direito indÃgena, direito coletivo e multiculturalismo - revista ...
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ArtigoDIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO EMULTICULTURALISMOPaulo Thadeu Gomes da Silva*RESUMO: O <strong>direito</strong> indígena sempre é tratado,na teoria, como “questão” ou “problema”.Sendo <strong>direito</strong>, é ramo autônomo do próprio <strong>direito</strong>.A vantagem de se tratá-lo como ramo autônomodo <strong>direito</strong> é a possibilidade de institucionalizaçãode institutos próprios, por exemplo,indigenato, tradicionalidade, posse permanente,etc. As condições para que se crie o <strong>direito</strong> indígenacomo ramo autônomo do <strong>direito</strong> levam emconta a introdução de saberes produzidos emoutras áreas do conhecimento distintas da do<strong>direito</strong>: antropologia e sociologia. Tudo aliadoà descrição da jurisprudência nacional e estrangeira,nesta em que a institucionalização de conceitospróprios apresenta-se já em maior densidade.Esta a proposta deste ensaio.Palavras-chave:Direito indígena, <strong>multiculturalismo</strong>,<strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>, etnia.ABSTRACT: The native Law is always treated,in theory, as a “question” or “problem”. BeingLaw, it is an independent branch of Law itself.The advantage in dealing with it as anindependent branch of Law is the possibility ofinstitutionalization of proper institutes, forexample, indigenato (nativeness), traditionality,permanent possession, etc. The conditionsnecessary to create the native Law as anindependent brach of Law take into account theintroduction of the learnings produced in otherdistinct areas of knowledge than Law:anthropology and sociology. All combined to the*Especialista em Sistemas de Proteção dos Direitos Humanos pelo Institut International d´Administration Publique/Paris, Mestre em Direito pelaPUC/RJ, Doutor em Direito pela PUC/SP, Pesquisador, inverno/2002, junto ao Max Planck Institut für europäische Rechtsgeschichte-Frankfurt amMain, Procurador Regional da República em São Paulo e Professor da FMU.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008113
SILVA, P. T. G.description of the national and foreign jurisprudence,in this where the institutionalizationof proper concepts is presented already in higherdensity. That’s the proposal of this assay.Keywords: Native Law, multiculturalism,multiparty Law, ethnics.I. IntroduçãoEste artigo nasceu de uma reflexão levada acabo por ocasião de debate a respeito do tema<strong>direito</strong> indígena nas hostes da Escola de MagistraturaFederal da 3ª. Região 1 . O debate demandouleitura de livros e artigos pertinentes aotema. Daí surgiu a constatação de que, quasesem exceção, trata-se dele, tema, sob a perspectivade um problema: o problema indígena. Pronto:a fantasia foi criada. A partir disso quemquiser se informar de maneira mais adequadatem que, necessariamente, recorrer à psicanálise,ciência mais afeta ao desmascaramento dasfantasias.O propósito deste artigo, então, traduz-se emdois objetivos: a) indicar o falso tratamento dispensadoao tema como se fosse ele um problema;b) indicar, e tentar suprir, a falta de doutrinaespecífica sobre o tema.A preocupação toma corpo se se pensar quemesmo um autor clássico da antropologia comoDarcy Ribeiro tratou do tema sob o epíteto de“problema”. Em seu livro Os Índios e a Civilização,ademais de em várias passagens o autordescrever o tema como problema, há um capítuloespecífico intitulado O Problema Indígena.Por certo que o objetivo do autor não foi o decriar uma espécie de estigma para as sociedadesindígenas 2 ao tratar de descrevê-las sob o páliode “problema”. Em realidade a sua preocupaçãoparecia ser mesmo a de chamar a atençãopara as especificidades que faziam das sociedadestradicionais sociedades distintas da envolvente,as quais deveriam ser tomadas em contaquando da ocorrência das chamadas fricçõesinterétnicas.Tanto isso é correto que, após descrever ainteração das duas sociedades como problemarepresentado pelas abordagens que dele são feitas,quais sejam, a etnocêntrica, a romântica e aabsenteísta, afirma: “O dogmatismo etnocêntricoda primeira corrente e o absenteísmo da últimalevam à concepção de que não existe um problemaespecífico a exigir tratamento especializado”3 . Portanto, o apelo era dirigido à constataçãoda existência de especificidades que marcavamas sociedades tradicionais.A postura assumida neste artigo não quernegar as lições de Darcy Ribeiro. Primeiro porqueseria expressão de desconhecimento do valorda obra do autor, tendo em vista ter sido eleum dos maiores pensadores do tema indígena, esegundo porque, ao menos até onde se conseguecompreender, ao tempo em que foi escrito olivro havia ainda a necessidade de se tratar dotema pela palavra “problema”.Não se quer também, com o que vem de serescrito, negar, atualmente, a existência de “problemas”que envolvem a interação entre sociedadestradicionais e sociedade envolvente. Todavia,parece mais adequado descrever o temapela palavra “<strong>direito</strong> indígena”, e assim o queera problema passa a ser denominado de conflito.Sim, porque tanto a interação entre as sociedadestradicionais e a envolvente, quanto a queocorre no interior das sociedades tradicionais sãopassíveis de gerar conflitos, e não apenas “problemas”.Preserva-se, de igual efeito, a idéiafactível de manifestação de especificidades dassociedades tradicionais, o que, trocando em miúdose trazendo a descrição para os dias atuais,constitui-se na já conhecida diferenciação dassociedades tradicionais.O fato de se tratar do tema do <strong>direito</strong> indígenacomo um problema traz consigo uma enormecarga de preconceito, o que impede sua espontâneaabordagem como um tema do <strong>direito</strong>,1I Jornada de Reflexões de Direito Federal em Mato Grosso do Sul, Ponta Porã, maio de 2006.2Neste artigo não há a preocupação em se diferenciar sociedade (Gesellschaft) de comunidade (Gemeinschaft), distinção essa gravada por FerdinandTönnies (1887), Community and Society, Dover, New York, 2002, portanto, neste texto, sociedade indígena e comunidade indígena são utilizadascomo sinônimas.3Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, Companhia das Letras, SP, 2004, pp. 213-215.114 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOseja do constitucional, seja do infraconstitucional.Vez ou outra o tema vem tratado sob otítulo de “questão indígena”, como se fosse umassunto especial. Essa desfocada abordagem nãodá margem à interpretação e à construção dotema como um continuum, pois trata dele comoproblema estrutural do Estado brasileiro a serou não resolvido. Primeiro é de se destacar quenão há “solução” para os problemas da sociedademoderna; quando muito, mitigam-se os efeitosdas políticas erráticas e devastadoras, porexemplo, do meio ambiente. Na visão aqui assumidacomo argumento não há a preocupaçãode tratar do tema como se fosse ele um problema,mas sim e apenas como um tema do <strong>direito</strong>,e que só por isso merece ser objeto de observaçãodo jurista nessa condição, passível de construçãoteórico-doutrinária e jurisprudencial.Isto põe de manifesto que os conflitos oriundosdo e no <strong>direito</strong> indígena são conflitos do <strong>direito</strong>,assim como todo o material jurídicoconstruído sobre as bases de todos os temas do<strong>direito</strong>. O <strong>direito</strong> indígena, sendo um desses temase ao se autoconstruir, permite, de igual efeito,contribuir para a formação do arcabouço jurídicoexistente no país e no mundo. Daí o própriotítulo deste artigo ser grafado como <strong>direito</strong>indígena.A insuficiência e a inadequação da linguagemempregada para se descrever o tema do <strong>direito</strong>indígena não param aí, pois continua o <strong>direito</strong>indígena a demonstrar sua ambigüidadequando mal comparado com seu antípoda, qualseja, o <strong>direito</strong> agrário, de vez que este nem mesmose constitui em ramo do <strong>direito</strong> antagônicoàquele.A designação então encontrada na produçãoteórica e mesmo na coloquial não dá conta dedescrever o evento quando, por exemplo, emcomparação com seu suposto antagonista, aomenos no que diz com o aspecto da retomada deterritórios, que é o <strong>direito</strong> agrário com seus institutostipicamente civilistas: não há, portanto,<strong>direito</strong> dos fazendeiros ou mesmo esse <strong>direito</strong>nunca vem tratado sob a forma de problema.A carência da produção teórica, no campojurídico, é tanto mais constatada quanto mais seinforme a respeito. A menção aos sistemas jurídicosda sociedade mundial, se para comparaçãovisando ao aperfeiçoamento do sistema nacional,não existe. Decisões proferidas em casosjurídicos levados ao conhecimento dos diversosTribunais que ocupam o centro dos sistemasjurídicos da sociedade mundial e repletasde material jurídico-antropológico para a reflexãoe construção de uma teoria não são sequerlançadas de forma passageira.O que se encontra é uma produção teóricaproduzida em campos do conhecimento distintosdo <strong>direito</strong>, mais especificamente, na antropologia.Talvez não seja conferida tanta relevânciaao tema pelo fato de ele não se inserir dentreaqueles que, uma vez formulados, possam serconvertidos em tema de interesse da maioria, devez que atinente à minoria, o que não deixa dedemonstrar o estado de comodismo que tomaconta da doutrina.A breve descrição do tema no panoramamundial produz uma valiosa conseqüência nacompreensão que se deva dele ter no Brasil eque é representada pelo tratamento dispensadoa ele não como problema, mas sim como umtema do <strong>direito</strong>, da política, da economia, portanto,da sociedade.E aqui bem já poder-se-ia começar a problematizaçãopela indagação do significado que sequeira atribuir ao <strong>direito</strong> indígena, se <strong>direito</strong> deuma sociedade tradicional ou se <strong>direito</strong> comoramo do <strong>direito</strong> oficial. A abordagem aqui empreendidaparece caminhar para um meio-termoentre esses dois extremos, vale dizer, <strong>direito</strong>indígena tanto como a possibilidade de se descrevero <strong>direito</strong> das sociedades tradicionais,quanto como a possibilidade de se descrevê-loem comparação com o <strong>direito</strong> oficial. Na consecuçãode se alcançar essa objetivada descriçãoimpõe-se o lançar mão de uma abordagem adequada.De igual efeito, não se está desavisado daarmadilha que pode existir na tentativa de se traduzirjuridicamente os temas pertinentes às sociedadestradicionais, o que pode, por exemplo,transformar costume em lei e, conforme escreveMargarida Maria MOURA, favor em contra-Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008115
