexo ao alcance da<br />
compreensão e estudo humanos.<br />
Em 1593, Galileu inventou uma bomba d’água. Em 1597<br />
elaborou um compasso geométrico e militar e em 1606,<br />
construiu um termômetro. Após tomar conhecimento das<br />
lunetas holandesas, que aproximavam objetos distantes,<br />
apesar de pouco potentes e com grandes distorções da<br />
imagem, Galileu percebeu que a luneta poderia ser<br />
utilizada para explicar questões da teoria heliocêntrica,<br />
proposta por Copérnico. Galileu passou a defender a<br />
teoria do heliocentrismo, apesar de não se expor muito<br />
publicamente. Giordano Bruno já havia sido queimado<br />
vivo pela Santa Inquisição da Igreja Católica por<br />
defender as ideias de Copérnico.<br />
Dessa forma, Galileu melhorou as lunetas de modo que<br />
as imagens ficassem mais nítidas e sem deformações,<br />
com um aumento de seis vezes, isto é, duas ou três vezes<br />
mais ao das lunetas da época. Em 1609, empolgado com<br />
os primeiros resultados, fabricou uma luneta com<br />
aumento de nove vezes, sem deformações. Em 1610,<br />
Galileu publicou suas observações celestes no "Sidereus<br />
Nuncius" com tiragem de 560 exemplares. Nesse livro<br />
falou de montanhas na Lua, dos "planetas" que giravam<br />
em torno de Júpiter e nas milhares de estrelas da Via<br />
Láctea. Estas descobertas foram muito criticadas por<br />
teóricos que não acreditavam em suas experiências.<br />
Em 1611, a Igreja começou a preocupar-se com as ideias<br />
de Galileu afirmando que ele era "perigoso", pois suas<br />
ideias influenciavam muitas pessoas. Apesar de tentar se<br />
defender, foi convocado para enfrentar um tribunal do<br />
Santo Ofício. Condenado, foi obrigado a negar suas<br />
teorias sob pena de morrer queimado. Sobre este<br />
acontecimento existem muitas versões diferentes. Seja<br />
como for, Galileu continuou vivo. Nesse período, não<br />
parou de trabalhar e publicou clandestinamente, em<br />
1638, o "discurso a respeito de duas novas ciências",<br />
onde recapitulou os resultados de suas primeiras<br />
experiências e acrescentou algumas reflexões sobre os<br />
princípios da mecânica. Essa obra seria a mais madura de<br />
todas que escreveu. No mesmo ano Galileu ficou cego.<br />
Morreu quatro anos depois, em janeiro de 1642.<br />
O C on t r at u alism o<br />
Durante o período entre os séculos XVI ao XVIII<br />
surgiram correntes teóricas que visava refletir e tentar<br />
explicar como provavelmente se deu a criação do Estado,<br />
como a sociedade se comportava antes deste e quando os<br />
indivíduos sentiram a necessidade de sua criação. Os<br />
pensadores desta corrente filosófica tinham como base<br />
que o Estado havia sido criado por meio de um suposto<br />
contrato social. Entre os contratualistas mais famosos<br />
estão Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques<br />
Rousseau. Apesar de que todos os três acreditavam que o<br />
Estado havia se formado a partir de um contrato social,<br />
existem algumas divergências no pensamento de cada<br />
um em relação ao caminho tomado para a consolidação<br />
do pacto.<br />
Thomas Hobbes (1588 – 1679) em sua obra “Leviatã”<br />
discorre sobre o estado de natureza, o contrato social que<br />
os indivíduos tiveram necessidade de firmar e o governo<br />
soberano. Para Hobbes, os homens no estado de natureza<br />
são todos iguais, até mesmo o mais forte não possui a<br />
garantia de poder sobre os demais. Possuem, ademais, a<br />
mesma inteligência, entretanto devido à vaidade humana<br />
(requisito comum a todos) cada indivíduo se sente e se<br />
considera mais inteligente que o seu semelhante. Para<br />
Hobbes, quando dois homens desejam a mesma coisa e<br />
esta não pode satisfazer a ambos, e como estes se sentem<br />
possuidores de inteligência e capacidade de possuíla,<br />
tornar-se-ão inimigos e irão intentar de todas as formas,<br />
cada um a sua maneira, se sobressair em relação ao<br />
outro. No entanto, apesar do confronto entre iguais, um<br />
indivíduo nunca sabe o que seu semelhante está<br />
pensando ou planejando, o que gera insegurança e receio<br />
em relação a uma eventual tentativa de ataque. Logo, na
visão de Hobbes, os seres humanos no estado de natureza<br />
estão sempre supondo o que o outro pode estar<br />
planejando fazer contra o seu semelhante. A insegurança<br />
em relação à possibilidade de uma atitude hostil leva ao<br />
ataque seja para vencer o outro ou como meio para se<br />
defender de uma possível agressão. Está declarada a<br />
guerra de todos contra todos.<br />
Hobbes não acredita em uma natureza boa do homem,<br />
pelo contrário, ele é egoísta e egocêntrico não sentindo<br />
nenhum prazer na convivência com os seus demais.<br />
Hobbes afirma, aliás, que existem três causas que<br />
provocam discórdia entre os homens: competição,<br />
desconfiança e glória. A liberdade do homem enquanto<br />
no estado de natureza gera guerras, conflitos e<br />
instabilidades ao passo que este se vê livre para fazer o<br />
que deseja visando a realização dos seus interesses<br />
particulares. Os indivíduos sentem então a necessidade<br />
de um pacto social e para que este pacto se formule é<br />
necessário que todos abram mão de sua liberdade e dos<br />
direitos que possuíam no estado de natureza. O pacto<br />
social é formado para garantir paz e segurança aos<br />
indivíduos em troca da sua liberdade e direitos. É um<br />
pacto de submissão ao passo que todos transportam ao<br />
Estado todo o poder visando garantir a segurança.<br />
Outro aspecto do contrato é a escolha de um suserano,<br />
este deverá possuir poderes ilimitados tornando-se assim<br />
o Estado do povo. Cabe ao suserano garantir a paz e a<br />
segurança dos indivíduos e para que isto seja cumprido<br />
satisfatoriamente é necessário que seu poder seja total e<br />
ilimitado. Pois se fosse limitado haveria alguém para<br />
julgar se o suserano estava sendo justo ou injusto se<br />
tornando, este que julga, o possuidor do poder pleno.<br />
Hobbes não vê outra escolha, o poder deve ser absoluto e<br />
o suserano deve manter temerosos os súditos para que<br />
obedeçam ao seu poder máximo. Entretanto, quando o<br />
escolhido para governar deixa de cumprir o dever de<br />
proteger um determinado indivíduo este prejudicado não<br />
precisa mais lhe dever sujeição, contudo aos outros não é<br />
permitida a escolha de se rebelar, pois o suserano ainda<br />
os protege. Na verdade a não necessidade do<br />
cumprimento de sujeição é escolha do suserano, que não<br />
mais confia no súdito, destituindo dele a obrigação de<br />
sujeição. Para Hobbes o pior que se pode acontecer é um<br />
eventual retorno ao estado de natureza.<br />
John Locke (1632 – 1704) difere consideravelmente da<br />
teoria de Hobbes. Locke em “Segundo tratado sobre o<br />
governo civil” acredita que os homens no estado de<br />
natureza viviam em relativa harmonia e paz. Nesse<br />
momento, os homens eram dotados de razão e tinham<br />
sua propriedade. Propriedade para o autor, em uma<br />
primeira acepção, significava: vida, liberdade e bens. A<br />
segunda acepção de propriedade faz relação aos bens<br />
móveis adquiridos pelos indivíduos. Para o pensador a<br />
terra é um direito comum a todos, já que, foi dada por<br />
Deus e a partir do trabalho o homem a torna sua<br />
propriedade privada. Sendo esta terra sua, ele atribui um<br />
direito próprio excluindo todos os outros de possuí-la. O<br />
estado de guerra para Locke se dá a partir do momento<br />
em que há uma violação da propriedade privada fazendose<br />
necessário a criação de um contrato social. A<br />
finalidade principal do contrato era proteger a<br />
propriedade privada e preservar os direitos que cada um<br />
possuía no estado de natureza. Este acordo, para Locke,<br />
levou os homens a unirem e estabelecerem livremente o<br />
que ele vai chamar de “contrato de consentimento”<br />
diferentemente do “contrato de submissão” denominado<br />
por Hobbes.<br />
Formado o estado civil através do contrato é necessária a<br />
escolha da forma de governo. A forma de governo é<br />
instituída por voto majoritário visando àquela que melhor<br />
se adéque às condições necessitadas pelos indivíduos.<br />
Escolhida a forma de governo, é necessário ter<br />
conhecimento sobre qual será o poder legislativo e o<br />
poder executivo e federativo, que serão subordinados ao<br />
primeiro. Entretanto, se o executivo e o legislativo<br />
violam a lei estabelecida e coloca a proteção da<br />
propriedade privada em risco, torna-se um governo<br />
tirânico. E a consequência desse poder tirânico é o<br />
retorno para o estado de guerra. O estado de guerra<br />
atribui aos cidadãos o direito de resistência, ou seja, o<br />
direito dos indivíduos se rebelarem por meio da força<br />
contra este estado civil.<br />
Jean- Jacques Rousseau (1712 – 1778) em suas duas<br />
obras “Discurso sobre a origem e os fundamentos da<br />
desigualdade entre os homens” e “O contrato social”<br />
discorre na primeira sobre a criação do pacto social, que<br />
para ele foi um pacto injusto, e na segunda propõe como<br />
poderia ser feito o contrato na medida em que todos<br />
fossem beneficiados. No “Discurso sobre a origem e os<br />
fundamentos da desigualdade entre os homens”<br />
Rousseau diz que os homens no estado de natureza são<br />
amorais, não tem conhecimento do que é bom ou mau,<br />
entretanto não conseguem ver seu semelhante sofrer.<br />
Não fala como se deu o processo do estado da natureza<br />
para a sociedade civil, entretanto, afirma que o pacto<br />
social foi injusto, já que, iludidos pelo discurso de<br />
homens ambiciosos, homens grosseiros e inocentes<br />
perderam sua liberdade natural para a servidão. Ou seja,<br />
os indivíduos abriram mão da sua liberdade em troca do<br />
trabalho, da servidão e da miséria.<br />
15
25<br />
No Contrato Social, Rousseau propõe condições de<br />
possibilidade de um pacto legítimo, ao mesmo tempo em<br />
que, os homens, ao abrirem mão da sua liberdade natural,<br />
não se submetam à servidão, pelo contrário, que ganhem<br />
em troca a liberdade civil. O corpo soberano surgido<br />
após o pacto possui condições de elaborar as leis, já que,<br />
é um agente ativo e passivo das mesmas. Há na<br />
concepção de Rousseau uma relação de liberdade e<br />
obediência e, ademais, uma prevalência da vontade geral<br />
sobre a particular. O corpo administrativo do Estado, seja<br />
qual for, deve ser um órgão limitado pelo povo soberano,<br />
deve ser submisso à população. Rousseau defende que<br />
este corpo administrativo tem que ser limitado, pois a<br />
vontade particular é um perigo para a população, visto<br />
que a vontade particular visa seus próprios interesses,<br />
logo a vontade geral tem de vigiar e combater esta. A<br />
representação política não deve estar no nível de uma<br />
soberania. Na verdade Rousseau deseja no lugar de uma<br />
democracia representativa, uma democracia direta aos<br />
moldes das antigas Roma e Grécia. Haveria apenas um<br />
representante que colocasse em prática as leis criadas<br />
pelo povo soberano. Rousseau não crê em um retorno ao<br />
estado de natureza, pois o ser humano já perdeu a sua<br />
bondade e a pureza, infiltrado cada vez mais dentro da<br />
sociedade moderna.<br />
São notáveis as várias diferenças nas teorias dos três<br />
contratualistas. Ao passo que Hobbes acredita em um ser<br />
humano egoísta e competitivo por natureza, Locke crê<br />
que este só se torna cruel no momento em que há a<br />
violação dos seus bens. Já Rousseau pensa que o<br />
indivíduo é amoral, não suporta ver seu semelhante<br />
sofrer, entretanto perde sua inocência ao passo que se<br />
integra cada vez mais na sociedade. O contrato social<br />
também possui visões díspares, em Hobbes os homens<br />
entram em acordo para firmar o pacto visando garantir<br />
segurança e paz, abrindo mão de todos os seus direitos e<br />
liberdade. Locke acredita que o contrato é firmado para<br />
preservar os direitos naturais e a propriedade privada e<br />
Rousseau não vê o pacto social como uma saída eficaz,<br />
pois faz o homem perder sua liberdade e se tornar servo.<br />
Logo, este último propõe outro tipo de contrato que seria<br />
o ideal, também divergente do contrato de Hobbes e de<br />
Locke. Enquanto Rousseau não acredita em um retorno<br />
ao estado de natureza, Locke propõe que este se dá<br />
através do surgimento de um estado tirânico que coloca a<br />
preservação da propriedade privada em risco. Hobbes<br />
acredita ser inconcebível um retorno ao estado de<br />
natureza, já que, o súdito não tem o direito a se rebelar<br />
contra o suserano, contudo não descarta a possibilidade<br />
de isto acontecer.<br />
E st ad o, P od er e V iolê n cia<br />
Por Ademir Aparecido Pinhelli Mendes e Bernardo Kestring, professores do<br />
Ensino Público em Curitiba, Paraná.<br />
O E st ad o com o D et en t or d o M on op ó lio d a V iolê n cia<br />
As teorias sobre o Estado constituem-se num legado<br />
histórico importante para a compreensão da violência.<br />
Max Weber foi um dos autores que refletiu sobre o<br />
processo de organização do Estado moderno e acentuou<br />
que se trata de uma instituição que detém uma autoridade<br />
sobre os cidadãos, bem como controla todas as ações que<br />
ocorrem em sua jurisdição ou em seu território. No<br />
espaço por ele controlado, como já citamos, o Estado<br />
detém o monopólio do uso da força, considerado<br />
legítimo na medida em que necessário para a<br />
manutenção da ordem e da segurança.<br />
A proposição é polêmica, à medida que não há<br />
mecanismos de controle do uso da força e cabe<br />
distinguir, a cada ação, o uso legítimo da força e o abuso<br />
de poder. Isso é bastante complicado, porque quem<br />
decidirá sobre a intensidade da força e qual o momento<br />
de utilizá-la?<br />
A lgu n s sã o m<br />
ais igu ais q u e ou t r os<br />
Karl Marx na sua crítica à sociedade burguesa, salienta<br />
que em uma sociedade fundada na desigualdade<br />
econômica e social as garantias de liberdade e segurança<br />
do cidadão, que o Estado deve suprir, tornam-se, na<br />
maioria das vezes, apenas garantia da propriedade. Em A<br />
QuestãoJudaica Marx reflete sobre os conceitos de<br />
liberdade e igualdade gerados no bojo da Revolução<br />
Francesa de 1789, concluindo que tanto a existência<br />
quanto a defesa da propriedade privada no contexto das<br />
Constituições geradas no processo de revolução burguesa<br />
delimitam a vivência da liberdade e tornam a igualdade<br />
apenas um elemento formal que dissimula a desigualdade<br />
realmente existente, ou seja, a igualdade proposta pela<br />
burguesia e primeiramente a igualdade na troca é<br />
baseada no contrato de cidadãos livres e iguais, – é<br />
também a igualdade jurídica e a lei é igual para todos e<br />
todos são iguais; perante a lei.<br />
Sabe-se, hoje, que a igualdade jurídica – esconde, na<br />
verdade, a desigualdade dos indivíduos concretos.<br />
É a liberdade individual, com a sua aplicação, que forma<br />
a sociedade burguesa. Ela faz com que cada homem seja,<br />
nos outros homens, não a realização, mas antes a<br />
limitação de sua liberdade. Proclama, antes de tudo o<br />
mais, o direito de usufruir e de dispor à sua vontade de<br />
seus bens, dos seus rendimentos, do fruto do seu trabalho
e da sua indústria. Restam ainda os outros direitos do<br />
homem, a igualdade e a segurança. A palavra igualdade<br />
não tem aqui um significado político; é simplesmente<br />
a igualdade da liberdade acima definida: todos os<br />
homens são igualmente considerados como mônada<br />
fechada sobre si própria. A Constituição de 1795<br />
determina o sentido desta igualdade. Art. 5: “A igualdade<br />
consiste no fato de a lei ser a mesma para todos, quer<br />
proteja, quer puna”. E quanto à segurança? (...) A<br />
segurança é a mais elevada noção social da sociedade<br />
burguesa, a noção de polícia: a sociedade inteira só<br />
existe para garantir a cada um de seus membros a<br />
conservação de sua pessoa, dos seus direitos e das suas<br />
propriedades (MARX, 1978. p. 38-39).<br />
Se pensarmos na sociedade brasileira, a perceberemos<br />
como uma sociedade autoritária e hierarquizada em que<br />
os direitos das pessoas não existem. Não existem para a<br />
elite, porque ela não precisa, pois tem privilégios – do<br />
latim privilégium = “lei especial”, vantagem concedida a<br />
alguém com exclusão de outros e contra o direito comum<br />
– está acima de qualquer direito. Não existe para a<br />
grande massa da população que é pobre, desempregada e<br />
despossuída, pois suas tentativas de consegui-los são<br />
sempre encaradas como caso de polícia e tratadas com o<br />
rigor do aparato repressor do Estado quase onipotente.<br />
(CHAUÍ,1986)<br />
A extrema liberalidade com que é tratada a pequena elite<br />
corresponde à extrema repressão do povo, sobretudo<br />
quando os trabalhadores se organizam e lutam. Episódios<br />
recentes de nossa história revelam que nem mesmo a<br />
vida humana é encarada com alguma seriedade<br />
(BUFFA,2002, p. 28-9).<br />
A s O<br />
r igen s d a V iolê n cia<br />
A violência existe desde os tempos primordiais e<br />
assumiu novas formas à medida que o homem construiu<br />
as sociedades. Inicialmente foi entendida como<br />
agressividade instintiva, gerada pelo esforço do homem<br />
para sobreviver na natureza. A organização das primeiras<br />
comunidades e, principalmente, a organização de um<br />
modo de pensar coerente, que deu origem às culturas,<br />
gerou também a tentativa de um processo de controle da<br />
agressividade natural do homem.<br />
É no período em que se instauram os Estados modernos<br />
que se coloca, de modo mais radical, a pergunta sobre o<br />
que é o poder político, sua origem, natureza e<br />
significado, pergunta que traz consigo a reflexão sobre a<br />
violência, já que ela poderá ser utilizada como estratégia<br />
para a conquista e manutenção do poder, como afirma<br />
Maquiavel, em O Príncipe.<br />
Entre os séculos XVI e XVIII, alguns intelectuais, a<br />
partir de perspectivas diferentes, entre eles, Hobbes e<br />
Locke, afirmavam, basicamente, que tanto o Estado<br />
quanto a sociedade se organizaram a partir de pactos ou<br />
contratos firmados entre os indivíduos para regulamentar<br />
o convívio social, superar as tensões e conflitos e<br />
instaurar a ordem política.<br />
Para Hobbes os homens, em estado de natureza, são<br />
iguais quanto às faculdades do corpo (força) e do espírito<br />
(inteligência) e quanto às esperanças de atingir seus fins,<br />
podendo desejar todas as coisas. Os fins são,<br />
basicamente, a própria conservação e a sobrevivência,<br />
mas também podem ser apenas o deleite. Dominado por<br />
suas paixões, desconhecendo as intenções e desejos dos<br />
outros em relação a si próprio, o homem vive solitário,<br />
em guarda, pronto a defender-se ou a atacar; quando<br />
desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, os homens se<br />
tornam inimigos e lutam entre si em defesa de seus<br />
interesses pessoais. Nessas circunstâncias, a melhor<br />
garantia contra a insegurança é antecipar-se às possíveis<br />
atitudes do outro, subjugando-o pela força e pela astúcia<br />
e ampliando, assim, o domínio sobre os outros, até<br />
conseguir a supremacia. Pode-se entender bem isto no<br />
ditado popular que diz “a melhor defesa é o ataque”. O<br />
que se tem, então, é um ambiente de tensão permanente:<br />
enquanto não se criam mecanismos capazes de conter a<br />
força e equilibrar os desejos, os homens se encontram<br />
predispostos à luta, na condição de guerra de todos os<br />
homens contra todos os homens. Um conflito que não<br />
consiste unicamente na batalha, no enfrentamento<br />
ostensivo, mas numa atitude, tendência ou disposição<br />
35
constante para a luta. Enquanto não houver garantias<br />
para a convivência o homem é o lobo do homem.<br />
Hobbes acentua que, para evitar a destruição mútua e a<br />
situação de permanente insegurança e medo, os homens<br />
precisaram organizar-se em sociedade. Para tanto,<br />
renunciaram a seu direito a todas as coisas, à sua<br />
liberdade ilimitada, aceitando submeter-se a uma<br />
autoridade política. Na raiz do processo de formação<br />
social e política, portanto, estão a discórdia, o medo da<br />
morte, a desconfiança mútua, o desejo de paz e de uma<br />
vida confortável.<br />
A reflexão política de Locke, escrita nos Dois Tratados<br />
sobre o Governo Civil, apresenta-se como uma teoria que<br />
justifica a existência da propriedade privada como um<br />
direito natural, que não pode ser violado.<br />
E a principal finalidade de se constituir um Estado e de<br />
se organizar um governo é a preservação da propriedade,<br />
da qual, o cidadão somente poderá ser alienado mediante<br />
adequada indenização no valor de mercado da região e<br />
sob a constatação legal da necessidade pública.<br />
Com o trabalho, o homem transforma a terra e dela se<br />
apropria, assim como de outros bens. Com o surgimento<br />
e ampliação das relações de troca e o advento do<br />
dinheiro, criam-se as condições de acumulação ilimitada<br />
de propriedade e de desigualdade entre os homens – os<br />
proprietários cidadãos de um lado e os não cidadãos de<br />
outro. A propriedade se transforma, dada a sua<br />
importância no pensamento liberal burguês, na garantia<br />
de afeição à coisa pública, pois o proprietário está<br />
interessado em sua boa gestão. Ou como registra a<br />
Enciclopédia: “Todo homem que possui no Estado é<br />
interessado no bem do Estado”.<br />
A situação de risco e insegurança gerada pela falta de<br />
leis que estabeleçam o justo e o injusto e instaurem as<br />
condições para resolver as controvérsias causadas pela<br />
violação da propriedade leva os homens a se unirem. A<br />
instauração do Estado a partir do contrato social se faz<br />
com base no consentimento, para que o corpo político<br />
instituído exerça a função de garantir a vida, a liberdade<br />
e, principalmente, o direito natural à propriedade. As<br />
bases da teoria liberal estão assim colocadas.<br />
R elaç õ es en t r e V iolê n cia e P od er<br />
Nesse contexto, a violência define-se como uma ação<br />
que destrói ou modifica projetos com o uso da força, isto<br />
é, a violência caracteriza-se pela aplicação de<br />
procedimentos ostensivos ou ocultos que visam<br />
assegurar, moderar ou coibir uma ação do indivíduo ou<br />
grupo social.<br />
No âmbito das relações de poder, a força explícita nega a<br />
possibilidade de expressão da vontade individual ou<br />
coletiva por meio da palavra e do diálogo, além de<br />
sufocar os conflitos latentes que fundam a política.<br />
A violência isola os indivíduos, dissolve os grupos, gera<br />
mecanismos de controle, contribui para concentrar o<br />
poder. Aqui, poderíamos lançar mão da conhecida<br />
expressão “dividir para governar.”<br />
A instituição do Estado moderno veio acompanhada por<br />
reflexões profundas sobre a estrutura interna do poder.<br />
Maquiavel, foi um dos primeiros a refletir sobre o poder<br />
estruturado no conflito, a partir dos interesses opostos<br />
que se organizam na sociedade:<br />
Há em todos os governos duas fontes de oposição: os<br />
interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as<br />
leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião ...<br />
(...) Não se pode de forma alguma acusar de desordem<br />
uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois<br />
os bons exemplos nascem da boa educação, a boa<br />
educação das boas leis e estas da desordem que quase<br />
todos condenam irrefletidamente. (MAQUIAVEL, 1982,<br />
p. 31)<br />
A partir de Maquiavel, a violência distingue-se do<br />
conflito, que está na raiz das relações de poder: a<br />
violência é entendida como o uso da força bruta,<br />
enquanto o conflito ou o dissenso, gerados pelo<br />
antagonismo de classes, são salutares na política e<br />
precisam ser reconhecidos por seus efeitos benéficos já<br />
que, do confronto e da desunião, nascem as boas leis. O<br />
bom governante é aquele que reconhece a realidade do<br />
conflito e busca o equilíbrio das forças em luta,<br />
organizando a ordem social e política.<br />
No escrito de Maquiavel fica clara a diferença entre o<br />
dissenso, a partir do qual se produzem as leis, e a<br />
violência, caracterizada como a força que reprime e<br />
emudece. Enquanto o dissenso pressupõe o respeito às<br />
diferenças e, como tal, é o meio de expressão de novas<br />
ideias e de construção do espaço público, a força bruta<br />
anula o outro e se impõe como a única verdade.<br />
Maquiavel, porém, não descarta a violência como<br />
estratégia para a conquista e manutenção do poder, basta<br />
lembrar seus escritos sobre Cesar Bórgia ou Castruccio<br />
Castracani.<br />
45
Na modernidade, a violência integra-se à natureza do<br />
poder na forma institucionalizada do Estado. Hegel<br />
acentuou o duplo movimento pelo qual a contradição<br />
move a história que, enquanto processo, constitui-se no<br />
esforço em superar ou mesmo eliminar a violência. No<br />
âmbito político, é no sentido de controlar a violência que<br />
o Estado e o direito atuam: se uma violência pode ser<br />
anulada com outra violência, a força exercida no<br />
contexto jurídico legitima-se. A questão posta por Hegel<br />
assume novas formas no pensamento moderno e a teoria<br />
de Marx, ainda entendendo a violência como motor da<br />
história, acentua que o caráter violento das relações<br />
políticas resulta de uma violência mais radical, que dá<br />
origem a muitas outras formas de violência na sociedade<br />
e caracteriza-se pela exploração do homem e sua<br />
transformação em mercadoria.<br />
Amplia-se, assim, o significado da violência e novas<br />
dimensões do conceito integram-se às antigas: pode-se<br />
entender por violência, ao lado de guerras, de genocídios,<br />
de torturas, de intolerâncias raciais e culturais e outros<br />
meios utilizados nas fundações de novos Estados no<br />
curso da história, também a miséria, a humilhação, o<br />
desrespeito aos idosos – já que não produzem mais – e às<br />
crianças, a fome, as injustiças sociais e todas as ações<br />
que, na sociedade capitalista, retiram do homem a sua<br />
dignidade e o reduz à coisa. À medida que o homem<br />
deixa de ser considerado como homem e seu valor reduzse<br />
ao valor da sua força de trabalho, as guerras também<br />
assumem novas dimensões e significados: na sociedade<br />
capitalista, não são as perdas humanas que contam, mas<br />
os interesses específicos da indústria bélica; o lucro<br />
econômico e a renovação tecnológica gerada no curso<br />
dos conflitos. Na sociedade capitalista a violência é parte<br />
integrante da estrutura social e delimita a vida dos<br />
indivíduos. O ato de destruição do outro em sua<br />
constituição física e moral determina os limites de<br />
sociabilidade nos quais se integra a violência em todos os<br />
sentidos. Na perspectiva do marxismo, a violência<br />
implícita nas relações sociais e políticas, geradas a partir<br />
dos antagonismos de classes, de raiz econômica, só pode<br />
ser cancelada ou superada por meio da revolução. As<br />
classes trabalhadoras, organizadas em sindicatos,<br />
partidos e outras instituições, teriam o grande objetivo de<br />
romper com todas as formas de dominação e lançar as<br />
bases de uma nova ordem social e política.<br />
A organização dos trabalhadores no curso da história do<br />
marxismo, mostra, precisamente, o significado da<br />
violência revolucionária e a sua necessidade ante uma<br />
situação social que tem a violência inscrita em seu<br />
interior, como seu fundamento.<br />
5
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1973.<br />
65
O E ST A D O M O D E R N O E A Q U E ST Ã O D E M O C R Á T I C A<br />
P or Jairo Marçal Professor no Ensino Público em<br />
Curitiba, Paraná.<br />
Comecemos com uma constatação: as sociedades com<br />
regimes democráticos são exceções na história da<br />
humanidade. Por mais que sejamos suficientemente<br />
tolerantes quanto ao conceito de democracia, é preciso<br />
reconhecer que da sua invenção, por volta do século V<br />
a.C. em Atenas, até o século XIX, é possível contar nos<br />
dedos os períodos e os lugares onde ela existiu.<br />
Por outro lado, é necessário reconhecer que a partir do<br />
século XX a democracia propagou-se em escala mundial,<br />
e são vistos com muita estranheza os países com práticas<br />
políticas e regimes de governo não democráticos.<br />
Em contrapartida, não se pode deixar de considerar um<br />
aspecto fundamental para a nossa investigação: o que<br />
entendemos e aceitamos como democracia hoje pouco<br />
tem a ver com a democracia inventada e praticada pelos<br />
atenienses da Antiguidade.<br />
Nosso objetivo é examinar alguns aspectos que<br />
acreditamos ser essenciais nas principais concepções<br />
modernas e contemporâneas de democracia (concepção<br />
liberal; a crítica de Marx e a concepção republicana),<br />
assumindo como pressuposto o fato de que a concepção<br />
liberal é hegemônica em nossos dias.<br />
Mas, por que o individualismo pode ser um problema<br />
para a constituição de uma sociedade democrática? Não<br />
seria, o individualismo, a grande marca da modernidade?<br />
Não seria pela via da absoluta autonomia do indivíduo<br />
que poderíamos alcançar a liberdade política?<br />
Para responder estas questões, é necessário colocar a<br />
democracia contemporânea sob análise e, nesse exercício<br />
de pensamento, tornar possível a construção de outros<br />
sentidos que possam superar aqueles que o senso comum<br />
nos oferece de imediato, geralmente derivados da<br />
aceitação tácita de uma democracia meramente formal ou<br />
mesmo de uma espécie de niilismo político, ambos<br />
caracterizados como sucedâneos fraudulentos do ideal<br />
democrático.<br />
M od er n id ad e e I n d iv id u alism o<br />
A modernidade tem como um dos seus fundamentos, a<br />
criação do conceito e da própria experiência do<br />
individualismo. É na modernidade que, inusitadamente, o<br />
indivíduo começa a elaborar, de forma consciente, um<br />
projeto para a sua autonomia, fundamentado na razão e<br />
que passa a efetivar-se não apenas no plano das ideias,<br />
mas também das realizações concretas.<br />
Não é possível compreender a política, o Estado e a ideia<br />
de cidadania moderna sem considerar o projeto burguês<br />
da autonomia do indivíduo. A racionalidade nascida no<br />
final do século XVII, se estendeu pelos domínios da<br />
filosofia, da arte, das ciências, da tecnologia e da<br />
indústria, desenvolvendo um imaginário e uma realidade<br />
na qual indivíduo se apresenta como capaz, pelo direito<br />
natural, de constituir a humanidade<br />
por meio do trabalho. Esse trabalho foi vinculado pelos<br />
ideólogos burgueses à conquista da propriedade privada<br />
e está na base do capitalismo moderno.<br />
É este o panorama da criação da ideia de liberdade<br />
individual moderna, sobre o qual se edifica a ideia liberal<br />
de democracia e cidadania.<br />
Vejamos como o filósofo brasileiro Gerd Bornheim<br />
analisa a relação entre a modernidade e o individualismo:<br />
Portanto, o individualismo, construído com uma lucidez<br />
inusitada, se configura como ponto de partida das<br />
modernas revoluções. Acontece que esse mesmo<br />
individualismo desencadearia também o drama maior da<br />
modernidade. Realmente a soberania do indivíduo<br />
começa a tropeçar de imediato com suas próprias<br />
fronteiras. A questão que logo se coloca está toda nesta<br />
pergunta: se a autoafirmação do indivíduo se torna tão<br />
soberana quanto autônoma, cabe perguntar pelos limites<br />
dessa nova situação; até que ponto se faz de fato<br />
tolerável essa expansão do indivíduo, que até passa a<br />
equacionar a si próprio simplesmente em termos de<br />
universo: o homem – quer se garantir agora – reflete em<br />
seu próprio corpo as proporções do cosmo. Entrementes,<br />
ocorre, por aí, que se marginaliza esse outro problema<br />
não menos essencial: se há uma matemática proporção<br />
entre o cosmo e o indivíduo, qual seria a proporção entre<br />
esse mesmo cosmo e a sociedade que congrega<br />
indivíduos? Cabe dizer, pois, que o individualismo<br />
termina por desentender-se no tema maior de suas<br />
75
próprias limitações. Como consegue o indivíduo,<br />
finalmente alçado à sua própria excelência, fazer de si<br />
mesmo uma realidade social? E esta pergunta configura<br />
as bases que perpassam todas as crises sociais dos<br />
tempos modernos. (BORNHEIM, 2003. p.213)<br />
A C on cep ç ã o L ib er al d e P olí t ica<br />
O liberalismo é uma corrente que tem sua aparição<br />
efetiva no cenário do pensamento político por volta do<br />
século XIX, ainda que existam traços das suas teses<br />
fundamentais antes desse período. O liberalismo é<br />
definido como um projeto que busca conceber e justificar<br />
o Estado de forma leiga (não religiosa), que defende as<br />
limitações dos poderes<br />
dos governos, visando a proteção dos direitos dos<br />
membros da sociedade. Outra característica forte do<br />
liberalismo, e para alguns autores a mais determinante, é<br />
que ele constitui “pura e simplesmente a expressão<br />
segundo a qual o poder do Estado deve ser<br />
sistematicamente limitado”. (PETTIT, 2003) De acordo<br />
com este último sentido, os liberais afirmam que a<br />
verdadeira liberdade depende da menor interferência<br />
possível do Estado e das leis. Essa concepção ficou<br />
conhecida como liberdade negativa, ou seja, só há<br />
liberdade na ausência de interferência.<br />
J oh n L ock e e A d am Sm it h : A P r op r ied ad e P r iv ad a<br />
com o Fu n d am en t o d a L ib er d ad e<br />
Locke é um dos precursores do liberalismo e<br />
compreende a propriedade privada como um direito<br />
natural do homem, assim como o direito à vida e à<br />
própria liberdade. Ele estabelece um vínculo entre a<br />
liberdade, a propriedade privada e o trabalho. Para que a<br />
liberdade e a vida sejam preservadas, é necessária a<br />
produção de bens, os quais são conquistados pelo<br />
trabalho.<br />
A lógica da explicação da propriedade privada é a<br />
seguinte: Se Deus criou o mundo pelo seu trabalho, este<br />
mundo lhe pertence. Ora, o homem, criado à semelhança<br />
de Deus, também trabalha e, pelo trabalho, naturalmente<br />
conquista sua propriedade. Locke, portanto, nega<br />
qualquer intervenção pública no sentido de busca da<br />
igualdade de direitos sociais.<br />
Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam<br />
comuns a todos os homens, cada homem tem uma<br />
propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem<br />
direito algum além dele mesmo. O trabalho do seu corpo<br />
e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente<br />
dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com<br />
que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com seu<br />
trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em<br />
sua propriedade. Sendo por ele retirada do estado comum<br />
em que a natureza a deixou, a ela agregou, com esse<br />
trabalho, algo que a exclui do direito comum dos demais<br />
homens. Por ser esse trabalho propriedade<br />
inquestionável do trabalhador, homem nenhum além dele<br />
pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado,<br />
pelo menos enquanto houver bastante e de igual<br />
qualidade deixada em comum para os demais. (LOCKE,<br />
Dois Tratados sobre Governo. p. 407- 409)<br />
Ainda na linha interpretativa do individualismo, o<br />
economista escocês Adam Smith, reconhecidamente um<br />
dos nomes mais importantes do liberalismo econômico<br />
clássico, cujo pensamento se apresenta como uma<br />
tentativa de articulação entre a teoria e a prática, defende<br />
que as instituições sociais são resultantes das ações<br />
humanas decorrentes de interesses individuais e não de<br />
uma ética do interesse comum.<br />
Smith defende a liberdade irrestrita do comércio, como<br />
fator de desenvolvimento e de geração de riqueza das<br />
nações e, para tal, não deveria haver qualquer<br />
intervenção do Estado. O que Smith propõe é a<br />
emancipação da economia em relação às demais esferas<br />
da sociedade, sobretudo a política. A economia se torna<br />
dimensão de referência da realidade, a qual as demais<br />
dimensões estariam subordinadas e, na condição de<br />
fundamento da prosperidade e das transformações, livre<br />
–, se autorregularia<br />
através das dinâmicas próprias do seu funcionamento. O<br />
controle se exerce basicamente pelo sistema de livre<br />
concorrência e pela lei da oferta e da procura,<br />
denominada “a mão invisível” do mercado.<br />
A defesa da não interferência do Estado na economia, a<br />
divisão social do trabalho e a mecanização da indústria,<br />
principais elementos do liberalismo econômico, são, em<br />
larga medida os responsáveis pelo desenvolvimento<br />
econômico de países e das classes proprietárias da<br />
Europa ocidental a partir do século XIX. Porém, em<br />
nome de algumas liberdades particularizadas, o<br />
liberalismo econômico gerou contradições sociais, níveis<br />
de miséria e exploração humana sem precedentes. Mas,<br />
questões nucleares referentes à relação entre o capital e o<br />
trabalho quase sempre foram evitadas ou tangenciadas e<br />
mitificadas pelo pensamento liberal, do jusnaturalismo e<br />
85
da moralidade cristã de Locke ao racionalismo<br />
mercadológico de Smith e de Ricardo.<br />
B en j am<br />
in C on st an t : D u as C on cep ç õ es d e L ib er d ad e<br />
O pensador e político franco-suíço, Benjamin Constant<br />
captou e demonstrou com perspicácia a essência da<br />
modernidade, no que se refere à política, às relações<br />
entre o indivíduo e seus interesses particulares e suas<br />
relações com a sociedade. O desenvolvimento da<br />
subjetividade moderna representou avanços e conquistas<br />
importantes não vivenciados pelos gregos e romanos da<br />
Antiguidade Clássica, e isso Constant compreendeu<br />
muito bem, sobretudo quando buscou demonstrar que o<br />
sistema representativo garantia níveis de controle do<br />
povo com relação ao governo, sem com isso demandar<br />
excessivamente a sociedade, retirando dela a sua<br />
liberdade individual. Para Constant, “os povos antigos<br />
não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as<br />
vantagens desse sistema. A organização social desses<br />
povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente<br />
da que este sistema nos assegura”. (CONSTANT, De la<br />
liberte chez lês modernes. p. 495.)<br />
Se gregos e romanos, por caminhos distintos inventaram<br />
a esfera pública e conseguiram torná-la em maior ou<br />
menor escala um bem participável, no âmbito da vida<br />
privada o despotismo continuou sendo a forma de poder<br />
determinante em ambas culturas. Preservadas as<br />
diferenças, é possível dizer que, tanto para os gregos<br />
como para os romanos, a liberdade correspondia à<br />
participação na vida pública e à vida no domínio privado,<br />
fosse doméstica ou relacionada às atividades<br />
econômicas, estava necessariamente subordinada à vida<br />
política. Em contrapartida, a marca da liberdade moderna<br />
se configura, segundo Constant, enquanto exercício de<br />
prerrogativas privadas.<br />
Vamos apresentar as duas concepções clássicas de<br />
liberdade nas palavras de Benjamin Constant:<br />
L ib er d ad e d os an t igos:<br />
Consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias<br />
partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública<br />
sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros<br />
tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar<br />
julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão<br />
dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo<br />
um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em<br />
absolvê-los; mas, ao mesmo tempo em que consistia<br />
nisso o que os antigos chamavam liberdade, eles<br />
admitiam, como compatível com ela, a submissão<br />
completa do indivíduo à autoridade do todo. Não<br />
encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que<br />
vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas<br />
as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância.<br />
L ib er d ad e d os m<br />
od er n os:<br />
É para cada um o direito de não se submeter senão às<br />
leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado,<br />
nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da<br />
vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para<br />
cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu<br />
trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até<br />
de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e<br />
sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus<br />
passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros<br />
indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja<br />
para professar o culto que ele e seus associados<br />
preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e<br />
suas horas de maneira mais condizente com suas<br />
inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para<br />
cada um, de influir sobre a administração do governo,<br />
seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários,<br />
seja por representações, petições, reivindicações, às quais<br />
a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em<br />
consideração. (CONSTANT, De la liberte chez lês<br />
modernes. p. 495.)<br />
Montesquieu, em O espírito das leis, tenta demonstrar<br />
que regimes políticos como a democracia grega e a res<br />
publica romana, vão contra a natureza individualista<br />
humana e, portanto, somente através de um processo de<br />
educação cívica intensiva e contínua é que poderiam se<br />
tornar viáveis. Em contrapartida, ele sustenta que o<br />
homem moderno não estaria disposto a pagar esse preço<br />
para conquistar a liberdade política e por isso a<br />
monarquia constitucional seria a solução mais plausível,<br />
uma vez que não exige a virtude e tampouco a<br />
participação dos súditos na construção da esfera pública,<br />
mas limita os poderes do rei.<br />
J oh n St u ar t M ill: u m lib er al q u e d ialogav a com o<br />
socialism o<br />
Entre os liberais do século XIX, John Stuart Mill talvez<br />
tenha sido o único disposto a reconhecer e superar os<br />
95
06<br />
limites do individualismo e do utilitarismo. Mill<br />
apresenta características libertárias em sua concepção de<br />
sociedade, particularmente em sua crítica da tirania e das<br />
desigualdades, e não apenas no que se refere às<br />
desigualdades sociais, mas também quanto às<br />
desigualdades políticas, na defesa do sufrágio universal<br />
contra o voto censitário, no apoio ao cooperativismo,<br />
além de ter sido um dos pioneiros na defesa da<br />
emancipação da mulher.<br />
Sabe-se que Mill leu autores socialistas ingleses, como<br />
Owen e franceses como Fourier, Blanc e Saint-Simon e<br />
esteve aberto ao diálogo com as correntes que se<br />
opunham ao liberalismo e reivindicavam direitos sociais.<br />
No entanto, manteve-se fiel à defesa das liberdades<br />
individuais e ao princípio liberal da liberdade negativa,<br />
expresso na introdução de Sobre a liberdade.<br />
O U t ilit ar ism o d e M ill<br />
O liberalismo de John Stuart Mill tem no seu fundamento<br />
a moral utilitarista, para a qual a busca da felicidade está<br />
ligada à realização de formas elevadas de prazer –<br />
necessidades, desejos e interesses, e que não se reduz,<br />
portanto, às formas de prazer imanentes à vida animal.<br />
Para o utilitarismo, uma ação moral é considerada correta<br />
e útil se proporciona felicidade e incorreta e inútil se,<br />
pela ausência de prazer, ocasiona a infelicidade.<br />
Interessa-nos aqui, a forma como Mill equaciona seu<br />
utilitarismo individualista com a questão da sociabilidade<br />
necessária, que é para ele a referência mais importante<br />
para os níveis de felicidade individual.<br />
Considerando que a felicidade individual está<br />
relacionada à sociabilidade, à justiça, enquanto criação e<br />
proteção de direitos, ela configura-se, para Mill, na mais<br />
importante das virtudes e, para que ela se realize, é<br />
fundamental que haja igualdade, desde que essa se<br />
demonstre útil para a vida em sociedade. A esse respeito,<br />
Mill considera que:<br />
Todas as pessoas têm direito à igualdade de tratamento, a<br />
menos que alguma conveniência social reconhecida exija<br />
o contrário. Daí se segue que todas as desigualdades<br />
sociais, que tenham deixado de se considerar<br />
convenientes, assumam daqui por diante o caráter, não<br />
de mera inconveniência, mas de injustiça, e se mostrem<br />
tão tirânicas que as pessoas cheguem a se perguntar<br />
como foi possível algum dia suportá-las. (MILL, J.S. A<br />
liberdade. p. 275)<br />
A C r í t ica d e M ar x ao L ib er alism o<br />
Karl Marx (1818-1883), nos seus famosos escritos da<br />
juventude argumenta que a sociedade moderna, sob o<br />
domínio das forças cegas da religião, da economia e da<br />
política, move-se pela roda da fortuna, ao sabor do acaso<br />
e não pela intervenção virtuosa, que deveria ser o<br />
atributo maior do homem político. Esse processo faz<br />
parte da alienação do homem em relação a si mesmo, em<br />
relação ao seu trabalho e através dele, bem como em<br />
relação à vida política.<br />
Para o jovem Marx, o capitalismo, sendo uma doutrina<br />
da defesa dos interesses particulares e do individualismo<br />
egoísta, em detrimento dos interesses públicos, será visto<br />
como uma constante ameaça à dignidade humana.<br />
O Estado de direito burguês, na medida em que<br />
representa apenas os interesses de uma parcela da<br />
população, exercendo uma ação policial de controle<br />
sobre as demais classes da sociedade, é contra o bem<br />
comum, é uma ameaça às liberdades democráticas.<br />
O jovem Marx, dos primeiros escritos, entende que a<br />
verdadeira democracia só poderia nascer sobre os<br />
escombros desse Estado que não está a serviço do bem<br />
comum. Assim, se o individualismo egoísta é o espaço<br />
consagrado à fortuna, ao deixar fazer, à mão invisível do<br />
mercado, a virtude política proporcionada por uma<br />
democracia radical seria seu único antídoto. Ainda na<br />
juventude Marx defenderá que a reintegração do homem<br />
a si mesmo se daria através de um processo de superação<br />
que implicaria na abolição da propriedade privada e na<br />
instalação do comunismo.<br />
Sob r e M ar x e o M ar x ism o<br />
Marx, ao perceber que já contava com alguns seguidores<br />
de tendências dogmáticas, que começavam a cristalizar e<br />
divinizar o seu pensamento e fazer da sua filosofia uma<br />
espécie de religião, portanto, pouco afeitos à dialética,<br />
ironizou ao seu melhor estilo, que se aquelas pessoas<br />
eram marxistas, então ele próprio não era marxista.
