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O Teatro deAbílio Pereira de AlmeidaPaiol VelhoSanta Marta Fabril... em moeda corrente do paísIntrodução de Ceiça CamposSão Paulo, 2009


ApresentaçãoSegundo o catalão Gaudí, Não se deve erguermonumentos aos artistas porque eles já o fizeramcom suas obras. De fato, muitos artistas sãoimortalizados e reverenciados diariamente pormeio de suas obras eternas.Mas como reconhecer o trabalho de artistasge niais de outrora, que para exercer seu ofíciomuniram-se simplesmente de suas próprias emoções,de seu próprio corpo? Como manter vivo onome daqueles que se dedicaram à mais volátildas artes, escrevendo, dirigindo e interpretandoobras-primas, que têm a efêmera duraçãode um ato?Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguemesquecidos, quando os registros de seu trabalhoou se perderam ou são muitas vezes inacessíveisao grande público.A Coleção Aplauso, de iniciativa da <strong>Imprensa</strong><strong>Oficial</strong>, pretende resgatar um pouco da memóriade figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveramparticipação na história recente do País, tantodentro quanto fora de cena.Ao contar suas histórias pessoais, esses artistasdão-nos a conhecer o meio em que vivia toda


uma classe que representa a consciência críticada sociedade. Suas histórias tratam do contextosocial no qual estavam inseridos e seu inevitávelreflexo na arte. Falam do seu engajamentopolítico em épocas adversas à livre expressão eas consequências disso em suas próprias vidas eno destino da nação.Paralelamente, as histórias de seus familiaresse en tre la çam, quase que invariavelmente, àsaga dos milhares de imigrantes do começodo século pas sado no Brasil, vindos das mais variadasorigens. En fim, o mosaico formado pelosdepoimentos com põe um quadro que reflete aidentidade e a imagem nacional, bem como oprocesso político e cultural pelo qual passou opaís nas últimas décadas.Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própriavoz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpreum dever de gratidão a esses grandes símbolosda cultura nacional. Publicar suas históriase personagens, trazendo-os de volta à cena,também cumpre função social, pois garante apreservação de parte de uma memória artísticagenuinamente brasileira, e constitui mais quejusta homenagem àqueles que merecem seraplaudidos de pé.José SerraGovernador do Estado de São Paulo


São inúmeros os artistas a apontar o importantepapel que tiveram os livros e a leitura em suavida, deixando transparecer a firmeza do pensamentocrítico ou denunciando preconceitosseculares que atrasaram e continuam atrasandonosso país. Muitos mostraram a importância paraa sua formação terem atua do tanto no teatroquanto no cinema e na televisão, adquirindo,linguagens diferenciadas – analisando-as comsuas particularidades.Muitos títulos exploram o universo íntimo epsicológico do artista, revelando as circunstânciasque o conduziram à arte, como se abrigasseem si mesmo desde sempre, a complexidadedos personagens.São livros que, além de atrair o grande público,inte ressarão igualmente aos estudiosos das artescênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutidoo processo de criação que concerne ao teatro,ao cinema e à televisão. Foram abordadas aconstrução dos personagens, a análise, a história,a importância e a atua lidade de alguns deles.Também foram exami nados o relacionamento dosartistas com seus pares e diretores, os processos eas possibilidades de correção de erros no exercíciodo teatro e do cinema, a diferença entre essesveículos e a expressão de suas linguagens.Se algum fator específico conduziu ao sucessoda Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,


Abílio Pereira de AlmeidaO advogado doutor Olegário de Almeida já tinhapercorrido as cidades vizinhas a Tatuí, sua cida denatal, e já era um profissional conhecido quandoresolveu estabelecer em definitivo sua banca deadvogado em São Paulo e mudar-se com suafamília: a mulher, dona Maria da Conceição, eseus seis filhos (quatro homens e duas mulheres),ainda crianças.Foi nesse momento da vida familiar que, numdia 26 de fevereiro, uma terça-feira de carnaval,na antiga Travessa do Quartel, atualmente RuaFelipe de Oliveira, numa casa onde se ergue hojeo Palácio da Justiça, em frente à Praça ClóvisBevilacqua, nasceu o sétimo filho do casal, querecebeu, na pia batismal, o nome de Abílio.13Alfabetização no Colégio Stafford, primário naEscola-Modelo Caetano de Campos (como todosos irmãos), secundário no Colégio São Luiz, noqual teve sua primeira experiência teatral numespetáculo de encerramento de ano letivo. Infânciae juventude transcorrendo normalmente,co mo qualquer outra dentro de uma família declas se média alta no início do século XX, nos moldesdos tradicionais troncos paulistas.


Nas reuniões familiares, era quase sempre ocentro das atrações: suas primas e amigas lhepediam, invariavelmente, que dissesse coisasengraçadas. Esse era o Abílio das reuniões familiares:brincalhão, alegre, cheio de charme.A vocação para o palco e as luzes se fez notarlogo cedo, ainda criança, uma vez que brincavade teatro com sua irmã, Tuca, apenas dois anosmais velha, mas grande companheira: ele escreviaas histórias, ela fazia as roupas dos bonecos e elesse divertiam encenando as pecinhas.14Chegada a hora do curso superior para terminar aeducação, Abílio optou pela advocacia. Influênciado pai? Seria compreensível em qualquer filho,mas não num espírito independente e prontopara contestar, como era Abílio. No primeirovestibular prestado na Faculdade de Direito doLargo de São Francisco, uma surpresa: foi reprovado!Nova tentativa no ano seguinte e aí sim:passou a ser um acadêmico. Antes de terminaro segundo ano de Direito, sentou praça no 2°Batalhão do Quinto Regimento de Infantaria,sediado em Pindamonhangaba. Nessa cidade,acabou fundando um clube acadêmico (uma vezque era praticamente uma cidade universitária,pois lá funcionavam uma escola normal e umaescola de Farmácia e Odontologia, frequentadapor jovens de todo o interior paulista); também


fundou um jornalzinho chamado O Martelo, doqual era o editor-chefe. Para esse jornal escreviao artigo de fundo e a coluna social, a Dizquedizque,tendo sido seus comentários e fofocastalvez os precursores de Ibrahim Sued e outrosjornalistas do mesmo ramo.Ainda merece menção o curso de sargentosaviadores feito na Escola de Aviação Militar quese situava em Marechal Hermes, Campo dosAfonsos, subúrbio do Rio de Janeiro, por ter sidoclassificado em primeiro lugar desde o ingressoaté a formatura.Participou ativamente, como tantos jovens queacreditavam nos ideais de liberdade, ordem ejustiça, da Revolução Constitucionalista de 1932,engajado na Aeronáutica. Voavam nos primeirosmodelos de avião, de dois lugares, de onde sejogavam as bombas com as mãos.15Reiniciou seu curso de Direito quando se desligoudo exército. Formou-se com a turma de1932 e são suas as palavras a respeito: Formeimepela Faculdade de Direito de São Paulo, doLargo de São Francisco, colando grau em 5 deJaneiro de 1933. Pertenci à gloriosa turma de1932, sacrário da Revolução Constitucionalista.Curso interrompido (...) se tudo corresse bem,ter-me-ia diplomado em 1929. Ainda bem que


escapei da turma de 1930, a da revolução do anoporque, em virtude da dita cuja, todo mundo foiaprovado por decreto e os respectivos bacharéisreceberam o cognome, felizmente já esquecido,de bacharéis decretinos.16Abílio advogou muito no interior do Estado eteve boas causas, principalmente em Araçatuba,período que durou mais ou menos dois anos eno qual ganhou muito dinheiro, que acaboudeixando nas mesas de jogo do Jockey Clube.Advogou durante 20 anos, tendo sido um bomprofissional. Deixou a profissão apenas quandoos interesses e o tempo gastos com a Vera Cruzo impediam de continuar.Como advogado foi o responsável pela elaboraçãodo contrato de constituição das empresasTeatro Brasileiro de Comédia e Companhia CinematográficaVera Cruz.No seu entender, era eficiente, ganhou muitascausas, mas nunca foi um jurista, tendo sido apenasum prático.O livro de sua autoria Prática Jurídico-comercialmereceu 14 edições pela Companhia EditoraNacio nal e, diz ele, era realmente bom, continhatudo de que o advogado precisava e, principalmente,ajudava o aluno a colar nas provas.


aguá, que era o ponto de encontro da fina florda intelectualidade de São Paulo. Mas eu nãome colocava no meio dos intelectuais, eu nuncame considerei um intelectual ou um literato,eu era, e me considero até hoje, um bom advogado,mesmo porque isso classifica bem o meutemperamento. Eu queria deixar bem nítida essadistinção: eu era um grande advogado sem serum jurista, porque eu considero que o jurista éo conhecedor profundo do Direito e o advogadoé aquele que conhece as manhas forenses, quesabe defender uma causa, que sabe levar umcliente, que sabe ser eficiente.18Enquanto pôde conciliar essas atividades tão diferentese exigentes como a advocacia e o teatro,seguiu desempenhando-as paralelamente e acontento. No momento, porém, em que a VeraCruz entra em cena requisitando maior dedicaçãode seu tempo, ele teve que optar: perdeu oadvogado, ganhou o homem de teatro/cinema.Abílio deixou seu escritório para se dedicar exclusivamenteao TBC e à Vera Cruz.Sentado às mesas de jogo carteado do Clube Paulistano,sempre observando as pessoas como eraseu hábito, compôs muitos de seus personagens.Em casa de primos, conheceu Lúcia GamaWright, uma jovem pequena e delicada, de


marcante sangue inglês e suaves olhos azuis,que veio a se tornar Lúcia Pereira de Almeidae lhe deu dois filhos: Maria Luiza e Antonio dePádua (ou Maiza e Padu, seguindo o hábito dafamília, que a todos dá apelidos).A casa de Abílio vivia cheia de amigos. Frequentavam-na,além de artistas de teatro ecinema, personalidades do mundo das artesem geral. Havia, ao mesmo tempo, pessoasdiscutindo Direito num canto, outras jogandobaralho mais adiante, alguém tocando pianoou simplesmente comentando as novidadesdo teatro.Depois de muitos anos exercendo os papéis deadvogado, autor, ator e tantos outros, já doente,mal recuperado de uma operação de úlceragástrica e com o emocional abalado por duasperdas trágicas em pouco espaço de tempo,recolheu-se ao sítio de Vinhedo, lá passando,sozinho ou cercado de jovens amigos, a maiorparte de seus dias. Aos poucos foi caindo emdepressão, pois, no dizer de Nydia Licia: Coma operação do estômago e como era metido agalã, de repente viu que tinha ficado velho, feioe magro. Acrescenta Paulo Autran o que ouviude Abílio, em sua última visita feita a ele: A vidaperdeu o sentido.19


20Sua última entrevista foi dada a Alberto Beuttenmuller,jornalista do Jornal do Brasil, queassim escreveu: Um mês antes de sua morte,ocorrida ontem em São Paulo, Abílio Pereira deAlmeida concedeu uma entrevista ao repórterAlberto Beuttenmuller. Queixava-se do silêncioem torno de seu nome e suas obras e lembravaos bons tempos do Teatro Brasileiro de Comédiae da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, dosquais foi figura destacada. Paulo Autran não seconforma com esse desfecho: Aquele homem brilhante,inteligente, vivo... Foi uma pena mesmo.Todo mundo gostava dele. A classe adorava oAbílio; era um ótimo colega, uma pessoa adorável;eu não conheço ninguém que não gostassedo Abílio, só os críticos. Foi um grande sucessode público; tenho pena de não ter companhianaquela época.Entre seus papéis particulares está a cópia de umacarta, escrita em 14 de fevereiro de 1977 paraseu amigo Behar, na Argentina. É quase comoum documento que atesta o estado de espíritoem que se encontrava pouco tempo antes desua morte: depressão, desânimo, desilusão. Etodos sabemos o cuidado que devemos dispensara pessoas que se encontram nesse estado. Porque, então, os que lhe estavam próximos nãose aperceberam disso? Abílio só lhes mostrava


Abílio compôs um avarento como Molière quis, istoé, não um obcecado total, mas sim uma criaturatomada pelo complexo de inferioridade e que, nodinheiro, vê toda a sua projeção pessoal e social.Depois de todas essas apresentações, que foramlevadas a cabo no exercício do mais puro amadorismo,vem uma que é marco do teatro paulista: éinaugurado o Teatro Brasileiro de Comédia comuma peça de Abílio, A Mulher do Próximo, naqual ele, além de autor, é também encenador,diretor-geral e ator, no papel de Alfredo.26Quando começou, com Pif-paf, foi aquele sucesso;ele era uma pessoa que queria inovar: sualinguagem era muito simples. Consciente de simesmo, nunca se meteu a ser um ator característico;era um galã de meia-idade, muito simpático;tinha uma grande naturalidade de palco!No ano seguinte, 1949, Abílio apresentou-secomo ator nos trabalhos: A Noite de 16 de Janeiro,policial de Ayn Rand, levado pelo Conjuntode Arte Teatral, em maio, no papel de LawrenceRegan ; e em Nick Bar, de William Saroyan, dirigidopor Adolfo Celi, em junho, no papel-título.Abílio dá seu próprio depoimento a respeito:No fim de uma temporada de revezamentodos diversos grupos teatrais amadores, o TBCse profissionalizou e a primeira peça, se não me


No entanto, quando da estréia de Santa MartaFabril S.A. isso não aconteceu. O artigo de MattosPacheco para o Diário Popular, edição de3 de março de 1955, sob o título Santa MartaFabril S.A. vai dar o que falar... Muitos aplausose poucos cumprimentos, diz bem da reação queprovo cou o novo texto de Abílio: Muitos aplausosem todos os finais de ato, aplausos mesmo emcena aberta, pareciam indicar que o público deontem, público de estreia, gostou de Santa MartaFabril S.A., peça de Abílio Pereira de Almeida,lançada pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Masno final, quando terminou a representação, foibem diminuto o número de cumprimentos recebidospelo autor, lá embaixo, nos camarins. Opúblico grã-fino, por assim dizer, mal terminou oespetáculo, deixou o teatro, sem descer aos bastidorespara felicitar artistas e o autor, presenteà representação. (...) Nunca vimos tão vazios oscorredores do teatro.29O terceiro ato da peça, que se passa em 1948,foi o que mais chocou o público; ao que Abíliodeclara: Gosto muito do terceiro ato, estou contente, em linhas gerais, com o meu trabalho.Suas verdades, duras talvez, mas que precisam serditas. Não é uma peça contra a Revolução Constitucionalista.Mas conta verdades. É contra, issosim, os adesistas, os que aderiram imediatamente


no nome de seus interesses, ao governo federal.Houve paulistas como os que eu retratei na minhapeça...30São de Paulo Autran as palavras: Eu me lembromuito bem (...) e as peças de Abílio Pereira deAlmeida: Paiol Velho, Rua S. Luiz, A Mulher doPróximo, Pif-paf, várias peças do Abílio Pereirade Almeida que eu considero também o primeiroautor a criticar a sociedade paulista. Santa MartaFabril, por exemplo, tinha uma crítica bastantecontundente, uma crítica feita do ponto de vistade um homem que pertence àquele nível e àquelasociedade que ele critica e que está informadodas ideias de seu meio, do meio burguês, daburguesia rica de São Paulo, mas não deixa deser uma crítica. (...) ... Santa Marta chegou a ficarum ano em cartaz.Também Franco Zampari dá seu depoimentosobre o sucesso de Santa Marta Fabril S.A.: SantaMarta Fabril S.A., de Abílio Pereira de Almeida,foi nosso maior êxito de bilheteria, trazendo aoTBC de São Paulo um público de 45 mil pessoas,quando o comparecimento habitual é de 25mil, por espetáculo. Mas Abílio é uma exceçãoentre os autores nacionais. Nenhuma outra peçabrasileira deu resultado financeiro e as perdasvariam entre 150 mil e 200 mil cruzeiros. Por issoapresentamos poucos textos nacionais.


32Sem dúvida alguma, o ponto forte do autorAbílio Pereira de Almeida é a construção dosdiálogos. Seus personagens falam, com extremanaturalidade, aquilo que se ouve nas ruas ounos ambientes retratados em suas peças. Dessasconversas surge a intenção mais profunda doautor: a de retratar um determinado ambientee o que ocorre com as pessoas que nele vivem.Seja a alta sociedade, como em seus primeirostrabalhos, seja a classe média, como ... em moedacorrente do país, ou nos ambientes relacionadosà política, como em O Bezerro de Ouro ou Círculode Champagne ou mesmo ao submundo comoO Clube da Fossa.Como diz Décio de Almeida Prado em sua obraApresentação do Teatro Brasileiro Moderno: Asua dialogação corre fluentemente, ao sabor dascircunstâncias, despreocupada, natural, conduzindo,entretanto, ao ponto visado. (...) AbílioPereira de Almeida parece-nos um autor commuitas qualidades e em ascensão. Num momentoem que escasseiam comediógrafos nacionais,qualquer progresso seu é também nosso. Aindapersistem nas suas peças muitas imperfeições,muito tatear à procura de caminho. Mas há nasua atitude uma independência, um desejo deaprender à custa dos próprios erros que é muitíssimosimpática.


Abílio sempre teve o cuidado de não interferirna conduta de suas personagens; sempre se manteveneutro, nunca se pôs a falar no lugar delasou expôs suas próprias opiniões através delas.Torna-se, assim, fiel à realidade, tão minuciosamenteobservada. Abílio Pereira de Almeidapode não ser profundo, mas é extremamenteexato, extremamente preciso. Não há, em PaiolVelho, um gesto menos plausível, uma frase quesoe falso.Com o passar do tempo e a chegada da maturidadee depois do distanciamento em relação àcrítica, Abílio, apesar de continuar a escrever noseu estilo de crítica social, retratando o ambientede sociedade que via e em que vivia, começa asofrer os ataques às suas peças por parte da críticaespecializada ou apenas a especializada, comoele mesmo dizia.33Mas não foi apenas uma disputa por escrito,entre autor e críticos, a que o trabalho O Bezerrode Ouro despertou. Ainda na fase de ensaios,no Teatro Leopoldo Froes, Felipe Carone, quefaria o papel principal, o Barão de Mastrorosso,foi cercado por um grupo de homens, à saídado teatro; ele foi espancado e massacrado comduas pessoas da diretoria do Pequeno Teatro deComédia que iria levar a peça. Carone foi hospitalizadoe, quando recebeu alta, declarou que


não mais faria a peça. O grupo já havia recebidovárias ameaças para não encenar esse trabalho.No dia seguinte ao do atentado, a polícia prendeupessoas que rondavam o teatro e, emboradissessem estar ali por acaso, apurou-se que duasdelas possuíam vínculo empregatício com umaindústria famosa em São Paulo, àquela época,e que, diziam, servira de inspiração para Abílioconstruir sua história.34Retirando-se o ator principal e o diretor tendoentregado a peça para o autor, ficaria claro queesse trabalho não seria encenado. Os demaisatores, no entanto, firmaram pé dizendo: Agoraqueremos levar O Bezerro de Ouro de qualquerjeito. Trata-se de um problema de liberdade deexpressão que envolve todos os artistas do Brasile a nós, particularmente, porque vimos um denossos companheiros ferido física e moralmentepor forças estranhas à arte. O papel principalfoi dado, então, a Dionísio de Azevedo que foibastante elogiado pela crítica, não só pelo seulado profissional como também por sua presençahumana em cena.Depois dessa experiência como empresário, é nessemomento de sua carreira que Abílio enveredapelo terreno empresarial; constitui a empresa Florente,Massaini e Cia. Ltda., tendo a terça partedela. Levam ao palco Círculo de Champagne com


pela companhia de Cacilda e Walmor, no TeatroCacil da Becker, que ficava no prédio da FederaçãoPaulista de Futebol, na Avenida BrigadeiroLuís Antônio; essa peça foi encenada novamentepor diversos grupos amadores, tendo obtidomuito sucesso.36Como andava fazendo pesquisas históricas sobrea independência do Brasil, que depois serviramde base para o roteiro do filme Independênciaou Morte, Abílio escreveu Dom Pedro I, Imperadordo Brasil, que veio a ser representada porum grupo amador do Clube Atlético Paulistano,em dependências do próprio clube, em 1972.Foi seu último trabalho. Permanece inédito seuúltimo texto Os Donos da Verdade, que tratado poder jovem.Mais tarde, em 1974, no depoimento que prestoupara o Museu de Teatro do Serviço Nacional deTeatro, diz concordar com os críticos que falarammal de suas peças, o que era uma opinião diferente,em desacordo com a do público que sempreo prestigiou e a qual ele priorizava.Depois de muito tempo afastado dos meiosartís ticos, magoado por ver seu nome esquecidoou até mesmo omitido em declarações oureportagens sobre teatro e cinema, qual nãofoi sua surpresa ao saber que seria homenage-


ado pelo então secretário da Cultura, Ciência eTecnologia Max Feffer, com Alfredo Mesquita eZiembinski, numa informal cerimônia que tevelugar no salão principal do Palácio dos CamposElíseos. Presentes atores (ex-alunos da Escola deArte Dramática), pessoal ligado ao teatro, alémde algumas autoridades.A placa de prata que recebem pretende ser Umtributo, ainda que tardio, aos responsáveis pelabase de nosso teatro atual. (...) Os homenageadoslembraram fatos do teatro nacional da época doTBC, tendo Alfredo Mesquita (também fundadordo Grupo de Teatro Experimental, anterior aoTBC) frisado que Pif-paf, peça de estreia de AbílioPereira de Almeida, foi a grande vitória do teatroexperimental. Foi com ela que se iniciou uma etapahá muito esperada: a de se poder levar para oteatro também peças de novos autores nacionais.(...) Mais que companheiros de trabalho, nós trêsformávamos uma trinca.37Desse modo, ainda que tardia e singela, a homenagemexistiu e Abílio pôde sentir que não haviasido totalmente esquecido, como pensara.O CinemaPosição firmada como ator de teatro, Abílio nãose contenta com isso. O começo da sua ativida-


de como cineasta se deu com o próprio começodas atividades da Vera Cruz, pois participou dacriação da Companhia e teve papel importante,como advogado, na constituição dela como pessoajurídica.38Até o fim da década de 40 a indústria cinematográficabrasileira estava sediada no Riode Janeiro. Com a implantação da Vera Cruz,em uma granja em São Bernardo, o ambiciososonho paulista torna-se realidade, emborapor um pequeno espaço de tempo. Como nãopodia ser chamada de Hollywood dos Trópicos,pois esse nome foi dado à Atlântida, acarioca das chanchadas, e como contava commuitos italianos em seus quadros, só poderiaser chamada de Cinecittà da América do Sul.Começou assim, meio de brincadeira, com ummodesto capital de 7.500 contos, sem ninguémpensar que a coisa ia crescer daquela maneira,virar um negócio de tantos milhões e arruinarcompletamente o Zampari, lembra Abílio, quetoma parte no primeiro filme rodado, Caiçara,no qual faz o papel de José Amaro, um homemque vai buscar uma esposa (Eliane Lage) noorfanato. Filme de alto nível técnico e padrãointernacional, rodado em Ilhabela, estreia noCine Marabá e em outras 15 salas em São Paulo,no dia 1º de novembro de 1950; impressiona


profundamente a crítica especializada e o grandepúblico que comenta: Existe agora cinemano Brasil. O Estado de S. Paulo de 28/10/50 tambémregistra que Caiçara constituiu realmenteo início do grande cinema brasileiro.Sobre a primeira experiência no cinema, dizAbílio: Após muitos testes, eu fui convidadopara fazer um papel muito importante em Caiçara,que foi o primeiro filme da Vera Cruz. Eucontracenava sempre com o Carlos Vergueiro ea Eliane Lage, que era minha mulher no filme.Eu não entendia absolutamente nada de cinema,de decupagem, nem de script, de cenas; eraabsolutamente nulo, estava a zero no cinema,de modo que assisti a aquilo tudo com muitacuriosidade e comecei a trabalhar em locação.Eu já tinha muita experiência de teatro, nãosó de amador, mas de profissional, no qual eurepresentava e dirigia.39O segundo filme da Vera Cruz também conta comAbílio no papel principal; para a composição dapersonagem, foi feita uma modificação no seuvisual: o bigode foi raspado e os cabelos foramencrespados; fica difícil reconhecê-lo. Seu personagem,Tonico, sofre de bronquite e tosse muito;tosse que chega a incomodar e preocupar os demais.Só que não é a personagem que sofre debronquite e sim Abílio; foi um recurso utilizado


para justificar os terríveis acessos de tosse queele sofre em cena. Esse filme é uma adaptaçãode sua peça Paiol Velho, que, no cinema, recebeuo nome de Terra é Sempre Terra, drama realistae profundamente humano.Abílio continua contando sua experiência numsetor novo pelo qual tinha uma grande curiosidade;talvez tenha sido esse o desafio que olevou a acreditar e lutar para que a Vera Cruzocupasse o lugar que lhe era devido no meioartístico de então.40Quando chegou a hora de rodar um filme cômico,depois dos três dramas anteriores, já havia aideia: as peripécias de um motorista de caminhão,pobre, e a vida que ele enfrenta à direção doseu veículo. A idéia era de Tom Payne e para opapel principal ainda não havia sido escolhidoo ator. Ao assistir a um programa de televisãoenquanto almoçava, na cantina da Vera Cruz,Renato Consorte teve sua atenção chamadapara um novo rosto: era um comediante novo,tinha feito muito sucesso no rádio e começavaa aparecer na televisão, em programas ao vivo.Chamado para testes, revelou-se seu grandetalento; nem precisou dizer muita coisa: era otipo que estavam procurando. Assim, Mazzaropicomeçou sua carreira no cinema. O tipo quefoi criado para Sai da Frente foi conservado em


todos os outros filmes de Mazzaropi, mesmodepois do fim da Vera Cruz. Ele o fez em filmesdo Massaini e nas próprias produções. Abílio fezo script exclu sivamente para ele e Sai da Frenteteve uma continuação, Nadando em Dinheiro,em que o motorista de caminhão (Isidoro) recebeuma herança bem grande de um parenteaté então desconhecido e fica rico de repente. Ofilme é a trajetória de Isidoro nas rodas da altasociedade. Mazzaropi fez, ainda, para a VeraCruz, Candinho e O Gato de Madame, amboscom roteiro e argumento de Abílio.Um dos últimos trabalhos de Abílio para o cinemafoi a pesquisa histórica sobre os acontecimentosde 1822, na Corte, no Rio de Janeiro, e queprovocaram a Proclamação da Independência doBrasil. Abílio mergulhou de corpo e alma nessapesquisa e, como resultado, tivemos o argumentode mais um filme, bem cuidado e caprichado,como todos os da Vera Cruz: Independência ouMorte, que estreou como parte das comemoraçõesdo sesquicentenário da Independênciado Brasil.41O grande problema da Vera Cruz, desde seuprimeiro filme, foi o custo de produção. ComoZampari visava ao mercado internacional (enin guém compreendia seu raciocínio, muito menosa imprensa), trouxe técnicos e uma equipe


preocupada com o cinema perfeccionista, comum custo de produção altíssimo, incompatívelcom a nossa realidade. Havia, também, o problemada demora em aprontar os filmes; trabalhavam,em cada filme, equipes de 40 a 50 pessoas;havia vários assistentes organizados num rígidosistema hierárquico.42Com todo esse gasto e sem bilheteria suficientepara dar o retorno, a Vera Cruz não aguentoumuito tempo; Zampari ainda tentou uma saída,colocando lá o seu dinheiro, mas não conseguiu.Quebrou a Vera Cruz, quebrou o Zampari e quebrouo TBC, uma vez que a contabilidade dos trêsera uma grande mistura. E aconteceu a quebrada Vera Cruz quando Zampari vinha voltando daEuropa com dois prêmios internacionais conquistadospor Sinhá Moça e O Cangaceiro.O Banco do Estado cancelou os financiamentose colocou Abílio à frente da Vera Cruz, coisa quenão durou muito tempo dada, principalmente, aforma errada de trabalho, adotada desde o iníciode suas atividades.Outro grande problema que havia era a questãoda distribuição de filmes: dava-se o filme para oconcorrente distribuir. Abílio, para contornar asituação, montou a Brasil Filmes, paralela à VeraCruz, para distribuir os filmes. Quando ele deixou


a Vera Cruz, o novo diretor voltou a trabalharcom a Columbia e o problema surgiu outra vez.Foi assim que se acabou a Vera Cruz e o sonhonacional de uma indústria de cinema de padrãointernacional, da qual, começando como ator,Abílio terminou como diretor-superintendente.Ceiça CamposAgosto de 200643


Ao leitorQuando me pediram para escolher três peçasde meu pai para serem publicadas, escolhi PaiolVelho, Santa Marta Fabril S.A. e... em moedacorrente do país.Paiol Velho foi o seu trabalho mais elogiado pelacrítica teatral da época e se transformou em argumentopara o segundo filme da Companhia CinematográficaVera Cruz, Terra é Sempre Terra.Santa Marta, por ser a saga de uma família tipicamentepaulista, na fundação e gerência deuma empresa familiar, com todos os problemasque um choque de gerações produz e as consequênciasque traz.45E ...em moeda corrente foi escolhida por suaatualidade porque, apesar de ter sido escritanos anos 60, traduz os mesmos problemas que onosso país enfrenta até hoje.Devo dizer que este trabalho foi executado emfamília, pois meu irmão, Padu, digitalizou e revisoutoda a obra, e minha prima, Ceiça Campos,fez a pesquisa para o texto em sua dissertaçãode mestrado e continua a fazer, agora para suatese de doutorado.


Meus agradecimentos especiais vão para a ColeçãoAplauso, que nos deu a oportunidade decompartilhar com o grande público o que estavaesquecido e perdido entre papéis empoeirados;agora meu pai deverá ocupar o lugar que mereceentre os escritores brasileiros, o que me deixamuito feliz.Maiza46


Zeni Pereira e Cacilda Becker em Paiol velho


Paiol VelhoPeça em três atosEstréia: São Paulo, 10 de janeiro de 1951Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)Personagens e elenco da estreia(por ordem de entrada em cena)LinaCacilda BeckerTonicoCarlos VergueiroBastianaZeni PereiraLourençoMilton RibeiroMarianaRachel MoacyrJoão CarlosMaurício BarrosoDr. BoaventuraA. C. CarvalhoQuinzinho Pereira Fredi KleemannTabeliãoGlauco de DivitisTio JorgeEugênio Kusnet49DireçãoCenáriosExecução cenáriosSupervisão guarda-roupaDiretor de cenaAdolfo CeliBassano VaccariniArquimedes RibeiroCleide YaconisPedro Petersen


Primeiro atoCena ICinco horas da manhã. A cena está escura. Apenasalguma claridade do raiar do dia que entrapelas frestas das janelas e portas. Ouvem-se osruídos do alvorecer na fazenda. O piar dos pássaros,o canto do galo, o cacarejar das galinhas,etc. O casal ainda dorme, mas o marido, que estáà frente, já começa a se remexer como quem vaiacordar. A cama range a cada instante, a cadamovimento, desafinando com a sinfonia da alvoradalá fora. O homem desperta, afinal; senta-sena cama, de frente para o público, pés no chão,boceja e espreguiça-se, dando mostras de antigocansaço e do profundo esforço que está fazendopara se levantar. Veste pijama ordinário, de listas,e meias nos pés. Consulta o cebolão que está namesinha de cabeceira. Durante o ato, vai-se fazendo,paulatinamente, a luz do dia em cena.51TonicoLina... Lina... (mais alto) Lina...Lina(Sem se mover) Huuummm...TonicoVenha quentar o café para mim. (Lina não semexe) Lina... (berrando)


Lina(Berrando também) Que é?TonicoLevanta. Venha ver o café.LinaAhhh... (e continua dormindo)(Tonico levanta-se vagarosamente, espreguiça-secom ruído. Assim que larga o leito, a mulher tomao meio da cama, juntando os dois travesseiros econtinua dormindo)52Tonico(Sacudindo os ombros de Lina) Lina. Levanta,mulher. Passa de cinco horas.Lina(Erguendo o busto, lançando chispas de ódio)Não me amole. Levanto nada.TonicoComo não se levanta? Venha me ver o café.LinaVá acordar a Bastiana.TonicoA Bastiana está muito pesada; me pediu paralevantar mais tarde estes dias, até ter o filho.


LinaPesada nada... Aquela vagabunda... Acordeela...Tonico(Vai pesadamente à cadeira. Veste as calças daroupa sobre as calças do pijama) Vagabunda...Mas vai ter um filho...Lina(levantando a cabeça, furiosa) É?... E que temisso?TonicoÉ isso mesmo. Vai ter um filho.LinaE eu não? De quem é a culpa? Minha ou sua?Nunca tive outro homem para saber.53Cale a boca.Tonico(Tonico vai iniciar a sua toalete despindo o paletódo pijama. Tira o paletó da cadeira, joga-o nacama. Desce a bacia, enchendo-a com água dojarro, e lava as mãos, as axilas, com grande alarido.Termina o trabalho com duas ou três bochechadasde água do jarro. Procura uma toa lha quenão encontra e acaba se enxugando com o paletó


do pijama. Penteia rapidamente os cabelos, vestea camisa e o paletó, pega o relógio e está prontopara a luta quotidiana. É homem judiado, de aspectodoentio, entre 35 e 40 anos. Cursou até o4º ano de ginásio. Seu nome é Antonio LoferatoTonico. O diálogo continua enquanto Tonico faza sua toalete e se veste)LinaE por que você se queixa de não ter filho? Émelhor assim.54TonicoEu queria... Um macho... Para ficar com esta fazenda...Depois de mim.LinaMas a fazenda não é sua, Tonico.TonicoAinda não. No papel ela não é minha. Mas dejustiça é. Meu pai tomou conta dela durante 30anos. Eu nasci aqui. Trabalho aqui. Vou morrernesta terra. Ela é minha de coração... E vai serminha no duro, com tabelião e tudo...LinaE a patroa, Tonico? A viúva?


TonicoQue patroa nada. Há dez anos que não vem paracá. Nem para ver a fazenda. Não ligam, nem elanem o filho.LinaMe deixa, vai acordar a Bastiana que é melhor.TonicoOlha, Lina; se eu quisesse já podia ser fazendeiro.Dinheiro eu tenho.LinaEntão que está esperando?TonicoEsperando, não. Juntando. Juntando. Com maisdois anos tenho dinheiro para comprar isso aqui.E bater na ficha.55LinaJuntando. Juntando. Roubando, isso sim.Tonico(com um berro) Cale a boca.LinaEntão não me amole. Vá s’embora. Me deixadormir.


Tonico(Pensando alto) Roubando mesmo. Mas roubandodo que é meu. Quem não trabalha não ganha.Isso é que é direito. A terra só devolve, quem nãodá, não recebe.LinaÉ, mas dinheiro roubado não dá sorte.56TonicoO meu não é roubado. Roubado é o deles, quesempre viveram à custa do trabalho dos outros.Meu pai morreu pobre, sem um tostão. Tive quelargar os estudos e vir pegar no pesado parapoder comer. Enquanto isso, eles gastavam naEuropa. Eu não hei de morrer pobre, que não soubesta. Se der para todos, eles também ganham.Se não der... Paciência. Roubado é o deles...LinaÉ o seu, Tonico. Não adianta... E você já estácaindo na boca do mundo!TonicoQue boca do mundo, nada! Ninguém sabe denada. É só palpite. Prova ninguém tem.Muita gente sabe.Lina


Quem?TonicoLinaO Lourenço disse que você é o administradormais ladrão que ele viu. Que rouba no custeioe na safra.TonicoComo é que você tem dessas conversas comaquele tipo?LinaEu não. Foi a Bastiana, ela me contou.Que mais disse ele?Tonico57LinaSei lá. Que você já deve estar rico de tanto roubara viúva. Que roubar viúva não é vantagem.TonicoCachorro! Mas eu pego ele!LinaPega nada. Homem sem razão não briga.TonicoPara a rua ele vai. E hoje mesmo. Cachorro. Começaa falar, a falar. Até chegar aos ouvidos da


patroa. Não. Vai para a rua. Antes que seja tarde.Vagabundo... (Tem um mal-estar que o obriga asentar-se na cadeira. Pausa) Pois é, eu me matono serviço, de sol a sol, como um escravo. E querque o dinheiro vá para eles. Tó... (faz o gesto)Só o que eles fazem é vender pedaço de terra.Quando meu pai era o administrador o Paiolvelho era três vezes o que é hoje... A fazendanão dava e eles a gastar. A fazer grã-finagem...Quando a coisa apertava, lá se ia um pedaço paraum vizinho. Mas agora vão vender é para mim.58LinaVocê vai comprar a fazenda com o dinheirodeles.TonicoCale a boca. Eles que venham tomar conta,venham levantar de madrugada, todos os dias.O dinheiro é muito meu, ganho com o suor domeu rosto.LinaNão adianta, Tonico. Você sabe que não é seu. Eo Lourenço também.Tonico(Levantando da cadeira e avançando ameaçador)Peste. Eu te sento o braço.


Lina(Aceitando o desafio, topando a parada) Senta.Tonico(Forçando a calma) Vai ver o café para mim.LinaEstou cansada. Acorda a Bastiana. (Vira-se debruços e continua a dormir)TonicoSua peste. Mulher só para comer. (Espera a respostaque não vem. Murmurando) O Lourençome paga, canalha... (Pára, olha, pensa, toma a resoluçãoe sai do quarto para ir acordar a Bastiana,que dorme no quarto depois da cozinha. Pancadasno quarto da Bastiana. Ouve-se um toque desino ao longe, ao compasso da alvorada)59Voz de TonicoBastiana... Bastiana...Huuummm...Voz de BastianaVoz de TonicoLevanta, Bastiana, que está na hora.Voz de BastianaPede pra dona Lina, estou doente, seu Tonico.


Voz de TonicoEla não pode. Vamos, Bastiana.Voz de BastianaEu também não posso... Estou muito pesada...Estou doente.Voz de TonicoDeixe estar. Eu me arranjo. Sempre me arranjo sozinho.(Movimento na cozinha de quem procuraas coisas. Tonico aparece na sala com um pedaçode pão na mão. Pancadas na porta)60Voz de LourençoSeu Tonico. Seu Tonico. (Tonico abre a porta. Jáé dia claro)Lourenço(entrando) Com licença. Bom dia, seu Tonico.(Lourenço é camarada da fazenda, de 25 a 30anos)Tonico(Enfezado) Ah! Lourenço. Preciso ter uma conversacom você. (Dá uns passos e senta-se calmamentena cadeira de balanço)LourençoQue é que há, seu Tonico?


TonicoNão tenha pressa. Temos muito que falar. E vocêprecisa aproveitar este seu último dia. (Lourençovai dizer qualquer coisa, quando Tonico continuacom mais força) A começar por aqui, que é quevocê vem amolar a gente a esta hora da manhã?LourençoTenho um recado pro senhor.TonicoE não podia esperar, na casa das máquinas?LourençoÉ um recado importante... Desde ontem à noite...Estive na cidade...61Tonico(Gritando) Então fala, homem! Que recado éesse?LourençoA patroa vem aí com o filho.Tonico(Com um ligeiro sobressalto) Hein? Que foi?LourençoEu estava no armazém. Fui buscar o arame farpado. Dona Mariana telefonou de São Paulo. Vemcom o doutor João Carlos.


Quando?TonicoLourençoDevem chegar hoje, pelo noturno.TonicoOnde é que vou botar essa gente? A sede estátoda escangalhada. Também, faz dez anos quenão vêm aqui e chegam assim, de repente? Porque você não avisou antes?62LourençoQuando cheguei da cidade já era noitinha. Osenhor estava dormindo. Não adiantava nada.TonicoEu é que sei se adiantava ou não... Temos quedar um jeito. Têm que ir para a sede mesmo.Que me importa! Vá com o seu pessoal dar umjeito naquilo.Lourenço(Sem se mover) Sim senhor.Tonico(Gritando) Já! Que está esperando?LourençoMas o senhor disse que tinha umas conversascomigo.


TonicoAh! É mesmo. (Senta-se, procurando ganhar tempoenquanto pensa) Também, não havia pressa...É... É verdade... Você tem razão... Bem... Vocêquer mesmo saber? Já ia me esquecendo. (Mudade tom, achando a saída) Pois é, Lourenço, vocêsempre gostou da lavoura, não é? Depois, temo seu pessoal...É, sim senhor.LourençoTonicoPois eu estive pensando na sua situação aqui noPaiol velho. Podia dar um jeito de melhorar a suavida. Você não estava querendo ser meeiro?63LourençoQuerer eu queria, mas é que...Mas é o quê?TonicoLourençoAqui não tem lugar... Depois...TonicoDepois o que, Lourenço?LourençoDepende... Não é?


TonicoDepende do quê? Vamos, desembuche, homem...LourençoDepende... Da terra, da lavoura... E das condições...Não é, seu Tonico?TonicoSe eu quero melhorar a sua situação não dareium abacaxi a você.É verdade.Lourenço64TonicoQue tal a gleba do Riachão?LourençoMuito boa. Bom café. Mas lá está o ManoelVieira.TonicoPois ele está de mudança. Já não dá mais nada.Está velho e o pessoal dele está debandando.Perdoei a dívida dele na fazenda e vai largartudo. Amanhã mesmo já não está mais aí.LourençoQuer dizer que o senhor me quer dar a meia doRiachão?


TonicoCom você faço melhor negócio que com o Vieira.Dou a meia no café e pode ficar com a roça porsua conta. São 8 mil pés de café muito bons equatro alqueires para você plantar o que quiser.Negócio de pai para filho, não é?LourençoÉ verdade. De pai para filho, seu Tonico.TonicoNós vamos lá. Se for preciso uma reforma na casa,você pode fazer por conta da fazenda.LourençoÉ negócio fechado, seu Tonico?65TonicoFechado. Pode preparar a mudança. Tudo o queo Vieira deixar lá é seu. Mas quero trabalho bemfeito, para uma boa colheita.LourençoDeixa isso comigo, seu Tonico. Foi por isso que osenhor disse que era o meu último dia?Tonico(Embaraçado) É... Foi... Pois então... Você não vaise mudar para lá?