SILVA, P. T. G.to 4 . Entretanto, aqui a armadilha pode ser “driblada”se não se perder de vista que: a) a abordagemé interdisciplinar, e não apenas jurídica; b)há a preocupação com a preservação dos significadosdos <strong>direito</strong>s das sociedades tradicionais,v.g., a forma de posse dos indígenas que resisteà transformação em propriedade 5 .II. MundializaçãoAo se dissertar sobre o tema indígena tem-seque, obrigatoriamente, levar em conta que ele,o tema, se encontra presente em várias sociedadesda sociedade mundial 6 . Portanto, ele não éum tema exclusivo do Brasil. São trezentos milhõesde nativos, membros de cinco mil e quinhentasetnias e que habitam mais de setentapaíses. Dez por cento da população latino-americanapertencem às comunidades indígenas 7 .O tema indígena, no mundo, apresenta umgrau bastante alto de complexidade. Essa complexidadeé como que aumentada pelo fenômenoda mundialização, quando então o desconhecimentoa respeito das legislações nacionais sobreo tema torna-se quase que inexistente, permitindo,com isso, tanto a difusão dos conhecimentosjurídicos locais para o mundo, quanto aformalização, na ordem internacional, se não depreceitos jurídicos providos de sanção, ao menosde declarações com conteúdos primeirosque, depois, podem tornar-se tratados ou convenções8 : esse o lado bom.O lado ruim fica por conta da força dessemovimento nomeado de mundializaçãodirecionada ao prevalecimento de uma culturasobre a outra, fazendo com que a cultura maisfraca, ou minoritária, tenda a desaparecer.A reflexão que pode ser feita sobre o tema,então, como que ganha um acréscimo de sentido,pois é alimentada por teorias nacionais e internacionaisa seu respeito. A mundialização éresponsável por isso. Atrela-se, de sua vez, àconcepção política de <strong>direito</strong>s humanos e à concepçãojurídica de <strong>direito</strong>s fundamentais: no primeirocaso oferece novas possibilidades de organizaçãodos movimentos sociais indígenas emsua luta pelo reconhecimento de seus <strong>direito</strong>s, eno segundo caso fornece instrumentos jurídicospositivados em normas constitucionais e infraconstitucionaispara garantia desses <strong>direito</strong>s.a) diferenciação, e não discriminaçãoNesse pano de fundo sobressaem asnormatizações internacionais a respeito do <strong>direito</strong>indígena. Vernon VAN DYKE parece tersido o autor a inaugurar a discussão sobre o tema.Em seu livro intitulado Human Rights, Ethnicity,and Discrimination centra sua descrição sobrea diferenciação inerente às diversas etnias quecompõem a sociedade mundial: essa palavraconstitui-se, nesse livro, no alicerce para a construçãode sua teoria.Lança a idéia de que a Declaração Universaldos Direitos do Homem, proclamada pela AssembléiaGeral das Nações Unidas em 10 121948, em seu artigo II, ao preceituar que “todapessoa tem capacidade para gozar os <strong>direito</strong>s eas liberdades estabelecidos nesta Declaração,sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,cor, sexo, língua, religião, opinião política oude outra natureza, origem nacional ou social,riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”,conferiu o significado de discriminação àpalavra distinção, e não o de diferenciação 9 . Vaidaí que distinção e discriminação, proibidas pela4Os Deserdados da Terra, Bertrand Brasil, RJ, 1988.5Conforme escreveu o Ministro Victor Nunes Leal: “Não está em jogo, propriamente, um conceito de posse, coisa de domínio, no sentido civilista dosvocábulos; trata-se do habitat de um povo”, grifo original, Recurso Extraordinário n. 44.535, Supremo Tribunal Federal, 30 de agosto de 1961.6Existe uma discussão teórica a respeito de qual o marco temporal pode ser considerado como o início da formação da sociedade-mundo, se a partir de1492 ou se antes dessa data, bem assim, sobre se o acúmulo de capital sempre foi a característica principal desse processo ou se a política e aideologia comandaram, em alguma época, o mesmo processo, conforme André Gunder FRANK e Barry K. GILLS (ed.), The World System – fivehundred years or five thousand?, Routledge, London and New York, 1996.7Cletus Gregor Barié, Pueblos Indígenas y derechos constitucionales en América Latina: un panorama, Comisión Nacional para el Desarollo de losPueblos Indígenas, México, 2003, pp. 22-24.8Sobre a emergência das populações indígenas na ordem internacional, ver Marco Antonio BARBOSA, Autodeterminação – Direito à Diferença,Plêiade, SP, 2001.9Human Rights, Ethnicity, and Discrimination, Greenwood Press, Connecticut, 1985, pp. 4-6.116 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOCarta, são sinônimas, enquanto diferenciaçãodelas se distingue.Exemplo típico da permissão de existênciada diferenciação é o artigo 1º, inciso 4, da ConvençãoInternacional sobre a Eliminação de Todasas Formas de Discriminação Racial, 1965,que preceitua: “Não serão consideradas discriminaçãoracial as medidas especiais tomadascom o único objetivo de assegurar progressoadequado de certos grupos raciais ou étnicos oude indivíduos que necessitem da proteção quepossa ser necessária para proporcionar a taisgrupos ou indivíduos igual gozo ou exercíciode <strong>direito</strong>s humanos e liberdades fundamentais,contanto que tais medidas não conduzam, emconseqüência, à manutenção de <strong>direito</strong>s separadospara diferentes grupos raciais e não prossigamapós terem sido alcançados os seus objetivos”.Como reforço à sua idéia, VAN DYKE cita,ainda, a mesma redação empregada no PactoInternacional de Direitos Civis e Políticos, de1966, e na Convenção Internacional sobre a Eliminaçãode Todas as Formas de DiscriminaçãoRacial, de 1965, ambas da Organização dasNações Unidas.O problema que o autor detecta 10 é o de queem muitos países as diferentes etnias reivindicampara si uma identidade separada, e a análiseque deve ser feita, nesse pano de fundo, é seo reconhecimento de <strong>direito</strong>s a essas etnias ou aesses grupos pode ser justificado pela diferenciaçãoou se, ao contrário, esse reconhecimentoviola o <strong>direito</strong> dos indivíduos a um tratamentoigual.A chave para uma mais adequada compreensãodo dilema que se coloca reside, na idéiado autor, exatamente na interpretação que se atribuaao conceito de “povos”, expresso no artigo1º, do Pacto Internacional de Direitos Civis ePolíticos de 1966: “Todos os povos têm <strong>direito</strong>à autodeterminação. Em virtude desse <strong>direito</strong>,determinam livremente seu estatuto político easseguram livremente seu desenvolvimento econômico,social e cultural”.VAN DYKE indica três possibilidades deinterpretação à palavra “povos”: a) a palavra seaplica à população inteira de um estado soberano;b) a palavra se aplica à inteira população deuma dependência política; c) a palavra se aplica,no caso de estados multinacionais ou multiétnicos,às subdivisões étnicas ou nacionais. Oautor argumenta que é possível a manifestaçãoda terceira interpretação, e aí o problema deslocar-se-iapara o conceito de autodeterminação.Ainda em sua visão, autodeterminação implicarianão o <strong>direito</strong> de secessão, pois a sua interpretaçãodeveria ocorrer respeitando-se outros<strong>direito</strong>s e interesses em jogo 11 .Essas premissas levantadas pelo autor trazempara o debate, ainda segundo ele, a afirmaçãode que os grupos étnicos podem ter interesses elegítima reivindicação a status e <strong>direito</strong>s. Paratanto, o autor assevera que em algumas circunstânciasas comunidades étnicas devem ser consideradascomo unidades com <strong>direito</strong>s morais 12 .Isso levaria à aceitação de <strong>direito</strong>s <strong>coletivo</strong>s, nãomais individuais e sociais. A partir desses pressupostoso autor descreve a possibilidade de instituiçãode tratamento diferenciado aos gruposétnicos, aí incluídos os indígenas, no que diz como <strong>direito</strong> à linguagem, à religião e à raça.O livro, publicado em 1985, ainda se encontraimpregnado de conceitos que não mais teriamvalidade científica, tal qual faz exemplo oconceito de raça. Contudo, ainda é um ponto departida que proporciona as condições de possibilidadede compreensão do tema do <strong>direito</strong> indígena.Trazendo a discussão para o ordenamentojurídico brasileiro, o escrito por VAN DYKE arespeito da distinção que se tem de fazer entrediscriminação e diferenciação também pode serobtido mediante uma interpretação do dispostona norma do artigo 3º, inciso IV, da Constituição,que preceitua ser objetivo fundamental daRepública Federativa do Brasil promover o bemde todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.10Human Rights, op. cit., p. 6.11Idem, pp. 8-12.12Idem, pp. 14-16.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008117
SILVA, P. T. G.Pode-se afirmar, de uma interpretação dessanorma, que o legislador constituinte atribuiu umreal sentido negativo à palavra discriminação,desde que se contraponha ela à promoção do bemde todos: a discriminação, tomada nessa conta,teria a ver com não promover o bem ou mesmocom promover o mal de todos. Vai daí que, naconstrução de um sentido possível do conteúdonormativo aí positivado, a diferenciação seriaadmitida desde que promovesse o bem de todos13 .O mesmo se pode escrever a respeito da autodeterminaçãodos povos, ao menos tomandosecomo parâmetro a interpretação construídapor VAN DYKE. A Constituição brasileira dispõe,em seu artigo 4º, inciso III, que o Brasil serege, nas relações internacionais, pelo princípioda autodeterminação dos povos. Uma primeirainterpretação poderia dar a entender que esseprincípio aplicar-se-ia apenas às relações internacionais,mas não às relações internas. Essainterpretação, de fato, não parece inadequada.Contudo, há outras normas constitucionaispositivadas pelo mesmo legislador constituintee que, uma vez trazidas à comparação com aque vem de ser escrita para eventual interpretaçãopodem produzir resultados valiosos à compreensãodo tema.No que diz com as sociedades tradicionais,a Constituição emprega as seguintes palavras:a) índios; b) populações indígenas; c) comunidadese organizações indígenas; d) grupos indígenas;e) culturas indígenas. Como se percebe,não há menção expressa a povos indígenas.Sobre o mesmo tema, a própria Constituiçãopreceitua que o Estado deve proteger a cultura,os costumes e as práticas das sociedades indígenas.Essa redação expressa um inabalável significadode reconhecimento de ordens plurais,sejam elas de caráter cultural, sejam de índolejurídica, o que, de sua vez, permite inferir, comsegurança, que a Constituição não preceitua, porsuas normas, qualquer medida que vise a assimilação,portanto, reconhece e protege as vicissitudes,idiossincrasias e os <strong>direito</strong>s dos povosindígenas, fazendo com que essa designaçãodespregue-se da designação de minorias.Nesse quadro parece não haver dificuldadeem concordar com VAN DYKE quando ele afirmanão implicar a autodeterminação um <strong>direito</strong>à secessão, pois que, da análise em conjunto dasnormas constitucionais brasileiras o que se podeafirmar é a existência, no plano normativo-constitucional,de reconhecimento de um estado deautonomia ou quase-soberania às sociedades tradicionais,linha de interpretação essa que, aomenos na jurisprudência da Suprema Corte norte-americanajá vem se desenhando desde o séculoXIX 14 , conforme se depreende da decisãoproferida no caso Worcester v. Georgia (1832) 15 .Esse caso tratou de um recurso interposto porSamuel A. Worcester, junto à Suprema Corte,contra a decisão proferida pelo Judiciário doEstado da Geórgia que condenou o recorrente àpena de quatro anos de trabalhos forçados porqueresidia ele, em julho de 1831, no territórioindígena Cherokee, sem licença para tanto, oque, segundo a Lei do mesmo Estado, aprovadaem 22 de dezembro de 1830, era consideradagrave contravenção – high misdemeanour –,desde que a residência na área indígena se prolongassepara depois do primeiro dia do mês demarço de 1831 sem a licença do Governador doEstado. A Suprema Corte decidiu que a lei erainconstitucional, pois o Estado somente poderiaeditar lei com validade para a área indígena13É o que, com outras palavras, escreve Fábio Konder COMPARATO: “Mas o reconhecimento desse <strong>direito</strong> fundamental à própria identidade, nocampo sócio-cultural, não significa, como é óbvio, que a isonomia deva ser abolida ou restringida. Muito pelo contrário, é indispensável entender quetodos os grupos sociais têm igual <strong>direito</strong> à preservação de suas características culturais, sem privilégios de nenhuma espécie”, grifo original Igualdade,Desigualdades, Revista Trimestral de Direito Público, Malheiros, SP, n. 2, 1993, pp. 69-78 (78). Portanto, a unidade da sociedade moderna residena distinção.14Na época da colonização do território americano pelos europeus estes firmaram acordos, quase sempre fraudulentos, com as etnias que lá viviam, oque não passou despercebido por Alexis de TOCQUEVILLE: “Os espanhóis foram incapazes de exterminar a raça indígena, ou mesmo de impedilade dividir os seus <strong>direito</strong>s, mercê de monstruosidades sem precedentes, cobrindo-se de uma vergonha indelével; mas os americanos dos EstadosUnidos alcançaram esse duplo resultado com uma facilidade admirável, tranqüila, legal, filantropicamente, sem derramar sangue, sem violar um só dos grandes princípios da moral aos olhos do mundo. Não seria possível destruir os homensrespeitando mais as leis da humanidade”, A Democracia na América, Itatiaia, SP, 1987, p. 261, descrição rememorada por Noam CHOMSKY, FailedStates, Metropolitan Books, New York, 2006, p. 4.1531 U. S. 515 (1832)118 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOcom o consentimento do Congresso Federal, oque não teria ocorrido.Essa decisão, na pena de Stephen L.PEVAR 16 , é tomada na conta de afirmação daautodeterminação e do auto-governo reconhecidosàs comunidades indígenas, e ainda de acordocom o mesmo autor, a Suprema Corte, quinzeanos após, começou a esvaziar o conteúdodessa decisão, ao permitir que o Estado pudesse,mesmo sem a autorização do Congresso Federal,a) acusar não-índios que cometessem crimescontra outros não-índios no interior da áreaindígena, e b) taxar a propriedade pessoal vendidapor não-índios na terra indígena 17 , casoUtah and No. Ry. v. Fisher 18 .A diferença básica entre o Brasil e os EstadosUnidos é que nos Estados Unidos as populaçõesindígenas dispõem de um Estatuto própriono qual é reconhecida, por exemplo, a jurisdiçãoindígena, o que ainda não existe no Brasil,mas que se constitui em hipótese perfeitamentefactível.b) a Convenção n. 169, da OITAqui neste tópico pode ser incluída, também,a descrição a ser feita a respeito da Convençãon. 