Mas afinal, o que é o marxismo? É comum observarmos<br />
utilizações indiscriminadas do termo marxismo, de forma<br />
que tais utilizações, intencionais ou não, edificantes ou<br />
pejorativas, acabam tornando-se fontes de preconceitos,<br />
mitos e confusões que criam dificuldades adicionais e<br />
comprometedoras no estudo da obra de Marx. Contra<br />
esse contexto, o filósofo francês Michel Henry escreveu,<br />
com ironia, sobre a necessidade de uma leitura<br />
revolucionária de Marx, no sentido da superação da<br />
ignorância de sua obra e em busca de realidades<br />
perdidas, chegando a afirmar que “o marxismo é o<br />
conjunto dos contrassensos sobre Marx” (HENRY, M.<br />
1976, p. 9).<br />
Para evitarmos confusões acerca do termo m ar x ism o,<br />
vamos compreender um pouco da sua amplitude e<br />
complexidade:<br />
Entendeu-se por “marxismo”:<br />
(I) O pensamento de Marx, seja tomado em seu conjunto,<br />
ou sob o aspecto de sua evolução total, ou visando<br />
principalmente alguma de suas “fases”. Este pensamento<br />
inclui um método, uma série de pressupostos, um<br />
conjunto de ideias de tipos muito diversos e numerosas<br />
regras de aplicação, tanto teóricas como práticas;<br />
(II) Um grupo de doutrinas filosóficas, sociais,<br />
econômicas, políticas, etc. fundadas numa interpretação<br />
do marxismo e tendendo à sua sistematização. Este grupo<br />
de doutrinas tomou forma definida em Engels e foi<br />
transformado por Lênin, dando origem mais tarde ao<br />
chamado “marxismo ortodoxo”;<br />
(III) Uma variadíssima série de interpretações,<br />
procedentes de diversas épocas e formadas segundo<br />
tradições, temperamentos, circunstâncias históricas<br />
distintos etc. Podem ser incluídas neste item as<br />
interpretações de Marx que não se cristalizaram na forma<br />
mais ou menos monolítica que o marxismo adotou<br />
depois de Lênin na União Soviética; as interpretações de<br />
Marx que proliferaram uma vez rompido o marxismo<br />
ortodoxo antes citado; as que receberam o nome de<br />
“marxismo ocidental”; a prática do marxismo no<br />
pensamento de Mao-Tsé-Tung; as tentativas de<br />
revivificação do marxismo com base no retorno às fontes<br />
etc. Em alguns casos foram denominados “marxismo” os<br />
métodos, doutrinas e ideais políticos adotados em vários<br />
países e por numerosos grupos na época da luta contra o<br />
imperialismo e o colonialismo, tendo-se inclusive dado o<br />
nome de “marxismo” a todo programa político<br />
revolucionário. Evidentemente, recorreu-se ao marxismo<br />
de modo tão indiscriminado que com frequência o termo<br />
‘marxismo’ perdeu seu significado. Entretanto, não há<br />
dúvida de que o marxismo é um rio caudaloso, ao mesmo<br />
tempo ideológico e prático, capaz de diversificar-se de<br />
forma considerável e de suscitar constantes<br />
renascimentos e revivificações. Dicionário de <strong>Filosofia</strong><br />
Ferrater Mora, tomo III. pág. 1879 -1880.<br />
M ar x e a E m an cip aç ã o H u m an a<br />
Considerando as formas de alienação e dominação<br />
religiosa, política e econômica, pode-se dizer que a<br />
questão nuclear da filosofia política do Marx é a<br />
emancipação humana e que a consolidação dessa matriz<br />
do seu pensamento se dá através de uma <br />
exigência de que tal busca aconteça, concomitantemente,<br />
no plano das criações conceituais e da ação política<br />
transformadora.<br />
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx expressa<br />
com clareza a sua idéia de que a emancipação humana se<br />
daria pelo reencontro do homem com ele mesmo. A<br />
superação da alienação passa, necessariamente, pelo<br />
rompimento dos elos de dominação do sistema<br />
capitalista, da propriedade privada e pela instalação do<br />
comunismo. “O comunismo é a supra-sunção<br />
(Aufhebung) positiva da propriedade privada, enquanto<br />
estranhamento-de-si (Selbstentfremdung) humano, e por<br />
isso enquanto apropriação efetiva da essência humana<br />
pelo e para o homem”. (MARX, K. Manuscritos<br />
econômico-filosóficos. p.105)<br />
A questão de Marx é que a alienação produzida pela<br />
propriedade privada na ideologia e nas formas de<br />
dominação do capitalismo separa o homem, enquanto<br />
indivíduo, da sua condição e consciência genérica e,<br />
portanto, da sua capacidade de construir uma vida<br />
política. Ora, sem a ação política, a liberdade individual<br />
torna-se uma impossibilidade ou, no máximo, toma a<br />
forma de uma ilusão.<br />
A emancipação só pode ser concebida em termos da<br />
conquista da igualdade. Nesse sentido, a liberdade<br />
política significa poder político do povo, em sua<br />
oposição ao poder do Estado de direito burguês.<br />
Marx faz a crítica ao Estado, sobretudo no que se refere<br />
ao formalismo jurídico. A igualdade é garantida na lei,<br />
mas a lei não se efetiva na prática. A objeção de Marx é<br />
que esse formalismo estatal que se apresenta, aliás, como<br />
meio de emancipação política, não passa de uma ilusão,<br />
16
26<br />
porque mantém o indivíduo alienado, porque não<br />
promove a esfera realmente pública e a cidadania.<br />
Vejamos como Marx define a questão da emancipação<br />
humana numa passagem famosa em A questão judaica:<br />
Toda emancipação constitui uma restituição do mundo<br />
humano e das relações humanas ao próprio homem.<br />
A emancipação política é a redução do homem, por um<br />
lado, o membro da sociedade civil, indivíduo<br />
independente e egoísta e, por outro lado, o cidadão, a<br />
pessoa moral.<br />
A emancipação humana só será plena quando o homem<br />
real e individual tiver em si o cidadão abstrato; quando<br />
como homem individual, na sua vida empírica, no<br />
trabalho e nas relações individuais, se tiver tornado um<br />
ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as<br />
suas próprias forças (forces propres) como forças<br />
sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força<br />
social como força política. (MARX, K. A questão<br />
judaica. p. 63)<br />
Feu er b ach e o C on ceit o d e A lien aç ã o<br />
A grande contribuição de Feuerbach à filosofia política, e<br />
particularmente a Marx, foi a sua teoria da alienação,<br />
construída a partir de uma crítica à religião cristã. Para<br />
compreender melhor esta questão, é importante que<br />
algumas passagens de sua obra sejam apresentadas e<br />
analisadas.<br />
A Essência do Cristianismo é uma crítica consistente,<br />
mas que não se pretende e não se constitui como uma<br />
desautorização da ideia do sagrado. Ao contrário, a<br />
estratégia feuerbachiana foi potencializar a ideia do<br />
sagrado e do religioso, com o objetivo de promover a<br />
substituição de Deus pelo homem, o que pode ser<br />
considerada uma tentativa extremamente ousada para a<br />
Alemanha protestante do século XIX.<br />
Segundo Feuerbach o verdadeiro fundamento do homem<br />
é apenas ele mesmo. Assim, o único fundamento<br />
absoluto de todo o pensamento humano é o homem como<br />
razão, como vontade, como coração.<br />
Neste sentido, ele argumenta que Deus é o homem que<br />
alienou a sua consciência e, portanto, a superação dessa<br />
condição de dominação tem como pressuposto a tomada<br />
de consciência da sua própria condição humana.<br />
O processo de alienação do homem é explicado por<br />
Feuerbach através de uma dialética da alienação. Na<br />
concepção feuerbachiana, o homem, ainda que através de<br />
modestas reflexões, é capaz de reconhecer em si mesmo<br />
a razão, a vontade e o coração e, mesmo reconhecendo<br />
sua incapacidade de ser perfeito nestas faculdades, sabe<br />
bem o que significam a perfeição da razão, da vontade e<br />
do coração, ao menos em termos de potencialidade. Nas<br />
palavras de Feuerbach, “a essência divina, pura, perfeita,<br />
sem defeitos é a consciência de si do entendimento, a<br />
consciência que o entendimento tem da sua própria<br />
perfeição.” (FEUERBACH, A essência do Cristianismo.<br />
p.42)<br />
Não podendo atingir a perfeição absoluta, mas<br />
desejando-a profundamente, o homem cria a<br />
representação da perfeição em um ser Absoluto Deus,<br />
que passa a ser potencialmente a única possibilidade de<br />
realização dos seus sonhos de perfeição inatingíveis.<br />
Para Feuerbach, “o pensamento do ser absolutamente<br />
perfeito deixa o homem frio e vazio, porque ele sente e<br />
apercebe-se do fosso entre si e esse ser, isto é, contradiz<br />
o coração humano.”(Ibid. p. 49) A essência e o potencial<br />
<br />
passam a ser domínios de um imaginário divinizado e<br />
exterior ao homem.<br />
Enfraquecido o homem, a religião se constitui num meio,<br />
através do qual ele pode projetar a realização dos seus<br />
sonhos de liberdade na totalidade absoluta de Deus.<br />
Como diz Feuerbach, “na religião, o homem quer<br />
satisfazer-se em Deus.”(Ibid.,45) No entanto, o preço<br />
dessa conquista se revela na cisão entre o homem e a sua<br />
consciência de si, a alienação da sua essência humana.<br />
Para Feuerbach o Deus do cristianismo, do qual o<br />
homem é servidor, tem sua origem na própria<br />
consciência humana. A essência de Deus é, portanto, o<br />
próprio homem. Logo, se Deus é a divindade e a essência<br />
da liberdade absoluta, só o é porque o homem também é<br />
divino e livre, ou porque pretende sê-lo. Na medida em<br />
que a liberdade e a perfeição são valores humanos e as<br />
esperanças depositadas na religião não se traduzem em<br />
conquistas concretas na direção desses objetivos, a<br />
decepção afasta o homem da crença religiosa e abre<br />
espaço para outras possibilidades, como a vida política.<br />
A lien aç ã o e C r í t ica ao E st ad o d e D ir eit o B u r gu ê s n o<br />
J ov em M ar x<br />
O trabalho alienado faz parte de um processo de<br />
dominação imposto aos sujeitos, indivíduos, que passam<br />
a ser tratados apenas como meios para a realização alheia<br />
e não como fins em si, são tratados como instrumentos e
não como pessoas e, por fim, são desapropriados da sua<br />
produção.<br />
“O trabalho alienado faz parte de um processo de<br />
dominação imposto aos sujeitos, indivíduos, que passam<br />
a ser tratados apenas como meios para a realização alheia<br />
e não como fins em si, são tratados com instrumentos e<br />
não como pessoas e, por fim, são” a objeção de Marx ao<br />
Estado de direito burguês, a um certo republicanismo<br />
formalista, parte da sua conclusão de que a sociedade<br />
civil não pode sustentar-se num Estado que se estrutura<br />
na alienação ou que apenas reivindica a ideia de<br />
liberdade, mas sem interesse ou condições de efetivá-la.<br />
E, se há interesse na constituição de um universal de<br />
emancipação e liberdade, ele se dissolve nos<br />
particularismos do modo de produção capitalista. Por<br />
isso, a realização da liberdade, para além do formalismo<br />
jurídico, só pode realizar-se se a esfera de produção<br />
estiver sujeita ao controle daqueles que produzem. Esse<br />
seria, segundo Marx, o primeiro passo para a conquista<br />
da emancipação.<br />
Um ser só se considera primeiramente como<br />
independente tão logo se sustente sobre os próprios pés,<br />
e só se sustenta primeiramente sobre os próprios pés tão<br />
logo deva sua existência a si mesmo. Um homem que<br />
vive dos favores de outro se considera como um ser<br />
dependente. Mas eu vivo completamente dos favores de<br />
outro quando lhes devo não apenas a manutenção da<br />
minha vida, mas quando ele, além disso, ainda criou a<br />
minha vida; quando ele é a fonte da minha vida, e minha<br />
vida tem necessariamente um tal fundamento fora de si<br />
quando ela não é minha própria criação. A criação é,<br />
portanto, uma representação (Vorstellung) muito difícil<br />
de ser eliminada da consciência do povo. O ser-por-simesmo<br />
(Durchsichselbstsein) da natureza e do homem é<br />
inconcebível para ele porque contradiz todas as<br />
probabilidades da vida prática. (MARX, K. Manuscritos<br />
econômico-filosóficos. p.113)<br />
Nesse sentido, Marx só concebe a possibilidade da<br />
existência de uma ética a partir da superação do<br />
individualismo egoísta e possessivo, a partir da<br />
superação da dicotomia entre indivíduo (burguês) e o<br />
cidadão que permite ora a dominação das forças egoístas<br />
da sociedade civil que isolam o indivíduo da sua essência<br />
comunitária, ora a dominação de uma entidade abstrata –<br />
o Estado -, desvinculada da vida real dos homens. Em<br />
ambas situações, ocorre a negação da liberdade no<br />
sentido republicano. Portanto, a política marxiana<br />
pressupõe a existência efetiva da res publica.<br />
Nos jogos de dominação, busca-se confundir o<br />
desenvolvimento de um pensamento político e de uma<br />
ação cidadã, que devem ser constituídos a partir de<br />
mediações questionadoras e valores éticos, com a<br />
simples retórica vazia, ou com a mera assimilação e<br />
reprodução de uma competência discursiva,<br />
supostamente democrática, mas cujo objetivo é tão<br />
somente a dominação e, portanto, a supressão das<br />
liberdades.<br />
Para alguns autores, o problema de Marx é a<br />
desconsideração do papel do Estado como um meio de<br />
constituição e promoção da liberdade. Mas, será que<br />
Marx, definitivamente, desconsidera o papel do Estado,<br />
ou estaria ele deslocando o eixo do político para além<br />
dos limites do Estado formal – pensando na politização<br />
da sociedade civil, exercendo a soberania do Estado, para<br />
então constituir um Estado verdadeiramente<br />
democrático?<br />
R ep u b lican ism o e a L ib er d ad e an t es d o L ib er alism o<br />
O republicanismo é uma corrente bem mais antiga que o<br />
liberalismo, e tem a sua origem na Roma antiga, ligada<br />
fundamentalmente ao nome de Cícero (106-43 a.C.),<br />
autor de Da República. Mais tarde, passada toda a Idade<br />
Média, ele ressurge na Itália renascentista e seu mais<br />
destacado nome é Maquiavel (1469-1527), que escreveu<br />
dentre outras obras, o famoso Príncipe e Discursos sobre<br />
a primeira década de Tito Lívio e cujo pensamento e<br />
trabalho teve grande influência na constituição das<br />
repúblicas do norte da Itália. Pode-se dizer que o<br />
republicanismo dominou a cena política europeia até o<br />
século XVIII, quando surgiu o liberalismo com a<br />
promessa de estar mais bem adaptado às características e<br />
necessidades do mundo moderno.<br />
As principais características do republicanismo estão<br />
ligadas à própria definição da res publica o regime da<br />
coisa pública, do bem público que se sobrepõe aos<br />
interesses privados: é o regime da abnegação cívica; da<br />
racionalidade que prevalece sobre os desejos e afetos, da<br />
virtude que controla a fortuna, da ética na política, do<br />
<br />
<br />
eles mesmos criaram ou de alguma forma participaram;<br />
são essas leis que garantem a liberdade, porque limitam<br />
poderes; por fim, por se tratar de um regime da intensa<br />
participação dos cidadãos, requer uma educação laica,<br />
intensiva e extensiva.<br />
36
R E FE R Ê N C I A :<br />
BOBBIO, N.; VIROLI, M. D iá logo em t or n o d a R ep ú b lica : os grandes temas da política e da cidadania. Tradução de<br />
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Boitempo, 2004.<br />
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46
FI L O SO FI A C O N T E M P O R Â N E A<br />
A s p r in cip ias cor r en t es<br />
As principais correntes da <strong>Filosofia</strong> Contemporânea são<br />
esboçadas por Padovani; Castagnola (1970):<br />
1 ) O iluminismo representa uma síntese prática,<br />
divulgadora, de empirismo e racionalismo. Kant<br />
representa-lhe a síntese crítica especulativa, fundindo os<br />
dois fenomenismos em fenomenismos superior, daí<br />
surgindo o idealismo, que em Kant toma o nome<br />
de criticismo. Neste afirma-se, explicita e<br />
sistematicamente, a concepção, como dissemos, é a<br />
significação profunda do pensamento moderno e<br />
contemporâneo, e culmina em Hegel.<br />
Pablo Picasso (1881 – 1973).<br />
Penrose collection, London, UK<br />
Entende-se por <strong>Filosofia</strong> Contemporânea o período que<br />
se estende de meados do século XIX até nossos dias, é o<br />
período mais complexo de definir, afinal está em<br />
construção, e não temos o distanciamento afetivo e<br />
cronológico para nos ajudar a entendê-lo.<br />
A(s) <strong>Filosofia</strong>(s) do século XX trouxe(ram) uma série de<br />
desenvolvimentos teóricos contrários em relação ao que<br />
se refere a validade do conhecimento através de<br />
conceitos e abstrações absolutas, isto é, afirmações<br />
universais ou leis gerais. As certezas decorrentes do<br />
pensamento clássico foram derrubadas, embora<br />
permaneçam como problemas sociais, econômicos e<br />
científicos, juntamente com formas novas de conflito e<br />
reivindicações concernentes à organização geopolítica e<br />
epistêmica do sistema-mundo contemporâneo. O que é a<br />
lógica e o que é a ética? São novas perguntas que<br />
existem a partir da filosofia do século XX.<br />
Entretanto, essa filosofia é demasiadamente diferente<br />
para que se possa fixar um padrão, que não seja uma<br />
série de tentativas de reformar, preservar ou alterar os<br />
limites antes concebidos. As formas e caminhos para<br />
estes empreendimentos são diversos e distintos. Contudo,<br />
suponhamos que seja essencial uma unidade de sentido,<br />
diríamos que estas filosofias contestam princípios da<br />
ciência moderna (aproximadamente do séc. XVI ao séc.<br />
XX).<br />
2 ) Ao idealismo (primeira metade do século XIX) opõese,<br />
no mesmo século, a filosofia espiritualista –<br />
tradicionalismo e ontologismo: tentativa desafortunadas<br />
para restaurar os valores supremos do espírito humano.<br />
3 ) Contra o idealismo se insurge também (na segunda<br />
metade do século XIX) o positivismo. Este se manifesta<br />
em oposição ao primeiro, da mesma maneira que, antes<br />
de Kant, o empirismo se manifestava em oposição ao<br />
racionalismo. Entretanto, como o empirismo e o<br />
racionalismo, no fundo, expressões de um fenomenismo<br />
comum, assim o positivismo representa a mesma<br />
exigência imanentista do idealismo, mais plenamente<br />
atualizada, porém, mediante uma aderência maior ao<br />
campo concreto dos fatos.<br />
4 ) O positivismo declina entre os fins do século [XIX] e<br />
os princípios do atual [XX]. Neste tempo aparecem e se<br />
afirmam várias tendências filosóficas, que, no conjunto,<br />
se denominam filosofias do século XX. Não obstante a<br />
sua variedade, tais tendências pressupõem, geralmente, a<br />
concepção imanentista e humanista moderna. Vão-se<br />
orientando para um ceticismo e um pessimismo<br />
profundos, especialmente perante a falência prática,<br />
moral, política das ideologias dos filósofos<br />
contemporâneos.<br />
5 ) As malogradas tentativas da filosofia espiritualista do<br />
século XIX, e o fracasso teorético das correntes<br />
filosóficas imanentistas determinaram a volta das mais<br />
profundas inteligências do mundo contemporâneo,<br />
especialmente neste últimos tempos, à filosofia helênicocristã,<br />
justamente definida a filosofia perene do espírito<br />
humano e da inteligência. Essa metafísica<br />
clássica (chamada também neotomismo, filosofia<br />
56
acional, filosofia aristotélico-tomista) encerra em suas<br />
fileiras, a cada dia mais extensas, os mais eminentes<br />
pensadores do mundo filosófico contemporâneo.<br />
À guisa de introdução desse tópico, pode-se afirmar que<br />
a filosofia contemporânea do século XIX, traz em seu<br />
rol, uma riqueza imensa de escolas e pensamentos que<br />
vão do romantismo alemão - Schlegel (1772-1829),<br />
Hörlerlin (1770-1843), Schiller (1759-1805);<br />
ao idealismo – Fichte (162-1813), Schelling (1775-<br />
1854), Hegel (1770-1831); utilitarismo inglês - Jeremy<br />
Bentahm (1748-1832), Stuart Mill (1806-<br />
1873); positivismo de Comte (1798-<br />
1857); pragmatismo de Charles Peirce (1839-1914) e<br />
William James (1842-1910), o materialismo dialético -<br />
Marx (1818-1883), Engels (1820-1895); as posturas de<br />
Schopenhauer (1788-1860), Kierkegaard (1813-1855) e<br />
Nietzsche (1844-1900) contra o racionalismo.<br />
Na filosofia contemporânea do século XX, com uma<br />
manifestação poderosa surge a fenomenologia de Husserl<br />
(1859-1938); a hermenêutica de Heidegger (1889-1976);<br />
as filosofias da existência - Gabriel Marcel(1889-1973),<br />
Karl Jaspers (1883-1969), Jean Paul Sartre (1905-1980);<br />
a Escola de Frankfurt – Horkheimer ( 1895-1973),<br />
Adorno (1903-1969), Benjamin (1892-1940), Marcuse<br />
(1898-1979) e Habermas(1929-); o estruturalismo de<br />
Lévi-Strauss (1908-2009) e Michel Foucault (1926-<br />
1984) (considerado por alguns como pós-estruturalista e<br />
pós-moderno).<br />
N iet z sch e e a C r í t ica aos M<br />
od elos E st ab elecid os<br />
As ideias-chave de Nietzsche incluíam a dicotomia<br />
apolíneo/dionisíaca, o perspectivismo, a vontade de<br />
poder, a "morte de Deus", o Übermensch (Além-<br />
Homem) e eterno retorno. Sua filosofia central é a ideia<br />
de "afirmação da vida", que envolve questionamento de<br />
qualquer doutrina que drene uma expansiva de energias,<br />
porém socialmente predominantes essas ideias poderiam<br />
ser. Seu questionamento radical do valor e da<br />
objetividade da verdade tem sido o foco de extenso<br />
comentário e sua influência continua a ser substancial,<br />
especialmente na tradição filosófica<br />
continental compreendendo existencialismo, pósmodernismo<br />
e pós-estruturalismo. Suas ideias de<br />
superação individual e transcendência além da estrutura e<br />
contexto tiveram um impacto profundo sobre pensadores<br />
do final do século XX e início do século XXI, que<br />
usaram estes conceitos como pontos de partida para o<br />
desenvolvimento de suas filosofias. Mais recentemente,<br />
as reflexões de Nietzsche foram recebidas em várias<br />
abordagens filosóficas que se movem além<br />
do humanismo, por exemplo, o transhumanismo.<br />
A cultura ocidental e suas religiões, assim como<br />
a moral judaico-cristã, foram temas comuns em suas<br />
obras. Nietzsche se apresenta como alvo de muitas<br />
críticas na história da filosofia moderna, isto porque,<br />
primariamente, há certas dificuldades de entendimento<br />
na forma de apresentação das figuras e/ou categorias ao<br />
leitor ou estudioso, causando confusões devido<br />
principalmente aos paradoxos dos conceitos de realidade<br />
ou verdade.<br />
Nietzsche, sem dúvida, considera o cristianismo e<br />
o budismo como "as duas religiões da decadência",<br />
embora ele afirme haver uma grande diferença nessas<br />
duas concepções. O budismo, para Nietzsche, "é cem<br />
vezes mais realista que o cristianismo". Religiões que<br />
aspiram ao nada, cujos valores dissolveram a<br />
mesquinhez histórica. Não obstante, também se auto<br />
intitula ateu: "Para mim o ateísmo não é nem uma<br />
consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo<br />
por instinto" (Ecce Homo, pt.II, af.1)<br />
Nietzsche criticou essa moral que leva à revolta dos<br />
indivíduos inferiores, das classes subalternas e escravas<br />
contra a classe superior e aristocrática que, por um lado,<br />
pela adoção dessa mesma moral, sofre de má consciência<br />
e cria a ilusão de que mandar é por si mesmo é adotar<br />
essa moral.<br />
A vida só se pode conservar e manter-se através de<br />
imbricações incessantes entre os seres vivos, através da<br />
luta entre vencidos que gostariam de sair vencedores e<br />
vencedores que podem a cada instante ser vencidos e,<br />
por vezes, já se consideram como tais. Neste sentido, a<br />
vida é vontade de poder ou de domínio ou de potência.<br />
Vontade essa que não conhece pausas e, por isso, está<br />
sempre criando novas máscaras para se esconder do<br />
apelo constante e sempre renovado da vida; pois, para<br />
Nietzsche, a vida é tudo e tudo se esvai diante da vida<br />
humana. Porém as máscaras, segundo ele, tornam a vida<br />
mais suportável, ao mesmo tempo em que a deformam,<br />
mortificando-a à base de cicuta e, finalmente, ameaçando<br />
destruí-la.<br />
Não existe vida média, segundo Nietzsche, entre<br />
aceitação da vida e renúncia. Para salvá-la, é mister<br />
arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como é: não<br />
para sofrê-la ou aceitá-la com resignação, mas para<br />
restituir-lhe o seu ritmo exaltante, o seu merismático<br />
júbilo.<br />
6
O homem é um filho do "húmus" e é, portanto, corpo e<br />
vontade não somente de sobreviver, mas de vencer. Suas<br />
verdadeiras "virtudes" são: o orgulho, a alegria, a saúde,<br />
o amor sexual, a inimizade, a veneração, os bons hábitos,<br />
a vontade inabalável, a disciplina da intelectualidade<br />
superior, a vontade de poder. Mas essas virtudes são<br />
privilégios de poucos, e é para esses poucos que a vida é<br />
feita. De fato, Nietzsche é contrário a qualquer tipo<br />
de igualitarismo e, principalmente, ao disfarçado<br />
legalismo kantiano, que atenta para o bom senso através<br />
de uma lei inflexível, ou seja, o imperativo categórico:<br />
"Proceda em todas as suas ações de modo que a norma<br />
de seu proceder possa tornar-se uma lei universal".<br />
Essas críticas se deveram à hostilidade de Nietzsche em<br />
face do racionalismo, que logo refutou como pura<br />
irracionalidade. Para ele, Kant nada mais é do que um<br />
fanático da moral, uma tarântula catastrófica.<br />
Nietzsche era um crítico das "ideias modernas", da vida e<br />
da cultura moderna, do neonacionalismo alemão. Para<br />
ele, os ideais modernos como democracia, socialismo,<br />
igualitarismo, emancipação feminina não eram senão<br />
expressões da decadência do "tipo homem". Por estas<br />
razões, é, por vezes, apontado como um precursor<br />
da pós-modernidade.<br />
O I d ealism o d e H egel<br />
Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo<br />
fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vértice<br />
metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico,<br />
concebendo a realidade como vir-a-ser,<br />
desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é racionalizado<br />
por Hegel, elevado a processo dialético; e este processo<br />
dialético não é um movimento a quo adi quod, e sim um<br />
processo circular, emanentista.<br />
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stutgart, em<br />
1770. Estudou teologia e filosofia. Interessou-se pelos<br />
problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo<br />
criticismo e pelo iluminismo; em seguida se dedicou ao<br />
historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de<br />
Fichte e de Schelling, afastando-se deles em seguida até<br />
combatê-los quando professor nas universidades de Jena,<br />
Heidelberg e Berlim. Nessa última universidade lecionou<br />
até há morte, adquirindo grande renome e exercendo<br />
vasta influência. Faleceu em 1831, vítima de cólera.<br />
Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários e<br />
críticos, para favorecer as tendências absolutistas e<br />
intransigentes do estado prussiano.<br />
Em seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo;<br />
alguns o ridicularizaram (apelidando-o de Absolutus von<br />
Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da<br />
imortalidade da alma. Na realidade, Hegel era ao mesmo<br />
tempo suficientemente prudente e suficientemente<br />
hermético para que se tornasse muito difícil fazer-lhe<br />
acusações precisas dessa ordem! O poeta Heinrich<br />
Heine, que seguiu seus cursos de 1821 a 1823, conta, no<br />
entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um<br />
estudante que lhe falava do Paraíso: "O senhor então<br />
precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe<br />
enferma e porque não envenenou ninguém!" Em todo<br />
caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do<br />
pensador oficial da monarquia escondia um grande poder<br />
explosivo!<br />
Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia<br />
da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A razão<br />
aqui não é apenas, como em Kant, o entendimento<br />
humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo<br />
as quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade<br />
profunda das coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não<br />
só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de<br />
ser das coisas: "O racional é real e o real é racional".<br />
Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo<br />
idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo<br />
do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, em<br />
definitivo, Ideia, Espírito. Sua filosofia representa, ao<br />
mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do<br />
conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua<br />
totalidade que é significativo e cada acontecimento<br />
particular no mundo só tem sentido finalmente em<br />
função do Absoluto do qual não é mais do que um<br />
aspecto ou um momento.<br />
Hegel, porém se distingue de Spinoza e surge para nós<br />
como um filósofo essencialmente moderno, pois, para<br />
ele, o mundo que manifesta a Ideia não é uma natureza<br />
semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia<br />
que a leitura dos jornais era "sua prece matinal<br />
cotidiana", como todos os seus contemporâneos, muito<br />
76
meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra<br />
que as estruturas sociais, assim como os pensamentos<br />
dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no<br />
decurso da história. O que há de original em seu<br />
idealismo é que, para Hegel, a ideia se manifesta como<br />
processo histórico: "A história universal nada mais é do<br />
que a manifestação da razão".<br />
As principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do<br />
Espírito; A Lógica; A Enciclopédia das Ciências<br />
Filosóficas; A <strong>Filosofia</strong> do Direito. Foi um gênio<br />
poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua<br />
capacidade sistemática, tanto assim que se pode<br />
considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino do<br />
pensamento contemporâneo. No entanto, frequentemente<br />
deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico<br />
do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera<br />
este por interesses práticos e políticos.<br />
É preciso compreender também que a história é um<br />
progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não é senão a<br />
história do Espírito universal que se desenvolve e se<br />
realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a<br />
plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O<br />
absoluto, diz Hegel, só no final será o que ele é na<br />
realidade". O panteísmo de Spinoza identificava Deus<br />
com a natureza: Deus vive natura. O panteísmo<br />
hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o<br />
que é - ao menos só é parcial e muito provisoriamente o<br />
que atualmente é - Deus é o que se realizará na História.<br />
(Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na filosofia de<br />
Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para<br />
Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma,<br />
se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia".<br />
Consideremos a história da terra. De início só existem<br />
minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não<br />
temos a impressão de que seres cada vez mais<br />
complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais<br />
autônomos surgem no Universo? O Espírito, de início<br />
adormecido, dissimulado e como que estranho a si<br />
mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais<br />
manifestamente como ordem, como liberdade, logo<br />
como consciência. Esse progresso do Espírito continua e<br />
se concluirá através da história dos homens. Cada povo<br />
cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar<br />
uma etapa desse progresso do Espírito. O Espírito<br />
humano é de início uma consciência confusa, um espírito<br />
puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois, ele<br />
consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de<br />
civilizações, de instituições organizadas. Tal é o espírito<br />
objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o<br />
mundo da cultura". Enfim, o Espírito se descobre mais<br />
claramente na consciência artística e na consciência<br />
religiosa para finalmente apreender-se na <strong>Filosofia</strong><br />
(notadamente na filosofia de Hegel, que pretende<br />
totalizar sob sua alçada todas as outras filosofias) como<br />
Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de<br />
todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final,<br />
totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz<br />
Hegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo).<br />
Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofia<br />
puramente imanentista, Deus só se realiza na história.<br />
Em outras palavras, a forma de civilização que triunfa a<br />
cada etapa da história é aquela que, naquele momento,<br />
melhor exprime o Espírito. Após ter saudado em<br />
Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no<br />
estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita<br />
do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles<br />
que acham que a força não "oprime" o direito (essa<br />
fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada<br />
significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso<br />
na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e<br />
que a virtude, como ele diz, "exprime o curso do<br />
mundo".<br />
Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação<br />
da Razão com o Devir histórico é absolutamente<br />
paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma<br />
proposição fica demonstrada quando é reduzida,<br />
identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai<br />
do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, é o<br />
domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente<br />
do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razão à história,<br />
por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente,<br />
que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à<br />
história seria negar a história, recusar o tempo. Ora,<br />
contrariando tudo isso, o racionalismo de Hegel coloca o<br />
devir, a história, em primeiro plano. Como isso é<br />
possível?<br />
É possível porque Hegel concebe um processo racional<br />
original - o processo dialético - no qual a contradição não<br />
mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao<br />
contrário, se transforma no próprio motor do<br />
pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da<br />
história, já que esta última não é senão o Pensamento que<br />
se realiza. Repudiando o princípio da contradição de<br />
Aristóteles e de Leibniz, em virtude do qual uma coisa<br />
não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a<br />
contradição no próprio núcleo do pensamento e das<br />
coisas simultaneamente. O pensamento não é mais<br />
estático, ele procede por meio de contradições superadas,<br />
da tese à antítese e, daí, à síntese, como num diálogo em<br />
que a verdade surge a partir da discussão e das<br />
86
contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem<br />
se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada,<br />
transformada em outra que não ela mesma ("alienada").<br />
A primeira proposição encontrar-se-á finalmente<br />
transformada e enriquecida numa nova fórmula que era,<br />
entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação"<br />
(síntese).<br />
96
R E FE R Ê N C I A S:<br />
DURANT, Will. História da <strong>Filosofia</strong> - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição,<br />
1926.<br />
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História da <strong>Filosofia</strong>.<br />
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História da <strong>Filosofia</strong>, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição,<br />
1974.<br />
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da <strong>Filosofia</strong> Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª<br />
edição, 1980.<br />
JAEGER, Werner. Paidéia - A Formação do Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.<br />
Coleção Os Pensadores. Georg Wilhelm Friedrich Hegel - Estética: A Idéia e o Ideal - Estética: O Belo Artístico ou o Ideal,<br />
Nova Cultural, São Paulo, 1999.<br />
07
O P O SI T I V I SM O<br />
dominaram o mesmo século XIX. Sendo grandemente<br />
valorizada a atividade econômica, produtora de bens<br />
materiais, é natural se procure uma base filosófica<br />
positiva, naturalista, materialista, para as ideologias<br />
econômico-sociais.<br />
Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue<br />
o positivismo, que ocupa, mais ou menos, a segunda<br />
metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo<br />
civilizado. O positivismo representa uma reação contra o<br />
apriorismo, o formalismo, o idealismo, exigindo maior<br />
respeito para a experiência e os dados positivos.<br />
Entretanto, o positivismo fica no mesmo âmbito<br />
imanentista do idealismo e do pensamento moderno em<br />
geral, defendendo, mais ou menos, o absoluto do<br />
fenômeno. "O fato é divino", dizia Ardigò. A diferença<br />
fundamental entre idealismo e positivismo é a seguinte: o<br />
primeiro procura uma interpretação, uma unificação da<br />
experiência mediante a razão; o segundo, ao contrário,<br />
quer limitar-se à experiência imediata, pura, sensível,<br />
como já fizera o empirismo. Daí a sua pobreza filosófica,<br />
mas também o seu maior valor como descrição e análise<br />
objetiva da experiência - através da história e da ciência -<br />
com respeito ao idealismo, que alterava a experiência, a<br />
ciência e a história. Dada essa objetividade da ciência e<br />
da história do pensamento positivista, compreende-se<br />
porque elas são fecundas no campo prático, técnico,<br />
aplicado.<br />
Além de ser uma reação contra o idealismo, o<br />
positivismo é ainda devido ao grande progresso das<br />
ciências naturais, particularmente das biológicas e<br />
fisiológicas, do século XIX. Tenta-se aplicar os<br />
princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia,<br />
como resolvedora do problema do mundo e da vida, com<br />
a esperança de conseguir os mesmos fecundos<br />
resultados. Enfim, o positivismo teve impulso, graças ao<br />
desenvolvimento dos problemas econômico-sociais, que<br />
Gnosiologicamente, o positivismo admite, como fonte<br />
única de conhecimento e critério de verdade, a<br />
experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis.<br />
Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação,<br />
justificação transcendente ou imanente, da experiência.<br />
A filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização<br />
das ciências. A lei única e suprema, que domina o mundo<br />
concebido positivisticamente, é a evolução necessária de<br />
uma indefectível energia naturalista, como resulta das<br />
ciências naturais.<br />
Dessas premissas teoréticas decorrem necessariamente as<br />
concepções morais hedonistas e utilitárias, que florescem<br />
no seio do positivismo. E delas dependem, mais ou<br />
menos, também os sistemas político-econômico-sociais,<br />
florescidos igualmente no âmbito natural do positivismo.<br />
Na democracia moderna - que é a concepção política,<br />
em que a soberania é atribuída ao povo, à massa - a<br />
vontade popular se manifesta através do número, da<br />
quantidade, da enumeração material dos votos (sufrágio<br />
universal). Oliberalismo, que sustenta a liberdade<br />
completa do indivíduo - enquanto não lesar a liberdade<br />
alheia - sustenta também a livre concorrência econômica<br />
através da lida mecânica, do conflito material das forças<br />
econômicas. Para o socialismo, enfim, o centro da vida<br />
humana está na atividade econômica, produtora de<br />
bens materiais, e a história da humanidade é acionada<br />
por interesses materiais, utilitários, econômicos<br />
(materialismo histórico), e não por interesses espirituais,<br />
morais e religiosos.<br />
O positivismo do século XIX pode semelhar ao<br />
empirismo, ao sensismo (e ao naturalismo) dos séculos<br />
XVII e XVIII, também pelo país clássico de sua floração<br />
(a Inglaterra) e porquanto reduz, substancialmente, o<br />
conhecimento humano ao conhecimento sensível, a<br />
metafísica à ciência, o espírito à natureza, com as<br />
relativas conseqüências práticas. Diferencia-se, porém,<br />
desses sistemas por um elemento característico: o<br />
conceito de vir-a-ser, de evolução, considerada como lei<br />
fundamental dos fenômenos empíricos, isto é, de todos<br />
os fatos humanos e naturais. Tal conceito representa um<br />
equivalente naturalista do historicismo romântico da<br />
17
primeira metade do século XIX, com esta diferença,<br />
entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como<br />
desenvolvimento racional, teológico, ao passo que o<br />
positivismo o concebe como evolução, por causas.<br />
Através de um conflito mecânico de seres e de forças,<br />
mediante a luta pela existência, determina-se uma<br />
seleção natural, uma eliminação do organismo mais<br />
imperfeito, sobrevivendo o mais perfeito. Daí acreditar o<br />
positivismo firmemente no progresso - como nele já<br />
acreditava o idealismo. Trata-se, porém, de um progresso<br />
concebido naturalisticamente, quer nos meios quer no<br />
fim, para o bem-estar material.<br />
Mas, como no âmbito do idealismo se determinou uma<br />
crítica ao idealismo, igualmente, no âmbito do<br />
positivismo, a única realidade existente, o cognoscível, é<br />
a realidade física, o que se pode atingir cientificamente.<br />
Portanto, nada de metafísica e filosofia, nada de espírito<br />
e valores espirituais. No entanto, atinge a ciência<br />
fielmente a sua realidade, que é a experiência? E a<br />
ciência positivista é pura ciência, ou não implica uma<br />
metafísica naturalista inconsciente e, involuntariamente,<br />
discutível pelo menos tanto quanto a metafísica<br />
espiritualista? Nos fins do século passado e nos<br />
princípios deste século se determina uma crise interior da<br />
ciência mecaniscista, ideal e ídolo do positivismo, para<br />
dar lugar a outras interpretações do mundo natural no<br />
âmbito das próprias ciências positivas. Daí uma revisão e<br />
uma crítica da ciência por parte dos mesmos cientistas,<br />
que será uma revisão e uma crítica do positivismo.<br />
Nessa crítica e vitória sobre o positivismo, pode-se<br />
distinguir duas fases principais: uma negativa, de crítica<br />
à ciência e ao positivismo; outra positiva, de<br />
reconstrução filosófica, em relação com exigências mais<br />
ou menos metafísicas ou espiritualistas.<br />
A u gu st o C om<br />
t- e V id a e O b r as<br />
Estudante da Politécnica aos 16 anos, Comte é nomeado<br />
em 1832 explicador de análise e de mecânica nessa<br />