É isso mesmo.LourençoTonicoAgora vai. Vê se arruma na sede dois quartos sópra dormir. Dá uma limpeza no banheiro. Depoisvou ver o serviço.E a cozinha?Lourenço66TonicoDeve estar toda arrebentada. Eles vêm comeraqui em casa. Não tem outro jeito. Vá já, corre.LourençoSim senhor. (Chega até a porta, para, pensa eresolve) Muito obrigado, seu Tonico.TonicoNão precisa agradecer. Sei que você não gostade mim. Que fala mal de mim, mas não faz mal.Faço isso pela Bastiana. Vai ter um filho; você vaise casar com ela, não?LourençoÉ. Agora eu posso casar, sim senhor. Antes nãopodia. Nem lugar na casa tinha para ela. Agorasim, ela também vai para o Riachão.


TonicoE você não vai mais falar de mim?LourençoDeixa disso, seu Tonico. Deus me livre. O senhor émeu padrinho. (Tonico dirige-se ao quarto. Linamergulhada nos travesseiros)TonicoLina, dona Mariana vem aí com o filho.Lina(Levantando o busto) Hein?TonicoÉ isso mesmo. A dona está chegando pelo noturno.(Lina senta-se na beira da cama. Está decombinação ordinária, de morim. Descabelada)67E agora?LinaTonicoMandei o Lourenço arrumar um pouco a sede.LinaXi! Mas aquilo não tem jeito.TonicoTem sim. Vá lá ajudar o serviço. Eles que venhamcomer aqui.


LinaSerá que vem passar muito tempo?TonicoSei lá. A velha não agüenta, nem o filho. Ficamuns dias e vão embora.LinaVai ver que o moço vem tomar conta.TonicoSe vier, melhor. Você não tem nada com isso.Eu, do Paiol velho, não saio. Vamos ver o quevai acontecer.68E Lourenço?Que é que tem?Nada...LinaTonicoLinaTonicoNada mesmo. Ele é meu amigo.LinaHum!... (Lina já pôs o vestido e os sapatos. Bastianasurge na porta da cozinha para a sala. Éuma mulatinha desgrenhada; está grávida, bem


arriguda. Parece que com dores, se contorcendotoda)BastianaDona Lina, acuda, dona Lina. (Mal pode sustersede pé, apóia-se na soleira da porta. Lina saicorrendo do quarto e vai à sala e, com esforço,carrega Bastiana para o quarto, depois da cozinha)Eu acho que está na hora. É melhor chamargente.Tonico(Entra na sala) Vou chamar sua mãe, Bastiana,para ajudar você. (Observa as duas, se afastando)Mais um para carpir café.Cortina69


Cena IIAbre a cortina. Onze horas da manhã. A mesaestá posta para o almoço. Quatro pessoas. DonaMariana está sentada na cadeira de balanço. Éuma senhora cinqüentona, de aparência distinta,grã-fina. Lourenço está de pé.LourençoEstá tudo arranjado. Reservei o leito. O auto vemaí às duas e meia. O noturno passa às 4 horas.(Entrega uns bilhetes e um dinheiro)70MarianaÉ, dá muito tempo. Isto é para você, Lourenço, emuito obrigada. (Dá-lhe uma pelega de 50)Lourenço(aceitando o dinheiro) Deus lhe abençoe, donaMariana. Com licença.MarianaEspere um pouquinho. Queria ter uma conversamuito particular com você. Posso confiar em você,Lourenço?LourençoEntão, dona Mariana?MarianaPois é, você sabe que seu pai foi muito amigonosso.


Sim senhora.LourençoMarianaSua mãe também. Morreu nos meus braços.LourençoEu me lembro, dona Mariana. Mas depois a senhoranunca mais veio para cá.MarianaÉ verdade. Com a morte do meu marido as coisasmudaram.LourençoO doutor Carlos era muito bom. Todos gostavamdele.71MarianaPois é. Eu queria saber uma coisa, Lourenço.Você promete não passar essa conversa paraadiante?LourençoEntão, dona Mariana, está prometido.MarianaOlhe aqui, não compreendo certos negócios queo Tonico tem feito nesta fazenda. Como é queo algodão da Bela Vista, nossa vizinha, deu 150


arrobas por alqueire e o nosso, que era igual,deu 80?LourençoEu não sei... Que era igual, era... Não sei. Achoque foi na apanha... Ficou atrasada... Perdeumuito.MarianaE como é que vendem por 28 cruzeiros, quando oda Bela Vista alcançou 35 por arroba, na mesmaocasião?72LourençoHome, dona Mariana, isso é cá com o seu Tonico.Parece que choveu... Que o nosso algodão estavamuito sujo...MarianaE o café? Será que brocou tanto assim?LourençoComo é que eu posso saber? Que brocou, brocou,a senhora sabe.MarianaAcho tudo muito esquisito. Todas as fazendas davizinhança estão indo muito bem. Esta, não temdado nem pro custeio.


LourençoEu não sei. Agora que o doutor João Carlos vaitomar conta, ele vai ver... A senhora sabe... O seuTonico anda muito doente. Uma vez ele teve umataque aqui. Nós chamamos o seu doutor, era docoração. Sangue grosso, como se diz na roça.MarianaEu sei que ele é hipertenso. Mas isso não temnada com a broca do café.LourençoÉ. Não tem nada, não senhora.MarianaO que é que você acha, Lourenço? Diga paramim, não tenha medo. Olhe que você pode vira ser o administrador.73Lourenço(Custando para responder, embaraçado) É... Euacho... Eu não sei... É... Acho que a doença deleatrapalha um pouco.MarianaEstá bem, Lourenço. Meu filho vai ficar aqui. Ascoisas têm que melhorar.Lourenço(saindo) Com licença. (Entra Lina. Está bem arrumada,com o vestido novo que a patroa lhe deu.


É uma mulher apetitosa, com sensualidade einsatisfação na fisionomia)MarianaGostou do vestido? Fica-lhe muito bem. O Tonicovai gostar.LinaTonico não liga para essas coisas, dona Mariana.MarianaEle não liga a você?74LinaQual o que, dona Mariana. Liga nada. Eu, paraele, sou coisa. Pior que coisa. Ele só quer saberé de trabalhar.MarianaNão é assim. E você aparecendo bem vestidinha,bonitinha como você é, ele mudará de idéia.LinaQue o que, dona Mariana. Tonico não é homemde ligar para mulher. Gente de roça não temtempo para isso.MarianaQuando as coisas melhorarem você virá passaruns dias em São Paulo comigo. Conhece SãoPaulo, Lina?


Lina(Negando com a cabeça) Mesmo aqui na cidade,só fui umas três vezes. Faz dois anos que não vouao cinema. Sei que nunca mais vou sair desteburaco.MarianaO Paiol velho não é buraco, Lina, e foi uma fazendamuito bonita.LinaDesculpe, dona Mariana, não disse por mal.MarianaNão tem importância. Compreendo. Meu maridonão gostava disto aqui. E ele era o dono. Só pensavaem viajar, divertir-se, gozar a vida. Morreuem boa hora.75LinaNão diga isso. Morreu tão moço. Em boa horapor quê?MarianaPorque morreu no momento em que ficou pobree Carlos nunca poderia ser um homem pobre.Nasceu rico e para ser rico.LinaE nós aqui nascemos na pobreza. Com tudo agente se acostuma.


MarianaA quem o diz! A que horas João Carlos saiu?LinaCom o toque do sino. Às cinco horas da manhã.Saíram os dois a cavalo. Foram primeiro ao Riachão.76MarianaQueira Deus que João Carlos tome gosto pelavida de fazenda. Tenho medo. É a única coisaque lhe resta. Uma fazenda velha, crivada de dívidas.(Ouve-se o ploque-ploque dos cavalos quese aproximam. Lina sai para a cozinha. EntramJoão Carlos e Tonico. O moço é bonitão, forte eelegante)João CarlosPuxa! Esta vida de fazendeiro com quatro horasno lombo de um cavalo, todos os dias, não é paraqualquer um!MarianaVocê logo se acostuma. Sente-se, seu Tonico, osenhor também deve estar cansado.TonicoNão posso, dona Mariana, tenho que ir com oLourenço na casa das máquinas.


MarianaDeixe para depois do almoço. Ah, é verdade,o Lourenço me arrumou a passagem, leito etudo.João CarlosEntão você vai hoje mesmo?MarianaÀs duas e meia o automóvel vem me buscar.TonicoMas a senhora só ficou dois dias. Nem dá paramatar as saudades. Também, naquele desconforto!77MarianaEstava muito bom, e a Lina é ótima cozinheira.Mas tenho que ir mesmo. Preciso cuidar do financiamentolá em São Paulo.TonicoA senhora prorrogou o penhor?João CarlosE arranjou dinheiro para o custeio deste ano.TonicoSim senhor! Muito boa!


MarianaE agora você trabalhe, meu filho. Aproveite porqueé a única oportunidade que o banco nos estáconcedendo. Seu Tonico está aqui para ajudarvocê, para ensinar você. Não é mesmo?TonicoSim senhora. O doutor João Carlos, se não se incomodar,pode vir morar aqui, naquele quarto.João CarlosNão vai ser preciso. Estou muito bem lá emcima...78TonicoA Bastiana vai para o Riachão. Mando arrumar oquarto dela pra mim. O senhor fica aqui...João CarlosÉ muito trabalho...Tonico... É casa de pobre, mas está melhor que a sede.MarianaAcho a idéia muito boa. Pelo menos aqui vocêse levanta cedo.TonicoCom o toque do sino.


Mariana... E fica junto do seu Tonico... Conversando...Aprendendo. Depois da safra, reformaremos asede e aí eu venho também.João CarlosBem, então aceito. Mas por pouco tempo. Podemoscomeçar a reforma da sede já, aos poucos.E logo me mudo para lá.MarianaEntão está combinado. Muito obrigada, seuTonico.TonicoNão por isso. Até já. (Sai com Lourenço)79(Ficam Mariana e João Carlos em cena. Este espreitapela porta até sentir-se a sós com sua mãe)João CarlosÉ incrível, mamãe! Este homem deve ter nosroubado a grande. Não faz outra coisa!MarianaNão se antecipe, meu filho.João CarlosOra, mamãe. O que foi feito do dinheiro que obanco anda nos emprestando? Você precisava vero estado em que se encontra esta fazenda.


MarianaO que importa é daqui para frente. Tome contado que é seu, meu filho.João CarlosÉ caso de polícia. Dos legítimos.MarianaAqui tem faltado o olho do dono.João CarlosAssim que me enfronhar do negócio, toco comele daqui para fora. Corro com ele, com mulher,papagaio e tudo.80MarianaMeu filho, seja como for, a fazenda agora é sua.É a única coisa que lhe resta. Uma fazenda velhae endividada. Mas a terra é boa, isso é o essencial.Está nas suas mãos reerguer o que é seu.João CarlosQuando percorri a fazenda a cavalo esta manhã,pela primeira vez, senti que minha vida tinha umobjetivo. Senti um certo orgulho, o orgulho deser dono da terra.MarianaTerra, meu filho, é sempre terra. Eles passampor cima, mas não levam. Era seu avô que dizia


sempre isso. Terra, por mais caro que se venda,é sempre um mau negócio. Por mais caro que secompre, é sempre um bom negócio. Bem. Vouver o Tonico na casa das máquinas.João CarlosE o almoço? Estou morrendo de fome.MarianaMais meia hora. Tenha paciência. (E sai. EntraLina, da cozinha)Vestido novo?João CarlosLinaFoi presente de dona Mariana.81João CarlosDevia ter trazido uma porção deles. Assenta muitobem em você. (Lina vai ao guarda-louça, tira umagarrafa e um cálice e vai servir o moço) Ótimo.Para aumentar mais a fome. (Lina serve a bebida.João Carlos bebe de um só trago) Obrigado.(entrega o cálice) Você ficou muito mais bonita.(Lina se afasta. Põe o cálice e a garrafa na mesa evai brincar com o papagaio, dando-lhe de comer)Parece que você gosta desse papagaio! (Lina virasepara ele e olha depois para o pintassilgo ) E dopintassilgo também? (aproxima-se dela) É só de


quem você gosta? Não seria capaz de gostar demais ninguém? (Lina faz que sim, que não, indecisa,com um olhar vivo, fitando o moço que aagarra de repente e a beija. Lina se desembaraça,depois de um beijo mais ou menos curto, dá doispassos, desnorteada)LinaPor que... Você... Fez isso?Pano82


Segundo atoCena IOnze horas da manhã. Cerca de três meses após.No quarto já não está mais a cama de casal, quefoi substituída por uma cama nova de solteiro.É agora o quarto de João Carlos. Lina e Tonicoem cena. Este acaba de almoçar e, sentado nacadeira de balanço, prepara o seu cigarrinho depalha. Nota-se em Lina mais cuidado na toalete,apresentando-se, entretanto, menos arrumadaque no final do 1º ato. As aves não estão emcena. Estão fora, no terraço. Entra Bastiana, dacozinha.83Bastiana(a Lina) A senhora quer que arrume a mesa prosr. Doutor?LinaÉ melhor. Pode ser que ele ainda venha cá.Tonico(com escárnio) Vem nada. Ficou na cidade. Jogouaté de madrugada e vai ver que ainda está dormindo.Eu sabia que ele não agüentava.Lina(a Bastiana) Guarde qualquer coisa para ele.


TonicoÉ, vida de fazenda não é para qualquer um.Lina(a Bastiana) Se até o meio-dia ele não chegar,você pode tirar a mesa e arrumar a cozinha.BastianaSim, senhora. (Volta para a cozinha)TonicoNão dou um mês, ele está dando o fora nistotudo.84LinaNão vê que ele há de deixar isto para você?TonicoVocê vai ver... Você vai ver.Ver o quê?LinaTonicoSabe quanto ele já perdeu na casa do Fortunato?LinaO que é que eu tenho com isso?TonicoQuarenta contos. É dinheiro que não é dele. Dinheirodo custeio. Está se enterrando cada vezmais. Sabe quanto ele já está devendo no banco?


(Lina não responde. Tonico acende o cigarro, levantando-se,pega o chapéu e olhando para fora)Olhe só. Vem chegando. Todo dia é isso. Acordaàs 11 horas, mal almoça, vai para a cidade e caina jogatina. Agora nem dorme mais na fazenda.Desse jeito... Nem 15 dias... Ele larga isso aqui evolta para São Paulo.(Há uma pequena pausa, quando João Carlosentra. Já não é o mesmo rapaz. Está envelhecido,o cabelo despenteado, a barba por fazer, pálido,com ares de neurastenia)TonicoBoas tardes, doutor.Bom dia.João Carlos85Quer almoçar?LinaJoão CarlosTenho que ir logo para a cidade buscar o dinheirono banco. (a Tonico) Você tem a conta doFerraz?TonicoVou buscar. Está no meu quarto. (Tonico sai pelacozinha. João Carlos senta-se pesadamente nacadeira de balanço. Bastiana entra)


Lina(a Bastiana) Prepare o almoço do doutor.João CarlosNão precisa, Lina, não estou com fome.LinaQualquer coisinha, está tudo pronto. Não custanada.João CarlosNão. Não. Estou com pressa. Preciso ir ao bancoreceber o dinheiro e fazer os pagamentos.86Dá tempo.LinaJoão CarlosNão, obrigado. Bastiana, me traz um cafezinho.(Bastiana sai. Entra Tonico com uns papéis namão)TonicoAqui está. Eu marquei os lançamentos errados.O senhor precisa falar com o Ferraz.João CarlosQuanto é o saldo?TonicoCom os descontos não chega a 40 contos. E temainda o pessoal da fazenda, uns 30.


João CarlosEstá bem. Eu vou sacar 80. (Durante este curtodiálogo, Lina saiu para a cozinha)TonicoOitenta dá de sobra. Está bem. Vou dar um pulono Riachão.João CarlosEstá certo. O Lourenço vai bem lá?Parece. Então até...TonicoJoão CarlosAté logo. (Tonico sai. Lina entra da cozinha trazendoum cafezinho. Enquanto o moço tomao café Lina fecha a porta de entrada e corre ascortinas da janela. Note-se que essas cortinassó aparecem no 2º ato. Feito isso, ela vai de encontroa João Carlos, querendo abraçá-lo) Vocêestá louca, mulher? (Lina vai ao seu encontro eprocura enlaçá-lo pelo pescoço) Não, Lina. Vocêestá completamente maluca! De repente o Tonicochega aí... E... Como é?87LinaTonico foi pro Riachão. (e enlaça o moço)


João Carlos(depois de beijá-la) Mas pode vir alguém. Vocêsabe como essa gente é. Vive atrás de novidades,vive sempre espiando.LinaJá tem cortinas nas janelas e já fechei a porta.João CarlosNão. Não. Não quero saber de encrencas. O Lourençojá sabe. O Tonico já está desconfiado.LinaO Lourenço sabe nada.88João CarlosSabe sim. Eu vejo pelo jeito dele.LinaNão dê confiança para aquele cara metido asem-vergonha.João CarlosSem-vergonha... Mas tem boca para falarLinaTonico não liga. Não interessa. Que é que vocêtem? Está triste?João CarlosEu sou um fracassado.


LinaVocê é o quê? (e o enlaça pelo pescoço)João Carlos(Berrando) Sai daí, Lina. (Lina, humildemente,sem dizer palavra, se afasta. João Carlos, levantando-se,andando nervosamente) Nós temosque acabar com isso. Onde é que vamos parar?Não é possível continuar assim! Tem que dar emdroga. E... Depois?LinaEu não me importo que aconteça nada.João CarlosÉ, você não tem medo de nada. E eu, que caravou fazer se pegarem em flagrante?89Pegarem o quê?LinaJoão CarlosAh... (pausa, senta-se na cadeira de balanço) Vouvoltar para São Paulo, fracassei.LinaNão largue o Paiol que você perde ele.João CarlosQue me importa. Não dou mesmo para isso.


LinaE você fica sem nada?João CarlosDo que adianta isso aqui? Não dá nada. Há trêsmeses que estou aqui nesta vida. Mofando. (Linasenta-se, desapontada. João Carlos levanta-se evai agradá-la) Ainda bem que tenho você, meubem. Mas isto assim não pode continuar, nãotem solução. Estamos abusando cada vez mais,e depois você é completamente louca! (dá-lheum beijo na nuca)90Mas não tem perigo.LinaJoão CarlosNão tem é solução, isso sim.Eu não me importo.LinaJoão CarlosEu sei que você não se importa. Você é louca.Está por conta. Mas... E eu, Lina? Você pensaque isso é vida?LinaPara mim é. (Pausa. João Carlos senta-se na cadeirade balanço)


João CarlosPodia vender a fazenda. Mas, para quem? Nãovale nada. Pelo menos lá em São Paulo eu mearranjava.LinaVocê casa com moça rica.E que tem isso?Nada...João CarlosLinaJoão CarlosVocê é uma mulher engraçada... Não prometinada a você. Avisei antes. Não prometi nada...Convém que você se lembre sempre disso.91LinaEu sempre me lembro disso.João CarlosEstá certo. Ainda bem. (Pausa – Lina levanta-se equer sentar-se no colo dele. João Carlos repele-a)LinaPosso te dizer uma coisa?João CarlosNão. Não diga... Já sei de tudo o que você vaime dizer...


Não sabe...LinaJoão CarlosSei. É para me levantar cedo. Ir correr a lavoura,deixar de ir à cidade todos os dias. Não jogarmais. Já sei de tudo isso... O jogo é uma desgraça.Foi o que mamãe me escreveu. Quem é que jáfoi contar a ela?Não sei...Lina92João CarlosPois é, ontem recebi uma carta dela. Já sabe detudo. Que eu não trabalho, que passo o dia e anoite jogando na cidade. Será o Tonico quemcontou?LinaTonico não é homem de contar...Então foi você...Eu não...João CarlosLinaJoão CarlosSó se foi o gerente do banco. É... Foi ele. Bem vio gesto dele quando me pegou jogando na casa


do Fortunato. Não disse nada, mas vi que nãogostou... Foi ele quem avisou lá em casa.LinaFez bem, muito bem...João CarlosBem coisa nenhuma. Ele não tem nada que semeter na minha vida. Nada devo a ele. Devo aobanco. E se não puder pagar, ele que penhore afazenda. Isto tudo que se arrebente! Assim serámelhor. Então caio fora e sumo deste buraco...LinaO Paiol velho não é um buraco, João Carlos. E foiuma fazenda muito bonita.93João CarlosVocê tem razão, Lina. Eu é que não presto. Sequisesse trabalhar, se tivesse coragem, isto seriauma grande propriedade...LinaTerra é sempre terra...João CarlosÉ verdade. (Agarra Lina. Beijos) E depois, temvocê. (Empurra-a violentamente) Mas não podeser. Se eu tiver que continuar aqui, temos queacabar com isso. Vou me mudar para a sede.


Está em pedaços.LinaJoão CarlosNão faz mal! Aqui é que não fico. O diabo é quevocê vai lá atrás de mim. (Lina faz que sim coma cabeça) Não tem remédio mesmo. (E agarra-ade novo)LinaJoão Carlos, posso te dizer uma coisa?Diga, Lina, diga.João Carlos94LinaVocê sabe de uma coisa? A culpa de eu não terfilho foi do Tonico. Não é minha, não...João CarlosO que é que você quer dizer com isso?LinaÉ que eu estou casada com ele há dez anos enunca tive filhos. Nem sinal.E daí?João CarlosLinaE agora, estou esperando um...


João CarlosVocê está louca! Era só o que faltava. (Arrepende-seda violência, levanta-se e a faz sentar-sena cadeira. Com carinho) Desculpe, Lina, masnão pode ser!...Por quê?LinaJoão Carlos(Depois de um momento de reflexão) Bem...LinaEntão, você não se importa?João CarlosÉ... Pode não ser meu...95De quem, então?LinaJoão CarlosOra... Do Tonico. Por que não? Isso acontece,pode acontecer...Não é do Tonico.LinaJoão CarlosÉ o que não sabemos.


Eu sei...Sabe o quê?LinaJoão CarlosLinaNão é do Tonico. Faz quatro meses que não tenhonada com ele.João Carlos(Desesperado) E então, mulher?...96Então o quê?LinaJoão CarlosMas você não está vendo a encrenca que vai sair?Precisamos dar um jeito nisso! É incrível! Vejaonde fui me meter...LinaNão se incomode... Eu agüento tudo...João CarlosComo que agüenta? E eu? Você não pensa naminha situação?LinaSe você quiser, fujo. Ninguém vai saber de nada...


João CarlosVocê é uma mulher engraçada. É incrível!Por que engraçada?LinaPuxa vida...O quê?João CarlosLinaJoão CarlosNunca vi uma coisa assim... Bem... Vamos deixarde romance. Precisamos pensar... Pensar...Pensar em quê?Lina97João CarlosEntão você vai embora? Foge daqui? Para onde?Como é que você vai viver?LinaIsso é da minha conta...João CarlosPois se é da sua conta, arranje-se. Eu é que nãovou ficar aqui tentando convencer uma teimosa...Uma louca como você! Eu é que vou sumirdaqui... E é já... (Sai, furioso, batendo a porta)


(Lina sentou-se. Está triste e desapontada. EntraBastiana, pela cozinha com um bebê no colo, éseu filho. Assim que Lina a vê, levanta-se parapegar a criança com grande enlevo, enquantoBastiana junta duas cadeiras, forrando-as, comose fosse um berço. Lina põe a criança nesse berçoimprovisado e fica entretida, brincando com ele.Bastiana tira a mesa)BastianaEntão, o seu doutor não quis almoçar?98Lina(Muito calma) É... Foi embora. Foi pra cidade. (Pausa)Você vai bem com o Lourenço, Bastiana?BastianaSe vou bem? Não sei, dona Lina. A gente quandocasa não é pra ir bem ou mal... É pra ir, donaLina.LinaUé! Pensei que você ficasse contente em ter casadocom o Lourenço. Você não gosta dele?BastianaGostar? A gente se acostuma, dona Lina. Gentede roça quando casa é pra fazer comida pro marido,lavá roupa do marido, apanhá do marido...


LinaMas... Você teve uma criança...BastianaQue o que, dona Lina. Filho só pra dá trabaio...LinaEu estou esperando um...BastianaNão diga, dona Lina! Que bom! Seu Tonico vaificar contente. Ele queria tanto...Ele não sabe...LinaBastianaAh! Então precisa saber...99LinaNão posso, Bastiana... (hesitando) Ele... Há muitotempo que ele não tem nada comigo... Maisnada...Bastiana(Muito assustada) Hii... Dona Lina... Quer dizerque... Chi... Como é que vai ser?LinaNão sei. Ainda não sei como fazer.


BastianaPois é, dona Lina, eu bem dizia. Essa história comesse moço não dava certo. Eu bem que avisei asenhora. A senhora não quis ouvir...LinaNão podia ouvir, Bastiana, não podia...100BastianaAí está no que deu. E agora?... É arranjar umjeito. . Olhe, dona Lina... Eu não gosto de entrarna vida dos outros, mas se eu fosse a senhora...Não sei... Eu achava bom a senhora dar um jeitocom o seu Tonico... (Lina vira-se para Bastiana,querendo compreender) É isso mesmo. É só parafazer confusão. Ficava resolvido...LinaIsso nunca! Você sabe, Bastiana, tenho nojo doTonico!BastianaAssim vai mal. A senhora precisava pensar umpouco no que pode acontecer... Só se... Só se asenhora quiser, aí mesmo na colônia tem a viúvado Serafim, que pode...LinaNão, Bastiana. O que está feito, está feito.


BastianaMas, dona Lina, a senhora não está pensando oque vai acontecer quando o seu Tonico souber ?LinaAh! Saio daqui... Vou pro inferno... Não me importo...BastianaIsso não pode ser. Olhe! Então vai falar com aminha madrinha. A senhora vai pro sítio dela.Pode ficar lá o tempo que quiser. Lá tem tudo.Ninguém precisa saber de nada...LinaNão se incomode, Bastiana. Tudo se arranja...Depois... O que aconteceu... Não tem muitaimportância. (Voltando-se para a criança) Olhecomo está quietinho. Está ouvindo tudo e nemse importa. Não é com ele...101BastianaEle é muito sossegado. De vez em quando, denoite, eu me acordo. Ele está junto de mim, deolhinhos arregalados, sem chorar, sem se mexer,quietinho, quietinho!É muito bonzinho...Lina


BastianaNão é bondade não, dona Lina, é tristeza. Filhode colono já nasce triste...Cortina102


Cena IICena às escuras. Duas horas da madrugada domesmo dia. O papagaio e o pintassilgo estãoem cena, nas respectivas gaiolas. Chove torrencialmente.Trovões e relâmpagos, cujo clarão sevê pelas janelas. Barulho de automóvel que seaproxima. Bater de portas de carro. Entra JoãoCarlos, vindo da cidade, todo enlameado. Estáacabrunhadíssimo. Acende o lampião. A chuvae o trovejamento continuam. João Carlos vai aoguarda-louça, tira a cachaça e um cálice e sentasena mesa. Bebe novamente. Sente alguém quese aproxima. É Lina, vestida em camisolão brancoordinário, com uma vela na mão. O diálogo entreos dois é feito em voz baixa, a princípio em tomde sussurro, depois um pouco mais alto, massempre em meio-tom.103João CarlosVocê está louca, mulher? Volte, volte imediatamente.(Lina não se impressiona. Põe a vela emuma caixa de fósforos em cima da mesa. Fica empé, atrás de João Carlos e começa a alisar-lhe oscabelos, silenciosamente) Vá-se embora, Lina.Pelo amor de Deus, vá-se embora.Como foi?Lina


João CarlosMal. Mal. Pessimamente. Desgraçadamente...Lina(Continuando a agradá-lo) Não tem importância...João CarlosAgora não tem mais jeito, Lina. Estou liquidado.Volte para seu quarto.LinaO que é que não tem mais jeito?104João CarlosTudo, Lina... Tudo...Pra tudo tem jeito...LinaJoão CarlosFui à cidade receber a prestação do custeio. Recebi80 contos. Tinha que pagar o pessoal e umaporção de contas (enche outro cálice, vai beber,Lina impede) eu fui no Ferraz, pagar a contada fazenda. Ele não estava. A conta não estavacerta, só o Ferraz podia acertar. Só ali era maisde 40 contos. Antes tivesse pago... Não paguei...Fiquei de voltar. Não voltei. Encontrei o Fortunato...Perdi tudo, Lina, e ainda fiquei devendo10 contos ao Fortunato.


Não pague a ele.LinaJoão CarlosSim, não pago. E o dinheiro do custeio, 80 contos?O que é que eu vou fazer?Fica devendo...LinaJoão CarlosNão pode ser, Lina. A conta já está atrasada. Daoutra vez foram 40 no jogo. São 120 contos, foraas quantias menores. Agora foi tudo por águaabaixo. Vou ter que vender a fazenda.105LinaNão precisa, João Carlos.João CarlosPrecisa, sim... (bebe a cachaça) É o único jeito.Amanhã todo mundo vai saber que perdi o dinheiro,que não paguei ninguém. O gerente vaisaber. Mamãe vai saber. Todo o mundo. É melhorque saiba mesmo e estouro tudo de uma vez. Nãoagüento mais isso aqui.LinaQuem sabe se você falando com o gerente...


João CarlosNão adianta. Ele não vai com a minha cara. Oh!Lina, meu bem... Vá se deitar. Não compliquemais as coisas. De repente vem o Tonico aí...LinaEle dorme que nem pedra.João CarlosTrabalha como um doido. Antes eu fosse comoele...Que o quê...Lina106João CarlosDeixa, Lina. Vá se deitar. Amanhã vou à cidade.Vou vender esta joça. Entrego tudo pela dívida.Se me sobrarem uns cobres, melhor. Vou a SãoPaulo e começo vida nova.LinaMas Tonico disse que a fazenda vale um dinheirão...João CarlosVale, mas ninguém paga. Ninguém tem dinheiro.E eu quero me ver livre disto.Então vá se deitar...Lina


João CarlosJá vou, Lina. Estou nervoso. Sem sono. Vá você,Lina. Não seja imprudente. (Bebe outro cálice,já está meio bêbado. Lina beija-o. João Carlospega-a com violência e a põe em seu colo e sebeijam demoradamente) Agora chega. Vá sedeitar. Vá depressa, meu bem. Amanhã verei oque vou fazer. (Bebe mais outro cálice. Beija-ade novo) Boa noite.LinaBoa noite... (Pega a garrafa, põe no guarda-louçae fecha-o a chave. Depois vai mais uma vezabraçar o moço, quando aparece o clarão deuma vela pela porta da cozinha. Separa-se coma maior calma e espera a entrada de Tonico.Tonico entra com uma vela acesa na mão e umrevólver na outra. Está com um pijama listadoe descalço. Continua a chuva e o trovejamentonão cessa. Tonico parece um fantasma. JoãoCarlos, ao percebê-lo fica estatelado na cadeira.Lina conserva-se ao lado, perto da parede, imóvel,porém inteiramente senhora de si. Tonicoavança vagarosamente, encarando João Carlos,puxa uma cadeira e senta-se à mesa, onde põeo revólver)107Anda, fala, Tonico...Lina


TonicoVai para dentro. Preciso falar sozinho com odoutor.LinaNão tenho nada que fazer lá dentro.TonicoEstá bem. Então fique, se quiser. (Pausa. A JoãoCarlos) Como é doutor?Como é o quê?João Carlos108TonicoEstou perguntando o que é que houve?João CarlosNada. Não houve nada. Absolutamente nada,posso lhe garantir.TonicoEntão recebeu o dinheiro no banco e pagoudireitinho? Mas a conta do Ferraz não estavaerrada? (João Carlos tem um alívio enorme.Anima-se a falar, mas um pouco desconfiado)Recebi o dinheiro, seu Tonico. Recebi 80 contos.Reclamei a conta do Ferraz. O Ferraz não estava.Não paguei a conta...


LinaPara que o revólver, Tonico? Você nunca andouarmado.TonicoCala a boca, mulher. Não se meta. (a João Carlos)Ouvi barulho, pensei que fosse ladrão. A estashoras... E então, dr. João Carlos?João Carlos(Cada vez mais animado) Não paguei a conta. OFerraz não estava. (pausa) Perdi todo o dinheiro...TonicoNão pagou ninguém? (João Carlos nega com acabeça) E... Agora? (pausa)109João CarlosAmanhã vamos ver o que se pode fazer.TonicoAgora está muito mais difícil. O Ferraz não prorrogamais. E sem dinheiro aqui... Não é possível.João CarlosEu sei, estou resolvido a torrar esta fazenda.TonicoO senhor é que sabe.


João CarlosSerá que você conhece algum interessado, capazde liquidar o negócio rapidamente?TonicoA coisa está bem difícil. Ninguém tem dinheiropara bater na ficha. É só papo. Dinheiro mesmoque é bom...João CarlosMas preciso vender de qualquer jeito. Algumpreço ela tem que pegar.110TonicoÉ. Valer ela vale. São quase 200 alqueires deterra.E o café?João CarlosTonicoA lavoura não conta, que está velha e maltratada.Mas a terra vale pela situação.João CarlosQuem sabe se o Severino não compra?TonicoNão tem dinheiro. Já quase não se agüenta como que tem.


João CarlosDa outra vez ele comprou...TonicoMas não fez bom negócio. E as coisas piorarampara ele.João CarlosTenho que dar um jeito. O diabo é o pessoal...TonicoO pessoal não vai querer esperar...João CarlosMas tem que esperar. O que é que eles podemfazer?111Isso é verdade.TonicoJoão CarlosMas vou ficar completamente desmoralizado.Amanhã cedo todo o mundo vai saber... Nemsei o que fazer... E o pior é que tenho que enfrentar...TonicoLina, vai ver um café novo para a gente. Vai.Acende o fogo, bote a água para ferver e fiquepor lá. (Lina sai. Em tom confidencial) Eu podiadar um jeito.


Como?João CarlosTonicoMas não vale a pena. Não é negócio para o senhor.João CarlosComo não é negócio? O que é que há, seuTonico ?TonicoNem é bom falar. É melhor o senhor mesmo tratardisso, se precisar de minha ajuda para falarcom alguém, estou às suas ordens.112João CarlosMas seu Tonico, o que é que o senhor queria medizer? Vamos conversar. Quem sabe chegaremosa uma fórmula.TonicoBem. Eu vou falar. O senhor diz sim ou não. Nãoprecisa ficar ofendido. Foi o senhor mesmo quequis saber.Diga.João CarlosTonicoO meu compadre estava interessado no Paiolvelho. Mas ele quer uma pechincha. Uma vez ele


me falou. Ele não tem todo o dinheiro. Eu tinhaque arranjar algum e ficava sócio dele.João CarlosQuem é o seu compadre?TonicoÉ o Quinzinho Pereira. O senhor não conhece.João CarlosBem. Não interessa. O que interessa saber é quantoele dá pela fazenda e em que condições.TonicoQuanto o senhor deve no banco? Quatrocentoscontos, não é? E mais uns 150 por fora?113João CarlosDeve ser isso mesmo. Quinhentos contos.TonicoEntão. O compadre queria dar 800 contos pelafazenda.João CarlosMas isso é uma miséria...TonicoQue é, é... Mas o senhor não arranjaria melhorpreço hoje em dia.


João CarlosMas só a terra vale dez contos por alqueire. Sóde terra tenho uns 1.600 contos.TonicoIsso de terra valer é no papel. Na hora da compraa conversa é outra. É verdade que tem havidocompras por aqui de 10 contos o alqueire. Masé pouca coisa. É ponta para acerto de divisa; épassagem...114João CarlosVocê tem razão. Mas se minha mãe souber queeu torrei o Paiol velho por 800 contos, vai morrerde desgosto.TonicoSeu pai, doutor João Carlos, vendeu muito maisdo que tem agora e por muito menos.João CarlosMas esta é a última coisa que tenho. Minha mãeme doou a metade dela. Para que eu fisesse omeu patrimônio.TonicoÉ. O melhor é não vender mesmo. Quem sabe eo senhor arranja um acordo. Por que não vai seabrir com o gerente do banco?


João CarlosDeus me livre. Ele já tinha me chamado a atençãopara não jogar. Tem mania de se meter na vidados outros.Não faz por mal...TonicoJoão CarlosÉ. Não fez por mal. Mas não admito que se metamna minha vida. Gasto e jogo o que é meu...Isso é verdade.TonicoJoão CarlosEntão são 800 contos. Ele não chega mais? Nãoserá melhor você fazer a contraproposta?115TonicoNão adianta, doutor João Carlos.João CarlosMas ele bate os 800 contos na ficha?TonicoIsso eu acho que não. Não é que não tenha dinheiro.Isto é, dinheiro disponível, é o que elenão tem, mas tem propriedades.João CarlosEntão, não pode ser à vista?


TonicoBom, doutor João Carlos, não posso garantirnada. Nem sei se ele ainda tem vontade de comprara fazenda. Isto foi uma conversa que tivecom ele, logo que o senhor chegou. Depois, nãofalei mais nada. Nem dei confiança por causa dopreço. Em todo caso, comprar à vista sei que elenão pode.João CarlosEntão não adianta.116TonicoComo não? Se houver acordo no preço, tudopode se arranjar.João CarlosNão sendo à vista, não pode.TonicoO senhor me desculpe, mas pode, doutor JoãoCarlos. Não precisa passar a escritura. O banco,no começo, não precisa saber. Faz-se um contratoparticular. O compadre entra com 250 contos, osenhor paga o atrasado de 120 contos e aindafica 130 contos. O resto, ele paga ao banco e aosoutros. Tem prazo para isso, depois da safra elevai se entender com o banco, então o banco passaa dívida para ele e pode passar a escritura.


João CarlosMas o seu compadre me dá 250 contos com umdocumento particular? Não é possível.TonicoBem, eu não sei. Mas falando com o advogado...João CarlosEu posso dar a ele uma procuração em causaprópria. É isso! Procuração irrevogável. Ele meentra com os 250 contos e assume a dívida.TonicoEntão? Para tudo o doutor Boaventura dá umjeito. Ele é o advogado do compadre.117João CarlosPois é, Tonico, vamos falar amanhã com o compadre.Amanhã mesmo. Se ele der mil contos euvendo na hora.TonicoMais de 800 ele não dá. Isso nem adianta falar.João CarlosVou pensar. Oitocentos contos é muito pouco.TonicoTambém acho um pouco baixo. Mas, como eudisse, nem sei se ele sustenta mais esse preço.


João CarlosFale com ele. E me arranje oferta firme por doisdias.TonicoIsso é lá em São Paulo. Caboclo não faz ofertafirme. É pegar na hora ou largar.118João CarlosVocê fala com ele. Amanhã mesmo eu resolvo.(Nesse momento entra Lina pela cozinha. JoãoCarlos fica fitando-a, ela está parada na porta.De repente, toma uma resolução) Olhe, Tonico, jáestá resolvido. É só bater os 250 contos e amanhãeu passo a procuração em causa própria e maiso que o doutor Boaventura achar necessário.Vamos liquidar esse negócio amanhã mesmo.TonicoMuito bem, doutor João Carlos. Vou tomar asprovidências. Negócio fechado?João Carlos(Olhando para Lina) Fechado.TonicoEstá bem. Então, boa noite. Vou dormir queamanhã tenho muito que fazer. Vou correr asdivisas do Paiol velho. Lina, você pode ficar paraservir o chá para o doutor. Erva cidreira, que ele


está muito nervoso. (Tonico pega no revólver,na vela e sai calmamente para seu quarto, pelacozinha. João Carlos fica paralisado, admiradoda displicência do fiscal em relação à mulher.Lina aproxima-se. O mau tempo passou. Silêncio.Ambos acompanham com o olhar a saídado fiscal)Pano119


Terceiro atoCena ITrês meses depois. Duas horas da tarde. Estãoacabando de almoçar, sentados à mesa: Tonico,doutor Boaventura, o compadre QuinzinhoPereira e o tabelião. Com exceção de Tonico,todos estão em mangas de camisa. Comeram ebeberam a fartar. Estão empanturrados e tocadospelo álcool. Lina está de pé, na soleira da porta,calada, pensativa, ausente de tudo. Bastiana entrae sai pela cozinha, servindo o almoço.120Boaventura(Brindando com ênfase) À saúde do novo proprietáriodo Paiol velho...TodosSaúde! (Esvaziam os copos)Tonico(Depois de beber) Que saúde nada! Lá querosaber de saúde? Há seis meses que não como, háseis meses que não bebo. Hoje vou tirar o ventreda miséria...QuinzinhoÉ isso mesmo. O que não mata, engorda. Se agente tem que morrer, que morra de barrigacheia.


TabeliãoSó peru é que morre na véspera...TonicoHoje é um grande dia! O negócio foi fácil. Foivocê ler a escritura, o compadre assinou, eu assineie pronto. Fiquei dono do Paiol velho.BoaventuraMas não se esqueça do meu trabalho. Com umbom advogado tudo se arranjou...TabeliãoÉ isso mesmo, o doutor Boaventura foi quemarrumou a procuração e a escritura e tudo.Tonico(Que acabou de encher os copos) À saúde do doutorBoaventura! O melhor advogado da zona.121Saúde!TodosBoaventura(Solene) Muito obrigado, meus amigos.TonicoOlhe que eu sou de sorte. Foi na horinha! Assimque o moço fechou o negócio o café começou asubir. Se o moço agüenta mais um mês, bau-bau...Tomava gosto pela coisa e nunca mais...


TabeliãoE o Quinzinho Pereira também foi muito direito,hein? Ele é que tinha a procuração. Com a altado café qualquer outro aproveitaria a ocasião eficava com o negócio...TonicoÀ saúde do compadre Quinzinho Pereira!Saúde!Todos122QuinzinhoHomem... Quando eu vi o café subir daquelejeito, vontade não me faltou. O que me faltoufoi o dinheiro. (Risada geral)TonicoBastiana, traz mais uma garrafa de bom vinho,hein pessoal? Vinho francês. Isto era deles também.Guardei essas garrafas, faz muitos anos,para beber no dia de hoje. E estou bebendo maiscedo do que eu pensava, ah... Ah... Ah...Tabelião(Levantando-se) Meus senhores, peço licençapara levantar um brinde muito especial a umgrande amigo meu...


