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UNDERGROUND ROCK REPORT - 1

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Cena independente - O buraco é muito mais embaixo<br />

Por Wagner Cyco<br />

Muito se comenta sobre a cena<br />

musical independente no Brasil,<br />

em São Paulo mais especificamente,<br />

e sua fragilidade e até mesmo<br />

suposta existência. Procura-se um<br />

culpado a quem atribuir o fracasso<br />

de público na maioria esmagadora<br />

dos eventos, os prejuízos acumulados<br />

pelos espaços culturais dispostos<br />

a receber os mesmos sem se prostituir,<br />

dedicando seu espaço às bandas<br />

covers ou extorquir seu público com<br />

preços abusivos, e o pequeno alcance<br />

dos esforços de divulgação dos trabalhos<br />

das bandas.<br />

Um ponto de partida interessante<br />

seria perguntar por que eventos com<br />

bandas internacionais e preços exorbitantes<br />

atraem um público grande,<br />

independente do dia da semana, horário<br />

ou local, enquanto as bandas nacionais,<br />

a preços baixos, quando não<br />

eventos gratuitos, tocam para meia<br />

dúzia de pobres diabos? Existe uma<br />

resposta um tanto óbvia: estrutura.<br />

Ou falta dela.<br />

Quando você vai a um show internacional<br />

geralmente se depara com<br />

músicos que se dedicaram ao seu instrumento<br />

por vários anos (lembrando<br />

que muito provavelmente tiveram aulas<br />

de música nas escolas durante sua<br />

juventude e que lhes proporcionou o<br />

contato e identificação com essa forma<br />

de arte ainda bastante jovem), tocando<br />

em equipamentos de excelente qualidade<br />

(aos quais tem acesso a preço<br />

justo ou ao menos acessível em seus<br />

países de origem) e que você provavelmente<br />

já teve a chance de conferir<br />

material gravado e se familiarizar, conhecendo<br />

as canções e cantando junto<br />

as letras. E é essa a sensação que te<br />

faz pagar pra assistir a essa apresentação.<br />

Aí está o primeiro ponto a ser<br />

considerado. Ou seja, o diferencial é<br />

qualidade de equipamento (lembra-se<br />

daquela frase “parece energia, mas é<br />

só distorção”? Cabe perfeitamente<br />

nesse caso) e envolvimento pessoal<br />

com a música, certo?<br />

O músico brasileiro em geral<br />

“descobre” a música mais tarde, no<br />

fim da adolescência, e quando decide<br />

se dedicar a um instrumento precisa<br />

conciliar seu aprendizado com seus<br />

estudos, trabalho e família. Se vencer<br />

essa primeira barreira e se torna<br />

competente esbarra no próximo empecilho,<br />

que é a dificuldade de contar<br />

com um equipamento decente. Se te<br />

revoltou saber a diferença de preço<br />

de um mesmo videogame nos EUA e<br />

aqui, procure saber o abismo entre os<br />

preços de instrumentos musicais de<br />

ponta nesses dois países. Avancemos<br />

para a próxima questão, a falta de empatia<br />

com o público.<br />

Se a cena nacional não rende<br />

lucro, as bandas encontram imensa<br />

dificuldade em gravar e disseminar<br />

seu material. Seus integrantes precisam<br />

ter empregos para poder honrar<br />

seus compromissos do dia-a-dia e<br />

ainda bancar gravações, ensaios, instrumentos,<br />

equipamentos, merchandising,<br />

seus deslocamentos até os<br />

locais dos shows, além das despesas<br />

com alimentação e hospedagem. São<br />

raras as bandas que conseguem superar<br />

todas essas dificuldades e chegar<br />

ao conhecimento do público, se fazer<br />

relevante. O que geralmente acontece<br />

é o seguinte: o público não conhece,<br />

se não conhece não paga pra ver, se<br />

não paga, não existe lucro. Sem lucro<br />

não existe material. Sem material<br />

o público não tem como conhecer o<br />

trabalho. E assim segue...<br />

Porém o buraco é mais embaixo.<br />

Somos vítimas de uma sociedade egoísta,<br />