mesma escola e, depois, em 1837, examinador de<br />
vestibular. Ver-se-á retirado desta última função em<br />
1844 e de seu posto de explicador em 1851. Apesar de<br />
seus reiterados pedidos, não obterá o desejado cargo de<br />
professor da Politécnica, nem mesmo a cátedra de<br />
história geral das ciências positivas no Collège de<br />
France, que quisera criar em benefício próprio. A obra de<br />
Comte guarda estreitas relações com os acontecimentos<br />
de sua vida. Dois encontros capitais presidem as duas<br />
grandes etapas desta obra. Em 1817, ele conhece H. de<br />
Saint-Simon: O Organizador, o Sistema Industrial, e<br />
concebe, a partir daí, a criação de uma ciência social e de<br />
uma política científica. Já de posse, desde 1826, das<br />
grandes linhas de seu sistema, Comte abre em sua casa,<br />
rua do Faubourg Montmartre, um Curso de filosofia<br />
positiva - rapidamente interrompido por uma depressão<br />
nervosa - (que lhe vale ser internado durante algum<br />
tempo no serviço de Esquirol). Retoma o ensino em<br />
1829. A publicação do Curso inicia-se em 1830 e se<br />
distribui em 6 volumes até 1842. Desde 1831 Comte<br />
abrirá, numa sala da prefeitura do 3.° distrito, um curso<br />
público e gratuito de astronomia elementar destinado aos<br />
"operários de Paris", curso este que ele levaria avante por<br />
sete anos consecutivos. Em 1844 publica o prefácio do<br />
curso sob o título: Discurso dobre o espírito positivo.<br />
É em outubro de 1844 que se situa o segundo encontro<br />
capital que vai marcar uma reviravolta na filosofia de<br />
Augusto Comte. Trata-se da irmã de um de seus alunos,<br />
Clotilde de Vaux, esposa abandonada de um cobrador de<br />
impostos (que fugira para a Bélgica após algumas<br />
irregularidades financeiras). Na primavera de 1845,<br />
nosso filósofo de 47 anos declara a esta mulher de 30 seu<br />
amor fervoroso. "Eu a considero como minha única e<br />
verdadeira esposa não apenas futura, mas atual e eterna".<br />
Clotilde oferece-lhe sua amizade. É o "ano sem par" que<br />
termina com a morte de Clotilde a 6 de abril de 1846.<br />
Comte sente então sua razão vacilar, mas entrega-se<br />
corajosamente ao trabalho. Entre 1851 e 1854 aparecem<br />
os enormes volumes do Sistema de política<br />
positiva ou Tratado de sociologia que institui a religião<br />
da humanidade. O último volume sobre o Futuro<br />
humano prevê uma reformulação total da obra sob o<br />
título de Síntese Subjetiva. Desde 1847 Comte<br />
proclamou-se grande sacerdote da Religião da<br />
Humanidade. Institui o "Calendário positivista" (cujos<br />
santos são os grandes pensadores da história), forja<br />
divisas "Ordem e Progresso", "Viver para o<br />
próximo"; "O amor por princípio, a ordem por base, o<br />
progresso por fim", funda numerosas igrejas positivistas<br />
(ainda existem algumas como exemplo no Brasil). Ele<br />
morre em 1857 após ter anunciado que "antes do ano de<br />
1860" pregaria "o positivismo em Notre-Dame como a<br />
única religião real e completas".<br />
Comte partiu de uma crítica científica da teologia para<br />
terminar como profeta. Compreende-se que alguns<br />
tenham contestado a unidade de sua doutrina,<br />
notadamente seu discípulo Littré, que em 1851 abandona<br />
a sociedade positivista. Littré - autor do célebre<br />
Dicionário, divulgador do positivismo nos artigos do<br />
Nacional - aceita o que ele chama a primeira filosofia de<br />
Augusto Comte e vê na segunda uma espécie de delírio<br />
27
político-religioso, inspirado pelo amor platônico do<br />
filósofo por Clotilde.<br />
Todavia, mesmo se o encontro com Clotilde deu à obra<br />
do filósofo um novo tom, é certo que Comte, já antes do<br />
Curso de filosofia positiva (e principalmente em seu<br />
"opúsculo fundamental" de 1822), sempre pensou que a<br />
filosofia positivista deveria terminar finalmente em<br />
aplicações políticas e nas fundação de uma nova religião.<br />
Littré podia sem dúvida, em nome de suas próprias<br />
concepções, "separar Comte dele mesmo". Mas o<br />
historiador, que não deve considerar a obra com um<br />
julgamento pessoal, pode considerar-se autorizado a<br />
afirmar a unidade essencial e profunda da doutrina de<br />
Comte.<br />
Comte, afirmando vigorosamente a unidade de seu<br />
sistema, reconhece que houve duas carreiras em sua vida.<br />
Na primeira, diz ele sem falsa modéstia, ele<br />
foi Aristóteles e na segunda será São Paulo.<br />
A L ei d os T r ê s E st ad os<br />
A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de<br />
certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para Comte<br />
"as ideias conduzem e transformam o mundo" e é a<br />
evolução da inteligência humana que comanda o<br />
desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa<br />
que nós não podemos conhecer o espírito humano senão<br />
através de obras sucessivas - obras de civilização e<br />
história dos conhecimentos e das ciências - que a<br />
inteligência alternadamente produziu no curso da<br />
história. O espírito não poderia conhecer-se<br />
interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o<br />
sujeito do conhecimento confunde-se com o objeto<br />
estudado e porque pode descobrir-se apenas através das<br />
obras da cultura e particularmente através da história das<br />
ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida<br />
interior, é a atividade científica que se desenvolve<br />
através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a<br />
filosofia comtista da história é "uma filosofia da história<br />
do espírito através das ciências".<br />
O espírito humano, em seu esforço para explicar o<br />
universo, passa sucessivamente por três estados:<br />
a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por<br />
meio de vontades análogas à nossa (a tempestade, por<br />
exemplo, será explicada por um capricho do deus dos<br />
ventos, Eolo). Este estado evolui do fetichismo ao<br />
politeísmo e ao monoteísmo.<br />
b ) O estado metafísico substitui os deuses por princípios<br />
abstratos como "o horror ao vazio", por longo tempo<br />
atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será<br />
explicada pela "virtude dinâmica" do ar. Este estado é no<br />
fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza<br />
tem "horror" do vazio exatamente como a senhora<br />
Baronesa tem horror de chá). O homem projeta<br />
espontaneamente sua própria psicologia sobre a natureza.<br />
A explicação dita teológica ou metafísica é uma<br />
explicação ingenuamente psicológica. A explicação<br />
metafísica tem para Comte uma importância sobretudo<br />
histórica como crítica e negação da explicação teológica<br />
precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são<br />
"metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem -<br />
reivindicação crítica contra os deveres teológicos<br />
anteriores, mas sem conteúdo real.<br />
c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia<br />
a procurar os fins últimos e a responder aos últimos "por<br />
quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa<br />
experiência interior do querer para a natureza) é por ele<br />
substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em<br />
descrever como os fatos se passam, em descobrir as leis<br />
(exprimíveis em linguagem matemática) segundo as<br />
quais os fenômenos se encadeiam uns nos outros. Tal<br />
concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o<br />
conhecimento das leis positivas da natureza nos permite,<br />
com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o<br />
fenômeno que se seguirá e, eventualmente agindo sobre<br />
o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência donde<br />
previsão, previsão donde ação").<br />
Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três<br />
estados não é somente verdadeira para a história da nossa<br />
espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada<br />
indivíduo. A criança dá explicações teológicas, o<br />
adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a<br />
uma concepção "positivista" das coisas.<br />
A C lassificaç ã o d as C iê n cias<br />
As ciências, no decurso da história, não se tornaram<br />
"positivas" na mesma data, mas numa certa ordem de<br />
sucessão que corresponde à célebre classificação:<br />
matemáticas, astronomia, física, química, biologia,<br />
sociologia.<br />
Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais<br />
simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais<br />
concreto e de uma proximidade crescente em relação ao<br />
homem.<br />
37
47<br />
Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição<br />
das ciências positivas. As matemáticas (que com os<br />
pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma<br />
mística do número), constituem-se, entretanto, desde a<br />
antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás,<br />
para Comte, antes um instrumento de todas as ciências<br />
do que uma ciência particular). A astronomia descobre<br />
bem cedo suas primeiras leis positivas, a física espera o<br />
século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se<br />
positiva. A oportunidade da química vem no século<br />
XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina<br />
positiva no século XIX. O próprio Comte acredita coroar<br />
o edifício científico criando a sociologia.<br />
As ciências mais complexas e mais concretas dependem<br />
das mais abstratas. De saída, os objetos das ciências<br />
dependem uns dos outros. Os seres vivos estão<br />
submetidos não só às leis particulares da vida, como<br />
também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos<br />
os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivo está submetido,<br />
como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso,<br />
os métodos de uma ciência supõem que já sejam<br />
conhecidos os das ciências que a precederam na<br />
classificação. É preciso ser matemático para saber física.<br />
Um biólogo deve conhecer matemática, física e química.<br />
Entretanto, se as ciências mais complexas dependem das<br />
mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzilas<br />
a estas últimas. Os fenômenos psicoquímicos<br />
condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia<br />
não é uma química orgânica. Comte afirma<br />
energicamente que cada etapa da classificação introduz<br />
um campo novo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe<br />
ao materialismo que é "a explicação do superior pelo<br />
inferior".<br />
Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta<br />
classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode ser<br />
repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.<br />
A H u m an id ad e<br />
A última das ciências que Comte chamara primeiramente<br />
física social, e para a qual depois inventou o nome de<br />
sociologia reveste-se de importância capital. Um dos<br />
melhores comentadores de Comte, Levy-Bruhl, tem<br />
razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o<br />
momento decisivo na filosofia de Comte. Dela tudo<br />
parte, a ela tudo se reduz". Nela irão se reunir o<br />
positivismo religioso, a história do conhecimento e a<br />
política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva<br />
que compreenderemos que as duas doutrinas de Comte<br />
são apenas uma. Enfim, esobretudo, é a criação da<br />
sociologia que, permitindo aquilo que Kant denominava<br />
uma "totalização da experiência", nos faz compreender o<br />
que é, para Comte, fundamentalmente, a própria<br />
filosofia.<br />
Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência<br />
fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a<br />
"humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo:<br />
como diz excelentemente Gouhier - em sua admirável<br />
introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados<br />
por Aubier - "Quando a última ciência chega ao último<br />
estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma<br />
nova ciência. O nascimento da sociologia tem uma<br />
importância que não podia ter o da biologia ou o da<br />
física: ele representa o fato de que não mais existe no<br />
universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens<br />
metafísicas. Como cada ciência depende da precedente<br />
sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o<br />
essencial de todas as disciplinas que precedem a sua. Sua<br />
especialização própria se confunde, pois - diferentemente<br />
do que se passa para os outros sábios - com a totalidade<br />
do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao<br />
próprio filósofo, "especialista em generalidades", que<br />
envolve com um olhar enciclopédico toda a evolução da<br />
inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo,<br />
em todas as disciplinas do conhecimento. Comte repudia<br />
a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como<br />
interpretação totalizante da história e, por isto,<br />
identificação com a sociologia, a ciência última que<br />
supõe todas as outras, a ciência da humanidade, a<br />
ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do<br />
"universal concreto".<br />
O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é<br />
necessário compreender que a humanidade não se reduz<br />
a uma espécie biológica: há na humanidade uma<br />
dimensão suplementar - a história - o que faz a<br />
originalidade da civilização (da "cultura" diriam os<br />
sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte, "é<br />
um animal que tem uma história". As abelhas não têm<br />
história. Aquelas de que fala Virgílio nas Geórgicas<br />
comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A<br />
espécie das abelhas é apenas a sucessão de gerações que<br />
repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num<br />
sentido estrito, sociedades animais, ou ao menos a<br />
essência social dos animais reduz-se à natureza<br />
biológica. Somente o homem tem uma história porque é<br />
ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria<br />
línguas, instrumentos que transmitem este patrimônio<br />
pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita às<br />
gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas<br />
faculdades de invenção apenas dentro do quadro do que
elas receberam.As duas idéias de tradição e de<br />
progresso, longe de se excluírem, se completam. Como<br />
diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do<br />
mundo, e o inventor do arado trabalha, invisível, ao lado<br />
do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os<br />
progressos do futuro e "a humanidade compõe-se mais<br />
de mortos que de vivos".<br />
Comte distingue a sociologia estática da sociologia<br />
dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de toda<br />
a vida social, considerada em si mesma, em qualquer<br />
tempo e lugar. Três instituições sempre são necessárias<br />
para fazer com que o altruísmo predomine sobre o<br />
egoísmo (condição de vida social). A propriedade (que<br />
permite ao homem produzir mais do que para as suas<br />
necessidades egoístas imediatas, isto é, fazer provisões,<br />
acumular um capital que será útil a todos), a família<br />
(educadora insubstituível para o sentimento de<br />
solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que<br />
permite a comunicação entre os indivíduos e, sob a<br />
forma de escrita, a constituição de um capital intelectual,<br />
exatamente como a propriedade cria um capital<br />
material).<br />
A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução<br />
da sociedade: do estado teológico ao estado positivo na<br />
ordem intelectual, do estado militar ao industrial na<br />
ordem prática - do estado de egoísmo ao de altruísmo na<br />
ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os<br />
espíritos concluirá a obra de unidade (que a Igreja<br />
católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e<br />
tornará o altruísmo universal, "planetário". A sociedade<br />
positiva terá, exatametne como a sociedade cristã da<br />
Idade Média, seu poder temporal (os industriais e os<br />
banqueiros) e seu pdoer espiritual ( ³ ) (os sábios,<br />
principalemtne os sociólogos, que terão, à sua testa, o<br />
papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto<br />
é, o próprio Augusto Comte).<br />
Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a<br />
mudança de perspectiva, a mutação que faz do filósofo<br />
um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de<br />
todas as outras ciências tornadas positivas, transformase-á<br />
na política que guiará as outras ciências,<br />
"regenerando, assim, por sua vez, todos os elementos que<br />
concorreram para sua própria formação". Assim é que,<br />
em nome da "humanidade", a sociologia regerá todas as<br />
ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis.<br />
(Para Comte, o astrônomo deve estudar somente o Sol e<br />
a Lua, que estão muito próximos de n'so, para ter uma<br />
influência sobre a terra e sobre a humanidade e<br />
interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos<br />
corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que<br />
esta "síntese subjetiva", integrando-se inteiramente no<br />
sistema de Comte, tenha desencorajado os racionalistas<br />
que de saída viram no positivismo uma apologia do<br />
espírito científico!<br />
A religião positiva substitui o Deus das religiões<br />
reveladas pela própria humanidade, considerada como<br />
Grande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos<br />
ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandes<br />
homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto<br />
após a morte (esta sobrevivência na veneração de nossa<br />
memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o<br />
ar - meio onde vive a humanidade - podem, por isso<br />
mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o<br />
"Grande-Fetiche". A religião da humanidade, pois,<br />
transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até<br />
a linguagem da crenças anteriores. Filósofo do progresso,<br />
Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da<br />
Revolução, ele é, ao mesmo tempo, conservador e<br />
admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média.<br />
Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos<br />
tanto nos pensadores "de direita" como nos "de<br />
esquerda".<br />
O E x ist en cialism o<br />
O existencialismo é um movimento filosófico e literário<br />
distinto pertencente aos séculos XIX e XX, mas os seus<br />
elementos podem ser encontrados no pensamento (e<br />
vida) de Sócrates, Santo Agostinho e no trabalho de<br />
muitos filósofos e escritores pré-modernos.<br />
Culturalmente, podemos identificar pelo menos duas<br />
linhas de pensamento existencialista: Alemã-<br />
Dinamarquesa e Anglo-Francesa. As culturas judaica e<br />
russa também contribuíram para esta filosofia. O<br />
movimento filosófico é agora conhecido como<br />
existencialismo de Beauvoir. Após ter experienciado<br />
57
67<br />
vários distúrbios civis, guerras locais e duas guerras<br />
mundiais, algumas pessoas na Europa foram forçadas a<br />
concluir que a vida é inerentemente miserável e<br />
irracional.<br />
O existencialismo foi inspirado nas obras de Arthur<br />
Schopenhauer, Søren Kierkegaard, Fiódor Dostoiévski e<br />
nos filósofos alemães Friedrich Nietzsche, Edmund<br />
Husserl e Martin Heidegger, e foi particularmente<br />
popularizado em meados do século XX pelas obras do<br />
escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre e de sua<br />
companheira, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir.<br />
Os mais importantes princípios do movimento são<br />
expostos no livro de Sartre "L'Existentialisme est un<br />
humanisme" ("O existencialismo é um humanismo"). O<br />
termo existencialismo foi adotado apesar de ex ist ê n cia<br />
filosó fica ter sido usado inicialmente por Karl Jaspers, da<br />
mesma tradição.<br />
O termo "existencialismo" parece ter sido cunhado pelo<br />
filósofo francês Gabriel Marcel em meados da década de<br />
1940 e adoptado por Jean-Paul Sartre que, em 29 de<br />
Outubro de 1945, discutiu a sua própria posição<br />
existencialista numa palestra dada no Club<br />
Maintenant em Paris e publicada como O<br />
Existencialismo é um Humanismo, um pequeno livro que<br />
teve um papel importante na divulgação do pensamento<br />
existencialista. 20<br />
O rótulo foi aplicado retrospectivamente a outros<br />
filósofos para os quais a existência e, em particular, a<br />
existência humana eram tópicos filosóficos<br />
fundamentais. Martin Heidegger tornou a existência<br />
humana (Dasein) o foco do seu trabalho desde a década<br />
de 1920 e Karl Jaspers denominou a sua filosofia com o<br />
termo "Existenzphilosophie" na década de 1930 Quer<br />
Heidegger quer Jaspers tinham sido influenciados pelo<br />
filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Para<br />
Kierkegaard, a crise da existência humana foi um tema<br />
maior na sua obra. Ele tornou visto como o primeiro<br />
existencialista, 19 e mesmo chamado como o "pai do<br />
existencialismo". 9 De facto, foi o primeiro de maneira<br />
explícita a colocar questões existencialistas como foco<br />
principal da obra. 24 Em retrospectiva, outros escritores<br />
também discutiram temas existencialistas ao longo da<br />
história da literatura e filosofia. Devido à exposição dos<br />
temas existencialistas ao longo das décadas, quando a<br />
sociedade foi oficialmente introduzida ao tema, o termo<br />
tornou-se relativamente popular quase de imediato. Na<br />
literatura, após a Segunda Guerra Mundial, houve uma<br />
corrente existencialista que contou com Albert Camus<br />
e Boris Vian, além do próprio Sartre. É importante notar<br />
que Albert Camus, filósofo além de literato, ia contra o<br />
existencialismo, sendo este somente característica de sua<br />
obra literária. Já Boris Vian definia-se patafísico.<br />
J ean - P au l Sar t r e e a L ib er d ad e<br />
Filósofo francês, nascido em Paris, em 1905, falecido em<br />
1980. Sartre vivenciou e pôde refletir os acontecimentos<br />
mais marcantes do século XX. A Segunda Guerra<br />
Mundial só para relacionar um. Durante a guerra, Sartre<br />
atuou como soldado no serviço de meteorologia e foi<br />
preso pelos alemães, ficando entre 1940 e 1941 preso no<br />
Campo de Concentração de Trier na Alemanha.<br />
Foge do Campo de Concentração e passa a atuar no<br />
movimento de Resistência francês, mas sempre<br />
utilizando sua principal arma: a palavra. Em sua obra As<br />
Palavras, obra autobiográfica afirma: “(...) o mundo me<br />
utilizava para fazer-se palavra”. (SARTRE, 1984, p. 157)<br />
A discussão da liberdade está na obra, O existencialismo<br />
é um humanismo, de 1946, na qual Sartre procura<br />
mostrar o sentido ético do existencialismo diante das<br />
críticas a sua obra, O ser e o nada.<br />
Sartre destacou-se não somente com as obras filosóficas,<br />
mas, sobretudo com as literárias, foi inclusive agraciado<br />
com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1964, após a<br />
publicação de As Palavras. Porém recusou-se aceitá-lo<br />
por entender que seria reconhecer que os juízes tivessem<br />
autoridade sobre sua obra.<br />
A ex ist ê n cia p r eced e a essê n cia<br />
Sartre preocupa-se em esclarecer que há dois tipos de<br />
existencialismo, o cristão, que tem como representantes<br />
Jaspers e Gabriel Marcel; e o existencialismo ateu, que<br />
tem como representantes Heidegger, os existencialistas<br />
franceses e o próprio Sartre. O que há em comum entre<br />
os existencialistas cristãos e ateus é “(...) o fato de<br />
considerarem que a existência precede a essência.<br />
(SARTRE, 1987, p. 4-5)<br />
Isto significa que, diferente dos filósofos anteriores,<br />
sobretudo da <strong>Filosofia</strong> do século XVIII, os<br />
existencialistas não aceitam o fato de o homem possuir<br />
uma natureza humana. E o existencialismo ateu, do qual<br />
Sartre é um dos mentores, fundamenta a inexistência de<br />
uma natureza humana pelo fato de afirmarem a<br />
inexistência de Deus.<br />
Para o existencialismo, o homem ao nascer não está<br />
definido, mas irá através de sua existência fazer-se
homem. Quando nasce, diferente dos demais animais, o<br />
homem tem em suas mãos o que poderá tornar-se.<br />
Como afirma Silva (2004) “(...) liberdade implica que<br />
posso sempre ser um outro projeto, porque nenhuma<br />
escolha é em si justificada”. Sendo que “(...) nenhuma<br />
escolha decidirá sobre a própria liberdade, porque não<br />
posso escolher ser livre”. (SILVA, 2004, p. 144)<br />
Sartre alerta para o fato de que mesmo que a escolha seja<br />
subjetiva, seja individual, o homem está sempre<br />
relacionado aos limites da própria realidade humana.<br />
Escolher ser isto ou aquilo é afirmar,<br />
concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo,<br />
pois não podemos nunca escolher o mal; o que<br />
escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para<br />
nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência<br />
precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo<br />
tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é<br />
válida para todos e para toda a nossa época. (SARTRE,<br />
1987, p. 6-7)<br />
Na realidade, a existência de cada um de nós se dá<br />
inserida nos limites da subjetividade humana. O ser<br />
humano ao mesmo tempo em que é indivíduo, torna-se e<br />
realiza-se enquanto ser através da sua relação com os<br />
demais de sua espécie e, portanto as escolhas que faz são<br />
escolhas que engajam toda a humanidade. Porém, “(...)<br />
essa escolha de ser, como todas as que poderiam ser<br />
feitas, está sempre em questão, porque a realidade<br />
humana é uma questão: nenhuma resolução, nenhuma<br />
deliberação assegura a persistência da escolha”. (SILVA,<br />
2004, p. 145)<br />
É importante destacar que a ética sartreana fundamentase<br />
no valor e na responsabilidade.<br />
O h om em é lib er d ad e<br />
Para Sartre o homem é liberdade. Como entender essa<br />
afirmação? Entende-se que não há certezas e nem<br />
modelos que possam servir de referência, cabe ao<br />
homem inventar o próprio homem e jamais esquecer-se<br />
que é de sua responsabilidade o resultado de sua<br />
invenção. Pelo fato de ser livre é o homem quem faz suas<br />
escolhas e que ao fazê-las, torna-se responsável por elas.<br />
É por isso que:<br />
O existencialista declara frequentemente que o homem é<br />
angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem<br />
que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas<br />
aquele que escolheu ser, mas também um legislador que<br />
escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade<br />
inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total<br />
e profunda responsabilidade. (SARTRE, 1987, p. 7)<br />
O conceito angústia está relacionado ao binômio:<br />
liberdade – responsabilidade.<br />
Faço as escolhas e ao fazê-las sou eu, exclusivamente eu,<br />
o único responsável por elas. É a angústia o sentimento<br />
de cada homem diante do peso de sua responsabilidade,<br />
por não ser apenas por si mesmo, mas por todas as<br />
consequências das escolhas feitas.<br />
Com a angústia há um outro sentimento que é fruto<br />
também da liberdade: o desamparo. É preciso lembrar<br />
que o conceito de angústia foi desenvolvido pelo filósofo<br />
Kierkegaard e o conceito de desamparo, pelo filósofo<br />
Heidegger.<br />
O existencialista, pelo contrário, pensa que é<br />
extremamente incômodo que Deus não exista, pois, junto<br />
com ele, desaparece toda e qualquer possibilidade de<br />
encontrar valores num céu inteligível; não pode mais<br />
existir nenhum bem a priori, já que não existe uma<br />
consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está<br />
escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos<br />
ser honestos, que não devemos mentir, já que nos<br />
colocamos precisamente num plano em que só existem<br />
homens. Dostoiévski escreveu: ‘Se Deus não existisse,<br />
tudo seria permitido. (SARTRE, 1987, p. 9)<br />
O desamparo se dá pelo fato de o homem saber-se só. É<br />
por isso que Sartre diz que “(...) o homem está<br />
condenado a ser livre”. (SARTRE,1987, p. 9) Pois não<br />
há nenhuma certeza, não há nenhuma segurança e tudo o<br />
que fizer é de sua irrestrita responsabilidade. De fato o<br />
homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a “(...)<br />
inventar o homem a cada instante”. (SARTRE, 1987, p.<br />
9)<br />
Diante da constatação de que “(...) somos nós mesmos<br />
que escolhemos nosso ser”. (SARTRE, 1987, p. 12)<br />
Surge o outro sentimento: o desespero. O que marca o<br />
desespero é o fato de que:<br />
Só podemos contar com o que depende da nossa vontade<br />
ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa<br />
7
ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre<br />
elementos prováveis. Posso contar com a vinda de um<br />
amigo. Esse amigo vem de trem ou de ônibus; sua vinda<br />
pressupõe que o ônibus chegue na hora marcada e que o<br />
trem não descarrilhará. Permaneço no reino das<br />
possibilidades; porém, trata-se de contar com os<br />
possíveis apenas na medida exata em que nossa ação<br />
comporta o conjunto desses possíveis. A partir do<br />
momento em que as possibilidades que estou<br />
considerando não estão diretamente envolvidas em<br />
minha ação, é preferível desinteressar-me delas, pois<br />
nenhum Deus, nenhum desígnio poderá adequar o<br />
mundo e seus possíveis a minha vontade. [...] Não posso,<br />
porém, contar com os homens que não conheço,<br />
fundamentando-me na bondade humana ou no interesse<br />
do homem pelo bem-estar da sociedade, já que o homem<br />
é livre e que não existe natureza humana na qual possa<br />
me apoiar. (SARTRE, 1987, p. 12)<br />
Pelo fato de a realidade ir além, extrapolar os domínios<br />
de minha vontade e de minhas ações, o reino das<br />
possibilidades passa a evidenciar que minha ação deverá<br />
ocorrer sem qualquer esperança. O desespero é, portanto,<br />
o sentimento de que não há certezas e verdades prontas, é<br />
o sentimento de insegurança que impregna a vontade e o<br />
agir, pelo fato de ambos serem confrontados com o reino<br />
das possibilidades e apontarem para o limite a liberdade<br />
de cada indivíduo.<br />
I n d ú st r ia C u lt u r al e C u lt u r a d e M<br />
assas<br />
de massa tem origem na ascensão do protestantismo, da<br />
democracia e principalmente do<br />
Capitalismo. Considerando que a expressão, meios de<br />
comunicação de massa refere-se à imprensa escrita, ao<br />
rádio, à televisão e a outras tecnologias de comunicação.<br />
Normalmente mídia e meio de comunicação são<br />
encarados como sinônimos para referirmos à transmissão<br />
da informação de uma pessoa ou grupo para o outro. O<br />
termo massa está muito bem direcionado a multidões<br />
padronizadas e homogêneas, não possui um grupo<br />
específico mais tem significado na sociedade como um<br />
todo.<br />
Segundo Tomazi podemos falar em indústria cultura a<br />
partir do século XVIII, com a multiplicação dos Jornais<br />
no continente Europeu. Para tanto o próprio processo de<br />
escolaridade da população ajudou no processo. A<br />
indústria precisava de indivíduos um pouco mais<br />
qualificados, nesse caso, o surgimento de um mercado<br />
consumidor (importância social, econômica e cultural)<br />
segundo Tomazi, contribuiu para o desenvolvimento do<br />
primeiro meio de comunicação de massa: o Jornal.<br />
Segundo Teixeira Coelho, a indústria cultural é fruto da<br />
sociedade industrializada, no período de consolidação de<br />
uma economia baseada no consumo de bens. Produtos<br />
culturais em série – revistas, jornais, filmes, livros etc. –<br />
produzidos para o consumo em massa, são característicos<br />
desse tipo de indústria.<br />
Os jornais acabam tendo um papel importante dentro dos<br />
centros urbanos criados e desenvolvidos com o<br />
capitalismo vigente. Segundo Tomazi, os jornais<br />
divulgam notícias, crônicas políticas e os folhetins<br />
(novelas impressas), ganhando uma popularidade<br />
grandiosa. Nesse sentido as noticiais se tornam cada vez<br />
mais acessíveis. Diferente da antiga sociedade feudal em<br />
que o conhecimento e as notícias ficavam reservados a<br />
pequenos grupos de privilegiados.<br />
I N D Ú ST R I A C U L T U R A L<br />
C u lt u r a d me<br />
Por Nelson Adrian<br />
assa ou I n d u st r ial C u lt u r al<br />
O desenvolvimento da cultura de massa possui uma<br />
relação muito forte como o próprio surgimento da<br />
modernidade. O crescimento dos meios de comunicação<br />
No início do século XX, os primeiros autores a estudar<br />
os meios de comunicação de massa foram filósofos<br />
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1896-<br />
1973), pertencente ao grupo de intelectuais chamado<br />
Escola de Frankfurt. Ao analisar os meios de<br />
comunicação de massa, esses autores concluíram que<br />
esses recursos funcionavam como uma industrial na<br />
padronização de noticiais e serviços. Dentro dessa<br />
concepção, muda o sentido e a expressão de Cultura de<br />
Massa para Indústria Cultural.<br />
87
O ensaio A indústria cultural: O Esclarecimento como<br />
Mistificação das Massas, trabalho elaborado por dois dos<br />
principais integrantes do movimento Frankfurtiano,<br />
Adorno e Hohkheimer. Nesse texto – publicado no livro<br />
Dialética do Esclarecimento (1947) - os pensadores se<br />
esforçaram em evidenciar o caráter controlador e<br />
mercantil da indústria cultural – termo cunhado pelos<br />
autores. Para Adorno e Horkheimer, os produtos dessa<br />
indústria seriam parte integrante de uma lógica que<br />
visava, ao mesmo tempo, padronizar os indivíduos e<br />
gerar lucro para os detentores do poder econômico (E.<br />
Neto 2009)<br />
O conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer<br />
acabam por se opor ao termo cultura de massa. A<br />
indústria cultural, segundo os dois autores, equivale a<br />
qualquer indústria, organizada, planejada para atender o<br />
público, agora tratado como consumidor. Mais do que dá<br />
informações, segundo os dois filósofos, os meios de<br />
comunicação buscam o entretenimento dos indivíduos. A<br />
indústria cultura informa o consumidor de maneira<br />
homogênea, rápida e alienante o mundo em que se<br />
depara. Segundo Souza e Santos, os autores da Escola de<br />
Frankfurt para justificar sua tese, afirmam que o cinema<br />
e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. Na<br />
verdade, para tais autores, estes bens culturais, quando<br />
são produzidos em série, são apenas um negócio.<br />
Para Adorno e Horkheimer os meios de comunicação de<br />
massa compreendem uma proposta de alienação,<br />
diversão ou mesmo a desorientação sem permitir a<br />
reflexão sobre as coisas. Os dois autores destacam que a<br />
indústria cultural tem um objetivo: chegar aos seus<br />
consumidores a partir da venda. Por essa razão, pode-se<br />
dizer que a indústria cultural vai buscar legitimar tudo<br />
isso a partir de uma ideologia que, é uma falsa<br />
consciência ou uma inversão da realidade.<br />
A indústria cultural impõe gostos e preferências às<br />
massas, modelando suas consciências ao introduzir o<br />
desejo de necessidades supérfluas. Ela é tão eficaz nessa<br />
tarefa que os indivíduos não percebem o que ocorre,<br />
impedindo, assim, a formação, de pessoas capazes de<br />
julgar e de decidir conscientemente.<br />
Fenômeno similar ocorre na música popular produzida<br />
pela indústria cultural. O processo de padronização torna<br />
as canções parecidas umas às outras e reprime qualquer<br />
tipo de desafio, autenticidade ou estimulo intelectual na<br />
música elaborada para a venda, casos como os cantores<br />
de Axé Claudia Leite e Ivete ou os chamados Sertanejos<br />
Universitários, dentre outros casos. A padronização de<br />
estilos e músicas de acordo com as normas da industrial<br />
cultural é visível na falta de criatividade e estilos iguais.<br />
No processo de elaboração da indústria cultural segundo<br />
Adorno e Horkheimer, não existe a criatividade artística<br />
como se imagina, mas simplesmente a padronização de<br />
produtos e serviços para a venda e o consumo. Por<br />
conseguinte, a elaboração dos produtos culturais fica sob<br />
o encargo dos técnicos e diretores das empresas de<br />
entretenimento e comunicação da indústria cultural.<br />
Estes, por sua vez, têm como referência não o valor<br />
artístico do produto, mas sua possibilidade de lucro e<br />
comercialização. A consequência imediata dessa fórmula<br />
é a padronização dos “produtos”, dos “produtores” e dos<br />
“consumidores”.<br />
A P R O P A G A N D A<br />
A propaganda possui o poder de influenciar, marcar e<br />
mesmo domar o público consumidor através de seu apelo<br />
de imagens e dizeres que impressionam e destacam um<br />
novo estilo de vida. Na sociedade a propaganda, pode<br />
significa muito mais do que um mecanismo de<br />
divulgação. Ela pode persuadir e interferi, muitas vezes,<br />
no comportamento de toda uma geração, mostrar uma<br />
direção para o consumidor sobre o melhor gosto musical<br />
a melhor forma de fazer exercícios, a melhor roupa e<br />
mesmo a melhor sapato. Na TV e mesmo hoje na<br />
internet, é oferecido um mundo de sonhos sem conflito,<br />
em que a melhor margarina ou perfume abre as portas<br />
para a sociabilidade e o sucesso individual.<br />
Segundo Nelson Tomazi a propaganda menciona um<br />
mundo encantado de belos lares e sem sofrimentos<br />
sociais. É o caso dos anúncios das margarinas e outros<br />
produtos comestíveis que destacam famílias sorridentes,<br />
brancas, de classe média alta, reunidas à mesa e servidas<br />
por uma mãe Feliz e dedicada. O desejo de consumir<br />
atrelado ao formato de como é anunciado o consumo<br />
passa a ser sedutor. Independentemente de caráter útil de<br />
um objeto anunciado, está intimamente ligado ao prazer<br />
de adquirir ou experimentar algo diferente. Nesse sentido<br />
as grandes agenciais publicitárias, mostram, entre<br />
diversas técnicas de manipulação, figuras públicas,<br />
personagens de novelas e cantores e artistas de modo<br />
geral com peso de popularidade.<br />
Considerando a história da propaganda no Brasil, as<br />
mensagens desenvolvidas em direção ao consumidor<br />
mencionam sempre o prazer, dinheiro, saúde, felicidade<br />
da imagem como o belo corpo, aspectos esses que na<br />
vida real é conquistado por poucos.<br />
97
08<br />
Isso acontece por uma questão social; pois quem pode<br />
comprar e penetrar no mundo feliz do consumo é uma<br />
classe com um poder econômico mais significativo, e<br />
nesse caso, boa parte da população não adquire os bens<br />
de consumo tão bem divulgados nos meios de<br />
comunicação de massa.<br />
Os meios de comunicação acabam se tornando<br />
instrumentos de ideias propagandistas quanto à<br />
conformação do indivíduo com o mundo em que vive. A<br />
venda de imagens, ideologias e valores sobre produtos e<br />
serviços anunciados, atuariam como um eterno processo<br />
de alienação, no sentido de conformar o consumidor de<br />
forma passiva as mentiras destacadas.<br />
C om u n icaç ã o, C u lt u r a d e M assa e C u lt u r a P op u lar<br />
Fonte: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005/errata/fadel.pdf<br />
Rádio, televisão, internet. Os meios de comunicação, na<br />
atual conjuntura, evoluem tão rapidamente quanto a<br />
velocidade das informações, atingindo um grande<br />
número de pessoas, daí surgindo a expressão “meios de<br />
comunicação de massa”. Estes meios de comunicação<br />
exercem uma grande influência sobre a mentalidade da<br />
população, podendo ser desde questões financeiras até<br />
emocionais. E como há uma fugacidade de informações,<br />
a dificuldade de memorização das mensagens cresce a<br />
cada dia.<br />
Segundo o Aurélio, “comunicação” define-se como o<br />
“ato ou efeito de transmitir mensagens por meio de<br />
métodos e/ou processos convencionados”, a exemplo de<br />
um a linguagem verbal ou não-verbal.<br />
A televisão é um dos mais amplos processos<br />
convencionados, denominando-se assim de meio de<br />
comunicação de massa, pois pode transmitir ao mesmo<br />
tempo, uma linguagem verbal e uma não-verbal,<br />
utilizando os recursos de som e imagem como forma de<br />
entreter o telespectador.<br />
O conjunto destes telespectadores pode ser chamado de<br />
“massa”, que significa o aglomerado de um grande<br />
número de pessoas, formando um grupo com pouca ou<br />
nenhuma coesão.<br />
Uma maneira de atingir esta massa são os meios de<br />
comunicação, pois dizem respeito à comunicação em<br />
larga escala, em termos de distância, pessoas e produtos<br />
envolvidos. Porém, os integrantes desta massa podem<br />
sofrer os mesmos estímulos sem necessidade de contato<br />
pessoal, pois os modernos veículos de comunicação<br />
massiva (a exemplo do jornal e da revista) oferecem<br />
condições excepcionais para proporcionar a grandes<br />
coletividades o comum excitante.<br />
Já a memorização, que se denomina como alguma<br />
informação a ser guardada, lembrada; é um fenômeno de<br />
cada vez mais difícil aplicação por conta da imensa<br />
quantidade de mensagens que chegam até o receptor.<br />
Isso ocorre bastante entre os meios de comunicação de<br />
massa e o telespectador.<br />
Como consequência das tecnologias de comunicação<br />
aparecidas no século XX, e das circunstâncias<br />
geopolíticas configuradas na mesma época, a cultura de<br />
massa desenvolveu-se a ponto de ofuscar os outros tipos<br />
de cultura anteriores e alternativos a ela. Antes de haver<br />
cinema, rádio e TV, falava-se em cultura popular, em<br />
oposição à cultura erudita das classes aristocráticas; em<br />
cultura nacional, componente da identidade de um povo;<br />
em cultura clássica, conjunto historicamente definido de<br />
valores estéticos e morais; e num número tal de culturas<br />
que, juntas e interagindo, formavam identidades<br />
diferenciadas das populações.<br />
A chegada da cultura de massa, porém, acaba<br />
submetendo as demais “culturas” a um projeto comum e<br />
homogêneo — ou pelo menos pretende essa submissão.<br />
Por ser produto de uma indústria de porte internacional<br />
(e mais tarde, global), a cultura elaborada pelos vários<br />
veículos então recém-chegados esteve sempre ligada<br />
intrinsecamente ao poder econômico do capital industrial<br />
e financeiro. A massificação cultural, para melhor servir<br />
esse capital, requereu a repressão às demais formas de<br />
cultura — de forma que os valores apreciados passassem<br />
a ser apenas os compartilhados pela massa.<br />
A cultura popular, produzida fora de contextos<br />
institucionalizados ou mercantis, teve de ser um dos<br />
objetos dessa repressão imperiosa. Justamente por ser<br />
anterior, o popular era também alternativo à cultura de<br />
massa, que por sua vez pressupunha — originalmente —<br />
ser hegemônica como condição essencial de existência.