169/89, da Organização Internacional do Trabalho–OIT, órgão da Organização das NaçõesUnidas. Essa Convenção substituiu a de n. 107e dispensou tratamento mais adequado às sociedadestradicionais do que fazia o primeiro documentointernacional. No Brasil foi promulgadapelo Decreto n. 5051, de 19.04.2004.Uma primeira problematização que se podefazer a respeito desse documento normativo ése ele possui estatura hierárquica constitucional,tendo em vista o que dispõe a norma do artigo5º, § 3º, da Constituição, segundo a qual os tratadose convenções internacionais sobre <strong>direito</strong>shumanos que foram aprovados, em cada Casado Congresso Nacional, em dois turnos, por trêsquintos dos votos dos respectivos membros, serãoequivalentes às emendas constitucionais.Essa norma foi positivada pela Emenda Constitucionaln. 45, de 8.12.2004.Por mais plena de boa intenção que uma interpretaçãopositiva para o caso possa conter esignificar, não parece adequado considerar-se aConvenção n. 169 no mesmo nível hierárquicoformal da emenda constitucional, e isso porquea redação conferida ao artigo 5º, § 3º, da Constituiçãoemprega os termos “que forem”, o quesignifica um mandamento prospectivo ou exnunc. Como a Convenção n. 169 foi promulgadaem abril de 2004 e a norma do artigo 5º, § 3ºfoi positivada no texto constitucional em dezembrode 2004, não parece adequado conferir a ela,Convenção, a qualificação comparativa à emendaconstitucional, o que poderia ser alcançado,sem embargo, com o cumprimento dos requisitosformais elencados na mesma norma constitucional.A Convenção n. 169, a par de demonstrar aforça com que a normativa internacional impactaa normativa nacional, constitui-se de quarenta etrês artigos distribuídos em dez seções: políticageral, terras, contratação e condições de emprego,indústrias rurais, seguridade social e saúde,educação e meios de comunicação, contratos ecooperação por fronteiras, administração e disposiçõesfinais e transitórias 19 .A eficácia social de seu texto depende doregular e sistemático monitoramento por partedos órgãos encarregados, quais sejam, o Comitêde Peritos e a Conferência do Comitê sobre aAplicação das Convenções e das Recomendações20 . No campo político os efeitos da Convençãon. 169 são sensíveis, pois além de permitir anacionalização de demandas que tenham porbase o seu texto, produz a internacionalizaçãoda discussão sobre os <strong>direito</strong>s indígenas. Contudo,ainda há temas que não figuram em seutexto, tais como a prestação do serviço militarpelo índio, o registro civil, o <strong>direito</strong> de família ea questão das drogas.16The Rights of Indian and Tribes, New York University Press, New York, 2004, p. 86.17Idem, p. 129.18116 U. S. 28 (1885).19Conforme Roberto Lemos dos SANTOS FILHO, Apontamentos sobre o Direito Indigenista, Juruá, Curitiba, 2006, p. 75.20Cletus Gregor Barié, Pueblos Indígenas y derechos constitucionales, op. cit., p. 62.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008119
SILVA, P. T. G.De tudo o que foi descrito remanescem, comopontos relevantes a este ensaio, duas idéias básicas:a) a de etnicidade; b) a de <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>.Ambas, frise-se, oriundas de normatização internacional.III. Conceitos antecedentes dasaproximações adequadas do temaAntes de se iniciar a descrição das abordagensadequadas do tema, impõem-se alguns esclarecimentossobre termos-chave à compreensãoda discussão que se pretende neste ensaio eque de sua vez são utilizados massivamente emtextos afins. São eles: pluralismo jurídico,<strong>multiculturalismo</strong>, etnicidade e <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>.a) pluralismoPluralismos há de vários tipos. Há o pluralismo,puro e simples, utilizado, muita vez ingenuamente,como arma para combater o fundamentalismo21 . Existe, de igual efeito, o pluralismopolítico, positivado na Constituição brasileiranos artigos 1º, inciso V, e 17, “caput”, eque significa a possibilidade de existência deassociações organizadas pelos indivíduos, comindependência do Estado e das demais associaçõese participantes do processo de tomada dedecisões políticas 22 . Há, também, o pluralismode idéias referente à educação e previsto no artigo206, inciso III, também da Constituição, eque significa a obrigatoriedade de o ensino serministrado com base na descrição das visões demundo existentes.A garantia que a teoria indica à preservaçãodo pluralismo é o denominado princípio da nãoidentificação,já mencionado por ZIPPELIUS epelo qual o Estado não se identifica, de formaexclusiva, com esta ou aquela cosmovisãopositivada na Constituição 23 .No <strong>direito</strong> estrangeiro se encontram até mesmo<strong>revista</strong>s específicas e que tratam do tema dopluralismo jurídico, tal como a Journal of LegalPluralism and Unofficial Law.Neste ponto, e antes de se avançar, é relevantedestacar a compreensão que se tem deconceitos como pluralismo jurídico-antropológicoe pluralismo jurídico.Pluralismo jurídico 24 :1. Em <strong>direito</strong>: a) Existência simultânea,no seio de uma mesma ordem jurídica,de regras de <strong>direito</strong> diferentes aplicando-sea situações idênticas; b) Coexistênciade ordens jurídicas distintas estabelecendoou não relações de <strong>direito</strong>entre si.Pluralismo jurídico-antropológico 25 :1. Corrente doutrinária que insiste nofato de que à pluralidade dos grupossociais correspondem sistemas jurídicosmúltiplos compostos que seguem relaçõesde colaboração, coexistência, competiçãoou negação; o indivíduo é umator do pluralismo jurídico na medidaem que ele se determina em função desuas vinculações múltiplas a essas redessociais e jurídicas.Por essas conceituações pode-se perceberque a teoria do pluralismo jurídico-antropológicopossui um campo de incidência maisabrangente tendo em vista que se pretendealbergadora do fenômeno do pluralismo jurídicocomo um todo, pesquisando, aceitando e discutindoa possibilidade de se relativizar o <strong>direito</strong>estatal como fonte de todo o <strong>direito</strong>. É essamesma teoria que permite uma mais adequadacompreensão dos eventos que ocorrem nas sociedadesindígenas, como será descrito maisadiante.21Conforme Niklas LUHMANN, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt, 1999, v. I, p. 155.LUHMANN, ao mesmo tempo em que rejeita a idéia de uma ética do pluralismo, argumenta que o universalismo dos sistemas funcionais que operamna sociedade mundial não exclui particularismos de diferentes espécies, mas antes os estimulam, e que a facilidade com que as estruturas dessamesma sociedade mundial mudam é compensada pelas autóctones e em cada caso fortemente delimitadas ligações ou compromissos, idem, p.170.22Conforme Antonio Gomes Moreira MAUÉS, Poder e Democracia: O Pluralismo Político na Constituição de 1988, Síntese, Porto Alegre, 1999, p. 15.23Reinhold ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, pp. 301- 304.24Jean-Guy BELLEY, Pluralismo Jurídico, in André-Jean ARNAUD (ed.), Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito, Renovar, RJ,1999, pp. 585-589 (585).25Norbert ROULAND, Pluralismo Jurídico (Teoria antropológica), Idem, pp. 589-590 (589).120 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOEssa idéia é reforçada pela abordagem deJohn GRIFFITHS, que em seu artigo What IsLegal Pluralism? 26 propõe que se considerepluralismo jurídico como um atributo do camposocial e não da lei ou de um sistema legal. Suaabordagem combate a ideologia que ele denominade centralismo jurídico, e nesse diapasãoele não entende por pluralismo jurídico a situaçãona qual exista mais de uma regra aplicável àmesma situação, pois essa é uma assertivanormativa, e não empírica. O <strong>direito</strong> está presenteem cada campo social autônomo, e desdeque cada sociedade possui diversos campos, opluralismo jurídico é um traço universal da organizaçãosocial 27 .A concepção de pluralismo jurídico traçadapor GRIFFITHS nesse artigo permite a compreensãodo tema um pouco mais desligada da idéiaque marca o raciocínio do jurista sempre representadapela lei ou mesmo pelo sistema legal.Pluralismo jurídico, na idéia lançada pelo autor,não significa a existência de mais de uma regraválida para o mesmo caso, porém, mais do queisso, a coexistência de diferentes <strong>direito</strong>s a informara organização social. De seu artigo podemser extraídas duas conclusões relevantes,sem prejuízo de outras que porventura possamse manifestar: a) o pluralismo jurídico é um fato,e o centralismo jurídico um mito 28 ; b) sua apostaé no empírico, antes que no normativo.a.1) distinção entre pluralismo e relativismoUma outra possibilidade de problematizaçãode conceitos existentes a respeito do tema é anão-identificação do pluralismo com o relativismo.Sobre o relativismo são necessários, de igualefeito, alguns esclarecimentos 29 . Comumente setrata do relativismo cultural, todavia, há váriasformas de relativismos. Uma obra bastanteiluminadora do tema é o livro de MariaBAGHRAMIAN, intitulado Relativism, e noqual é como que traçado um panorama completosobre as espécies de relativismos existentes.Há o relativismo sobre a verdade, o relativismorelacionado à racionalidade, o relativismoepistêmico, o relativismo conceitual e o relativismomoral 30 .O relativismo cultural constitui-se, segundoa autora, em fonte contemporânea do própriorelativismo. Foi difundido pela antropologia social,especialmente por Herskovits, Benedict eMead, e se funda em três asserções: a) a asserçãodescritiva: observações empíricas mostram queexiste uma multiplicidade de visões de mundo esistemas de valores incompatíveis e irreconciliáveis;b) a asserção epistêmica demonstra que nãoexiste critério singular ou método confiável parase adjudicar entre visões de mundo e sistemasde valores contrastantes e incomensuráveis; c)a asserção normativa: tolerância e respeito poroutras visões de mundo são mais desejáveis doque tentar impor nossas visões para os outros 31 .Dentre as críticas que foram endereçadas àidéia de relativismo cultural 32 , tal como aquiexposta, está a de que as culturas possuem fronteirasfluidas e raramente são ilhas isoladas, epor isso não podem operar como se fossem umacompleta unidade integrada, de vez que haverásempre dissenso e oposição no interior delasmesmas, como é o caso das mulheres, das crianças,etc 33 .Depois de descrever que o relativismo culturaldas primeiras gerações de antropólogossociais está sendo substituído pelo relativismoda “diferença”, BAGHRAMIAN argumenta quese deve distinguir relativismo de pluralismo, pois26Journal of Legal Pluralism and Unofficial Law, n. 24, 1986, pp. 1-54.27Idem, pp. 38-39.28Idem, p. 4.29Nas Grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de pesquisa para se saber se osindígenas possuíam alma, imergiam os brancos prisioneiros a fim de verificar por uma vigilância prolongada se seus cadáveres eram, ou não, sujeitosà putrefação. Essa anedota barroca e trágica, contada por Claude Lévi-Strauss, ilustra o paradoxo do relativismo cultural: “c´est dans la mesure mêmeoù l´on prétend établir une discrimination entre les cultures et les coutumes que l´on s´identifie le plus complètement avec celles qu´on essaye de nier”,Race et histoire, Folio/Gallimard, Paris, 1987, pp. 21-22.30Maria BAGHRAMIAN, Relativism, Routledge, London and New York, 2004.31Idem, p. 89.32Idem, p. 97.33Crítica, de sua vez, já presente em Rita Laura SEGATO, Antropologia e Direitos Humanos: Alteridade e Ética no Movimento de Expansão dosDireitos Universais, artigo a ser publicado em MANA.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008121