TonicoSe é especial, espere mais vinho, Bastiana, andalogo com essa garrafa.Voz de BastianaEstou indo... (entra com a garrafa e um saca-rolhasmeio esfolado) Não posso abrir isso aqui...QuinzinhoDeixe comigo, é de minha especialidade. (Pegaa garrafa para abrir)BoaventuraVocê é bebedor de cerveja, Quinzinho, só sabeabrir garrafas de tampinha.Quinzinho(Tirando a rolha) Pronto. Vamos aos copos. (Todosestendem os copos e o vinho é servido)123TabeliãoEntão que vá o meu brinde especial. Ao meuparticular amigo, excelentíssimo senhor doutorBoaventura, nosso futuro deputado estadual...TodosViva!!! (e bebem) Fala o doutor Boaventura,tenha a palavra o nobre advogado... (o doutorBoaventura se levanta, muito compenetrado,para fazer um discurso, dando a impressão queestá orando às massas)


BoaventuraMeus senhores, meus amigos. (Rasgando umgesto largo) Povo de minha terra, aqui estoucom a minha candidatura apresentada a pedidosinsistentes dos meus amigos.TodosMuito bem... Apoiado...124Boaventura... Que fui obrigado a aceitar, com o escopo...Com a finalidade... Com objetivo de defender natribuna, os legítimos interesses e direitos... Atéagora conspurcados, vilipendiados, relegados...Muito bem!...QuinzinhoBoaventura... Do trabalhador da terra, do operário da enxada...TonicoAi, ai, ai... Agora que virei fazendeiro, não mevenha bulir com essa gente.BoaventuraNão tenha medo, isso é apenas uma plataformapreliminar...


TabeliãoÉ da política, e o doutor Boaventura precisa dovoto dessa gente.QuinzinhoDeixa disso, só com o voto dos amigos ele estáeleito...BoaventuraVocê tem razão, Quinzinho Pereira. Tem e nãotem... Escrevi a todos, enviando minhas cédulas.Se todos esses pensarem um minuto, um minuto,nada mais, eu serei eleito com grande margemde votos.QuinzinhoPode contar com o meu voto.125TabeliãoCom o meu também.TonicoPois se você vai prejudicar os fazendeiros emelhorar a vida dos colonos... Eu não voto emvocê.BoaventuraNão tem importância. Você aqui no Paiol velhoé um só e os colonos são cem. Eles me elegerão.(Começando de novo) Povo de minha terra...


QuinzinhoViva o doutor Boaventura...TodosViva!... (Batem palmas)Boaventura(Sentando-se, comovido) Muito obrigado, muitoobrigado...Tonico(Enchendo de novo os copos) Viva o Paiol velho!!!126Viva!...TodosTonicoLina, venha beber também. Venha festejar oacontecimento. (Lina olha apenas, sem responder)Larga essa porta, mulher. Faz três meses quevocê não sai dessa porta. Venha beber à saúdedo Paiol velho. Você agora é a patroa...Não interessa...LinaTonico(Enche um copo, levanta-se meio embriagado evai oferecê-lo a Lina) Está aqui... Bebe, mulher...


LinaNão me amole. Não bebo nada...TonicoEta, jararaca... Mas eu vou acabar com essa braveza.(Gritando) Beba, mulher... (Lina, distraída,pega no copo) Isso, vamos, a saúde do novo donodo Paiol velho... Antonio Loferato! Você nãogosta de ser mulher de dono de fazenda? Então?Agora eu sou o dono. (E dá uma gargalhada.Lina se enfurece e atira o copo, com desprezo,ao chão. Tonico fica perplexo por um momento,depois de um instante atira-se a Lina) Você mepaga. (E avança na garganta da mulher, bêbadoe fora de si)127Lina(Desvencilhando-se com um tremendo empurrão,que faz Tonico se afastar, cambaleando)Sai daí, seu bêbado sem vergonha... (e foge pelacozinha)Tonico(Fazendo menção de ir atrás dela) Eu te pego,hoje é o dia...Lina(Voltando da cozinha, pára na porta, empunhandoum tição de fogo) Venha. Chega até aqui...(Tonico vai meio titubeando, de encontro a ela; os


outros intervêm, segurando Tonico, que faz muitaforça. Tonico tem evidente medo da mulher. Estaparece uma onça acuada, está por tudo)QuinzinhoCalma, seu Tonico. Calma, gente. Nada de briga.Estamos festejando. (Tonico cede. Parece quetem um mal-estar súbito. Está ofegante. Ajudamnoa sentar-se na cadeira. Lina sai pelo fundo)128Tonico(Depois de mais ou menos refeito do mal-estar)É uma vaca... Ainda está esperando por ele. Fica odia inteirinho aí na porta, esperando por ele. Masele não vem. (Gargalha) Nunca mais ele aparecepor aqui... (nova gargalhada)(Ouve-se o ruído de um automóvel que se aproxima.Tonico interrompe subitamente a gargalhada.Há um momento de expectativa na sala.O ruído vai se tornando mais nítido, quando Linavem da cozinha e se coloca na porta de entrada,com o rosto iluminado)Veja quem é...TonicoBoaventura(Depois de se dirigir para a porta) Três pessoas.É dona Mariana, o filho e mais um.


Vamos ter coisa...TonicoQuinzinhoNão há de ser nada...TonicoAlguém avisou. Como é o jeito do outro?BoaventuraNão sei. Vem guiando.TonicoJá sei... Foi gente do banco. Gente metida. Nacerta que foi o banco. Não tem importância.Vamos agüentar a mão, hein, peessoal?129TabeliãoSim senhor, seu Tonico. Pode deixar. Agora osenhor tem a escritura. Eles não podem fazermais nada.TonicoE não podem mesmo! (Põe a mão na nuca, meioaturdido. Não está mais ofegante, porém extenuado.O automóvel se aproxima. Pára. Barulhode bater de portas de carro)


Voz de AfonsoA viagem não foi tão má, hein, João Carlos?Viemos em oito horas. Ótimo tempo para essaestrada.Voz de João CarlosÉ muito bom tempo, tio Afonso. (Entram os três.Tio Afonso, senhor de uns 60 anos, forte e bemdisposto. Trocam-se cumprimentos, friamente)LinaSente-se aqui, dona Mariana. (e lhe oferece acadeira de balanço)130MarianaObrigada, Lina. Como vai você?É... Bem...LinaAfonsoComo é, seu Tonico, o senhor não se lembra maisde mim? Sou o doutor Afonso.Tonico(Levantando-se com dificuldade) Sim senhor.Como tem passado, doutor Afonso? Nunca maisapareceu por estas bandas? Faz favor... (Oferecea própria cadeira)


AfonsoNão, obrigado. Fique onde está, não se incomode.Prefiro ficar um pouco de pé. Guiei oitohoras seguidas.TonicoBastiana, veja um cafezinho...Boa idéia...AfonsoMarianaE um copo de água bem fresquinha para mim,faz favor.Sim, senhora...Bastiana131Afonso(Dando com as garrafas de vinho) Sim senhor...Nuits de Saint Georges 1829, roba fina...TonicoHerança do doutor Carlos. Nós estávamos bebendoantes que o vinho arruinasse...Mariana(Olhando significativamente para Afonso) Aindahá muito disso aí?


TonicoNão senhora, foram só três garrafas. Não hámais nada...AfonsoBem, o melhor é irmos ao que serve. O senhorsabe, seu Tonico, depois que fui para o Alto doParaná, nunca mais me interessei por esta zona.Vendi o Paiol novo e esqueci isto por aqui...Mariana chamou-me para este caso. É um casodesagradável, não há dúvida, mas não possonegar assistência à minha irmã, que é viúva. Demodo que a minha interferência é absolutamentejusta...132TonicoNão há dúvida, doutor Afonso. Do que se trata?AfonsoMariana chamou-me porque foi informada,ontem, de que o senhor iria comprar o Paiolvelho...É verdade...TonicoAfonsoRumamos imediatamente para cá, a fim dechegar mos a tempo para evitar a escritura, maschegamos tarde. Estivemos agora no cartório e


verificamos que o senhor já recebeu a escrituradefinitiva.TonicoÉ verdade. Foi hoje mesmo, mas isso não temimportância, podia ter sido há mais tempo! Ocompadre tinha uma procuração em causa própria,o senhor não viu no cartório?AfonsoEm causa própria? Não reparei... Não estou entendendo,João Carlos...João CarlosEu tinha outorgado uma procuração, mas nãome lembro se era em causa própria...133AfonsoComo não se lembra? É substancial...MarianaComo foi isso, meu filho? Esclareça tudo direito,para nosso próprio governo.João CarlosBem... Eu andava tão desorientado... Tão esgotado...AfonsoMas a ponto de não se lembrar da condição emcausa própria, é o cúmulo... Uma coisa é dar uma


procuração simples; com a cláusula em causa própriasignifica vender... Vender... Qualquer pessoasabe disso, ainda mais você que é bacharel.João CarlosIsso agora não adianta...MarianaComo não adianta, meu filho? Você me haviadito que tinha deixado uma procuração paraadministração e venda da fazenda, por suaconta...134TonicoCom licença, dona Mariana, parece que a históriafoi mal contada. Mas tudo é fácil de explicar eposso provar com os documentos...João CarlosEu bem disse que não adiantava eu vir. Nãoadiantava nada...MarianaAprenda a enfrentar as situações, meu filho.AfonsoContinue, seu Tonico...TonicoPois é. (Entra Lina e serve o café e o copo comágua. Pausa) Pois é. O doutor João Carlos ficou


muito atrapalhado por aqui, e me pediu ajuda.Queria vender a fazenda de qualquer jeito ecom muita pressa. Eu fui contra. (a João Carlos)É ou não verdade, doutor? Ele insistiu, queriavender por qualquer preço e dar o fora. Eu fuicontra. Então arranjei o compadre Quinzinho(a Mariana) O Quinzinho Pereira está aqui, asenhora conhece?Sim...MarianaTonicoO compadre dava 800 contos pelo Paiol velho.O negócio foi fechado no escritório do doutorBoaventura. Podem perguntar a ele.135BoaventuraRealmente, doutor, acompanhei a transação...TonicoO doutor João Carlos recebeu 250 contos à vista.O resto era dívida da fazenda e o senhor QuinzinhoPereira ficou de fazer acordo com o banco.Como garantia, o doutor João Carlos outorgoua procuração...Afonso(a Mariana) Seu filho já havia vendido a fazenda,Mariana...


MarianaMas 800 contos é uma miséria...AfonsoMas vendeu, que é que se há de fazer? Ele émaior, vacinado, alfabetizado... Bacharel emDireito...MarianaAfonso, isto não pode ficar assim. João Carlosvendeu ao Quinzinho Pereira. Como é que agoraapareceu o Tonico no negócio? Você não estápercebendo?136TonicoEu mesmo disse ao doutor João Carlos que iaficar sócio no negócio, não é verdade, doutor?(o silêncio de João Carlos é a confirmação)AfonsoLamento tudo isso, Mariana, é lamentável, nãosó tudo o que aconteceu, como também a nossaviagem. Não temos mais nada a fazer, Mariana.Vamos...MarianaMas onde é que o Tonico arranjou dinheiro paracomprar a fazenda? Você não está enxergando,Afonso? Há dez anos que a fazenda vem dandoprejuízo. Onde foi o dinheiro que o banco nos


emprestou? Tonico recebia um conto por mês deordenado. Agora aparece como capitalista! Esteé o ponto, Afonso...Afonso(Depois de um momento de reflexão) É... O queo senhor tem a dizer?TonicoNada. Comprei e está comprado...MarianaE o dinheiro? Onde é que o senhor arranjoudinheiro?TonicoIsso é cá comigo. Negócio é negócio. O moçorecebeu o dinheiro, não recebeu? Então, estáacabado...137MarianaNão está acabado, não senhor! Não me conformocom esta situação, Afonso. Precisamos tomar asmais enérgicas providências.Afonso(Depois de refletir um instante) Ainda há jeitode se conciliar as coisas. Seu Tonico, João Carlosrecebeu 250 contos, há três meses, não foi?(João Carlos confirma) Pois bem, para não brigar


e para pormos uma pedra em cima de tudo...De tudo, compreende, eu me proponho a devolvero dinheiro e mais os juros, e rescinde-se aescritura. Caso contrário, tomaremos as providênciasmais enérgicas, nas duas direções: na civile na criminal...138TonicoNão adianta, doutor Afonso, a fazenda volta paraele e ele perde a fazenda de novo. Os senhoresestão aí com essa história de que eu sou ladrão,mas se não fosse eu, quem ia para a cadeia eraele. (gesto de Afonso e Mariana) Sim senhores.Quem perdeu 120 contos no jogo foi ele e nãoeu. Eu é que sempre dei murro por aqui. Ele nacidade, bebendo e jogando. Desviando o café,penhorado no banco. É bom saber de tudo isso,porque por aqui todo mundo já sabe...MarianaSe ele jogou e perdeu, o dinheiro era dele. Ninguémtem nada com isso.TonicoEntão! O dinheiro era dele... Agora a fazendaé minha...AfonsoVamos com calma, vamos com calma, Mariana.Então, seu Tonico, o senhor não concorda emreceber o dinheiro de volta?


TonicoMas, me desculpe, doutor Afonso, a fazenda foivendida há três meses, com o café a 500 mil réis.Eu não vou desfazer uma compra, agora queo café subiu a um conto e duzentos. Se o cafébaixasse em vez de subir, ninguém vinha mexerno negócio, mas o café subiu...AfonsoNão se trata disso, seu Tonico. O senhor bemsabe...TonicoSinto muito, mas não pode ser, doutor Afonso.139AfonsoEntão vamos agir pelos meios legais...MarianaHavemos de provar toda a roubalheira que houveaqui na fazenda. Esta terra pertence tradicionalmenteà nossa família, e voltará a ela, custeo que custar...TonicoPode provar o que quiser... A fazenda é minha.Daqui não saio. Eu sou o dono e hoje mesmo voume mudar para a sede, é lá o meu lugar.


MarianaDesaforo. Vamos, Afonso. Havemos de ver. (Vaise retirando, mas volta de repente) De uma coisalhe aviso, esta fazenda não dá sorte. Aqui penoutoda a minha família. Esta fazenda tem caveirade burro, sabe lá o que é isso? Você vai ver. Bebao nosso vinho, beba! É a última coisa que vocêroubou... Há de lhe fazer bem, seu ladrão. (Linaaparece na porta da cozinha. Tonico esboça umareação, mas arrepende-se)TonicoPode dizer o que quiser, será a última vez. Aquinão entram mais...140MarianaÉ o que havemos de ver. Vamos... (Vão se retirar.Sai João Carlos à frente, dona Mariana e por últimoAfonso. Antes da saída deste, Tonico grita)TonicoEsperem... (levanta-se pesadamente. Vai atéLina, agarra-a fortemente e aos empurrões,leva-a até a porta, onde Mariana e João Carlosjá assomaram) Levem esta mulher. Ela faz partedo preço da fazenda! (e a empurra contra ostrês, com violência. Lina foge para a cozinha,em cuja porta Bastiana apareceu para protegêla.Tonico, cambaleando, vai ao centro da cena,procurando apoiar-se na mesa. Está desvairado)


É isso mesmo . Perguntem ao moço. Nem minhamulher escapou. Quando não jogava, era paraficar em casa, metido com ela. Ah! Ah! Ah!…(Boaventura e Quinzinho avançam em direção aTonico para ampará-lo e acabar com a cena)BoaventuraQue é isso, seu Tonico …QuinzinhoCalma, compadre!...Tonico(Os afasta bruscamente) Deixem eu falar! Elesjá falaram muito. Agora é a minha vez! (Avançadois passos em direção aos três que ficaram naporta, estatelados) E agora vão saber porque eume casei com ela. Foi trabalho do pai dele. Esse...(encarando Mariana e depois João Carlos) Se eunão casasse... O seu marido... O seu pai... Estavamal de vida...141João Carlos(perdendo a tramontana, avança para Tonico,sacudindo-o violentamente pela gola do paletó.Dá três sacudidelas e em cada uma, uma frase)Cala a boca, seu miserável... Cala a boca, seu cachorro...Cala a boca, seu canalha... (Tonico soltaum grito abafado, de dor. João Carlos, assustado,larga-o, encosta-se à mesa. Tonico cambaleia,procurando apoio na cadeira)


TonicoEle me pôs aqui de fiscal por isso, só por isso...(reprimindo grande dor, verga os joelhos, e caisentado na cadeira, tendo derrubado um pratono chão) Primeiro foi o pai... Depois... O filho...(e cai, arrastando a cadeira consigo)(Os presentes assistiram, estatelados, ao final dacena. Passado o momento de estupefação, Afonso,Quinzinho, Boaventura e o tabelião vão emsocorro, carregando-o até o quarto e estendendo-ona cama. Afonso ausculta-o e toma-lhe opulso. Outro afrouxa-lhe a roupa. Outro tira-lheos sapatos, todos falando ao mesmo tempo)142Foi o coração...BoaventuraQuinzinhoUm ataque... Veja o pulso... (João Carlos ficaestarrecido, na sala, encostado à parede. Lina eBastiana aparecem. Mariana, imóvel, muda)Afonso(Voltando à sala) Parece que está morto. Foifulminante...João Carlos(Muito excitado) Fulminante o quê? (e corre aoquarto. Afonso o acompanha) Será que morreu


por minha causa? Meu Deus!... Será que o matei?...AfonsoCalma, João Carlos. Deve ter sido derrame cerebral.Um derrame fulminante. Você não teveculpa...João Carlos(nervosíssimo) Mas sacudi tanto ele, meu Deus!Por que viemos até aqui? Eu não queria... Eunão queria...Afonso(Contendo-o violentamente) Cala a boca, rapaz.Quando você o agarrou ele já estava com oderrame. (João Carlos vai ainda responder, masAfonso dá-lhe uma sacudidela imperativa. Omoço se cala. Sai do quarto e senta-se numa dascadeiras da sala. Lina, maternalmente, serve-lheum copo d’água)143Tome...LinaJoão Carlos(Sorvendo rapidamente) Obrigado...AfonsoVá à cidade imediatamente. Traga o médico eo delegado.


Mariana(Aflita) Para que delegado, Afonso?AfonsoÉ melhor. Para resguardo de qualquer complicaçãofutura. É bom que o caso seja perfeitamenteesclarecido.Boaventura(que entrou na sala seguido de Quinzinho) Não épreciso, doutor Afonso. Nós vimos tudo. O moçonão tem culpa nenhuma...144QuinzinhoO compadre já era um homem condenado. Maiscedo ou mais tarde, tinha que acontecer...Afonso(depois de hesitar um segundo) Só o médico, JoãoCarlos. (João Carlos sai)BoaventuraPara atestar o óbito... Porque ele está morto...Irremediavelmente morto. No seu grande dia...No dia em que ficou dono da fazenda... (ouve-seo barulho do automóvel saindo)A cena escurece completamente


Cena IINoite. Somente a luz do lampião na sala. Linaestá vestida de escuro, sentada em uma cadeira,junto à mesa, tendo Bastiana de pé, ao seu lado.Entra Lourenço.LourençoTudo pronto, dona Lina. Está tudo arrumado nasede, conforme a senhora mandou, o enterrovai sair de lá.LinaPois é... Trabalhou a vida toda... Lutou... Sofreu...Para isso. Ele queria se mudar para a sede hojemesmo. Foi feita a sua vontade.145Lourenço(choroso) Foi melhor assim. Agora o seu Tonicodescansou...LinaQuem está lá com ele? Vamos, Lourenço, toca osino. Chama o pessoal. Morreu o dono da fazenda.O dono da fazenda, ouviu?LourençoSim, senhora... (e sai)LinaBastiana, veja a lanterna, vamos até lá.


BastianaSim, senhora. (e se afasta para a cozinha)(Lina vai se levantar lentamente, quando surgeJoão Carlos. O moço pára à porta, fitando a mulher,indeciso, atrapalhado, comovido, pensandono que vai dizer. É um momento muito difícilpara ele. Por fim resolve-se e dá uns passos emdireção a Lina)João CarlosLina... Eu queria... Que você...146Lina(deixando-se ficar na cadeira, com calma, muitotriste) Vá, João Carlos, vá. O seu lugar é em SãoPaulo, ao lado de sua mãe. O meu é aqui. Nãose incomode, estou bem, muito bem... Semprecompreendi tudo... Nunca pensei que você...João CarlosNunca pensou o que, Lina.Lina... Que você ficasse comigo... Nunca... Não davacerto... Eu sabia... Ninguém precisou me dizer.Hei de guardar a lembrança de você. Isso paramim já é muito bom. (Estende-lhe a mão) Adeus,João Carlos. (João Carlos toma-lhe a mão e beijaareverentemente)


João CarlosAdeus, Lina. Agora o Paiol velho é seu. Ninguémo tirará de você... (vai até a porta, pára, volta-seno mesmo lugar e diz) Se for homem... Ensine-oa amar esta terra... Vale a pena... A mim nuncaensinaram... (sai)(Lina continua com o olhar fixo e perplexo. Chega-sea Bastiana e põe-lhe a mão carinhosamenteno ombro)LinaPaiol velho... Não... Não é meu... Ela disse quesempre pertenceu à família deles. (Olhando epondo a mão no ventre) E vai continuar na famíliadeles... (Levanta-se a senhora da fazenda.Ouve-se o toque do sino em funeral...)147Pano


Célia Biar, Eugênio Kusnet e Margarida Rey em SantaMarta Fabril S.A.


Santa Marta Fabril S.A.Peça em três atosEstréia: São Paulo, 2 de março de 1955,Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)MartaCleide YaconisJuliaMargarida ReyVeraCélia BiarTonicoFredi KleemannDona MartaDina LisboaClóvisLeonardo VilarCláudioWalmor ChagasMartuxa (6 anos)Vera Lucia AlcazarAcrísioWaldemar WeyNenê ParaísoOdette LaraMartuxa (21 anos) Elisabeth Henreid149DireçãoCenáriosAssist. direçãoExec. cenáriosFigurinosExec. figurinos femininosExec. figurinos masculinosMaquilagem/cabeleireirasEletricistaDireção de cenaAdolfo CeliMauro FranciniArmando PaschoalA. RibeiroDarcy PenteadoMaria PenteadoOdilon NogueiraL. TymoszenkoAparecido AndréSebastião Ribeiro


A ação se desenvolve em três épocas:1926 / 1933 / 1948Personagens1º ato 1926Marta 20 anosCláudio 25 anosTonico 35 anosVera 30 anosJulia 40 anosClóvis 44 anosDona Marta 60 anos1502º ato 1933Marta 27 anosCláudio 32 anosTonico 42 anosVera 37 anosJulia 47 anosClóvis 51 anosDona Marta 67 anosMartuxa 6 anosAcrísio 50 anosNenê 30 anos3º ato 1948MartaCláudioJulia43 anos47 anos62 anos


MartuxaAcrísio21 anos65 anosParentescoTonico tio de MartaVera irmã de Julia e mulher de TonicoJulia mãe de MartaDona Marta mãe de Julia e VeraNenê mulher de AcrísioMartuxa filha de Marta e Cláudio151


Primeiro atoInverno de 1926. Mais ou menos 5 horas da tarde.Momentos antes de se abrir o pano, ouve-seuma vitrola gritando: Yes, sir, that’s my baby eruídos em cena de quem dança em ritmo movimentado.Abre-se o pano. Um living. Gente ricae de bom gosto. Em cena: Julia e Marta, mãe efilha. Marta ensaia uns passos de charleston, aosom da Brunswick. Logo desiste, fazendo pararo disco.MartaNão dou mesmo para isso.152JuliaAcho que você pegou muito bem. Agora é sóquestão de dançar.MartaNão acerto com a batida de salto. (Experimenta.Erra.) Olha aqui; quando bato o salto, perco oritmo.JuliaPois não bata o salto. Não é essencial. Com otempo você vai se aperfeiçoando.MartaE então sai da moda. Não acredito que duremuito tempo.


JuliaTodo mundo só dança isso. Que pegou, pegou.(Ouvem-se vozes fora de cena de gente que seaproxima do living. Discussão de casal, mais oumenos nestes termos)VeraVocê é muito convencido e muito irritante!JuliaEstão aí. Começam bem!TonicoCom cinco cartas de naipe não se abre sem trunfo.Não é, dona Marta?153Sua avó também.Julia(O living está com pouca claridade de uma tardede inverno. Marta acende as luzes)VeraVou parar de jogar com você. É a última vez.Dona MartaVieram discutindo o tempo inteiro. Esse bridgeé um inferno!


Tonico(Entrando com Vera) Você precisa adotar o sistema...VeraPois fique com o seu sistema que eu fico com omeu.TonicoVocê não tem sistema nenhum. Marca conformea temperatura do dia!154Vera(Gritando) Deixe eu marcar como bem entender!Meu Deus! Que horror!(Vera é uma superexcitada, para não se dizermalcriada e voluntariosa)Dona Marta(60 anos, bem sacudida) Não briguem, por favor.Ainda proíbo esse bridge na família.Julia(Indo ao encontro do casal) Começaram bemhoje.Vera(Beijando Julia) Como vai, Julia? Eu ainda vouarranjar outra roda. Não agüento Tonico, comessa mania de doutrinar.


TonicoNão é doutrina, Julia. É elementar. Vera já seconvenceu. Quando grita é porque já viu quetenho razão. Como vai você? Que é do Clóvis?Já passa das 5 horas.JuliaO melhor é arranjarmos duas mesas. Casal nãopode jogar junto.VeraNão é isso, Julia. O Tonico me enerva! Me deixalouca!TonicoÉ natural. Sou seu marido.155Dona MartaAi, Ai, Ai! Não vamos entrar noutro terreno!MartaBoa tarde, vovó. Como vai a senhora? Não precisavater vindo. Ia dar um pulinho lá, antes dojantar.Dona MartaOra, menina, não estou tão velha assim. Aindaposso sair de casa para beijar minha neta no diado seu aniversário!


(Dona Marta beija e abraça a neta. Simultaneamentecom esse diálogo, Vera, Julia e Tonico aindadiscutem, em voz mais baixa, predominandoas frases da avó)Vera(A Julia) Tonico não sabe nada. E tem a maniade doutrinar.JuliaVocê tem razão, Tonico. É muito cacete...TonicoTem razão nada. Com cinco cartas de naipe...156Dona MartaMeus parabéns, está ouvindo? Muitas felicidades!Juízo, hein?(A discussão entre os três se interrompe)MartaMuito obrigada, vovó. Muito obrigada.Dona MartaVinte anos. Já é tempo de pensar em coisas sérias!VeraMuitas felicidades, Marta!


TonicoVenha de lá um abraço, menina bonita. (Abraçam-se)MartaMuito obrigada, tia Vera. Muito obrigada, tioTonico.Dona MartaVocês com esse bridge até já iam esquecendo oaniversário da minha neta!VeraNão senhora! A prova está aqui. Olhe, para você.São os últimos sucessos de Paris. (Entrega um embrulhoque Marta abre. É um álbum de discos)157MartaÓtimo! (Lendo os nomes das músicas) WhenBuda Smiles, Cecilia, Valentine... Formidável!Justamente os discos que tenho procurado.Muito obrigada, tia Vera. (Vai à vitrola para tocaros discos. Enquanto Marta toca os discos naBrunswick, dona Marta senta-se na poltrona e adiscussão do bridge recomeça)JuliaComo foi mesmo a marcação de Vera?TonicoEla tinha cinco copas de rei e dama...


VeraNão senhor! Cinco copas de rei e valete...TonicoFaça o favor de deixar eu falar.VeraOlha, Julia, eu tenho certeza.TonicoCerteza coisíssima nenhuma!158Vera(Gritando) Certeza... Estou dizendo, certeza!!!(Entra Clóvis. Homem de seus 40 anos)ClóvisCerteza? Quem pode ter tanta certeza assim?...TonicoAí está o homem; vamos ao jogo. (Dispõe-se asair da sala)Dona MartaNão se tem outro assunto mais interessante.ClóvisEspera aí, Tonico. Em primeiro lugar a aniversariante.(Vai até Marta, que pára com a vitrola)Venha cá, Martinha. (Dá-lhe um grande abraço,Marta deixa-se levar, não com o mesmo entusias-


mo) Meus parabéns e muitas felicidades. Olheuma lembrancinha para você. (Dá-lhe um vidrode perfume, embrulhado em papel de seda)TonicoVamos, gente, que temos pouco tempo.Dona MartaEspere aí, homem! Que impaciência.MartaMuito obrigada, doutor Clóvis.Tio Clóvis.JuliaClóvisNão há meio de ela me chamar de tio.159Dona MartaPois não é tio mesmo. Que história é essa?ClóvisBoa tarde, dona Marta. Muito prazer em vê-la.Dona MartaBoa tarde, doutor Clóvis. Sai cedo para o joguinho,hein?ClóvisCedo? Examinar cocô de criança das 8 da manhãàs 5 da tarde, a senhora acha pouco?


Que perfume é?Nuit de Noel.Muito enjoativo.VeraMartaVeraClóvisMuito obrigado. Você, como vai?Mal, obrigada.Vera160MartaEu acho ótimo. Muito obrigada, doutor tio Clóvis.ClóvisVocê é um anjo, menina. Se não gostar, sejafranca. Trocaremos por um do seu gosto. É muitofácil.MartaAdoro Nuit de Noel. Sempre quis esse perfume.JuliaEu também gosto muito.ClóvisBoa tarde, Julia. Você está hoje... Um... Grandslam.


JuliaCom duas down redobradas. Marta faz hoje 20anos. E isso eu não posso esconder de você.ClóvisMartinha, como estamos jovens! Que você medeu trabalho! (Abraça a moça)TonicoVamos, professor. Venha nos dar umas lições.ClóvisVocê já está diplomado, Tonico.TonicoEstá vendo? Pois quando digo à Vera...161VeraMas não quero que diga, pronto...JuliaVera não admite observações.VeraNão é isso. Mas você há de compreender que cadajogada que a gente faz, vem ele... Você jogouerrado... Porque era assim... E não assim. Vocênão devia jogar o ás... Era o rei. Você devia cortarno morto... E tá, tá, tá... té, té, te. É horrível.E ainda mais o Tonico, que é analfabeto!


Eu, analfabeto?TonicoVeraÉ! Você. Analfabeto. B-A-BÁ!TonicoEstá bem. B-A-BÁ. Está bem. Sabe por que, Clóvis?Porque ela tinha cinco copas de rei e dama.162Rei e valete.Rei e dama.Rei e valete.VeraTonicoVeraJuliaNão vamos discutir mais, que horror!Vera(Voz de choro) Não jogo mais com o Tonico. Nãoé possível. Não jogo mais. (Desanda a chorar)ClóvisOra, Verinha, que é isso? Que tolice!Dona Marta(a Marta) Veja um calmante pra ela. Água demelissa.


Julia(a Tonico) Você é um sádico. Vamos, Vera, nãodê confiança. (Marta vai ver o calmante)TonicoVocê está vendo? Quando se tem razão é assim.Acaba chorando como uma criançona.Cala a boca, Tonico.JuliaVeraPois eu não jogo mais com você, está ouvindo?Nunca mais.Dona MartaVocê não devia mais é jogar bridge. Assim nãoé divertimento.163VeraNão é mamãe. É o Tonico. Ele me deixa louca.Jogo muito bem com todo mundo. Ninguém sequeixou...Por cerimônia...TonicoDona Marta(a Tonico) Fique quieto.


VeraA senhor está vendo? Não é possível! Deixa elefalar. É prazer dele me irritar.ClóvisVerinha, vamos quebrar a castanha do Tonico.Vamos jogar fixos. Eu e você contra o Tonico ea Julia...VeraNão. Não vale a pena. Vou sacrificar você. Souanalfabeta...164ClóvisVocê joga muito bem. Pelo menos, muito melhorque ele. (Marta trouxe o calmante e Vera bebe.Marta vai novamente à vitrola tocar os discos queganhou de presente)VeraObrigada, Marta, deixa. É melhor eu não jogar.Mamãe joga. Eu fico aqui. Nem apareço lá paradar palpite.Dona MartaEu não posso. Não tenho nem tempo nem paciência.Não joguem hoje. Vamos conversar.TonicoEntão vou ao clube.


JuliaVamos, Tonico. Vamos, Vera. Deixem de bobagem.Eu e você contra os dois.E caro.Marque o preço.TonicoClóvisTonicoCinqüenta réis o ponto.Fechado.Não, Clóvis.ClóvisVera165ClóvisQue não o quê. Vamos ganhar. E assim tiramosa garganta dele.Dona MartaMarido contra mulher não adianta.TonicoAdianta sim. No jogo temos economia separada.Perdeu, pagou. Se não tem dinheiro, compro asações dela. Ela tem mais ações na Santa Martado que eu.


Dona MartaMeu Deus! Que cabeça a minha! Já ia me esquecendo!Martinha, pare com essas coisas horrorosas!Que é da minha bolsa? Venha cá, menina.Pegue minha bolsa aí. (Marta suspende o disco,pega a bolsa e vai entregar à avó) Vocês nãoparam de brigar. Está aqui. Ia me esquecendodo principal. O seu presente, menina.MartaOra, vovó! Que trabalho! Não precisava se incomodar.166Dona MartaTrabalho nada, Martinha. Estava mesmo à mão.Não fui buscar em Paris e é muito mais importanteque essas músicas horrorosas que a sua tialhe deu. (Dá um grande envelope à moça. Todosse interessam pelo presente)Marta(abrindo o envelope e examinando o conteúdo)Muito obrigada, vovó. Que é isto, meu Deus?Dona MartaNão sabe ler? Leia, menina.Marta(lendo) Santa Marta Fabril Sociedade Anônima...500 ações! (Contando 5 títulos) Duas mil e qui-


nhentas ações... Nossa Senhora, o que é que euvou fazer com tudo isso?...Dona MartaQue é que vai fazer com isso? Ainda pergunta?...TonicoVenda para mim. Compro já.Dona MartaEngraçado! Compra coisa nenhuma! Que você játem muitas! Está querendo a maioria, é?...TonicoEstou brincando, dona Marta. É para ela avaliaro significado desse presente.167JuliaFoi o melhor presente que mamãe podia lhe dar,minha filha.Marta(abraçando e beijando a avó) Muito obrigada,vovó.Dona MartaNão há de que, minha neta. Você hoje é tambémacionista da Santa Marta. Ela é de nossa família.É a nossa própria família. Tem o meu nome, o


seu nome. É alguma coisa mais que uma fábrica.É nosso patrimônio, nosso sangue, nosso... Nosso“panache”, compreendeu?...Marta(meio atrapalhada) Compreendi, vovó, compreendi.168Dona MartaA Santa Marta é o traço de união da família. Aquise briga por qualquer coisa. Seu pai com sua mãe,Tonico e Vera, mas todos se unem em torno daSanta Marta. Julinha, você já devia ter incutidoessas noções no espírito de sua filha. Afinal, elajá tem 20 anos! Não é mais uma criança!JuliaE não é mesmo, mamãe. Aliás, você já está sedesempenhando muito bem dessa tarefa.TonicoVamos, Clóvis. Vamos, minha parceira. Não vaidar tempo para 6 rubbers.ClóvisPois é, dona Marta, estou pensando em fechar oconsultório às 4. Há pouco tempo para o bridge .Dona MartaE eu estava pensando em lhe pedir uma horapara as crianças da Sociedade.


ClóvisÉ melhor deixar suas crianças sossegadas, donaMarta.Dona MartaQuando se trata de um pouco de caridade, éassim que se responde, não é?ClóvisCaridade? Já faço até demais. 50% da minhaclientela não me paga.TonicoVou arrumando a mesa. Dá licença, Julia, VenhaVera. (saem)ClóvisÉ bem verdade que tenho muitos amigos.169Dona MartaPois é. Veja que disparate. O senhor não cobrajustamente dos ricos.JuliaDe nós, por exemplo.Dona MartaE os pobres, coitados, que paguem a consulta!ClóvisPobre vive porque é muito obstinado, donaMarta.


Dona MartaSe fossem todos ricos, quem tocaria nossos teares?ClóvisNem me fale, dona Marta. Por isso eu cuido delescom carinho e 50 mil réis a consulta, para maiorglória da Santa Marta Fabril S. A.Amém.Dona Marta170JuliaVamos, Clóvis, se não mamãe ainda acaba dandoem você...Dona MartaE não falta muito. Veja se me arranja tempo paraos pobres da Sociedade.ClóvisAté logo, dona Marta. Vou pensar a respeitoseriamente.Engraçado!Dona MartaClóvisAté já, Martinha. Muitas felicidades. E não váacumulando aniversários que me comprometemuito.


JuliaE a mim também. (saem de braços dados)Dona Marta(resmungando) Hum! Querem parecer dois garotos!Ele até já anda pintando os cabelos! Hum!Mas há de ver! Tem que cuidar dos meus pobres.E de graça!MartaNão se chame a senhora Dona Marta. Quer tomarqualquer coisa, vovó? Uma laranjada, umcafezinho?Dona MartaNão. Já estou de saída. Fiquei para conversarum pouco a sós com você, Martinha. Venha cá.Vinte anos, hein? Com a sua idade, menina, játinha dois filhos.171MartaAntigamente, casavam-se muito cedo, nãovovó?Dona MartaNem tanto. Casei-me com 17 anos. E acho, aindahoje, muito boa idade para o casamento. Masvocê já tem 20! Já era tempo de pensar a sériona vida.


MartaMas, vovó... Não faço nada de mais...Dona MartaPois é... Como vai o Cláudio?...Deve ir bem.MartaDona MartaVocê não gosta dele? Ele não gosta de você? Poisentão, o que está esperando? O moço tem 25anos. É, por assim dizer, da família. Trabalhador,educado e até... bonitão. Que mais você quer?172MartaNada. Sei que vou acabar casando com ele.Dona MartaEntão por que não ficam logo noivos?Não sei.MartaDona MartaOra, não sabe! Que tolice! Tudo tão certinho!Vocês já namoram há muito tempo, não é verdade?...É.Marta


Dona MartaEntão, menina? Tão bom que tenha calhadoassim! Ele já é da Santa Marta. Filho de grandeacionista. Diretor. Não é pessoa de fora. É umasorte. Não que isso seja essencial, Deus me livre!Se você não gostasse dele, eu não falava assim.É você quem deve escolher o seu marido. Deusme livre de insinuações e muito menos de imposições.E digo mais: quando vocês começaram anamorar eu percebi logo. Não pense que andodormindo e não vejo as coisas. Até desaconselheio namoro. Pergunte à sua mãe. Mas se deu certo,deu certo. Agora é casar, para não desandar.Marta(pensativa) Para não desandar. Aí é que está. Sehá esse perigo é que não está no ponto.173Dona MartaPerigo de que, menina?MartaDe desandar, como a vovó disse.Dona MartaQuem falou em desandar? Você não me entendeu.Oh! Meu Deus, como as crianças de hojefazem as coisas difíceis!...(entra Cláudio. Como a avó descreveu, 25 anos.Bonitão. Estritamente na moda. Jaquetão de


gola larga. Calças de boca-de-sino. Engominado,up-to-date. Cumprimenta a senhora, beijandolhea mão)CláudioBoa tarde, Dona Marta.Dona MartaBoa tarde, Cláudio.174CláudioDeixei o escritório por meia hora. Ainda tenho devoltar para fechar o expediente. Mas não podiadeixar de felicitar especialmente a aniversariante.(vai a Marta, beija-lhe a mão e abraça meioformalmente) Meus parabéns, Marta.Muito obrigada.MartaDona MartaMuito cuidado com essas fugidas do escritório.Olhe que Marta já é acionista da fábrica. Já podefiscalizar o seu serviço.Marta(mostrando as ações) Olhe o presente que vovóme deu: duas mil e quinhentas ações.


CláudioJá sabia, sua boba. Fiz o termo de transferência.Belo presente! Conto com o seu voto na próximaassembléia.Vamos ver.MartaDona MartaEsse menino vai longe. Ainda será o presidenteda Santa Marta.CláudioNão aspiro a tanto, dona Marta. Estou satisfeitíssimoonde estou. E muito contente com meuschefes. Não podiam ser melhores.175Dona MartaAssim é que é. Tudo tem seu tempo. É saberaproveitá-lo.CláudioHoje foi um grande dia para nós, Dona Marta...MartaMuito obrigada... Meu aniversário...CláudioNão, não é por isso. Sim, quero dizer... É por isso,é claro, nem podia ser de outra maneira... E como


é uma data feliz... Deliberamos, no dia de hoje...Fechamos o negócio com a caldeira.Dona MartaMuito bem! Apoiado!CláudioVamos nos ver livres da Luz e Força. Dentro deuns oito meses teremos energia própria.Dona MartaMas não será muito pesado para a fábrica?...176CláudioÉ. De fato. É muito caro. A caldeira e a turbina.Muito caro. Mas não havia outra alternativa. Épreciso ter-se independência, custe o que custar.Dona MartaA Luz e Força era um inferno!CláudioNem fale. Um serviço horroroso. Irregularíssimo.Prejudicando nossa produção. E nem se incomodaramcom nossas reclamações. E o prefeitoa cruzar os braços. Também, vai acabar. Lenha,temos de sobra. E sabe, dona Marta: vai nos ficarmais barato. Fizemos os cálculos.


Dona MartaPois que tudo dê certo. Deus ajuda a quem trabalha.MartaQuer tomar alguma coisa?CláudioNão, obrigado, estou por pouco.Dona Marta(levantando-se) Bem, vou andando.É cedo, vovó.MartaDona MartaTenho que ir. Até logo, Martinha. (beijos) E penseno que lhe disse. Até logo, Cláudio. Um abraçoa seu pai e parabéns pela caldeira.177CláudioMuito obrigado, dona Marta. Até logo.Dona MartaApareçam, ouviu? E não pensem que vou deixarvocês dois aí sozinhos. Não vê! Vou dizer à Julinhapara vir tomar conta de vocês.CláudioOra, dona Marta, pode ficar sossegada.