O que a indústria cultura percebeu mais tarde, é que ela<br />
possuía a capacidade de absorver em si os antagonismos<br />
e propostas críticas, em vez de combatê-lo. Desta forma,<br />
sim, a cultura de massa alcançaria a hegemonia:<br />
elevando ao seu próprio nível de difusão e exaustão<br />
qualquer manifestação cultural, e assim tornando-a<br />
efêmera e desvalorizada.<br />
A “censura”, que antes era externa ao processo de<br />
produção dos bens culturais, passa agora a estar no berço<br />
dessa produção. A cultura popular, em vez de ser<br />
recriminada por ser “de mau gosto” ou “de baixa<br />
qualidade”, é hoje deixada de lado quando usado o<br />
argumento mercadológico do “isto não vende mais” —<br />
depois de ser repetida até exaurir-se de qualquer<br />
significado ideológico ou político.<br />
No contexto da indústria cultural — da qual a mídia é o<br />
maior porta-voz — são totalmente distintos e<br />
independentes os conceitos de “popular” e<br />
“popularizado”, já que o grau de difusão de um bem<br />
cultural não depende mais de sua classe de origem para<br />
ser aceito por outra. A grande alteração da cultura de<br />
massa foi transformar todos em consumidores que,<br />
dentro da lógica iluminista, são iguais e livres para<br />
consumir os produtos que desejarem. Dessa forma, pode<br />
haver o “popular” (ou seja, o produto de expressão<br />
genuína da cultura popular) que não seja popularizado<br />
(“que não venda bem”, na indústria cultural) e o<br />
“popularizado” que não seja popular (vende bem, mas é<br />
de origem elitista).<br />
A ev olu ç ã o d os M eios d e C om u n icaç ã o d e M assa: o<br />
ex em p lo d os b logs<br />
"No futuro, todos terão direito a quinze minutos de<br />
fama". A célebre e profética frase de Andy Warhol virou<br />
lugar-comum desde o surgimento da Internet. Mas o<br />
auge do conceito parece só ter sido atingido nos últimos<br />
doze meses, com a multiplicação dos weblogs pela rede<br />
mundial de computadores.<br />
Um weblog, ou blog, como é popularmente conhecido, é<br />
uma espécie de diário virtual hospedado na Internet, e<br />
por isso acessível a milhões de pessoas. Neste “diário”<br />
que não necessita de uma atualização regular, o autor<br />
pode escrever sobre o assunto que desejar, quando<br />
desejar, sem intermediários. Com a sua chegada, basta<br />
apenas um computador conectado à Internet para que<br />
qualquer mortal possa fazer comunicação em massa.<br />
Há blogs individuais e coletivos, com mais de um autor.<br />
Os textos, ou posts são dispostos de forma cronológica,<br />
de modo que o mais recente apareça no topo da página.<br />
A maioria desses sites dispõe também de um sistema de<br />
comentários, que gera uma lista de discussão para cada<br />
post.<br />
A simplicidade do sistema, sua gratuidade e as inúmeras<br />
possibilidades que oferece atraíram milhões de pessoas<br />
pelo mundo, transformando o novo meio em uma febre,<br />
quase um fenômeno sociológico. Hoje em dia a rede<br />
mundial de computadores já contabiliza mais de 500 mil<br />
blogs ativos, segundo o site “Blogcensus”. Apesar de a<br />
metodologia da pesquisa ser discutível (cataloga somente<br />
os blogs que encontra através de links), o número dá uma<br />
ideia da popularidade dos diários virtuais.<br />
Na mesma pesquisa do Blogcensus, o português é<br />
apontado como a segunda língua mais utilizada nos blogs<br />
(só perde para o inglês), mas isso se deve principalmente<br />
à explosão do meio no Brasil, que aconteceu há mais<br />
tempo que em Portugal. Estima-se que no Brasil o<br />
número de blogs seja 50 vezes maior que em Portugal, e<br />
no ranking dos 25 blogs em língua portuguesa mais<br />
visitados, todos são brasileiros.<br />
A história dos blogs tem início em 1997, quando os<br />
primeiros sites com um formato semelhante ao que<br />
conhecemos hoje apareceram. Mas o maior salto só<br />
ocorreu em 1999, com a criação do Pitas, o primeiro site<br />
do tipo “faça-seu-próprio-blog”, destinado ao internauta<br />
sem conhecimentos de linguagem HTML. Logo depois,<br />
surgiu o Blogger, hoje a mais popular ferramenta para a<br />
construção de blogs. Os blogs podem ser também<br />
grandes provedores de informação, o que levou muitos<br />
estudiosos a pensarem novamente no tão decantado “fim<br />
do jornalismo”. A verdade, no entanto, é que seus<br />
autores continuam buscando informações nos meios<br />
jornalísticos tradicionais, de modo que os blogs<br />
representam melhor os programas de discussão na<br />
televisão ou a coluna de cartas dos leitores do jornal do<br />
que propriamente o meio jornalístico em si. Além do<br />
mais, a questão da credibilidade sempre vem à tona.<br />
Alguns blogs sustentam-se apenas com a narrativa de<br />
fatos irrelevantes para a maioria das pessoas, como<br />
aquilo que se fez no dia, expressando um desejo de<br />
contar em capítulos a vida cotidiana. Essa “evasão de<br />
privacidade” é curiosa e ao mesmo tempo característica<br />
dos tempos atuais, em que celebridades convidam<br />
revistas para relatarem o fim de um namoro ou suas<br />
últimas férias em Bora Bora.<br />
Essa vaidade inerente ao autor de um diário virtual é o<br />
principal alvo de alguns de seus críticos. Porém, é fato<br />
que esse tipo específico de blog é geralmente aquele que<br />
18
menos interesse desperta nos cibernautas. Querer saber<br />
quem a celebridade da hora está namorando é muito<br />
diferente de querer saber o que o joão-ninguém comeu<br />
no pequeno almoço.<br />
Entre adeptos e não adeptos, todos concordam que o<br />
espírito do “faça você mesmo” ou, para ser mais<br />
otimista, do “pense em você mesmo” que os blogs<br />
disseminaram é fascinante, e ainda vai produzir muitos<br />
efeitos interessantes.<br />
É visível a evolução dos meios de comunicação e suas<br />
influências sobre a sociedade, mas não devemos<br />
condená-la pura e simplesmente como uma grande vilã,<br />
já que através dela se adquire conhecimento e cultura,<br />
além da atualização de notícias sobre o mundo.<br />
Os meios de comunicação de massa possuem dois lados,<br />
mas cabe a cada cidadão analisar e assimilar aquilo que<br />
seja de seu interesse, não se deixando influenciar pelo<br />
poder que a mídia exerce, por mais que esta seja uma<br />
difícil tarefa, já que cada vez mais se torna difícil a<br />
memorização desta grande quantidade de informações.<br />
28
R efer ê n cia:<br />
BELTRÃO, Luiz. Sociedade de massa: comunicação e literatura. 1ª ed. Petrópolis: Vozes, 1972.<br />
BELTRÃO, Luiz. QUIRINO, Newton de Oliveira. Subsídios para uma Teoria da Comunicação de Massa. Vol. 13. São<br />
Paulo: Summus, 1986.<br />
LAZARSFELD, Paul. MERTON, Robert. “Comunicação de massa, gosto popular e ação social organizada”. IN COHN,<br />
Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. 3ª ed. São Paulo: ETP/EDUSP, 1983.<br />
38
SO C I E D A D E D E C O N T R O L E<br />
Enquanto a sociedade disciplinar se constitui de poderes<br />
transversais que se dissimulam através das instituições<br />
modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a<br />
sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade<br />
e pelo nomandismo que se expande junto às redes de<br />
informação.<br />
48<br />
Fonte:http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/sociedade%20dis<br />
ciplinar/Sociedade<br />
A passagem da modernidade para a contemporaneidade<br />
ocasionou a mudança de um modelo de sociedade. De<br />
uma sociedade vista por Foucault como “Disciplinar”,<br />
para um modelo de sociedade identificada por Gilles<br />
Deleuze (1992) como de “controle”. Hoje, nós<br />
encontramo-nos num momento de transição entre um<br />
modelo e outro. Estamos a sair de uma forma de<br />
encarceramento completo para uma espécie de controle<br />
aberto e contínuo.<br />
A chamada sociedade de controle é um passo à frente<br />
da sociedade disciplinar. Não que esta tenha deixado de<br />
existir, mas foi expandida para o campo social de<br />
produção. Segundo Foucault, a disciplina é interiorizada.<br />
Esta é exercida fundamentalmente por três meios globais<br />
absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Logo,<br />
com o colapso das antigas instituições imperialistas, os<br />
dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados.<br />
As instituições sociais modernas produzem indivíduos<br />
sociais muito mais moveis e flexíveis que antes. Essa<br />
transição para a sociedade de controle envolve uma<br />
subjetividade que não está fixada na individualidade. O<br />
indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence<br />
a todas. Mesmo fora do seu local de trabalho, continua a<br />
ser intensamente governado pela lógica disciplinar.<br />
A forma cíclica e o recomeço contínuo das sociedades<br />
disciplinares modernas dão lugar à modulação das<br />
sociedades de controle contemporâneas nas quais nunca<br />
se termina nada mas exige-se do homem uma formação<br />
permanente.<br />
Se nas sociedades disciplinares o modelo Panóptico é<br />
dominante, implica o observador estar de corpo presente<br />
e em tempo real a observar-nos e a vigiar-nos. Nas<br />
sociedades de controle esta vigilância torna-se rarefeita e<br />
virtual. As sociedades disciplinares são essencialmente<br />
arquiteturais: a casa da família, o prédio da escola, o<br />
edifício do quartel, o edifício da fábrica. Por sua vez, as<br />
sociedades de controle apontam uma espécie de antiarquitetura.<br />
A ausência da casa, do prédio, do edifício é<br />
fruto de um processo em que se caminha para um mundo<br />
virtual.<br />
É importante perceber que na sociedade de controle, o<br />
aspecto disciplinar não desaparece, apenas muda a<br />
atuação das instituições. Os dispositivos de poder que<br />
ficam circunscritos aos espaços fechados dessas<br />
instituições passam a adquirir total fluidez, o que lhes<br />
permite atuar em todas as esferas sociais. Entre os<br />
princípios norteadores desta dinâmica, destaca-se a<br />
abolição do confinamento enquanto técnica principal.<br />
As técnicas disciplinares originadas a partir do séc.<br />
XVIII destinavam-se a garantir que os indivíduos – por<br />
meio dos seus corpos – fossem submetidos a um<br />
conjunto de dispositivos de poder e de saber, baseados na<br />
vigilância permanente, na normalização dos seus<br />
comportamentos e na exposição a exames. Como forma<br />
de se produzir verdades sobre eles mesmos, essas<br />
práticas tinham como objectivo a extracção máxima das<br />
potencialidades e, portanto, as instituições como escolas,<br />
fábricas, hospitais – entre outros – cumpriam um papel<br />
fundamental na implementação desses mecanismos, com<br />
o objetivo de tornar os indivíduos dóceis.<br />
É neste sentido que a noção de confinamento,<br />
amplamente utilizada a partir do séc. XVIII, norteadora<br />
do funcionamento desses estabelecimentos, deixou de ser<br />
a estratégia principal do exercício do poder. O controle<br />
ao contrário, ultrapassa a fronteira entre o público e o<br />
privado. Aqui, reside um dos aspectos fundamentais na<br />
construção da passagem da sociedade disciplinar para a<br />
de controle: há um processo de instauração da lógica do
confinamento, em toda a sociedade, sem que seja<br />
necessária a existência de muros que separem o lado de<br />
dentro das instituições do seu exterior.<br />
Há uma vigilância contínua, concretizada pela<br />
propagação das câmaras espalhadas por toda a parte: no<br />
comercio, bancos, escolas e até mesmo nas ruas. Isto traz<br />
a dimensão da sociedade auto-vigiada, idealizada por<br />
Jeremy Bentham, cujo Panóptico expressa a sua<br />
concepção arquitetónica. Uma vigilância intensificada<br />
pela disseminação de dispositivos tecnológicos de<br />
vigilância presentes até mesmo ao “ar livre”. Todos<br />
podem e querem espiar todos. Trata-se da reinvenção do<br />
Panóptico benthaniano que passa a atuar com o objetivo<br />
de transformar, de maneira extensiva e intensiva, os<br />
modos de viver, pensar e agir dos indivíduos.<br />
Se a principal premissa da sociedade disciplinar era fazer<br />
com que o indivíduo modelasse o seu comportamento. A<br />
partir da possibilidade de estar a ser vigiado por alguém<br />
(inspetor), essa perspectiva transmutou-se. O que<br />
presenciamos na sociedade de controle é que houve uma<br />
espécie de incorporação da disciplina. A tal ponto, que os<br />
indivíduos podem estar sob os efeitos dos dispositivos<br />
disciplinares, independente, da presença de algum tipo de<br />
autoridade investida de poderes capazes de impor os<br />
procedimentos de poder e de saber.<br />
A sociedade de controle redimensiona e amplifica os<br />
pilares constituintes da sociedade disciplinar.<br />
Como argumenta G. Deleuze, a passagem de uma<br />
sociedade disciplinar a uma sociedade de controle, tem<br />
como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua<br />
virtualidade, para a tornar pura informação, parte dos<br />
dispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuir à<br />
imagem a potencialidade da informação, deslocamos a<br />
abordagem do campo de representação, passando a<br />
compreende-la enquanto a própria expressão dos<br />
acontecimentos. “Não creio que os media tenham muitos<br />
recursos ou vocação para captar um acontecimento.<br />
Primeiro, eles mostram com frequência o começo e o<br />
fim, ao passo que um acontecimento, mesmo breve,<br />
mesmo instantâneo prolonga-se” (Deleuze, 1992;<br />
Pág:198). Seja na cobertura de uma guerra, seja<br />
acompanhando as rotinas exibicionistas dos reality<br />
shows, as imagens que nos chegam parecem não se<br />
interessar mais pelo acontecimento, mas apenas em<br />
reafirmar o seu olhar omnipresente, sob o qual tudo se<br />
passa e nada passa despercebido.<br />
Um fenómeno recente que tem chamado a atenção de<br />
diversos estudiosos é os referidos reality shows. Tais<br />
programas expõem os seus participantes a situações<br />
limites e dão margem a uma série de análises. Um bom<br />
exemplo disso é o Big Brother que surgiu em 1999, na<br />
Holanda e foi criado pela produtora Endemol, uma das<br />
maiores empresas de entretenimento da Europa. O<br />
nome Big Brother foi inspirado no livro “1984” do<br />
escritor inglês George Orwell. Neste livro, todos os<br />
habitantes de um país fictício são vigiados diariamente,<br />
por câmaras que funcionam como olhos do governo. O<br />
autor alerta para o perigo de estarmos a caminhar para<br />
uma sociedade controlada por câmaras. Passados pouco<br />
mais de cinquenta anos da publicação do romance de<br />
Orwell, o receio do totalismo cedeu lugar à sedução,<br />
através da invasão de câmaras em programas televisivos.<br />
Em 2000, o programa Big Brother começou a ser<br />
exportado para outros países, como Alemanha, Espanha,<br />
Estados Unidos da América, Inglaterra, Portugal, Suiça,<br />
Suécia e Bélgica.<br />
Desde o início das sociedades modernas, os meios de<br />
comunicação contribuíram decisivamente para a<br />
construção da subjetividade dos seres humanos. Sempre<br />
em sintonia com o surgimento e consolidação das<br />
sociedades capitalistas modernas, os meios de<br />
comunicação desenvolveram-se de forma espantosa. É<br />
impossível pensar o mundo contemporâneo, sem levar<br />
em conta o papel dos “mass media”. Um dos traços<br />
fundamentais deste mundo contemporâneo é exatamente<br />
o inesgotável fluxo de imagens e de conteúdos<br />
simbólicos, disponibilizados pelos meios de<br />
comunicação a um número cada vez maior de pessoas, e<br />
que de certa maneira, conformam a realidade, as relações<br />
sociais e a subjetividade individual.<br />
A realidade do final do século exige cada vez mais que<br />
os sujeitos saibam lidar com uma imensa gama de<br />
informação que invadem diariamente a sua vida<br />
quotidiana, de uma forma desconhecida para as gerações<br />
precedentes. Lidar com o impacto deste fluxo acelerado<br />
de informações e, principalmente dar-lhe um significado,<br />
ou seja, interpretá-las integrando-as na sua visão do<br />
mundo, é hoje uma tarefa inevitável dos sujeitos<br />
modernos (Guareschi, 2000, pág.43).<br />
Uns dos aspectos a serem considerados no Big Brother<br />
são os valores implícitos no programa. Pode-se<br />
perceber estes valores através da sua estrutura e<br />
funcionamento, tais como: confinamento, vigilância,<br />
exclusão, fama, dinheiro, esforço, sorte, culto do herói,<br />
“salve-se quem puder”, negação do sofrimento psicosocial,<br />
“cada um por si e Deus por todos”.<br />
A vigilância, a fama e o confinamento são as<br />
características que conferem o carácter inédito do<br />
58
programa e<br />
telespectador.<br />
V igilâ n cia<br />
ficam em maior evidência para o<br />
A pergunta que se faz é, o que ocorreu, para que<br />
saíssemos do horror da vigilância, para imergirmos na<br />
apoteose voyerista, de contemplar supostamente em<br />
tempo integral, um grupo de indivíduos exibicionistas<br />
confinadas num espaço marcado por câmaras e<br />
microfones?<br />
O controle, na sociedade contemporânea, é exercido de<br />
modo “glamourizado” pela indústria cultural. Assim<br />
substituiu-se a guilhotina e a violência física por técnicas<br />
de controle social formadas dentro das ciências humanas<br />
e sociais, pela psicologia, psiquiatria e mais<br />
recentemente pelos meios de comunicação de massas.<br />
Em vez de usar a força física para fazer os corpos<br />
indóceis padecerem em razão de não se ajustarem, o que<br />
ocorre é tornar interna a ideológica exercida pelos meios<br />
de comunicação de massa, que produzem uma certa<br />
forma de ser, de viver, de pensar e de sentir.<br />
A estratégia atual é construir subjetividades, de forma a<br />
que estas se enquadrem no modo de vida oferecido pela<br />
sociedade, pois de acordo com Foucault, o poder<br />
moderno exerce-se na produção e na repressão.<br />
Hoje, os vigias do “Grande Irmão”, são todos os<br />
indivíduos, que auxiliados pela edição dos media ficam<br />
extasiados, fascinados diante da televisão, vigiando e<br />
controlando através dos votos (pois é um programa<br />
interativo), os passos dos doze participantes anónimos. O<br />
que, antes era temido – o controle e o vigiar – e também<br />
o que era protegido – a privacidade e a intimidade –<br />
tornam-se objetos de fascínio. Isto evidencia-se no<br />
primeiro imperativo para participar do show de realidade<br />
– Big Brother - que é a imposição da restrição do<br />
privado.<br />
Oferece-se aos participantes uma casa bem equipada em<br />
que se encontram 24 sobre 24 horas sob vigia, para que<br />
se tornem famosos, todavia, caso sejam excluídos e não<br />
ganhem o prémio máximo de cem mil euros, já tiveram a<br />
oportunidade de conquistar a fama. Troca-se desta<br />
maneira, a privacidade pela fama.<br />
A sociedade contemporânea é descrita por Debord<br />
(1994), como a sociedade do espetáculo, que substitui o<br />
lema “Penso logo existo”, por um outro ditado: “sou<br />
visto, logo existo” (Quinet, 2002). Ainda segundo este<br />
autor, a sociedade é dominada pelo olhar, que é<br />
omnividente sob diversas formas, que vão desde a<br />
proliferação dos programas televisivos de voyerismo e<br />
exibicionismo explícitos, até à difusão epidémica da<br />
vigilância, que multiplicam as câmaras encontradas a<br />
cada passo do indivíduo. Vive-se hoje, numa<br />
sociedade escópica que tem como espetáculo, a<br />
disciplina e controle. O olho que vigia e pune, é o mesmo<br />
que possibilita a fama.<br />
A fama parece ainda ser inseparável de um outro<br />
vínculo: a dor de se ter de separar do privado, da vida<br />
rotineira, para se lançar rumo a ser objeto do olhar do<br />
outro, desgarrado e desenraizado da sua forma de ser.<br />
Esta sociedade escópica impõe uma existência vinculada<br />
à visibilidade, e consequentemente à celebridade, mas<br />
por outro lado, amplia cada vez mais a vigilância e o<br />
controle sobre cada indivíduo. Quase já não é possível<br />
sair de casa sem nos depararmos com os dizeres “sorria,<br />
você está a ser filmado”. Verdade ou mentira, não<br />
importa, pois a frase faz existir um olhar invisível<br />
pousado no indivíduo. A instância desse olhar atribuído<br />
ao outro, é chamado por Freud de superego, que tem<br />
como um dos seus atributos vigiar e punir o indivíduo. A<br />
sociedade escópica, ao utilizar esta estrutura subjetiva,<br />
multiplica os seus dispositivos de vigilância electrónica e<br />
transforma-nos todos em objetos vistos e controláveis. A<br />
transparência, passa assim, a ser um ideal.<br />
C on fin am<br />
en t o<br />
Um dos meios utilizados pelos “mass media” para<br />
apresentar o programa “Big Brother” como um show de<br />
realidade, é afirmar que o confinamento deve traduzir<br />
sentimentos verdadeiros, pois não dá para protelar nem<br />
para recalcar emoções ou indisposições com os<br />
companheiros de cela. Na verdade, o confinamento sob<br />
esta perspectiva mantém uma tensão. De um<br />
determinado ponto de vista, poderia ser considerado um<br />
grande engano, pois como consta nas regras do<br />
programa os participantes são vigiados 24 horas por dia.<br />
Mas, “as pessoas uma vez observadas pela câmara<br />
começam a fazer poses, construindo uma real e própria<br />
encenação (Sodré, 1994, pág.36). “A partir desta fase, a<br />
real e própria encenação pode ser entendida como<br />
idealizada.<br />
Portanto, de outro ponto de vista, o desejo pela fama<br />
entendido “como a construção da auto imagem pela<br />
projeção de uma imagem para os outros” (Coelho, 1999),<br />
já produz uma amputação da subjetividade trazendo<br />
como um dos resultados, o impedimento de acionar<br />
instâncias psíquicas superiores.<br />
68
Assim, o que se mostra, não é fingimento ou teatro, pois<br />
a subjetividade sem a restrição da lei basta para se<br />
conformar as regras impostas pelo programa, e<br />
representar a sua identidade ideal, já capturada e ávida<br />
pela fama. Portanto, a vigilância já é um confinamento<br />
que determina uma forma de ser, uma vez que, sob<br />
vigilância, no palco, com os holofotes que potencializam<br />
a fama, há a transmutação de um ser pensante para um<br />
ser de origem. É bom lembrar, que a situação dos<br />
participantes dos reality shows, expostos a uma câmara<br />
24 horas por dia, e cientes de que a sua performance vai<br />
desembocar na sua exclusão ou permanência, tanto pelos<br />
seus parceiros como pelos telespectadores, são os<br />
elementos que confirmam a prisão do ser.<br />
Uma das propostas do Big Brother é a de transformar a<br />
privacidade em espetáculo. Importa salientar, que o que é<br />
apresentado na tela, não é a privacidade nua e crua de<br />
ninguém, pois a direção do programa seleciona alguns<br />
fragmentos de seu interesse. A partir disto, a intimidade é<br />
construída com música de fundo que sublinham ou criam<br />
climas, maquinados com lentes inusitadas que<br />
transformam o banal em inusitado. A intimidade exposta,<br />
é limitada não só pelas mudanças de comportamento já<br />
produzidas, via mudanças de valores da sociedade<br />
espetacular, regida pelos princípios do mercado, pelas<br />
regras do programa, como também elos recursos dos,<br />
mas media.<br />
O vencedor é o que padroniza um modelo de ser na<br />
cultura atual. É aquele que perde a intimidade e a<br />
identidade, aquele que se afasta dos seus e se submete a<br />
uma experiência de “prisão – show”, é julgado e<br />
sentenciado a cada comportamento e apresenta maior<br />
tolerância à privação. Enfim, aquele que muito perde, e<br />
no final é referenciado como vitorioso.<br />
A visibilidade “total” a que se submete um cidadão hoje<br />
em dia pode ser uma armadilha. A nossa sociedade vem<br />
criando cada vez mais uma condição de transparência<br />
dos seus participantes e, muitas vezes, estamos<br />
reivindicando para sermos modernos, a visibilidade.<br />
ampliada, como um direito, de alguns que permanecem<br />
na obscuridade e à margem da história recente ou num<br />
passado considerado longínquo.<br />
No entanto, convém lembrar que somos nós os<br />
produtores e produtos desta sociedade que criámos. Não<br />
somos simples marionetes deste jogo de forças, mas coautores<br />
no nosso silêncio, na “naturalidade” com que<br />
encaramos este estado das coisas.<br />
E st é t ica<br />
Por Luciano Ezequiel Kaminski Professor do Ensino Público em Curitiba, Paraná.<br />
Estética. As três Graças (1636-1638). Museu do Prado, Paris. http://cidade.usp.br<br />
B u sca d a B elez a<br />
A busca da beleza e a melhor forma de representá-la<br />
fazem parte do universo de preocupações humanas.<br />
Beleza essa que pode ser contemplada nas obras de arte,<br />
em objetos do uso cotidiano e no próprio corpo humano.<br />
Na história da humanidade, entretanto, pode-se notar que<br />
os padrões de beleza mudam de acordo com diferentes<br />
culturas e épocas e que esses padrões não estão somente<br />
presentes nas obras de arte.<br />
R eflet ir sob r e B elez a<br />
Mas o que faz um objeto (seja ele o corpo ou uma obra<br />
de arte) ser belo? A Estética, enquanto reflexão<br />
filosófica, busca compreender, num primeiro momento, o<br />
que é beleza, o que é belo. A preocupação com o belo,<br />
com a arte e com a sensibilidade, próprias da reflexão<br />
estética, nos permite pensar, segundo Vásquez em seu<br />
livro Convite à Estética, as nossas relações com o mundo<br />
sensível, o modo como as representações da<br />
sensibilidade dizem sobre o ser humano. Não se trata,<br />
portanto, de uma discussão de preferências,<br />
simplesmente com o fimde uniformizar os gostos. Então<br />
ela não poderá ser normativa, determinando o que deve<br />
ser, obrigatoriamente, apreciado por todos. Ela deve<br />
procurar, ao contrário, os elementos do conhecimento<br />
que permitem entender como funciona o nosso<br />
julgamento de gosto e nosso sentimento acerca da beleza,<br />
mas numa perspectiva geral, universal, isto é, válida e<br />
comum a todos<br />
78
8<br />
Ernest Fischer, em sua obra A Necessidade da Estética,<br />
mostra que a preocupação com a beleza sempre<br />
acompanhou o ser humano desde a fabricação de seus<br />
utensílios. O homem dedicou-se não apenas em fabricar<br />
objetos simplesmente para um uso prático. Além de<br />
serem funcionais esses objetos, por mais primitivos que<br />
fossem, demonstravam uma preocupação com a forma.<br />
Uma forma que facilitasse o manuseio, a funcionalidade,<br />
e que também os tornassemvisivelmente agradáveis –<br />
enfeites e adornos podiam compor esses objetos para<br />
enriquecê-los e torná-los mais atraentes aos sentidos.<br />
Essa preocupação estética tinha também uma função<br />
mágica e de culto.<br />
Objetos, danças, cantos, pinturas, templos, ligados aos<br />
mitos e ritos, tinham um objetivo religioso à medida em<br />
que poderiam invocar, por meio deles, a ação dos deuses.<br />
A beleza, demonstrada nessa preocupação com a forma<br />
está, nesse momento, muito ligada ao caráter prático ou<br />
mágico dos objetos. (FISCHER, 1987, p. 42-47)<br />
E n t r e os G<br />
r egos<br />
Foi entre os gregos antigos que a reflexão sobre o belo se<br />
abriu ao pensamento. Entretanto, como a arte, para eles,<br />
estava vinculada a alguma função (moral, social e<br />
política), ela não tinha sua identidade própria. Sócrates<br />
(470/469 a.C. – 399 a.C.) vai associar o belo ao útil.<br />
Portanto, um objeto que se adapta e cumpre sua função, é<br />
belo. Mesmo que não esteja adornado. Ele inaugura um<br />
tipo de estética funcional, utilitária que, se prestarmos<br />
atenção, está muito presente no nosso cotidiano, na<br />
produção dos objetos de uso corriqueiro, que também<br />
apresentam uma preocupação estética.<br />
Platão (427 – 348 a.C.) já não tem essa preocupação<br />
prática de encontrar objetos belos. Ele não se pergunta o<br />
que é belo, mas o que é “O Belo”. Ele não está<br />
preocupado com a beleza que se encontra nas coisas, mas<br />
numa beleza ideal. Isso quer dizer que os objetos só são<br />
belos na medida em que participam do ideal de beleza,<br />
que é perfeito, imutável, atemporal e supra-sensível, isto<br />
é, está além da dimensão material. Platão afirma que a<br />
beleza que percebemos no mundo material participa de<br />
um Belo ideal: “Quando se der a ocorrência de belos<br />
traços da alma que correspondam e se harmonizem com<br />
um exterior impecável, por participarem do mesmo<br />
modelo fundamental, não constituirá isso o mais belo<br />
espetáculo para quem tiver olhos de ver?” (PLATÃO,<br />
1997, p. 22) A característica fundamental nessa<br />
determinação do belo é a proporção do quanto um objeto<br />
consegue imitar o ideal de beleza; então pode-se<br />
caracterizá-lo como belo. A contemplação dessa beleza<br />
ideal também deve elevar a alma deixando o cidadão<br />
livre de suas paixões e dos prazeres do mundo material,<br />
afinal “... o mais belo é também o mais amável...”.<br />
(Ibidem)<br />
Outro importante filósofo grego é Aristóteles (384 – 322<br />
a.C.). Em contraposição a Platão, Aristóteles procurou o<br />
belo não num mundo ideal, mas na realidade. Em sua<br />
obra Poética ele constrói um manual de como se<br />
reproduz o belo nas diversas artes. Evidencia aí sua<br />
preferência pela tragédia, pois nela a imitação das ações<br />
humanas, as boas ou más, reproduziriam um efeito<br />
chamado catarse, isto é, uma purificação dos sentimentos<br />
ruins, a partir da sua visualização na arte, “... suscitando<br />
o terror e a piedade, tem por efeito, a purificação dessas<br />
emoções.” (ARISTÓTELES, 1997, p. 31), o que tornaria<br />
as pessoas melhores. O belo estava associado, em<br />
Aristóteles, ao conceito de bom e as artes tinham uma<br />
função moral e social, na medida em que reforçavam os<br />
laços da comunidade.<br />
Essas teorias a respeito do belo, principalmente de Platão<br />
e de Aristóteles, serão retomadas no final da Idade Média<br />
e, a partir do Renascimento, os filósofos recuperam a<br />
ideia de beleza relacionada à ordem, harmonia e<br />
proporção, que contribuem decisivamente para a<br />
formação da concepção de beleza clássica.<br />
No caso das esculturas gregas nota-se a busca de imitar<br />
as formas “perfeitas” do ser humano, a valorização da<br />
força física, da virilidade e da proporcionalidade, as<br />
quais ressaltam o equilíbrio e a unidade entre corpo e<br />
espírito, entre homem e cosmos, razão e sentimento, o<br />
que culminava na busca dessas formas consideradas<br />
perfeitas, nessas figuras idealizadas.<br />
N a I d ad e M<br />
é d ia<br />
Fonte: www.abcgallery.com<br />
A Virgem e a Criança com São Nícolas, São João Evangelhista, São Pedro e São<br />
Benedito (1300). Galeria de Uffizi, Florença, Itália. Têmpera em painel, de Giotto<br />
(1266-1337)
Observe nessa figura que, além do seu tema ser<br />
religioso, não existe a preocupação em retratar<br />
fielmente a figura dos corpos. As capelinhas, nas quais<br />
as personagens estão inseridas direcionam nosso olhar<br />
para o alto, embora os olhares delas estejam para baixo,<br />
numa referência à atenção e proteção dada aos homens.<br />
Essa visão grega sobre o corpo humano muda na Europa<br />
da Idade Média. A partir do século X, quando as<br />
invasões bárbaras terminaram, a Europa começou a se<br />
reorganizar politicamente e o cristianismo se tornou um<br />
dos elementos importantes dessa cultura. O corpo<br />
humano, nesse período, é associado ao mundo material,<br />
aos valores terrenos e é desprezado em relação aos<br />
valores espirituais. A força dos valores morais<br />
propagados pelo cristianismo, via Igreja Católica<br />
principalmente, privilegiam a fé, a religiosidade e a<br />
espiritualidade. O corpo é visto como o oposto da busca<br />
do divino, do eterno, uma vez que ele se torna símbolo<br />
do pecado, da tentação e do erro. Ainda desse período, e<br />
como exemplo desse privilégio do espiritual sobre o<br />
físico, pode-se notar a valorização do sofrimento, do<br />
martírio, do sacrifício do corpo, como forma de elevação<br />
espiritual. Nas muitas obras de arte medievais é possível<br />
verificar essa desconsideração pelas formas corporais<br />
quando percebemos as figuras humanas desenhadas de<br />
forma retilínea ou com formas triangulares, apontando<br />
para as alturas, numa referência ao céu, ao paraíso<br />
celeste.<br />
N o R en ascim<br />
en t o<br />
de Dionísio, o qual buscava o prazer na alegria, na<br />
embriagues do vinho e na força dos desejos. A beleza era<br />
vista como imitação da natureza, da realidade concreta,<br />
como representação do espiritual, do divino, na<br />
preocupação de encontrar a perfeita forma, a proporção e<br />
a harmonia.<br />
Os estudos de Leonardo da Vinci sobre o corpo nessa<br />
época, por outro lado, se apresentavam como pesquisas<br />
científicas no sentido de compreender a estrutura<br />
harmônica do corpo. Essas pesquisas forneceram a<br />
Leonardo o conhecimento sobre detalhes anatômicos do<br />
corpo e que influenciaram na criação de suas obras de<br />
arte.<br />
A partir da Idade Moderna, a visão científica,<br />
matemática e geométrica da natureza se desenvolve e<br />
também se estende ao corpo. Este torna-se objeto de<br />
pesquisas e passa a ser entendido como uma máquina<br />
que pode ser consertada, melhorada e, a partir desse<br />
conhecimento, elaboram-se discursos e práticas de<br />
controle e poder. As formas de controle e poder em torno<br />