SILVA, P. T. G.este é a reivindicação de que para muitas questõesnos domínios da metafísica, estética, éticae mesmo da ciência poderia haver mais do queuma resposta correta ou apropriada. O pluralista,como o relativista, rejeita o absolutismo e o monismo,porém não aceita a asserção dos relativistassegundo a qual temas da verdade, do certoe do errado podem ser arbitrados apenas relativamenteao seu contexto cultural ou conceitual.Para os pluralistas, em muitas situações podehaver mais de uma correta avaliação e descriçãoindependente do contexto 34 .Se se fizer uma comparação entre o que escreveBAGHRAMIAN e GRIFFITHS pode-seperceber que o conceito atribuído por ambos aopluralismo é um conceito de maior abrangência:a) primeiro porque diferencia pluralismo depluralismo jurídico; b) segundo porque diferenciapluralismo de relativismo cultural.No primeiro caso o conceito mais amplo depluralismo funciona como mais adequado, poiscombate o reducionismo que o conceito depluralismo jurídico opera, ao querer significar asi próprio apenas como a situação na qual maisde uma regra se aplica ao mesmo evento 35 ; nosegundo funciona como combatente do reducionismooperado pelo relativismo cultural, produzindoa valiosa contribuição para a formulaçãode esboço de teoria que possa solucionar os conflitosmanifestados sem o apelo a uma forma“pura” de relativismo cultural, o que, traduzidopara o <strong>direito</strong> indígena, bem pode ser consideradocomo elemento de contribuição para aformatação de uma teoria, ainda que casuística,da interpretação que não apele ao essencialismoétnico. Em ambos os casos, o que se combate éo anything goes do relativismo cultural.De fato, os conflitos étnicos e interétnicos,atualmente, ainda que reclamem o reconhecimentode um certo grau de pluralismo, demandamtambém a ponderação dos interesses atinentesà minoria da minoria, o que, de sua vez,demonstra a força com que a reflexividade atingea sociedade moderna.Nesse pano de fundo o <strong>direito</strong> de cada sociedadetradicional, aqui considerada como camposocial semi-autônomo, pode ser tomado naconta de produto de cada cultura, e se existemmuitas delas inseridas na sociedade oficial, entãose pode imaginar uma sociedade multicultural.b) <strong>multiculturalismo</strong>Dado por assente que pluralismo não é sinônimode relativismo cultural, poder-se-ia pensarna substituição da palavra <strong>multiculturalismo</strong> pormultipluralismo. Ocorre que essa nova palavraseria um pleonasmo, pois pluralismo já implica,em si mesmo, a existência de diversos <strong>direito</strong>s.A nova palavra, então, pecaria pelo excesso designificado, pois indicaria a multidão de pluralismos,além de demonstrar, mais uma vez, a manifestaçãoda reflexividade. Portanto, continuaa ter validade a palavra <strong>multiculturalismo</strong>. Contudo,não deixa de ter validade a idéia de que hávárias formas de <strong>multiculturalismo</strong>, isto é, diversasformas de diversidade cultural: a étnica,central neste artigo, é apenas um exemplo delas.Pode-se pensar, de igual efeito, na de gênero,na racial e na de orientação sexual.Refletir sobre <strong>multiculturalismo</strong> implicapensar, necessariamente, na formulação queKYMLICKA confere ao conceito, que para elepode se manifestar de duas maneiras: a) culturado nativo em relação à sociedade envolvente; b)cultura dos movimentos migratórios em relaçãoà sociedade já existente. No primeiro caso, asociedade tradicional não quer ser integrada àenvolvente; no segundo, os grupos querem aintegração 36 .Esse conceito já sofre críticas, seja porqueconsidera a cultura independente da etnia 37 , sejaporque não trabalha com o paradoxo do próprio<strong>multiculturalismo</strong>, que poderia gerar ser híbridoculturalmente 38 , seja porque trata a culturacomo um processo estático, e não dinâmico 39 .34Relativism, op. cit., p. 9.35No mesmo sentido, ver Antonio Carlos WOLKMER, Pluralismo Jurídico, Alfa-Omega, SP, 2001, e Marcos Augusto Maliska, Pluralismo Jurídico eDireito Moderno, Juruá, Curitiba, 2001.36Will KYMLICKA, Multicultural Citizenship, Clarendon Press, Oxford, 1996, pp. 10-11.37Kwame Anthony APPIAH, The Multiculturalist Misunderstanding, The New York Review of Books, v. 44, n. 15, October 9, 1997.38Para uma descrição completa da crítica existente, Andréas HOFBAUER, Ações Afirmativas e o Debate sobre Racismo no Brasil, Lua Nova, SP, n.68, 2006, pp. 9-56.122 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOA sociedade moderna é multicultural porqueformada por diversas culturas. Essa formação éproduto tanto das culturas dos povos já existentesnas sociedades então descobertas quanto dosmovimentos migratórios caracterizados por umadiáspora sem fim e calcada em razões econômicas,políticas e religiosas, portanto, sociais. Essefato não deixa de ser paradoxal, pois a plenarealização do <strong>multiculturalismo</strong> significa o ativointeresse e envolvimento nas diferentes culturas,o que pode proporcionar, por exemplo,uniões interculturais, fazendo com que uma pessoatenha a mesma possibilidade de ser membrode outros grupos culturais como do próprio grupoao qual pertence 40 .Um outro aspecto envolvendo o significadoda palavra <strong>multiculturalismo</strong> é aquele ligado aofato de que a preservação, de maneira solipsística,de cada cultura pode levar ao recrudescimentodas identidades tribais e coletivas, asquais, de sua vez, podem ofuscar as identidadesindividuais, quase que obrigando a pessoa a seauto-definir como sendo pertencente ou não auma determinada sociedade 41O evento produzido, então, pode ser nefasto,desde que se pense nas formas de luta queessas identidades podem lançar mão para fazervaler a sua própria Weltanschauung. Parece serum risco que não se tem como não correr, pois omundo é assim porque é assim, e a evolução, nasociedade moderna, é um processo cego, compouca, ou quase nenhuma, condição de possibilidadede planejamento de um futuro que éaberto 42 .Traduzido o dilema para a forma gráfica temseque o <strong>multiculturalismo</strong> é uma forma com doislados: um lado da forma é representado pelamistura total das culturas, e o outro lado da formao é pela separação total das culturas. Nessequadro a sociedade liberal pode exercer a funçãode coordenação dos eventos que se manifestarempor meio de critérios tais quais os expostospor KYMLICKA e referentes à tolerância:restrições externas e não-restrições internas.Graficamente:mistura totaldas culturasMULTICULTURALISMO8PODGRGDIRUPD2XWURODGRGDIRUPDVRFLHGDGHOLEHUDOUHODomRGHFRRUGHQDomRseparação totaldas culturasO <strong>multiculturalismo</strong> que marca a ferro e fogoa sociedade moderna é um dado da realidade, eao que parece, não pode ser negado. Diversidadeétnica, de gênero, de língua, etc. se manifestacom tamanha força que passa a ocupar o lugarda antiga, mas ainda não superada, idéia dedivisão social por classes 43Isso faz com que a sociedade moderna ganheem complexidade, gerando, de sua vez, maiscomplexidade para a própria sociedade manejar.Exemplo sintomático dessa afirmação é otexto da Constituição brasileira positivado noartigo 215, pelo qual reconhece e protege a culturaindígena, o que, no plano do conhecimentoespecífico significa colocar uma pá de cal sobrea distinção natureza / cultura.Pode-se conceituar cultura com o que escreveFloresmilo SIMBAÑA:39Rita DHAMOON, Shifting From ‘Culture’ to ‘the Cultural’: Critical Theorizing of Identity/Difference Politics, Constellations, v. 13, n. 3, 2006, pp.354-373.40Conforme Peter M. BLAU, Il paradosso del <strong>multiculturalismo</strong>, in Rassegna Italiana di Sociologia, il Mulino, Bologna, n. 1, marzo 1995, pp. 53-63(57-58).41Essa é, em termos gerais, a idéia lançada por Amin MAALOUF, no livro Les identités meurtrières, Grasset, Paris, 1998.42Risco esse já observado por Barbara OOMEN, mesmo numa sociedade como a sul-africana pós-apartheid e na qual o reconhecimento do <strong>direito</strong> degrupo ocorre em bases diferentes daquelas utilizadas pelo regime do apartheid, Group Rights in Post-Apartheid South Africa: The Case of theTraditional Leaders, Journal of Legal Pluralism and Unofficial Law, n. 44, 1999, pp. 73-103.43Por certo que uma questão envolvendo <strong>direito</strong> de determinada etnia possa também se qualificar não só como problema de reconhecimento cultural,mas como de redistribuição de recursos. É o que Nancy FRASER denomina de modo bivalente de coletividade, pois que ela, a coletividade, podepossuir demandas de reconhecimento e de redistribuição, as quais, de sua vez e respectivamente, podem levar ao objetivo de se reforçar as diferençasde grupo e de se eliminar essas mesmas diferenças, v.g., as demandas de gênero, de “raça”, de etnia e de orientação sexual, From Redistribution toRecognition? Dilemmas of Justice in a ‘Post-Socialist’ Age, New Left Review, I/212, July-August, 1995; em outra abordagem sobre quase osmesmos temas, Will KYMLICKA os denomina de politização da etnicidade, Liberalism and the Politicization of Ethnicity, Canadian Journal of Lawand Jurisprudence, n. 4, 1991, pp. 239-256.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008123
SILVA, P. T. G.“Hablar de cultura y de las culturas eshablar de ámbitos bastante complejos yde una multiplicidad de campos quecomprenden desde los procesos económicoscon todas sus dinámicas productivas,incluidos el conocimiento, laciencia y la tecnología, hasta esferas queabarcan dimensiones estrictamente subjetivasde los seres humanos y de lospueblos tales como la cosmovisión, laespiritualidad, la sensibilidad, la conciencia,el lenguaje, etc.; es decir que,cuando nos referimos a la cultura,estamos hablando de todas las formashumanas de producción individual yreproducción social” 44 .TAYLOR atribui a Rousseau a nova maneirade se pensar sobre a dignidade, a qual, de seuturno, seria produto do colapso da sociedadehierarquizada: dignité no lugar de préférence.Rousseau, segundo TAYLOR, teria pensado sobreo respeito igual como indispensável à liberdade,e por isso pode ser colocado na origem dodiscurso sobre o reconhecimento 45 .A aceitação, então, da premissa de que a sociedademoderna é multicultural leva à reflexãosobre o reconhecimento na esfera pública, quede sua vez forja a própria identidade e uma supostacidadania multicultural. O reconhecimentopode ser objeto de políticas respectivas e decasos jurídicos a serem julgados. E parece ser aíque reside o problema, pois cada vez que umapolítica de reconhecimento for editada e umadecisão jurídica sobre o reconhecimento for proferida,ao menos no quadro de uma sociedadeliberal, manifestar-se-á a questão sobre se o <strong>direito</strong>de uma coletividade deve se sobrepor aode um indivíduo.Para a sociedade liberal cujo funcionamentoreside no rígido padrão procedimental o problemaé de grande monta. A sociedade americana épródiga em fornecer exemplos do político, dojurídico e da ciência. DWORKIN e RAWLS sãoapenas dois exemplos.O debate vai desaguar nas fortes distinçõesque marcam a discussão – universalismo/particularismo,relativismo/pluralismo, essencialismo/ocidentalização –, e para as quais não parecehaver resposta suficiente e nem mesmo condiçõesde possibilidade de formulação de uma teoriageral. E aí parece mesmo impossível a construçãode uma teoria geral. Todavia, isso nãoimpede a formulação de idéias que possam contribuirpara o debate.Uma delas vem da pena de POLANCO 46 ,para quem não se pode descrever o conflito apelando-seao liberalismo duro ou ao