voltada apenas ao próprio bem-<br />

-estar. Talvez nem isso. Talvez voltada<br />

apenas à própria vaidade. Fomos convencidos<br />

pela mídia de que ser brasileiro<br />

é ser esperto, levar vantagem, dar<br />

um jeitinho. Que fazer a coisa certa é<br />

ser bobo. Fomos convencidos por nossos<br />

governantes que nossa corrupção<br />

ficará impune. Destituídos de qualquer<br />

sentimento de patriotismo ou valorização<br />

do produto nacional, uma vez que<br />

passamos a vida cercados por inimigos<br />

loucos pra se aproveitar do nosso<br />

menor vacilo.<br />

Desconfiamos que o vizinho possa<br />

fazer a mesma coisa que faríamos<br />

no lugar dele. Apodrecemos e nos<br />

acovardamos sob o medo de nosso<br />

próprio comportamento. A cadeia de<br />

lucro que deveria nos trazer evolução<br />

acaba no primeiro que coloca a mão<br />

em qualquer migalha que seja. Não<br />

acredita, não investe. E no dia em que<br />

uma banda se recusa a tocar por achar<br />

a situação injusta, se livra dela, sob<br />

acusações e abre espaço pra outra,<br />

em um estágio menor de evolução,<br />

que na busca por seu espaço aceita<br />

qualquer humilhação para mostrar<br />

sua arte. O nível vai caindo, o público<br />

vai se diluindo, as bandas vão<br />

ficando de lado, seus integrantes vão<br />

desanimando... Já deixaram de lado<br />

suas famílias, seu descanso tantas<br />

e tantas vezes. Equilibra nas pontas<br />

dos dedos trabalho, estudo, ensaios,<br />

viagens e de repente se vêem assim,<br />

desrespeitados. Suas mensagens e<br />

desejos de mudança gritados a plenos<br />

pulmões não encontram ecos em ouvidos<br />

anestesiados pela ganância.<br />

Não que as bandas sejam sempre<br />

vítimas nessa equação. Também<br />

carregam, claro, sua parcela de culpa.<br />

Quase sempre pela postura de<br />

pouco respeito para com público,<br />

com os outros músicos ou para com<br />

a organização dos eventos. Ainda<br />

resquício de nosso abandono aos<br />

valores morais, os constantes atrasos<br />

nas apresentações. Anuncia-se<br />

um evento em determinado horário<br />

que frequentemente começa com<br />

duas ou mais horas de atraso. Daí<br />

então sobem ao palco músicos embriagados,<br />

com seus instrumentos<br />

devidamente desafinados, cabos<br />

defeituosos causando toda a sorte<br />

de ruídos imagináveis, e dão início<br />

ao festival de microfonias e erros<br />

grotescos. Músicos esses que provavelmente<br />

já pediram emprestados<br />

palhetas, baquetas, correias ou<br />

qualquer outra coisa que seja possível<br />

esquecer antes de poder se apresentar<br />

e que, terminado seu show,<br />

pegam suas coisas, viram as costas<br />

e vão embora, sem prestigiar os<br />

companheiros a se apresentar na sequência.<br />

Poucas coisas fizeram tanto<br />

mal ao músico brasileiro quanto<br />

a propaganda mentirosa do sexo,<br />

drogas e rock’n’roll. Como diria o<br />

Boka (RDP) no documentário Guidable,<br />

“tão pensando que é Rolling<br />

Stones?”. E o que dizer então dos<br />

autointitulados formadores de opinião,<br />

que vislumbram um talento<br />

divino para criar suas letras, sendo<br />

que não são capazes de perder(?)<br />

alguns poucos minutos lendo, coisa<br />

imprescindível a qualquer um que<br />

se atreva a escrever?<br />

Nos leva então a mais um ponto<br />

chave dessa análise: o público. É<br />

bastante comum ouvir dos frequentadores<br />

dos eventos independentes<br />

sua pseudosuperioridade, sua diferenciação.<br />

Discursos inflamados,<br />

apontando o dedo em riste para a<br />

massa não pensante e influenciável,<br />

apreciadora dos estilos musicais da<br />

moda e da cultura mainstream. Engraçado<br />

pensar que esses que estão<br />

sendo julgados como inferiores parecem<br />

ter mais consciência de seu<br />

papel na cena musical da qual fazem<br />