do corpo visam a responder objetivos econômicos,<br />
sociais e morais, de contenção dos impulsos e instintos,<br />
de cura de enfermidades, para fins de produção, como no<br />
caso do sistema capitalista, onde os corpos são vistos<br />
como forças que devem ser preparadas e treinadas para o<br />
trabalho nas grandes indústrias. Ou ainda o corpo, que<br />
desde os suplícios e espetáculos punitivos medievais, e<br />
muito mais com o advento das prisões (ou mesmo nas<br />
indústrias e escolas) a partir do final do século XVIII, se<br />
torna objeto de controle político, pelo qual se mantém a<br />
ordem social e a dinâmica de dominação, como afirma o<br />
pensador francês contemporâneo Michel Foucault (1926-<br />
1985) “(...) o corpo é investido por relações de poder e<br />
de dominação; mas em compensação sua constituição<br />
como força de trabalho só é possível se ele está preso<br />
num sistema de sujeição (onde a necessidade é também<br />
um instrumento político cuidadosamente organizado,<br />
calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é<br />
ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”.<br />
(FOUCAULT, 1995, p. 28)<br />
Boticelli. Nascimento de Vênus.<br />
No Renascimento, movimento cultural ocorrido na<br />
Europa, a partir do século XV, os corpos são pintados<br />
retomando os ideais da antiguidade grega e romana. O<br />
corpo é representado com o objetivo de expressar a<br />
unidade entre o físico e o espiritual, numa referência à<br />
celebração da vida dionisíaca, que remete ao mito grego<br />
A E st é t ica M<br />
od er n a<br />
A Estética, enquanto uma reflexão própria sobre a<br />
beleza, surgiu no século XVIII, com o filósofo alemão<br />
Baumgarten (1714-1762). Seu surgimento se deu no<br />
contexto do Iluminismo, movimento filosófico cultural<br />
ocorrido na Europa, que conhecia, naquele momento, os<br />
grandes reis absolutistas. Foi contra aos abusos desses<br />
governantes que muitos pensadores se rebelaram. O<br />
98
Absolutismo era uma forma autoritária que os reis<br />
europeus utilizavam para governar suas nações. Controle<br />
absoluto das leis, das atividades econômicas, enfim, nada<br />
era feito sem o seu consentimento. A lei era o rei.<br />
A partir da Baixa Idade Média, entre os séculos XIV e<br />
XVI, com o crescimento das cidades a Europa sente<br />
algumas mudanças. No campo, os moinhos utilizados na<br />
estocagem da produção excedente, a rotatividade das<br />
terras que agilizava a produção e as feiras nos castelos<br />
que estimulavam o comércio, anunciavam que o sistema<br />
feudal precisava de mudanças. Na cidade, o avanço do<br />
comércio, inclusive entre cidades distantes e com outras<br />
nações, o avanço das cruzadas, que acabaram por levar<br />
não apenas a fé cristã para outras regiões da Europa, mas<br />
ampliaram as possibilidades de negócios, marcaram o<br />
surgimento de um novo sistema econômico: o<br />
capitalismo. Comerciantes que enriqueciam às custas da<br />
venda de excedentes, artesãos que aumentavam sua<br />
produção e suas rendas com a contratação de jovens,<br />
oriundos do campo que buscavam uma vida melhor nas<br />
cidades, surgia, dessa forma, uma classe social peculiar:<br />
a burguesia. O renascimento das cidades também<br />
estimulou o renascimento do comércio e com essas<br />
mudanças a burguesia, classe que impulsionou essas<br />
transformações, passou a enriquecer e conquistar espaço<br />
na sociedade europeia.<br />
Os reis, interessados nessas riquezas e na importância<br />
econômica da burguesia, ao mesmo tempo que protegia<br />
seus negócios (com soldados que acompanhavam<br />
caravanas e acordos comerciais com outras cidades ou<br />
com a cobrança de tarifas alfandegárias, por exemplo),<br />
dificultavam o enriquecimento e a participação política<br />
dessa classe. Os impostos pagos aos reis e dízimos, à<br />
Igreja, impediam a burguesia de crescer política e<br />
economicamente. Ao mesmo tempo em que havia uma<br />
certa proteção dos seus negócios pela monarquia também<br />
existia uma limitação das suas liberdades políticas e<br />
econômicas, pois a burguesia ficava limitada ao poder<br />
dos reis.<br />
O Iluminismo europeu veio responder e dar voz a essas<br />
exigências sociais. A partir dos ideais de liberdade,<br />
igualdade, fraternidade e de direitos políticos, os anseios<br />
políticos-econômicos da burguesia do século XVIII<br />
encontravam eco. Mas o Iluminismo não ficou restrito ao<br />
plano político e econômico. Ele também lançou suas<br />
luzes para a ciência, educação e para as artes.<br />
B au m<br />
gar t en e o B elo<br />
É no contexto acima que Baumgarten inaugura, em sua<br />
obra Estética, essa ciência ou teoria da beleza, “...como<br />
arte de pensar de modo belo, como arte análoga da<br />
razão...” (BAUMGARTEN, 1997, p. 74), como<br />
“...ciência do conhecimento sensitivo...” (Ibidem).<br />
O saber filosófico privilegia os conceitos: abstrações e<br />
sínteses que reúnem diversas ideias numa espécie de<br />
chave-geral, a partir da qual se compreende uma visão de<br />
mundo, uma teoria. Esses conceitos, por serem abstratos,<br />
foram supervalorizados e passaram a ter como que<br />
existência própria. Assim a filosofia construiu a chamada<br />
Metafísica.<br />
Uma dimensão do saber que, por referir-se ao que está<br />
além do físico, do material, parece ter dado as costas ao<br />
que é sensível. O pensamento conceitual, próprio da<br />
filosofia, durante muitos séculos deixou em segundo<br />
plano o terreno do mundo prático, da sensibilidade e dos<br />
afetos humanos.<br />
Nesse sentido é que Baumgarten refere-se à Estética<br />
como um conhecimento do sensível, que se utilizará de<br />
um instrumento análogo à razão: a representação<br />
sensível. Não se pode compreender a dimensão da<br />
sensibilidade humana com os mesmos instrumentos do<br />
pensamento abstrato. O que não quer dizer que se<br />
abandonará a razão, ou se reduzirá à natureza pura, mas<br />
que, como conhecimento, com sua pretensão de garantia,<br />
universalidade e generalidade, de validade enfim,<br />
precisaremos tanto da razão quanto do corpo.<br />
Na história da filosofia esse impasse entre conhecimento<br />
sensível e racional é recorrente. É próprio da filosofia a<br />
discussão sobre a relação entre o particular e o universal,<br />
sensível e racional, natural e o espiritual.<br />
Como se dá, por exemplo, a relação entre a reflexão<br />
teórica, abstrata e a experiência sensível, na produção do<br />
conhecimento dito verdadeiro? O que garante a verdade?<br />
Essa é uma das questões que a filosofia aborda ao se<br />
deparar com a realidade sensível.<br />
É preciso compreender a sensibilidade como uma<br />
companheira do pensamento conceitual, abstrato. Na<br />
discussão estética não se pode cair numa disputa sobre<br />
qual gosto é melhor ou pior, nem contentar-se com as<br />
simples impressões sensíveis que cada sujeito possui.<br />
Deve-se compreender intelectualmente como se dá o<br />
conhecimento sensível e como ele se relaciona com a<br />
razão.<br />
09
O meio-termo entre os objetos matérias, as coisas e o<br />
pensamento, a partir do qual se pode falar em<br />
conhecimento é a representação. O mundo sensível se dá<br />
ao pensamento a partir da representação, isto é, as coisas<br />
reais são apreendidas em nossa mente ao se converterem<br />
em imagens. Esse conhecimento sensitivo, segundo<br />
Baumgarten é um “...complexo de representações que<br />
subsistem abaixo da distinção” (Idem, p.79). Distinção<br />
entende-se por compreensão científica do mundo. Ocorre<br />
que, antes de conhecermos algo cientificamente, ele se<br />
nos apresenta como representação, ou seja, o objeto do<br />
saber não vai ao pensamento diretamente. Entre a esfera<br />
do pensamento puro e da realidade objetiva a<br />
representação é uma forma que o homem tem de<br />
conhecer a realidade. A compreensão da sensibilidade<br />
passa pelo contorno das representações. Aí não se trata<br />
de uma realidade pura e abstrata das coisas, nem de uma<br />
idealidade racional, mas de como aquilo que é sensível<br />
se torna representável e belo.<br />
Para Baumgarten, o belo é fruto de um consenso, de um<br />
acordo comum. Na parte III da sua Estética ele insere as<br />
três noções de consenso: “...o consenso dos pensamentos<br />
entre si em direção à unidade...” (Ídem, p. 79); “...o<br />
consenso da ordem...” (Idem, p. 80); “...consenso interno<br />
dos signos e o consenso dos signos com a ordem e com<br />
as coisas...” (Ibidem).<br />
Isso quer dizer que não se está falando do gosto<br />
individual, subjetivo apenas. Mas num acordo comum.<br />
Esse acordo entre pensamento, ordem e signos exige que<br />
os indivíduos tenham uma destreza, uma perspicácia,<br />
imaginação, sutileza de espírito, gosto refinado e<br />
apurado, enfim uma aptidão para reconhecer e expressar<br />
a força e a elegânciade objetos belos.<br />
O consenso e harmonia que se dão entre os que possuem<br />
essas qualidades, se conquistam pelo “exercício<br />
estético”, isto é, uma contemplação constante, um<br />
convívio regular com as obras de arte, o que permitiria<br />
uma “...gradual aquisição do hábito de pensar com<br />
beleza...”<br />
(Idem, p. 87), podem garantir a universalidade do belo.<br />
E st é t ica C on t em<br />
p or â a n e<br />
Os Comedores de Batata (1885), óleo sobre tela de Van Gogh (1853-1890).<br />
Fundação Vincent van Gogh, Amesterdã. Observe nessa obra a<br />
despreocupaçãoem retratar a beleza, mas representar o cotidiano de uma família.<br />
www.pralmassi.blig.ig.com.<br />
A partir do século XIX, com o desenvolvimento da<br />
sociedade industrial e nova realidade urbana, esse ideal<br />
de beleza vai mudando e as artes passam a representar os<br />
problema gerados pela nova estrutura social, como a<br />
exploração do trabalho, as guerras, os contrastes entre<br />
cidade e campo e os demais conflitos sociais.<br />
O desenvolvimento das novas tecnologias de<br />
comunicação interfere na formação de novos padrões de<br />
gosto e redimensionam as noções de beleza. Essas<br />
mudanças podem ser percebidas mais facilmente com o<br />
advento da mídia, e são fortemente influenciadas por ela.<br />
Pelo poder desses veículos de comunicação de massa,<br />
esses ideais de beleza tornam-se cada vez mais<br />
uniformizados e voltados para o consumo.<br />
A comercialização que se faz em torno desses novos<br />
padrões de beleza geram novas preocupações com o<br />
corpo, que torna-se um objeto de propaganda e de<br />
consumo. Por trás desse olhar sobre o corpo, produzemse<br />
discursos que visam controle e poder. Neste caso, com<br />
fins econômicos explícitos e com sérias consequências<br />
éticas a serem discutidas.<br />
19
29<br />
K an t e o Sen t im en t o d o B elo<br />
Emmanuel Kant (1704-1804).<br />
Immanuel Kant escreveu, dentre outras, três grandes<br />
obras, consideradas as principais por representarem o<br />
cerne do seu pensamento: A Crítica da Razão Pura, A<br />
Crítica da Razão Prática e a Crítica dos Juízos. Discute<br />
sobre o conhecimento na primeira, e sobre a moral na<br />
segunda. O filósofo refletiu, na terceira Crítica, sobre os<br />
juízos estéticos.<br />
Entre os problemas relacionados à dimensão prática da<br />
vida, das ações humanas e da dimensão do conhecimento<br />
racional, intelectual está a dificuldade de se compreender<br />
melhor a dimensão da sensibilidade.<br />
Qual a relação entre o mundo concreto e as ideias? Como<br />
é possível que as coisas sensíveis, materiais, possam se<br />
tornar conhecimento intelectual? Como se dá a relação<br />
entre o que é natural, determinado e limitado com as<br />
ideias, com o que é indeterminado e livre?<br />
Para Kant a ponte entre a faculdade cognitiva (o<br />
intelecto) e a dimensão da sensibilidade, é a faculdade do<br />
juízo, relacionada aos sentimentos.<br />
Sentimentos esses que não devem ser compreendidos em<br />
termos de emoções (ódio ou amor, por exemplo). Esse<br />
sentimento que Kant vai investigar na Crítica da<br />
faculdade do Juízo é o sentimento estético, o sentimento<br />
de prazer e desprazer que se tem a partir de um tipo<br />
específico de objetos representados. Observe que Kant<br />
fala em sentimentos e não em sensação de agradável ou<br />
desagradável. Enquanto apenas a sensação de gostar ou<br />
não de algo parece muito subjetiva, o que<br />
impossibilitaria qualquer pretensão à universalidade, a<br />
ideia de sentimento dá mais força à impressão que as<br />
representações da sensibilidade causam no sujeito. Essa<br />
força nos faz pensar na possibilidade de que os<br />
sentimentos seriam mais comuns, isto é, que eles se<br />
apresentem da mesma forma a outras pessoas e, por isso,<br />
comunicáveis.<br />
Kant afirma que o juízo de gosto “...não é (...) nenhum<br />
juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e<br />
sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo<br />
fundamento de determinação não pode ser, senão,<br />
subjetivo” (KANT, 1997, p. 93). Esses juízos, embora se<br />
remetam a algum objeto em particular, um objeto real,<br />
uma obra de arte, por exemplo, ou uma paisagem da<br />
natureza, não dizem a respeito do objeto. No juízo de<br />
gosto não se faz referência ao objeto, como num juízo de<br />
conhecimento, mas se refere ao modo como o sujeito é<br />
afetado pela representação pura deste objeto.<br />
Esses juízos de gosto ou juízos estéticos, segundo Kant,<br />
possuem três alcances: o belo, o agradável e o útil.<br />
Quanto ao agradável e ao útil, que são sentimentos<br />
despertados em vista de fins e interesses particulares,<br />
eles são contrários ao sentimento do belo, pois este é<br />
desprovido de qualquer interesse ou finalidade que não<br />
seja ele próprio.<br />
O sentimento de beleza que se tenha diante de algum<br />
objeto não pode estar atrelado, segundo Kant, a nenhum<br />
interesse ou utilidade a que ele possa estar ligado.<br />
Quando utilizamos ou temos muita necessidade dele em<br />
vista de algum fim, não estamos em condições de<br />
vislumbrar sua beleza: “Cada um tem de reconhecer que<br />
aquele juízo sobre beleza, ao qual se mescla o mínimo<br />
interesse, é muito faccioso e não é nenhumjuízo-de-gosto<br />
puro” (Idem, p. 96).
O<br />
b ser v aç ã o<br />
Este material foi elaborado tomando como base o Livro de filosofia utilizado no Estado do Paraná. Adaptando textos e<br />
fazendo os recortes de acordo com as necessidades do material aqui disponível.<br />
Duas partes, o pleno e o vazio. O pleno é dividido em pequenas partículas, chamadas átomos. Os átomos são indivisíveis,<br />
infinitos, eternos, absolutamente simples; são todos iguais em qualidade, diferem em forma, ordem e posição. Qualquer<br />
substância é feita desses átomos, cujas possíveis combinações são infinitas. Os objetos existem enquanto os átomos que os<br />
constituem se mantiverem juntos. As mudanças da realidade explicam-se pela contínua agregação e desagregação de<br />
átomos.<br />
Os átomos são indestrutíveis e a teoria aparece como um princípio de conservação da matéria.<br />
Como se movem os átomos, como se aproximam ou ligam, como se separam, porque se agrupam de uma maneira ou outra,<br />
são questões que nem sequer eram formuladas e só mais de 20 séculos depois começaram a ser abordadas.<br />
Para Demócrito a alma (psyche) é corpórea, mas feita dos átomos mais leves e mais móveis (esféricos por terem mais<br />
mobilidade).<br />
Existe um pouco destes átomos leves em todas as coisas, o que significa que há alma em tudo. Assim explicava a<br />
capacidade das coisas causarem sensações. O "materialismo" de Demócrito era pois de tipo especial. A sua teoria atómica<br />
era bastante completa pois procurava explicar também os sonhos, os mistérios e o destino.<br />
Alguns autores atribuem a origem da teoria atómica de Leucipo e Demócrito a teorias que teriam sido desenvolvidas na<br />
Índia, e outros a origens fenícias. Não é provável que tal acontecesse embora influências estranhas possam estar na base da<br />
teoria de Leucipo e Demócrito.<br />
As analogias entre a teoria atómica grega e as modernas teorias desenvolvidas a partir de Dalton, são por vezes exageradas.<br />
Há uma diferença abismal entre uma teoria filosófica que não pode ser testada e uma teoria científica sujeita a inúmeras<br />
confirmações experimentais.<br />
Fontes:<br />
GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.<br />
FERNANDES, Vladimir. Seminários de Estudos em Epistemologia e Didática. Universidade de São Paulo; Faculdade de<br />
Educação, 2007.<br />
HRYNIEWICZ, Severo. Para filosofar hoje. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2008.<br />
TORRANO, José Antônio Alves. O sentido de Zeus: o mito do mundo e o modo mítico de ser no mundo. São Paulo:<br />
Iluminuras, 1996.<br />
VASCONCELOS, Ana. Manual compacto de filosofia. São Paulo: Rideel, 2010.<br />
http://historiadafilosofia.wordpress.com/2009/01/25/capitulo-3-%E2%80%93-as-novas-cosmologias-dos-atomistas/<br />
39
SOCIOLOGIA<br />
59
SUMÁRIO<br />
A ”GÊNESIS SOCIOLÓGICA” .....................................................................<br />
AS TEORIAS SOCIOLÓGICAS NA COMPREENSÃO DO PRESENTE ....<br />
A PRODUÇÃO SOCIOLÓGICA BRASILEIRA ..........................................<br />
O PROCESSO DE TRABALHO E A DESIGUALDADE SOCIAL ...............<br />
O MUNDO DO TRABALHO .......................................................................<br />
MOVIMENTOS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE ........................<br />
99<br />
104<br />
114<br />
119<br />
124<br />
129<br />
79
A ”GÊNESIS SOCIOLÓGICA”<br />
acreditava que o aspecto material do mundo seria um<br />
tipo de fruto imperfeito das idéias universais, as quais<br />
existem por si mesmas. Aristóteles já mencionava que o<br />
homem era um ser que, necessariamente, nasce para estar<br />
vivendo em conjunto, isto é, em sociedade. No seu livro<br />
chamado Política, no qual consta um estudo dos<br />
diferentes sistemas de governo existentes, percebe-se o<br />
seu interesse em entender a sociedade.<br />
I d ad e M<br />
é d ia<br />
Por Everaldo Lorensetti – Professor de <strong>Sociologia</strong> no Estado do Paraná.<br />
Nesse início de trabalho, buscaremos conhecer como a<br />
<strong>Sociologia</strong> surgiu, para depois sabermos como é que ela<br />
pode nos ajudar a entender a sociedade, bem como os<br />
problemas levantados pela atividade anterior. Vamos<br />
fazer um passeio pela história para encontrarmos suas<br />
bases. Acompanhe:<br />
C om o t u d o com eç ou !<br />
Apesar da ciência sociológica ser considerada nova, pois<br />
ela se consolidou por volta do século XIX, a angústia de<br />
se entender as sociedades, por sua vez, não é tão nova<br />
assim. Se olharmos para a Grécia Antiga, vamos ver que<br />
lá já havia o desejo de se entender a sociedade.<br />
No século V a.C, havia uma corrente filosófica, chamada<br />
sofista, que começava a dar mais atenção para os<br />
problemas sociais e políticos da época. Porém, não foram<br />
os gregos os criadores da <strong>Sociologia</strong>.<br />
Mas foram os gregos que iniciaram o pensamento crítico<br />
filosófico. Eles criaram a <strong>Filosofia</strong> (que significa amor<br />
ao conhecimento) e que, por sua vez, foi um impulso<br />
para o surgimento daquilo que chamamos, hoje, de<br />
ciência, a qual se consolidaria a partir dos séculos XVI e<br />
XVII, sendo uma forma de interpretação dos<br />
acontecimentos da sociedade mais distanciada das<br />
explicações míticas.<br />
Foram com os filósofos gregos Platão (427-347 a.C) e<br />
Aristóteles (384-322 a.C), que surgiram os primeiros<br />
passos dos trabalhos mais reflexivos sobre a sociedade.<br />
Platão foi defensor de uma concepção idealista e<br />
Séculos mais tarde, no período chamado de Idade Média<br />
(que vai do século V ao XV, mas exatamente entre os<br />
anos 476 a 1453), houve, segundo os renascentistas (que<br />
vamos conhecer mais à frente), um período de “trevas”<br />
quanto à maneira de ver o mundo.<br />
Segundo eles, havia um prevalecer da fé, onde os campos<br />
mítico e religioso, tendiam a oferecer as explicações<br />
mais viáveis para os fatos do mundo. Na Europa<br />
Medieval, esse predomínio religioso foi da Igreja<br />
Católica.<br />
Tal predomínio da fé, de certo modo, e segundo os<br />
humanistas renascentistas, asfixiava as tentativas de<br />
explicações mais especulativas e racionais (científicas)<br />
sobre a sociedade. Não cumprir uma regra ou lei<br />
estabelecida pela sociedade, poderia ser entendido como<br />
um pecado, tamanha era a mistura entre a vida cotidiana<br />
e a esfera sobrenatural.<br />
É claro que se olharmos a Idade Média somente pela<br />
ótica dos renascentistas ela pode ficar com uma “cara<br />
meio tenebrosa”. Na verdade, ela também foi um período<br />
muito rico para a história da humanidade, importante,<br />
inclusive, para a formação da nossa casa, o mundo<br />
9
ocidental. Vale a pena conhecermos um pouco mais<br />
sobre essa história.<br />
E, na continuidade da história...<br />
T u d o cam<br />
in h av a p ar a o u so d a r az ã o<br />
O predomínio, na organização das relações sociais, dos<br />
princípios religiosos durou até pelos menos o século XV.<br />
Mas já no século XIV começava a acontecer uma<br />
renovação cultural. Era o início do período conhecido<br />
por Renascimento.<br />
Os renascentistas, com base naquilo que os gregos<br />
começaram, isto é, a questionar o mundo de maneira<br />
reflexiva (como já contamos anteriormente), rejeitavam<br />
tudo aquilo que seria parte da cultura medieval, presa aos<br />
moldes da igreja, no caso, a Católica.<br />
O renascimento espalhou-se por muitas partes da Europa<br />
e influenciava a arte, a ciência, a literatura e a filosofia,<br />
defendendo, sempre, o espírito crítico.<br />
Nesse tempo, começaram a aparecer homens que, de<br />
forma mais realista, começavam a investigar a sociedade.<br />
A exemplo disso temos Nicolau Maquiavel (1469-1527)<br />
que, em sua obra intitulada de O Príncipe, faz uma<br />
espécie de manual de guerra para Lorenzo de Médici.<br />
Ali comenta como o governante pode manipular os<br />
meios para a finalidade de conquistar e manter o poder<br />
em suas mãos.<br />
Obras como estas davam um novo olhar para sociedade,<br />
olhar pelo qual, através da razão os homens poderiam<br />
dominar a sociedade, longe das influências divinas.<br />
Era a doutrina do antropocentrismo ganhando força. O<br />
homem passava a ser visto como o centro de tudo,<br />
inclusive do poder de inventar e transformar o mundo<br />
pelas suas ações.<br />
Além de Maquiavel, outros autores renascentistas, como<br />
Francis Bacon (1561-1626), filósofo e criador do método<br />
científico conhecido por experimental, ajudavam a dar<br />
impulso aos tempos de domínio da ciência que se<br />
iniciavam.<br />
N ã o p er d en d o d e v ist a. . .<br />
Estamos contando tudo isso para que você perceba que<br />
nem sempre as pessoas puderam contar com a ciência<br />
para entender o mundo, sobretudo o social, que é o<br />
queremos compreender.<br />
Dessa maneira, muitas pessoas no passado, ficaram<br />
‘presas’ principalmente, àquelas explicações a respeito<br />
da realidade que eram baseadas na tradição, em mitos<br />
antigos ou em explicações religiosas.<br />
O I lu m in ism o<br />
Já no século XVIII, houve um momento na Europa,<br />
chamado de Iluminismo, que começou na Inglaterra e na<br />
França, mas que posteriormente espalhou-se por todo o<br />
continente em que a ideia de valorizar a ciência e a<br />
racionalidade no entendimento da vida social tornou-se<br />
ainda mais forte.<br />
Uma característica das ideias do Iluminismo era o<br />
combate ao Estado absoluto, ou absolutismo, que<br />
começou a surgir na Europa ainda no final da Idade<br />
Média, no século XV, em que o rei concentrava todo o<br />
poder em suas mãos e governava sendo considerado um<br />
representante divino na terra, uma voz de Deus, a qual<br />
até a igreja, não raramente, se sujeitava.<br />
Com a ciência ganhando força, era, digamos, inviável o<br />
fato de voltar a pensar a vida e a organização social por<br />
vias que não levassem em conta as considerações da<br />
ciência em debate com as de fundo religioso. Como por<br />
exemplo, imaginar os governantes como sendo<br />
representantes sobrenaturais.<br />
Nesse período, a continuada consolidação da reflexão<br />
sistemática sobre a sociedade foi ajudada por autores<br />
como Voltaire (1694-1778), filósofo que defendia a<br />
razão e combatia o fanatismo religioso; Jean-Jacques<br />
Rousseau (1712-1778), que estudou sobre as causas das<br />
desigualdades sociais e defendia a democracia;<br />
Montesquieu (1689-1755), que criticava o absolutismo, e<br />
defendia a criação de poderes separados (legislativo,<br />
judiciários e executivo), os quais dariam maior equilíbrio<br />
ao Estado, uma vez que não haveria centralidade de<br />
poder na mão do governante.<br />
P or t an t o, com a con t r ib u iç ã o I lu m in ist a a partir das<br />
teorias sobre a sociedade que no período Iluminista<br />
surgiram, é que começa a ser impulsionada, ou<br />
preparada, a ideia da existência de uma ciência que<br />
pudesse ajudar a interpretar os movimentos da própria<br />
sociedade.<br />
01
M<br />
C d C R<br />
I n d r<br />
on solid aç ã o o ap it alism o e a ev olu ç ã o<br />
u st ial!<br />
Estamos mudando de assunto?<br />
Mudando em parte, porém não estamos deixando de falar<br />
do surgimento da <strong>Sociologia</strong>. Há outros elementos que a<br />
motivaram surgir.<br />
As transformações na sociedade europeia não estavam<br />
ocorrendo somente no campo das ideias, como era o caso<br />
da consolidação da ciência como ferramenta de<br />
interpretação do mundo, que vimos até aqui.<br />
Há também a consolidação do sistema capitalista,<br />
culminando com a Revolução Industrial, que ocorreu em<br />
meados do século XVIII, na Inglaterra, gerando grandes<br />
alterações no estilo de vida das pessoas, sobretudo nas<br />
das que viviam no campo ou do artesanato. Estes temas<br />
despertavam o interesse de críticos da época.<br />
Dessa maneira, quando a <strong>Sociologia</strong> iniciou os seus<br />
trabalhos, ela o fez com base em pensadores que viram<br />
os problemas sociais ocasionados a partir da crise gerada<br />
pelos fatos acima mencionados.<br />
R ecor r en d o à H ist ó r ia p ar a en t en d er m os<br />
Podemos dizer que o início do sistema capitalista se deu<br />
na chamada Baixa Idade Média, entre os séculos IX e<br />
XV, na Europa Ocidental.<br />
A partir do século XI, com as “cruzadas” realizadas pela<br />
Igreja Católica, para conquistar Jerusalém que estava<br />
dominada pelos muçulmanos, um canal de circulação de<br />
riquezas na Europa foi aberto.<br />
O contato cultural e o comércio do ocidente com o<br />
oriente europeu foram retomados via Mar Mediterrâneo.<br />
Com a movimentação de pessoas e riquezas houve, na<br />
Europa ocidental, o surgimento de núcleos urbanos,<br />
conhecidos por burgos. Destes, ressurgiram as cidades,<br />
pois existiam poucas naquele tempo.<br />
As chamadas corporações de ofício, que eram uma<br />
espécie de associação que organizava as atividades<br />
artesanais para ter acordo entre os preços de venda e<br />
qualidade do produto, por exemplo, começaram a<br />
aparecer a fim de regular o trabalho dos artesões que<br />
vinham para as cidades exercer sua profissão. Aqui<br />
vemos que a ideia do lucro se fortalecia.<br />
“Quase não existiam cidades...”<br />
Descubra pela história o porquê do fato que acima é<br />
mencionado. Não lhe soa estranho? O que fez com que<br />
isso ocorresse? Tal fato poderá se repetir algum dia em<br />
alguma sociedade? Vamos discutir pensando o nosso<br />
mundo, hoje.<br />
ais t ar d e, os eu r op eu s começaram a explorar o<br />
comércio em termos mundiais, principalmente depois<br />
dos séculos XV e XVI e das chamadas Grandes<br />
Navegações.<br />
Por exemplo, com o descobrimento da América, muita<br />
riqueza daqui era levada à Europa para a criação de<br />
mercadorias que seriam vendidas nesse mercado mundial<br />
que estava surgindo. A ideia de uma produção em série<br />
de mercadorias começava a surgir.<br />
As antigas corporações de ofícios foram transformadas<br />
pelos comerciantes da época em manufatura. O trabalho<br />
manufatureiro acontecia com vários artesãos, em locais<br />
separados e dirigidos por um comerciante que dava a eles<br />
a matéria-prima e as ferramentas. No final do trabalho<br />
encomendado, os artesões recebiam um pagamento<br />
acertado com o comerciante.<br />
Mais à frente ainda, os comerciantes (futuros<br />
empresários capitalistas) pensaram que seria melhor<br />
reunir todos esses artesãos num só lugar, pois assim<br />
poderiam ver o que eles estavam produzindo. Além de<br />
cuidar da qualidade do produto, o controle sobre a<br />
matéria-prima e ritmo da produção poderia ser maior.<br />
A id eia d a fá b r ica. . .<br />
Um lugar com uma produção mais organizada, com a<br />
acentuação da divisão de funções, onde o artesão ia<br />
deixando de participar do processo inteiro de produção<br />
da mercadoria e onde passava a operar apenas parte da<br />
produção. Desse ponto para a implantação das máquinas<br />
movidas a vapor, restava somente o tempo da invenção<br />
das mesmas.<br />
Quando o inventor escocês James Watt (1736-1819)<br />
conseguiu patentear a máquina a vapor, em abril de<br />
1784, ela veio dar grande impulso à industrialização que<br />
se instalava, aumentando a produção, diminuindo os<br />
gastos com mão-de-obra e aumentando o acúmulo de<br />
capital.<br />
101
201<br />
V ej a o q u ad r o q u e se m<br />
on t av a<br />
O sistema feudal da Europa Ocidental, estava sendo<br />
superado. Ele não conseguiria suprir as necessidades dos<br />
novos mercados que se abriam. O sistema capitalista,<br />
com base na propriedade privada e no lucro, isto é, na<br />
acumulação de capital, estava sendo consolidado.<br />
A partir da Revolução Industrial (século XVIII), as<br />
cidades da Europa Ocidental começavam a se<br />
transformar em grandes centros urbanos comerciais e,<br />
posteriormente, industriais. Muitas delas “inchadas” por<br />
desempregados. O estilo de vida das pessoas estava se<br />
transformando – para alguns de forma violenta e radical<br />
– como era o caso de muitos camponeses que eram<br />
expulsos pelos senhores das terras que as cercavam para<br />
criar ovelhas e fornecer lã às fábricas de tecidos.<br />
Já no caso dos artesãos, esses “perdiam” sua qualificação<br />
profissional e o controle sobre o que produziam, ou seja,<br />
de profissionais, passavam a “não ter profissão”, pois a<br />
indústria era quem ditava que tipo de profissional<br />
precisava ser. Não importava se fossem grandes artesãos,<br />
só precisariam aprender a operar a máquina da fábrica.<br />
Se fosse hoje, usaríamos o termo aprender a “apertar<br />
botões”. Dessa maneira, como não tinham capital para<br />
ter uma produção autônoma e competir com a fábrica,<br />
submetiam-se ao trabalho assalariado.<br />
Novas e grandes invenções estavam sendo realizadas no<br />
campo tecnológico, como as próprias máquinas a vapor<br />
das indústrias. O comércio mundial estava aumentando<br />
cada vez mais. O mundo estava “encolhendo”, em<br />
termos de fronteiras comerciais e ficando “europeizado”.<br />
E em meio a isto, duas classes distintas emergiam: a<br />
composta pelos empresários e banqueiros, chamada de<br />
classe burguesa, e a classe assalariada, ou proletária.<br />
A classe burguesa é aquela que ao longo do tempo veio<br />
acumulando capital com o comércio e reteve os meios de<br />
produção em suas mãos, isto é, as ferramentas, os<br />
equipamentos fabris, o espaço da fábrica, etc., bem como<br />
o poder político. Já a classe proletária, sem capital e<br />
expropriada dos meios de produção por meio de sua<br />
expulsão<br />
dos feudos e das terras comuns, tornava-se fornecedora<br />
de mão-de-obra aos donos das fábricas.<br />
O quadro social na Europa Ocidental do período passava,<br />
então, por transformações profundas, provocadas pela<br />
consolidação do sistema capitalista, pela valorização da<br />
ciência contrapondo as explicações míticas a respeito do<br />
mundo, pela abertura de mercados mundiais e pelos<br />
conflitos derivados das condições de vida miseráveis dos<br />
operários, confrontadas com o enriquecimento da classe<br />
burguesa. É em meio a todas essas mudanças que a<br />
<strong>Sociologia</strong> começa a ser pensada como sendo uma<br />
ciência para dar respostas mais elaboradas sobre os<br />
novos problemas sociais.<br />
A <strong>Sociologia</strong> e suas teorias, se constituem ferramentas de<br />
reflexão sobre a sociedade industrial e científica que<br />
surgia.<br />
O Q u e é o Sist em a C ap it alist a:<br />
A propriedade privada é sua característica mais forte. O<br />
capitalista é aquele que a possui, isto é, a empresa ou os<br />
meios de produção.<br />
Os empregados são aqueles que vendem sua força de<br />
trabalho para o capitalista.<br />
E o lucro, além da recuperação do capital investido na<br />
fabricação dos bens a serem vendidos, é a meta deste<br />
sistema.<br />
Distinção de classes: embora não a única, a propriedade<br />
ou não dos meios de produção é a primeira e mais<br />
importante condição que separa os indivíduos em<br />
diferentes classes sociais.