relativismoabsoluto 47 . Argumenta ser a perspectiva das identidadesmúltiplas o ambiente fértil ao desenvolvimentode uma política própria sobre a diversidade,rechaçando, ao mesmo tempo, qualquerpolítica fundada nas identidades como se fossemessências, entes estáticos ou invariáveis,únicos e irredutíveis entre si 48 .No mesmo sentido escreve ARIAS-SCHREIBER, para quem os costumes arraigadosculturalmente e que violam os <strong>direito</strong>s humanosnão podem ser tolerados, pois a tolerâncianão deve ser confundida com a aceitaçãopassiva do eticamente intolerável. Propõe ele aidéia de interculturalidade, o que seria uma espéciede culturalizar o <strong>multiculturalismo</strong> e quepoderia se efetivar mediante o diálogo e a negociaçãoentre as partes, tudo com o objetivo demanejar razoavelmente o conflito das identidades49 .De todo modo, a distinção universalismo /relativismo é um dado da realidade. Portanto,produz efeitos na sociedade. Pode ser descritacomo uma tautologia: existe por causa das cul-44Plurinacionalidad y Derechos Colectivos – El Caso Ecuatoriano, in Pablo DÁVALOS (org.), Pueblos Indígenas, Estado y Democracia, CLACSO,Buenos Aires, 2005.45Charles TAYLOR, The Politics of Recognition, in Amy GUTMANN (ed.), Multiculturalism, Princeton University Press, Princeton, New Jersey,1994, pp. 25-73.46Héctor Diaz POLANCO, Los Dilemas del Pluralismo, in Pablo DÁVALOS, Pueblos Indígenas, Estado y Democracia, idem, pp. 43-66.47Idem, p. 44.48Idem, p. 53.49Fidel Tubino ARIAS-SCHREIBER, Interculturalizando el Multiculturalismo, Bibliothèque de la Méditerranée, www.cidob.es .124 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOturas diferentes e do <strong>multiculturalismo</strong> ou, antes,é causa de surgimento do último.Contudo, não parece ser esse o ponto fulcralda questão. Ele parece residir na inexorávelmarca que distingue a sociedade moderna, istoé, o só-fato de existir uma sociedade com diferentesculturas – fenômeno reforçado pela própriamundialização – implica a manifestação datensão universalismo / relativismo. É impossívelum viver sem o outro. O manejo de eventuaisconflitos gerados pela coexistência de culturasdiferentes dar-se-á nos moldes da doutrinaaqui citada.O debate pode ser, ainda, alimentado porconceito como o de etnia.c) etniaNo atual campo das idéias da sociologia políticao debate é marcado pelo abandono das teoriasprimordialista/essencialista e instrumentalista/nominalistaa respeito da etnicidade e queestiveram em voga até os anos oitenta do séculopassado. Em seu lugar assume a teoriaconstrutivista, que também possui diferentesformas, e que muda o foco da análise centradana asserção de que a etnicidade é sempre em simesma o ponto central na organização da identidadepara uma pluralização que se dirige aoutras formas de identificação, sejam elas raciais,sexuais, nacionais ou de gênero, isto é, oque vige atualmente é uma preocupação teóricacom a diferença 50 . Nesse sentido, as novas teorizaçõesdispensam tratamento aos problemascontemporâneos representados pela diáspora,pelos refugiados e pelas políticas de diferençacultural.O conceito mais aceito e utilizado pela Antropologiapara descrever as sociedades indígenastradicionais é o de etnia. Cada sociedade tradicionalrepresenta uma etnia. Roberto Cardosode OLIVEIRA propõe uma definição do camposemântico de etnia como se esta abrangesse duasséries, uma envolvendo identidades, e outra,padrões culturais. Por identidade entende o autorque ela contém duas dimensões: a pessoal(ou individual) e a social (ou coletiva) 51Na série que envolve identidades classificamsedois tipos diferentes de mecanismos de identificação:a) o primeiro de identidades assumidaspor membros de grupos minoritários (índios,negros, etc.) inseridos em sistemas globais(como as sociedades nacionais); b) o segundode identidades anfitriãs, portanto majoritários emsituações de contato com identidades do primeirotipo 52 .Na série cultural a classificação é por padrõesde conduta (social, religiosa, econômica, etc.)que sejam solidários ao que se convencionouchamar de sociedade simples e sociedade complexa.A etnia, sendo conceito que exprime umarelação, permite a manifestação da denominadaidentidade contrastiva, o que implica a afirmaçãodo nós diante dos outros 53 , portanto, é identidadeque surge por oposição e que indica, sempre,uma diferenciação daquele que se manifestacom relação a outro.A identidade ou etnia indígena, então, se afirma,pessoal e socialmente, por diferenciação daidentidade do não-indígena, e ao menos no Brasil,minoritária que é, contrasta com a majoritária.Também ela é, dessa maneira, marcada peladiferença, pois o índio, o outro, é diferente.Firmadas essas idéias a respeito do que podeser compreendido por pluralismo, <strong>multiculturalismo</strong>e etnicidade, pode-se iniciar, agora, atentativa de compreensão de como essas mesmasidéias podem materializar-se no jurídico,vale dizer, de que modo podem ser traduzidasjuridicamente: o meio para essa tradução pareceser a idéia de <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>.d) <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>No campo filosófico está instaurada uma discussãoa respeito da justificação do <strong>direito</strong> cole-50Tudo conforme Aletta J. NORVAL, The Politics of Ethnicity and Identity, in Kate NASH e Alan SCOTT (ed.), The Blackwell Companion to PoliticalSociology, Blackwell Publishing, Oxford, 2004, pp. 271-280.51Identidade, Etnia e Estrutura Social, Pioneira, SP, 1976, p. 4.52Idem, p. 102.53Idem, p. 5.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008125
SILVA, P. T. G.tivo, se pode ele conviver com o <strong>direito</strong> individuale se, em caso positivo, qual a teoria queseria aplicável a ele como <strong>direito</strong> subjetivo, se ada vontade ou se a do interesse, embora, naAmérica Latina, seja quase inexistente o debatea respeito do tema.De antemão é necessário frisar que a idéiade <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> aqui trabalhada não se identificacom a figura do <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> oriundado <strong>direito</strong> processual brasileiro, de vez que seuconceito é, além de mais amplo, albergador defatores desconhecidos da ciência processual.A distinção <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> / <strong>direito</strong> individualremete ao debate de idéias que sempre perpassoupela filosofia política, tendo encontradomais adversários do que adeptos. Stuart MILL,um liberal, se posicionou contrário à idéia deexistência de <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> –”As instituiçõeslivres são quase impossíveis em um país formadode diferentes nacionalidades” – 54 ; ENGELS,de sua vez, também se manifestou no mesmosentido, conforme se deduz do que escreveu noNeue Rheinische Zeitung 55 , em 1849, sobre oPaneslavismo Democrático. HOBSBAWM argumentaque esse sentimento antigrupo era geralàquela época 56 e ele mesmo, em artigo recente,escreveu que o projeto da esquerda, porser universalizante, colocar-se-ia contra as atuaispolíticas de identidade 57 . NOZICK, de seuturno, chega a afirmar que o relativismo é igualitário58 . PIERUCCI primeiro demonstra paradepois afirmar que apontar as diferenças paraapós rejeitá-las são atitude e pensamento da direita59 . Michael LÖWY argumenta que os movimentosnacionais possuem dois lados: o melhor,representado pelo despertar das nações coma redescoberta de suas línguas e culturas, e opior, representado pelos nacionalismos chauvinistas,pela intolerância e pelas xenofobias 60 .Dessa breve descrição pode-se concluir, comum mínimo de certeza, que nenhum pensamentoideológico-político toma para si o monopólioda afirmação de existência do <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>;antes, problematizam-na. Seria o caso mesmode se perguntar se alguma validade possui essadescrição baseada na distinção <strong>direito</strong> individual/ <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>, pois que até em sociedadesliberais, conforme escreve Leslie GREEN, algumaorganização se manifesta, v.g., família, etc.A suposta atomicidade, então, daria lugar aomolecularismo 61 : o debate individual / <strong>coletivo</strong>,para ela, está errado.Na filosofia norte-americana encontram-seposições favoráveis e contrárias à existência do<strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>. Peter JONES, em artigo intituladoHuman Rights, Group Rights, and Peoples’Rights 62 descreve quem é contra e quem é a favor.Argumenta que um <strong>direito</strong> de grupo é apenasaquele que nasce para o grupo como grupo,ou seja, que possua um conteúdo relacionado àcoletividade. Indica a existência de dois conceitosde <strong>direito</strong>s de grupo: a) o <strong>coletivo</strong>; b) o corporativo.No primeiro, tomando emprestada deRAZ a idéia de interesse-obrigação a fundamentarum <strong>direito</strong>, no caso, para ser um <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>há a necessidade de que, no grupo, a uniãode interesses de um número de indivíduos ofereçasuficiente justificação para impor obrigaçõesaos outros – pense-se, por exemplo, no casodas minorias culturais que têm o <strong>direito</strong>, comogrupo, de que a maioria da sociedade acomodee proteja essa mesma cultura minoritária –; nosegundo, a descrição pode ser feita com base nadiferença existente entre o <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> e o54O Governo Representativo, IBRASA, SP, 1995, p. 199.55Der demokratische Panslawismus, Neue Rheinische Zeitung n. 222 vom 15 Februar 1849, disponível em http://gutenberg.spiegel.de.56Eric J. HOBSBAWM, Nations and Nationalism since 1780 – Programme, Myth, Reality, Cambridge University Press, Cambridge, 2005, p. 35.57Identity Politics and the Left, New Left Review I/217, May-June, 1996, pp. 38-47.58“If truth is relative to, for instance, anthropological culture, then different cultures can consistently coexist, and they (and their standards of truth) areheld to be equally good. Relativism is egalitarian”, Robert NOZICK, Invariances – The Structure of the Objective World, Belknap Harvard, Cambridge,2001, p. 19.59Antônio Flávio PIERUCCI, Ciladas da Diferença, Editora 34, SP, 2000.60Nacionalismo e a Nova Desordem Mundial, in Adauto NOVAES (org.), A Crise do Estado-Nação, Civilização Brasileira, RJ, 2003, pp. 259-280(262).61Leslie GREEN: “The struggles to secure civil liberties, limit the powers of government, and the like were motivated less by social atomism than bywhat we might call molecularism –acknowledgement that among the most significant constituents of civil society are overlapping social groups”,Internal Minorities and their Rights, in Will KYMLICKA (ed.), The Rights of Minority Cultures, Oxford University Press, Oxford, 1995, pp. 257-272(258).62Human Rights Quarterly, n. 21, 1999, pp. 80-107.126 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOcorporativo, sendo que o primeiro atribui umaposição moral apenas aos indivíduos que juntosusufruem o <strong>direito</strong> de grupo, enquanto que osegundo atribui posição moral ao grupo comotal. O que diferencia um do outro, portanto, é olocus da posição moral. E é por isso que o <strong>direito</strong><strong>coletivo</strong>, ao atribuir a posição moral aos indivíduosque formam o grupo, pode ser representadocomo um <strong>direito</strong> humano, ao contrário do<strong>direito</strong> corporativo, cuja posição moral éendereçada à entidade, e não à pessoa 63 .As idéias de JONES são de enorme valia paraa compreensão do tema. Por primeiro elas esclarecemas dúvidas lançadas, por exemplo, porNicolas López CALERA em seu livro Hayderechos colectivos? 