Dona MartaSossegada... pois sim, seu espertalhão. (e sai.Marta acompanha-a até a saída da sala. Cláudioestá junto à vitrola, no lado oposto à saída)CláudioVenha cá! (Marta se aproxima. Cláudio vai ao seuencontro e se abraçam num beijo cinematográfico.Afinal, Marta se desenlaça e diz sofregamente,em tom de brincadeira)178MartaUfa!... Quase fico sem ar! (vai à vitrola e põe umdisco) Veja o que a tia Vera me deu. De Paris.(e toca o Little Cecilia Green. Cláudio pega emsua mão e a conduz calmamente ao sofá, ondese sentam. De repente, Marta levanta-se e vaiespiar, por onde a avó saiu. E cai no sofá, aosbeijos, sempre ao som da música. Instantes depoisse desenlaçam, para tomar fôlego. Cláudioa encara, segurando-lhe as mãos)CláudioMarta: você quer se casar comigo?MartaCláudio: você quer não me repetir mais essapergunta?CláudioVocê gosta de mim?


Marta(Marta levanta-se do sofá e vai parar a vitrola)Mais ou menos.Cláudio(levanta-se e avança lentamente para Marta,em atitude de quem vai dar um bote) Mais oumenos... É?Marta(quando ele chega bem perto, finge que viu a avóentrar) Esqueceu alguma coisa, vovó?... (Cláudiose assusta e se apruma, mas não é ninguém)MartaVocê está vendo? Pode entrar alguém...179Cláudio(reinicia o seu ataque na mesma atitude) Podeentrar alguém, não é?... (e vai avançando em tomde brincadeira. Marta foge. Defende-se atrás deuma poltrona. Há um pega-pega. Fauno perseguindoDiana. Cláudio, sentindo essa situação,imita o fauno, fingindo tocar flauta e corre atrásda moça. Há um corre-corre, entre risos, gritinhose roncos de fauno, até que Cláudio consegueagarrá-la, caindo ambos no sofá. Mais beijos)Você quer se casar comigo?MartaNão. (mais um beijo)


CláudioQuer se casar comigo?MartaNão. (mais um beijo)Quer se casar...CláudioMarta(gritando) Quero! (Cláudio a solta e Marta fogedo sofá) Não, não e não! Você é louco, Cláudio!De repente chega gente aí...180CláudioEntão me responda de verdade, Marta.MartaA resposta já está dada. Não quero me casarainda.CláudioMuito obrigado pelo ainda.Não há de quê.MartaCláudioMas o que é que estamos esperando?...


MartaNão sei... Gosto de você... Nem podia ser de outrojeito. Mas... Não dá para casar com você!Não dá?CláudioMartaQuer dizer... Ah, não sei!Vamos, Marta.CláudioMartaNão tenho muita confiança...Em mim?Cláudio181MartaEm mim e em você também. Mas não é bem isso.Tenho medo...Medo de quê?CláudioMartaCasamento é por toda a vida. Enjoado, não é?CláudioQuando estou com você, nem penso nesse portoda a vida. É claro que é por toda a vida. Formidável,não é?


MartaNão acho. O por toda a vida me assusta. Você jápensou bem nisso?CláudioNão se trata de pensar e sim de gostar...MartaPois é. Eu gosto e penso. Penso muito. Por isso éque não me sinto capaz de casar com você.182CláudioVocê está vendo? Sabe que mais? Você não secasa comigo é de teimosia. Por espírito de contradição.Como todo mundo faz gosto pelo nossocasamento...MartaÉ isso mesmo. No fundo, você disse a verdade.Esse complô a favor do nosso casamento me irrita.Não sei bem por que, mas me irrita. É mamãe,é papai, é sua mãe, é seu pai, é vovó...CláudioMartinha, pense bem: por que eles teriam deser contra? É claro que estão de acordo. Amigose sócios!MartaÉ isso. Amigos e sócios. Principalmente sócios.Este casamento para eles é um arranjo notável.


É a preservação do patrimônio. É a consolidaçãoda dinastia da Santa Marta Fabril S.A. ...CláudioE que tem isso? Foi sorte eu gostar de você evocê de mim...MartaÉ pena que eu não tenha um irmão, porqueassim ele casava com a sua irmã e se construíauma verdadeira muralha chinesa, defendendoa fábrica.CláudioE você não acha isso formidável? Por que jogarfora uma chance dessas? Quando menos... É oútil ao agradável!183MartaPreferia que fosse o contrário: o agradável aoútil. Ou antes, só o agradável. Essa idéia de útilestraga tudo.Fita de cinema...CláudioMartaVeja só como você está se traindo. É isso mesmo:fita de cinema. Romance. Gosto de romance.


CláudioPara haver romance não é preciso haver desgraçanem miséria. Pode haver um casamento igual,conveniente, ao gosto de todos.MartaQuem sabe? Para mim preferia que você fosseum empregado da fábrica e não um diretor. Quetodo mundo fosse contra...184CláudioIsso é poesia. Se eu fosse empregado da fábrica,como ia conhecer você? É. É muito bonito pensarassim. Mas no nosso caso, é um absurdo. Se vocênão gostasse de mim, está certo. Nem eu estavaaqui. Nem sei onde você foi buscar essas idéias!Quer dizer que eu não posso me casar com você,porque posso me casar? Porque sou rico? Porquenossos pais são sócios numa indústria onde já estoubem colocado, com o futuro garantido?...MartaVocê não compreendeu. E é tão fácil!CláudioNossos pais se casaram ricos e não são muitofelizes?...Marta(não responde. Parece que Cláudio tocou noponto principal. Ela vai à vitrola) Olha aqui este


disco. Veio a propósito. (e toca o Moi, je fais çamachinalement)Julia(entra) Oh, Cláudio, você por aqui?...CláudioBoa tarde, dona Julia. Vim cumprimentar a aniversariante!JuliaFez muito bem. (a Marta) Que é de mamãe?Vovó já se foi.MartaJulia(remexendo gavetas) Quero um lápis. Não sabeonde tem?185CláudioTenho um aqui, dona Julia. Faça o favor.JuliaMuito obrigada. Não vai lhe fazer falta?Não senhora.CláudioJuliaAté já, Marta; é bom você ver se não falta nadapara hoje à noite.


Sim, mamãe.MartaJuliaVocê vem, não é, Cláudio?CláudioNaturalmente. Serei o primeiro entrar e o últimoa sair.JuliaMuito bem. (ouvem-se chamados de dentro, dopessoal do bridge, por Julia)186JuliaJá vou. A esta hora, o Tonico já enterrou o carteio.Até logo.Cláudio(beija-lhe a mão e Julia sai. Os dois ouvem amúsica. Cláudio canta com o disco) “Lorsque jeme suis marié celà n’a pas varié j’ai remplit tantbien que mal le devoir conjugal”.(Cláudio considera o que cantou e corre a pararo disco)MartaParece que o disco veio a calhar. Respondeutudo.


Cláudio(dando beijinhos na moça) Ora, Martinha, quebobagem! Você acredita em tudo, menos emmim!MartaNão diga isso, Cláudio. Apesar de tudo, gostode você, sabe?CláudioVocê não acha que a sua mãe é feliz?MartaNão sei. Sinto que não. Não queria para mim umcasamento... Não... Não vale a pena...187CláudioContinue. Seja franca comigo.Marta... Como o de papai e mamãe, por exemplo.CláudioNão entendo. Pois você não acha que deu certo?Que vivem muito bem?...MartaAcho que não deu nada certo. Ou então, secasa mento acertado é assim, para mim não interessa.


CláudioComo você é exigente! Estou com medo!MartaOs dois eram ricos, quase da mesma família. Nãohouve luta, não houve sacrifício, não sei... Achoque foi uma coisa muito sem graça. Tinha quedar no que deu...188CláudioMarta! Não estou entendendo você. Dar no quedeu, como? Pois são casados há mais de 20 anos,meu Deus! Sempre viveram juntos, decentemente.Criaram e educaram você. Têm uma posiçãoexemplar na sociedade. Têm um lar, uma casa,um ambiente agradabilíssimo. Seu pai trabalharegularmente na fábrica. Viajam. Levam umavida inteligente... Que mais você quer?...MartaMas não há amor entre eles! Você não compreende?Falta o principal!CláudioMas depois de 20 anos de casados você querque eles andem aos beijos pelos cantos? Eles játiveram o seu tempo. Agora já passou.


MartaQue passou nada! Mamãe é ainda muito moça.Papai também. Parece que vivem cada um deseu lado.CláudioNão é exato. Vivem um para o outro e os doispara você. Se respeitam. O amor se transformouem amizade. Há entre eles uma compreensãorecíproca. O que você pode saber da vida íntimadeles?...MartaNada. Mas sinto que um não significa nada maispara o outro. Se suportam, apenas. Aliás, commuita elegância.189CláudioNão diga absurdos! Eu, como homem, conheçomais seus pais que você...Que topete!MartaCláudio... Nesse sentido que estamos conversando. E possoafirmar que eles se adoram. Você não entendenada dessas coisas.


MartaVocê pensa que eu sou idiota? Que sou umamenininha de colégio interno?Cláudio(irônico) Não, você é uma sabida!MartaTambém não. Mas não é preciso ser muito sabidapara enxergar certas coisas...CláudioE o que é que você anda enxergando?...190MartaOra, Cláudio, eu não. Você, todo mundo...Eu também?CláudioMartaClaro! Ou você já se esqueceu?CláudioEsqueceu o quê? Vamos, desembuche, por favor.MartaVocê não se lembra de que você me contou umdia de uma briga de sua mãe com seu pai?


CláudioNão. Brigaram por quê?MartaPorque seu pai e o meu passaram uma semanano Rio, na pândega.Foram a negócios.CláudioMartaEu sei. Um dia de negócios. E o resto foi pândega.Ora, Cláudio. Nós mesmos comentamos isso aquicom a turma. Foi um escândalo na família.CláudioEstá certo. E o que você quer concluir daí?191MartaQue meu pai é um pirata, como o seu. Achapouco?CláudioOra, Marta, que novidade!MartaQue novidade, não é, engraçadinho?CláudioE você acha que isso tem muita importância?


MartaNaturalmente. Eu... Eu não seria feliz se meumarido fosse um pirata.CláudioNão seria feliz agora. Não depois de 20 anos decasada.MartaAh, você pensa assim, não é? Por isso que nãoquero me casar.192CláudioE quem é que disse que eu vou ser pirata?...MartaO seu modo de pensar. Os exemplos de casa. Todomundo é pirata. Os homens mesmo se gabamdisso . Acham natural, engraçado. Você pensa quenão sabemos disso? Estelinha me contou o quefoi o tio Tonico na Europa. E com papai devia tersido a mesma coisa. Deus me livre!Cláudio(representando) Martinha: juro que te amareia vida inteira, que nunca olharei para outramulher . Que depois de 20 anos de casados,ainda te estarei beijando assim... (beijo)... Comoagora.


MartaBom, hein? Se eu pudesse acreditar... Como é quevocê pode garantir? Nem você sabe... As coisasacontecem.CláudioSe todo mundo pensasse assim, não haveria maiscasamento. A gente quando gosta, tem que terfé...MartaEntão! Ainda me falta essa fé. Por isso tenhomedo de resolver, compreendeu? Compreendeu,inteligência rara?...CláudioEstá bem. O noivado fica adiado sine die. Então,volto com o meu presente. Até logo.193MartaQue presente é esse?...CláudioNão. Não é nada. Trouxe aqui o embrulhinho.Não tem importância. (e mostra uma caixinha deanel embrulhada em papel de seda)MartaDeixa ver. (e avança)


CláudioNão senhora. Fica para o outro aniversário.MartaMas é presente de noivado ou de aniversário?Deixa ver, faz favor.CláudioVou mostrar. De longe, hein? (abre o embrulhoe mostra o anel)Marta(arranca-lhe das mãos e corre com o anel) É lindo!Você tem gosto!194Me dá!CláudioMartaNão. Afinal é um presente, por hoje.CláudioNão senhora. Para isso vou comprar uns livros,ou uns discos, não é?...Marta(reflete. Tira o anel do dedo e o oferece a Cláudio)Está bem. Fique com ele.CláudioNão, Marta. Estou brincando. É seu. Só pode serseu. Pelo aniversário, vá.


MartaAnel de brilhante? De aniversário? Não pode ser.Mas eu aceito. (beijos)CláudioMeu bem, você é um amor!MartaÉ preciso ter muito fôlego para resistir à pressãodo ambiente, à Santa Marta Fabril um anel debrilhante, e além do mais...... Além do mais...CláudioMarta... Gosto de seus beijos. (beijam-se) Então vamoscasar logo, antes que eu desista.195CláudioIsso mesmo! Gosto das decisões momentâneas.Martinha: só queria dizer uma coisa a mais paravocê. Para concluir nossa conversa. Compreendotodas as suas dúvidas, suas incertezas, sua faltade fé. Isso tudo é da vida. Será que existe a felicidadecompleta?... Definitiva? Então? Hoje estoufelicíssimo. É o que importa. Eu adoro você. Vocêgosta de mim. É o que importa.MartaVamos aproveitar o presente...


Cláudio... Que o futuro não será tão negro como vocêpensa. (beijos) Até logo, Martinha. Já passei dahora. Hoje à noite estoura a notícia.MartaNão vai ser muita surpresa para a família!CláudioNão faz mal. É até melhor. Até a noite, meu bem.(mais um beijinho e Cláudio sai)196(Marta ainda fica na saída, dá um adeus final eentra lentamente. Examina e reexamina o anelque está em seu dedo, fica pensativa. Na realidadenão está muito entusiasmada. Vai à vitrola.Começa a dar corda. Desiste. Afinal decide-se.Apaga a luz maior do living. Fica apenas a de umabajur. Marta procura o canto escuro, na penumbra,e senta-se numa poltrona, junto à vitrola.Ouvem-se passos e a voz de Julia em direçãoao living. Julia entra. Não dá pela presença dafilha e começa a procurar qualquer coisa numagaveta, no canto oposto à poltrona. Nisso, entraClóvis, de mansinho e sem dar tempo a qualquerreação, enlaça Julia e a beija. Esta se desprendeassustada, não sem ter aderido ao beijo)JuliaVocê está louco! Vá embora!


ClóvisEntão, amanhã, sem falta?...........Às três e meia...........Até amanhã.JuliaClóvisJuliaClóvisJuliaVocê não vem hoje à noite?197ClóvisSim. Mas amanhã é que interessa.Vai.Até amanhã (e sai)JuliaClóvisJulia(Ajeita o penteado, desiste de procurar na gavetae acende a luz central. Vira-se e leva um sustoquando dá com Marta sentada na poltrona, de


olhos esbugalhados, perplexa. Há uma pausainstantânea. Julia se refaz e começa a representar,notando-se ligeira afetação no seu diálogo)Você estava aí?...Marta(De olhos arregalados, afirma com a cabeça)JuliaViu o maluco do Clóvis? Que homem sem modos?Vi.Marta198Julia(não esperava essa resposta. Muda de atitude.Sempre estudada) Viu o quê? Que é que vocêestá pensando?...MartaNada. Só disse que vi.O quê?JuliaMartaO doutor Clóvis beijar você!JuliaOra! Isso é brincadeira. Há 20 anos que conheçoo Clóvis e ele sempre tem essas manias. Mas um


dia desses dou-lhe o basta, à minha maneira, epronto.Marta(levanta-se sem dizer nada. Mas continua perplexa,assustada)JuliaQue é isso? Que cara é essa?MartaEle marcou encontro com você amanhã, às trêse meia... Sem falta.JuliaVocê está louca, menina! Marcou coisa nenhuma!Ah! É claro! Amanhã tenho bridge na casa daVera, a essa hora, é só.199É só...MartaJuliaEntão? Você não acredita? Você não acredita,minha filha? (Marta não responde) Era só o quefaltava. Esse é o resultado de você andar bisbilhotando.Que idéia é essa de sentar-se aí, noescuro? Que culpa tenho eu se um maluco mepega distraída e quer me beijar?...


Mas ele beijou.MartaJuliaBeijou! Beijou! Que é que tem isso? Até na frentedo seu pai. Somos amigos há 20 anos. Ele criouvocê.Não tem nada.Marta200JuliaPois não tem mesmo. E quanto ao bridge, pergunteà Vera. Pode telefonar já para ela, já quevocê chegou ao ponto de duvidar de sua mãe.Não é preciso.MartaJuliaVeja como as aparências enganam. É sempre bomter-se explicações. Quem não deve, não teme.MartaPois é. Tudo tem explicação.JuliaO que você estava fazendo aí, sentada na poltrona?


MartaNada. Estava pensando. Eu... O Cláudio... Acabamosde ficar noivos. Ele me deu este anel!JuliaBravos! Muito bem! Até que enfim! Meus parabéns,minha filha! (Aproxima-se de Marta evai beijá-la, com efusão. Esta, porém, não podedisfarçar o seu sentimento. Instintivamente recuao rosto. Julia percebe e se afasta, mudou deatitude. Já não está mais representando. Estáfuriosa, com uma fúria calma, fria) Está bem!Que seja! Você viu! Você não aceita explicações.Você acha que sua mãe é uma mentirosa, uma...Uma... Leviana! Pois pior para você! Case-se como Cláudio. Seja feliz! Suma-se!201Marta(não responde. Vai saindo lentamente. Quandochega à porta, volta-se, enche-se de coragem eresolve enfrentar a situação) Mamãe, não adiantame enganar. Eu vi tudo. Por infelicidade minha.Por desgraça minha. Mas vi... Claramente.JuliaNem tudo o que a gente vê resulta no que sepensa.


MartaMamãe: da minha boca nunca sairá nada a esserespeito. Mas, para mim, despencou tudo...Tudo.JuliaNão preciso do seu silêncio. Não tenho medo. Soucapaz de contar tudo ao seu pai e ele julgará.MartaPapai não pode julgar.202JuliaE nem tem autoridade para isso, fique você sabendode uma vez por todas.Eu sei.Sabe o quê?MartaJuliaMartaVocês não têm mais nada um com o outro. Eusei... Há muito tempo que sei.JuliaPois então saiba de mais uma coisa: não tenhonada com o Clóvis, viu? Nunca tive e nunca terei.Mas se tivesse, estaria no meu direito...


MartaIsso não. Direito, não.JuliaDireito... Ou qualquer nome que tenha. Nãoimporta. Queira Deus que não aconteça no seucasamento o que aconteceu no meu... (começa achorar. Procura se conter, mas desanda no choro,sentando-se à beira do sofá)Marta(mais afável, porém, sempre sem se entregar) Eusabia que papai e mamãe nunca foram felizes.Desde que me tenho por gente, percebi isso. Mas,viver assim, cada um de seu lado?...203Julia(chorosa) E você queria que eu me separasse,desquitasse?... (Marta não responde. Teve medode responder afirmativamente) Sabe o que éuma mulher separada? Uma divorciada? Nestasociedade de bárbaros? Servir de pasto para essagente! Para essas línguas-de-trapos! (Julia seinflama, se enche de razões. Levanta-se. Já nãochora. Começa a aumentar o tom de voz) E sabepor que não nos separamos?...MartaMamãe, não fale alto, pelo amor de Deus.


Julia(gritando) Falo sim. Que todo mundo saiba. Vaisaber um dia. Quanto mais cedo melhor. Não nosseparamos, não foi por sua causa não, que tinhaa avó para ficar com você. Lá, sempre era melhorpara você, que não assistia às nossas brigas...Mamãe, por favor...Marta204JuliaNão nos separamos... Parece ridículo... Mas é apura verdade... Não nos separamos por causa daSanta Marta Fabril Sociedade Anônima. Para nãodividir as ações. Para não perder a maioria. É issomesmo. É a pura verdade. O traço-de-união dafamília. Eu e seu pai... Toda a família... Só entramosem acordo quando se trata da Santa Marta.O resto é briga, incompreensão... Tudo. (Julia saiinopinadamente)(Marta fica só em cena. Anda de um lado paraoutro. Considera o anel que tem no dedo. E seatira no sofá, num choro convulso)Fim do primeiro ato


Segundo atoCena IInverno de 1933. Antes de abrir o pano, ouve-seo recitativo de criança:Paulista eu sou, há quatrocentos anos:Imortal, indomável, infinita,Dos mortos de que venho ressuscitaA alma dos bandeirantes sobre-humanos.Terminada a estrofe, começa a se abrir o panolentamente, sem se interromper o recitativo:Tenho orgulho dos nossos altiplanos.Tenho paixão da gleba circunscrita.Quero morrer ouvindo a voz benditaDos pausados cantares paulistanos.205O mesmo living, completamente modificada adecoração. A parede ao fundo não é mais detijolo; é feita em retângulos de vidro fosco, tipolalique, vendo-se desenhado em relevo, no centroda mesma, o contorno de uma fábrica, comsuas chaminés.Em lugar visível, troféus da revolução de 32,pendu rados na parede; uma bandeira paulista,ladeada por capacete de aço e um quadro: Destacasa partiu um soldado da lei.


Em cena: Dona Marta, Julia, Clóvis, Vera, Martae Cláudio. Todos mais envelhecidos, fazendogrande diferença a velha, Dona Marta, já bemalquebrada, e Marta, que se tornou uma senhora.Tonico, com a barba da revolução, em vogaàquele tempo.Ouvem o recitativo de uma criança de 6 a 7 anos:Martuxa, filha de Marta e Cláudio. A meninaprodígio continua com entusiasmo:206De minha terra para minha terraTenho vivido. Meu amor encerraA adoração de tudo quanto é nosso.Por ela sonho um perpétuo enlevoE, incapaz de servi-la quanto devo,Quero ao menos amá-la quanto posso.Palmas e mais palmas.TodosMuito bem! Bravo! Formidável! (e muitas frasese exclamações simultâneas)TonicoEssa menina é um colosso! É o símbolo da novageração! E que soneto de Martins Fontes!VeraRecitou admiravelmente! Menina viva! Bonitapoesia!


Dona MartaÉ muito inteligente essa minha bisnetinha!Julia(a Marta) Você precisa cuidar do senso artísticodela. Ela tem talento. Tudo agora depende debons professores.Marta(a Julia) São frases do discurso de Alcântara Machado,coligidas por Martins Fontes.CláudioMartuxa tem muito jeito para essas coisas.ClóvisNão exagere. Trata-se apenas de uma criançabem alimentada.207Viva São Paulo!!!Tonico(Um momento de silêncio. Ninguém esperavapor aquela atitude idiota de Tonico. A meninaficou onde estava, indiferente às exclamações,aproveitou a pausa e correu em direção à saída.Corre, querendo sair da sala, sem dizer palavra)Cláudio(peremptório) Martuxa, vem cá. (A menina estaca,mas não se vira)


JuliaVenha cá, Martuxa. Como é que você vai saindoassim, sem pedir licença, sem se despedir? É muitofeio para uma menina bonitinha como você.CláudioE Marta nem se incomoda. Como se não fossecom ela.Marta(Muito suave) Vem, filhinha, dê um beijo em vovó.Seja boazinha, vamos. (A menina empaca)208Dona MartaDeixe a menina ir brincar.CláudioA senhora me desculpe, mas isso não admito.Martuxa, obedeça sua mãe.(A menina obedece constrangida, mas não querbeijar ninguém. Trata-se de uma menina rebeldee mal-educada. Estende a mão a um, a outra,friamente; cada qual tem uma palavra de carinhocom a criança, que não dá a menor importância.Quando vai se despedir da velha, apenas estendendoa mão, Cláudio ordena enérgico)CláudioNão foi assim que você aprendeu. Vamos, comoé? (A menina então, faz reverência, dobrando


os joelhos. Dona Marta a puxa para seus braços,beijando-a)Dona MartaCoitadinha! Que faça como quiser. Venha comigo.Vamos ver os seus brinquedos. (Levanta-secom dificuldade, saindo da sala resmungando,levando a menina)CláudioMarta teimou em não educar a menina. Quistratar uma nurse; não deixou...TonicoE está certíssimo. Quem educa os filhos é a própriamãe não uma fraulein que a gente nemconhece nem sabe donde veio.209VeraIsso é muito fácil de se dizer. Por que você nãocuidou de Estelinha?TonicoIsso é tarefa da mãe. Minhas obrigações sãooutras...VeraSim ... É clube... É almoçar no clube... Jogar noclube... Jantar no clube...


TonicoPor favor, Vera, não comece...JuliaEm certo ponto, o Tonico tem razão. A mãe nãodeve abandonar a criança a uma nurse qualquer.Mas desde que venha bem recomendada...CláudioÉ isso que tenho dito...JuliaA gente é que não pode ter a vida sacrificada...210MartaQuem não quer sacrifícios não se casa.ClóvisPode se casar... Mas não tenha filhos.CláudioE você teria que mudar de profissão.VeraIsso tudo é teoria. Na prática, queria ver quehomem ficava em casa mimando criança. Vocêsfalam, falam...TonicoE você. Fala, fala! Mas nem vê sua filha meiahora por dia.


VeraMeia hora por dia? E você? Nem cinco minutos.Passa o dia fora.Não sou a mãe...TonicoVera(ameaçadora) Não me amole, Tonico. Faça ofavor de não me amolar.MartaVamos dar por encerrado o assunto. Todos podemter suas razões. Vocês me desculpem, possoestar errada; mas quem educa minha filha soueu mesma.CláudioEduca... Se isso é educação!211MartaDo meu modo é. Quero que Martuxa seja umamenina espontânea...Malcriada...CláudioMartaÉ melhor que ser fingida e hipócrita.ClóvisMuito bem, Marta, muito bem!


JuliaMuito bem por quê? Não acho que esteja tãobem assim, não.MartaVocês educam os filhos para seu prazer e nãopara a felicidade deles. Eu quero educar paraela, para vantagem dela.JuliaVocê sempre foi muito bem-educada.MartaE ganhei muito com isso?...212JuliaGanhou, sim senhora! Você sabe muito bem queganhou! Não seja ingrata!...CláudioClaro, dona Julia. Ela fala por falar. Não me casa riacom ela se não fosse uma moça fina, sociável!(Daqui em diante o diálogo entre os dois casaisCláudio e Marta e Tonico e Vera é simultâneo, oumelhor, duas discussões ao mesmo tempo, cadauma para seu lado)VeraJá que vivemos em sociedade, tem que serassim .


MartaE você acha que foi um prêmio para mim, essecasamento?...TonicoAssim como? Furiosa como você é?CláudioE por que não? Não foi um bom casamento?...VeraNão. Bem educada como eu sou e não grosseiroe implicante como você é.MartaTanto não foi que não vou educar minha filhacomo você quer...213TonicoImplicante é você. Malcriada e voluntariosa.CláudioAh! Ah! Ah! Era só o que faltava!VeraTonico, não me provoque!Marta... Para a alta sociedade!TonicoNão estou provocando. As coisas são o que são.


CláudioQuem manda na educação da menina sou eu.VeraEu me separo de você, Tonico. E levo Estelinha.MartaVocê manda. Eu educo.TonicoÉ quando quiser. Você já disse isso mil vezes. Maslevar minha filha, não senhora.214Cláudio(levantando mais a voz) Educará como eu quiser!Vera(aos gritos) Levo. Você não tem direito. Levo,levo e levo!Marta(no mesmo tom) Educarei como eu quiser!Tonico(aos gritos) Está certo! Chega!!! (Nesse momentoentra dona Marta e se espanta com a algazarraprovocada pela discussão)Dona MartaQue é isso, meu Deus? Onde vocês pensam queestão? Que coisa mais desagradável! Assim, não


é mais possível a família se reunir. Se continuarema brigar desse jeito, não me verão mais!Nunca mais!MartaDesculpe, vovó. Isso não acontecerá mais.VeraÉ o Tonico, mamãe, que vive me amolando.TonicoNão, dona Marta... (A um gesto de Julia, Tonicointerrompe a nova discussão que ia seesboçando)ClóvisUm brinde à dona Marta! Viva dona Marta, afundadora da Santa Marta Fabril SociedadeAnônima!215TodosViva! Viva! (O brinde salvou a situação. Todosbebem e abraçam a velha)Tonico(a Vera) Dá um abraço aqui, mulher. (Vera titubeia,mas vai a Tonico, solicitada por Julia) Muitobem. Obrigado, cunhada. (Abraços e beijosentre Vera e Tonico) (Eufórico. Ainda abraçadoa Vera)


Paulista eu sou, há quatrocentos anos,Imortal, indomável, infinitaDos mortos de que venho ressuscitaA alma dos bandeirantes sobre-humanos.Muito bonito. Bonito e exato. Você devia ensinara outra, Marta: Ser paulista é ser grande nopassado...MartaNão ensinei nada. Foi mamãe.216TonicoMuito bem, cunhada. É isso mesmo. Precisamoscriar uma rapaziada nova, uma mentalidade decombate, uma juventude de revolução, de 23de Maio, de MMDC, de 9 de Julho, me dá outrouísque aí, Cláudio, uma mocidade pró São PauloFiant Eximia. Vamos à música. Bota o disco lá,Vera.(Vera põe o disco da revolução na vitrola. Tonico,muito entusiasmado, acompanha com gestos.Cláudio lhe serve o uísque. Quando a músicatermina, Tonico, inflamado, finge que dá unstiros. Está dizimando um exército.)TonicoPá Pá Pá Pá Pá Pá ... tchi bum. Pá... Viva SãoPaulooooooo!


VeraVivaaaaaa! (E os dois sorvem um gole de uísque)ClóvisVocê pode criar a juventude que quiser, mas nadade barbas. Para que essa barba toda? Já é tempode se passar a gilete nela. Todo mundo já sabeque você esteve na trincheira, que você é herói;que quase morreu...TonicoMinha barba não é ostentação. Não preciso disso.É um voto. Lutei pela Constituição. Esta barbacresceu nas trincheiras, por uma Constituição, esó a rasparei no dia em que for promulgada essaConstituição.217ClóvisEstá bem. Estou ciente.TonicoVocê não entende disso. Você viu fogo de perto?Você andou em trem blindado? Pegou no paufurado? Sabe lá o que é 23 de Maio?Sei sim.ClóvisTonicoVocê caçoa porque não estava no embrulho,como eu, aí na fogueira. E vi você sim, no 23 de


Maio, como não? Estava apreciando o movimento,ali escondido, na janela do seu consultório.ClóvisNão me lembro. Mas é bem possível. Por que descerpara a rua? Da janela é menos cansativo...Menos perigoso...TonicoClóvisQue seja! Você esteve lá. Que é que você fez?Hein, Tonico, que é que você fez?218TonicoSó sei que vim rouco para casa.ClóvisPois é. Fez gritaria, nada mais.TonicoNão vou perder tempo discutindo esse assuntocom você... Ser paulista é ser grande no passado...Você nem parece paulista... Paulista eu souhá 400 anos...ClóvisVou conferir na genealogia.TonicoUm marmanjão desses e nem se apresentou!


JuliaO Clóvis não topou o movimento.ClóvisNão sou de topar movimentos. Sou é da minhaclínica.MartaSe ele estivesse na trincheira, quem teria salvoMartuxa?...Clóvis(a Tonico) Você está vendo? Se eu estivesse natrincheira, vocês não estariam ouvindo Martuxaaqui, hoje.219Dona MartaMuito bem, doutor Clóvis. Nem me fale! Você foio verdadeiro herói. Passou noites e noites ao ladoda minha bisneta. Até que venceu a crise.ClóvisNão sou herói, dona Marta. Sou médido. Alimentocrianças, salvo vidas e também... Passo atestadosde óbito. Não sou de briga, não sou político,e em matéria de valentia e demonstraçõesde força, sou como aquele que me disse: Maisvale um minuto de covardia que herói morto eenterrado toda a vida.


VeraMas Tonico não morreu nem está enterrado.JuliaNão me venha dizer que Tonico foi herói!VeraTonico fez o que pôde. Esteve no 14 de Julho,basta isso...JuliaTodos aqui lutaram por São Paulo. Não foi só oTonico.220VeraLutaram... Lutaram. Talvez seja força de expressão.(Aqui começa nova discussão, com vozessimultâneas entre Vera e Marta de um lado eCláudio e Tonico de outro)MartaLutaram, sim senhora, por que não?VeraServir de estafeta entre o quartel-general e Quitaúnanão é lutar, ao que me parece.CláudioEstafeta, não senhor. Agente de ligação.


TonicoServiço de retaguarda. Não tem cheiro de pólvora.MartaCláudio foi até o fim com o serviço. E Tonico nemchegou ao meio.CláudioVocê deu o pira. Abandonou o batalhão.VeraPorque ficou doente. Doente de revolução.TonicoAbandonei, vírgula. Baixei a hospital para tratamento.221Dor de barriga.MartaCláudioDe uma disenteria. O que é isso? Tem cheiro depólvora?VeraDoença de trincheira.TonicoQueria ver você na trincheira com tiro de canhãoe ronco dos vermelhinhos.


Doença de medo.MartaCláudioGaranto que não ia ter dor de barriga.VeraMedo teve o seu marido.TonicoDor de barriga teve você, seu pombo-correio.222O seu.Barba de porão.O seu.Pombo-correio.MartaCláudioVeraTonico(Em meio à discussão, dona Marta retira-se dasala, em sinal de protesto. Julia intervém, enérgica,tocando violentamente um gongo. Todosparam, cientes do ridículo)JuliaQue vergonha! Parecem crianças. Mamãe saiuem sinal de protesto!


Marta(correndo para a saída) Vovó!JuliaVocês são incríveis. Não adiantou mamãe falar,ameaçar. Parecem cão e gato. Que família, meuDeus!TonicoFamília unida é assim. A gente desabafa logo,não se guarda ressentimento e continuamosamigos, não é, Cláudio?CláudioIsso nem se discute. Vamos fumar o cachimbo dapaz, com uísque e soda.223TonicoMuito bem lembrado. (ambos vão ao bar)VeraSerá que mamãe se foi embora?ClóvisDona Marta não abandonou o campo de batalha.Foi um golpe estratégico para conseguir oarmistício.Marta(entrando com a avó) Armistício mesmo. Porpouco tempo.


JuliaPor que pouco tempo? Temos mais motivos paradiscussão?É bem possível.MartaDona MartaSe continuarem brigando, vou-me embora enunca mais porei os pés nesta casa.JuliaVamos! O que está esperando? Solte a bomba.224ClóvisNão é melhor deixar essa bomba para amanhã?Vocês já devem estar satisfeitos por hoje.MartaNão é possível. Tem que ser agora; senão, serátarde.O que é?VeraTonicoVamos, Marta, o que é que há?MartaCláudio e eu convidamos o doutor Acrísio Vivantipara jantar.


(Espanto dos demais, menos da velha)Para quando?TonicoMartaPara hoje. Daqui a uma hora ele e a mulher estarãoaqui.Tonico(Solene e contrafeito) Ver, vamos embora. Já.Imediatamente.VeraSerá possível? Não estou acreditando! Espere,Tonico. Deve ser brincadeira.225Dona MartaQuem é Acrísio Vivanti?(Respostas quase simultâneas)CláudioUm nosso amigo, companheiro de nossa últimaviagem à Argentina.TonicoGros bonnet da ditadura; um dos agentes de ocupaçãoque o governo federal mandou para cá.


MartaAntes disso ele era nosso amigo. Assim que chegoua São Paulo teve a delicadeza de nos procurar,apesar de toda a sua importância.TonicoNão era razão para recebê-lo aqui!VeraE muito menos para jantar.226TonicoNeste solar, nesta casa de paulistas tradicionais...Vera(apontando para o quadro na parede) De ondepartiu o soldado da lei.CláudioAh! Agora não sou mais pombo-correio. Sou umsoldado da lei!TonicoNão, Cláudio, o assunto é sério. Muito grave.Trata-se de uma questão de dignidade...ClóvisPosso dar um palpite?CláudioNão, Clóvis. Deixe o herói falar.


TonicoHerói ou não herói, temos que manter umaatitude. Nossa família é um dos esteios destanossa sociedade, da alta sociedade de São Paulo.Representamos a elite...VeraE o Vivanti é um dos estios da ditadura.CláudioAntes disso, era pessoa de nossas relações. A revoluçãoacabou ou não acabou?...TonicoNão acabou. Não acabará nunca, enquanto persistira ditadura.227VeraOlhe para aquela parede e veja. Marta, ondevocê está com a cabeça?...JuliaTonico e Vera têm razão, Marta. Se eu fossevocês, arranjava um pretexto qualquer, agora,já, e desmanchava o convite. Nossa família temresponsabilidades para com São Paulo. Não podemosreceber e prestigiar enviados da ditadura.TonicoÉ um escárnio. E ainda mais você, Marta? Lembreseque seu pai morreu na revolução.


CláudioNa revolução, não senhor, durante a revolução.É coisa bem diferente.VeraÉ a mesma coisa. Seu sogro morreu por causa darevolução.TonicoSe não houvesse revolução, Fernando teria idoaos Estados Unidos para se tratar.228CláudioSempre apreciei muito o meu sogro e senti muitoa morte dele. Disto não se cogita. Mas, tenhapaciência; o doutor Fernando não foi um heróida revolução. Não morreu pela revolução.JuliaNão pôde tomar parte nela, porque estava doente,muito doente.Isto é outro caso.MartaTonicoSe não fosse a doença, estaria comigo, ali natrincheira.VeraVocês receberem aquele homem aqui é um escândalo!E ainda mais aquela mulher!


MartaE a mulher dele, que é que tem?VeraCafajeste. Apenas isso. Rastaquera.Julia(a Vera) Você conhece a mulher dele?VeraA Nenê Paraíso! Quem não conhece sua crônica,no Rio?JuliaA Nenê Paraíso! Meu Deus! Ainda mais essa!...ClóvisHoje é a senhora Vivanti. E dizem que dá as cartasnão só nos ministérios, como no próprio Catete.E olhe: está corretíssima. Dernier cri.229CláudioUma linda mulher. E está mandando mesmo.Dona MartaO pai dela era croupier de jogo. Recebeu muitagorjeta minha em Poços de Caldas.MartaPois hoje é uma grande dama. Correta, bonita,fina...


VeraCafajeste. Rescende a cafajestismo. Ora, Marta,uma mulher com aquela crônica. Nem se casandocom o papa.Dona MartaNão diga blasfêmias, menina.Tonico(a Cláudio) É melhor você tirar a bandeira paulistada parede. E o capacete. E o diploma. Nãoseria delicado...230CláudioPois ele vai ver aqui todos os troféus. E a Martuxavai recitar o repertório revolucionário.ClóvisE ele vai achar muita graça!MartaAcrísio considera a revolução uma das mais belaspáginas da história do Brasil.TonicoVeja, Vera: Acrísio tout court. Já são íntimos.JuliaConsidere um pouco a situação, minha filha. Odoutor Vivanti é um agente de ocupação. Ele


quer paz e sossego e precisa de vocês paraestribo. Isso é coisa da Nenê Paraíso. Quemnão está vendo? Se péla para entrar em nossomeio social.CláudioJá ponderamos os prós e os contras.TonicoPois olhem, Marta e Cláudio; vocês são meussobrinhos, meus afilhados e, muito mais queisso, meus amigos. Mas se vocês receberem essehomem, nunca mais porei os pés nesta casa.JuliaPor que essa briga na família por causa de umestranho?231CláudioVocês me desculpem. Quem manda nesta casasou eu e receberei nela quem eu quiser, doa aquem doer.TonicoPois então cortaremos relações. Fique com seusnovos amigos da ditadura.JuliaVocês vão ser severamente criticados por nossosamigos...


VeraSabotados... Sabotados!232CláudioNão sei por quê! Tenho vários motivos pararecebê-lo. Primeiro: foi nosso companheiro emBuenos Aires há quatro anos. Nosso cicerone.Nos cumulou de gentilezas que nunca pudemosretribuir, pelo fato de morar no Rio Grande doSul, em Porto Alegre. Segundo: foi ele quem nosprocurou. Está com a faca e o queijo na mão ecom a maior simplicidade me telefonou e me recebeu,intimamente, sem a menor cerimônia, emseu apartamento no Esplanada. Terceiro: comoum dos diretores de uma associação de classe,não posso repudiar um elemento tão chegadoao governo central, sem prejuízo dos interessesda classe que represento. Isto já se decidiu naFederação. Impõe-se uma aproximação ao governocentral, em favor de nossas indústrias, denosso comércio. Não podemos nos afastar dopoder central...TonicoIsso significa ADESÃO. Adesão, coisa com quenão pactuo!...ClóvisPerdão. Um momento. Perdão. Vou meter aquia minha colher de pau: acho essa fórmula São


Paulo não esquece, não perdoa e não transigemuito bonita, digna de um poema, mas muitopouco prática. Se temos indústria, comércio e lavoura,se precisamos de dinheiro, de exportação,de leis, onde está tudo isso? No Banco do Brasil,na Caixa Econômica Federal, no Rio de Janeiro,com eles. Nós temos mesmo é que perdoar, esquecere transigir. Trata-se de uma questão desobrevivência. O resto é poesia.TonicoIsto é argumento de adesista! Aderir para o bemde São Paulo. Eu sei! Nessa eu não vou! Sou contra!Sou contra... Vamos, Vera.(Tonico vai saindo com Vera; chega mesmo a sair.Vera é que se atrasa, hesitante. Tudo isso durantea seguinte fala)233CláudioE há ainda um quarto motivo para recebê-lo: odoutor Acrísio Vivanti está em condições de salvara Santa Marta Fabril, por via de um empréstimona Caixa Econômica Federal.(Silêncio geral. Todos olham, ora para Cláudio,ora para o lugar onde saiu Tonico. Este voltou àcena, meio embasbacado)TonicoHein? O que é que você disse?


CláudioÉ isso mesmo. Um empréstimo. Quinze milhões.Vinte anos de prazo. Juros de 7% ao ano.TonicoVamos, Vera, antes que eu fraqueje. Prefiro afalência da Santa Marta.234Dona Marta(Forte) Prefere coisa nenhuma. Fique quieto. Nãodiga asneiras. Antes, pergunte à sua mulher oque é que ela prefere. Hein! Vera, o que é quevocê prefere? A falência da Santa Marta? Perderseu automóvel, suas jóias? Viver na miséria? Julia,você também? Respondam. Se vocês pensam sóno orgulho de São Paulo, por que não fizerameconomia? Por que não reduziram as despesasquando souberam que a fábrica ia mal? Não.Uma crise geral e vocês nem tomaram providências.A produção da Santa Marta diminuindo; asvendas baixando pela metade. Vinte horas semanaisde trabalho. Os balanços acusando prejuízoe vocês continuando na mesma vida; trocandode automóvel todo ano, viajando, recebendo.Ainda bem que a Martinha e Cláudio compreenderamessas coisas e quando querem salvar umpatrimônio que ajudei a fundar e que vocês enterraram,vocês vêm aí com fanfarronadas, combrios ofendidos...