R E FE R Ê N C I A S:<br />
ALVES, R. <strong>Filosofia</strong> d a ciê n cia. São Paulo: Ars Poética, 1996.<br />
AZEVED , F. P r in cí p ios d e <strong>Sociologia</strong>: pequena introdução ao estudo da sociologia<br />
geral. 11ª ed. – São Paulo: Duas Cidades, 1973.<br />
CASTRO, A. M. DIAS, Edmundo Fernandes. C on t ex t o h ist ó r ico d o ap ar ecim<br />
en t o<br />
d a sociologia. In.: Introdução ao pensamento sociológico. São Paulo:<br />
Centauro, 2001.<br />
CHAUI, M. S. O q u e é id eologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.<br />
MAQUIAVEL, N. O p r í n cip e. São Paulo: Martins Fontes, 1990.<br />
MARX, K. O cap it al: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand<br />
Brasil, 1994.<br />
MARX, K; ENGELS, F. O m an ifest o d o p ar t id o com u n ist. aRio de Janeiro: Paz<br />
e Terra, 1998.<br />
301
A S T E O R I A S SO C I O L Ó G I C A S N A C O M P R E E N SÃ O D O<br />
P R E SE N T E<br />
Por Everaldo Lorensetti – professor no Estado do Paraná.<br />
colocava toda sua crença de que poderia estudar e<br />
entender os problemas sociais que surgiam e<br />
reestabelecer a ordem social e o progresso da civilização<br />
moderna. Ele queria que a <strong>Sociologia</strong> estudasse de forma<br />
aprofundada os movimentos das sociedades no passado<br />
para se entender o presente e, inclusive, para imaginar o<br />
futuro da sociedade.<br />
Vamos começar por Auguste Comte (1798-1857), pois<br />
foi ele quem criou o termo “sociologia” a partir da<br />
organização do curso de <strong>Filosofia</strong> Positiva em 1839.<br />
O que desejava Comte com esse curso? Ele pretendia<br />
fazer uma síntese da produção científica, ou seja,<br />
verificar aquilo que havia sido acumulado em termos de<br />
conhecimento bem como os métodos das ciências já<br />
existentes, como os da matemática, da física e da<br />
biologia. Ele queria saber se os métodos utilizados nessas<br />
ciências, os quais já haviam alcançado um “status” de<br />
positivo, poderiam ser utilizados na física social,<br />
denominada, por ele de <strong>Sociologia</strong>.<br />
Este pensador era de uma linha positivista, o que quer<br />
dizer que acreditava na superioridade da ciência e no seu<br />
poder de explicação dos fenômenos de maneira<br />
desprendida da religiosidade, com o er a com u m se<br />
p en sar n aq u ela é p oca. E tem mais, como positivista ele<br />
acreditava que a ciência deveria ser utilizada para<br />
organizar a ordem social.<br />
Comte via a consolidação do sistema capitalista como<br />
sendo algo necessário ao desenvolvimento das<br />
sociedades. Esse novo sistema, bem como o abandono da<br />
teologia para explicação do mundo seriam parte do<br />
progresso das civilizações. Já, os problemas sociais ou<br />
desordens que surgiam eram considerados obstáculos<br />
que deveriam ser resolvidos para que o curso do<br />
progresso pudesse continuar.<br />
Portanto, a <strong>Sociologia</strong> se colocaria, na visão deste autor,<br />
como uma ciência para solucionar a crise das sociedades<br />
daquela época. Mas Comte não chegou a viabilizar a sua<br />
aplicação. Seu trabalho apenas iniciou uma discussão<br />
que deveria ser continuada, a fim de que a <strong>Sociologia</strong><br />
viesse a alcançar um estágio de maturidade e<br />
aplicabilidade.<br />
Você já reparou no lema da nossa bandeira? Tem alguma<br />
relação com o pensamento de Comte? O Brasil pode ser<br />
visto como uma sociedade que orienta-se pelo<br />
cumprimento da “Ordem e Progresso” inscritos na nossa<br />
bandeira?<br />
Na visão dele, naquela época, a sociedade estava em<br />
desordem, orientada pelo caos. Devemos considerar que<br />
Comte vislumbrava o mundo moderno que surgia, isto é,<br />
um mundo cada vez mais influenciado pela ciência e pela<br />
consolidação da indústria, e a crise gerada por uma certa<br />
anarquia moral e política quando da transição do sistema<br />
feudal (baseado nas atividades agrárias, na hierarquia, no<br />
patriarcalismo) para o sistema capitalista (baseado na<br />
indústria, no comércio, na urbanização, na exploração do<br />
trabalhador).. Era essa positividade (instaurar a disciplina<br />
e a ordem) que ele queria para a <strong>Sociologia</strong>.<br />
401<br />
Assim sendo quando Comte pensava a <strong>Sociologia</strong>, era<br />
como se fosse uma “criança” sendo gestada, na qual
U m p ou co d e H ist ó r ia d o B r asil: A B an d eir a<br />
N acion al.<br />
O s fat os sociais – ob j et os n as m ã os<br />
Símbolo nacional idealizado por Raimundo Teixeira<br />
Mendes e Miguel Lemos, baseada na antiga bandeira do<br />
Brasil Império. Ela tremulou pela primeira vez no dia 19<br />
de novembro de 1889, na cidade do Rio de Janeiro.<br />
Este dia ficou marcado como sendo o da sua adoção<br />
oficial. E hoje vemos em nossos calendários que em todo<br />
19 de novembro é comemorado o dia da bandeira.<br />
Bordada em pano de algodão suas estrelas foram<br />
projetadas por um astrônomo. A inscrição ao centro<br />
substituiu o símbolo da “coroa” e foi um resumo feito<br />
por Miguel Lemos, um de seus idealizadores, com base<br />
em princípios positivistas de ordem e progresso.<br />
Continuando o trabalho iniciado por Comte, o de fazer<br />
da <strong>Sociologia</strong> uma ciência, numa visão positiva, surge<br />
nessa história o sociólogo francês Émile Durkheim<br />
(1858-1917). Dar à <strong>Sociologia</strong> uma reputação científica<br />
foi o seu principal trabalho.<br />
É a partir desse pensador que a <strong>Sociologia</strong> ganha um<br />
formato mais “técnico”, sabendo o q u e e com o ela iria<br />
buscar na sociedade. Com métodos próprios, a<br />
<strong>Sociologia</strong> deixou de ser apenas uma ideia e ganhou<br />
“status” de ciência.<br />
Durkheim presenciou algumas das mais importantes<br />
criações da sociedade moderna, como a invenção da<br />
eletricidade, do cinema, dos carros de passeio, entre<br />
outros. No seu tempo, havia um certo otimismo causado<br />
por essas invenções, mas Durkheim também percebia<br />
entraves nessa sociedade moderna: eram os problemas de<br />
ordem social.<br />
E uma das primeiras coisas que ele fez foi propor regras<br />
de observação e de procedimentos de investigação que<br />
fizessem com que a <strong>Sociologia</strong> fosse capaz de estudar os<br />
acontecimentos sociais de maneira semelhante ao que faz<br />
a Biologia quando olha para uma célula, por exemplo.<br />
Falando em Biologia nota-se que o seu objeto de estudo<br />
é a vida em toda a sua diversidade de manifestações. As<br />
pesquisas dos fenômenos da natureza feitas pela Biologia<br />
são resultantes de várias observações e experimentações,<br />
manipuláveis ou não.<br />
Já para a <strong>Sociologia</strong>, manipular os acontecimentos<br />
sociais, ou repeti-los, é muito difícil. Por exemplo, como<br />
poderíamos reproduzir uma festa ou um movimento de<br />
greve “em laboratório” e sempre de igual modo? Seria<br />
impossível.<br />
Mas Durkheim acreditava que os acontecimentos sociais<br />
– como os crimes, os suícidios, a família, a escola, as leis<br />
– poderiam ser observados como coisas (objetos), pois<br />
assim, seria mais fácil de estudá-los.<br />
Então o que ele fez ? Propôs algumas das regras que<br />
identificam que tipo de fenômeno poderia ser estudado<br />
pela <strong>Sociologia</strong>. A esses fenômenos que poderiam ser<br />
estudados por uma ciência da sociedade ele denominou<br />
de fat os sociais.<br />
E as características dos fatos sociais são:<br />
C olet iv o ou ger al – significa que o fenômeno é comum<br />
a todos os membros de um grupo;<br />
E x t er ior ao in d iv í d u – o ele acontece independente da<br />
vontade individual;<br />
C oer cit iv o – os indivíduos são “obrigados” a seguir o<br />
comportamento estabelecido pelo grupo.<br />
As pessoas pensam, em um dia, se casar. Salvo algumas<br />
exceções, pois não pensamos todos da mesma forma,<br />
certo? Mas se fizermos uma pesquisa, veremos que a<br />
grande maioria das pessoas deseja se unir a alguém.<br />
Então podemos dizer que o casamento é um fato colet iv o<br />
ou ger al, pois existe pela vontade da maioria de um<br />
grupo ou de uma sociedade.<br />
501
Mas ainda que alguém não<br />
queira se casar, a grande maioria<br />
das pessoas vai continuar<br />
querendo, não é mesmo?<br />
Outra coisa. Não é verdade que os mais velhos ficam nos<br />
“incentivando” a casar? “Não vá ficar pra titia, heim!”,<br />
“Onde já se viu! Todo mundo, um dia, tem que se<br />
casar!”. Com certeza você já ouviu alguém dizendo isso.<br />
Pois é. Esses dizeres nos levam a crer que o casamento<br />
também é coer cit iv o, pois nos vemos “obrigados” a fazer<br />
as mesmas coisas que fazem os demais membros do<br />
grupo ou da sociedade a que pertencemos.<br />
Para Durkheim, a sociedade só pode ser entendida pela<br />
própria sociedade. As ações das pessoas não acontecem<br />
por acaso. A sociedade as influencia. Você concorda<br />
com isso? Veja o exemplo na página seguinte e tire suas<br />
conclusões.<br />
O Su icí d io = Fat o Social<br />
O q u e lev a u m a p essoa a se su icid ar ? L ou cu r a?<br />
Durkheim utilizou sua teoria para explicar, por exemplo,<br />
o suicídio. O que aparentemente seria um ato individual,<br />
para ele, estava ligado com aquilo que ocorria na<br />
sociedade.<br />
Esse pensador compreende a sociedade como um corpo<br />
organizado. Assim como a Biologia que compreende o<br />
corpo humano e todas suas partes em pleno<br />
funcionamento.<br />
O médico Joaquim Monte, em seu livro “Promoção da<br />
qualidade de vida” (1997) considera o corpo humano<br />
como sendo um “organismo vivo concebido sob forma<br />
de uma estrutura que apresenta constituição e função<br />
(um conjunto organizado de elementos bióticos de<br />
anatomiae fisiologia). A estrutura do corpo humano<br />
representa a dimensão orgânica da pessoa: a carne da<br />
qual somos constituídos (matéria orgânica<br />
com suas características constitucionais e suas<br />
propriedades funcionais) e que tem a potencialidade de<br />
reproduzir, nascer, maturar, crescer, desenvolver, agir,<br />
adaptar, adoecer, sarar e morrer” (p. 257).<br />
É de maneira semelhante que Durkheim entende a<br />
sociedade: com suas partes em operação e cumprindo<br />
suas funções. E, caso a família, a igreja, o Estado, a<br />
Isso significa que o fato social “casamento” é ex t er ior<br />
ao in d iv í d u . oO que quer dizer que ele se constitui não<br />
como resultado das intenções particulares dos indivíduos,<br />
mas como resposta às necessidades ou influências do<br />
grupo, da comunidade ou da sociedade.<br />
Todo fato que reúna essas três características<br />
(generalização, exterioridade e coerção) é denominado<br />
social, segundo Durkheim, e pode ser estudado pela<br />
<strong>Sociologia</strong>. Quanto ao casamento, poderíamos estudar e<br />
descobrir, por exemplo, quais fatores influem na decisão<br />
das pessoas em se casarem e se divorciarem para depois<br />
se casarem novamente.<br />
escola, o trabalho, os partidos políticos, etc., que são<br />
elementos da sociedade com funções específicas,<br />
venham a falhar no cumprimento delas, surge no corpo<br />
da sociedade aquilo que Durkheim chamou de an om ia,<br />
ou seja, uma patologia. Assim, como no corpo humano,<br />
se algo não funcionar bem, em “ordem”, significa que<br />
está doente.<br />
Dê uma olhada nas manchetes abaixo e reflita: o que leva<br />
esse fato a ocorrer com muito mais frequência no Japão<br />
do que aqui no Brasil, ou em outro país?<br />
E x em<br />
p los<br />
P r ob lem as fin an ceir os e d e saú d e au m en t am su icí d ios<br />
n o J ap ã o 23/07/2004 – 09h38 - data de publicação.<br />
http://opt.zip.net/arch2004-07-18_2004-07-24.html -<br />
acesso em 20/mar/2005.<br />
N ov e m or r em em su icí d io colet iv o n o J ap ã o<br />
O5/02/2005 – 08h24 – data de publicação.<br />
http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0%2C%2COI<br />
467123-EI294%2C00.html - acesso em 20/Mar/2005<br />
Andar em ‘desconformidade’ com o que seria tido como<br />
ideal na sociedade pode ser fator altamente propício ao<br />
suicídio no Japão. Não ser aprovado no vestibular ou se<br />
endividar podem ser exemplos de ‘desconformidade’<br />
nessa sociedade.<br />
A propósito desse tema, Durkheim verificou que existem<br />
três categorias de suicídios. Analise-os:<br />
Su icí d io A lt r u í st a : ocorre quando um indivíduo valoriza<br />
a sociedade mais do que a ele mesmo, ou seja, os laços<br />
601
m<br />
que o unem à sociedade são muito fortes. Deixe-me<br />
lembrar você do ocorrido em 11 de Setembro de 2001.<br />
Homens, em atos aparentemente loucos”, pilotavam<br />
aviões que se chocaram contra o World Trade Center em<br />
Nova York, lembra? Para Durkheim, os agentes dessa<br />
aparente “loucura” poderiam ser classificados como<br />
suicidas altruístas, pois se identificavam de tal forma<br />
como o grupo Al Qaeda, ao qual pertenciam, que se<br />
dispuseram a morrer por ele. Da mesma maneira<br />
aconteceu com os kamikases japoneses durante a 2º<br />
, uma vez que ninguém a controlaria? Pois é, segundo<br />
Durkheim, a falta de redes de convívio ou limites para a<br />
ação poderia levar a pessoa a desejar ilimitadas coisas.<br />
Mas caso tal pessoa não consiga realizar os seus desejos,<br />
a frustração poderia levá-la a um suicídio.<br />
Su icí d io A n ô m ico : este tipo pode acontecer quando as<br />
partes do corpo social deixam de funcionar e as normas<br />
ou laços que poderiam “abraçar”(solidarizar) os<br />
indivíduos perdem sua eficácia, deixando-os viver de<br />
forma desregrada ou em crise. Um exemplo disso pode<br />
ser pensado quando, na nossa sociedade, uma família<br />
abandona o filho, ou o idoso, ou o doente.<br />
E o m u n d o m od er n o p ar a D u r k h eim ?<br />
A humanidade, para esse autor, está em constante<br />
ev olu ç ã, o que seria caracterizado pelo aumento dos<br />
papéis sociais ou funções. Por exemplo, para Durkheim,<br />
existem sociedades que organizam-se sob a forma de um<br />
tipo de solidariedade denominada m ecâ n ica e outras<br />
sociedades organizam-se sob a forma de solidariedade<br />
or gâ n ica.<br />
As sociedades organizadas sob a forma de solid ar ied ad e<br />
ecâ n ica seriam aquelas nas quais existiriam poucos<br />
papéis sociais. Segundo Durkheim, nessas sociedades, os<br />
membros viveriam de maneira semelhante e, geralmente,<br />
ligados por crenças e sentimentos comuns, o que ele<br />
chama de con sciê n cia colet iv . aNeste tipo de sociedade<br />
existiria pouco espaço para individualidades, pois<br />
qualquer tentativa de atitude “individualista” seria<br />
percebida e corrigida pelos demais membros.<br />
A organização de algumas aldeias indígenas poderiam<br />
servir de exemplo de como se dá a solidariedade<br />
mecânica: grupos de pessoas vivendo e trabalhando<br />
semelhantemente, ligados por suas crenças e valores.<br />
Nesses grupos, se alguém começasse a agir por conta<br />
Guerra Mundial (1939-1945) e que, de certa forma,<br />
continua acontecendo com os “homens-bomba” de hoje.<br />
Se você assistir ao filme “O Patriota”, com Mel Gibson,<br />
poderá ver um exemplo de alguém que se dispôs a<br />
morrer por uma causa que acreditava em relação ao seu<br />
país, no caso, a Inglaterra.<br />
Su icí d io E goí st: ase alguém se desvinculasse das<br />
instituições sociais (família, igreja, escola, partido<br />
político, etc.) por conta própria, para viver de maneira<br />
livre, sem regras, qual seria o limite para essa pessoa<br />
própria, seria fácil perceber quem estaria “tumultuando”<br />
o modo de vida local.<br />
Outro exemplo que pode caracterizar a solidariedade<br />
mecânica são os mutirões para colheita em regiões<br />
agrárias ou para reconstruir casas devastadas por<br />
vendavais e, ainda, são exemplos também as campanhas<br />
para coletar alimentos.<br />
Diferentemente das sociedades organizadas em<br />
solidariedade mecânica, nas sociedades de solid ar ied ad e<br />
or gâ n ica – típicas do mundo moderno - existem muitos<br />
papéis sociais. Pense na quantidade de tarefas que pode<br />
haver nas áreas urbanas, nas cidades: são muitas as<br />
funções e atividades. Durkheim acreditava que mesmo<br />
com uma grande<br />
divisão e variedade de atividades, todas elas deveriam<br />
cooperar entre si. Por isso, deu o nome de orgânica<br />
(como se fosse um organismo).<br />
Mas, nessas sociedades, diante da existência de inúmeros<br />
papéis sociais, diminui o grau de controle da sociedade<br />
sobre cada pessoa. A individualidade, sob menor<br />
controle, passa a ser uma porta para que a pessoa<br />
pretenda aumentar, ainda mais, o seu raio de ação ou de<br />
posições dentro da sociedade.<br />
Uma das maiores expressões da anomia no mundo<br />
moderno, segundo Durkheim, seria esta: o egoísmo das<br />
pessoas. E a causa desta atitude seria a fragilidade das<br />
normas e controles sobre a individualidade, normas e<br />
controles que nas sociedades de solidariedade mecânica<br />
funcionam com maior eficácia Qual seria, então, a<br />
solução para o mundo moderno, segundo Durkheim?<br />
Já que ele compara a sociedade com um corpo, deve<br />
haver algo nela que não está cumprindo sua função e<br />
gerando a patologia (a anomia, a doença). O corpo<br />
precisa de diagnóstico e remédio. Segundo ele, a<br />
<strong>Sociologia</strong> teria esse papel, ou seja, o de encontrar as<br />
“partes” da sociedade que estão produzindo fatos sociais<br />
patológicos e apontar para a solução do problema.<br />
701
801<br />
Durkheim chegou a fazer, para as escolas francesas,<br />
propostas de valores tais como ‘o respeito da razão, da<br />
ciência, das ideias e sentimentos em que se baseia a<br />
moral democrática’, visando contribuir à restauração da<br />
ordem social naquela sociedade.<br />
Uma outra maneira de ver a sociedade<br />
O pensamento do sociólogo que estudaremos a seguir vai<br />
em direção diferente ao que<br />
vimos até agora. Max Weber (1864-1920), ao contrário<br />
de Durkheim e Comte, acreditou na possibilidade da<br />
interpretação da sociedade partindo não dos fatos sociais<br />
já consolidados e suas características externas (leis,<br />
instituições, normas, regras, etc). Propôs começar pelo<br />
indivíduo que nela vive, ou melhor, pela verificação das<br />
“intenções”, “motivações”, “valores” e “expectativas”<br />
que orientam as ações do indivíduo na sociedade. Sua<br />
proposta é a de que os indivíduos podem conviver,<br />
relacionar-se e até mesmo constituir juntos algumas<br />
instituições (como a família, a igreja, a justiça),<br />
exatamente porque quando agem eles o fazem<br />
partilhando, comungando uma pauta bem parecida de<br />
valores, motivações e expectativas quanto aos objetivos e<br />
resultados de suas ações. E mais, seriam as ações<br />
recíprocas (repetidas<br />
e “combinadas”) dos indivíduos que permitiriam a<br />
constituição daquelas formas duráveis (Estado, Igreja,<br />
casamento, etc.) de organização social.<br />
Weber desenvolve a teoria da <strong>Sociologia</strong> Compreensiva,<br />
ou seja, uma teoria que vai entender a sociedade a partir<br />
da compreensão dos ‘motivos’ visados subjetivamente<br />
pelas ações dos indivíduos.<br />
Uma crítica de Weber aos positivistas, entre os quais se<br />
encontrariam Comte e Durkheim, deve-se ao fato de que<br />
eles pretendiam fazer da <strong>Sociologia</strong> uma ciência positiva,<br />
isto é , baseada nos mesmos métodos de investigação das<br />
ciências naturais. Segundo Weber, as ciências naturais<br />
(biologia, física, por exemplo) conseguiriam explicar<br />
aquilo que estudam ( a natureza) em termos de descobrir<br />
e revelar relações causais diretas e exclusivas, que<br />
permitiriam a formulação de leis de funcionamento<br />
de seus eventos, como as leis químicas e físicas que<br />
explicam o fenômeno da chuva. Mas a ciência social não<br />
poderia fazer exatamente o mesmo. Segundo Weber, não<br />
haveria como garantir que uma ação ou fenômeno social<br />
ocorrerá sempre de determinada forma, como resposta<br />
direta a esta ou aquela causa exclusiva. No caso das<br />
Ciências Humanas, isso ocorre porque o ser humano<br />
possui “subjetividade”, que aparece na sua ação na forma<br />
de valores, motivações, intenções, interesses e<br />
expectativas.<br />
Embora esses elementos que compõem a subjetividade<br />
humana sejam produtos culturais, quer dizer, produtos<br />
comuns acolhidos e assumidos coletivamente pelos<br />
membros da sociedade, ou do grupo, ainda assim se vê<br />
que os indivíduos vivenciam esses valores, motivações e<br />
expectativas de modos particulares. Às vezes com<br />
aceitação e reprodução dos valores e normas propostas<br />
pela cultura comum do grupo; outras<br />
vezes, com questionamentos e reelaboração dessas<br />
indicações e até rejeição das mesmas.<br />
Decorre dessa característica (de certa autonomia,<br />
criatividade e inventividade do ser humano diante das<br />
obrigações e constrangimentos da sociedade) a<br />
dificuldade de se definir leis de funcionamento da ação<br />
social que sejam definitivas e precisas.<br />
Por isso, o que a <strong>Sociologia</strong> poderia fazer, seria<br />
desenvolver procedimentos de investigação que<br />
permitissem verificar que conjunto de “motivações”,<br />
valores e expectativas compartilhadas, estaria orientando<br />
a ação dos indivíduos envolvidos no fenômeno que se<br />
quer compreender, como uma eleição, por exemplo.<br />
Seria possível sim, prever, com algum acerto, como as<br />
pessoas votarão numa eleição, pesquisando sua<br />
“subjetividade”, ou seja, levantando qual é, naquela<br />
ocasião dada, o conjunto de valores, motivações,<br />
intenções e expectativas compartilhadas pelo grupo de<br />
eleitores em foco, e que servirão para orientar sua<br />
escolha eleitoral.<br />
Esses pressupostos estão por detrás das conhecida<br />
“pesquisas de intenção de voto”, bastante frequentes em<br />
vésperas de eleições.<br />
V am<br />
os t en t ar v er isso n a p r á t ica.<br />
Segundo Weber, as pessoas podem atuar, em geral,<br />
mesclando quatro tipos básicos de ação social. São eles:<br />
A aç ã o r acion al com relação a fins: age para obter um<br />
fim objetivo previamente definido. E para tanto,<br />
seleciona e faz uso dos meios necessários e mais<br />
adequados do ponto de vista da avaliação. O que se<br />
destaca, aqui, é o esforço em adequar, racionalmente, os<br />
fins e os meios de atingir o objetivo. Na ação de um
político, por exemplo, podemos ver um foco: o de obter<br />
o cargo com o poder que deseja a fim de...Bom. Aí<br />
depende do político.<br />
Agora, “dando um tempo” nas teorias, veja o que Weber<br />
pensa sobre a política: ele nos fala no livro Ciência e<br />
Política – Duas vocações (2002), que há dois tipos de<br />
políticos que por nós são eleitos. Acompanhe:<br />
a) Os políticos que exercem essa profissão por vocação,<br />
ou seja, os que têm o poder como meta para trabalhar<br />
arduamente em prol da sociedade que os elegeu.<br />
Podemos dizer, em concordância com Weber, que estes<br />
são os que v iv em p ar a a p olí t ica , certo?<br />
b) E os que são políticos sem vocação, ou seja, que<br />
olham para a política como se fosse um “emprego”<br />
apenas. São aqueles que, uma vez eleitos, geralmente se<br />
esquecem dos compromissos sociais que assumiram,<br />
pouco fazem pelo social, trabalham apenas para manterse<br />
no poder a fim de continuar ganhando o salário.<br />
Weber diz que estes são os que v iv em d a p olí ca. t i<br />
Bem. Fechados os parênteses teóricos, voltemos aos<br />
demais tipos de ação.<br />
A aç ã o r acion al com relação a valores, ocorreria porque,<br />
muitas vezes, os fins últimos de ação respondem a<br />
convicções, ao apego fiel a certos valores (honra, justiça,<br />
honestidade...). Neste tipo, o sentido da ação está inscrito<br />
na própria conduta, nos valores que a motivaram e não<br />
na busca de algum resultado previa e racionalmente<br />
proposto. Por esse tipo de ação podemos pensar as<br />
religiões. Ninguém vai a uma igreja ou pertence a<br />
determinada religião, de livre vontade, se não acredita<br />
nos valores que lá são pregados. Certo?<br />
Na aç ã o afet iv a pessoa age pelo afeto que possui por<br />
alguém ou algo. Uma serenata pode ser vista como uma<br />
ação afetiva para quem ama, não é mesmo?<br />
A aç ã o socialt r ad icion al é um tipo de ação que nos leva<br />
a pensar na existência de um costume. O ato de tomar<br />
chimarrão ou pedir a benção dos pais na hora de dormir<br />
são ações que podem ser pensadas pela ação tradicional.<br />
expectativas quanto à religião, o que resultaria no que<br />
Weber chama de r elaç ã o social .<br />
A existência da relação social dos indivíduos, ou seja,<br />
uma combinação de ações que se orientam para objetivos<br />
parecidos, é que faz compreender o ‘porquê’ da<br />
existência do todo, como neste próprio exemplo da<br />
igreja. É assim que, as normas, as leis e as instituições<br />
são formas de relações sociais duráveis e consolidadas.<br />
Os tipos de ação, para Weber, sempre serão construções<br />
do pensamento, isto é, suposições teóricas baseadas no<br />
conhecimento acumulado, que o sociólogo fará para se<br />
aproximar ao máximo daquilo que seria a ação real do<br />
indivíduo nas circunstâncias ou no grupo em que vive.<br />
Com esse instrumento, o sociólogo pode avaliar, na<br />
análise de<br />
um fenômeno, o que se repete, com que intensidade, e o<br />
que é novo ou singular, comparando-o com outros casos<br />
parecidos, já conhecidos e resumido numa tipologia.<br />
Por exemplo, se há alguém apaixonado que você<br />
conheça, qual seria o tipo ideal de ação desta pessoa? A<br />
afetiva! Assim sendo, seria “fácil” prever quais seriam as<br />
possíveis atitudes desta pessoa: mandar flores e<br />
presentes, querer que a hora passe logo para estar com<br />
ela(e), sonhar acordado e coisas do tipo. E assim<br />
poderíamos entender, em parte, como se forma a<br />
instituição família. Uma coisa liga a outra.<br />
Outro exemplo. Pode ser que alguém perto de você nem<br />
pense em querer se apaixonar para não atrapalhar os<br />
estudos. Sua meta é a universidade e uma ótima<br />
profissão. Então, o que temos aqui? Uma ação racional!<br />
Para esta pessoa nem adiantaria mandar flores ou<br />
“torpedos”, certo? O que não significa que não possamos<br />
tentar, não é mesmo?<br />
A gor a, en t en d en d o a socied ad e p or W<br />
eb er<br />
Muito bem. A ideia de Weber para se entender a<br />
sociedade é a seguinte: se quisermos compreender a<br />
instituição igreja, por exemplo, vamos ter que olhar os<br />
indivíduos que a compõem e suas ações. Provavelmente<br />
haverá um grupo significativo de pessoas que agem do<br />
mesmo modo, quer dizer, partilhando valores, desejos e<br />
901
Q u an t o ao sist em a cap it alist a e m u n d o m od er n o<br />
O q u e p en sa W eb er ?<br />
Uma contribuição relevante de Weber, neste caso, é<br />
demonstrar que a montagem do modo de produção<br />
capitalista, no ocidente europeu, principalmente, contou<br />
com a existência, em alguns países, de uma ‘pauta’ de<br />
valores de fundo religioso que ajudou a criar entre certos<br />
indivíduos, predisposições morais e motivações para se<br />
envolverem<br />
na produção e no comércio de tipo capitalista.<br />
Na crença dos calvinistas, os homens já nasceriam<br />
predestinados à salvação ou ao inferno, embora não<br />
pudessem saber, exatamente, seu destino particular.<br />
Assim sendo, e para fugir da acusação de pecadores e<br />
desmerecedores do melhor destino, dedicavam-se a<br />
glorificar Deus por meio do trabalho e da busca do<br />
sucesso na profissão.<br />
Com o passar dos tempos, essa idéia de que a<br />
predestinação e o sucesso profissional seriam indícios de<br />
salvação da alma foi perdendo força. Mas o interessante<br />
é que a ética estimuladora do trabalho disciplinado e da<br />
busca do sucesso nos negócios ganhou certa autonomia e<br />
continuou a existir independente da motivação religiosa.<br />
Para Weber, ser capitalista é sinônimo de ser<br />
disciplinado no que se faz. Seria da grande dedicação ao<br />
trabalho que resultaria o sucesso e o enriquecimento.<br />
Herança da ética protestante, válida também para os<br />
trabalhadores.<br />
Mas por que os católicos e as outras religiões orientais<br />
não tiveram parte nesta construção capitalista analisada<br />
por Weber?Porque a ética católica privilegiava o<br />
discurso da pobreza, reprovando a pura busca do lucro e<br />
da usura e não viam o sucesso no trabalho como indícios<br />
de salvação e nem como forma de glorificar a Deus,<br />
como faziam os calvinistas. Assim sendo, sem motivos<br />
Também criam que os homens eram predes-tinados à<br />
salvação.<br />
divinos para dedicarem-se tanto ao trabalho, não fizeram<br />
parte da lista weberiana dos primeiros capitalistas.<br />
Quanto às religiões do mundo oriental, a explicação seria<br />
de que essas tinham uma imagem de Deus como sendo<br />
parte do mundo secular, ao contrário da ética protestante<br />
ocidental que o concebia como estando fora do mundo e<br />
puro. Assim sendo, os orientais valorizavam o mundo,<br />
pois Deus estaria nele. O Budismo e o Confucionismo<br />
são exemplos do que falamos. E daí a ideia e a prática de<br />
não se viver apenas para o trabalho, mas sim de poder<br />
aproveitar tudo o que se ganha pelo trabalho com as<br />
coisas<br />
desta vida, entende?<br />
Em relação ao mundo moderno (científico), Weber<br />
demonstrava um certo pessimismo<br />
e não encontrava saída para os problemas culturais que<br />
nele surgiam, assim como para a “prisão” na qual o<br />
homem se encontrava por causa do sistema capitalista.<br />
Antes da sociedade moderna, a religião era o que<br />
motivava a vida das pessoas e dava sentido para suas<br />
ações, inclusive ao trabalho. Mas com o pensamento<br />
científico tomando espaço como referencial de mundo,<br />
certos apegos culturais – crenças, formas<br />
de agir – vindos da religiosidade foram confrontados. O<br />
problema que Weber via era que a ciência não poderia<br />
ocupar por completo o lugar que a religião tinha ao dar<br />
sentido ao mundo.<br />
Se, em contextos históricos anteriores, o trabalho poderia<br />
ser motivado pela religião, como foi explicado<br />
anteriormente, e agora não é mais, devido à<br />
racionalização do mundo, por que, então, o homem se<br />
prende tanto ao trabalho?<br />
Porque o sistema capitalista – da produção industrial em<br />
série e da exploração da mão-de-obra – deixou o homem<br />
ocidental sem uma “válvula de escape”. Preso, agora ele<br />
vive d o e p ar a o trabalho.<br />
P ar a r elem b r ar . . .<br />
O Calvinismo tem sua origem nas ideias protestantes<br />
pregadas por João Calvino (1509-1564) que, a exemplo<br />
de Martinho Lutero (1483-1546), fundador da Igreja<br />
Luterana, rompeu com os ensi-namentos da Igreja<br />
Católica. Na intensa busca do conhecimento bíblico, os<br />
calvinistas tornaram-se altamente moralistas (puritanos)<br />
e muito disciplinados.<br />
1 1 0
P ar a lem b r ar . . . Budismo: Sidarta Gautama – o Buda – (563a.C-486a.<br />
C) foi o fundador do Budismo, uma religião e filosofia<br />
que surgiu na Índia e que tem como moral a preservação<br />
da vida e a moderação, além de praticar o ensino de boas<br />
P ar a lem b r ar . . .<br />
Confucionismo: <strong>Filosofia</strong> criada pelo pensador chinês<br />
Kung-Fu-Tzu – o Confúcio – (551a.C – 479a.C). Tal<br />
Seguindo para mais um clássico da <strong>Sociologia</strong>: A crítica<br />
da sociedade capitalista.<br />
Vamos falar agora de quem também viu a consolidação<br />
da sociedade capitalista e fez uma forte crítica a ela. O<br />
alemão, filósofo e economista K ar l M ar x ( 1 8 1 8 –1 8 8 3 ) ,<br />
foi um dos responsáveis, se não o maior deles, em<br />
promover uma discussão crítica da sociedade capitalista<br />
que se consolidava, bem como da origem dos problemas<br />
sociais que este tipo de organização social originou.<br />
E veja, também, que interessante. Para ele “a história de<br />
todas as sociedades tem sido a história da luta de<br />
classes”.<br />
Mas como assim, lutas de classe? Quais são elas? Nas<br />
sociedades de tipo capitalista a forma principal de<br />
conflito ocorre entre suas duas classes sociais<br />
fundamentais: a burguesia versus o proletariado.<br />
Você se lembra que comentamos no primeiro “Folhas”<br />
como foi que surgiu a chamada burguesia e por que ela<br />
ficou conhecida assim ?<br />
Pois bem, segundo Marx, a burguesia foi tendo acesso, a<br />
partir da atividade comercial à posse dos meios de<br />
produção, enriqueceu e também passou a fazer parte<br />
daqueles que controlavam o aparelho estatal, o que<br />
acabou, por fim funcionando, principalmente como uma<br />
espécie de “escritório burguês”. Com esse acesso ao<br />
poder do aparelho estatal, a burguesia foi capaz de usar<br />
sua influência sobre ele para ir criando leis que<br />
protegessem a propriedade privada (particular), condição<br />
ações, purificação e treino da mente (meditação). Os<br />
budistas não crêem que há um Deus criador de todas as<br />
coisas.<br />
filosofia tem quatro pilares: a religião, a política, a<br />
pedagogia e a moral.<br />
indispensável para sua sobrevivência, além de usar o<br />
Estado para facilitar a difusão de sua ideologia de classe,<br />
isto é, os seus valores de interpretação do mundo.<br />
Enquanto isso, a classe assalariada (os proletários), sem<br />
os meios de produção e em desvantagem na capacidade<br />
de influência política na sociedade, transforma-se em<br />
parte fundamental no enriquecimento da burguesia, pois<br />
oferecia mão-de-obra para as fábricas, (as novas<br />
unidades de produção do mundo moderno).<br />
Marx se empenhava em produzir escritos que ajudassem<br />
a classe proletária a organizar-se e assim sair de sua<br />
condição de alien aç ã o.<br />
Alienado, segundo Marx, seria o homem que não tem<br />
controle sobre o seu próprio trabalho, em termos de<br />
tempo e em termos daquilo que é produzido, coisa que o<br />
capitalismo faz em larga escala, pois o tempo do<br />
trabalhador e o produto (a mercadoria) pertencem à<br />
burguesia, bem como a maior parte da riqueza gerada por<br />
meio do trabalho.<br />
O L u cr o<br />
O objetivo do sistema capitalista, como modo de<br />
produção, é justamente a ampliação e a acumulação de<br />
riquezas nas mãos dos proprietários dos meios de<br />
produção. Mas de onde sai essa riqueza? Marx diria que<br />
é do trabalho do trabalhador.<br />
Veja um exemplo. Quantos sofás por mês um trabalhador<br />
pode fazer?<br />
Vamos imaginar que sejam 15 sofás, os quais<br />
multiplicados a um preço de venda de R$ 300,00 daria o<br />
total de R$ 4.500,00.<br />
E quanto ganha um trabalhador numa fábrica? Imagine<br />
que seja uns R$ 1.000,00, para sermos mais ou menos<br />
generosos.<br />
Bem, os R$ 4.500,00 da venda dos sofás, menos o valor<br />
do salário do trabalhador, menos a matéria-prima e<br />
impostos (imaginemos R$ 1.000,00) resulta na<br />
acumulação de R$ 2.500,00 para o dono da fábrica.<br />
1 1 1
Esse lucro Marx chama de m ais- v alia, pois é um<br />
excedente que sai da força de cada trabalhador. Veja, se<br />
os meios de produção pertencessem a ele, o seu salário<br />
seria de R$ 3.500,00 e não apenas R$ 1.000,00.<br />
Então podemos dizer que o trabalhador está sendo<br />
roubado? Não podemos dizer isso, pois o que aqui<br />
exemplificamos é consequência da existência da<br />
propriedade privada e de os meios de produção nas mãos<br />
de u m a classe, a burguesia.<br />
P ar a en t en d er a socied ad e, p or M<br />
ar x<br />
Devemos partir do entendimento de que as coisas<br />
materiais fazem a sociedade acontecer. De outra maneira,<br />
seria dizer que tudo o que acontece na sociedade tem<br />
ligação com a economia e que ela se transforma na<br />
mesma medida em que as formas de produção também se<br />
transformam. Por exemplo, com a consolidação do<br />
sistema capitalista, toda a sociedade teve que organizarse<br />
de acordo com os novos moldes econômicos.<br />
Marx também via o homem como aquele que pode<br />
transformar a sociedade fazendo su a h ist ó r ia , mas<br />
enfatiza que nem sempre ele o faz como deseja, pois as<br />
heranças da estrutura social influenciam-no. Assim<br />
sendo, não é unicamente o homem quem faz a história da<br />
sociedade, pois a história da sociedade também constrói<br />
o homem, numa relação recíproca. Entendeu?<br />
Vamos tentar explicar melhor. As condições em que se<br />
encontram a sociedade vão dizer até que ponto o homem<br />
pode construir a sua história.<br />
Por essa lógica podemos pensar que a classe dominante,<br />
a burguesia, tem maiores oportunidades de fazer sua<br />
história como deseja, pois tem o poder econômico e<br />
político nas mãos, ao contrário da classe proletária que,<br />
por causa da estrutura social, está desprovida de meios<br />
para tal transformação. Para modificar essa situação<br />
somente por intermédio de uma r ev olu ç ã, opois assim a<br />
classe trabalhadora pode assumir o controle dos meios de<br />
produção e tomar o poder político e econômico da<br />
burguesia.<br />
Para Marx, a classe trabalhadora deveria organizar-se<br />
politicamente, isto é, conscientizar-se de sua condição de<br />
explorada e dominada por meio do trabalho e<br />
transformar a sociedade capitalista em socialista por<br />
intermédio da revolução.<br />
1 1 2
R E FE R Ê N C I A S:<br />
COMTE, A. <strong>Sociologia</strong> [organização e tradução de Evaristo de Morais Filho] São Paulo: Ática, 1978.<br />
DURKHEIM, É. <strong>Sociologia</strong> [organizador da coletânea: Albertino Rodrigues]. São Paulo: Ática, 1978.<br />
_______________. D a d iv isã o social d o t r ab alh . oSão Paulo: Martins Fontes, 1995.<br />
_______________. A s r egr as d o m<br />
Nacional, 1974.<br />
_______________. O su icí d io. 6. Ed. Lisboa: Presença, 1996.<br />
é t od o socioló gico . Tradução. Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Cia. Editora<br />