parte do que seus juízes, uma<br />

vez que comparecem aos eventos,<br />

compram material de seus artistas<br />

favoritos, pagam para assistir aos<br />

shows e consomem dentro do ambiente,<br />

gerando receita que fortalece<br />

todas as partes dessa estrutura. Já<br />

nossos pequenos donos da verdade<br />

se contentam em ir até a porta dos<br />

shows e implorar para entrar sem<br />

pagar, pois não tem dinheiro suficiente.<br />

O que se perceberá em breve<br />

não ser verdade, assim que ele<br />

começar a consumir no bar. Ou na<br />

porta. Fica a pergunta: pra quem se<br />

está mentindo? Para o organizador<br />

que liberou sua entrada por pena ou<br />

pra você mesmo? Não seria mais<br />

honesto pegar seu dinheiro e ir direto<br />

pro bar, já que não tem nenhum<br />

interesse em ser parte da cena musical<br />

independente além de parasitá-<br />

-la? Quando iremos perceber que<br />

estamos todos ligados, que somos<br />

todos parte de algo maior e que as<br />

coisas só serão vantajosas pra um<br />

quando forem vantajosas para todos?<br />

Despertar essa consciência<br />

é a verdadeira função do ensino.<br />

Formar cidadãos cientes de seus direitos,<br />

deveres e importância social,<br />

capazes de ter uma postura crítica,<br />

de raciocínio lógico. E aqui surge<br />

mais um componente nessa sucessão<br />

de incompetências: o governo.<br />

O governo, que deveria focar na<br />

educação básica de qualidade para<br />

todos, mas prefere mascarar a realidade<br />

de desigualdade investindo<br />

em universidades federais, às quais<br />

só tem acesso alguns poucos afortunados,<br />

que puderam pagar por uma<br />

educação de qualidade durante sua<br />

vida escolar. Justamente aqueles<br />

que teriam condições de pagar por<br />

um ensino superior de qualidade.<br />

Enquanto isso, a maioria, que não<br />

tem essa mesma condição financeira,<br />

é quem se vê obrigado a pagar.<br />

Mas não basta apontar os problemas.<br />

Quais seriam então as formas<br />

para se quebrar esse círculo vicioso?<br />

Mudança de postura de todos<br />

que fazem parte da cena e, porquê<br />

não, da sociedade em geral.<br />

A única maneira seria conscientizar<br />

as pessoas de que elas não são<br />

apenas frequentadoras de uma cena,<br />

mas que elas são a cena. Não são as<br />

bandas, nem as casas de show. As<br />

pessoas fazem a cena. Bandas e bares<br />

são apenas necessidades que essa<br />

cena demanda. A partir dessa mentalidade<br />

é possível visualizar dias melhores.<br />

Com as pessoas dispostas a<br />

fazer parte de algo, a contribuir para<br />

evolução delas mesmas enquanto<br />

cena. Passaríamos a assistir o desenvolvimento<br />

da cultura independente<br />

como nunca antes, pois à partir do<br />

momento em que os espaços começassem<br />

a obter lucro nos eventos,<br />

eles teriam a chance de investir<br />

numa melhor estrutura de palco e<br />

equipamentos, além de conforto ao<br />

público. Poderiam passar a remunerar<br />

as bandas que se apresentam,<br />

dando a estas a chance de também<br />

investir em instrumentos mais adequados,<br />

gravações mais profissionais<br />

e divulgação decente. E assim o<br />

público, sempre a pedra fundamental<br />

da cena, começaria a ter nos shows<br />

das bandas independentes nacionais<br />

a mesma sensação que tem nos<br />

shows internacionais, quando não<br />

maior, uma vez que se sentiria ainda<br />

mais integrado a tudo isso.<br />

Soa utópico, mas a mim parece<br />

apenas o caminho mais lógico.<br />

*Wagner Cyco é guitarrista das<br />

bandas Mollotov Attack e Irmã<br />

Talitha, além de integrante do<br />

coletivo Nada Pop, onde o artigo<br />

foi publicado originalmente.<br />

16 - <strong>UNDERGROUND</strong> <strong>ROCK</strong> <strong>REPORT</strong>

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