JuliaNão disse nada, mamãe.Dona MartaÉ o Tonico. Trata de raspar essa barba que émelhor. Se ao menos soubesse ganhar... Massó sabe gastar.Tonico(Furioso, a Cláudio) Por que não disse logo oque era?CláudioNão disse, porque faço questão que saibamque recebo o Acrísio por ser meu amigo antes.Trata-se de uma retribuição de gentilezas quedele recebi antes. A questão do empréstimoà Santa Marta é secundária. Ou antes, estáem terceiro lugar, porque em segundo estáo bem de São Paulo. São Paulo não pode seisolar na federação.235VeraPois vamos fazer tudo para o bem de São Paulo,não é, Tonico?TonicoPois que seja para o bem de São Paulo.


Dona MartaEu sou franca. Para o bem da Santa Marta Fabril.E se ele salvar a fábrica, ponho um retrato deleno salão da minha casa. Vamos, Vera. Vamos,seu barbudo teimoso. Levem-me para casa. Estoucansada. (Levantando-se) Cláudio, um dia dessesquero conhecer esse homem. E a mulher deletambém, a tal Paraíso. O pai era o pai, ela é ela.É a senhora Vivanti.Julia236VeraEla deve ser inteligente e viajada. Talvez tenhaalgum verniz. Seja tudo para o bem deSão Paulo.(Saem os três. Tonico é o último. Olha silenciosopara a bandeira paulista. Volta-se aos demais; fazum gesto mudo de despedida, mais ou menoscordial, suspira e sai, derrotado. Ficam Cláudio,Marta e Julia. Cláudio suspira)CláudioPuxa! Custou mas foi! (O relógio é consultado)São sete horas, Marta. É bom você se informarsobre o jantar. Às oito e meia.MartaÀs oito horas estarão aqui.


JuliaVamos, Clóvis. Que temos gente para jantar emcasa.ClóvisÀs suas ordens, patroa.JuliaMinha filha, até amanhã. Felicidades. Que tudocorra bem. (beijos de despedida)Clóvis(Toma o último gole) Para o bem de São Paulo!Viva o doutor Acrísio Vivanti e sua belíssimaesposa!Julia(Levemente irritada) Vamos, Clóvis!237ClóvisAté amanhã, Cláudio. Até amanhã, Martinha.Cuidado com a Paraíso, que pode transformar oseu ménage num inferninho, hein?Cláudio(Meio irritado) Pum-pum! Péssima!TodosAté logo. Até amanhã!(Saem os dois, acompanhados por Marta. Cláudiovai ao bar preparar novo uísque. A luz da sala


vizinha, ao fundo, acendeu-se. Cláudio vai à vitrola,de copo na mão. Entra Marta)MartaAquele meu tio Tonico...CláudioÉ um bom imbecil. Nada mais, nada menos. Nãovê um palmo adiante do nariz.MartaVocê devia ter logo entrado no assunto...238CláudioUm paspalho... E com aquela barba ridícula.(Marta apaga a luz central, de sorte que, à luzdo abajur, acesa a sala vizinha, ao fundo há umrealce no relevo do desenho da fábrica na paredede vidro. Há uma pausa)Cláudio.O que é?MartaCláudioMartaVeja como se comporta com Paraíso.CláudioQue é isso? Ciúme?


MartaAbsolutamente. Se tivesse ciúme de você já estarialouca.CláudioEntão, por que essa recomendação?MartaÉ que, pelo menos desta vez, suas aptidões dedon Juan terão um objetivo prático.CláudioQuer dizer: você me recomenda um pequenopapel de gigolô, não é isso?...Dependerá dela.Marta239CláudioNão entendo a ironia...MartaPorque você... Ora, você... Claro... Nem há dúvida...Rabo-de-saia... E bonita e... E assanhada...Cláudio(Muito irônico) E deixo o Vivanti para você, nãoé, meu bem?Mais ou menos.Marta


Cláudio(Fingindo espanto) Como mais ou menos?240MartaÉ isso mesmo. Você já namorou todas as minhasamigas, na minha frente, atrás de mim. Teve asmulheres que quis, que eu conheço e milharesde outras que eu não conheço e não me interessam.Nada disso me interessa. Não estou reclamando,nem acusando. Apenas constatando. Eargumentando. Agora, é evidente que você vaidar em cima da Paraíso. Pois seja bem-sucedido.Eu tomarei conta do velhote. Não tenha medo.Flerte, apenas flerte. Estamos entendidos? Estamosentendidos?...Cláudio(Depois de pensar) Que seja tudo para o bem deSão Paulo!Marta(Retirando-se) Cínico!...Cláudio(Fica só. Vira-se para a bandeira paulista, com ocopo na mão) Bandeira das 13 listas. Perdão peloque aconteceu, sob suas vistas e pelo que aindavai acontecer. O bem de São Paulo é mentira;mas os imbecis têm a sorte, a felicidade de acabaracreditando nela. Para mim, sempre será mentira.


Não mais lhe fala um soldado da lei, pela Constituição,mas o comandante daquele monstro, queeu venero, que eu adoro, mais que a Deus, maisque à minha mãe... Que a minha própria filha...(Virando-se para a parede de vidro) À tua saúde,Santa Marta Fabril S. A.Fim da cena I241


Cena II242Dez horas da noite. Em cena: Marta e Cláudio e ocasal Vivanti. O doutor Acrísio Vivanti é homemde 50 anos, um tanto rude de expressão e demaneiras, porém com ar inteligente e de pessoasegura de si. Traja-se correta e sobriamente.A senhora Nenê Paraíso é mulher de 30 anos,bonita, linda mesmo, elegantíssima, passando umpouco da medida. Tudo nela passa um pouco damedida: beleza, sexo, maneira de se vestir, atitudes.Acabaram de jantar e está na hora do licore do charuto. Marta oferece charutos a Acrísio,enquanto Cláudio serve o licor no bar.Marta(Com a caixa de charutos) Fuma um charuto?AcrísioObrigado. Prefiro o cigarro.Marta(Pega caixa de cigarros) Americanos?AcrísioNão, obrigado. Mas não se incomode. Tenhoaqui. (Serve-se de sua cigarreira)Marta(Acende com um isqueiro de mesa)


Muito obrigado.AcrísioCláudio(Vem com os licores, oferece a Nenê) Um Curaçao?Triple sec?Nenê(Aceitando) Você conhece um licor italiano chamadoStrega?CláudioCreio que conheço.Marta(a Nenê) Quer um cigarro americano?Fumo Pall Mall.Nenê243Marta(Verificando) Que pena. Não temos aqui. Só Chesterfielde Philip Morris. É a mesma coisa.NenêSó fumo Pall Mall. Devo ter em minha bolsa.Está ali... Em cima do bar. (Cláudio apressa-seem buscar a bolsa).NenêNa semana passada estávamos no grill do Copacabana...Muito pau... Então fomos à casa do


Martinho... Na Gávea... Vocês conhecem?...Devem conhecer... Uma lindeza... No meio domato... Muito bem decorada... Rústico. Estilorústico... O Martinho nos ofereceu esse Strega...Uma delícia... Mas forte! Tomei uns cinco. Quandodei acordo de mim...Tu te lembras, Acrísio...Dei trabalho. Até banho de piscina tomei. Comroupa e tudo.Será possível?CláudioNenêPergunte ao Acrísio. Não é verdade, bem?244MartaE como você pôde mover-se na água, com essesvestidos?NenêNão. Tirei o vestido. Foi de combinação. Umafarra! Tudo por causa do Strega. Mas o Martinhofoi um príncipe. Para eu não ficar no ridículo,atirou-se à piscina. Lembras, Acrísio? De smokinge tudo.CláudioDevia estar engraçadíssimo.NenêFoi o diabo. Do diaboff, como disse o Martinho.Do diaboff! Aí saímos da água e começamos a


jogar na piscina todo o pessoal. Um lá da embaixadaamericana caiu de cuecas, com charuto naboca. Foi do diaboff.Marta(a Acrísio) Você também tomou seu banho?Não.AcrísioNenêAcrísio não topa essas farras. Mas, nem ligou. Telembras, bem?Acrísio(Contrafeito) Sim, sim.CláudioE como se arranjaram depois?245NenêOra, o Martinho é formidável. Pegou tudo quantoera pijama seu e nos emprestou. E acendeu alareira. Nem, fazia frio! Te lembras, bem? Depoiso Kimoto, nosso chofer japonês, foi buscar roupas.E deu tudo certinho. Ninguém se constipou,nem se gripou. Foi uma noite formidável. Até opileque do Strega passou!Marta(a Acrísio) Você devia cair n’água também. Porsolidariedade.


NenêFoi o que eu te disse, não foi, bem? Tu nãofoste camarada.AcrísioTeria muita graça, não há dúvida!NenêOra, bem. Por que não? Todos íntimos. Nãohouve nada de mal. Foi engraçadíssimo. Espontâneo.Streganeo.Acrísio246NenêPilecaneo. Aí, bem. Gosto de ti. Tu não sabespor quê.Será que não sei?AcrísioNenêTu te fazes mais velho do que és. Acrísio é engraçado.Topa tudo, mas com ar muito sério. Pensamque ele não está gostando. Mas está. Topa tudo.É jeitão dele. Não é, bem?AcrísioMais ou menos. (a Cláudio) Muito bom licor. Aliás ,esplêndido jantar. Parabéns à dona da casa.


MartaMuito obrigada. Terei muito prazer em repetir.AcrísioE aceitarei. Enquanto não tiver a minha casamontada, terei que abusar dos amigos para fugirda comida do hotel.MartaNão faça cerimônia. E não precisa convite. Servimosàs 8 horas. É só telefonar para saber sejantamos em casa.AcrísioMuito obrigado. Muito amáveis.CláudioNunca esquecemos suas gentilezas em BuenosAires.247Ora. Foi só prazer.AcrísioMartaOlhe, Cláudio, acho que nós temos o Strega aqui.Veja ali no bar. Ofereça-o à Nenê.NenêDeus me livre! E aqui tem piscina?...Tem, como não?Marta


NenêMas a água deve estar gelada. Isto é São Paulo,não é Rio, não.CláudioLá isso está. Não aconselho um banho. E muitomenos depois do jantar. Mas vou ver o Strega.NenêNão. Não. Muito obrigada. E nem poderia tirar ovestido. Estou com ele em cima da pele.AcrísioNenê, que modos são esses?...248NenêOra, bem. Cláudio e Marta são da turma. Nãosão bola preta.CláudioClaro. Você não viu nosso emblema? (Vai ao bare pega um bibelô. Três homens ligados um aooutro.) Olhe aqui: cego, surdo e mudo.Que quer dizer isso?NenêCláudioMuito fácil. Não se vê, não se fala, não se ouve.É o nosso lema. O que se passa entre nós, ficaentre nós.


NenêMaravilhoso! Formidável! Onde você comprouisso?CláudioEm Paris. No Marché aux Puces.Em Saint-Honoré?NenêCláudioNão. É uma espécie de mercado, de feira deantiguidades.NenêAh! Como é mesmo o nome?249CláudioMarché aux Puces. Me garantiram que pertenceua um dos condes de Paris. Autêntico.NenêIsso é próprio para garçonnière.CláudioMuito bem lembrado!NenêIsto é. Não sei, não é? Uma sugestão, apenas...Me veio à cabeça.


Naturalmente.CláudioNenêVeja, Acrísio. (Toma o bibelô da mão de Cláudioe o mostra a Acrísio) Não vê, não fala, não ouve.Um bom presente para dares àquele pessoal dopalácio. Aqueles trancas que vivem a bisbilhotar,a falar mal dos outros. Escreve ao Dantas quete compre lá no tal marché... uns 12... tu devesmandar um a cada um. Uns gaúchos errados,mal viajados. Tu não, graças a Deus. Acrísio éde Caxias, mas formou-se em Porto Alegre e iamuito a Buenos Aires.250AcrísioE tu, donde és, Nenê? Diga, vamos?CláudioVocê não é carioca?AcrísioCarioca? (Gargalha) De Livramento! Da fronteira!NenêSou quase carioca. Nem conheço Livramento.Nasci lá por acaso.AcrísioPor acaso! Teu pai que te ouça, menina. Umgauchão daqueles!


CláudioTambém tenho parentes no Rio Grande.NenêUé! Pensei que você fosse paulista de 400 anos.Que pena!MartaSim. Toda a família de Cláudio é paulista. Gentede Itu, Tietê, sei lá.CláudioMas tive um tio-avô que fugiu para Porto Alegree lá se casou e constituiu família. Tenhomuitos primos lá. Os Toselli, você não conhece,Acrísio?251AcrísioOs Toselli, conheço-os, como não. Boa gente.Não sabia que tinham ascendente paulista. Aliás,muitos gaúchos têm ascendentes paulistas.NenêMas seu tio FUGIU daqui. Algum desfalque?CláudioNão que naquele tempo não havia disso! Pareceque houve um escândalo com uma certa senhora,uma baronesa. O fato é que ele FOI CONVIDADOa sair de São Paulo pela família dela.


NenêHum! Um don Juan! Muito bem! Você tem raça,hein?Só raça?...MartaCláudioPronto. Entrei na berlinda.NenêEsse seu tio era bonito? Você tem um retratodele?252Por que, Nenê?AcrísioNenêQuero ver a pinta do homem, ora! Quero ver seé a mesma do Cláudio. Que é que tem?MartaEstá no álbum, Cláudio. Lá na sala de bridge. Elaquer ver.Vamos?CláudioNenêVem, Acrísio. Venha ver a pinta do homem.


AcrísioNão. Desculpem, mas não estou interessado.Vai tu.Mais um licor?MartaCláudioCom licença. (Saem os dois)Meio cálice?Marta(Acrísio estava distraído, acompanhando os dois,um suspiro pouco perceptível, vê-se o vulto dosdois, na sala ao fundo. Isso durante toda a cenaque se segue)253AcrísioPitoresca. Muito pitoresca, não acha?MartaNão deixa de ser um charme. Além de muitosoutros que ela possui.AcrísioÉ. Porém um tanto ou quanto fatigante.MartaMais um pouquinho de Curaçao? Ou preferechampagne? É melhor, não? Mais leve. E está


em geladinha. (Há um balde com champanhaao gelo. Marta se dirige a ele)AcrísioQue vá. Vamos beber. Champagne é muito bompara desparafusar o nosso... Pudor psíquico. Estácerto isso?...Marta(Servindo) Não sei bem. Mas entendi o que vocêquer dizer. É o principal.254AcrísioÉ o principal. (Pegando o copo) Obrigado. Então...À saúde do nosso reencontro... (Bebem)MartaEm condições um pouco diversas.Como?AcrísioMartaConheci você solteiro, livre, solto e tirando bomproveito dessa liberdade...AcrísioAgora estamos taco a taco.All square.Marta


AcrísioSob certo ponto de vista, talvez seja melhor.Haverá mais compreensão.MartaNão. Não pode ser melhor. Pode haver maiscompreensão, isso sim. Mas nunca melhor. Aliás,não sei em que sentido você está falando. Maisum pouco? (Serve mais champagne)AcrísioUma especial a você. Tintim.Tintim. (Bebem)Ótimo champagne.MartaAcrísio255MartaDe 29 para cá você mudou muito, Acrísio.AcrísioFiquei quatro anos mais velho. Nesta idade, quatroanos pesam na balança. (Sentando-se) Masestou bem. Faço meus esportes...MartaNão. Não falo do seu físico. Você está ótimo. Nãopode estar melhor. É do lado sentimental... Vocêmudou muito.


AcrísioPor quê? Você acha? Assim tão depressa, você jápôde tirar conclusões?MartaÀ primeira vista. Sempre tive a impressão que oAcrísio Vivanti que conheci em Buenos Aires em1929 não era homem de se casar com... Com...AcrísioCom uma Nenê Paraíso?256É.Por quê?MartaAcrísioMartaNada. Não me leve a mal...AcrísioOra, Marta. Não estamos com o psíquico desparafusado.Continue. Gosto de ouvir você falarcom franqueza.MartaNão é... Você sabe... Ela não tem nada demais.Pelo contrário...Tem tudo a seu favor... Mas...Mas...Acrísio


MartaÉ uma questão de tipo de mulher. Pelo seu modode pensar, pelo seu jeito de falar, em 1929, naturalmente,nunca pensei que você se prendessea uma mulher...Pitoresca...AcrísioMartaMais ou menos. Ou isso. Bem definido. Pitoresca .AcrísioE quem disse que eu estou preso a ela?...MartaOra, Acrísio, que topete!257AcrísioPor que casei-me com ela? Por isso estou preso?É essa prisão que você se refere?...MartaNão. Aliás, não deixa de ser prisão...AcrísioPara nós, isso não vale.MartaDe acordo. E o beguin? Não fosse o beguin, vocêse casaria?


AcrísioPodia ter sido uma fraqueza. Fraqueza que seriaperfeitamente explicável pela reviravolta emminha vida. Você sabe: houve uma revolução.Dois anos depois outra. Subi. Da província passeià metrópole. Fiquei rico... De certo modo... Poderoso.Tudo isso influi nas nossas determinaçõesde momento.MartaEntão? Você mudou.258AcrísioNão senhor. Nas determinações de momento,disse eu. O fundo continua o mesmo.MartaMas os fatos provam o contrário.AcrísioQue fatos são esses?Ora, Acrísio...MartaAcrísioFale, que fatos são esses?MartaTodo mundo diz que ela manda em você, nosministérios, até no Catete. Consegue tudo o quequer.


AcrísioHá uma meia verdade nisso tudo. Digo a você,francamente, Marta. Não tenho necessidadede mentir. Ela não manda em mim. Zero. Zeroà esquerda, compreendeu? Estou de coraçãoaberto.Desparafusado.MartaAcrísioIsso mesmo. Mais. Mais champagne (Martaserve. Bebem) Quanto à outra parte, é verdade,mas num sentido. Ela consegue as coisasnos ministérios, não porque eu peço e sim porsabujice. Porque eles pensam que me agradamservindo a ela. À minha revelia... Muitas vezesnem sei o que está se passando. Ela usa e abusadessa vantagem.259MartaE por que não toma providências?AcrísioProvidências como? Contra a sabujice? Impossível.Deixa. Deixa correr o barco.MartaQuer dizer que você, no fundo, não mudounada?


AcrísioO mesmo de sempre. Acredite se quiser. E,em relação a você, aquele mesmo homemque você conheceu em Buenos Aires. Aquelebonequinho que você manobrava com cordéisna ponta dos dedos.(Acrísio pega nas mãos de Marta. Esta cede umpouco, mas logo se safa, levantando-se. Ficafitando o relevo da fábrica na parede. Acrísiolevanta-se e, ao lado dela, considera o relevo.Vêem-se ainda os vultos de Cláudio e Nenê, sentadosna sala ao fundo)260AcrísioÉ a Santa Marta Fabril S. A.?(Gesto afirmativo)MartaAcrísioComo vai a fábrica?Bem.Bem?MartaAcrísioMartaMais ou menos. Por quê?


AcrísioVocê precisa de mais champagne. (É ele agoraquem serve) Beba e seja franca comigo.MartaPor que isso, Acrísio?...AcrísioPorque sei que a Santa Marta vai muito mal. Muitomal mesmo. No Rio, temos o fichário completodas maiores organizações desta terra. Essas fichasfazem parte do nosso equipamento político, oumelhor, do nosso equipamento ditatorial.É verdade.Marta261Acrísio(Pegando nos braços de Marta) Pois eu vim aquidisposto a salvar a Santa Marta, está ouvindo?...(Marta se desprende e se afasta, sem dizer palavra)AcrísioPelo amor de Deus, Marta. Não é o que vocêestá pensando. Nem faça esse juízo de mim.Muito obrigado. Pensei que você me conhecessemelhor.


MartaNão estou fazendo juízo.AcrísioEstá, sim senhora. Está pensando que quero lhecomprar, salvando a Santa Marta.MartaVocê não tem razões para salvar a Santa Marta.Salvar como?262AcrísioIsso de como salvar a Santa Marta é comigo e comseu marido. Ele saberá como. E não será difícil,lhe garanto. E, quanto aos motivos, tenho diversos,cada um deles suficiente por si mesmo. Porexemplo. (Vai beber e Marta também) Primeiromotivo: você.Está vendo?MartaAcrísioEstou vendo. Você é que não enxerga nada.Gosto de você e salvarei o que é seu. Incondicionalmente,está ouvindo? É por mim, por respeitoa mim mesmo, você compreende? Se gosto devocê e você está em mim, quer seja ou não doseu agrado, por mim mesmo, por consideraçãoao meu ser, tenho que lhe proteger, ou defender,


ou salvar, compreendeu? De modo que você nãofica a me dever nada. Nem mesmo gratidão.MartaÉ. Nesse ponto, você não mudou. É o romanescode sempre. E muito forte.AcrísioMuito bem. Já começou a manobrar os cordéis.A história se repete. (Pega nas mãos de Marta ebeija a ponta dos dedos)MartaPode-se saber quais são os outros motivos?AcrísioNaturalmente. Segundo: um dever de amizade.Afinal, vocês me deram acolhida nesta terra. Receberamsem restrição a mim e a minha mulher.O Cláudio, não sei, talvez por uma ponta de interesse.Você, não. Você me recebeu, não comogoverno, mas pelo homem que você conheceuem 29 em Buenos Aires. Por amizade. Espontaneamente.E meu lema é servir aos amigos. E seio que lhe deve ter custado esta sua atitude, ouo que vai lhe custar, junto de seus parentes, desuas relações. (Vira-se para o lado dos troféus)Ah! Estes paulistas! Estes paulistas de 400 anossão terríveis!...263


MartaNem tanto! Já estão aderindo!...AcrísioNão queremos adesão e sim confraternização.Slogan político.MartaAcrísio(Rindo) Você tem razão. Desculpe. Escapou semquerer. Tanto a gente fala, que as expressõespolíticas vão saindo automaticamente. É só vira deixa.264MartaEstou brincando. Continue. O outro motivo?AcrísioJá não chegam esses dois? Tão decisivos? Afinal,não é preciso todo o meio circulante para salvara sua fábrica. Bastam uns 20 mil contos na CaixaEconômica.Marta(Não podendo disfarçar) Nossa Senhora! Vamosbeber! (Enchem os copos e bebem, mais aconchegados.Mais sem cerimônia)AcrísioDepois, você compreende. A sua família é uma instituição.É parcela do nosso patrimônio, digamos ,


aristocrático. É como instituição nacional. Precisaser mantida como ela é, com todo seu prestígio.O desmoronamento econômico dessa famíliafuncionaria como um sintoma de decadência...MartaIsto não está muito de acordo com as idéias socialistasdo governo.AcrísioEstá sim. Não somos coletivistas e muito menoscomunistas. Socialismo de cátedra. Pelas instituições.Você também é uma instituição. (Seguraem suas mãos. Os dois de pé, ao lado direito dasala)265MartaQuer dizer que você vai conseguir 20 mil contospara a Santa Marta de graça, sem exigir nadaem troca?...AcrísioEvidentemente. Nem gratidão.MartaMas um favor desses!...AcrísioNão é favor, é obrigação.


MartaMas uma obrigação dessas!Acrísio(percebendo) E você faz questão de pagar!MartaPagar não. Amor-tizar. (Beijo)(O quadro termina com o seguinte efeito: àdireita, o beijo de Acrísio e Marta. Ao centro, orelevo da Santa Marta. À esquerda, os vultos deCláudio e Nenê, também se beijando)266Fim do segundo ato


Terceiro atoCena I1948. Oito e meia da noite. O mesmo living,decoração moderna. A mesma parede de vidrofosco ao fundo, com o relevo da Santa MartaFabril. Sofá, poltronas, bar, telefone, radiovitrola,etc. Em cena: Cláudio, Acrísio, Clóvis e Julia. Bemconservados e bem dispostos. Trajam rigor, gravatapreta. Durante a cena, tomam seu aperitivo:champagne, acompanhado de caviar e patê. Aolevantar-se o pano, Cláudio está ao telefone, emaltos brados.CláudioNão dou nada. Nada, está ouvindo? É. A respostaé essa... Não há aumento de espécie nenhuma...Não adianta receber a comissão... Não recebo...Eles que falem com o Menezes. Está lá para isso.É pago para isso... Não tenho medo. Que façama greve... Olhe... É isso mesmo: diga que fecho afábrica. Pronto. Aumento não sai. Fecho a fábrica...Seja positivo... Não, não tem perigo... Podedeixar, vou providenciar... (Desliga) Desaforo!...Que é que estão pensando? Ou aumento ougreve? Fecho a fábrica. Ponho todo mundo narua e acabou-se! Oh! Acrísio: em todo caso faleamanhã com o Mendonça. Preciso de policiamentona fábrica.267


AcrísioPois não, Cláudio. Por que não recebe você mesmoa comissão? É sempre bom entrar em entendimentos.Às vezes, com 20% do que pedem, searranjam as coisas.CláudioNão adianta. Não estou disposto a dar nem 5%.Não há razão para isso.ClóvisComo não? E o custo de vida, que sobe de mêsem mês?268CláudioClóvis, por favor, não dê palpites. É um círculovicioso. Um nunca acabar. Aumento de salários,aumento do preço do pano, aumento de tudoe novo aumento de salários. É preciso pôr umparadeiro nisso.ClóvisVocê não pode aumentar os salários sem mexerno preço do tecido?CláudioÉ, gracinha? Por que você não reduz o preço dasua consulta?JuliaNão briguem, por favor. Olhe, mais uma torradinha,Clóvis. Estamos aqui para nos divertir.


ClóvisEu me divirto discutindo com o Cláudio.JuliaMas aborrece os outros. Não é justo. Mais umchampagne? Não é, doutor Acrísio?AcrísioObrigado, dona Julia. Vou me servir.À vontade.JuliaCláudioÉ isso mesmo. Amanhã vou ter muitos aborrecimentos.Por hoje acabou-se. Vamos conservar obom humor.269Clóvis(Comendo) E o apetite.Cláudio(a Acrísio) Não esqueça de falar ao Mendonça.Dois guardas em cada portão. E pronto. É muitosimples.AcrísioNão é tão simples assim. Aconselharia maiorrefle xão...CláudioPensei que seria fácil a você entender-se com umdelegado que você mesmo nomeou...


AcrísioNão. Não se trata disso. A polícia irá. O problemaé que não é simples.JuliaAcho que devemos resistir um pouco. Cláudiotem razão...CláudioOlhe: a greve vem a calhar. Estou com muitopano em estoque. Fecho a fábrica e descanso doismeses em Paris. Onde está a complicação?...270JuliaIrei com você, Cláudio. Estou precisando de tantacoisa da Europa!CláudioVamos também, Acrísio? Vamos tomar champagnena fonte.AcrísioSim senhores! É... que se há de fazer? A mocidadeé bela e a vida dura tão pouco!CláudioÀ nossa saúde! (Bebem)ClóvisE viva o egoísmo! Vamos atacar esse patê... Ótimochampagne, Cláudio! Parabéns!...


CláudioPois aproveite, que, com greves e mais reivindicações,isso vai acabar!JuliaNem me fale. Está tudo tão caro. Daqui a pouconão se pode mais viver! Experimente o caviar,doutor Acrísio.AcrísioMuito obrigado. O Clóvis tem razão: champagne,caviar e patê, tudo de primeira água!CláudioVocê sabe que uma viagem à Europa custa umafortuna. Tonico e Vera já pediram mais suprimento.E olhe que não levaram pouco dinheiro.271JuliaEm todo caso, gastam menos lá do que aqui. Sóo jogo do Tonico!CláudioNeste ano perdeu 4 mil contos. Que gaste milna Europa, será uma grande economia! Vocêsestão vendo? É champagne, caviar, patê, o jogodo Tonico, viagens, os vestidos de minha mulher,e vocês a querer que reduza o preço do pano!Ora bolas!


ClóvisApenas sugeri. Mas se é para abolir o champagne,reconsidero minha sugestão. Aumente o preçodo tecido e reduza o salário.AcrísioE teremos a revolução social.CláudioVocê acredita nisso?272AcrísioHá quem acredite...JuliaAi, ai, ai! Não vamos recomeçar!CláudioJá encerrei o expediente. Mais champagne...(Bebem. Pausa. Entra Marta, elegantíssima)MartaDemorei muito? (Levantam-se. Acrísio e Clóvisvão ao encontro de Marta)Acrísio(Meio comovido) Boa noite, Marta. Você está linda!Uma pintura! (Beija-a no rosto muito amigavelmente)ClóvisNão é novidade. Boa noite, querida. (Beija-a norosto também)


Marta(Beijando a mãe) Muito obrigada. (Dirigindo-seao bar) Já tomaram seu aperitivo? (Servindo-se)Experimentaram o patê? O champagne está bemgelado? Você está muito bem, mamãe.JuliaÉ... Faz-se o que se pode.MartaMuito bem. De quem é esse vestido? Nãoconheci.Balenciaga. Gosta?Julia273MartaMuito. Muito mesmo. Vai muito bem em você.JuliaObrigada. E essa maravilha?MartaDior. (Brindando com o champagne) Tintim. (Oshomens respondem)CláudioÉ Balenciaga, Dior. Vocês estão vendo?


AcrísioMas vale a pena. É um espetáculo. Não pagamuma fortuna por um Velasquez? Um Monet, tempreço? Um Degas? Então? Marta vale por umquadro célebre.ClóvisDe acordo. E também por uma escultura!MartaNão façam gafes com essas alusões a coisas demuseu. Na minha idade não se pode falar emmuseu. Recende a antiguidade.274AcrísioA idéia é de padrão de beleza.JuliaDeixe essa idéia de museu para mim. Você estábem longe.ClóvisModéstia vossa. Pois comigo não. Estou muito emforma. E faço meus esportes e jogo meu tênis.Sou moço, meu velho, moço...CláudioYo lo creo como si fuera verdad.ClóvisVocê não me interessa. Acredite ou não, não meinteressa.


MartaEu acredito, Clóvis. Você está ótimo. No pontode bala. Como eu gosto.Clóvis(a Cláudio) Está aí! Ouviu, seu paspalho? Essa é aopinião de cátedra. Dê cá um abraço, Martinha,você é um colosso! Sente aqui comigo!...MartaEspere. Deixe pegar mais um champagne! (Servesee senta-se com Clóvis no sofá. Acrísio, Marta eClóvis) Palpites. Uma rosa entre dois espinhos.Marta (Recitando)As rosas é que são belasos espinhos é que picam.Mas são as rosas que caemE os espinhos é que ficam.Comovedor, não acham?275CláudioFilosofia de balzaquiana.JuliaPessimismo de balzaquiana.AcrísioHistórias, Marta. Fique certa de que você está noseu apogeu. Num esplêndido apogeu.


MartaCom uma filha de 22 anos. Eu é que sei.CláudioSão oito e meia, gente. Vamos embora. O jantar éàs 9. Que é da Martuxa? Também foi convidada.Há lugar marcado para ela.MartaDeve estar se vestindo. Vem já.CláudioEntão vamos acabar esta garrafa. Acrísio? Clóvis?Mais um pouco. (Serve)276Marta(a Cláudio) Soube que os operários da Santa Martavão pedir aumento. Amanhã vai uma comissãofalar com você...CláudioAmanhã teremos greve e vou fechar a fábrica.MartaComo? Você não entrou em acordo com os operários?CláudioNão senhora. Nem vou recebê-los. Ou vai ouracha!


Não pode ser assim.MartaCláudioPor que não? Vou mostrar se pode ou não pode.Já estou farto de lamúrias.MartaMas não é justo. Convém ao menos receber acomissão. Entrar em entendimentos.CláudioNão há entendimento possível! Eles querem omáximo. E não estou disposto a dar o mínimo.MartaPenso que você está errado, Cláudio.277CláudioPenso que você não deve interferir, Marta.MartaAcrísio, me ajude a convencer este homem. É umerro, até um perigo!CláudioAcrísio vai ajudar; com a polícia.AcrísioPonderei a ele que o negócio merecia maior reflexão.Já discutimos, quase brigamos.


MartaMas não se resolve assim...CláudioEnquanto eu mandar na fábrica, será assim. Senão estão de acordo, tomem conta dela. Vocêstambém são donos, têm direito.AcrísioNão quero interferir na sua gestão, Cláudio. Nãose trata disso. Mas podemos conversar...278CláudioPalpites não resolvem. Não adianta. Já estoudecidido. Ou vai ou racha. Aumento desta veznão sai.MartaA vida está tão cara! Tão difícil para eles! Não éjusto. Você não conhece o problema deles. E étão simples: o que ganham atualmente, e trabalhandoextraordinário, não chega. É só isso!CláudioComo é que você sabe? É a Martuxa. São idéiasda Martuxa.MartaIdéias não. A verdade.


CláudioEngraçado. Aqui em casa é ao contrário: em vezda mãe educar a filha... É o contrário... A filha éque educa a mãe.AcrísioNão diga heresias, Cláudio. Marta educou amenina maravilhosamente. Criou-lhe uma personalidade.CláudioEducou nada. Deixou a menina correr à sorte, àlei da natureza. Hoje ela é completamente diferentede nós. Até o oposto.ClóvisGraças a Deus. Vinho de outra pipa.279MartaÉ a nova geração que vem. A Heleninha, de Márioe Heloísa, também é assim.CláudioE você acha que está certo?Para ela está.MartaCláudioPara ela! Para ela! Só para ela. Temos que pensarem nós, na família, no nosso modo de viver, nanossa classe, na fábrica.


JuliaIsso mesmo! Essa menina está muito mal orientada.Desculpe, Marta, mas sempre foi essa a minhaopinião. É uma menina rebelde. Indiferente aonosso modo de viver, alheia às nossas coisas.CláudioNão liga. A Santa Marta para ela não existe.AcrísioNão estou de acordo. Martuxa vê na Santa Martaum problema social. Vê muito mais longe...280CláudioPois é. Vão pensando assim. Vão dando razão aela. Vocês vão ver o que acontece. É o elementoheterogêneo da família. É incrível! Justamenteminha filha! E a culpa é sua, Marta, e sua também,Acrísio.AcrísioMuita honra para mim, se tivesse contribuído naformação de Martuxa. Acho-a excelente. Tudo,porém, se deve à Marta. E ao sangue. É raça. Essasim, é dos 400 anos!MartaEla adora você, Acrísio.AcrísioEu a compreendo. E o pai não.


CláudioEssa é muito boa. Agora tenho também quecompreender Martuxa.ClóvisClaro! Nem há dúvida!CláudioEstá vendo, dona Julia? Não adianta. Deixa otempo correr.É. Isso passa.JuliaCláudioE se não passar, um dia destes dou um estriloe pronto. Acabo com essa mania de sociologia,faculdade, etc. Martuxa não será um intelectual,socialista, comunista, ou qualquer coisa que separeça com isso. Comando 5 mil operários; nãome será difícil tomar o pulso de minha filha.281(Entra Martuxa. É moça de 22 anos, bonitinha,espontânea e simples. Sente-se que não tem amenor preocupação com toaletes, sem ser, entretanto,descuidada ou desmazelada. Entra muitoalegre, abraça e beija a avó com muito carinho;beija o pai com ternura e mostra-se muito amigade Acrísio e Clóvis. Entrou e dominou o ambiente.


Cláudio engoliu o que estava para dizer. Martuxatem um livro na mão. Depois de cumprimentar ospresentes, pega uma faquinha no bar e começaa abrir as páginas do livro, enquanto fala)MartuxaEstou contentíssima. Há 15 dias ando atrás desselivro. Procurei-o em todas as livrarias de São Paulo.Mandei ver no Rio. E não é que o encontroagora na estante do papai?Que livro é esse?Acrísio282MartuxaA revolução dos gerentes, de Burnham, TheMana gerial Revolution. Formidável! É a últimapalavra!AcrísioEu mesmo dei a seu pai há uns quatro mesesatrás. Não leu, não é, Cláudio?ClóvisNem abriu o livro, olhe aí.MartuxaPois papai devia ter lido mesmo. Como diretor daSanta Marta Fabril iria aproveitar muito.


Por isso dei a ele.AcrísioMartuxa(a Acrísio) O senhor leu?AcrísioNão. Li uma crítica. Um resumo muito bem apanhado.CláudioNão se dirige uma fábrica com livros, com teorias.Ponha o seu professor de sociologia, ou deestatística, na gerência da Santa Marta e veja noque daria.283MartuxaPapai tem razão. Seriam uns péssimos gerentes.E eles sabem muito bem disso.Clóvis(Rindo) De pleno acordo.CláudioVocê não está pronta, menina? Estávamos esperandopor você!MartuxaNão posso ir, papai... Não tenho tempo. Tenhoque rever a tese e com esse livro agora...


CláudioÉ um absurdo! Uma grosseria para Elisabeth!Você tem lugar marcado na mesa! (Martuxa vaiao telefone e começa a discar) Não se faz isso!Ainda mais à última hora!...284Martuxa(Do telefone, com um gesto pede ao pai que secale) Pronto! É você, Elisabeth?... Martuxa. Comovai?... Já estão saindo. Vovó, mamãe, papai, tioAcrísio e tio Clóvis. Não posso ir, Elisabeth. Não.Não posso mesmo. Estou muito atrapalhada. Não.Nada disso. Depois explico a você. Não tem importância,tem? Muito obrigada. Você é um amor.Eles vão já. Até amanhã. Que corra tudo muitobem. (Desliga) Pronto. Já está resolvido. Ela pedepara vocês irem já. Para ajudarem a receber.Pois sim!Vamos?CláudioClóvisJuliaÉ muito cacete chegar cedo demais.Marta(a Martuxa) Seu pai nem vai receber a comissãodos operários. Se houver greve, disse que fechaa fábrica.


MartuxaEsse é o resultado de não ter lido Burnham.CláudioEntão foi bom. Porque não quero aumentarninguém.Por quê?MartuxaCláudioPorque não quero, ora essa. Não quero.JuliaEu é que não quero discussões antes do jantar.MartuxaMuito bem, vovó. Estou tão contente!285MartaSeu pai acha que é um círculo vicioso...CláudioO aumento de salários acarreta a alta da produçãoe, afinal, do custo de vida. Não é isso que seaprende em economia política?MartuxaClaro. O aumento de salários não resolve o problema.


ClóvisEstá aí. Está do seu lado, Cláudio.JuliaJá vão começar? É melhor irmos embora. Prefiroajudar a receber.CláudioEstamos apenas conversando, dona Julia.AcrísioEntão, o que é que resolve o problema?286Se eu soubesse...MartuxaCláudioNão há problema nenhum. O que existe é infiltraçãocomunista.MartuxaIsso não, papai. O antagonismo das classes é evidente.Nem se discute. Este livro apresenta umasolução: os técnicos, o capital intelectual. NosEstados Unidos, muitos dos grandes empreendimentosjá pertencem à massa anônima.ClóvisE a Santa Marta pertence a uma dinastia. Eisaqui o faraó.


CláudioGraças a Deus. E vai muito bem. (Bate três vezesna madeira)ClóvisCom perspectivas de greve...CláudioIsso não vem ao caso.MartuxaSabe, papai, que para a tese do Roberto, estivemosfazendo pesquisas na Santa Marta?...Quem é Roberto?JuliaMartuxaUm colega meu. Estudamos juntos.287JuliaFilho de quem? De que família?...MartaNão interessa, mamãe...JuliaComo não interessa?...MartuxaDepois falo a vocês do Roberto. É o melhor alunodo curso.


CláudioQue é que vocês andaram vendo na fábrica?MartuxaTanta coisa que podia ser feita...Você acha?CláudioMartuxaE ainda pode. Ainda é tempo.288CláudioQue é que você entende de fábrica de tecidos?...MartuxaEu não. Roberto. Ele estuda a organização dotrabalho. É a tese dele: Cousin Taylor Ford.CláudioMas a Santa Marta não fabrica automóveis.MartuxaPor exemplo. Você tem 5 mil operários. Podiater uma cantina, um entreposto de leite, umacooperativa de consumo.CláudioAquilo é fábrica. Não é instituição de beneficênciae muito menos creche, menina.


MartuxaÉ. Mas com uma cantina bem organizada, osoperários comeriam na fábrica, uma alimentaçãomais sadia que em casa deles e muito maisbarata...Acrísio... E sem ônus para a empresa.MartuxaCom uma cooperativa, a fábrica poderia forneceraos seus operários os gêneros de primeira necessidade,em muito melhores condições de preço.Clóvis... E a vida deles seria mais barata e o ordenadovaleria bem mais que nas mãos dos vendeiros eaçougueiros.CláudioEnfim, em vez de fabricar pano, perdia-se tempoem fazer caridade. O champagne deixou vocêsmuito sentimentais!289MartuxaNão, papai. Não é sentimentalismo. É interesse.É economia. O operário satisfeito, bem alimentado,sadio, produz mais e melhor.CláudioQuem é que não sabe dessas coisas, menina?Bobagens, teorias. Ponha-se lá um armazém:


oubalheira. Restaurante: outra roubalheira.Quem é que vai controlar isso? Quem é que vaise dar o trabalho...MartuxaOs gerentes. Aí é que aparecem os gerentes.E eu, o que sou?CláudioMartuxaVocê é o dono. É outra coisa.290ClóvisVai aprendendo, Cláudio.MartuxaPapai devia ler a tese do Roberto. Se eu fossevocê, recebia a comissão amanhã. Pechinchavacom eles e arrumava as coisas.CláudioEsse palpite eu dispenso, minha filha. Agradeçomuito, mas dispenso. O que há é comunismo ládentro. É caso de polícia.MartuxaPode ser. Quem sabe. Roberto disse que, semaumento de despesa, com melhor organização deserviços, a fábrica poderia aumentar, no mínimo,30% de sua produção.


AcrísioSem aumento de despesa?Isso mesmo.MartuxaCláudioSeu colega acha isso?MartuxaAcha, não. Prova por A + B.CláudioEm outras palavras: ele quer dizer que sou umabesta?MartuxaOra, papai, que conclusão!291MartaBesta, não. Mas convencido, vaidoso e displicente.CláudioMuito obrigado, minha mulher. Muito amável.Não há de quê.MartaCláudioMais alguma crítica, professora?