MARX, K. O cap it al: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994.<br />
__________. O m an ifest o d o p ar t id o com u n ist: aKarl Marx e Friedrich Engels; tradução de Maria Lúcia Como: Rio de<br />
Janeiro: Paz e Terra, 1998.<br />
__________. O s p en sad or es. São Paulo: Abril Cultural, 1978.<br />
MONTE, J. P r om<br />
oç ã o d a q u alid ad e d e v id. aCuritiba: Letras, 1997.<br />
SELL, C. E. Émile Durkheim. In.: <strong>Sociologia</strong> C lá ssica: Durkheim, Weber e Marx – 3ª ed. – Itajaí: Ed. Univali, 2002.<br />
WEBER, M. A é t ica p r ot est an t e e o esp í r it o d o cap it alism . 11ª.Ed. o São Paulo: Pioneira, 1996.<br />
___________. C iê n cia e P olí t ica : duas vocações – coleção: A obra-prima de cada autor. São Paulo: Martin Claret, 2002.<br />
___________. <strong>Sociologia</strong> [organizador da coletânea: Gabriel Cohn]. São Paulo: Ática, 1979.<br />
Pesquisado em: http://www.estadao.com.br Acesso em: 19.03.05<br />
Pesquisado em: http://www.wikipedia.org/ Acesso em 14.10.05<br />
1 1 3
O<br />
A P R O D U Ç Ã O SO C I O L Ó G I C A B R A SI L E I R A<br />
A <strong>Sociologia</strong> n o B r asil<br />
Podemos dizer que a <strong>Sociologia</strong> brasileira começa a<br />
“engatinhar” a partir da década de 1930, vindo a se<br />
fortalecer nas décadas seguintes.<br />
Apesar de alguns autores da sociologia dizerem que não<br />
há uma data correta que marca o seu começo em solo<br />
brasileiro, essa época parece ser a mais adequada para se<br />
falar em início dos estudos sociológicos no Brasil.<br />
Quando dizemos “data mais adequada”, é porque as<br />
produções literárias que surgem a partir dessa década<br />
(1930) começam a demonstrar um interesse na<br />
compreensão da sociedade brasileira quanto à sua<br />
formação e estrutura.<br />
Mas note não estamos afirmando que antes da data acima<br />
ninguém havia se proposto a entender nossa sociedade.<br />
Antes da década de 1930 muitos ensaios sociológicos<br />
sobre o Brasil foram elaborados por historiadores,<br />
políticos, economistas, etc. No entanto, na maioria destes<br />
trabalhos, os autores apresentavam a tendência de<br />
escrever sobre raça, civilização e cultura, mas não<br />
tentavam explicar a formação e a estrutura da sociedade<br />
brasileira.<br />
A partir de 1930, surge no Brasil um período no qual a<br />
reflexão sobre a realidade social ganha um caráter mais<br />
investigativo e explicativo.<br />
Esse caráter mais investigativo e explicativo foi<br />
impulsionado pelos muitos movimentos que estimularam<br />
uma postura mais crítica sobre o que acontecia na<br />
sociedade brasileira. Dentre alguns destes movimentos<br />
estão o Modernismo, a formação de partidos (sobretudo<br />
o partido comunista) e os movimentos armados de 1935.<br />
Movimentos como esses, de alguma forma, traziam<br />
transformações de ordem social, econômica, política e<br />
cultural ao país, e despertavam o interesse de pensadores<br />
em dar explicações a tais fenômenos. Aos poucos a<br />
<strong>Sociologia</strong> passa a constituir-se como uma forma de<br />
reflexão sobre a sociedade brasileira. Veja como isso<br />
aconteceu:<br />
Fases d a su a im<br />
p lan t aç ã o<br />
Dividindo os acontecimentos da implantação da<br />
<strong>Sociologia</strong> no Brasil como ciência, em fases, ou em<br />
geração de autores, de acordo com o sociólogo brasileiro<br />
Otávio Ianni (1926-2003), destacamos aqui três delas, as<br />
quais se complementam:<br />
A fase “A” da implantação da <strong>Sociologia</strong> no Brasil:<br />
A primeira geração da <strong>Sociologia</strong> brasileira seria<br />
composta por aqueles autores que se preocuparam em<br />
fazer estudos históricos sobre a nossa realidade, com um<br />
caráter mais voltado à Literatura do que para a<br />
<strong>Sociologia</strong>.<br />
Desta geração de autores, queremos destacar Euclides da<br />
Cunha (1866-1909). Cunha nasceu no Rio de Janeiro, foi<br />
militar engenheiro, além de ter estudado Matemática e<br />
Ciências Físicas e Naturais. Porém, o que gostava de<br />
fazer, como profissional, era o jornalismo.<br />
Em 1895, abandonou o Exército e começou a trabalhar<br />
como correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”.<br />
Nessa função foi enviado para a Guerra de Canudos, no<br />
interior da Bahia, de onde surgiu sua maior contribuição<br />
à <strong>Sociologia</strong> brasileira: o livro<br />
s Ser t õ es.<br />
Se analisarmos este livro pelo enfoque literário, podemos<br />
perceber que Cunha faz, usando seus conhecimentos de<br />
Ciências e Físicas Naturais, relatos sobre como era a<br />
terra e a paisagem de Canudos. Também faz a descrição<br />
dos homens que ali viviam, ou seja, os sertanejos, nos<br />
quais percebe que, ao contrário do que pensava antes de<br />
conhecê-los, eram fortes e valentes, ainda que a<br />
aparência dos mesmos não demonstrasse isso.<br />
Por fim, Cunha descreve a guerra, isto é, como foi que o<br />
governo da época conseguiu acabar com o que<br />
considerava ser uma revolução que reivindicava a volta<br />
do sistema monárquico no Brasil. Na verdade Antônio<br />
Conselheiro (o líder da Revolução de Canudos) e seus<br />
seguidores apenas defendiam seus lares, sua<br />
sobrevivência.<br />
“É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da<br />
República...” Diziam-no informes surpreendedores;<br />
aquilo não era um arraial de bandidos truculentos<br />
apenas. Lá existiam homens de raro valor – entre os<br />
quais se nomeavam conhecidos oficiais do exército e da<br />
armada, foragidos desde a Revolução de Setembro, que<br />
o Conselheiro avocara ao seu partido.” (CUNHA, 1979:<br />
250).<br />
1 1 4
Olhando mais pelo lado sociológico, podemos perceber<br />
que Cunha estava fazendo revelações quanto à<br />
organização da República que estava sendo consolidada.<br />
Canudos era um retrato de uma sociedade republicana<br />
que não conseguia suprir as necessidades básicas de seu<br />
povo.<br />
Coisa que Antônio Conselheiro, com sua maneira<br />
missionária de ser, acreditava e lutava para acontecer,<br />
pois...<br />
“...abria aos desventurados os celeiros fartos pelas<br />
esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia<br />
que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne<br />
vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por<br />
terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados<br />
sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria<br />
vida; bem-venturados porque o passo trôpego, remorado<br />
pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade<br />
máxima, no avançar para a felicidade eterna”.<br />
(CUNHA,1979:132).<br />
Após duas tentativas sem sucesso de “tomar” Canudos –<br />
pois os sertanejos tornavam difícil a vida dos soldados,<br />
por conhecerem muito bem a caatinga sertaneja – o<br />
governo federal republicano deixou de subestimar a força<br />
daquelas pessoas que se uniram a Conselheiro.<br />
Convocou para uma terceira expedição batalhões<br />
armados de vários estados brasileiros e promoveu uma<br />
grande guerra e matança naquela região, em prol da<br />
República.<br />
A observação de Euclides da Cunha e as revelações que<br />
faz quanto à sociedade brasileira em O s Ser t õ es,<br />
transforma esta obra em um dos referenciais de início do<br />
pensamento sociológico no Brasil.<br />
A fase “B” da implantação da <strong>Sociologia</strong> no Brasil:<br />
Numa segunda fase de geração de autores, a preocupação<br />
em se fazer pesquisas de campo, que é uma característica<br />
das pesquisas sociológicas, começa a ser levada em<br />
conta.<br />
Existem vários autores desta geração que poderíamos<br />
referenciar, como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior,<br />
Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo,<br />
Nelson Wernek Sodré, Raymundo Faoro, etc. No<br />
entanto, vamos nos fixar em dois deles, os quais podem<br />
No entanto, vale ressaltar aqui que Gilberto Freyre tinha<br />
um “olhar” aristocrático e conservador sobre a sociedade<br />
brasileira, pois além de justificar as elites no governo,<br />
ser vistos como clássicos do pensamento social<br />
brasileiro: Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior.<br />
Gilberto Freyre foi o autor de C asa G r an d e & Sen z ala<br />
(1933), livro no qual demonstrou as características da<br />
colonização portuguesa, a formação da sociedade<br />
agrária, o uso do trabalho escravo e, ainda, como a<br />
mistura das raças ajudou a compor a sociedade brasileira.<br />
Freyre foi um sociólogo que nasceu em Pernambuco no<br />
ano de 1900 e, no desenvolver de sua profissão, criou<br />
várias cátedras de <strong>Sociologia</strong>, como na Universidade do<br />
Distrito Federal, fundada em 1935. Freyre faleceu em<br />
1987.<br />
Quando escreveu C asa G r an d e & Sen z ala tinha 33 anos<br />
e, anti-racista que era, inaugurou uma teoria que<br />
combatia a visão elitista existente na época, importada da<br />
Europa, a qual privilegiava a cor branca.<br />
Segundo tal visão racista, a mistura de raças seria a causa<br />
de uma formação “defeituosa” da sociedade brasileira, e<br />
um atraso para o desenvolvimento da nação. Freyre<br />
propõe um caminho inverso. Em C asa G r an d e &<br />
Sen z ala ele começa justamente valorizando as<br />
características do negro, do índio e do mestiço<br />
acrescentando, ainda, a idéia de que a mistura dessas<br />
raças seria a “força”, o ponto positivo, da nossa cultura.<br />
Este autor forneceu, para o seu tempo, uma nova maneira<br />
de ver a constituição da nacionalidade brasileira, isto é, o<br />
Brasil feito por uma harmoniosa união entre o branco (de<br />
origem européia), o negro (de origem africana), o índio<br />
(de origem americana) e o mestiço, ressaltando que essa<br />
“mistura” contribuiu, em termos de ricos valores, para a<br />
formação da nossa cultura.<br />
Veja alguns trechos de sua obra a este respeito:<br />
“Um traço importante de infiltração de cultura negra na<br />
economia e na vida doméstica do brasileiro resta-nos<br />
acentuar: a culinária” (FREYRE, 2002.<br />
“Foi ainda o negro quem animou a vida doméstica do<br />
brasileiro de sua maior alegria.”(FREYRE, 2002).<br />
“Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro de<br />
casa, nos tanques de bater roupa... carregando sacos de<br />
açúcar... os negros trabalhavam sempre cantando.”<br />
(FREYRE, 2002).<br />
sua descrição do tempo da escravidão em C asa G r an d e<br />
& Sen z ala adquire uma conotação harmoniosa, ele não<br />
via conflitos nessa estrutura.<br />
1 1 5
1 1 6<br />
Mas se para Gilberto Freyre era um erro pensar que a<br />
mistura das raças seria um atraso para o Brasil, há um<br />
outro autor que se propôs a verificar qual seria e onde<br />
estaria a origem do atraso da nação brasileira.<br />
Estamos falando de Caio Prado Júnior. Este autor vai nos<br />
fornecer uma visão muito mais crítica sobre a formação<br />
da nossa sociedade. Veja por quê.<br />
Enquanto Gilberto Freyre fazia uma análise<br />
conservadora da formação da sociedade brasileira, Caio<br />
Prado recorria à visão marxista, isto é, partindo do ponto<br />
de vista material e econômico para o entendimento da<br />
nossa formação.<br />
C aio P r ad o J ú n ior nasceu em 1907 e faleceu em 1990.<br />
Formou-se em direito e, de forma auto-didata, leu e<br />
tomou para si os ideais de Marx, o que o fez uma pessoa<br />
comprometida com o Socialismo.<br />
Caio Prado também era uma espécie de “contra-mão” do<br />
Partido Comunista Brasileiro no seu tempo, pois um dos<br />
militantes daquele partido, Octávio Brandão (1896-<br />
1980), havia escrito um livro na década de 1920,<br />
chamado A gr ar ism o e I n d u st r ialism o no qual<br />
apresentava a tese de que o atraso do Brasil, em termos<br />
econômicos, estava no fato<br />
dele ter tido um passado feudal. E esta tese continuou a<br />
ser defendida pelo PCB com o historiador N elson<br />
W er n ek Sod r é ( 1 9 1 1 - 1 9 9 9 ) , que interpretava o<br />
escravismo, no Brasil Colonial, como uma característica<br />
do feudalismo.<br />
É por essa razão que Caio Prado era contrário ao Partido<br />
Comunista, pois a idéia de que no passado o Brasil havia<br />
sido feudal era “importada” do marxismo oficial, da<br />
Europa, e que na sua opinião, não funcionava aqui. E,<br />
para Caio Prado, a prova disso estaria no fato de que no<br />
sistema feudal o servo não era considerado uma<br />
mercadoria, coisa que ocorria aqui com os escravos, o<br />
que denota uma característica do sistema capitalista (e<br />
não feudal) no que tange à análise da mão-de-obra.<br />
No seu livro For m aç ã o d o B r asil C on t em p or â n eo,<br />
publicado em 1942, Caio Prado apresenta a tese de que a<br />
origem do atraso da nação brasileira estaria vinculada ao<br />
tipo de colonização a que o Brasil foi submetido por<br />
Portugal, isto é, uma colonização periférica e<br />
exploratória.<br />
Traduzindo para melhor compreendermos, Caio Prado<br />
explica que Portugal teve grande contribuição no “nosso<br />
atraso” como nação, pois o centro do capitalismo, na<br />
época do “descobrimento” do Brasil, estava na Europa, o<br />
que fazia com que as riquezas daqui fossem levadas para<br />
lá. Este tipo de organização econômica foi denominado<br />
de primária e exportadora, pois os produtos extraídos<br />
das monoculturas brasileiras, nos latifúndios, eram<br />
exportados para os países que estavam em processo de<br />
industrialização.<br />
Segundo Caio Prado, a América era vista pelos europeus<br />
como sendo<br />
“...um território primitivo habitado por rala população<br />
indígena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente<br />
aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham em<br />
vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples<br />
feitorias comerciais, com um reduzido pessoal<br />
incumbido apenas do negócio, sua administração e<br />
defesa armada; era preciso ampliar estas bases, criar um<br />
povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que<br />
se fundassem e organizar a produção dos gêneros que<br />
interessassem ao seu comércio. A idéia de povoar surge<br />
daí, e só daí”. (PRADO JÚNIOR, 1942: 24).<br />
As teses desse autor rompem com as análises dos autores<br />
que antes dele apresentaram um pensamento conservador<br />
restrito, isto é, de reprodução daquilo que estava posto na<br />
sociedade brasileira e, conseqüentemente, sem a intenção<br />
de apresentar propostas para sua transformação.<br />
Assim sendo, segundo a visão de Caio Prado, Gilberto<br />
Freyre, em C asa G r an d e e Sen z ala, pode ser<br />
considerado “conservador”.<br />
V ej a p or q u e:<br />
a) seus escritos nos levam a pensar que a miscigenação<br />
acontecia sempre de maneira harmoniosa. Mas e a<br />
relação entre os senhores brancos e suas escravas negras,<br />
por exemplo? Se verificarmos relatos da história veremos<br />
que as negras eram forçadas a terem relações sexuais<br />
com eles, o que é bem diferente de harmonia.<br />
b) sobre os problemas sociais da época, Freyre não<br />
apresenta nenhuma proposta para a solução dos mesmos,<br />
ou para a transformação da sociedade.<br />
Para Caio Prado Júnior, os pontos “a” e “b” mencionados<br />
acima demonstram a postura conservadora de Gilberto<br />
Freyre, pois transparece um certo conformismo com a<br />
situação em que se apresentava a sociedade.<br />
Conformismo que pressupõe continuidade, sem<br />
transformação.
E a fase “C” da implantação da <strong>Sociologia</strong> n o B r asil:<br />
Um outro aspecto de sua maneira crítica de fazer<br />
<strong>Sociologia</strong> foi a sua afinidade com o pensamento<br />
marxista, principalmente sobre o modo de analisar a<br />
sociedade, o que se constituiu numa espécie de “norte”<br />
crítico orientador de seu pensamento.<br />
As transformações sociais que ocorreram a partir de<br />
1930 no Brasil foram, também, uma espécie de “motor”<br />
para os trabalhos de Florestan.<br />
Já a partir dos anos de 1940 novos sociólogos começam<br />
a aparecer no cenário brasileiro.<br />
Esta terceira geração é formada por sociólogos que<br />
vieram de diferentes instituições universitárias, fundadas<br />
a partir de 1930 e inauguram estilos mais ou menos<br />
independentes de fazer <strong>Sociologia</strong>.<br />
Dessa forma, e progressivamente, a intelectualidade<br />
sociológica no Brasil começa a ganhar corpo. Também<br />
começam a surgir estilos ou tendências, o que fez com<br />
que surgissem diferentes “escolas” de <strong>Sociologia</strong> em São<br />
Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte<br />
e em outros lugares.<br />
Dos autores que fazem parte dessa terceira geração,<br />
podemos citar Oliveira Viana, Florestan Fernandes,<br />
Guerreiro Ramos, dentre vários outros. Mas vamos nos<br />
deter na obra do sociólogo paulista Flor est an Fer n an d es<br />
( 1 9 2 0 - 1 9 9 5 ) , importante nome da <strong>Sociologia</strong> crítica no<br />
Brasil.<br />
Qual é a proposta de <strong>Sociologia</strong> que ele apresenta?<br />
Florestan Fernandes foi um sociólogo que fez um<br />
contínuo questionamento sobre a realidade social e das<br />
teorias que tentavam explicar essa realidade. O objetivo<br />
deste autor foi de, numa intensa busca investigativa e<br />
crítica, ir além das reflexões já existentes.<br />
Florestan Fernandes tinha como metodologia “dialogar”,<br />
de maneira muito crítica, com a produção sociológica<br />
clássica.<br />
Florestan também mantinha contínuo diálogo com o<br />
pensamento crítico brasileiro. Autores como Euclides da<br />
Cunha e Caio Prado Júnior, os quais vimos<br />
anteriormente, fazem parte de sua lista de interlocutores.<br />
O diálogo com esses autores foi fundamental para o seu<br />
trabalho de análise dos movimentos e lutas existentes na<br />
sociedade, principalmente aquelas travadas pelos setores<br />
populares.<br />
Mas não apenas para ele, pois como já mencionamos,<br />
essas transformações serviram de impulso para os<br />
trabalhos sociológicos no Brasil como um todo. E isso se<br />
deu principalmente a partir de 1940, pois essas<br />
transformações se intensificaram muito por causa do<br />
aumento da industrialização e da urbanização.<br />
Algumas das consequências da urbanização, inclusive<br />
gerada pela migração de pessoas que, vindas do campo,<br />
procuravam trabalho nas indústrias das grandes cidades,<br />
foram o surgimento de problemas de falta de moradia,<br />
desemprego e criminalidade. Essas situações emergentes,<br />
logicamente, tornavam-se temas para a análise<br />
sociológica.<br />
Para finalizar, vale ressaltar que a <strong>Sociologia</strong> crítica que<br />
Florestan inaugura também tinha o “olhar” voltado aos<br />
mais diversos grupos e classes existentes na sociedade.<br />
Algumas de suas pesquisas com grupos indígenas e sobre<br />
as relações raciais em São Paulo, por exemplo, tiveram o<br />
mérito de fornecer explicações que se contrapunham às<br />
explicações dadas pelas classes dominantes da sociedade<br />
brasileira.<br />
1 1 7
R E FE R Ê N C I A S:<br />
CUNHA, E. O s ser t õ es – Campanha de Canudos. 29ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.<br />
FERNANDES, F. Fu n d am<br />
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FREYRE, G. C asa gr an d e e sen z ala. 46ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.<br />
GOMES, C. A ed u caç ã o em p er sp ect iv a socioló gica . São Paulo: EPU, 1985.<br />
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VIANNA, M. A. G. R ev olu cion á r ios d e 3 : 5 sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.<br />
1 1 8
O P R O C E SSO D E T R A B A L H O E A D E SI G U A L D A D E<br />
SO C I A L<br />
Por Katya Picanço – Professor no estado do Paraná.<br />
Sabemos que para viver temos que ter comida, água<br />
potável, roupas e uma moradia segura. Mas sabemos<br />
também que na sociedade capitalista o caminho para ter<br />
o acesso à “comida, diversão e arte” não é nada fácil, é<br />
uma verdadeira odisseia. Então, como é possível suprir<br />
estas necessidades básicas?<br />
Se “(...) a gente não quer só comida, a gente quer saída<br />
para qualquer parte(...)”, o que fazemos afinal, para<br />
conseguirmos garantir e resolver estas questões? O que<br />
você faz?<br />
Agora, como estão nos versos da música, queremos ter a<br />
garantia que as chamadas questões materiais – a comida,<br />
a água potável, as roupas adequadas para cada tipo de<br />
estação, a casa com segurança – e as questões subjetivas<br />
– sentimentos, desejos, gostos – sejam resolvidas.<br />
Temos aqui, portanto, duas questões essenciais: o que é<br />
imediato ou básico são necessidades materiais do ser<br />
humano; o que é subjetivo são necessidades imateriais.<br />
Mas esta preocupação não é somente uma preocupação<br />
particular, mas de todas as sociedades ao longo da<br />
história humana. Como “(...) a gente não quer só comida<br />
(...)”, estas duas necessidades devem ser resolvidas, e na<br />
busca destas soluções, novas necessidade vão surgindo.<br />
Assim, o contorno do nosso cotidiano vai sendo<br />
desenhado na medida em que as soluções de todos os<br />
tipos vão se realizando. Para pensar sobre isso, vejamos<br />
como a <strong>Sociologia</strong> pode nos auxiliar.<br />
O pensador alemão Karl Marx (1818-1883) afirmou que,<br />
para resolver as suas necessidades básicas, o ser humano<br />
vai se apropriando da natureza, estabelecendo relações<br />
com outros seres humanos, pensando sobre a sua vida e<br />
criando novas e novas necessidades. Como isso é<br />
possível? Imagine que você tem que construir um banco<br />
de praça e a matéria-prima é de “segunda mão”. Tendo o<br />
material, o que mais é necessário para construir o banco?<br />
Bem, o conhecimento de como fazê-lo, e de como<br />
utilizar o material reciclável e as ferramentas. Temos,<br />
portanto:<br />
(1) você – um SER HUMANO;<br />
(2) o CONHECIMENTO;<br />
(3) a natureza que já foi modificada, a MATÉRIA-<br />
PRIMA;<br />
(4) e os INSTRUMENTOS – máquinas, ferramentas e<br />
utensílios.<br />
São necessários todos estes elementos juntos para que o<br />
banco seja construído. Temos uma unidade que permite<br />
que você produza ou melhor construa o banco. Esta<br />
unidade é o que chamamos de PROCESSO DE<br />
TRABALHO.<br />
Foi com este processo que a humanidade construiu tudo<br />
o que existe na vida: ferramentas, máquinas, a matériaprima<br />
transformada ou não (um exemplo disto é o ferro<br />
encontrado bruto na natureza, transformado em aço para<br />
a fabricação de tratores, ônibus, geladeiras, bicicletas), os<br />
prédios, os estádios de futebol, as escolas, as ruas e<br />
estradas, os ônibus espaciais... enfim um conjunto<br />
imenso de coisas. Se isolarmos o conhecimento, as<br />
ferramentas e a matéria-prima e retirarmos você da<br />
construção do banco, vamos observar que o banco não<br />
será construído. Então consideramos você – o ser<br />
humano – o principal elemento desta unidade. Isto<br />
porque é você quem vai dar asas à imaginação (pois não<br />
é só de pão que vive o homem) e construir e transformar<br />
tudo que o cerca.<br />
Então, seguindo o raciocínio anterior, sabemos que para<br />
viver temos que resolver problemas de ordem material e<br />
básica como comer, beber, vestir e morar. Mas como nos<br />
indica a música não é só disto que vivemos. Ir ao cinema,<br />
sair com os amigos, ir ao futebol, participar das<br />
festividades na família, exercitar e exercer nossa<br />
sensibilidade e gosto por um tipo de roupa, de música, de<br />
filme, de time de futebol, de professor, e de amigo fazem<br />
parte desta busca de resoluções. Para isto, os seres<br />
humanos vêm modificando a natureza e tudo ao seu<br />
redor, até a nós mesmos. Já sabemos que o ser humano é<br />
o principal elemento do processo de produção.<br />
Se acompanhamos os jornais vamos perceber que as<br />
ações não caminham para a resolução das necessidades<br />
materiais e imateriais. A destruição do planeta e de<br />
outros seres humanos ocorrem indiscriminadamente em<br />
quase todos os lugares do mundo. Isto é o que em<br />
<strong>Sociologia</strong> foi chamado de contradição, por Karl Marx,<br />
pensador alemão já citado anteriormente neste texto: a<br />
1 1 9
não-resolução das necessidades humanas mesmo tendo<br />
condições para fazê-lo. São problemas que a humanidade<br />
não resolveu desde que o gênero homo começou a<br />
dominar o planeta.<br />
Então, o que significa dizer que essas relações eram<br />
coletivas?<br />
021<br />
Você sabe que nesta caminhada do ser humano, para<br />
resolver estas necessidades, ele desenvolve ligações com<br />
os outros seres humanos e várias formas de organizações<br />
sociais vão surgindo. Seguindo este raciocínio, é a<br />
unidade entre o ser humano, o conhecimento, os<br />
instrumentos e a matéria-prima, que possibilita a relação<br />
como o mundo natural e a criação do mundo social<br />
modificado. Vamos tentar entender como se<br />
desenvolvem estas ligações.<br />
Quando o homem se espalhou pelo mundo, saindo da<br />
África e convivendo, segundo as recentes pesquisas da<br />
Paleoantropologia, com outras espécies do gênero, criou<br />
laços com os membros do seu grupo.<br />
Estes laços se estreitaram, ficando cada vez mais fortes,<br />
pois enfrentar a natureza – clima, vegetação, relevo,<br />
animais selvagens – revela-se uma aventura difícil e<br />
perigosa. Por isso, a união para garantir a existência<br />
passa a ser o elemento principal para continuar vivendo.<br />
Essas ligações são denominadas de relações sociais.<br />
Estamos vendo que, no início do processo de surgimento<br />
das primeiras formas de organização social estas relações<br />
eram coletivas.<br />
Imagine que você e seus amigos estão perdidos na<br />
floresta Amazônica e não conhecem o território, e<br />
necessitem fabricar instrumentos e utensílios. O mundo<br />
natural parece ameaçador e com certeza vocês buscarão<br />
ficar unidos, dividir igualmente a comida, a água, os<br />
cuidados com aqueles que estão doentes e com medo.<br />
Querem resolver tudo para que todos fiquem bem. Então,<br />
unidos, zelarão para que o grupo consiga sobreviver em<br />
um ambiente inóspito para o forasteiro. É muito<br />
Então, no início da existência da humanidade (40.000<br />
a.C.), havia uma relativa igualdade entre os membros de<br />
um mesmo agrupamento social. Relativa porque do<br />
ponto de vista das questões básicas de sobrevivência<br />
todos têm acesso a eles. Ao mesmo tempo estas<br />
sociedades eram hierarquizadas tanto com a divisão<br />
sexual do trabalho quanto com as demarcações etárias.<br />
Como sabemos disto? É só observarmos os povos<br />
indígenas brasileiros, antes da chegada dos europeus<br />
(século XIV da Era Cristã). A forma de organização e de<br />
resolução dos problemas de sobrevivência destes povos é<br />
exemplo deste período quando havia a necessidade de<br />
agir coletivamente, para enfrentar a natureza.<br />
importante observar que no processo de transformação<br />
da natureza, o homem vai modificando o espaço natural<br />
considerando as suas capacidades e as ferramentas que<br />
possui.<br />
É uma combinação e uma escolha entre a capacidade<br />
humana de transformação e aquilo que ele vai encontrar<br />
na natureza. O que resulta desta relação é uma nova<br />
realidade que continua a ser explorada.<br />
Veja, os indígenas que habitam o Parque Nacional do<br />
Xingu e os Bosquínamos da África setentrional.<br />
Atualmente, são exemplos deste período (quando havia a<br />
igualdade descrita acima – 700.000 a.C. a 40.000 a.C.)<br />
em que, ao resolver suas necessidades básicas, o ser<br />
humano o fazia coletivamente. Com o aprimoramento<br />
dos instrumentos<br />
e dos utensílios, e um controle maior sobre a natureza,<br />
com a agricultura e a domesticação dos animais, passa a<br />
existir em algumas regiões e entre alguns povos o<br />
acúmulo de alimentos. As casas são melhoradas para<br />
garantir um abrigo mais seguro e as roupas também<br />
acompanham estas mudanças com a utilização de novas<br />
matérias-primas para a sua confecção. Essas alterações
acompanham a ocupação do espaço geográfico fazendo<br />
com que deixem de ser nômades e se transformem em<br />
povos sedentários. A Geografia, a História e a <strong>Sociologia</strong><br />
são as Ciências que vão pensar o processo de trabalho<br />
interpretando como este se desenvolve nesta busca do ser<br />
humano de resolução das necessidades materiais e<br />
subjetivas.<br />
O armazenamento da água e alimentos fica mais<br />
aprimorado com a utilização da cerâmica como matériaprima.<br />
O aperfeiçoamento da navegação e a utilização da<br />
roda e do transporte acompanham este ritmo.<br />
É importante frisar que estas transformações não são<br />
lineares nem evolutivas. Elas são desiguais e<br />
acompanham a forma utilizada por cada povo na sua<br />
região na ocupação do espaço e na criação da sociedade.<br />
Não podemos achar que todos fizeram da mesma<br />
maneira. Ao contrário, a forma de ocupação e o processo<br />
cultural revelam como cada povo enfrentou a natureza e<br />
foi resolvendo suas necessidades básicas.<br />
As formas mais apuradas de solução dos problemas<br />
imediatos: comer, beber, vestir e morar, na medida em<br />
que são resolvidos acabam criando outras e novas<br />
necessidades. Assim, locais onde é possível guardar os<br />
alimentos e a água vão sendo construídos para que estes<br />
sejam utilizados nos momentos de escassez, que são<br />
frequentes e fazem com que as contradições (Lembra? A<br />
não-resolução das primeiras necessidades) assombrem os<br />
seres humanos. Vai ser necessário que alguns cuidem<br />
deste acúmulo e da sobra do que foi produzido ou<br />
consumido.<br />
Estes que vão cuidar do que todos produziram vão criar<br />
um grupo de segurança para auxiliá-los nesta nova tarefa.<br />
Este corpo de segurança, provavelmente são os mais<br />
fortes ou os que já tinham a tarefa de serem os guerreiros<br />
do grupo. Temos aqui um conjunto de pessoas que se<br />
desliga, se afasta daqueles que estão produzindo o<br />
necessário para a sobrevivência de todos. Você pode<br />
perguntar: quando isso ocorreu?<br />
Essas mudanças ocorrem na passagem do Neolítico para<br />
o surgimento da sociedade desigual (III milênio antes da<br />
Era Cristã), quando vai existir a propriedade e esta não<br />
vai ser coletiva. Este distanciamento em que alguns vão<br />
viver do TRABALHO que outros executam, permitiu o<br />
surgimento da desigualdade entre os seres humanos<br />
dentro da mesma sociedade. Essa desigualdade foi se<br />
aprofundando e as decisões sobre a distribuição do que<br />
foi produzido passam a ser realizadas por estes, que vão<br />
se tornando donos/proprietários das terras, dos animais,<br />
das ferramentas...<br />
Como isso é possível? Imagine que você está<br />
trabalhando no campo e as pessoas que cuidam do<br />
armazenamento observam que se não for estipulada uma<br />
cota de consumo para cada família, não terão comida<br />
suficiente para o próximo período de escassez. Então<br />
devem, para garanti-la, criar punições para aqueles que<br />
não cumprirem o que foi determinado. Que tipo de<br />
punição? Algo como ter que trabalhar em dobro, dar os<br />
seus animais, dar as ferramentas que utilizam – daí, para<br />
trabalhar tem que utilizar as ferramentas de outros. Viu<br />
como começou a propriedade do que chamamos meios<br />
de produção – ferramentas, matérias-primas, os galpões e<br />
prédios.<br />
A forma de divisão da sociedade em que uns são<br />
p r op r iet á r ios d os m eios d e p r od u ç ã – o ferramentas,<br />
matérias-primas, conhecimentos – e outros são somente<br />
p r op r iet á r ios d a for ç a d e t r ab alh o – energia gasta no<br />
dia-a-dia e o conhecimento de como executar a sua tarefa<br />
no processo produtivo – é a base para o que chamamos<br />
de sociedade capitalista.<br />
Esta diferença entre os seres humanos vão marcar as<br />
relações sociais que passaram a estabelecer a partir do<br />
fortalecimento das duas classes sociais: os donos dos<br />
meios de produção e os proletários. Podemos, assim,<br />
buscar no passado da humanidade muitas das explicações<br />
para a situação complicada que é a busca do emprego<br />
hoje.<br />
As soluções se inscrevem no plano daquilo que<br />
chamamos de conquistas da humanidade; mas não<br />
podemos esquecer o que chamamos de contradições. São<br />
elas que vão marcar estas conquistas e nos alertar para<br />
perguntar sobre o principal elemento do trabalho que é o<br />
ser humano.<br />
Bem, voltando às questões do início do texto, vamos ver<br />
que a humanidade, para resolver as questões materiais e<br />
subjetivas (ter “comida, diversão e arte”) vai<br />
construindo o seu cotidiano, e que este já foi<br />
predominantemente coletivo, mas se modificou com a<br />
transformação da natureza.<br />
Surge a desigualdade entre os seres humanos e essa, por<br />
sua vez, vai marcar o dia-a-dia da sociedade.<br />
Assim, o que não podemos esquecer é que, na medida<br />
em que a humanidade vai se apropriando da natureza,<br />
modifica o espaço que a cerca e desenvolve não só ações<br />
criativas, mas também destrutivas – o aquecimento<br />
global – consequência do desmatamento, da poluição<br />
pelo dióxido de carbono, pela poluição de rios e solos,<br />
121
pela retirada de minerais de maneira predatória– sem<br />
citar a matança de animais e a destruição do seu hábitat.<br />
E é justamente por isso que não podemos desejar<br />
somente a comida, pois junto dela deve vir a água<br />
potável, a vestimenta adequada, a casa segura, o acesso<br />
ao conhecimento, às artes, à <strong>Filosofia</strong>. Tudo o que foi<br />
criado pelo ser humano com a intenção de resolver os<br />
problemas para viver, e também as soluções para os<br />
problemas como os indicados acima relacionados com as<br />
ações destrutivas. Pense sobre as soluções que podem ser<br />
dadas para resolver estas novas questões – a destruição<br />
da natureza, que estão diretamente ligadas às<br />
necessidades materiais e subjetivas apontadas no início e<br />
nas indagações finais da música “Comida” referenciada<br />
no texto.<br />
Essa busca de saídas para resolver as contradições entre<br />
produção e escassez – de alimentos, de água, de moradia,<br />
de escolas, de segurança, de saúde, de lazer.... de acesso<br />
à “diversão e arte” – transforma o ser humano em um ser<br />
que supera limites. Assim, uma indagação deve<br />
permanecer quando olhamos os problemas e vemos a dor<br />
e o sofrimento de muitos: “Você tem fome de quê?”<br />
Podemos fazer uma lista interminável de necessidades<br />
materiais e subjetivas que não foram resolvidas, mas com<br />
certeza o item Justiça deve aparecer. Sabia que a idéia (e,<br />
portanto uma necessidade subjetiva) de justiça é uma<br />
construção humana? Muitas vezes para resolvermos<br />
questões materiais, nós recorremos a uma questão<br />
subjetiva, como<br />
a justiça. Então para sobreviver, o ser humano construiu<br />
tudo que temos – transformando a natureza, construindo<br />
relações sociais e também elaborando discussões<br />
complexas sobre as necessidades subjetivas.<br />
Leia nos versos da música e perceba como eles formam<br />
uma unidade: “(...)bebida é água /comida é pasto / você<br />
tem sede de quê? / você tem fome de quê? / a gente não<br />
quer só comida /a gente quer comida,diversão e arte”(...)<br />
!<br />
21
R E FE R Ê N C I A S:<br />
ALBORNOZ, S. O q u e é t r ab alh . oSão Paulo: Brasiliense, 1989.<br />
ANTUNES, R. (Org.) A d ialé t ica d o t r ab alh . oEscritos de Marx e Engels. São<br />
Paulo: Expressão popular, 2004.<br />
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Expressão popular, 2004.<br />
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KURZ, R. O s ú lt im os com b at es . Petrópolis: Vozes, 1997.<br />
MARX, K. M an u scr it os econ ô m icos - filosó ficos. Lisboa: Edições 70, 1989.<br />
__________ M isé r ia d a filosofia. São Paulo: Liv. Ed. Ciências Humanas, 1982.<br />
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__________ M an ifest o d o P ar t id o C om u n ist. aURSS: Edições Progresso, 1987.<br />
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POCHMANN, M. O em p r ego n a glob aliz aç ã . oSão Paulo: Boitempo, 2002.<br />
321
5 – O Mundo do Trabalho<br />
A organização do trabalho no Mundo Contemporâneo<br />
Entre os anos do pós-guerra (Segunda Guerra Mundial e<br />
os anos 70) a organização do trabalho na fábrica estava<br />
baseada nas idéias de J. Ford (1863-1947) e F. Taylor<br />
(1856-1915). Ford era dono da fábrica norte-americana<br />
Ford e Taylor era um engenheiro que trabalhava na<br />
Fábrica Midvale Steel Company. Eles foram os<br />
responsáveis, cada um a sua maneira, por estabelecerem<br />
medidas para um controle sobre os trabalhadores, no<br />
cotidiano da fábrica. A compreensão de Henry Ford,<br />
conhecida como a proposta fordista, estava baseada na<br />
seguinte premissa: ”(...) para um consumo em massa uma<br />
produção em massa (...)”. Para isso, a produção deveria<br />
ser organizada de maneira a impedir desperdício de<br />
tempo do operário na execução das tarefas. Para que isso<br />
ocorra o trabalho deveria ser partido em várias funções e<br />
o trabalhador executaria somente<br />
uma função. Para que haja continuidade entre estas<br />
tarefas parceladas, criou-se uma esteira rolante, na qual<br />
os objetos vão sendo produzidos na medida em que os<br />
trabalhadores executam a sua função um ao lado do<br />
outro. Para que não ocorressem interrupções nesta “linha<br />
de montagem”, Ford propôs a padronização das peças.<br />
Já as ideias de Frederick Taylor, conhecida como a<br />
proposta taylorista, estavam baseadas nas seguintes<br />
questões, em que deveria haver: a separação entre quem<br />
planeja a atividade de produção de um objeto e quem de<br />
fato vai executá-la; um processo de seleção de operários<br />