64 . É que CALERA aindase encontra preso à necessidade ontológica dejustificação do <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>, embora reconheça,de partida, a sua existência. Tome-se essajustificação como interesse, na linha esposadapor RAZ, também presente nesse livro, e a dúvidadesaparece. Demais disso, a distinção feitapor JONES a respeito do <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> e do<strong>direito</strong> corporativo ajuda a compreender quandose aplica um e quando se aplica outro. Nocaso das universidades, que são pessoas jurídicasautônomas e, portanto, possuem <strong>direito</strong> degrupo, esse <strong>direito</strong> é nitidamente de carátercorporativo.Por fim, e ainda na esteira do que escreveuJONES, se o <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> pode ser um <strong>direito</strong>humano, e se este é universal, então o <strong>direito</strong><strong>coletivo</strong> não pode avocar para si uma pretensarelatividade absoluta, pois estaria, de um lado,se beneficiando daqueles significados que a teoriados <strong>direito</strong>s humanos oferece, ao mesmo tempoem que, por outro lado, estaria negando amesma teoria quando não fosse de seu “interesse”.Cindy L.HOLDER e Jeff J.CORNTASSEL 65 ,de seu turno, identificam a descrição de <strong>direito</strong><strong>coletivo</strong> de JONES com a concepção liberal-individualistapresente mesmo em KYMLICKA 66 .Argumentam que o problema está em que tantoessa concepção quanto a de <strong>direito</strong> corporativoapresentam uma utilidade limitada na análise dasatuais demandas de <strong>direito</strong>s de grupos. É que,segundo os autores, tanto a concepção coletivaquanto a corporativa dos <strong>direito</strong>s de grupo descrevemo significado do pertencimento ao grupopara o bem-estar individual em termos primariamentepsicológicos. Conseqüentemente, osinteresses que os indivíduos têm na comunidadee as condições necessárias para que esses interessesse realizem parecem ser os mesmos paratodas as pessoas, a despeito de os grupos aosquais essas pessoas pertençam e das próprias característicasde seu pertencimento 67 . Essa visãoimpede, por exemplo, a afirmação de <strong>direito</strong>sdas minorias da própria minoria, pois que sempreserá argumentado como princípio que estáem jogo a continuação da comunidade.Esse tratamento conferido ao <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong>está em desacordo com os objetivos e a práxisdos grupos indígenas 68 . Os autores, então, propõema descrição da prática como alternativa.O objetivo é construir um discurso mais compreensivoentre a teoria existente e a prática 69 .Três perspectivas indígenas sobre cidadaniacomunal são lançadas, não sem antes se esclarecerque as visões de mundo indígenas não sãofixas ou estáticas, mas sim flexíveis e adaptá-63Neste momento da argumentação fica evidente que o <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> parece ser indispensável à promoção e fruição dos <strong>direito</strong>s humanos, os quais,para o caso do <strong>direito</strong> indígena, se qualificam por um espectro que vai desde o <strong>direito</strong> individual, passa pelos <strong>direito</strong>s sociais e desemboca nos <strong>direito</strong>sculturais, como que numa interdependência de um para com o outro, o que, de sua vez, torna sem utilidade qualquer teoria que tente deles tratar deforma a inseri-los nesta ou naquela geração, ou que tente descrevê-los de forma a separar um do outro, ainda que possuam eles estruturas normativasdiferenciadas.64Hay derechos colectivos? – Individualidad y socialidad en la teoría de los derechos, Ariel, Barcelona, 2000.65Indigenous People and Multicultural Citizenship: Bridging Collective and Individual Rights, Human Rights Quarterly, n. 24, 2002, pp. 126-151.66De fato, parece que a razão está com os autores que escrevem ser a teoria de KYMLICKA liberal-individualista, o que pode ser concluído após aleitura de seu livro Multicultural Citizenship, op. cit., especialmente o Capítulo intitulado Toleration and its Limits, no qual argumenta que a sociedadeliberal condiciona a aprovação de certos <strong>direito</strong>s de grupo a minorias étnicas à imposição de duas ordens de limites: a) uma concepção liberal de<strong>direito</strong>s da minoria não justifica, a não ser em casos extremos, restrições internas (liberdade nos grupos minoritários); b) os princípios liberais sãomais simpáticos às demandas por proteções externas, as quais reduzem a vulnerabilidade da minoria das decisões da sociedade majoritária (igualdadeentre os grupos minoritário e majoritário), pp. 152-153.67Indigenous People and Multicultural Citizenship, cit., p. 135.68Idem, p. 139.69Idem, pp. 139-142.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008127
SILVA, P. T. G.veis às circunstâncias que mudam 70 : a) a práxisindígena demonstra a existência de interdependênciaentre os <strong>direito</strong>s <strong>coletivo</strong>s e individuais,sendo eles, portanto, mutuamente interativos,e não excludentes; b) a práxis indígena se relacionaàs orientações de parentesco que podemir além dos membros do grupo para outras espéciese objetos; c) a práxis indígena destaca aimportância das comunidades na estruturaçãocompleta da vida pessoal.A práxis indígena, ainda segundo os autores,ocorre dentro dos limites daquilo que elesdenominam de Estado hospedeiro, e é nesse contextoque a interdependência entre <strong>direito</strong>s <strong>coletivo</strong>se individuais se traduz pela posição dualdos <strong>direito</strong>s <strong>coletivo</strong>s, vale dizer, como exemplo,o poder descentralizado das lideranças indígenasna comunidade baseado no consenso enão na autoridade formal do líder, além do queas tradições orais de muitos grupos indígenasenfatizam que a posição do índio é inteiramentedependente da virtude privada 71 .O tópico b 72 pode ser descrito pela relaçãode sacralidade que o índio tem com a terra, relaçãoessa orientada pela crença no parentescouniversal. A terra, para o índio, não se relacionaa aspectos de regulação, mas sim a aspectos deligação com seus ancestrais e uma mais amplaorganização espiritual. O item c 73 pode ser descritopela ligação existente entre os benefíciosmateriais e imateriais de uma vida comunal saudável,o que é escondida pela compreensãounidimensional dos <strong>direito</strong>s <strong>coletivo</strong>s encontradana teoria existente; basta pensar-se, para tanto,em que o acesso à terra, por parte do índio,implica o acesso às práticas espirituais e de suascerimônias 74 .Para os autores, essas idéias podem indicarque as holísticas visões de mundo dos indígenasvão além das descrições liberal-individualistae corporativa, as quais tendem a moldar odebate <strong>direito</strong>s <strong>coletivo</strong>s / <strong>direito</strong>s individuais emtermos de uma saúde mental-psicológica do indivíduocomo sendo contingente para a filiaçãoao grupo, esquecendo-se da presença de interessesfísicos e econômicos. É uma visão, portanto,que interage em múltiplos níveis –Estado,grupo e indivíduo 75 .As idéias aqui descritas servirão como baseteórica quando da descrição de problemas afetosà dogmática jurídica a ser feita mais adiante.IV. Aproximações adequadas dotemaSe a abordagem aqui assumida for consideradaadequada, então há a possibilidade de, no<strong>direito</strong> indígena, lançar-se mão de três aproximaçõespara se descrever esse <strong>direito</strong>: a) antropológica;b) sociológica; c) dogmático-jurídica.Essas três aproximações não são levadas acabo de forma isolada, como que de formasolipsística, mas sim de maneira interdisciplinar,de modo que cada uma possa contribuir para coma outra, tudo na consecução de se permitir umadecisão jurídica mais adequada para o caso jurídicoapresentado, desde que se pense que o <strong>direito</strong>não pode se dar ao luxo de trabalhar com qualquermanifestação de incompreensão do observador,isto é, há a obrigatoriedade de decidir.Uma primeira perplexidade que se manifestaé com relação à denominação <strong>direito</strong> indígena,pois se é <strong>direito</strong> não é antropologia ou mesmosociologia ou, por outras palavras, pode-seimaginar que todo aspecto referente ao tema indígenatenha que, necessariamente, ser levadoao sistema jurídico e, portanto, ser objeto de uma70Idem, pp. 143-149.71Idem, pp. 143-147.72Idem, pp. 147-148.73Idem, pp. 148-149.74A Constituição Federal brasileira, em seu artigo 232, preceitua expressamente o reconhecimento processual do <strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> das comunidadesindígenas, ainda que estas não possuam território demarcado, podendo, portanto, objetivar seu próprio <strong>direito</strong> à terra. Não é demais lembrar que foiapenas a partir de 1953, após os esforços de Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão, que o conceito de terra indígena foi ampliado para significarperambulação tradicional, imemorialidade, integridade ecológica e crescimento demográfico, conforme Mércio Pereira GOMES, O Caminho Brasileiropara a Cidadania Indígena, in Jaime PINSKY e Carla Bassanesi PINSKY (org.), História da Cidadania, Contexto, SP, 2005, pp. 419-445 (434).75Indigenous People and Multicultural Citizenship, cit., pp. 149-151.128 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOdecisão jurídica. Por certo não se chega a tanto,de vez que parece haver inúmeros conflitos deinteresses manifestados nas comunidades indígenase lá mesmo resolvidos, sem que se tenhaconhecimento deles, conflitos caracterizadoscomo, no dizer de ROULAND, les droits cachés.O recurso ao <strong>direito</strong> oficial é feito como últimamedida a ser tomada.Contudo, uma realidade é inegável: o <strong>direito</strong>indígena existe, e como tal serve, num primeiromomento, a desmascarar o tema indígena comosendo apenas um problema ou uma questão, enum segundo momento a tentar regular, diretae/ou indiretamente, alguns aspectos, e não todos,das relações travadas nas áreas indígenas.Vai daí que quando a Constituição brasileirapositiva em seu texto normas referentes ao <strong>direito</strong>indígena já está formalizando um processode ocidentalização desse mesmo <strong>direito</strong>, aindaque seja para reconhecer, e proteger, a culturados povos indígenas, seja por meio do reconhecimentoda plurietnicidade como componente do<strong>multiculturalismo</strong> que forma a sociedade brasileira,seja por meio da garantia de um certo graude pluralismo jurídico, aferido pela auto-determinaçãoconferida, aos povos indígenas, pelotexto constitucional.a) abordagem antropológicaA abordagem antropológica, em geral, é pensadano <strong>direito</strong> como ligada à produção da provano processo, o qual, também em geral tratade demanda referente ao reconhecimento da terracomo sendo indígena. De fato, essa prova é essencialà solução do caso jurídico, especialmentese se tratar de demanda envolvendo o <strong>direito</strong> àterra, e ela mesma tem se denominado de provaetno-histórico-antropológica. A reconstituiçãodos laços parentais e de todos os aspectos possíveisrelacionados à auto-reprodução de determinadaetnia obtida, via de regra, mediante depoimentosorais, é a prova talvez a mais forte emprocesso dessa natureza 76 . Em processo de naturezacriminal a abordagem antropológica tambémserve a esclarecer pontos essenciais à decisãoa ser proferida, v.g., a determinação dainimputabilidade do acusado índio 77 .Todavia, essa abordagem, indicada comoantropológica, não esgota as possibilidades demanifestação da própria abordagem como umtodo. Ela pode ainda se manifestar, para a compreensãoda matéria que o jurista está tratando,como descritiva da diferença existente entre <strong>direito</strong>tradicional e <strong>direito</strong> moderno e da factibilidadede coexistência desses dois ordenamentos.Para ROULAND 78 a distinção entre sociedadetradicional e moderna reside em que amoderna se organiza com base na identificaçãodo <strong>direito</strong> com o Estado, enquanto que, na tradicionala forma de organização do poder políticoé diferenciada, manifestando-se correlativamenteà moderna. Nesse pano de fundo, o <strong>direito</strong>tradicional também será diferente do moderno/oficial,entretanto, há campo fértil para a coexistênciados dois sistemas.b) abordagem sociológicaA abordagem sociológica oferece valiosascontribuições para uma compreensão mais adequadado <strong>direito</strong> indígena. Um conceito centralnesse contexto é o de reflexividade. A sociedademoderna é reflexiva, de modo que cabe falarda sociedade da sociedade. Sua por assim dizercaracterística principal é auto-reproduzir-semediante processos de reflexividade. Para o casodo <strong>direito</strong> indígena esse conceito consegue descrevera possibilidade de coexistência dos sistemasjurídicos tradicional e moderno ao traduziressa mesma coexistência na idéia do <strong>direito</strong> do<strong>direito</strong>.O pluralismo jurídico, então, é resultado dareflexividade da sociedade moderna, a qual,embora sendo moderna, possui espaço destinadoà manifestação de sociedades ainda tradicionais.Esses processos, circulares por si mesmos,conferem condições de possibilidade de mani-76Ver, nesse sentido, Maria Luiza GRABNER, Terra Indígena: Demarcação, in Dicionário de Direitos Humanos, hipertexto, site www.esmpu.gov.br.77Sobre a defesa da inimputabilidade por diversidade sócio-cultural expressa na idéia de um erro de compreensão culturalmente condicionado, verCarlos Vladimir ZAMBRANO, Constitucionalidad, Ininputabilidad e Inculpabilidad, in Interculturalidad, Humanizar, Bogotá, 2004; nos EstadosUnidos a suposta inimputabilidade criminal do acusado, em casos específicos, é traduzida na expressão “culture defense”, ou defesa baseada nacultura, conforme William I. TORRY, Multicultural Jurisprudence and the Culture Defense, Legal Pluralism and Unofficial Law, n. 44, 1999, pp. 127-161.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008129