MartuxaNão estou criticando. Estou falando em tese. Hojeem dia, uma fábrica não pode ser tocada apenascomo máquina de ganhar dinheiro.CláudioPois sim! Isso é literatura de quem não sabe ganhardinheiro!MartuxaUma fábrica deve ser encarada como um organismode produção, fonte de riqueza...292CláudioOlhe aqui, menina: continue estudando... Lendoseus livros, mas deixe a fábrica sossegada. A SantaMarta não é cobaia de ninguém.Também acho...JuliaCláudioNão quero mais pesquisas lá, estamos entendidos?MartaBoa maneira de tratar uma acionista, grandeacio nista...CláudioNão se trata de acionista. Trata-se de minhafilha.


MartuxaEstamos entendidos, papai.CláudioVocês andam incensando essa menina, vocêsestão redondamente errados..MartaVocê é que está errado e teimando.CláudioEntão, se não estão satisfeitos, convoquem aassem bléia e peçam a minha destituição. Enquantoeu mandar lá, será assim.293MartaQue maneira de argumentar!AcrísioMartuxa, vem cá. Sente-se aqui comigo.Cláudio(Levantando a voz) Acho que sou ótimo diretor.Pelo menos tenho enchido vocês de dinheiro.JuliaNão se exalte, Cláudio. Você tem razão. Bem quenão queria discussões. Vamos embora.


Cláudio(Gritando) Parece até um complô contra mim!Que coisa infernal! (Martuxa levanta-se, vai aobar e serve dois copos de champagne)Marta(Levantando a voz) Não há complô nenhum! Enão grite!Cláudio(Furioso) Grito, sim senhora, grito!JuliaEu saio da sala. Vamos, Clóvis, Acrísio.294Martuxa(Oferecendo um copo de champagne ao pai) Àsua saúde, papai. Não vá brigar comigo.AcrísioVamos: um brinde geral à Santa Marta. Umamoção de confiança ao diretor.(Todos pegam os copos e viram para Cláudio, esteafinal cede, sorrindo) Tintim. (Bebem)ClóvisE viva o champagne!Viva! Mais um?Cláudio


Mais um!Clóvis(Servem-se e bebem no bar, enquanto Acrísiosenta-se com Martuxa)AcrísioE sua tese? Qual é o assunto da sua tese?MartuxaSobre a mobilidade social.O que é isso?AcrísioMartuxaÉ um estudo sobre a ascensão dos imigrantes, nãosó economicamente como na sociedade.295AcrísioDeve ser muito interessante.MartuxaFoi sugestão do Roberto. Você sabe? Ele é filhode imigrantes italianos. Seu pai é o Genaro, contramestrelá na fábrica.Cláudio(Do bar força uma gargalhada) Vocês estão vendo?Aí está a chave de tudo!


Chave do quê?MartaCláudioClaro. Claríssimo. Vocês não enxergam o golpedesse Roberto, filho do Genaro?JuliaComo é que você deixa Martuxa no meio dessagente?MartuxaNão falem assim, por favor. É gente muito simplese muito boa. O Roberto é ótimo.296JuliaÉ de outro meio, Martuxa. Operários, imigrantes.MartaFazemos muitos rapapés a imigrantes que se enriqueceramaqui. Lá no jantar vamos encontrarmuitos deles.AcrísioNão façam gafes. Não se esqueçam que meusobrenome é Vivanti.CláudioNão tem nada uma coisa com outra. Você é você.O outro é meu contramestre.


Martuxa(Levantando-se) Que só não ficou rico porque trabalhana Santa Marta há 30 anos. Só por isso.CláudioEstá vendo, Marta, no que dá essa coisa de faculdade?JuliaNunca olhei com bons olhos essa faculdade.Não sei por quê.MartaCláudioNão sabe? Então você não percebe o que estáacontecendo?...297Não.MartaCláudioNão? Você não percebe o jogo do Genaro, percebe?...Que absurdo!MartaCláudioMartuxa amanhã vai largar essa faculdade. Nãoquero amizades com esse Roberto e, amanhãmesmo, mando o Genaro para a rua.


Muito bem, Cláudio.JuliaMartuxa(Com energia) Que injustiça! Aliás, você não podedespedir o Genaro. E, quanto a mim, não se esqueçade que tenho já 22 anos de idade!CláudioE não se esqueça de que sou seu pai. Não possoadmitir que você esteja às voltas com um cafajesteque se aproveita de minha filha para promovergreves em minha fábrica.298MartuxaIsso não é verdade. E Roberto não é cafajeste!Isso não admito!Cláudio(Gritando) É um cafajeste! E não levante a vozpara mim!Martuxa(Gritando) Não é um cafajeste!Cláudio(Gritando mais) Cale a boca!Martuxa(Berrando) Não calo! Não calo!


(Cláudio dá uma bofetada em Martuxa. Perplexidade.Cena muito rápida. Marta corre em socorroda filha. Abraça-a; de repente, num acesso deraiva, senta um bofetão no marido, com vontade.Este fica pálido, como cera. Acrísio e Clóvisintervêm, afastando Marta. Após dois segundosCláudio espatifa o copo no chão e sai furibundo,sem dizer palavra. Martuxa chora no regaço damãe, sentadas as duas no sofá, Julia, chorosa, fazmenção de sair, volta-se e chama por Clóvis)Julia(Chorosa) Vamos, Clóvis.(Clóvis hesita, olha para um, para outro e sedecide a acompanhar Julia. Deve-se sentir queJulia deu razão ao genro e que Clóvis quis darrazão à filha, mas acovardou-se e acompanhouJulia. Restam três pessoas em cena: Marta, calma,desabafada. Acrísio, apreensivo, e Martuxa,chorando, silenciosa)299AcrísioQue maçada! Que maçada!MartaNão tem importância. Champagne demais. Sóisso.AcrísioQue cena desagradável!


MartaBobagem! Somos casados há 20 e tantos anos.Já nos estapeamos diversas vezes. Isso acontece.Não podia dormir com essa. Agora estou aliviadae com fome. Com uma fome tremenda. Vamos,Acrísio.Vamos para onde?AcrísioMartaOra essa! Para o jantar! Não podemos ser grosseiroscom Elisabeth. Até logo, Martuxa. Agarreseu homem, não se esqueça disso!300(Martuxa levanta-se, beija a mãe e Acrísio)AcrísioAté amanhã, Martuxa.(Os dois vão saindo. Marta ainda diz a frase final,quase à saída:MartaAgarre o seu homem!Fim da cena I


Terceiro atoCena IIA cena está completamente escura. Em dadomomento, acende-se um abajur, no living. Houvepassagem de tempo, duas ou três horas. Acende-sea luz na sala de bridge. Vê-se o vulto deMartuxa se movimentando. O vulto de um moçoentra. Abraçam-se. Beijam-se. Martuxa sai por ummomento. O moço passeia pela sala em expectativa.Volta Martuxa com duas valises. O moçoa ajuda. Novo abraço. Martuxa sai pela direitae entra no living com uma carta. Dá uma rápidavista na sala e, afinal, deixa a carta, em lugarostensivo, no bar. E sai, entrando novamente nasala de bridge. O moço segura as valises e saemos dois, abraçados. Apaga-se a luz da sala debridge. Instantes depois, ouve-se a voz de Marta,que está falando alto.301Marta(Voz) Vamos beber a noite inteira. Inteirinha.Você tem sal de frutas em casa, Acrísio? (Martaentra) Deixe isso aí. Vamos, Acrísio, que coisa!Acrísio(Entra) Estava pendurando seu casaco.


MartaPodia deixar no chão! Você sempre dá ordem!Perde um tempão com essa coisa de ordem!(Marta já está no pileque. Bem firme, porém. Oálcool só lhe tocou o espírito. Marta cantarolao Yes, sir, that’s my baby e dirige-se à vitrola.Acrísio acende outras luzes)MartaNão, Acrísio, por favor. Luz demais. Apague,apague.(Acrísio apaga a luz mais forte, ficando algumasacesas)302MartaÓtimo! (Esboçando uns passos de tango e cantando)E toda a media luzCrepúsculo interiorLá lá lá lá lá lá lá(E abre a vitrola, procurando uns discos, falandoenquanto procura) O jantar estava bom! Não hádúvida! Mas a Elisabeth que tenha paciência!Não sabe fazer ambiente! Que gente cacete,meu Deus!AcrísioNem por isso! Estava muito agradável. Fizemos malem sair antes. Uma gafe. Ficou todo mundo lá!


Marta(Sempre procurando os discos) Gafe! Gafe! Vocêtem a mania de gafe. Já é um complexo. Estavacacete. Estava cacete. Já não posso mais comessa gente! Que diabo! Onde foram parar essesdiscos... E você viu o Cláudio? Lampeirinho! Ebofetão de cá, bofetão de lá, greve na fábrica, eele ali, como se nada tivesse acontecido!AcrísioÉ classe... Ou temperamento!MartaClasse! Classe B. B de bofetão! Dar um tabefenuma moça de 22 anos é classe?... Ah! Está aqui!Achei!... Cinismo, isso sim!303(Ouve-se bem alto o disco Yes, sir, that’s mybaby... Marta levanta-se e ensaia uns passos deCharleston, cantando com o disco) Vem, Acrísio.Il faut degourdir les jambes. (Cantando) Yes, sir,that’s my baby... No, sir… (logo pára, arquejante,levantando-se enquanto Acrísio diminui o somda vitrola que agora consiste num leve fundomusical) Nunca dancei direito essa droga. Acrísio,me dê seu lenço. (Acrísio lhe serve o lenço. Depoisde uma pausa em que refez a respiração e compôso cabelo e o rosto, fala como que pensandoalto. A vitrola muda de disco, agora toca o Moi,j’ai fait ça machinalement... muito de leve, de


modo a não perturbar o diálogo) Quando tinha16 anos... Já faz muito tempo... Surpreendi meupai atracado na minha professora de inglês...AcrísioEra bonita, pelo menos?...MartaOf course! Pretty, lovely… Adorable. Papai precisavaera de uma… Como direi… Uma sleepingteacher… Enfim… Ele queria aprender inglêscom toda a comodidade... Deitado com ela...Na cama.304AcrísioMuito objetivo. Prático. Uma sleeping teacher,muito bem lembrado.MartaAos 20 anos... Justamente no dia em que fiz 20anos, no dia em que fiquei noiva daquele quehoje se diz meu marido... Ah, ah, ah... Pareceanedota... Surpreendi minha mãe atracada comClóvis... Ali... Eu estava ali, naquele canto... Sentadana poltrona... E o Clóvis aos beijos com minhamãe, ali... Junto ao bar... Marcando encontroscom ela.AcrísioMas estão casados. Acabou-se.


MartaSim. Papai morreu... E o Clóvis não teve outrasaída. Nem esperaram um ano! Sabe que mais?Fizeram muito bem. Bobagem esse negócio deluto. Foi por causa da vovó.AcrísioE também por sua causa.MartaPor minha causa? (Gargalha) Que o quê! Eu játinha me casado. E entre mim e mamãe... Depoisdaquela cena que eu presenciei... Dali... Homem...Nem é bom falar... O caso de papai não me afetoutanto. Passei a gostar mais de mamãe. Paramim ela era a heroína, a mártir, a sofredora silenciosa...Sei lá... Era tudo de bom que se lê num romanceou se vê numa fita de cinema. Mas depois,desmoronou, despencou, ruiu... Fez assim, olhe(e faz um gesto de um castelo que se despenca)Mamãe me disse: mais tarde você compreenderá.E compreendi... Et pour cause! Compreendi. Essefavor devo ao Cláudio. Ele pode se gabar disso!Uff! Está um calor aqui, não?...305AcrísioO melhor é você ir se deitar. Vou-me embora. Jáé muito tarde.


MartaVai coisíssima nenhuma. Fique aí. Ainda temosmuito que conversar.AcrísioVocê me desculpe, Marta, mas não estou interessadonessa conversa. Até amanhã.306Marta(Levantando-se) Se você sair, eu brigo comvocê! Nunca mais falo com você. (Mudandode tom) Fique mais um pouquinho. Você nãopercebe que não posso ficar só? Que precisode alguém que me ouça? Você é ou não émeu amigo?...AcrísioClaro que sou, Marta. Mas você há de compreender...MartaNão compreendo nada. Fique aí quietinho,meu amigo... Meu único amigo. Com licença.(Marta beija Acrísio no rosto, fraternalmente)Agora, sente-se aí. Muito bem. Muito obrigada,Acrísio. (Senta-se de um jato, no sofá)Ufa! Que calor! Que gente horrorosa estavalá na casa da Elisabeth! Sabe que mais? Nãoposso mais suportar a Elisabeth, coitada, tãoboazinha. Mas enjoei, enjoei!


(Voltando ao mesmo tom anterior, pensandoalto) Não fiz ilusão com o meu casamento.Gostava do Cláudio, mas nunca estive apaixonadapor ele. Encarei o problema como umaprincesa a quem compete defender a dinastia...A dinastia era aquilo ali (aponta para aparede de vidro) a Santa Marta Fabril S. A...Passei a viver em função da Santa Marta FabrilS.A. Com vovó foi assim, com mamãe também,chegara a minha vez.(Entra na vitrola a música da revolução de 32)Depois nasceu Martuxa. Como eu previa, Cláudiojá me enganava. Sem muita cerimônia... Era doprograma. Nem liguei. Olhe, para ser franca, deiaté graças a Deus. Nada de responsabilidadessentimentais. Eu não gostava dele. Com você nãofoi a mesma coisa?...307Comigo, como?...AcrísioMartaVocê não deu graças a Deus quando a Nenêse apaixonou pelo barão e deu o fora para aEuropa?...AcrísioFoi um tanto desconcertante. Mas, na verdade,não deixou de ser uma boa solução.


MartaClaríssimo. Para você, foi sopa no mel.AcrísioVamos deixar a Nenê em paz, coitada.MartaPaz... Quem é que tem paz nesta terra? Pois é.Quando nasceu a Martuxa eu me prometi: estanão entrará na onda da Santa Marta, esta iráviver a vida dela.AcrísioPromessa que você realizou muito bem.308MartaMas tem luta, sempre teve luta.AcrísioEla agora está lutando.MartaNão se incomode que ela saberá resolver o problema.Depois, veio a revolução. Meu pai morreue mamãe também resolveu o seu problema. Eveio a crise. A Santa Marta estava praticamentequebrada e aí apareceu você. Vou lhe falar francamente,Acrísio.AcrísioPrefiro que não fale. Peço-lhe, por favor.


MartaÉ mesmo. Não é necessário. Você percebeu tudo.Eu sabia que não estava lhe enganando. Masfique sabendo de uma coisa. Foi o útil ao agradável.Cheguei a me apaixonar por você. Você foi omeu grande amante. (Mudando de tom) Amante.Que palavra ridícula! Só serve para ser usada nascrônicas dos crimes passionais! Fulano degoloua amante. A mulher envenenou o marido porcausa do amante. Tudo isso em letras garrafais.Deste tamanho. Pois é. Depois você me trocoupor uma embaixada na Europa. Tudo vaidade!Você me tinha por vaidade! Em todo caso, tinhaque ser assim. Foi a solução.AcrísioQuando eu voltei, quis reatar com você e você merespondeu que detestava sopa requentada.309MartaDois anos depois, meu amigo. Em dois anosacontecem muitas coisas. Vovó morreu e veio aguerra. E a Santa Marta transformou-se numapotência econômica. Cláudio pensa que a SantaMarta é obra dele. Deixa pensar. Quem criou aSanta Marta foi vovó. Quem a salvou da crise...Fui eu.Acrísio


MartaVocê nada. Fui eu, e quem fez o que ela é hojefoi a guerra. Foram os alemães, os japoneses, obloqueio, e Cláudio pensa que foi ele.AcrísioSerá que ele pensa mesmo?...310MartaClaro! Você não vê o arzão dele? Aquele narizempinado para cima? Ufa! Que calor! Estoucom uma sede!... (Levantando-se) Quem sabe sesobrou um pouquinho de champagne ali. (E vaiao bar onde está o balde com uma garrafa dechampanha. Vê a carta depositada por Martuxa.Rasga o envelope e lê com grande satisfação.Entrega-a a Acrísio) Não disse que ela saberiaresolver o problema?... (Enquanto Acrísio lê acarta, Marta enche duas taças de champagne)Tome, Acrísio. Vamos beber à saúde de minhafilha. À felicidade de minha filha! (Acrísio pegaa taça e brinda)AcrísioViva a nova geração! ... Viva a sua filha querealizou...MartaO que eu não pude realizar. (Bebem) De repente,os dois, num mesmo pensamento, viram-se para


a parede de vidro e, levantando as taças, gritam,uníssonos:AmbosAbaixo a Santa Marta Fabril S.A.!!! Morra a SantaMarta Fabril S.A.!!!(Bebem, esvaziando as taças e ainda, numacomunhão de pensamentos, cantam ao mesmotempo)Um, dois e três!(e espatifam as taças no painel de vidro, em plenaefígie da Santa Marta. E o pano cai lentamente,ao som de uma gargalhada sonora de Marta)311


Kléber Macedo e Cacilda Becker na peça ...em moedacorrente do país


...em moeda corrente do paísComédia em três atosEstréia: São Paulo, 16 de dezembro de 1960, pelaCompanhia Brasileira de Comédia, no TeatroCacilda BeckerPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)FloripesCacilda BeckerGuimarães Walmor ChagasGervásioFredi KleemannEdwigesKleber MacedoDalvaAlzira CunhaDireçãoWalmor Chagas313(Prêmio Governador do Estado como revelaçãode diretor)CenáriosJean Gillon


Primeiro atoCenário: Sala de estar-jantar de um apartamento,num desses edifícios de habitaçãocoletiva, construídos por uma instituição deprevidência social.É um apartamento de fundo e a janela centralda sala dá para uma área promíscua.Entradas à direita e à esquerda.Decoração moderna, pobre e de gosto duvidoso.314Mesa, cadeiras, um móvel ao longo da paredepara várias serventias, bibelôs, livros, etc.Um aparelho de televisão.Mais ou menos 10 horas da manhã.Um rádio funciona furiosamente no apartamentovizinho.Guimarães trabalha, sentado à mesa. Escreve,anota, faz contas, numa pequena máquina decalcular, compulsa processos e examina papéisespalhados pela mesa.É homem de seus 35 anos, sem mocidade, tiponormal, de classe média. Trabalha em mangas de


camisa, sem gravata. O paletó está no espaldarde sua cadeira.É difícil concentrar-se no serviço com aquelelocutor gritando desesperadamente os sloganspublicitários. E que publicidade!LocutorSenhoritas! Atenção! Halitol é a garantia de umnoivado! O mau hálito acaba com qualquer namoro!Halitol acaba com qualquer mau hálito!Halitol, pela manhã! Halitol ao deitar-se. Vai vera noiva? Halitol. Halitol, sempre Halitol. À vendaem todas as farmácias e drogarias que se prezam!Halitol! Não se esqueçam! Halitol!LocutorPrisão de ventre?! Laxativos Trovão! (barulho detrovão) – Não há mais prisão de ventre! Em pílulas,ora pílulas! Laxativos Trovão – é a solução.315LocutorDentifrício Pérola! A pérola dos dentifrícios! Usedentifrício Pérola e seu sorriso serão pérolas!LocutorSenhoras e senhoritas! Loiras e morenas! Para ocheiro de corpo não basta só água e sabão! UsemCecedida! Com sabão ou sem sabão, Cecedida é aprópria expressão de seu nome – Cecedida mataqualquer cecê.


LocutorNúmero um – escassez. Número dois – excesso.Regulador Gesteira.316LocutorE agora um pouco de música oriental. O programaque passaremos a ouvir – Ritmos do Oriente– é patrocinado pelo comércio da Rua 25 deMarço. Ritmos do Oriente é a hora da saudadelevantina. Façam suas compras na Rua 25 de Março.Medidas exatas. Preços sem redução. Os maisbaixos da praça. Comprando na 25 de Março, osenhor, a senhora, a senhorita, levará um embrulho,sem ser embrulhada. E por pouco dinheiro.O dinheiro não interessa. O que interessa é queo freguês saia satisfeito, para voltar. E vamosouvir o primeiro número do programa – Ritmosdo Oriente – Saudades de Beirute – música deWadih Chama – letra de Farid Derah.(E segue uma langorosíssima música síria. Guimarãesesboça um gesto de impaciência. Não podetrabalhar com esse barulho. Resolve levantar-se.Dirige-se à janela para fechá-la. Na ação de fechara janela é interrompido pela voz da vizinha,dona Hermengarda, com pronunciado acentonordestino)Voz de HermengardaBom dia, seu Guimarães.


GuimarãesBom dia, dona Hermengarda.Voz de HermengardaDona Floripes está?GuimarãesComo? Não entendi.Voz de HermengardaDona Floripes está em casa?GuimarãesNão senhora. Foi à feira.Foi aonde?Voz de Hermengarda317GuimarãesÀ feira. Mas volta já.Voz de HermengardaO quê? Fale mais alto, seu Guimarães.É o rádio.É o quê?O rádio.GuimarãesVoz de HermengardaGuimarães


Voz de HermengardaEspera um pouco.(O rádio é desligado. Guimarães suspira aliviado)Voz de HermengardaSeu Guimarães: o senhor pode me fazer umfavor?GuimarãesÀs ordens, dona Hermengarda.318Voz de HermengardaÉ de me emprestar o último número de GrandeHotel. Dona Floripes tem. Ela comprou ele.Voz de GuimarãesPois não. Vou ver se está aqui.Voz de HermengardaVou buscar então. Aí na porta.(Guimarães sai da janela. Procura pela revista. Saida sala. Ouve-se o diálogo, no vestíbulo)Voz de HermengardaÉ essa mesma. Hoje de tarde devolvo para donaFloripes. Estou acompanhando a novela – Honestidadede amante – Muito bonito. Real. Osenhor não leu?


Voz de GuimarãesAinda não, senhora.Voz de HermengardaAdoro história de quadrinho. É a coisa melhorque tem. Cinema e fotonovela! E é instrutivo, osenhor não acha?Voz de GuimarãesAcho, sim senhora.Voz de HermengardaMuito obrigada. Pode ficar sossegado que hojede tarde, o mais tardar, de noite, eu devolvo. Atélogo. Obrigada.Voz de GuimarãesAté logo, dona Hermengarda.319(Guimarães volta à sala. Silêncio. Não se ouvemais o rádio. Guimarães senta-se à mesa e vaireiniciar o trabalho, mais esperançado. Nem bemrecomeça o serviço, entra furiosamente o som dorádio de dona Hermengarda. Guimarães não seagüenta. Vai à janela e chama, com veemência)GuimarãesDona Hermengarda! Dona Hermengarda!Voz de HermengardaQue é, seu Guimarães?


GuimarãesA senhora pode abaixar um pouquinho o rádio,por favor?Voz do LocutorSal de frutas Demo alivia o seu ventre e melhorao seu mau humor.Voz de HermengardaO senhor precisa tomar sal de frutas Demo, seuGuimarães. O senhor anda muito azedo.GuimarãesÉ o meu fígado. Suco hepático.320O quê?Hepático.Voz de HermengardaGuimarãesVoz de HermengardaO senhor é simpático, mas tem mau humor.Quem tem mau humor não pode morar emapartamento.(Baixa sensivelmente o som do rádio. Mas fechoua janela e cerrou a cortina, abafando completamenteo som. Uns instantes após, entra Floripes,vinda da feira. É mulher de seus 30 e poucos anos.Tipo de mulher nervosa e agitada que fala, fala


sem parar. Veste calça comprida e malha. Não éelegante, mas está bem, na sua indumentária deir à feira. Traz um carrinho com os mantimentosque comprou. Floripes entra em cena e atacalogo a fala, não parando de falar)FloripesNão sei como não rebenta logo uma revoluçãonesta terra. Nós somos mesmo uma carneirada!Uma carneirada! Um absurdo! Não se pode maisir à feira! Uma barbaridade! Não há dinheiro quechegue! Da semana passada para agora tudo subiu!Os preços sobem de semana a semana! Vocêse lembra de que quando nós mudamos para estecortiço... Porque isto aqui é um cortiço... Não éprédio de apartamentos... Um cortiço! Eu mecasei com você e acabei morando num cortiço!Mas não há de ser por toda a vida, não. Nem quevocê queira. Isso é que não. Se você pensa queeu vou morar neste viveiro, neste galinheiro, oresto da vida, está muito enganado... Mas quecalor! Isto aqui está abafado! Também, com ajanela fechada! Só você mesmo!321GuimarãesFechei por causa do rádio, ali, da Hermengarda.Não podia trabalhar com o barulho.FloripesÉ o que eu estou dizendo! Uma gentinha!


GuimarãesSão funcionários públicos! Colegas nossos!FloripesQue colegas! Você pensa que por eu ser funcionáriapública...Guimarães... Você é melhor que os outros?322FloripesQue essa gente aí, sou. Pelo menos tenho educação.Se não nasci rica, pelo menos fui bem educada.Essa gente não tem educação para morarem apartamento. Onde já se viu botar o rádioalto? Gentinha. Gentalha. É isso.Pobreza é isso. Eu podia ser rica...Guimarães... Era só fechar os olhos...FloripesE que adiantou? Não casei com ele porque eleera feio...... Feio é apelido!GuimarãesFloripesE que é que eu ganhei me casando com você?Você é bonito, por acaso? Que é que adiantou?


Ele está lá morando no Jardim América, automóvele tudo. Acabou casando com mulher bonita...E eu... Eu aqui... Indo à feira... Trabalhando...GuimarãesAté que de trabalho você não pode se queixar.FloripesE eu me queixo? Não estou me queixando! Nãoadianta. Eu não sou de falar. Suporto tudo quietinha.Mas um dia eu estouro. E ninguém mesegura. Vou agüentando, calada... mas um dia acasa cai. Hoje na feira já dei o show. Não se podemais ir à feira sozinha! Uma senhora não podemais ir à feira! É tudo uma roubalheira e além domais é falta de educação geral. É só palavrão. Nãorespeitam mais ninguém. A gente passa perto doguarda, do fiscal, ouve-se palavrão e o polícia nãofaz nada. Nem o fiscal. O fiscal não fiscaliza nada.Está ali para agradar os feirantes e ir ganhandosuas gorjetas. Eles pagam, mas abusam. E, afinalde contas, quem paga é o povo!323GuimarãesAlguém lhe faltou com o respeito?!FloripesQue faltou com o respeito nada! Eu é que dei umalição. Na barraca tinha uva. Cem cruzeiros o quilo.Um absurdo! Nem que fossem de ouro! Cem


324cruzeiros o quilo. Peguei uma uva, uma uva só.Para experimentar. Não ia comprar uva ordináriapor cem cruzeiros. E o galego gritou comigo – aum cruzeiro o bago – falou gritando. Malcriado.Eu disse: Ah! É! Um cruzeiro? – Me deu umaraiva! Eu já estava esquentada... Não agüentei...Peguei o cacho todo, joguei com força no chão,esmigalhei... Esmigalhei os bagos todos – Agoraconta. Conta, quantos são. E vai cobrar do meumarido. Quer saber em que repartição ele trabalha?Quer? – O homem não disse nada. Também,se ele abre a boca eu jogava outro cacho na caradele. São uns covardes. Quando viu que eu estavadisposta, que não tinha medo, ficou quieto... Ah!Eu tinha que ter nascido homem...GuimarãesDaqui a pouco vem o homem encrencar aqui naporta. Você deu nosso endereço?FloripesE era para vir mesmo.GuimarãesE você me punha na fogueira, com os seus bagosde uva?FloripesNão precisa ficar nervoso, que ele não vem não.Ele ficou com medo é de mim! Eu tinha que ternascido homem!


GuimarãesAcho melhor você não ir mais à feira. Você émuito briguenta. Um dia acontece qualquercoisa de muito desagradável. O melhor é vocênão ir mais.FloripesVocê pensa que vou à feira por gosto? E quem éque vai? Você? A Dalva?GuimarãesNão. A empregada.FloripesE onde é que está aquela desgraçada? Ainda nãoveio! Se vou esperar por ela, ficamos sem almoço.E nós vamos ficar sem almoço mesmo, porque voumandar ela embora... Ela pensa que sou idiota!Que horas são? São 10 horas! Mais de 10 horas!E ela ainda não veio. Justamente dia de feira. Éuma sem-vergonha! Não faz nada!325GuimarãesComo não faz nada?! Faz almoço e jantar. Limpaa casa.FloripesÉ claro. Eu não vou esperar que você me dê razão!Você nunca me deu razão! Eu vou morrere você nem no caixão vai me dar razão. Eu sei


que é assim. Não adianta me queixar. Por issoque eu não abro a boca. Você defende a criada.Você defende aquela sem-vergonha contra mim.É claro. Mas ela vai embora. E é hoje. Nem vaifazer o almoço. É chegar, fazer meia-volta e ciaomesmo. Tua irmã que faça o almoço. Eu não tenhofome. Tua irmã, que é folgada, que vá paraa cozinha. Eu é que não vou fazer força. Não mecasei para ser sua criada.GuimarãesEstá certo. O melhor é você não despachar aempregada, até arranjar outra.326FloripesE onde vou arranjar outra? Ninguém quer trabalharneste cortiço. Só a peso de ouro!GuimarãesPois vamos aumentar o ordenado...FloripesÉ. Vamos dar todo o dinheiro para a empregada.Você é que devia tratar de ganhar mais. Você émole. Molenga. Trabalha... Trabalha... Trabalha.O expediente é só de tarde. Você traz serviço paracasa. Fica enchendo a mesa com essa papelada.A gente nem pode ouvir televisão. Não se podefazer mais nada.


GuimarãesDe manhã não há televisão.FloripesVocê devia trabalhar na repartição. Assim lhepagavam hora extra. Mas você é mole! O queé que se vai fazer? Na sua repartição todomundo está bem. Ninguém faz nada e aindaganham por fora. Mas você é que há de trabalharde graça...GuimarãesFloripes: não fale mal de meus colegas. Todostrabalham e muito.327FloripesConversa. Trabalham meio expediente e olhe lá.E não me venha dizer que não comem por fora.O dinheiro deles não é de borracha. Se ganhamcomo você, não podem ter automóvel e nemjogar nas corridas. Você ganha, eu ganho... ADalva ganha e o nosso dinheiro dá apertado! Sealguém aqui ficar doente, eu não sei como é quevai ser! E lá o pessoal a viver folgado. Boa casa;a mulher luxando. DKW. Cinema todo dia... Teatro...Nós nem podemos ir a teatro, que é caro!Não, Guima: aquilo não é só ordenado, não. Essanão passa por aqui... Aliás, todo mundo sabe...


GuimarãesVocê não deve estar falando sem saber. Eles têmoutras fontes de renda... Você não deve estarfalando...FloripesEstou falando para você, que é meu marido.Também, se não posso me desabafar com meupróprio marido... Aliás, não sou palmatória domundo. Nós é que somos idiotas. Nós, não. Você.Você é que é um perfeito idiota. Me desculpe afranqueza, mas é...328Guimarães... Idiota, não. Honesto, é o que você quer dizer?FloripesHomem... Não sei... Por isso me calo... Mas, nostempos que correm... Honesto ou idiota é quasea mesma coisa.GuimarãesMas tem o – quase – que atrapalha.FloripesAtrapalha você, mas tem ajudado os outros. Oque eu sei é que todo o mundo se vira e vai paraa frente. E nós aqui nesta dureza...


GuimarãesNão acho que seja tanta dureza. Vivemos decentemente...Não devemos nada a ninguém. Temosnosso teto...FloripesTeto?! Você chama isto de – teto ?! Está bom!Não vou discutir esse assunto com você. Vocênunca me deu razão. Mas que está na cara, está.Isso ninguém diz o contrário. Só você. O maiscego é aquele que não quer ver. Não é, não querver. É que você não tem peito. Peito, Guima, peito.Você nasceu é pra isso: trabalhar, trabalhar,ganhar uma mixaria, viver uma vida micha e,quando morrer, nem lugar no cemitério tem. É navala comum. Viver assim não é vantagem. Vantagemé ganhar a gaita. De um jeito ou de outro,a gaita é que vale. O dinheiro é que manda,Guima. Por que eles não bolem com quem temdinheiro? A corda sempre rebenta do lado maisfraco. Bem, não adianta falar. Estou pregandono deserto. O melhor é levar isto para dentro...Uma dúzia de ovos, 80 cruzeiros! E você vem mefalar em honestidade! Quanta gente não rouboupara o ovo chegar a este preço! Vou te contar!Não é só o dono da galinha, não. É todo mundo!E para pagar o ovo a 80 cruzeiros a dúzia, só comdinheiro roubado! Na semana que vem vai estara cem! Vou te contar...329


(Floripes sai com o carrinho da feira. Guimarãesobser va a sua saída, no mais absolutoconformismo, e volta para seus estudos e cálculos.Entra a empregada, Edwiges, preta ou mulatapernóstica)EdwigesBom dia, seu Guima. A patroa está, não está?GuimarãesEstá na cozinha. Acabou de vir da feira.330EdwigesIh! Hoje é dia de feira! Dia de feira é espeto! Nãoé que eu me atrasei por ser dia de feira. Até queeu gosto de ir à feira. Mas a patroa vai pensarque eu manquei só por ser dia de feira...GuimarãesÉ melhor você explicar tudo diretamente a ela.EdwigesEu careço de dar explicação. Minha obrigaçãoé fazer a comida e limpar a casa. Tenho tempopara tudo. A comida chega sempre na hora e acasa está sempre arrumada. Obrigação de ir nafeira não tenho. Vou porque me apraz. Gosto deespairecer um pouco...GuimarãesNão sei se você deve explicar ou não. Vá entender-secom ela.


EdwigesO senhor não acha que eu estou com a razão,seu Guima?GuimarãesNão sei. Só sei que você entrou muito tarde hoje.EdwigesO senhor também já quer me dar a bronca, seuGuima?GuimarãesEu não quero dar... Esse assunto não me interessa.Me deixe trabalhar um pouco...EdwigesO senhor está azedo hoje, seu Guima...331GuimarãesE faça o favor de não me chamar de Guima. Meunome é Guimarães.EdwigesEstá certo, doutor Guimarães...GuimarãesE não sou doutor.EdwigesO negócio que está azarado por aqui hoje, está.Até seu Guima, seu Guimarães, que é uma moça...


É. É noroeste de banda errada. Quando o noroestevem de lá, está bem. Mas quando soprade cá, então é andar de figa e se benzer. Eufiga não trouxe e me benzer não posso...GuimarãesÉ. Então a coisa vai mal para o seu lado! Prepare-seque vem pé-de-vento.(Entra Floripes)332EdwigesBom dia, dona Floripes. A senhora me desculpede eu chegar atrasada, mas não foi por causada feira, não.FloripesNão é questão de atraso, é que há muita coisaaqui que não está certo.EdwigesO que é que não está certo?FloripesEm primeiro lugar, isso não é horário. Você sabemuito bem que você deve entrar às oito...EdwigesÀs oito, não senhora, às nove. Quando a senhorame tratou foi às oito, mas depois a gente viu


que às oito não adiantava nada e passou a seràs nove.FloripesMas são mais de dez.EdwigesÉ que deu galho lá em casa. Houve briga. Tiveque ir na delegacia prestar declarações.FloripesE ainda por cima criando caso com a polícia...EdwigesAh! Isso é com a minha vida particular, ninguémtem nada com isso. O que acontece aqui, nestacasa, está certo, quer dizer, tenho que dar satisfações...Mas fora daqui, na minha vida privada... Acoisa é comigo... Se a casa está limpa e a comidana hora...333FloripesMas eu soube que na nossa ausência, durante oexpediente da repartição, você recebe pessoasaqui em casa. E isso não é possível! Não possoadmitir uma coisa dessas!EdwigesJá foram fazer fofoca para a senhora! Vejam só!Foi uma vez... Uma vez não... Foram duas vezes,


juro que foram só duas vezes... Quero cair duraaqui de ataque, se foi mais de duas vezes...FloripesEntão? Recebeu, não é? E você acha que isso estádireito? Eu ser chamada a atenção pelo zeladordo edifício?!EdwigesMas não foi para safadeza não, dona Floripes.Quero morrer torrada agora mesmo, se não éverdade. Foi meu primo...334FloripesÉ sempre a história do primo...EdwigesEstá bem... Essa de primo não pega mais... Masnão foi para safadeza... Eu respeito a moral dacasa dos outros... Eu tenho minha moral e respeitoa dos outros. Não é como muita gente queconheço. Não me faça falar...FloripesO que você quer dizer com isso?EdwigesNada. Não quero dizer nada.


FloripesVamos. Explique-se. O que você quis insinuar?Não gosto das coisas assim. Trata-se de alguémdesta casa?EdwigesNão, senhora. Não é nada. Não é com esta casa.FloripesVocê não pode receber ninguém nesta casa, nanossa ausência. Está certo?EdwigesEstá bom, dona Floripes.FloripesE tem mais. É melhor a gente falar as coisas, paranão haver mal-entendidos. Não adianta depoisvir me dizer – eu pensei que – isso não. Comigoé tudo combinado, esclarecido e tratado...335EdwigesEu estou dizendo que a coisa está virada hoje...FloripesO que é? O que foi que você disse?EdwigesNão foi nada. Prossiga, dona Floripes.


FloripesPois é. Eu sei que você leva coisas para casa. Mantimentos.Comida que sobra. Você leva tudo. Issoeu não quero.EdwigesComo é que eu levo coisas para casa? Aqui nuncasobrou nada! Cozinho numa marreta desgraçada!336FloripesLeva, sim senhora. Leva pouco, mas leva. E eunão quero que leve nada. Ora essa! Ontem vocêlevou dois ovos. Isso eu sei, porque contei. Forao que eu não sei.EdwigesPuxa vida! Que mixaria!FloripesPode ser. Não é pela quantidade. É que não estádireito! Você tem que respeitar a propriedadealheia. O que está na cozinha não lhe pertence,seja pouco ou seja muito.EdwigesEstou vendo que a senhora quer que eu váembora .


FloripesNão estou lhe mandando embora. Mas se vocêcontinuar, tem que ser conforme combinamos.E tem mais uma coisa.É a última?EdwigesFloripesÉ. Eu sei que você, assim que a gente sai, abre atelevisão a tarde toda. Isso também não quero.Não quero que bula na televisão.EdwigesSabe o que mais, dona Floripes? A senhora quermesmo que eu vá embora. Pois vou. Prefiro catarpapel na rua que trabalhar nesta mixaria! Puxavida! Nem televisão! A televisão fica aí mofando!É. Eu vou me embora. Vou catar papel na rua.337FloripesEstá muito em moda. Depois você escreve umlivro.EdwigesQuero ver a senhora arranjar uma empregadapaciente como eu! Está tudo trabalhando emfábrica.


FloripesSe não arranjar, paciência. Eu sei me virar. Fuieducada no trabalho e não na dependência deempregada.EdwigesNão é pela senhora. É pelo seu Guimarães, quese acostumou com o meu tempero.FloripesEle se acostumará com outro, não se incomode.338EdwigesEle se acostuma com tudo, coitado! Que remédio,não é seu Guima? Bom. Então eu vou me emboramesmo. Aqui não venho mais, nem morta. Podefazer minhas contas.FloripesSó no fim do mês. Você é quem vai sair. Não lhemandei embora. O ordenado, só no fim do mês.EdwigesDeixa. Meu marido vem buscar o dinheiro.FloripesPois que venha. Só no fim do mês. Antes, podemvir seu marido, seu pai, sua mãe, toda a família,que não recebem nada. Não pense que eutenho medo. E pode ir embora já. Se é para ir,que vá já.


EdwigesTá. Depois nóis acerta. Até logo, seu Guimarães.Te güenta aí, seu Guimarães. (Edwiges sai)FloripesAh! Eu devia ter nascido homem!GuimarãesPara quê? Deus nos livre!FloripesPara encher a cara dessa negrinha! Viu o que eladisse? Como se eu fosse alguma jararaca! Vocêacha que está certo passar o dia todo ouvindotelevisão? Está certo? Levar coisas para casa? Receberpessoas aqui? Você viu o que ela insinuou?Garanto que isso é com a Dalva!339GuimarãesO que é que há com a Dalva?FloripesNão sei. Mas o que a Edwiges insinuou foi coma Dalva. Com sua irmã e Gervásio. Ela recebe oGervásio aqui. É isso.GuimarãesE o que é que tem que o Gervásio venha aqui?Ele é meu amigo. Meu colega.


FloripesÉ que ele vem aqui sozinho com ela. Ela é moçasolteira. Isso não está certo. Eu não tenho nadacom a vida dela. Ela é maior, livre. Tem você queé irmão. Mas mora aqui em casa. Isso não estácerto.GuimarãesVocê põe veneno em tudo!340FloripesEu não estou dizendo nada. Quem devia ver issoé você. Mas você fecha os olhos. É como avestruz.Prefere fechar os olhos. Eu não gosto de falar.Mas o caso já está na boca da negrinha.GuimarãesEla não disse nada.FloripesNão disse nada mas estava na cara. Eu devia terapertado ela, que ela se explicava.Para quê?GuimarãesFloripesPelo menos você ficava sabendo. Você teria quetomar uma atitude.


GuimarãesE que atitude iria eu tomar? Vou expulsar minhairmã de casa?FloripesNão sei. Isso é com você. Aqui em casa é quenão quero que se encontrem. Isto aqui não érendez-vous.GuimarãesComo você é maldosa! Floripes! Por que você falaassim, de sua cunhada? Ela trata você tão bem!Trabalha. Ganha sua vida. Decentemente! Nãoteve a sorte de se casar.FloripesSorte de se casar? Como eu?! Quer me enganarque tive a sorte de me casar? Com você! Sortede casar, eu!341GuimarãesEu não disse nada, Floripes. E vamos dar o assuntopor encerrado.FloripesEu falo quanto quiser! Engraçado! Diz o quequer e depois quer dar o assunto por encerrado!Essa é boa!GuimarãesEntão, fique falando sozinha.