que sejam adequados para o trabalho, sem que tenham<br />
um perfil rebelde, capaz de questionar as regras na<br />
seleção dos trabalhadores; um controle sobre o tempo e<br />
sobre o movimento que o trabalhador leva para executar<br />
uma atividade. Esse controle deveria ser realizado pela<br />
chefia utilizando um cronômetro, medindo a ação deste<br />
operário.<br />
Essas ideias já estavam sendo aplicadas na Ford, no<br />
início do século XX. Mas é somente com o pós-guerra<br />
que há uma disseminação desse sistema pelo mundo,<br />
atingindo até as fábricas rivais da Ford como a General<br />
Motors e a Chrysler. (GOUNET, T. 2002).<br />
Assim, uma questão deve ser respondida: como é que<br />
foram produzidos os carros a partir da crise que afetou a<br />
produção capitalista mundial? Para responder a essa<br />
questão veja o que se segue:<br />
Os anos 70 foram marcados pela crise do petróleo (1973)<br />
o que impulsionou a crise de superprodução e uma<br />
mudança na forma de organização da produção, e na<br />
intensificação do processo de globalização da economia.<br />
As mudanças na forma de organização da produção<br />
significaram um reordenamento das funções cotidianas<br />
nas fábricas e a utilização de novas tecnologias –<br />
acelerando a utilização da robótica na linha de<br />
montagem. A indústria automobilística foi a primeira a<br />
passar por essas mudanças.<br />
Veja que na organização fordista a produção ocorreu<br />
primeiro nas fábricas de automóveis e depois se<br />
dissemina pela sociedade; isso ocorre pelo complexo<br />
industrial e de serviços que estão ao longo da cadeia<br />
produtiva da indústria automobilística que é muito<br />
extenso e atinge a produção industrial como um todo. A<br />
produção do aço, do vidro, das borrachas e outras fibras,<br />
tintas, estofamento, peças e acessórios, propaganda,<br />
financiamentos, pontos de venda e revenda, postos de<br />
combustíveis, enfim, uma amplitude que atinge todas as<br />
esferas da economia da sociedade.<br />
Essas mudanças possibilitaram que uma outra forma de<br />
organização da produção, mais enxuta, que produzia de<br />
acordo com a demanda do mercado, passasse a ser<br />
utilizada como uma das saídas para resolver a crise da<br />
sociedade na esfera produtiva. É o padrão toyotista que<br />
tem origem na fábrica japonesa Toyota, nos anos 50, e se<br />
diferencia do Fordismo nos seguintes aspectos: enquanto<br />
o fordismo produzia em massa; o toyotismo produzia na<br />
medida em que ocorre uma procura por determinado<br />
modelo de automóvel; o trabalho parcelar e<br />
individualizado passa a conviver com o trabalho em<br />
equipe, em que as máquinas vão sendo utilizadas pelo<br />
grupo de trabalhadores responsáveis que vão operando<br />
várias máquinas.<br />
421
Essa característica intensifica um processo de<br />
convencimento do trabalhador, quando das mais diversas<br />
formas – reuniões, jornais internos, premiações – ele é<br />
instigado a “vestir a camisa da empresa”, e passa a achar<br />
que faz parte de uma equipe e que é capaz de participar<br />
efetivamente do processo. Esse convencimento não<br />
aponta que as decisões sobre o que vai ser produzido,<br />
quem vai ser demitido, em qual região do mundo a<br />
fábrica vai se instalar, não passa pelo seu crivo; o<br />
trabalho deixa de ser especializado em uma única tarefa e<br />
passa a ser feito por um operador preparado para realizar<br />
mais de uma função dentro do processo produtivo; o<br />
planejamento da produção é adequado à demanda e a<br />
produção de mais de um modelo e automóvel pode ser<br />
realizada na mesma fábrica, o que é diferente do<br />
fordismo, quando se produz somente um modelo de<br />
automóvel.<br />
Mas fundamentalmente, o toyotismo permite que a<br />
fábrica funcione comum número menor de funcionários<br />
ao ser comparada com o fordismo, já que é possível que<br />
um operário realize mais de uma função. Na Toyota, por<br />
exemplo, um operário pode operar mais de cinco<br />
máquinas e ao atuar com outros operários, passa a<br />
realizar funções que antes eram da chefia. Isso diminui<br />
as funções, possibilitando um “enxugamento” no<br />
processo produtivo. (GOUNET, 2002).<br />
Neste processo de desenvolvimento do capitalismo, a<br />
globalização assume uma dinâmica interessante quando<br />
há o encontro entre o que é global, e o que é local. Neste<br />
caso, em muitos lugares temos a tradição se defrontando<br />
com uma dinâmica que modifica as características ou<br />
que as remodelam. A instalação das montadoras de<br />
automóveis na região metropolitana de Curitiba são um<br />
exemplo de relação global e local.<br />
Elas se instalam e há um conjunto de mudanças na região<br />
que modificam hábitos e costumes, como a busca intensa<br />
dos trabalhadores da região de realizarem cursos que os<br />
habilitem ao trabalho nestas fábricas. Por isso, nesta<br />
região, aumentaram as ofertas de cursos e faculdades<br />
voltados à capacitação industrial, à informática e às<br />
línguas estrangeiras.<br />
A sociedade capitalista é organizada a partir de leis, da<br />
ideologia, das instituições, que vão se desenvolvendo na<br />
medida em que os seres humanos vão atuando sobre elas<br />
e vice-versa. Como vivemos em uma sociedade<br />
capitalista, estas leis estão determinadas pelos interesses<br />
daqueles que dominam a sociedade: os capitalistas. Em<br />
contrapartida existem aqueles que se organizam em<br />
movimentos sociais e que estão contrários a esses<br />
interesses. Neste embate, entre quem domina e quem é<br />
dominado, o Estado – uma instituição com muitas<br />
ramificações – aparece para as pessoas como além deste<br />
conflito, como se fosse um juiz.<br />
Esta aparência reside na concepção disseminada na<br />
sociedade de que o Estado é uma entidade acima dos<br />
seres humanos como se fosse superior aos interesses das<br />
classes sociais. Mas ele não é, pois é administrado por<br />
pessoas que representam os interesses dominantes,<br />
ficando para os dominados a tarefa de denunciar essa<br />
situação e tentar mudar o Estado e a sociedade. Isso fica<br />
observável quando entendesse que esta ação aparece no<br />
Estado via políticas governamentais, isto é, via governo.<br />
A concepção de Estado demonstrada acima, como um<br />
conjunto de instituições, é diferente da concepção<br />
Marxista (baseada nas ideias do pensador Karl Marx)<br />
que entende o Estado como um aparelho, ou um<br />
instrumento a serviço da dominação capitalista, formado<br />
por aparelhos repressores e ideológicos.<br />
Lendo o texto ao lado você observa duas ideias que são<br />
rivais sobre o funcionamento da sociedade capitalista. É<br />
muito importante você entender a existência destas duas<br />
concepções, e analisar que o Estado é um conjunto<br />
complexo de instituições, mas que essas instituições são<br />
administradas por pessoas, que vão representar os mais<br />
variados interesses na sociedade. Sendo este um<br />
complexo de instituições, vamos compreender que existe<br />
uma dinâmica no funcionamento do Estado que vai<br />
variar na medida em que variam as pessoas e as<br />
propostas que elas utilizam para governar.<br />
Assim, entenda primeiro, que o Estado não é uma<br />
entidade que está acima dos interesses dos seres<br />
humanos. E segundo que ele pode ser modificado na<br />
medida em que as políticas adotadas impulsionam<br />
mudanças no conjunto de instituições que o constituem,<br />
modificando-o.<br />
521
621<br />
Essas políticas têm como objetivo central, diminuir a<br />
influência do Estado sobre a economia, a sociedade, a<br />
cultura. Como será que essas políticas são<br />
compreendidas na atualidade do final do século XX e<br />
começo do século XXI? Vejamos.<br />
Segundo o historiador inglês Perry Anderson (1995), o<br />
Neoliberalismo tem uma história que remonta os anos<br />
posteriores a Segunda Guerra Mundial quando um grupo<br />
de pensadores neoliberais se organizou e elaborou um<br />
conjunto de medidas, tais como: liberar o Estado das<br />
questões sociais e coletivistas que segundo estes<br />
pensadores são onerosas para os cofres públicos; liberar<br />
as fronteiras comerciais de taxas que dificultassem as<br />
relações comerciais internacionais; controlar a emissão<br />
da moeda; modificar as leis que controlam o Estado no<br />
que diz respeito à Previdência, às leis trabalhistas, aos<br />
impostos, à propriedade intelectual, às empresas e<br />
instituições públicas e a relação com o movimento<br />
sindical; a estas modificações na lei damos o nome de<br />
Reforma do Estado.<br />
Estas ideias passaram a ser aplicadas nos países na<br />
década de 1970 e têm significado a diminuição da<br />
presença do Estado na sociedade, na economia, na<br />
cultura. Essa diminuição vai encontrar na Reforma do<br />
Estado a sua legitimação. Precisamos entender o que é a<br />
Reforma do Estado: é uma mudança nas leis, que liberam<br />
ou diminuem a presença do Estado na fiscalização das<br />
questões trabalhistas; no cuidado com a escola e com a<br />
saúde pública; no cuidado com os aposentados; com a<br />
infraestrutura – estradas, portos, aeroportos. A solução<br />
dada por aqueles que defendem o Neoliberalismo é a<br />
privatização dos órgãos e serviços que estão sob a tutela<br />
do Estado.<br />
O Neoliberalismo é uma retomada, no século XX e XXI,<br />
da proposta liberal, defendida por John Locke (1632-<br />
1704), no século XVII. Locke, pensador inglês afirma<br />
que os homens são livres e iguais entre si, na medida em<br />
que não existe uma desigualdade natural. Tudo está ao<br />
acesso de todos, não devendo nada regular o acesso aos<br />
bens. Assim, operários e capitalistas como proprietários,<br />
cada um à sua maneira, de qualidades diferentes podem<br />
trocá-las como se fosse uma troca entre iguais, entre<br />
seres livres, não devendo o Estado se colocar entre eles.<br />
No pensamento liberal, o trabalhador pode escolher entre<br />
trabalhar para este ou para aquele patrão, de acordo com<br />
a sua conveniência, pois ele é livre para escolher. É aqui<br />
que entra o pensamento marxista para fazer a crítica a<br />
esta questão e desvendar o papel do Estado, como<br />
representante dos interesses capitalistas.<br />
Na grande maioria das vezes o trabalhador não pode<br />
escolher a tarefa, o salário e muitas vezes para quem vai<br />
trabalhar. Há na sociedade dividida em classes a<br />
hegemonia da classe dominante no controle da<br />
organização do trabalho, do Estado, da economia, da<br />
cultura. Essa hegemonia é a própria dominação que os<br />
capitalistas exercem sobre os trabalhadores e sobre o<br />
conjunto da sociedade, o que impede que os indivíduos<br />
possam escolher incondicionalmente para quem vão<br />
trabalhar.<br />
As pessoas que trabalham já devem ter ouvido, quando<br />
pedem um aumento de salário ou melhores condições de<br />
trabalho, que se não estiverem satisfeitas, podem pedir a<br />
conta, pois existem pessoas que trabalhariam por um<br />
salário menor. Essa pressão faz com que as pessoas<br />
muitas vezes aceitem a imposição hegemônica do patrão.<br />
O Neoliberalismo, como uma reedição das ideias<br />
liberais, vêm modificando a relação do Estado com a<br />
sociedade. Por exemplo, no Brasil ocorreu a privatização<br />
de estradas com a cobrança de pedágio; do Sistema<br />
Brasileiro de Telecomunicações; dos bancos estaduais,<br />
como o Banestado (Banco do Estado do Paraná); da<br />
CSN, Companhia Siderúrgica Nacional, empresa que<br />
produz aço para a indústria de bens duráveis – como<br />
carros, eletrodomésticos.<br />
Desta lista o que você concluiu? Já parou para pensar<br />
como ficará a situação daqueles que não podem ter<br />
acesso ao serviço de telefonia, luz, água, gás, escola,<br />
saúde, sem que o Estado financie e garanta o acesso de<br />
todos às conquistas tecnológicas e sociais? São questões<br />
importantes que envolvem a adoção por parte dos<br />
governos, das políticas neoliberais, e que dizem respeito<br />
à sua existência.<br />
Existe uma questão muito importante nesta discussão de<br />
globalização e neoliberalismo. Não podemos ficar com<br />
“raiva” do que é estrangeiro e passarmos a praticar atos
preconceituosos, atos de xenofobia – preconceito contra<br />
os estrangeiros.<br />
O problema central é que a globalização e o<br />
neoliberalismo passaram a ser mundiais e atingem os<br />
trabalhadores e as populações mais pobres do mundo<br />
todo. As manifestações contra a globalização apontam,<br />
para ações globais na defesa dos mais pobres, dos<br />
trabalhadores, contra o trabalho infantil, contra o tráfico<br />
de crianças e mulheres, contra a prostituição infantil em<br />
todo o mundo. Você sabia, por exemplo, que existem os<br />
homeless (sem casa ou sem teto) nos países europeus e<br />
nos EUA?<br />
A globalização também significou o aumento das<br />
contradições do capitalismo em todos os países (essas<br />
contradições são os problemas básicos que a humanidade<br />
ainda não resolveu para todos como moradia, comida,<br />
segurança, vestuário, educação, saúde); o que pode<br />
significar em contra partida um crescimento da<br />
solidariedade mundial.<br />
721
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ANDERSON, P. U m m ap a d a esq u er d a n a E u r op a O cid en t al . Rio de Janeiro:<br />
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e conhecimento. Revista Educação e Realidade. nº 26 (1) 13-32. jan/jul., 2001.<br />
821
MOVIMENTOS SOCIAIS NA CONTEMPORANEIDADE<br />
(TFP), os movimentos anticapitalistas, dentre outros. A<br />
lista de movimentos sociais existentes é longa, isso<br />
pensando apenas nos séculos XX e XXI.<br />
É pelo significado social e político e, ainda, pela<br />
quantidade de movimentos sociais existentes que tal<br />
tema é de extrema importância para a <strong>Sociologia</strong>.<br />
É importante dizer que abordaremos a temática dos<br />
movimentos sociais sempre pensando na forma de<br />
organização social atual em que vivemos. Portanto,<br />
estaremos tratando dos movimentos vinculados ao<br />
sistema capitalista. Quer dizer, priorizaremos aqueles<br />
movimentos sociais que nascem de demandas próprias<br />
desta forma de organização social.<br />
As cidades, organizadas na forma que conhecemos hoje,<br />
desenvolveram-se a partir do século XII, ligadas às<br />
necessidades dos homens medievais de realizarem trocas<br />
comerciais. Mas, no entanto, sabendo que durante a<br />
Idade Média a forma de organização social dava-se<br />
principalmente dentro dos feudos, essas cidades ainda<br />
não assumiam a importância que as mesmas possuem<br />
numa sociedade industrial.<br />
Por Valéria Pilão – Professora do Ensino Público em<br />
Curitiba no Paraná.<br />
Por que há pessoas que teimam em se<br />
organizar e propor mudanças para a sociedade?<br />
Você já ouviu falar em movimentos sociais, não é?<br />
Afinal, o que são os movimentos sociais,<br />
e mais, qual a importância deles para nossa vida<br />
cotidiana?<br />
Na história contemporânea temos diversos exemplos de<br />
formas de organizações coletivas, reivindicando as mais<br />
diferentes coisas ou ações caracterizando o que é um<br />
movimento social.<br />
Como exemplo, citamos o Movimento dos Trabalhadores<br />
Rurais Sem-Terra (MST), o Fórum Social Mundial<br />
(FSM), o movimento hippie, movimento feminista, o<br />
movimento estudantil, o movimento dos sem-teto, o<br />
movimento pela “Tradição, Família e Propriedade”<br />
Com a consolidação do capitalismo a partir do século<br />
XVIII, continuou existindo uma separação entre campo e<br />
cidade, mas tal distinção não criava um isolamento do<br />
campo, ao mesmo tempo em que, o desenvolvimento e o<br />
progresso não se restringiam à cidade. Em suma, estamos<br />
tratando da importância do rural e do urbano para o<br />
desenvolvimento capitalista, que cria duas realidades<br />
diversas, mas que, no entanto, nunca deixam de estar<br />
vinculadas e apresentando novas necessidades.<br />
Considerando que a sociedade capitalista tem sua<br />
organização e sua dinâmica marcadas pelas disputas e<br />
conflitos entre as classes sociais presentes nela,<br />
principalmente, entre as duas classes fundamentais, a<br />
burguesia e os trabalhadores, boa parte dos movimentos<br />
sociais será motivada diretamente, por interesses de<br />
classe ou manifestará aspectos daquelas disputas como<br />
são os casos dos movimentos sindical, de camponeses,<br />
dos sem-teto. Já outros movimentos, como o feminista,<br />
os de juventude, o hippie, os ecológicos, podem ou não<br />
estar, também, motivados diretamente por “interesses de<br />
classe” de seus participantes.<br />
921
Ocorre, muitas vezes, de suas razões mais evidentes<br />
serem da ordem de outros interesses, como os ligados a<br />
lutas contra discriminações de gênero, étnicas, de<br />
geração ou culturais.<br />
Assim, na sociedade contemporânea, tanto quem vive<br />
nas zonas urbanas, como quem vive nas zonas rurais,<br />
organiza-se em torno de seus interesses particulares e<br />
forma os mais diversos movimentos sociais.<br />
Não negamos a diferença quanto ao ritmo de vida<br />
existente para quem mora no campo e para quem vive na<br />
cidade. Por exemplo: quem mora na cidade sempre se<br />
assusta, num primeiro momento, com os horários que as<br />
pessoas da zona rural acordam, almoçam e jantam, pois,<br />
na maioria das vezes, isso ocorre sempre mais cedo, em<br />
comparação à vida urbana.<br />
A comparação contrária também é verdadeira: quem<br />
sempre morou no campo fica alucinado com o número de<br />
pessoas nas ruas, com a quantidade de carros, de prédios<br />
e da corrida contra o tempo de quem vive nas cidades.<br />
Diferenças entre o campo e a cidade existem e,<br />
certamente vão muito além destes dois exemplos acima,<br />
mas há também um elemento que une essas duas formas<br />
de vida aparentemente distintas: o fato de que tanto o<br />
trabalhador da cidade como o do campo e seus pequenos<br />
produtores, para obter a sua sobrevivência, submetem-se<br />
às regras e leis da produção de mais-valia. Os primeiros<br />
quando vendem sua força de trabalho no mercado, os<br />
segundos quando têm a sua produção sujeitada às<br />
demandas e obrigações impostas pelas leis de mercado<br />
capitalista e da prioridade dos interesses do capital<br />
urbano.<br />
Sendo assim, boa parte dos movimentos sociais que se<br />
organizam a partir desta realidade social nasce ou se<br />
relaciona, direta ou indiretamente, com questões ligadas<br />
à estrutura de classes e aos conflitos de interesses entre<br />
as diversas classes e frações de classe. Isto pode ser<br />
observado, por exemplo, no movimento feminista, onde<br />
demandas pelo fim do machismo estão ao lado de<br />
reivindicações pela redução da exploração no trabalho. O<br />
mesmo pode ser observado em movimentos como o dos<br />
negros no Brasil, onde a luta contra a discriminação por<br />
cor da pele está associada a demandas por emprego e<br />
escolaridade. Ou, ainda, quando se vê, no movimento<br />
social que luta por terra, surgir a organização das<br />
mulheres exigindo dos “homens sem-terra” tratamento<br />
igualitário dentro da organização do próprio movimento.<br />
Os movimentos caracterizam-se por reivindicações<br />
diferentes, mas a ideia do movimento social como forma<br />
de organização coletiva é extremamente importante neste<br />
sistema, pois é a partir deles que se consegue suprir<br />
determinadas necessidades dos mais diversos grupos.<br />
Quando tratamos dos movimentos sociais encontramos<br />
diversas características gerais que permeiam a todos eles,<br />
uma delas, por exemplo, é o fato de que estes<br />
demonstram a possibilidade de atuarem na História de<br />
modo a “determinar” como será o seu desenvolvimento.<br />
Estamos falando que os indivíduos tornam-se sujeitos<br />
históricos quando organizados de forma coletiva e com<br />
objetivos em comum, e, portanto, apesar de não terem<br />
certezas sobre o futuro do movimento, podem lutar (seja<br />
qual for a reivindicação e o projeto) para a inclusão,<br />
exclusão ou transformação radical da sociedade.<br />
Esta forma de movimento é muito importante numa<br />
sociedade como a que vivemos, pois políticas públicas,<br />
tais como: econômicas, sociais, educacionais,<br />
trabalhistas, dentre tantas outras, podem ser<br />
modificadas, quando indivíduos que isoladamente não<br />
possuiriam um grande poder de transformação<br />
organizam-se, e com isso, conseguem interferir na<br />
sociedade, transformando-a, ou até, mantendo-a de forma<br />
a garantir seus interesses.<br />
Podemos citar, como exemplo de manifestações sociais<br />
que extrapolam a tentativa de reformas e desejam uma<br />
transformação social radical da sociedade, a Revolução<br />
Cubana, que surge como uma manifestação contrária ao<br />
regime ditatorial presente no país, e acaba por culminar<br />
num governo socialista, a partir de 1959.<br />
Inúmeros exemplos poderiam ser citados para mostrar o<br />
homem enquanto sujeito histórico. A partir do momento<br />
em que no Brasil tem-se o movimento social dos negros<br />
buscando a sua inclusão, uma série de benefícios foram<br />
por este grupo conquistados, como por exemplo: as<br />
políticas afirmativas (sobre este assunto ver mais no<br />
“Folhas” sobre cultura), isso representa um processo de<br />
transformação na organização da sociedade, que para<br />
acontecer necessitou que o indivíduo compreendesse seu<br />
papel na sociedade como sujeito histórico.<br />
Portanto, afirmar que a sociedade é desta ou daquela<br />
forma, e que não adianta tentar interferir, é reproduzir<br />
um pensamento que na verdade atende aos interesses<br />
daquelas pessoas, grupos ou classes sociais que se<br />
encontram privilegiadas nas relações sociais, já que os<br />
movimentos sociais estão presentes na História para<br />
demonstrar exatamente o contrário: quando os indivíduos<br />
organizam-se coletivamente muito da estrutura social<br />
pode ser alterada.<br />
031
A princípio, abordaremos este tema de forma mais<br />
teórica para melhor definir o que é, quando, como e<br />
porque se desenvolvem os movimentos sociais.<br />
Os movimentos sociais apresentam-se ao longo da<br />
História de diversas maneiras e por diversos motivos<br />
mas, como se verá em seguida, há algumas<br />
características em comum a todos eles, por exemplo: em<br />
todo movimento social há um princípio norteador.<br />
O que seria este princípio norteador?<br />
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).<br />
Este tem como projeto a realização da reforma agrária<br />
que significa o fim dos latifúndios e a possibilidade da<br />
existência de pequenas propriedades rurais, nas quais os<br />
menos favorecidos, nesta sociedade capitalista, poderiam<br />
estabelecer-se de forma a criarem seu sustento através de<br />
uma agricultura de subsistência ou organizada em<br />
cooperativas.<br />
É importante salientar que a questão da terra no Brasil<br />
sempre foi uma das bandeiras dos movimentos sociais,<br />
pois em nossa estrutura agrária a concentração de terras e<br />
a existência de latifúndios estão presentes desde o início<br />
de nossa colonização. Isto porque nossa formação social<br />
deu-se em dependência de outros países,<br />
consequentemente, nossa produção agrária também.<br />
Assentamento João Batista – Pará<br />
Trata-se de um projeto construído coletivamente, na<br />
maioria das vezes buscando a solução de um problema, a<br />
transformação de uma situação, ou ainda, o retorno a<br />
uma situação anterior, na qual os indivíduos entendem<br />
que havia uma melhor condição para suas vidas.<br />
Os tipos de projetos dos movimentos sociais variam,<br />
principalmente, a partir do posicionamento quanto a<br />
características do status quo. Alguns movimentos ligados<br />
à luta por terra e por moradia podem pôr em dúvida a<br />
própria lógica do sistema social, questionando, por<br />
exemplo, a forma da propriedade e de distribuição da<br />
riqueza social. Outros movimentos sociais, como o<br />
feminista, os de juventude, os étnicos, podem pretender,<br />
primeiramente, modificar valores e comportamentos<br />
sociais. É o que ocorre quando movimentos sociais<br />
feministas “pedem” tratamento igual para as mulheres no<br />
mercado de trabalho, mesmo sem questionar,<br />
exatamente, o trabalho assalariado como forma de<br />
exploração do trabalho.<br />
Para uma melhor compreensão do que está sendo dito<br />
acima podemos usar como exemplo as reivindicações do<br />
Para elucidar o que estamos dizendo, podemos citar a<br />
criação das Capitanias Hereditárias — cuja produção era<br />
destinada ao mercado português; um exemplo disso na<br />
atualidade é a produção da soja e da laranja que também<br />
é destinada ao mercado internacional.<br />
Assim, temos como característica estruturante em nosso<br />
país, a subordinação de parte importante da produção<br />
agrícola a uma produção em larga escala e às<br />
necessidades do exterior, o que leva a um modelo<br />
baseado na utilização de grandes propriedades rurais,<br />
produzindo uma pequena variedade de produtos.<br />
Podemos ter uma maior clareza desse processo no Brasil<br />
quando utilizamos algumas informações obtidas a partir<br />
dos dados cadastrais do INCRA (Instituto Nacional de<br />
Colonização e Reforma Agrária) de 1992, a partir dos<br />
quais fica claro que a concentração de terra no Brasil só<br />
tem aumentado. Conforme podemos observar no gráfico<br />
abaixo, desde a década de 1960, vem aumentando a<br />
porção de terras abarcadas pelas propriedades com mais<br />
de 1000 hectares e, em contrapartida, diminuindo aquela<br />
ocupada pelas propriedades com menos de 100 hectares.<br />
Para facilitar a visualização da imensidão de terras de<br />
que estamos tratando, cada 1 hectare equivale a 10.000<br />
m2.<br />
131
231<br />
Essa concentração fundiária causa sérios problemas. Os<br />
pequenos produtores não conseguem obter rendimentos<br />
significativos, pois lhes falta o essencial – a terra.<br />
Considerando que esses produtores são a maioria e que<br />
empregam grande parte da força de trabalho do campo,<br />
podemos entender muitos fatos, como as precárias<br />
condições de vida da maioria da população rural e a<br />
venda de terras por parte dos pequenos proprietários para<br />
os produtores maiores ou para as grandes empresas.<br />
Em suma, a questão da terra torna-se uma bandeira para<br />
os movimentos sociais, pois sua concentração<br />
transforma-se em um problema num país de grandes<br />
dimensões, e com uma população sem acesso à terra e<br />
sem condições de ter acesso àquilo que ela produz.<br />
No caso dos movimentos sociais que lutam pela<br />
mudança na estrutura agrária, fica evidente a presença de<br />
“ interesses de classe” em jogo. Por exemplo,<br />
trabalhadores do campo X grandes proprietários.<br />
Conhece-se também, movimentos sociais do campo<br />
organizados por pequenos proprietários, que buscam, às<br />
vezes, melhores políticas estatais para suas necessidades<br />
(crédito, política de preços mínimos) ou se organizam<br />
para enfrentar ameaças de desapropriação por causa da<br />
instalação de barragens e usinas de energia em suas<br />
terras. Aqui, já se tem um conflito de classes direto. O<br />
enfrentamento se dá entre pequenos proprietários e o<br />
Estado. Vê-se, portanto, que há movimentos cujas<br />
motivações e propostas visam mais a defesa do status<br />
quo, conforme já observado anteriormente<br />
Na atualidade, um movimento que pode explicar de<br />
maneira clara o que são essas organizações coletivas, que<br />
não pensam na organização social de forma a<br />
transformá-la e sim de modo a voltar a formas anteriores<br />
são os movimentos neonazistas, também conhecidos<br />
como skinheads.<br />
Não só no Brasil, mas por todo mundo, crescem as<br />
manifestações fóbicas a diferentes culturas,<br />
nacionalidades ou etnias; especificamente aqui, há<br />
movimentos oriundos da ideologia nazista, que chegam a<br />
tratar com violência indivíduos que se vestem ou<br />
comportam-se diferentemente do eles definem como<br />
correto.<br />
Há um grupo na grande São Paulo chamado “Carecas do<br />
ABC”, cuja atividade coletiva chegou ao extremo da<br />
agressão física contra outros jovens como os de grupos<br />
punks. Encontra-se, também entre os “Carecas”, o<br />
preconceito contra os negros, os homossexuais e os<br />
nordestinos.<br />
Na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná,<br />
recentemente (set/2005) um grupo pregando ‘o orgulho<br />
branco’ agrediu uma pessoa negra na região denominada<br />
setor histórico da cidade. Suas atitudes não pararam por<br />
aí, panfletos cujo conteúdo propunha o preconceito aos<br />
homossexuais e aos negros foram afixados nos postes do<br />
local.<br />
Como já adiantamos atrás, temos um terceiro tipo de<br />
movimento social que não só luta pela transformação de<br />
uma dada situação, mas também tem como objetivo a<br />
transformação radical da forma de organização da<br />
sociedade.<br />
O que estamos dizendo, neste caso, é que o coletivo<br />
organiza-se a partir de uma necessidade cotidiana, como,<br />
por exemplo, melhores condições de trabalho; mas<br />
quando o movimento começa a desenvolver seus
objetivos transformam-se, a luta intensifica-se, e iniciase<br />
uma tentativa de mudança radical do sistema.<br />
Certamente, o que estamos descrevendo não é nenhuma<br />
receita de como o movimento social deve se organizar<br />
para se tornar revolucionário, na verdade, para que tal<br />
dimensão possa ser atingida há fatores sociais e<br />
históricos do momento vivenciado que contribuem para<br />
tal formação, portanto, há uma indeterminação histórica,<br />
isso quer dizer que há uma impossibilidade, a priori de<br />
afirmar o que acontecerá ou não no futuro, se esse caráter<br />
revolucionário pode ocorrer ou não.<br />
Esses movimentos geralmente organizam-se a partir de<br />
uma reivindicação local e específica, mas, à medida que<br />
se desenvolvem, começam a adquirir maior expressão<br />
social, extrapolando suas reivindicações iniciais, o que<br />
exige do próprio movimento um novo projeto e uma<br />
nova proposta para o futuro.<br />
Estamos dizendo agora que, se por um lado, é possível<br />
pensar em movimentos que querem alterar algumas<br />
A vontade de fazer oposição ao neoliberalismo no Fórum<br />
Social é tão séria que, as datas para as suas realizações<br />
foram programadas sempre concomitantes a do Fórum<br />
Econômico Mundial em Davos, Suíça. Esse Fórum<br />
Econômico é realizado anualmente para discutir os<br />
rumos a serem dados à economia dos países centrais e<br />
periféricos.<br />
A partir do momento em que surgiu a ideia, criou-se um<br />
Comitê Organizador a fim de por em prática o Fórum; o<br />
mesmo acabou ocorrendo no ano de 2001, em Porto<br />
Alegre, na sua primeira edição, e no mesmo ano foi<br />
criado um Conselho Internacional para melhor<br />
desenvolver a sua organização e eventos.<br />
O FSM é também composto por outros Fóruns realizados<br />
paralelamente nas mais diversas regiões, com os mais<br />
diversos propósitos. Há os chamados fóruns temáticos:<br />
Fórum Mundial da Educação, Fórum sobre “Democracia,<br />
características da realidade social, outros pedem uma<br />
volta a antigas formas de pensamento preconceituosas e<br />
autoritárias, e ainda, existem os movimentos sociais que<br />
criam a possibilidade de uma nova forma de organização<br />
social, na tentativa de superarem suas necessidades.<br />
Desta forma, trataremos um pouco mais cuidadosamente<br />
dos movimentos sociais que apresentam pouca<br />
possibilidade de ruptura (transformação radical da<br />
sociedade) com a realidade social posta, mas que de<br />
alguma forma apresentam alternativas. Um bom exemplo<br />
para estas formas de movimento encontra-se no Fórum<br />
Social Mundial, realizado desde 2001, que já ocorreu no<br />
Brasil, em Porto Alegre, e na Índia, em Mumbai.<br />
O Fórum Social Mundial (FSM) foi idealizado e criado a<br />
partir da iniciativa de alguns brasileiros que desejavam<br />
desenvolver uma resistência ao pensamento dominante, e<br />
principalmente, a forma neoliberal de organização<br />
política e econômica em que a sociedade encontrasse na<br />
atualidade.<br />
Direitos Humanos, Guerra e Tráfico de Droga”; e ainda,<br />
os fóruns nacionais e regionais: como por exemplo,<br />
Fórum Pan-Amazônico, Fórum Social Africano, entre<br />
tantos outros mais.<br />
Esta formação caracteriza o FSM como uma série de<br />
grandes eventos, nos quais são discutidas as mais<br />
diversas temáticas sempre preocupadas com a criação de<br />
alternativas para a realidade social. Desta forma, o FSM<br />
constitui-se como um espaço de articulação, debate,<br />
discussão e reflexão teórica pelos mais diversos<br />
movimentos sociais que participam de suas atividades.<br />
Estes movimentos sociais, por sua vez, possuem os<br />
interesses mais diversos, não havendo, portanto, uma<br />
prioridade na defesa das lutas.<br />
Todas são importantes e válidas, pois seguindo o projeto<br />
norteador do Fórum, cada uma delas possui um contexto<br />
específico que as fazem necessárias. Segundo o que diz<br />
Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e participante do<br />
Fórum: “As prioridades políticas estão sempre situadas e<br />
dependentes do contexto” (Santos, 2005: 37)<br />
Assim, a impossibilidade da construção de uma<br />
alternativa coletiva, geral, ao mesmo tempo que,<br />
possibilita a diversidade e a não imposição de um único<br />
modelo como alternativa, também faz com que o<br />
ambiente de debate perca-se na preocupação individual<br />
de cada movimento.<br />
Geralmente, é pensado como uma saída que reforme o<br />
sistema, pois para uma transformação radical da<br />
31
sociedade é necessário a existência de um grande<br />
movimento social.<br />
Portanto, cada movimento possui suas necessidades,<br />
buscam alternativas diferenciadas para seus problemas e<br />
utiliza-se do FSM como um momento para suas<br />
articulações e debates. Esta característica é tão forte<br />
dentro da organização ou realização do Fórum que na sua<br />
carta de princípios consta que nenhum dos participantes<br />
pode falar em nome do FSM, tamanha é a diversidade de<br />
reivindicações e propostas lá encontradas.<br />
Para maiores informações sobre a Carta de Princípios do<br />
FSM pode ser consultado o site do Fórum:<br />
www.forumsocialmundial.org.br.<br />
Uma outra característica peculiar quanto à constituição<br />
do Fórum é o fato do mesmo não possuir qualquer<br />
liderança; os seus dois conselhos e o caráter democrático<br />
das decisões não permitem que exista uma hierarquia, e<br />
ainda é atribuída, por parte dos movimentos sociais que<br />
participam do Fórum uma grande importância às redes<br />
que são criadas ou possibilitadas por intermédio da<br />
Internet.<br />
Assim, como afirma o próprio Boaventura: “O FSM é<br />
uma utopia radicalmente democrática que celebra a<br />
diversidade, a pluralidade e a horizontalidade. Celebra<br />
um outro mundo possível, ele mesmo plural nas suas<br />
possibilidades”. (Santos, 2005: 89)<br />
O que há em comum entre todos eles, e os fazem se<br />
reunir, é a luta contra as formas devastadoras assumidas<br />
pelo neoliberalismo contra as minorias e os nãodetentores<br />
de capital. Há também, a opção pela busca da<br />
transformação, seja ela qual for, por intermédio da<br />
intervenção e pressão política, lutando e idealizando a<br />
construção de um outro mundo por meio de mecanismos<br />
pacíficos.<br />
Na verdade essa caracterização atual do Fórum enquanto<br />
espaço de movimentos sociais, não é um consenso. Esta<br />
é uma posição, por exemplo, de Francisco Withaker (um<br />
dos fundadores do FSM e membro das comissões),<br />
defensor da ideia de que se uma linha comum for<br />
estabelecida, o espaço será perdido e se estará<br />
“asfixiando” a própria<br />
fonte de vida do Fórum.<br />
Outra posição também encontrada é a de que o Fórum<br />
deve ser sim um movimento dos movimentos, isso quer<br />
dizer que o Fórum deve assumir uma posição política,<br />
pois caso contrário, será um espaço que se perderá e não<br />
canalizará nenhuma ação concreta, perdendo seu sentido<br />
de existência.<br />
É assim que o Fórum, tomado como exemplo, sintetiza<br />
algumas das características e dilemas dos movimentos<br />
sociais atuais.<br />
As diferenças dos movimentos sociais participantes do<br />
FSM, portanto, são inúmeras, como já foi afirmado. Há<br />
uma pluralidade quanto à sua constituição que fica ainda<br />
mais clara quando são discutidas as possibilidades e<br />
alternativas para a sociedade. Encontram-se desde os que<br />
querem romper drasticamente com esta forma de<br />
organização social em que vivemos, até os que<br />
reivindicam uma reforma no sistema<br />
político, econômico e social, garantindo sua inclusão<br />
neste.<br />
431
R E FE R Ê N C I A S:<br />
GOHN, M. G. (Org.). M ov im en t os Sociais n o in í cio d o sé cu lo X X antigos I :<br />
e novos atores sociais. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.<br />
_______. M ov im en t os Sociais e lu t a p ela m or ad . iaSão Paulo: Edições<br />
Loyola, 1991.<br />
HOBSBAWN. E. R eb eld es P r im<br />
it iv os: estudo sobre formas arcaicas de<br />
movimentos sociais nos séculos XIX e XX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.<br />
______. A er a d o cap it al: 1 8 4 8 - 1 8 7 5 . 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />
1982.<br />
MARX, K. M an ifest o d o P ar t id o C om u n ist a. São Paulo: Boitempo Editorial,<br />
1998.<br />
SANTOS, B. S. O Fó r u m Social M u n d ial : manual de uso. São Paulo: Cortez<br />
Editora, 2005.<br />
TOURAINE, A. A socied ad e p ó s- in d u st r ial . Lisboa: Moraes editores, 1970.<br />
Site:<br />
www.forumsocialmundial.org.br<br />
531
631
731
831<br />
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