SILVA, P. T. G.festação de outros processos reflexivos, porexemplo, dentro do <strong>direito</strong> do <strong>direito</strong>, o <strong>direito</strong>da minoria da minoria, o <strong>direito</strong> do <strong>direito</strong> a ter<strong>direito</strong>s, etc.A compreensão dessa auto-reprodução reflexivapor parte do jurista é tanto mais relevantequanto se pense na possibilidade de manifestaçãode conflitos de interesses nos quais seja adequadoapelar, para a construção do caso e para asua decisão, à idéia mesma do que venha a ser opluralismo jurídico, sua positivação no ordenamentoconstitucional e os limites de sua aplicação.Nesses casos, que não são raros, o juristapode recolher material pertinente para uma construçãodoutrinária e jurisprudencial multicultural.A fonte parece ser inesgotável.c) abordagem dogmático-jurídicaA terceira, mas nem por isso menos importante,abordagem é a dogmático-jurídica propriamentedita. Aqui o caso jurídico já está comoque construído e preparado para decisão, tudodentro dos procedimentos formais atinentes aodesenvolvimento do processo.O fato de se judicializar os conflitos, em geral,não impede o aparecimento da exceção, representadaseja pela resolução dos conflitos naspróprias áreas indígenas, sem que deles a sociedadeenvolvente tenha conhecimento, seja pelaresolução dos conflitos na fase pré-judicial,quando então pode arranjar-se a composiçãodesses mesmos conflitos com a intervenção doMinistério Público Federal.Tanto em uma quanto em outra possibilidadede composição dos conflitos serve-se o juristado banquete de conceitos proporcionado pelaantropologia e pela sociologia, ambas jurídicas.É de suma relevância notar que sem o permissivode consulta a essas áreas do conhecimento ojurista não pode compor o conflito apresentado,adjudicando-o ou não, de forma mais adequada.Há como que uma interdependência entre essasáreas do conhecimento. Quando essainterdisciplinaridade não é observada, a composiçãoalcançada pode padecer de vício insanável,o que vai produzir a incompreensão do observador,que é, no caso, todo aquele que lida com otema. Daí a obrigatoriedade de a abordagem dotema ocorrer na forma aqui desenvolvida.V.Questões da dogmática jurídicarelativas ao temaFeitas essas primeiras observações, pode-se,neste momento, passar a aplicá-las ao caso jurídicoconcreto, não sem antes destacar que o <strong>direito</strong>indígena desafia a aplicação de um métodoconstrutivista na sua interpretação. O sistemajurídico, ao observar um caso jurídico, o fazem segunda ordem, pois que esse caso já foiobservado ao menos pelas partes envolvidas nademanda. Quando opera observando, o sistemajurídico indica distinção, a qual, para o caso do<strong>direito</strong> indígena, e ao menos como um exemplode sua manifestação pode ser representada peladupla <strong>direito</strong> oficial/<strong>direito</strong> tradicional.É nessa distinção que se localiza a fozalimentadora das idéias e conceitos que podemservir ao jurista como facilitadores na compreensãoe na composição dos conflitos de interessesinerentes ao <strong>direito</strong> indígena. E ela remete,compulsoriamente, à idéia de pluralismo jurídicoe, portanto, ao conceito de reflexividade.Quando, então, se estiver diante de um casoenvolvendo <strong>direito</strong> indígena, estar-se- á diante,também, de um caso que envolve a obrigatóriaanálise de mais de um ordenamento jurídico: oordenamento ocidental e o tradicional. Comobem se pode observar há dois ordenamentos jurídicos,e que se auto-identificam pela distinçãoque fazem um do outro enquanto sistema: são,portanto, reflexivos. Essa forma de observação,denominada de segundo grau, é concretizadasem que o observador tenha consciência disso,pois em geral o processo de análise de um casojurídico ocorre espontaneamente. Contudo, édessa maneira que se efetiva o processo de interpretaçãojurídica.No ordenamento constitucional brasileiro aadmissibilidade de existência de mais de umordenamento jurídico é expressa em normas es-78Norbert ROULAND, L´Anthropologie Juridique, PUF, Paris, 1990, p. 48.130 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOpecíficas, tais quais fazem exemplo os artigos215, 216 e 231. Os usos, costumes e tradiçõesindígenas são reconhecidos e protegidos peloEstado, o que, se por um lado confere uma caracterizaçãomultiétnica à sociedade brasileira,por outro reconhece e permite a possibilidadede resolução dos conflitos de interesses indígenaspelas próprias comunidades.A Constituição brasileira vai além, pois reconheceaté mesmo a capacidade postulatóriaàs comunidades indígenas, de modo a fazer comque caia por terra eventual idéia de tutela do indígena.Na interpretação desses dispositivos podeseextrair a ratio de que as comunidades indígenassão autônomas ou quase soberanas, mas nãosoberanas, pois não possuem o <strong>direito</strong> à secessão;esse, aliás e conforme já escrito neste artigoé o atual entendimento da Suprema Cortenorte-americana a respeito das comunidades indígenaslá existentes. Todavia, um alto grau deautonomia é a elas conferido, pois que a suacultura, usos, costumes e tradições são reconhecidose protegidos.O <strong>direito</strong> tradicional se insere na forma deauto-reprodução das comunidades indígenas, eainda que não trabalhem elas com as codificações,pois não têm na escrita a maneira por excelênciade preservar sua história e sua memória,mas sim na oralidade, seus costumes comprovama prática de composição de conflitos deinteresses.A existência desse <strong>direito</strong> tradicional nãoimpede o recurso ao <strong>direito</strong> oficial, e é exatamenteaí que se manifesta talvez o mais relevantedilema referente ao <strong>direito</strong> indígena e representadopela indagação pelos limites de intervençãodo <strong>direito</strong> oficial no <strong>direito</strong> tradicional.Note-se que a recíproca não é verdadeira,de modo que, enquanto o <strong>direito</strong> oficial podeprevalecer sobre o tradicional, este não prevalecesobre aquele, quando muito se aplica de formaisolada, mas não em confronto com o <strong>direito</strong>estatal.Teoricamente a produção doutrinária brasileiraa respeito desse dilema real é bastanteincipiente. Na literatura estrangeira, ao contrário,a produção é forte e solidificada. Há um profícuodebate de idéias a respeito dos <strong>direito</strong>s degrupos e de minorias.Em um artigo intitulado Internal Minoritiesand their Rights Leslie GREEN 79 descreve aexistência de <strong>direito</strong>s das minorias inseridas nosgrupos minoritários da sociedade e as possibilidadesde esses <strong>direito</strong>s terem vigência. Quer elaexplorar, portanto, a posição moral de tais minoriasinternas. Argumenta que os <strong>direito</strong>s sãoos fundamentos das obrigações, e não apenascorrelatos destas. Há dois argumentos pelosquais se nega o reconhecimento de <strong>direito</strong>s àsminorias dos grupos minoritários 80 : a) saída/banimento; b) poder relacional. Pelo primeiro,aquele que não acatasse as decisões dos gruposminoritários e que compusesse esses mesmosgrupos poderia deixar os grupos; pelo segundo,exigir dos grupos minoritários, já enfraquecidosna relação maioria/minoria, enfraqueceria aindamais o mesmo grupo, vez que as minoriassão relativamente menos poderosas para protegera si próprias. GREEN refuta esses dois argumentos,pois os considera inadequados paraa solução dos conflitos gerados no interior dosgrupos minoritários, sempre tendo em mira quea sociedade liberal protege os <strong>direito</strong>s individuaisdas minorias – v.g., a mulher aborígine, duplamentediscriminada, pela maioria e pelo própriogrupo minoritário 81 –, o que permite con-79In Will KYMLICKA (ed.), The Rights of Minority Cultures, op. cit., pp. 257-272.80No caso Santa Clara Pueblo et al. v. Martinez et al., 436 U. S. 49 (1978), a Suprema Corte norteamericana entendeu que, de acordo com o Estatutodos Povos Indígenas, lá denominado de Indian Civil Rights Act (ICRA), o único remédio jurídico do qual um indivíduo poderia lançar mão contrauma decisão proferida no âmbito da área indígena era o habeas corpus, o que pressupunha estar o requerente preso ou custodiado; outros numerososcasos não mais são aceitos pelo Judiciário norte-americano após essa decisão, tais como: confisco ilegal de propriedade, denegação ilegal dereconhecimento do pertencimento para fins de candidatura eleitoral, remoção ilegal das funções de administração e demissão ilegal de emprego naadministração da área indígena, tudo conforme Stephen L. PREVAR, The Rights of Indian and Tribes, op. cit., pp. 283-284.81Evento esse que gera a reflexividade da própria discriminação, de sua vez já bem observado por Mércio Pereira GOMES: “Considerando, por suavez, que o Brasil continua submetido a um domínio multifacetado neocolonialista, e que o sistema social brasileiro é extremamente desigual eopressor das camadas sociais populares, à margem das quais se situam os povos indígenas, podemos aquilatar a dupla opressão que sofre o índiocomo indivíduo, em seus <strong>direito</strong>s políticos, sociais e culturais. Assim, perante a humanidade, o índio desponta, na atualidade, como vítima da vítima“,grifou-se, O Caminho Brasileiro para a Cidadania Indígena, in Jaime PINSKY e Carla Bassanesi PINSKY, História da Cidadania, op. cit., p. 419.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008131