(Guimarães levanta-se, começa a arrumar suapapelada para retirar-se, quando se ouve umadiscussão no apartamento vizinho. A voz de donaHermengarda e possivelmente a de seu marido,ou do homem que vive com ela)Voz do maridoVamos acabar com isso! Você é uma vagabunda!Uma cachorra! Uma cadela! Cala a boca!.Voz de HermengardaCala a boca sua mãe, ouviu?342Voz do maridoRepita aí, sua vaca!Voz de HermengardaMe bate! Me bate!Voz do maridoOlha que eu te quebro a cara! Um dia aindate dou tanta pancada! Sua cachorra! Eu quete pegue de novo com ele! Não sei como nãote esgano!Voz de HermengardaCachorro é você, seu canalha!Cala a boca!Voz do marido


Voz de HermengardaMe mata! Me mata!(Ruído de pancadaria. O marido bate em Hermengarda.Esta põe a boca no mundo. Pancadariae gritos. Floripes não se contém. Vai à janelae grita)FloripesVou chamar a radiopatrulha! Vou chamar a radiopatrulha!(A pancadaria e a gritaria cessam)Voz de HermengardaCuida da tua cunhada que é melhor!(Floripes fecha imediatamente a janela e cerra acortina. Momento de expectativa. Floripes consideraGuimarães)343FloripesVocê está vendo? Está na boca do povo!GuimarãesVocê fez muito mal em intervir. Devia ter fechadoa janela e pronto.FloripesE eles a darem escândalo aí? E eu sou obrigadaa ouvir essas coisas? Vou me queixar com ozelador . Isso não pode continuar. Que gentinha


344mais reles! E você ouviu o que ele disse? Foibom que você ouvisse. Está na boca do povo.Falam no edifício. Falam na repartição. E euter que morar neste cortiço! Mas não há deser para toda a vida, não. Não tem perigo! Eunão agüento isso! Nem morar com tua irmã,de vida irregular. Vida suspeita! Suspeitíssima!E muito menos morar neste cortiço, a ouvirpancadaria e palavrões. Deus que me livre!Isto não é vida! E agora aquela estúpida foiseembora. Eu é que não vou ter empregadapara ouvir televisão e levar comida para seushomens. Isso não. Quer ir embora, que se vá.Comigo aqui tem que andar direito. Não temninguém para fazer almoço. Eu é que não voupara a cozinha! Também é demais! Agüentaro que eu agüento e ter de fazer comida?! Não.Nunca! Não vou para a cozinha. A Dalva quevá. Onde está ela? Está dormindo! Leva a vidamansa! Não tem marido para chatear! Vidamansa! Está dormindo! Qual é a dela? Mas comigonão. Almoço eu não vou fazer. Não tenhofome. Tomo um copo de leite, um pedaço depão com manteiga e pronto.(Entra Dalva. É uma moça bonitinha, simpática,de seus 28 anos. Veste saia esporte e está semblusa, apenas de soutien. Traz a blusa na mão,para passar)


DalvaBom dia. Bom dia, Guima. Bom dia, Floripes.Bom dia, Dalva.GuimarãesDalvaOnde está a Edwiges? Queria que ela passasseesta blusa. É a única que tenho para hoje.FloripesA Edwiges despediu-se.Quando?Dalva345FloripesHoje, agora. Chegou tarde. Levou pito. Achouruim e foi-se.E agora?DalvaFloripesE agora! E agora! E agora arranja-se outra. Queo mundo não vai se acabar, só porque a negrinhafoi embora. Hoje não tem almoço. Que eu nãovou para a cozinha. Só se você fizer, Dalva. Façapara o Guima, porque eu não preciso.


DalvaVocê não quer que eu faça um almocinho paravocê, Guima? Faço num instantinho. Um bife,ovos...GuimarãesPode deixar, Dalva. Como de leiteria. E o jantar?FloripesEu janto com papai.346DalvaJantar não é problema. O almoço é que é paraagora.GuimarãesNão tem importância. É que precisamos arranjaroutra empregada.FloripesPode deixar que eu arranjo. Isso é comigo. (Floripessai)DalvaVocê ainda vai trabalhar na mesa. Guima? Euqueria passar a blusa.(Guimarães pega um processo e vai para a cadeira,onde se senta. Dalva, com certo método, faz


lugar na mesa, enquanto liga o ferro elétrico queestava guardado no móvel ao longo da parede.Prepara-se para passar a blusa)DalvaSe você quiser, podemos almoçar juntos. Eu, vocêe o Gervásio. Ele vem me buscar. Nós entramosna repartição, assinamos o ponto e saímos paraalmoçar. Você quer?GuimarãesNão vai dar tempo. Estou muito ocupado como levantamento destes débitos. Vou ter muitoserviço por estes dias.DalvaAliás, o Gervásio queria muito falar com você...347GuimarãesSobre que assunto? Quer pedir você em casamento?DalvaAntes fosse. Mas sei que é assunto sério e quete interessa.GuimarãesCom o Gervásio o assunto que mais me interessaé o casamento com você.


DalvaOra, Guima! Deixe eu com o Gervásio assim queestá muito bem.GuimarãesEstá bem, mesmo, Dalva?DalvaIsso é comigo. Sou maior de idade, não tenhopai nem mãe a quem dar satisfações, ganho aminha vida...348Guimarães... Está certo. Não se fala mais nisso. Eu só queriaque você se casasse, se fixasse na vida, se definisse.DalvaÉ... Eu também queria... Falar é fácil... Você játerminou esse levantamento? São muitas empresas?GuimarãesSão todos os maquinistas.Todos?DalvaGuimarãesTodos... Bem entendido... Os que não exportam...Os que vendem aos exportadores.


A cifra é grande?DalvaGuimarãesA sonegação é enorme. É total.DalvaVocê não tem medo de investir contra umaclasse?GuimarãesMedo de quê? Cumpro a minha obrigação. Elesnão pagaram o imposto! Eu não estou investindocontra ninguém. Estou apurando. Fazendo umlevantamento fiscal, de acordo com o serviço queme é atribuído.349DalvaMas você ainda não apresentou o serviço?GuimarãesNão. Ainda há muito o que fazer. Quero apresentaro levantamento integral. Completo. Eencerro o caso. Depois, é com os outros. É sobreisso que o Gervásio quer me falar?Acho que sim.Dalva(Dalva experimenta o ferro elétrico. Vai passara blusa)


DalvaQue calor! Como aqui está abafado! Também,com a janela fechada! Por que fecharam a janela,com este calor?GuimarãesÉ que lá, com a Hermengarda, estava mais quenteque aqui.DalvaBrigaram novamente?GuimarãesPara variar. Pancadaria da grossa. E xingação.350DalvaQuem sabe se já acabou? Vou ver.(Dalva abre a janela com cuidado. Silêncio)DalvaReina a paz em Varsóvia.GuimarãesDepois da tempestade vem a bonança.(Dalva volta ao seu mister. O diálogo prossegue,enquanto Dalva passa a blusa)GuimarãesO Gervásio está bem de vida?


DalvaNão sei bem. Deve estar. Por quê?GuimarãesPor que você não força um pouco a situação?Que situação?DalvaGuimarãesVocê não gosta dele? Ele não gosta de você? Vocêgostaria de se casar com ele?Naturalmente.DalvaGuimarãesEntão? Por que você não força um pouco a situação?351DalvaIsso não é assim tão fácil, não. Já falei a respeitoe refalei. Não quero insistir. Ele diz que não temcondição para se casar.GuimarãesMas ele ganha bem!DalvaNão tanto quanto deseja. E, além disso, ele dizque não está preparado psicologicamente parao casamento. Diz que é contra o casamento.


GuimarãesContra o casamento, ora bolas! Uma situaçãobem cômoda, essa!DalvaEntão? Se é cômoda, para que se amolar? Qualé o dele?GuimarãesMas eu pergunto: qual é o seu? Afinal de contasvocê é uma moça solteira...352DalvaPois é. Mas ele não quer, não é? Eu devia terminar,não é? Isso é fácil de falar... Mas eu gostodele. E depois... A esperança é a última quemorre... Não é?GuimarãesVocê ainda tem esperanças de casar-se comele?DalvaNaturalmente. A gente vive dessa esperança. Souuma moça absolutamente normal. Gostaria deme casar, ter filhos...GuimarãesÉ. Principalmente ter filhos...


DalvaDesculpe. Saiu sem querer...GuimarãesDesculpar o quê? É isso mesmo. Eu não tenhofilhos. Floripes não tem filhos. Um tremendomal para um casamento. A gente deve ter filhos.Pelo menos dois filhos. Um só também é mal.É mal para o próprio filho. Muitos também éexagero.DalvaSe a Floripes fizer um tratamento, ela poderá terfilhos... O médico disse...GuimarãesÉ. Quem sabe? Agora já perdi o élan. O queestá feito, está feito. É muito tarde para começarmos.353DalvaTarde nada. Floripes é moça. Você é moço. Hátempo para tudo.GuimarãesSomos casados há mais de oito anos. Mais um,para tratamento. Outro, para ter o filho e já láse vão dez anos.Que é que tem?Dalva


GuimarãesAgora eu falo como o Gervásio: é psicologicamentetarde para ter filhos...Por quê? Não acho.Dalva354GuimarãesA minha vida com Floripes já desencantou. Nãotem mais jeito. É melhor deixar as amarras soltas.O barco que tome o seu rumo, o seu destino.Filho seria complicar demais a coisa. Assimcomo estamos, vivemos sem compromissos. Istoé, ela não tem compromisso. O dia que quiser,porta da rua é serventia da casa. Eu assumi umcompromisso e não fugirei dele.DalvaTambém não acho que seja assim. Não há razãopara os dois estarem se suportando...GuimarãesHá razão, sim senhora.DalvaNão acho. Ao contrário: acho que imoral é viverjunto sem se gostar. Só porque casou. Issoé que é imoral. Se têm filhos, vivem juntos porcausa dos filhos. Mas se não têm filhos, nãotêm nada e não se amam. Que besteira é essade viverem juntos?


GuimarãesÉ, talvez você tenha razão. Mas cada qual tem seumodo de pensar. E... Principalmente... Sua maneirade encarar a própria responsabilidade...Você é que sabe.DalvaGuimarãesPosso lhe fazer um pergunta indiscreta?O que é?DalvaGuimarãesVou perguntar. Você responde se quiser; se nãoquiser, é igual.355Está bem. Pergunte.DalvaGuimarãesVocê vive com o Gervásio?DalvaComo vivo com o Gervásio?! Pois não moro aquisozinha? Se vivesse com ele, iria morar com ele!GuimarãesVocê entendeu muito bem a minha pergunta.Você vive com ele?


DalvaNão. Sou apenas namorada dele.Jura?GuimarãesDalvaJuro. (pouco convincente)GuimarãesE eu tenho que acreditar no que você está dizendo?356DalvaAcho que você deve acreditar.Está certo.GuimarãesDalvaAfinal de contas, por que toda esta conversa ameu respeito com Gervásio?GuimarãesNada. Porque sou seu irmão. Acho que devo mepreocupar um pouco com a sua vida. Ou vocênão acha?DalvaVocê nunca tocou no assunto! Não. O que é queestá se passando por aqui? Conheço você muito


em. Alguma coisa se passou por aqui. Seja francocomigo. Nós somos amigos. Somos ou não somosamigos?Somos.GuimarãesDalvaEntão, me conte. Falaram alguma coisa?GuimarãesJá se comenta no edifício. Floripes soube quevocê recebeu o Gervásio em casa, na nossa ausência.E ela não gostou!357DalvaBem. O Gervásio esteve aqui. Duas vezes.GuimarãesVocê acha que isso é direito?DalvaNós não estivemos sozinhos. A Edwiges estavaem casa. E não fizemos nada de mal. Nem poderiaser.GuimarãesMas falam, não é?


DalvaE o que é que você quer que eu faça? A casa éminha, também. Pago pensão. Não estou aquide favor. Não sou criança. Ganho a minha vida.Acho que posso receber um amigo em minhacasa, sem ter que dar satisfações. De mais a mais,não fizemos nada de mal.GuimarãesEu não tenho a menor dúvida. Mas dá margema comentários maliciosos. Isso dá.358DalvaQue me importa que falem. Se a Floripes acharuim, posso me mudar. O que pago aqui, possopagar num apartamento pequeno, de sociedadecom uma amiga ou colega. Se vivo aqui, é porsua causa. Aliás, você também não precisa deminha pensão. Podem viver muito bem vocêsaqui só com o que ganham. É melhor eu ir meembora. Assim ninguém mais vai falar. O queeu não posso é perder o direito de receber umamigo em minha própria casa. Sobre esse pontoeu não transijo.GuimarãesFica o dito por não dito. Pronto. Não penseique você fosse tão brava! Ninguém falou nada,pronto!


DalvaA gente tem que se defender, ora essa! Já levouma vida besta. Sem graça nenhuma. Não mecasei. Não sou rica. Só tenho você. Você e a minhaliberdade. Minha liberdade é meu consoloe esse eu defendo.GuimarãesNaturalmente. Ninguém quer brigar com você. Eeu peço que você continue comigo. Você há dereconhecer que morar comigo e Floripes é sempreuma situação para você. Você não é nenhumamoça abandonada. Eu prefiro que você morecomigo do que sozinha. E também para o meucaso pessoal. Eu lhe peço. Nós aqui precisamos devocê. Você, sem querer, ou sem sentir, é o anteparode muita coisa que pode acontecer aqui.359(Dalva veste a blusa e vai abraçar o irmão. Fazum carinho no irmão e o beija no rosto)DalvaGuima: eu gosto de você, Guima. Você é a própriavítima de sua boa formação moral. Engraçado!Acontece cada coisa nesta vida! Você é o conformismoem pessoa! Conheço muito bem você. Nãoé medo. Não é falta de energia. É educação. Éformação moral. É o senso de responsabilidade.Deixa estar, meu irmão: não há bem que sempredure nem mal que nunca se acabe...


GuimarãesDalva, você está muito enganada. Eu não estoume queixando, nem lamentando...DalvaÉ como diz o Gervásio: a araruta também temseu dia de mingau. (Toque de campainha) Deveser o Gervásio.(Dalva sai para abrir a porta de entrada. Momentosdepois, volta com Gervásio. É moço de seus30 e poucos anos, alegre, jovial, bem posto. Nãofaz muita cerimônia. É de casa, como se diz)360GervásioQue tal? Como le vá?GuimarãesBom dia, Gervásio. Sempre firme?GervásioMais ou menos. E você? Muito serviço? Quandoé que você vai perder essa mania de trabalharde graça? Quem trabalha de graça é relógio equem faz força é guindaste.GuimarãesEu não trabalho de graça. Sou pago para trabalhar.


GervásioVocê ganha para trabalhar um expediente. Eunão tenho nada com isso. Você gosta. O que éde gosto regala a vida. Gostos não se discutem.O que é isso aí? É o caso dos maquinistas?É.GuimarãesGervásioVocê chegou a alguma conclusão?GuimarãesHá muito tempo. Que existe a incidência, nemhá dúvida. A questão jurídica, vamos dizer, aquestão fiscal é absolutamente clara. O impostosempre foi devido e sempre foi sonegado. A dúvidaestá no quantum. Acho que a coisa atingecifras astronômicas!361GervásioMas... houve má-fé por parte dos maquinistas?Eles sabiam que deveriam pagar?(Dalva sai sem avisar, após uma troca de olharcom Gervásio. Guimarães não percebe o jogo)GuimarãesEu estou convencido de que houve má-fé. A lei éclara. E eles sempre são bem assessorados.


GervásioEntão, além do imposto em débito, vai havermulta?GuimarãesPenso que sim, que devem ser multados. Houvesonegação de má fé.GervásioMamma mia! Então a coisa vai longe! Você nãotem medo de uma represália? Afinal de contas,toda uma classe a ser prejudicada!362GuimarãesQue é que eu posso fazer? Sou um modestofuncionário público. Limito-me a cumprir ordens.Não estou inventando nada nem criandoproblemas.GervásioÉ que eles podem fazer uma representação, pelosindicato. A coisa pode tomar até um aspectopolítico.E daí?GuimarãesGervásioO governo pode derrubar a situação.


GuimarãesMelhor para eles. E melhor para mim também.Não tenho porcentagem na arrecadação e muitomenos na multa. Para mim é igual. Se lá em cimarevogarem a cobrança, melhor.GervásioMas você fica com uma cara de tacho. Vão chamarvocê de perseguidor. Guimarães, o Javertdo fisco.GuimarãesNão vejo razão para isso. Nem eu sou um perseguidornem eles são miseráveis de roubar umpão.363GervásioEu não topava um negócio desses. É antipático.GuimarãesMeu velho: eu recebo ordenado para fazer levantamentosde débitos fiscais. Não me cabe sersimpático ou antipático. Ao contrário; até ajudoos contribuintes; dou orientação, ensino, coisaque não tenho a menor obrigação de fazer. Massonegação é sonegação.GervásioQuanto você está ganhando agora?


GuimarãesO mesmo que você, não é? Vinte e oito contos,fora os descontos. Com a reforma vou passarpara uns 40.Como isso?GervásioGuimarãesClaro. Você também; isto é, você um pouco menos,porque tem menos tempo de serviço. Eu vouser aumentado e reclassificado.364GervásioE se não sair a reforma?GuimarãesComo, não sair! Então você não acompanhouos trâmites?! Já está tudo pronto, aprovado esancionado. Na semana que vem está na rua.GervásioE se você não for promovido nem aumentado?Não pode ser.GuimarãesGervásioNesta terra tudo é possível.


GuimarãesEntão, seria o caso de se rasgar o Estatuto doFuncionalismo Público. Mais ainda: jogar fora aConstituição.GervásioE quantas vezes já se violou a Constituição? Nãoseria a primeira nem a última.GuimarãesÉ. Por incrível que pareça, isso pode acontecer.Você sabe de alguma coisa? Vão dar com tudopra trás?GervásioNão sei de nada. É só uma hipótese. Estou argumentandopara provar que você não estácom toda a razão nesse seu caso aí. Nem tantoao mar e nem tanto à terra. Você não pode setransformar num escravo incondicional de suasobrigações, quando a instituição a que você servenão merece essa incondicionalidade. Ninguém éprofeta em sua terra. Não. Não é esse o provérbio.Não se deve ser mais realista que o rei. Se ogoverno pode amolecer com os maquinistas, porque há de ser você que vai endurecer? Vai prepararo prato para eles comerem lá em cima?365GuimarãesIsso é da vida, meu velho.


366GervásioO bom-bocado não é para quem o faz e sim paraquem o come. Bem. Eu já vi que a coisa vai serdura. Tenho um assunto a propor a você. Voufalar por desencargo de consciência, e digo mais,para seu bem, para seu bem-estar e o de Floripese da Dalva também. De tostão em tostão se fazum milhão. Uma ova! Não é na enxada que sefica rico! A gente fica rico explorando o trabalhodos outros. Matheus, primeiro os teus. Essa é aordem. Olha, Guimarães: o advogado do sindicatodos maquinistas é meu primo e mais queparente, é meu amigo. Parentes os dentes, dizo ditado. Mas o homem é meu amigo aqui dopeito. Posso falar porque tenho a máxima confiança.É aqui, entre quatro paredes. Eu falo, estáfalado, se você não topar, azar seu. Os homensestão apavorados com esse processo aí que estánas suas mãos. Se essa sua autuação vingar, elesestão perdidos. Vai ser uma quebradeira geral.É uma questão de vida ou de morte.GuimarãesMas eles podem pagar em prestações.E a multa?GervásioGuimarãesÉ possível que se releve a multa. O advogado, seuprimo, criou uma teoria sobre a não-incidência


do imposto. É uma teoria absolutamente falsa.Puro sofisma. Mas tem sua habilidade, não hádúvida. Talvez por meio dela, com boa vontade,relevem a multa, quem sabe?GervásioPois olhe, meu velho: eles estão com medo. Eestão com tanto medo que me incumbiram defalar com você. Se você der um jeito nisso...GuimarãesComo é que eu posso dar um jeito nisso?!GervásioO chefe já sabe de suas conclusões?367GuimarãesClaro que sabe. Pois foi ele que levantou a lebre.Foi você.GervásioGuimarãesSim. Ele cismou com os maquinistas. Pediu-mepara fazer a verificação. Ele está a par de tudo.GervásioNão tem importância. Deixa o chefe comigo queeu controlo...


Controla, como?!GuimarãesGervásioMinha primeira etapa é aqui com você. Os homensestão dispostos a lhe dar 3 milhões em gaitaviva, para você dar para trás com essa incidência.Três milhões! Três mil abobrinhas! Nem maisnem menos!GuimarãesMas não é possível!!368GervásioO que não é possível? Arquivar esse negócio?GuimarãesNão. Não é possível eu me vender. Eles queremme comprar, Gervásio! E você está se prestandoa isso!GervásioVender... Comprar... Não são esses os termosexatos. Três mihões é uma pequena fortuna.Nem você vai se vender nem eles vão lhe comprar.É uma questão de tese. Você vai ao jurista.Vai consultar o advogado. Vai pedir um parecer.Você faz a consulta e ele pergunta: “O senhorquer sim ou não?” – Por quê? Porque se o senhorquiser uma resposta afirmativa, tenho que


citar os livros do lado esquerdo. Então? Tudo éinterpretação. Eles pedem a sua boa vontadepara uma interpretação favorável. O caminhojá está preparado. Você concorda com a tese doadvogado, meu primo, que é mais inteligenteque você e conhece direito e pronto. Estará comuma renda aí de 60 contos por mês. Mais que odobro de seu ordenado. E não cria inimigos e nãoplanta para os outros colherem. E ninguém podefalar nada, meu velho, porque quem tem telhadode vidro não atira pedra no do vizinho.GuimarãesEntão, eles me pagam 3 milhões?! E o chefe ?!GervásioTem rabo-de-palha. Deixa que eu controlo ele.Uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto.369GuimarãesEu não posso fazer isso.GervásioPor quê? São 3 milhões, meu velho! Pagos naboca do cofre, em moeda corrente do país. Nãofica rabo, não. Você está louco! É a sua independência!É um automóvel. É um apartamentomelhor para sua família! Não pense só em você,meu velho!


GuimarãesÉ. O negócio é duro! Por que você vem me fazeruma propostas dessas?! Por que você vem mecriar esse problema? Nunca pensei nessa hipótese.GervásioPorque um dia é da caça e outro do caçador. Aararuta também tem seu dia de mingau.370GuimarãesJá ouvi esse ditado. Não, Gervásio, não possoaceitar essa proposta. Até devia repudiá-la maisenergicamente. Sinto-me culpado de não a terrepelido liminarmente.Você é um louco!!GervásioGuimarãesVocê quer dizer outra coisa: que eu sou uma besta.Burro! Burro! Pode ser. Mas nasci assim. Queé que você quer que eu faça? Não dou para essesgolpes, não. Eu tenho que ir devagar, devagar.Olhe: com o aumento da reforma, sou capaz atéde comprar um automóvel. De segunda mão, éclaro. Para que eu vou me lançar em altas cavalarias?Enveredar por esses caminhos? Não. Vocême desculpe, Gervásio, mas não posso aceitar.


GervásioQuer dizer que você recusa os 3 milhões?GuimarãesÉ. Recuso. Dá dó, mas recuso.Por honestidade?GervásioGuimarãesNão sei. Talvez sim. Por princípio.GervásioQue loucura! Você vai é botar na mão do chefeesses 3 milhões, você vai ver.371Paciência.GuimarãesGervásioEle já está rico. Agora é sua vez! Isso é de amargar!Ele vai dar para trás com a sua autuação, comtodo o seu trabalho. Vai virar herói e se encherda gaita! À sua custa! Vai ver que já fez isso depropósito! Tocou você na frente para criar a dificuldadee vai vender a facilidade. À sua custa.E quem faz o papel de bobo será você. Tem dó,Guimarães, tem dó!


GuimarãesEu sou assim, que é que você quer que eu faça?Você pensa que eu gosto de ser assim? Nãogosto.GervásioVocê disse que ainda não concluiu o serviço?GuimarãesFalta muito ainda.Quantos dias?Gervásio372GuimarãesUns 15, trabalhando aqui em casa.GervásioEntão você tem tempo para pensar. Não apresenteo trabalho sem primeiro falar comigo. Nãome vá fazer essa falseta.GuimarãesNão adianta nada. Mostre ou não mostre, o queestá feito está feito.GervásioNão. Você vai pensar. Não se jogam 3 milhõesassim pela janela, não. Você vai pensar. Tem15 dias para pensar. Se você não voltar atrás,


azar seu, não posso forçar, nem fazer mais doque fiz.(Entram Floripes e Dalva. Floripes vestida parasair, saia e blusa, com um sanduíche na mão eum copo de leite na outra)Bom dia, Gervásio.FloripesGervásioQue leite é esse? Vocês não vão almoçar? Vimfilar a bóia hoje. Hoje é dia de feira, não?FloripesEstamos sem empregada. Ela foi despedida. Oumelhor, despediu-se, porque eu a proibi de vertelevisão.373GervásioBem. Então vamos todos almoçar no Gigetto.Eu estou convidando. Marca-se o ponto e vamostodos ao Gigetto. Por minha conta e risco. Euvinha filar a bóia, mesmo. Não havendo, é justoque eu os convide. Pode deixar esse leite e essesanduíche.Eu aceito.Floripes


GervásioHá males que vêm para bem. Vamos, Guimarães.GuimarãesNão. Eu não vou. Fica para outra ocasião.FloripesQue cara é essa, Guima? O que foi que aconteceuque o Guima está com essa cara de organizaçãosocial de luto?374GervásioClaro. Não é para menos. Acaba de jogar fora,pela janela, assim, olhe (vai à janela e faz o gestode quem atira), 3 milhões de cruzeiros! E sabequem está lá embaixo? O chefe. O chefe dele,para pegar a gaita que ele jogou fora!FloripesComo?! Três milhões?! Onde estão?!GervásioAí. Nessa papelada. Uma questão de interpretação.Nada mais. Se ele chegar à conclusão de queo imposto não é devido, ele ganha 3 milhões, ali,na batata.FloripesE qual foi a sua conclusão, Guima?


GuimarãesEstou convencico de que o imposto é devido.FloripesEstava convencido, mas não está mais.GuimarãesNão é assim como você pensa, Floripes.FloripesSe você pensa que eu vou deixar você jogar 3 milhõespela janela, você está muito enganado! Sólouco é que rasga dinheiro. Eu não estou louca.Você está, Dalva?GervásioBem. Ainda há tempo. A resposta não é definitiva.O Guimarães tem 15 dias para pensar.375FloripesIsso nem tem o que pensar. Vamos almoçar. Deixeo louco aí. Depois nós conversaremos. Vamosembora. Se ele não aceitar esse negócio eu memato. Isto é, mato ele primeiro, que nasceuantes de mim. Não. A miséria tem que acabarnesta casa. E só ver os outros comendo a carne,na cara da gente, e a gente roendo osso?! Não.Isso vai acabar. Chega de filosofia. Chega depsicologia. Hoje o que vale é o metal sonante. Agaita, l’argent, money, plata... O resto é conversa .


Ciao, meu Robespierre de araque. Vamos embora.Vem, Dalva. Vamos fazer este gaúcho gastaruns cobres.(Floripes sai. Dalva beija o irmão, que ficou perplexo,estatelado na cadeira)GervásioAté logo, Guimarães. Que o Espírito Santo iluminetuas idéias.376(Saem os três. Guimarães fica estático, por uns momentos.Está pensando intensamente. Quase falasozinho. Começa a arrumar a papelada. Põe a gravata.Veste o paletó. Quando entra Edwiges)EdwigesEu voltei, seu Guimarães.GuimarãesVocê não encontrou o pessoal aí fora?EdwigesEu vi eles, mas eles não me viram. Me escondi naescada. Quando tomaram o elevador, eu entrei.Eu ainda tenho a chave. Eu voltei só por suacausa, seu Guimarães.Muito obrigado.Guimarães


EdwigesÉ verdade. Não é brincadeira, não. Com donaFloripes empregada nenhuma fica no emprego.Eu sei. Conheço minhas colegas. Patroa que implicacom um ovo, com televisão, com não sei oque, não guarda empregada. Não ficam nem ummês na casa. Eu ganho 4 mil cruzeiros por mês...Olhe, seu Guimarães: nem por 8 mil. Ninguémaceita. Com implicância, ninguém aceita. Eu fico,por sua causa. O senhor não merece ficar semempregada. Depois, eu sei que o senhor já seacostumou com minha comida... O senhor nãoalmoçou? Vou preparar o seu almoço...GuimarãesObrigado, Edwiges, mas não há mais tempo.377EdwigesUm instantinho só. Eu frito dois ovos, passo umbife na chapa...GuimarãesNão há tempo. Olhe, eu como isto aqui (e pegano copo de leite e no sanduíche que Floripesdeixou em cima do móvel. E principia a comer)EdwigesÉ pena. O senhor trabalha muito. Precisa comerbem. Assim, ninguém agüenta.


GuimarãesVocê me prepare um jantar bem reforçado. Agoranão tenho fome. Aconteceu tanta coisa aquiem casa, hoje de manhã, que eu perdi a fome.EdwigesO senhor me desculpe, mas essa gente não compreendeo senhor. Eu compreendo...GuimarãesNão chame minha mulher de essa gente...378EdwigesEu pedi desculpas. Eu não tenho educação, mastenho sentimento. Eu compreendo o senhor. E eugosto do senhor. Não é gostar de... De coisa... Não.Eu gosto do senhor espiritualmente. O senhor écomo meu falecido padrinho. O senhor é um homembom. E hoje em dia, com o progresso, contrao subdesenvolvimento, ninguém compreendeuma pessoa boa. E é tão fácil compreender.Mas tudo está voltado para o mal; diz que foi abomba atômica que espalhou o mal pelo ar. Eunão sei. Mas gente boa está fora de moda.GuimarãesAté logo, Edwiges. Então, um bom jantar, hein?Olhe as ordens de dona Floripes...


EdwigesJá sei. Nada de televisão, neca de levar coisas paracasa e neca de receber visita. Está certo.(Guimarães já saiu, com sua papelada que pôsnuma pasta. Edwiges cantarola baixinho. Pegana vassoura. Vai principiar a limpeza da sala. Elaagora é a dona. Senhora da situação, vai à televisãoe liga, com a maior calma deste mundo. Nemdá bola. Continua cantarolando e inicia a limpeza.Surge a imagem no aparelho de televisão)PanoFim do primeiro ato379


Segundo ato(Mesmo cenário. Nove horas da noite, uma semanadepois. Floripes, em cena, procura qualquercoisa pela sala. Chama pela empregada)Edwiges! Edwiges!FloripesSenhora!Voz de EdwigesFloripesOnde é que está o Grande Hotel que estava aquina sala? (Edwiges aparece)380Grande Hotel?EdwigesFloripesSim. O último número.EdwigesAcho que o seu Guimarães emprestou para donaHermengarda.FloripesPor que havia de emprestar?!EdwigesEla sempre pede e ele sempre empresta. Os númerosatrasados.


FloripesO que eu estou procurando é o número destasemana, que comprei há dois dias. Ainda não lie ele já foi emprestar!EdwigesVai ver que ele não sabia que era o último número.FloripesNão estará com você?EdwigesOra, dona Floripes! Que desconfiança! Para queeu quero aquilo?! Eu nem sei ler!381FloripesNão precisa saber ler. É história de quadrinho.EdwigesJuro por tudo quanto há de mais sagrado quenão buli nessa revista!FloripesEntão pede à vizinha. Se está com ela, que devolva.As coisas nesta casa, quando emprestadas,têm dois Vs. (Edwiges vai à janela e chama)EdwigesDona Hermengarda! Dona Hermengarda!


Que é?Voz de HermengardaEdwigesO patrão lhe emprestou o último número deGrande Hotel? A senhora tem ele?Voz de HermengardaEmprestou hoje de manhã. Está aqui comigo.EdwigesÉ que a patroa ainda não leu. A senhora medevolve que depois ela empresta.382Voz de HermengardaNão tem dúvida. Eu também posso comprar arevista. Se quiser, não precisa emprestar.EdwigesNão é isso. Ela não está reclamando. Ela quer éler. Depois que ler, não interessa, que ela nãofaz coleção.Voz de HermengardaJá sei. Já sei. A gente não deve é pedir as coisasemprestado, para não passar por esses carões.Vou devolver aqui, pela janela mesmo.EdwigesPela janela, não, que pode cair lá embaixo. Euvou buscar aí na sua porta. Um momento.


(Edwiges sai da janela)FloripesAlém de malcriada é mal-agradecida essa Hermengarda.É uma infeliz!Edwiges(Sai. Instantes depois volta Edwiges com a revista)EdwigesEstá aqui, dona Floripes.(Floripes pega a revista, prepara uma luz junto àpoltrona, enquanto Edwiges sai para a cozinha.Floripes liga a televisão e depois se acomoda napoltrona, iniciando a leitura. A imagem surge.Ela levanta-se da poltrona para acertar o som.Volta. E mergulha na leitura da história de quadrinhos.Edwiges aparece pronta para sair. Terminouo serviço diário e Edwiges vai se emborapara sua casa. Leva uma bolsa grande, quase umbalaio. Sente-se que ela quer esconder o balaiode Floripes)383EdwigesAté amanhã, dona Floripes.


Floripes(Distraída na leitura) – Até amanhã.(Edwiges passa, está quase à porta, quando Floripesdá com o balaio)FloripesO que é que você está levando aí, neste balaio?EdwigesNão é balaio, não senhora, é bolsa.FloripesBolsa desse tamanho?384EdwigesQue é que a senhora quer? São exigências damoda!FloripesQue é que você vai levando nessa bolsa?Nada.EdwigesFloripesNada?! A bolsa recheada desse jeito?! Abre aí,quero ver.EdwigesOra, dona Floripes! Não posso abrir! São coisasíntimas!


FloripesNão tem importância. Só eu estou aqui. Abre.EdwigesSão umas coisas à-toa. É um pouquinho decomida que sobrou. O seu Guimarães não veiojantar. Sobrou alguma coisa. Não adianta guardarpara amanhã. Não dá. Tem que fazer arroznovo, mesmo. Eu não vou misturar arroz novocom arroz velho. Assim, nem um nem outro.Estraga tudo. Se tivesse qualquer serventia, eujuro, dona Floripes, que eu deixava. Eu não levava.Nesse ponto eu sou muito direita. Nuncaroubei casa de patroa. Deus me livre! Mas, nãotendo serventia...385FloripesPor que você não fala antes? Não pede licença?Eu não sou pão-dura! O que não acho direito évocê levar as coisas sem me falar.EdwigesÉ que gente tem vergonha de pedir essas mixarias.Parece que a gente está passando fome! Agente sente vergonha. (Edwiges começa a falarchorosa e depois chora mesmo)O pior é que a gente precisa mesmo. O Dito estásem emprego. Deu de beber. E assim piora tudo.Bebe porque não tem trabalho. Não tem trabalho


porque bebe. E a fome bate na porta da gente.É uma infelicidade! A senhora não sabe. Mas avida está dura. Muito dura. Dizem que aqui noBrasil ninguém passa fome! Uma ova! Passa, simsenhora. Tem muita gente que não come nada.Almoço e jantar todo dia é luxo. Só para quemestá bem.FloripesEu não faço questão nenhuma que você leve ascoisas. Olhe: pode até levar uns ovos. Amanhã édia de feira e vou comprar mais. Hoje não precisa.Quantos tem lá na cozinha?386Tem três.Devia ter quatro.EdwigesFloripesEdwigesPuxa vida, que a senhora conta!FloripesConto mesmo. Não gosto de passar por boba.EdwigesPois, desta vez, com perdão da palavra, a senhoraboiou, porque tinha um ovo que estava podre. Eeu não boto ovo podre na comida. Então, tive dequebrar outro. Nesse ponto eu sou muito hones-


ta. Não tenho costume de roubar patrão, não. Asenhora pode se informar nas casas onde estive.Se saí, foi por incompatibilidade de gênio. Meugênio não combinava com o da patroa. É comoaqui. A senhora é boa, mas tem mau gênio. Eunão combino com a senhora. Mas combino como patrão. O seu Guimarães é muito boa pessoa.Eu gosto dele. Não pensa que é outra coisa. Nãoé, não senhora. Eu gosto de seu Guimarães semmalícia. Nunca dei bola para patrão. Com bebidaou sem bebida, tenho o meu Dito, lá em casa, queme dá muito trabalho. De homem, estou cheia.De homem, quero sossego. Gosto de seu Guimarãesporque ele é um santo. E de santo a gentenão gosta para safadeza. Agora, se a senhoraquer que eu devolva essa mixaria de resto dejanta, que eu levo, eu devolvo, mas é para botarno lixo, porque não tem serventia.387FloripesNão precisa devolver nada. E se vocês estão precisando,pode levar os ovos. Pode levar o quequiser. O que não gosto é fazer papel de idiota.É uma questão de disciplina. Eu sou a patroa.Tenho que controlar a casa. Gosto de saber oque estou dando. Gosto de saber o que está sepassando na casa. Não é pão-durismo, não. É minhaobrigação de dona de casa. Ninguém gostade ser roubada.


EdwigesMas ninguém está roubando a senhora. Isso nãoé roubo.FloripesNão sendo seu e não tendo licença, é roubo, sim.É pequeno. Roubinho sem importância, mas nãodeixa de ser roubo. Então o que é?EdwigesE...é... é... é sobejo.388FloripesEstá bem. Seja o que for. O nome não tem importância.Pode levar. Leve os ovos também.EdwigesDeu, está dado. Amanhã eu levo.FloripesQuando houver qualquer sobra, você me fale,mas pede licença que eu dou. Eu deixo levar. Nãová fazer sobrar de propósito, que aqui em casanão nadamos em dinheiro. Não é por gosto quemoro aqui neste cortiço.EdwigesA senhora fala à toa. A senhora não sabe o queé cortiço. Isto aqui é palácio, perto de onde eumoro. É palácio, dona Floripes. A senhora nemdeve falar, que Deus castiga...


FloripesÉ tudo muito relativo, Edwiges. Enfim, não temimportância. Até amanhã. E venha cedo, que édia de feira. Não vá me fazer como na semanapassada.EdwigesSim senhora, dona Floripes. Amanhã, às oitohoras estou aqui. Então, até.Até amanhã.FloripesEdwigesMuito obrigada, dona Floripes. Desculpe qualquermá palavra.389(Edwiges sai. Floripes considera um pouco suasaída e volta à sua leitura, depois de desligara televisão. Momentos depois entram Dalva eGervásio. Dalva acende a luz maior da sala)Que tal?GervásioFloripesComo vai, Gervásio?GervásioOnde está o Guimarães?


FloripesNão veio jantar. Tinha que ir a uma reunião depoisdo serviço. Até agora não apareceu.GervásioComo vai o nosso negócio?Que negócio?Dos 3 milhões.FloripesGervásio390FloripesNão progrediu nada.GervásioVocê falou mais vezes com ele?FloripesFalei. Falei duas vezes.GervásioEstou achando que você não está muito empenhada.Olhe que são 3 milhões! No mínimo 60mil por mês! Se quiser apurar no juro, serão uns90 mil por mês. Não é para se desprezar.FloripesEu sei, Gervásio. Eu sei. Ninguém está mais interessadado que eu. Mas é preciso ir com calma.


Já falei, Já insisti. Nada. Ele parece nem me daratenção. Fica me olhando como se eu fosse umaparede. Estou esperando uma ocasião. Um determinadomomento. Não sei. Ainda não dei oultimatum. Ainda não briguei nem ameacei. Seele deixar escapar esta ocasião, nem sei o quefaço...GervásioDevagar com o andor que o santo é de barro,diz o ditado.FloripesEle tem muita esperança na reforma. Tem certezade que vai ter um bom aumento, vai ser promovido.A ocasião não é muito propícia...391GervásioA ocasião faz o ladrão. Pois parece que ela seapresentou. Nem que fosse encomendada!Agora, acho que a coisa será fácil. É aproveitar omomento psicológico. A reforma saiu e ele nãofoi promovido nem aumentado...Será possível?!!FloripesGervásioSerá, não. É. Consumatum est. O melhor da festaé esperar por ela. A coisa saiu e ele continua


na mesma. Na mesma, não. Muito pior, porquemuita gente passou na frente dele. Bem... mal demuitos, consolo é... Ele não ficou sozinho. Toda aclasse dele foi prejudicada. Só onde ele trabalhaforam uns 15. Fora os outros setores...Então, ele já sabe?FloripesGervásioDeve saber, com toda certeza.392FloripesSabe. Achei ele meio transtornado quando medisse que não viria jantar. Essa reunião deve serlá com o pessoal...GervásioÉ. Já foram se reunir para tomar providências.Hão de cavar alguma coisa! Cavar nada! Aqui éassim: não dão valor a quem tem valor. Ah! Sefosse comigo! Deus dá nozes a quem não temdentes. Eu, no lugar do Guimarães, estaria podrede rico. Eram dois golpes desses por ano!FloripesMas foi uma enorme injustiça! Como puderamfazer isso! Guima disse que já estava tudo resolvido!


GervásioLevaram ele no bico. Direitinho. Passaram elepara trás. Agora é malhar o ferro enquanto estáquente. Hoje ele vem aqui tinindo. Com raiva detodo o mundo. Não deixe para amanhã o quepode fazer hoje. Tonight or never.FloripesO Guima é de muito boa-fé. Por isso fazem issocom ele.GervásioPois agora acabou-se. Amor com amor se paga.Se fizeram a sujeira com ele... Quem rouba ladrãotem cem anos de perdão... Bem... O resto é comvocê. Você sabe o que faz. Conhece o marido quetem. Não vou ensinar o padre-nosso ao vigário.O momento psicológico está aí, dando sopa.Não é que eu estivesse torcendo para o Guimaser prejudicado. Mas... Há males que vêm parabem... Assim, ele aprende o caminho. Eles mesmoé que mostraram. Agora se agüentem. E não têmque aguentar nada. É tudo assim. Quem tem oseu vintém, bebe logo. Não se aflija, que elesnão aumentaram nem melhoraram a classe doGuimarães, já pensando nisso. Eles sabem que aturma come mesmo. E comendo, não precisam,não reclamam. Malandro não estrila.393DalvaMas o Guima nunca fez isso!