SILVA, P. T. G.cluir que haverá a possibilidade de que se operemmudanças na cultura, e não mudanças deuma cultura, baseadas em ações de pessoas supostamentelivres para escolher sua própria concepçãode bem.O debate pode, então, ser resumido aos doislados da forma representada pelo <strong>direito</strong> de grupo:a) a distinção indivíduo/grupo na sociedadeliberal – e não parece haver outra –; b) a distinção<strong>direito</strong> de grupo/<strong>direito</strong> individual no grupo.Graficamente:Distinção:indivíduo/grupoDIREITO DE GRUPO8PODGRGDIRUPD2XWURODGRGDIRUPDVRFLHGDGHOLEHUDOUHODomRGHFRRUGHQDomRDistinção: <strong>direito</strong>de grupo/<strong>direito</strong> individualno grupoEm geral o <strong>direito</strong> de grupo é identificadocom <strong>direito</strong> individual ou social. Na doutrinabrasileira o exemplo cabal dessa identificação éo livro de João Mendes Junior, cujo título falapor si: Os Indigenas do Brazil, seus <strong>direito</strong>sindividuaes e politicos (sic) 82 , onde se descreve,em conferência, uma comparação entre os índiosbrasileiros e norte-americanos e a concessãode certos <strong>direito</strong>s individuais aos índios brasileiros.Essa concepção afigura-se, atualmente,ultrapassada, pois não dá conta de descrever oconteúdo dos denominados <strong>direito</strong>s de grupo. Asó-existência – e reconhecimento –, do <strong>direito</strong>de grupo permite dispensar tratamento adequadoao próprio grupo e assim compreender seus<strong>direito</strong>s, os quais, para o caso indígena podemser indicados no tripé: território, governo e jurisdiçãocomo cimentos da auto-determinação 83 .O contrário significa negar o grupo como existentee impedir a adequada compreensão dotema.O outro lado da forma do <strong>direito</strong> de grupo érepresentado pela necessidade de se reconhecero grupo do grupo ou a minoria da minoria comotitular de <strong>direito</strong>s. Aqui não se está mais dianteda distinção grupo/sociedade envolvente, massim da distinção entre o <strong>direito</strong> de grupo e o <strong>direito</strong>individual da minoria que existe no interiordo grupo.Essa distinção é bastante valiosa para a descriçãodos casos jurídicos em que se demande,do <strong>direito</strong> oficial, o reconhecimento de um <strong>direito</strong>que supostamente estaria sendo violadopela maioria do grupo: por exemplo, pena debanimento, impossibilidade de ser processadopelo mesmo crime mais de uma vez, reconhecimentode pertencimento à determinada etnia, etc.Neste específico caso os autores não se aventurama formular uma teoria geral ou mesmoprincipiológica – pense-se, por exemplo, na insuficiênciade significado do princípio das nacionalidades–, legando a solução dos conflitos àponderação de interesses em jogo, o que vai dar,inexoravelmente, na formulação – ou tentativa– de uma jurisprudência multicultural.No plano jurisprudencial o tema se constróisob variadas formas. Essa determinante confirmao pensamento de que as possibilidades desurgimento de eventos ligados ao tema são, defato, infinitas. Demonstra, no limite, a complexidadedas sociedades tradicionais, as quais sefazem ainda mais complexas quando subsistemàs sociedades modernas, estas sim hiper-complexas.No Habeas Corpus n. 80.240-1, julgado peloSupremo Tribunal Federal em 20/06/2001, aquestão posta se traduziu na impossibilidade deuma Comissão Parlamentar de Inquérito intimarum índio para depor, como testemunha, fora doslimites territoriais de sua área indígena. A petiçãoinicial, por certo uma das mais belas peçasjá produzidas no Brasil com referência ao tema,da lavra do Ministério Público Federal, invocoucomo fundamentos constitucionais do <strong>direito</strong> dopaciente as normas dos artigos 215, 216 e 231,da Constituição Federal.O artigo 215 da Constituição brasileira dispensatratamento protetivo às manifestações82Typografia Hennies Irmãos, SP, 1912, edição fac-similar.83Conforme Willem ASSIES, Gemma Van der HAAR e André J. HOEKEMA, Los Pueblos Indígenas y la reforma del Estado em América Latina,Papeles de Población, Universidad Autónoma del Estado de México, enero-marzo, n. 031, 2002.132 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 113-138, outubro/2008
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOculturais indígenas e o artigo 216 reconhece osbens de natureza material e imaterial das etniasformadoras da sociedade brasileira comoconstitutivos do patrimônio cultural brasileiro.Essa é uma clara opção do legislador constituinteoriginário pelo reconhecimento e proteçãodas formas de auto-reprodução, portanto, autoreferentes,das diversas etnias que compõem omosaico indicador da população brasileira. Aíse inclui, por certo, a auto-reprodução indígena.De sua parte o artigo 231, § 5º, também da ConstituiçãoFederal veda a remoção dos povos indígenasde suas terras. Com base nessa argumentaçãoo Supremo Tribunal Federal deferiu a ordemem favor do paciente, desobrigando-o deatender à intimação expedida.Algumas observações podem ser extraídasdesse julgamento. A primeira é a de que, por maisque o STF tenha reconhecido um <strong>direito</strong> individual,este se refere ao grupo, pois o que possibilitoua concessão da ordem de habeas corpusfoi o paciente ser pertencente à determinada etniaindígena. A segunda é relacionada à aplicaçãodo <strong>direito</strong> oficial, pois o habeas corpus é umagarantia atinente a esse <strong>direito</strong>. A terceira é referenteà jurisdição que proferiu a última palavra,também ela oficial. Como bem se pode perceberhá como que uma interdependência dos <strong>direito</strong>stradicional e oficial. Essa interdependênciaimpede a formulação de uma teoria geral a respeitoda solução de conflitos de interesses surgidosnas sociedades indígenas e, por conseqüência,produz a necessidade de construção deuma casuística referente e aplicável a cada casojurídico que se apresentar.O quadro formado, então, será o de que há apossibilidade de se tratar teoricamente e de formageral os conflitos de interesses indígenas aonível do reconhecimento de várias ordens jurídicas,o que já significa, de per si, reconhecer aexistência do pluralismo jurídico e antropológico,contudo, para a solução específica de cadacaso jurídico impõe-se a análise das condiçõesque o envolvem como conditio sine qua paraque haja uma composição adequada. A impossibilidadede formulação de uma teoria geral paraa decisão desse tipo de conflito decorre da própriaexistência do pluralismo jurídico, o que, desua vez, em nada contraria a idéia de que o <strong>direito</strong>positivo é o <strong>direito</strong> da sociedade moderna.Pode, no limite, contribuir para a afirmação deque não é mais possível serem construídas asGrandes Narrativas.A casuística a ser construída dependerá diretamenteda descrição do conflito existente elevado ao conhecimento do <strong>direito</strong> oficial. OMinistério Público Federal, legitimado constitucionalmentepara tratar do tema, conformepreceitua a norma do artigo 129, inciso V, daConstituição, faz um trabalho pioneiro e valiosocom respeito à construção de métodos de composiçãode conflitos indígenas por meio de umcorpo de antropólogos encarregados de avaliarcada situação e produzir laudo competente sobreo conflito.Funciona como que um mecanismo que permitea juridicização das etnicidades 84 , pois atuano sistema jurídico tanto como fiscal da lei, enão como tutor das populações indígenas, quantocomo tradutor jurídico das reivindicações dosmovimentos sociais indígenas, estes sim responsáveispela politização das etnicidades.Na execução dessa tarefa pode ser citadocomo exemplo o caso dos Kaingang, na cidadede Pato Branco, no Estado do Paraná, cuja liderançaaplicou a pena de banimento/transferênciaa um ex-cacique e membros de sua parentelamais próxima daquela sociedade indígena. Ocaso consistiu, em síntese, na desastrada gestãodo ex-cacique frente à comunidade respectiva,tendo praticado atos contrários àquela sociedade,tais como venda de bens <strong>coletivo</strong>s representadospor gado e compra de carros velhos. AAssembléia da área indígena decidiu por trans-84Aqui seria valioso pensar-se que, numa tradução processual-constitucional do significado da distinção <strong>direito</strong> de grupo/<strong>direito</strong> no grupo, a norma doartigo 129, inciso V, da Constituição Federal legitima o Ministério Público Federal à defesa do <strong>direito</strong> de grupo, enquanto que a norma do artigo 127,“caput”, da mesma Constituição, o faz para a defesa do <strong>direito</strong> individual manifestado no grupo. Ao menos para esta última afirmação parece seencaminhar a jurisprudência nacional, conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n. 395.904, Relator Ministro HélioQuaglia Barbosa, no qual ficou assentada a legitimidade do Ministério Público Federal para pleitear <strong>direito</strong> à pensão por morte para beneficiário queviveu em união homoafetiva estável com o de cujus.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008133
DIREITO INDÍGENA, DIREITO COLETIVO E MULTICULTURALISMOou forçado a participar de uma cerimônia porqualquer grupo que esteja no exercício de um<strong>direito</strong> <strong>coletivo</strong> 88 .Nos Estados Unidos 89 a Suprema Corte teveoportunidade de julgar diversos casos jurídicosenvolvendo <strong>direito</strong> indígena. No caso UnitedStates v. Mazurie, entendeu a Corte que o Congressopoderia validamente delegar a autoridadede regulação da distribuição de bebidas alcoólicaspor estabelecimentos ao Conselho Tribalda reserva indígena, pois que as tribos indígenassão as únicas agregações que possuem atributosde soberania sobre seus membros e seusterritórios, e por isso podem ser consideradascomo algo mais do que simples organizaçõesvoluntárias e privadas 90 . De todo modo, o reconhecimentojudicial indica um tratamento queconsidera as comunidades indígenas como soberaniasmenores ou diminuídas.No caso Bowen, Secretary of Health andHuman Services, et al. v. Roy et al., a SupremaCorte decidiu que a lei que exige o preenchimentode requerimento endereçado a uma agênciaestatal e nele se escreva o número da inscriçãona previdência social não fere a PrimeiraEmenda, vez que nada tem a ver com a liberdadede religião. É que, segundo os autores da ação,a exigência de inscrição na previdência socialpara sua filha de dois anos de idade – de nomeLittle Bird of the Snow –, como requisito paraque eles pudessem receber os benefícios dosprogramas Ajuda às Famílias com Crianças Dependentese Cupons de Alimentos, viola suascrenças religiosas nativas 91 .Em New Mexico v. Mescalero Apache Tribea decisão judicial suprema foi no sentido de entenderque a comunidade indígena detém poderde regular a caça e a pesca em seu território sejacom referência aos membros, seja com relaçãoaos não-membros da mesma comunidade, fazendovaler, para o caso, a regulação proferida pelasociedade tradicional, a despeito de existir legislaçãodo Estado do Novo México contrária àprimeira 92 .Essas decisões que vêm de ser descritas, apar de demonstrar o quão institucionalizado seencontra o <strong>direito</strong> indígena no sistema jurídicoda sociedade mundial, permite inferir a refutação,pelo sistema jurídico, de um relativismocultural que desemboque num essencialismo étnicoou mesmo numa reificação da identidadecomunal, o que, no dizer de HELLER 93 , significaque “o senso de justiça protesta contra o extremorelativismo cultural”.VI. ConclusõesAlgumas conclusões podem ser destacadasneste final da empreitada.a) não se deve desprezar a contribuição que amundialização pode trazer para se descrevero tema aqui abordado.b) a eventual defesa da existência de <strong>direito</strong>s<strong>coletivo</strong>s não pode ser atrelada a esta ouàquela corrente ideológica de pensamento,se de direita ou de esquerda, pois que existeuma confusão teórica a respeito do tema;c) não é possível formular uma teoria geral quedê conta de descrever e propor soluçõesnormativas a todos os conflitos que possamse manifestar como exemplos de casos envolvendoa dupla universalismo/normativismoe <strong>direito</strong> de grupo/<strong>direito</strong> individualno grupo, tendo em vista a complexidade e acontingência da sociedade moderna, v.g., a“teoria da ponderação de interesses”, quedescreve a regra de decisão para cada casoconcreto;88Em sentido contrário, privilegiando o <strong>direito</strong> de grupo em detrimento do individual, mas tratando de casos jurídicos que envolvem comunidadesreligiosas, ver Hofer v. Hofer, 1992, Suprema Corte do Canadá, e Wisconsin v. Yoder, 1972, Suprema Corte dos Estados Unidos da América.89País que, sob a falsa idéia de soberania conferida aos povos indígenas, se utilizou dessa mesma idéia para fazer valer atos de remoção supostamenteratificados por tratado assinado entre os Estados Unidos e os Cherokee, intitulado Treaty of New Echota, 1835, no qual houve a manifestação depoucos índios e sem qualquer capacidade oficial no governo da Nação Cherokee, conforme Laurence H. Tribe, American Constitutional Law, TheFoundation Press, New York, 1988, pp. 1467-1468.90419 U. S. 544 (1975). Uma boa descrição do caso pode ser encontrada em Laurence H. TRIBE, idem, p. 369.91476 U. S. 693 (1985).92462 U. S. 325 (1982).93Agnes HELLER, Além da Justiça, Civilização Brasileira, RJ, 1998, p. 70.Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 2, p. 1131-138, outubro/2008135
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