GervásioAh! Até que enfim você deu o ar de sua graça.DalvaEstive ouvindo. Vocês não me deram chance.394GervásioMinha filha: a regra é a desonestidade. Essa é averdade. Nós sabemos que o Guimarães é um sujeitobatata. Que não está na gaveta de ninguém.Quem lida com ele sabe disso. Mas os de cima nãosabem. Para eles, todos são iguais. E estão certos.O Guimarães é que está errado. Gente como oGuimarães, hoje não existe. Bem... Eu vou indo. Émelhor que ele não me encontre aqui. O trabalhoé vosso. Olhe que são 3 milhões; é um barbadão.Em menos de 15 dias o Guimarães estará com amão na massa...FloripesE você, não leva nada nisso?GervásioPura camaradagem. É para servir ao meu primoe também a vocês. Vocês são daqui do peito.É justo que vocês tenham uma folga. Bem... Vocêentra com o jogo direitinho. É melhor deixar paravocês operarem. Vocês são da família. Roupa sujalava-se em casa. O momento é ultrapsicológico.Não vá entornar o caldo. Vá com diplomacia.


Com cuspe e jeito... Bem... Esse, não. Esse é impróprio.Mas você já sabe, não é? Você também,Dalva. Ele é seu irmão. Gosta à beça de você.Você ajuda...DalvaEu não me meto nisso. Deixa a Floripes...GervásioComo não se mete nisso? Você também tem seuinteresse, ora bolas!DalvaNão gosto de interferir na vida dos outros.GervásioIsso não é interferir. Estamos pedindo apenas asua colaboração...395FloripesDeixa a Dalva. Ela parece que tem medo doirmão...DalvaNão. Não é medo. É respeito. Acho que é umassunto muito delicado, esse de bulir com aconsciência...FloripesConsciência! Consciência! Isso é conversa! Ondeé que está a consciência do pessoal que fez a


eforma? Onde? A consciência está no estômagoe não na cabeça. O homem trabalha dia e noite,todos os dias. Traz serviço para casa, todos osdias! Alguém reconheceu isso? Nada. Reconheceramnada. Ao contrário. Coice. Só deram coice!O idiota do Guima ficou para trás! Idiota mesmo!Pois agora é pagar na mesma moeda...396GervásioQuem com ferro fere, com ferro será ferido.Bem, minha gente: parece que estamos entendidos.Ciao. Amanhã vocês me contam o resto.A Dalva me conta. Entra com o jogo, Floripes.Deixa a Dalva, que é meio mole. É como o irmão.Quem sai aos seus não degenera. Ciao!FloripesAté amanhã, Gervásio. O pior é se a gaita nãosair. A gente ter todo esse trabalho de convencero cabeçudo do meu marido e no fim elespassam o bolo e não dão o dinheiro!GervásioIsso é comigo.Quando chegar na hora, é comigo.Manja aqui o papai. Já está tudo pensado ecombinado. Não tenha o menor receio. É macucono embornal. Depende de vocês. Ciao!(Gervásio sai, Dalva o acompanha, Floripes pegaa revista. Instantes depois, Dalva vem de volta)


FloripesEu não sei por que esse camarada não casa comvocê!Eu também não sei.DalvaFloripesSujeito gozado ele! Fala do Guima! Fala de todomundo! Mas onde está o dinheiro dele? Ele deviaganhar muito dinheiro, com as teorias dele!DalvaO cargo dele é diferente do de Guima. Mas eleganha muito dinheiro. Gasta. Gasta tudo.FloripesMas não gasta com você. Pelo menos, que gastassecom você.397DalvaE por que havia de gastar comigo?FloripesEntão, gasta com outras?DalvaAcho que não. É desperdiçado. Gasta em besteiras.Joga. Perde um dinheirão nos cavalos. Devez em quando vou com ele às corridas. Vejoquanto ele perde.


FloripesVocê devia controlar...DalvaEu não! O dinheiro é dele!FloripesA coisa está muito mole para ele. Você é que éboba...DalvaCada qual sabe de si.398FloripesComigo a coisa fiava fino. Ele não é solteiro? Vocênão é solteira? Então. Por que não se casam?DalvaE por que havia de casar? Ora essa? Eu não possoobrigá-lo a casar comigo. Nem estou interessada.Nessa não caio.FloripesDalvaNão me interessa. Acho que cada qual sabe ondelhe aperta o sapato... Que injustiça que fizeramcom o Guima, hein?!FloripesFoi bem feito! Quem manda ele ser de boa-fé?


DalvaO que é que você queria que ele fizesse? Foitraído. Disseram que iria ser promovido e aumentado.Aliás, ele tem direito.FloripesEstá certo. Agora aprendeu. Ele não podia terfeito nada. Agora pode. Agora, ele sabe comosão com ele. Vamos ver o que vai fazer.DalvaCom toda a certeza vai recorrer à justiça; ele e osdemais colegas que foram prejudicados.FloripesBoa noite! E adianta? Leva anos e anos discutindo.Quando ganhar a questão já está no Araçá.Se ganhar...399DalvaSe tiver de ganhar, ganha. E no fim recebe todaa diferença...FloripesVá esperando! E a mágoa? A mágoa da injustiça,quem é que paga? Não. Ele tem de dar umjeito. Nem que seja por vingança. Mas deixa issocomigo. Só peço que você não me atrapalhe. Suacolaboração, sei que não vai adiantar. Você émole como ele. Mas comigo, não. Eu não sou de


400apanhar e ficar quieta, não. Sujo por sujo, vamosver quem sai ganhando. Você é testemunha deque, até agora, não forcei. Só pedi. Pedi só, semgrande empenho. Não quero transtornar ninguém.Não quero que digam que virei a cabeçade ninguém. Fiquei quieta, como sempre fico.Bico calado. Só apreciando. Esperando. Afinalde contas, ele ia ser promovido; aumentado.Está certo. Vai ganhar bem, melhorar de posição.Está certo. Vamos agir direitinho. Bom por bom,ninguém é melhor que eu. Me fizeram sujeira.Passaram ele pra trás. Nem aumento nem promoçãoe muito menos satisfação. Não. Essa não!Agora a coisa é comigo! Eu não tenho sanguede barata, não! Deixa ele vir aí, que eu vou daro baile! Pode ser até que não precise. Pode serque ele venha e diga logo: Floripes: chama oGervásio. Vamos resolver o negócio. Aí, vai serótimo! Mas ele é um tímido. Não tem peito.É como você: não tem peito para fazer o Gervásiocasar. Então, eu entro. Porque não durmo debotina. Até agora fiquei calada. Esperei. Agoraé minha vez.DalvaBateu a porta do elevador. Deve ser ele.(Floripes se cala. As duas ficam em expectativa.Barulho de porta. Entra Guimarães. Aspecto normal.Talvez com a fisionomia um pouco carrega-


da. Nada mais. Entra calmamente. Tira o paletó.Senta-se. Floripes ataca a conversa)FloripesComo foi de reunião?Fui bem.Você jantou?Não.Não comeu nada?Não.GuimarãesFloripesGuimarãesFloripesGuimarães401FloripesVocê não está com fome?Nem um pouco.GuimarãesFloripesPosso fazer qualquer coisa para você. Ovos fritos.Você não pode ficar sem comer. Vou ver dois ovosquentes. Ovos quentes, um copo de leite, pãocom manteiga e depois um cafezinho.


GuimarãesNão, Floripes. Não precisa. Estou completamentesem apetite. Aceito um cafezinho.FloripesGuima, meu bem. Você precisa se alimentar. Vouver um café e uns biscoitos. Um momentinho só.Você deve estar muito cansado. Aborrecimentotambém cansa muito a gente.(Floripes sai)402DalvaEsqueceram mesmo você na reforma? Totalmente?(Guimarães confirma com a cabeça as duas perguntas)DalvaEra de se esperar isso?GuimarãesNão. As informações eram positivas. Não possoimaginar o que houve. Ninguém, na reunião, soubeexplicar... Não havia razão... Motivo... Aindanão compreendo... Foi de fato, uma decepção.Nós todos ficamos perplexos. A princípio, poderiaparecer um erro de impressão. Essas publicaçõesoficiais muitas vezes saem com incorreções... Com


omissões... Fomos ver, fomos consultar. Estavatudo certo. A classe toda foi preterida.DalvaÉ incrível que isso aconteça! E o que é que vocêsvão fazer?GuimarãesJá resolvemos tudo. Vamos fazer uma representaçãoao governo. Uma reclamação administrativa.Se não formos atendidos, entraremos com ummandado de segurança.DalvaNão vai demorar muito?GuimarãesEu fui contra o administrativo. Por mim, entrávamoslogo com o mandado de segurança. Assimnão se perderia tempo. Depois de muita discussãoe de muito falatório, encontrou-se uma soluçãointermediária: se dentro de três semanas nãoatenderem ao pedido, vamos ao judiciário.403DalvaE na justiça, não demora muito?GuimarãesMandado de segurança não. É imediato e nãohá jeito de se perder.


DalvaFoi uma injustiça muito grande. Acho até que foiuma desconsideração. Afinal de contas...GuimarãesFoi uma grande besteira deles, isso sim. Incapacidade...Incompetência. Nem sabem o que estãofazendo! Nós não vamos perder nada. Nem tempo.Porque vão pagar todos os atrasados. Perdea administração pública, porque um fato dessestira todo o estímulo. A turma já não gosta muitode trabalhar...404DalvaVocê gosta. Trabalha fora do expediente. Serviçoextra, sem ganhar nada.(Entra Floripes com chinelos, para Guimarães.Floripes está muito solícita. Tira os sapatos deGuimarães e lhe calça os chinelos)FloripesEu sempre dizia para ele. Por que trabalhar forado expediente? Eu sempre disse. Já pus a águano fogo. Vamos tomar um café fresquinho. Tempresunto lá, meu bem. Você não quer um sanduíchede presunto?GuimarãesNão. Café com biscoito... está bem. Muito obrigado.


FloripesSujeira grossa fizeram com você, hein, Guima?!É.GuimarãesFloripesNão há de ser nada. Você agora pega a sua vingança.Que foi desaforo, foi.GuimarãesNo fim, dá tudo certo.FloripesE a raiva? Eu não posso com injustiças. Até fazmal pra gente. Essas injustiças é que acabam coma gente. A maioria dessa gente aí, que morredo coração, é por causa das injustiças. A pessoajá vive cansada de trabalhar muito, ainda sofreum desgosto, é o coração que paga. Bem, vouver o café.405(Floripes pega o paletó e os sapatos de Guimarãese sai. Assim que ela sai, Dalva bate três vezes namadeira)Que é isso?GuimarãesNada. É uma cisma.Dalva


GuimarãesO Gervásio andou por aqui?DalvaFoi ele que nos contou.GuimarãesQue é que ele acha?DalvaComo você. Ficou admirado. Ele não acreditamuito no sucesso de suas reclamações.406GuimarãesO que é que se há de fazer? O caminho é esse. Éo único caminho indicado. Greve não é possível.Funcionário público não faz greve. Temos queir pela justiça.DalvaE por que não vão pela política?GuimarãesIsso também já foi discutido. É impossível. É tudodo contra. Não tem um lá que tenha pistolãoseguro. As opiniões políticas na classe são muitodivergentes. Quem vai pedir? E a quem?DalvaVai ver foi por isso que vocês não foram contemplados.Por política.


GuimarãesNão creio. O fato é que a reforma saiu e eu nãofui promovido e nem aumentado. Isso é de amargar,hein?! E o pior é que não se sabe a razão.Francamente, é de deixar a gente desanimado.Palavra de honra. Eu senti uma decepção... Quandovieram me contar, não acreditei. Devia sererro, omissão. Qual! Era verdade. A gente senteum vazio... Uma coisa assim... Sei lá. É amargura,é desilusão... Dá um desânimo na gente... Dávontade que tudo acabe naquela hora. Então agente trabalha, entra no serviço pontualmente,todos os dias, anos...DalvaVocê trabalha. Você é dedicado, mas a maiorianão é. Os justos pagam pelos pecadores.407GuimarãesIsso não está certo. Deviam distinguir. Premiaros cumpridores do dever, ou pelo menos castigaros faltosos. Assim como fazem, igualatudo... Por baixo. Quer dizer, ninguém mais seesforça... Se não há compensação?! O que é queadianta a gente trabalhar, trabalhar, e no fimser tratado como aqueles que não fazem nada?O negócio é igualar por baixo. Francamente,não adianta nada esconder. Eu sofri um grandedesapontamento. Um grande desgosto. Umagrande mágoa.


(Entra Floripes com café e biscoitos)408FloripesPois é, meu bem. Essa mágoa, quem é que paga?Vamos que eles te paguem os atrasados; vamosque você, um belo dia, ganhe esse tal de mandadode segurança. A desconsideração... O desgostoque você passou, esse ninguém tira do seu coração.Não há dinheiro que pague. É uma ruga amais no rosto. Um vinco a mais na testa. Uma mechade cabelo branco e a gente vai envelhecendomais depressa. Não, Guima. Meus avós nasceramna Calábria. Eu tenho sangue de calabresa nestasveias. Amor com amor se paga. Olho por olho,dente por dente. Só com vingança. Com desforra.É um prazer que compensa o desgosto.GuimarãesMas que vingança a gente pode tomar num casodesses? Se o juiz conceder o mandado de segurança,já teremos plena satisfação. É um prazertermos nossos direitos reconhecidos na justiça.FloripesUm prazer, não. Um consolo. Uma reparação.Reconhecer nossos direitos não é vantagem nenhuma.É obrigação, ora essa! Está bom o café?Acho que agora você devia descansar um pouco.Não falar mais nisso. Espairecer as idéias. Quer ira um cineminha comigo? Ainda dá tempo.


GuimarãesVocê veja: o salário está sempre atrasado sobre ocusto de vida. O meu dinheiro só, não dá. E deveriadar. A regra geral seria o casal viver só com odinheiro que ganha o marido. Se o homem trabalha,tem competência, cumpre suas obrigaçõesno emprego, teria que ganhar o suficiente paraviver, ter mulher e filhos. A mulher cuidando dacasa e dos filhos. Mas aqui, não. O nosso dinheirodá, porque você trabalha e a Dalva também.FloripesDaqui a pouco, como vão as coisas, o que ganhamosjuntos não vai dar mais e nós vivemos umavida modestíssima. Daqui, só para a favela.GuimarãesÉ que o regime é amoral. É uma imoralidadenão se poder viver com o fruto do próprio trabalho.Então, como é que vamos viver? Temosque roubar?409FloripesÉ o que todo mundo acaba fazendo. Você pensaque eles nasceram roubando? Não senhor! Todomundo entra no emprego com boas intenções.No funcionalismo também. Depois eles aprendema dançar conforme a música. Mas passam atrabalhar o mínimo possível, para viver de outrosbicos. Outros trabalham pela gratificação. Você


veja esse pessoal que atende o público. Sem umdinheirinho por fora a coisa não vai. É que oordenado não dá!GuimarãesEu não acho que seja cem por cento assim. Hápessoas que são naturalmente boas e outras quenão prestam. Quem é safado, é safado mesmo,com qualquer ordenado. Se ganham muito,querem ganhar mais. Há também os preguiçosos.Esses não fazem força, por natureza. Não adiantaaumentar o ordenado.410FloripesHá também os que trabalham como você. Dãoduro; conhecem o serviço e não vão para a frente.Por quê?GuimarãesNão sei. O regime é imoral. É a regra do malandronão estrila. Do desapertar para a esquerda. Masenjoei, sabe? Enjoei. Depois dessa palhaçada,perdi a bossa por completo. Agora, eles nãocontem mais comigo. Chega. Já vi tudo. Nãoadianta nada.FloripesAinda bem que você abriu os olhos. Eu sempredisse...


GuimarãesAgora não tem mais conversa. Trabalho só nashoras de expediente e olhe lá! Se o tempo der,melhor. Se não der, azar deles, eu é que nãovou levar serviço para casa. Acabou-se. Agora,de noite é um cineminha; ouvir televisão; dormir.Trabalhar, não. Isso já está resolvido. Queganhei trabalhando extra? Nada. Ao contrário.Enganaram-me. Preteriram-me. Está certo. Poisagora vou levar a coisa como eles. No mole.FloripesÓtimo! Isso mesmo! De hoje em diante você vaitrabalhar para você. No seu próprio interesse.DalvaO Guima pode pegar um bico, pode pegar outroemprego no período da manhã.411GuimarãesNão sei o que possa fazer. Há anos que estou nofuncionalismo. Não aprendi outra coisa. A gentemergulha a carcaça na repartição e é absorvidopor ela.DalvaVocê podia trabalhar em corretagem.GuimarãesNão dou para isso.


FloripesIsso é bobagem. Não é na picareta que se ganhao dinheiro. Quem trabalha muito não tem tempode ganhar o dinheiro. E isso é vida? Trabalhade manhã num serviço e de tarde noutro. Nemtem tempo de almoçar. É viver num corre-corredanado. Um ordenadinho aqui, outro lá. Issoadianta? Isso compensa?GuimarãesÉ. A Floripes tem razão.FloripesClaro que tenho, meu bem.412GuimarãesEu admito que um sujeito trabalhe 15 horaspor dia; vamos dizer, durante cinco anos. Praficar rico. Agora, se matar no serviço para viverde ordenado, para ganhar um pouco mais, nãoé negócio.FloripesNaturalmente. O que o Guima tem que fazerestá na cara.GuimarãesClaro. Então eu sou idiota? Agora eu vou levartudo na flauta. Em casa não trabalho mais. Durmo,leio, faço palavras cruzadas...


FloripesE se trabalhar, é para levar vantagem. Você sabe,Guima, foi bom ter acontecido isso. A injustiçaveio na hora. Na hora H. Agora você sabe o quetem que fazer.GuimarãesSe sei! Vou terminar esse serviço aqui e acabou-se.Este é o último serviço extra que eu vou fazer.Já está no fim. Paciência. Entrego. Amanhã oudepois entrego e basta.FloripesE agora a coisa está mais fácil. Não precisa fazertantos cálculos.413(Dalva sai)GuimarãesAs contas já estão feitas. É só concluir.FloripesPois é, meu bem; agora você também vai ter a suasatisfação. A sua primeira satisfação. Foi precisolevar na cabeça...(Guimarães começa a arrumar os processosem cima da mesa e a máquina de somar,preparando-se para iniciar o seu trabalho. Odiálogo prossegue)


GuimarãesApanhando é que se aprende.FloripesÉ uma dupla satisfação: moral e material.GuimarãesMoral e material. É isso mesmo.FloripesAssim nós vamos viver uma vida melhor; já nãoera sem tempo.Graças a Deus.Guimarães414FloripesE sua mulherzinha poderá andar mais bem vestidae você poderá ter o seu automóvel.Claro.GuimarãesFloripesVocê quer que eu ajude você, meu bem? Quantomais cedo você terminar isso, melhor. Eu achoque você deve ter cuidado ao entregar o relatório.Você deve falar antes com o Gervásio.GuimarãesEu prometi a ele. Isso não tinha a menor importância.


FloripesAh, meu bem, eu estou tão satisfeita! Agora nósvamos viver. Viver bem. Antes, vegetávamos.Você, com o seu carrinho. Você precisa tirar carta.Carta de motorista.Tem tempo.GuimarãesFloripesVocê entra na auto-escola. É melhor entrar já.Sempre leva uns 20 dias aprendendo.GuimarãesEntão! Temos tempo de sobra. Agora, eu não voufazer mesmo nada de manhã. Até sair o mandadode segurança, receber os atrasados... Eu pretendocomprar o carro com os atrasados.415FloripesNão precisa, meu bem. Você pode comprar ocarro com o dinheiro do Gervásio.GuimarãesEstá maluca! Eu não! Não quero ficar devendonada ao Gervásio!FloripesQue devendo o quê! Eles é que vão ficar muitoagradecidos.


Eles quem?Os maquinistas.GuimarãesFloripesGuimarãesCoitados. Esses vão se estrepar direitinho. Queazar que eles tiveram! É como soldado que morrede uma bala perdida depois do armistício. Aguerra acabou e eles ainda estão morrendo. Porignorância, porque a notícia demora um certotempo para chegar. É azar.416FloripesNão estou entendendo nada do que você estádizendo.GuimarãesEntão. Eu sou o inimigo. A guerra acabou. Estemeu relatório vai ser o último tiro. Azar deles.FloripesNão entendi mais nada. Quer dizer que...GuimarãesConfesso que não tenho nenhum prazer nisso.Perdi todo o entusiasmo.FloripesComo é que você vai concluir o relatório?


GuimarãesNão tenho o que concluir. Os homens devem oimposto. É uma questão de máquina de somar.FloripesE os 3 milhões?! Você vai desistir dos 3 milhões?!Que 3 milhões?!GuimarãesFloripesDo Gervásio. Ele disse que se você concluíssepela não-incidência do imposto, você ganharia3 mihões do advogado dos maquinistas...417GuimarãesMas os maquinistas sonegaram o imposto...FloripesE que tem isso? Se não fosse você, ninguém saberia.Pois agora você deixa tudo na mesma.GuimarãesIsso eu não posso fazer...FloripesE eles podiam te passar para trás, podiam? Nãopodiam, mas passaram. Agora, você desforra.Chegou sua ocasião. Não foi você quem começou.


Quem deu o exemplo. Você não disse que ia levaras coisas no mole?GuimarãesBem... No mole é uma coisa. O que o Gervásiopretende são outros 500 cruzeiros. Isso eu nãofaço.FloripesÉ assim que você responde pela sujeira da reforma?418GuimarãesNão. São duas coisas diferentes. Fui preterido:então, em compensação, não dou mais duro noserviço. Isso é uma coisa. O que o Gervásio queré outra bem diferente. É crime. É desonesto. Éporcaria, e isso eu não faço...Não sei por quê.FloripesGuimarãesEu sei e é o bastante. Esses negócios você nãoentende, Floripes. Você vê as coisas muito fáceis,onde elas são impossíveis.FloripesAi meu Deus do céu! É de deixar a gente louca!Ia tão bem. Eu não entendo. Parece até castigo!


Nossa Senhora de Fátima, me dai paciência paraconvencer este burro...GuimarãesBurro, não. Apenas honesto.FloripesHonesto! É muito fácil dizer! Honestidade à custade quem? De mim. Que vivo nesta mixaria. Issonão é ser honesto.É ser egoísta. É orgulho. Orgulhoidiota de quem não tem dinheiro.GuimarãesVocê não pode se queixar. Temos vivido maisou menos bem, até agora. Vida modesta, masdecente. Não devemos nada a ninguém. O apartamentoé quase nosso...419FloripesE para que eu quero esta porcaria?GuimarãesVocê tem que se conformar. Ricos não somos nemseremos. Nunca pensei em ser rico.FloripesMas o dinheiro está aí. Na porta! Está querendoentrar e você não deixa.


GuimarãesEsse é muito caro. A esse preço, não convém.Você não me compreende, Floripes?FloripesQuem é que pode compreender uma coisa dessas?Quem é você, para recusar 3 milhões de cruzeiros?Um pé-rapado presunçoso. Cretino, que pensaque é melhor que os outros! Isso é de amargar!Só comigo é que acontece uma coisa dessas! É dagente ficar louca! Três milhões de cruzeiros! Dezanos de ordenado! Trabalhando todos os dias!Será possível, meu Deus! Minha Nossa Senhorade Fátima! Me dê uma inspiração.420GuimarãesNão invoque Nossa Senhora para te ajudar. Dinheiroganho assim, não traz felicidade.FloripesHum! Não traz felicidade! Só esta é que faltavaagora! Dinheiro, agora, tem marca de fábrica!Dinheiro é dinheiro. Uma coisa só. Tudo igual.Venha de onde vier. Pergunte aí para os teuscolegas que ganham menos do que você e quetêm automóvel e que moram em bairro bom eque as mulheres luxam. Vai dizer pra eles quedinheiro não é bom.(Entra Dalva)


GuimarãesEu não tenho nada com a vida dos outros. Isso élá com eles. Você está vendo, Dalva? A Floripeslevou a sério aquela conversa do Gervásio. Dos3 milhões do advogado dos maquinistas. O queé que você acha? Você acha que eu devo engoliraquela enorme sonegação dos maquinistas eembolsar os 3 milhões de quem não conheço?Eu não acho nada.DalvaGuimarãesComo? Você não tem personalidade? Eu não souseu irmão? Não temos o mesmo sobrenome? Dêa sua opinião. Você acha que devo sujar as minhasmãos recebendo bola, só porque os outrosrecebem e porque fui desconsiderado?421DalvaBem. Acho que você tem razão. Dinheiro nãotraz felicidade.FloripesDinheiro não traz felicidade, mas a vida é bemmais suportável com dinheiro.DalvaMeu irmão não seria feliz sentindo-se desonesto.


FloripesEssa é muito boa! É de dar gargalhadas! Olhe sóquem vem me falar em honestidade!DalvaQue é que tem? Pediram minha opinião, e dei!Não quero ofender ninguém e não admito queme ofendam.FloripesVocê seria a última pessoa aqui a falar em honestidade.422DalvaNão! Por que você me diz isso?FloripesAcho engraçado essas coisas! Até me irritam! Eainda pergunta? Essa eu digo! Não sou de falarpor trás, não. Digo e na cara. Comigo não háhipocrisia.Floripes!GuimarãesFloripesE você defendendo sua irmã! Você está de acordocom essa vida que ela leva? Você que tem amania de honestidade, não devia consentir quesua mulher, sua família vivesse aqui, com ela; ela,que vive publicamente com um colega seu! Ela é


moça solteira e vive de amigação! Está certo isso?Agora eu pergunto: está certo isso?DalvaSou maior de idade. Tenho 28 anos. Não tenhoque dar satisfações de minha vida a ninguém.Não vivo à custa de ninguém. Não dependo deninguém. Se sou demais nesta casa, é outro caso.A solução é fácil.FloripesVai. Vai morar com o Gervásio. Aí completa tudo.Vocês, que são pela honestidade!DalvaIrei morar com quem quiser! Meu irmão não temnada com isso! Você quer fazer dele um ladrão!Um venal! Isso é outra coisa! Honestidade é umacoisa. Imoralidade é outra.423FloripesO Gervásio é um venal e você vive com ele! Estácerto isso? Me diga! Está certo? Não. Não. Isso éhipocrisia! E eu nesta miséria! A irmã faz o quequer e eu que agüente. Esta miséria de vida! Equando se apresenta uma oportunidade de sairmosdo chiqueiro... Não... Porque é honesto...Porque não é venal, porque não sei o quê... Masisso há de acabar. Eu aqui não fico mais. Eu ficolouca! Eu fico louca!


(Floripes cai num pranto nervoso. Guimarães vaiacudi-la. Faz apenas menção de movimentar-seem sua direção)FloripesNão. Não venha cá. Estou farta! Chega! Nãoquero saber mais de vocês! Vou-me embora.Chamem o Gervásio. Gervásio fica com ela. Eume vou.(Floripes sai da sala. Há uma pausa de estupefação)424GuimarãesMe desculpe, Dalva. Quem havia de esperar umacoisa dessas?!DalvaUm dia tinha que acontecer! Eu sabia. E a culpa éminha. Ela tem razão. Ela não é obrigada a vivercomigo. Sou demais aqui.GuimarãesMas você paga. Nós não estamos fazendo favor!DalvaÉ impossível. Eu tenho mesmo minha vida,Guima. O que ela disse é verdade. Eu vivo comGervásio.


GuimarãesNinguém tem nada com sua vida!DalvaEla tem direito de reclamar...GuimarãesEla está furiosa por outra coisa e você sabe bemo que é. O seu caso não lhe afeta. Ela disse issona raiva. É desabafo. Você sabe como ela é nervosa.Sofre dos nervos. É uma insatisfeita. E eucompreendo... Não teve filhos. A gente tem quedar o desconto.DalvaNaturalmente. Eu compreendo, Guima. Não tenhoraiva dela. Mas... É impossível eu continuaraqui. Tudo estava mesmo por um fio. A gentesente essa situação. É falsa. É quase uma situaçãoimposta. Um dia vem o desabafo e sai tudopara fora...425GuimarãesSe você sente-se mal aqui...DalvaNão é por você... Mas... Sempre é um constrangimento...Eu preferia morar aqui... É uma segurança...Uma situação... Como você já disse... Masagora é impossível.


GuimarãesEstá bem. Você faça como quiser. De qualquermodo, você pode contar sempre com esteseu irmão. Em qualquer circunstância. Eu nãosou daqueles que apontam o dedo, não. Eucompreendo a vida.(Entra Floripes com uns papéis na mão e enxugandoas lágrimas, momento de surpresa econstrangimento)426FloripesDalva. Você me desculpe, Dalva. Não fiz por mal.Eu gosto de você, Dalva. Foi nervoso. Eu me descontrolei...É um desespero.DalvaNão tem importância. Não se fala mais nisso.FloripesVocê não precisa sair daqui, Dalva. Eu lhe peçoque você não saia. Eu sei que você não precisadesta casa. Eu sei. Mas você nos faz companhia.A casa irá ficar muito triste sem você. É uma casavazia, sem crianças... (chora)DalvaNão se preocupe, Floripes. Ninguém falou nada...Tudo continua na mesma... Tá?! Agora se acalme...Que no fim tudo dá certo.


FloripesObrigada, Dalva. Não vá ficar com raiva de mim.Eu sou muito infeliz... Mas não há de ser nada.Agora eu lhe peço. Me deixe aqui um pouco sozinhacom meu marido. Quero falar em particularcom ele. Um momento só. Não é nada. Estoucalma. O nervoso já passou. Você me desculpe,Guima. Fiz uma cena idiota. Estou com raiva demim mesma.DalvaEstá bem. Com licença. Se precisarem de mim...(Sai. Pausa. Floripes se recompõe, pensa. Refletebem, escolhendo como atacar o assunto. Afinal,resolve-se)427FloripesGuima: sou sua mulher. Há oito anos que soucasada com você. Não é? (Guimarães confirmacom a cabeça)FloripesSe não lhe dei filhos, você sabe, a culpa não éminha. É a coisa que mais desejo ter... Um, Dois...Três... Uma porção... Mas Deus não quis, e a gentetambém tem que se conformar com isso...GuimarãesEsse é um assunto superado. Não interessa maisfalar sobre isso.


FloripesSempre fica no coração da gente. É uma mágoaque a gente não supera. Nem eu nem você.Paciênc ia. Vamos nos conformar. Bem... Mas foradisso... Eu tenho cumprido minha obrigação. Souhonesta. Você faz tanta questão de honestidade.Sou honesta. Sempre me comportei como suamulher. Nesse ponto você não pode ter a menorqueixa...GuimarãesMas eu nunca me queixei...428FloripesEu sei. Você nunca se queixa de nada. Mas queeu sou honesta, sou. Nunca olhei para homemnenhum. Nunca criei dificuldades para você. Atétrabalho. Trabalho, não é só para ajudar... Maso trabalho ajuda a viver... A passar o tempo. E agente ganha. Está certo? Eu estou mentindo?GuimarãesNão. Absolutamente. Mas... Para que você estáse preocupando...FloripesDeixa eu falar. Eu preciso falar. Eu podia ser umamulher sem-vergonha. Homem não falta por aí.Eu podia lhe enganar e você nem perceberianada... Eu podia não ser econômica. Ser gasta-


deira. Fazer você gastar mais do que ganha...Viver em dificuldades... Não. Não faço nadadisso. Controlo a casa. Você não tem a menorpreocupação. O dinheiro dá. Eu faço o dinheirodar. Tudo isso tem valor, não tem?GuimarãesClaro que tem. Tudo isso tem valor. Eu reconheçotudo isso, Floripes. Sou muito reconhecido. Talveztenho sido um pouco ríspido...FloripesNão interessa. A gente é como é. Tenho meusdefeitos...GuimarãesVocê tem muito mais qualidades que defeitos.429FloripesEntão?! Nunca lhe pedi nada, Guimarães. Nunca!!Não sou mulher de pedir. Você sabe dissomuito bem. Agora eu vou lhe pedir um favor. Umfavor só. É preciso ser uma coisa que muito interessa,senão eu não estava aqui implorando. Sevocê me reconhece direitos... Se eu tenho algumdireito de pedir alguma coisa a você... Agora eulhe peço: está aqui. Está aqui. Foi o Gervásio queme deu. É um parecer de um advogado. De umgrande advogado. De um professor da faculdadede direito. Está aqui. Aqui está escrito e provado


que os maquinistas nada devem. Você pode terrazão aí no seu relatório. Mas é uma questão deinterpretação. Se tem um professor que diz, queescreve e assina, com toda a sua responsabilidadede professor, que o imposto não é devido... É umaquestão de interpretação. Veja. Você tem costasquentes. Você não estará sozinho. Veja. Leia.(Entrega o papel a Guimarães. Este o pega e passaos olhos por cima)430GuimarãesEsses pareceres não adiantam nada, Floripes.Você sabe como são feitos. Depois, eu nãoposso mudar de opinião. Minha opinião já éconhecida. Você tem o direito de pedir o quevocê quiser, que esteja ao meu alcance. Isso quevocê quer é impossível!FloripesVocê nem leu! Como é que pode saber?!GuimarãesSei. Sei de sobra. Eles também sabem. Senão nãoestariam aí, a me comprar.FloripesGuimarães. Seja razoável, meu bem. Pensa umpouco. É tua mulher que te pede. É muito importantepara a nossa vida. Você nem imagina!Mas eu sei. Eu estou vendo. É uma interpretação.


Não tem a menor importância. Ninguém irá lhequerer mal por isso. Ao contrário; você facilitaas coisas, ganha amigos. Ganha dinheiro e amigos.Não ganha inimigos. A vida fica mais fácil,mais alegre. Eu lhe peço, Guimarães, com todaa humildade. Não é por orgulho. Eu me ajoelho.Eu peço de joelhos. Olhe: estou me ajoelhando.Peço de joelhos. Como uma escrava que pede asua libertação. Esse relatório é a nossa libertação.Minha e sua também, Guima, meu bem. É umfavor. Para mim. Para a sua mulherzinha. Temgente que rouba, que mata, pela sua mulher,não tem? Então, Guima?GuimarãesLevante-se, Floripes. Você perdeu completamentea capacidade de raciocinar. Você está obcecada!Nunca pensei que o dinheiro lhe transtornassetanto! Eu compreendo que se roube, que semate para matar a fome. Mas aqui ninguém estápassando fome, Floripes. Vivemos bem. Melhorque oitenta por cento da população. A grandemaioria vive pior que nós. É até um sacrilégiovocê tomar uma atitude destas, por causa de uminfame dinheiro. Eu faço tudo por você, Floripes.Mas você não tem direito de me pedir uma coisadessas. Que adianta esse dinheiro? Não, Floripes.Você está me criando uma situação terrível, masnão pode ser. Eu não posso fazer isso.431


432FloripesEstá bem. Não insisto mais. Assim você quer. Estábem. Mas não conte mais comigo. Não queromais saber de você. Desse inferno! Nunca! Fiqueaí com seus relatórios, com sua honestidade...Fique aí. Seu burro! Seu cretino! Idiota! Imbecil!Medíocre! Há de ser um pé-rapado toda a vida.Pensa que vai ganhar o mandado de segurança?Pensa que vai receber os atrasados? Nunca. Nuncahá de receber nada. Só coices. Você gosta dereceber coices. Você é como cachorro: apanha evai lamber a mão de quem bate. Pare de escreverisso aí. Vem me ouvindo. Seu burro! Burro! Tiraisso daí! Essa porcaria! Vá trabalhar na repartição.Aqui não. Aqui é minha casa! Não quero!(Nesse momento entrou Dalva. Floripes, no augedo desespero, procura espalhar os papéis pelochão, rasgá-los. Faz um espalhafato dos diabos.Por pouco não inutiliza os processos. Rasga tudo.Quase histeria. Dalva assiste à cena, estagnada.Guimarães é obrigado a agir prontamente ecom energia. Agarra Floripes pelos pulsos, comcerta violência. Não é seu feitio, mas necessáriotorna-se salvar todos os processos da destruição.Floripes grita, inteiramente fora de si)FloripesBurro! Cretino! Pé-rapado! Pé-rapado! Covarde!Covarde!


(Ouve-se a voz de dona Hermengarda pela janela,que estava aberta)Voz de HermengardaHê! Olha a radiopatrulha! Olha esse barulho aí!Eu chamo a radiopatrulha!(Há um silêncio repentino. Floripes estaca, perplexa.Guimarães fecha repentinamente a janela.A mulher, dando acordo de sua atitude, correpara dentro. Pausa. Perplexidade. Guimarães,com muita calma, começa a ordenar os papéisnovamente. Cata as folhas esparsas pelo chão.Dalva o ajuda. Cena silenciosa. Os dois se entendem.Há folhas esparsas, folhas rasgadas e folhasamassadas. Em dado momento, Dalva mostra doispedaços de folha, consultando Guimarães. Estepassa os olhos pelos dois pedaços e os guarda,recebendo-os de Dalva. A cena muda é um tantolonga. Um minuto e meio, mais ou menos. Depoisde coordenados os papéis, Guimarães senta-se napoltrona, muito mais desanimado que cansado)433GuimarãesQue coisa, hein?! Você podia pensar numa coisadessas?! Você viu o problema?! Vai ser por todavida! (Pausa) Bom. Paciência. Vamos ver.DalvaSaia um pouco, Guima. Vá se espairecer.


GuimarãesEu não! Ela é capaz de vir aqui e queimar tudo isto.Ela ficou louca! Você já viu uma coisa destas?!DalvaEu saio com você, Guima. Vamos a um cineminha.Isso passa. Tudo passa. No fim dá tudo certo.GuimarãesNão é bem isso. A gente se acostuma com tudo.Se conforma com tudo. E parece que deu tudocerto. Mas é uma mentira.434DalvaVocê viu que eu não posso continuar mais aqui,não é?GuimarãesNão há nada com você, Dalva. Posso lhe garantirque não há nada com você.DalvaMas não convém, você não acha?GuimarãesBem. Você não tem nenhuma necessidade deagüentar este ambiente. De passar pelo que eupasso. Eu sei. Não quero prender você comigo.Nunca. Acho que você deve sair. Para seu bem.Há coisas que não têm mais conserto. Mas não


saia já. Assim, de repente. Por uma questão desituação. Não vá pedir nada ao Gervásio. Dentrode uma semana, você se compõe com uma amiga,uma colega, e vai morar com ela num apartamento,de sociedade. Ou numa pensão. Ondequeira. Mas não dê parte de fraca ao Gervásio.Com ele, você tem que se impor, senão estaráperdida. Gervásio pode saber que você gostadele. Que você o ama. Mas não deve sentir quevocê necessita dele economicamente. Nem vocênecessita. E, se precisar, eu ajudo. Hei de lheajudar. Você deve sempre guardar a esperançade se casar. Não que eu reprove a sua vida. Nãoaprovo nem reprovo. Compreendo. Não discuto.Nem quero saber. Sei que você é uma moça direita.Mas casar, sempre é melhor.435DalvaUm dia ainda hei de lhe contar toda a minhavida. Há de me fazer bem.GuimarãesEstá bem. Está bem. Não quero saber de sua vida.Não que não me interesse por ela. Está claro queme interesso. Não para julgar ou condenar. Maspara aconselhar. Encaminhar, se adiantar algumacoisa. A experiência dos outros não adianta nada.A gente aprende à própria custa. É sempre assim.Também... eu não tenho experiência alguma. Fuisempre um menino besta... sem mocidade algu-


ma. Casei-me... nem sei porque... porque gostava.Sim, eu gostava de Floripes. Não era nada deextraordinário. Nada em mim é extraordinário.Vai ver que você tem mais experiência que eu. Engraçado!E eu aqui a dar conselhos. Enfim. Umacoisa é certa. Não se entregue, Dalva. Não cavesua ruína. Defenda-se. Arranje uma companheirade apartamento. De quarto. Defenda-se.436DalvaMuito obrigada, Guima. Eu vou dar um jeito.Floripes não tem importância. Tudo se acomoda.Compreendo bem o que você quer dizer. Vou saircom calma. Também, sair daqui não é sangriadesatada. Quem viveu tantos anos aqui, podeesperar mais uma semana. Vou conversar com aInês. Ela, uma vez, me convidou para morarmosjuntas, de sociedade. Vou falar com ela. Muitoobrigada, meu irmão. Boa noite. Se for possíveluma boa noite depois de tudo isso.(Guimarães levanta-se e vai arrumar a mesa paraseu trabalho. Coloca a máquina de calcular a seualcance na mesa e começa a dispor a papelada)DalvaNão trabalhe mais. Descanse. Afinal de contas...Não é pelo dinheiro que o Gervásio lhe ofereceu...Mas será que esse trabalho valerá todoo sacrifício?


GuimarãesNão sei. Nem quero pensar. É um perigo, pensar.Se pensar muito, acabo cedendo. Sou capaz deme vender, por uma situação cômoda. Não. Émelhor eu terminar de uma vez. Entregar e...Pronto. E agüentar o baque.DalvaVocê sabe o que deve fazer. Boa noite. Obrigada.Deixe eu beijar você, Guima. Nós nunca fomosafetuosos. Somos secos, ríspidos por natureza.Você precisa de carinho, Guima.(Dalva beija e acaricia o irmão)DalvaBoa noite. Trabalhe bem.437(Sai. Guima se prepara para o trabalho. Já estárefeito da briga. Aliás, a cena de Floripes não otranstornou muito. Guima é um forte. Ajeitou amáquina. Colheu uns papéis. Apagou a luz central.Efeito de luz sobre Guimarães, trabalhandoà mesa. Surge Floripes com uma mala na mão.Floripes atravessa a sala, lentamente, em silêncio.Vê-se claramente que abandona o lar. Quase quedesafiando o marido. Este, suspende o olhar dotrabalho, fita a mulher, com tristeza. Acompanhao seu trajeto, sem dizer palavra, sem umgesto, sem um sinal de contrariedade, plácido ,


triste, porém clamo, quase tranquilo. Floripes sai.Guimarães, quase que automaticamente, faz amáquina de calcular funcionar e mergulha noserviço. No malfadado serviço, enquanto o panose fecha lentamente)PanoFim do segundo ato438


Terceiro ato(O mesmo cenário, três semanas depois. Horado jantar. Guimarães e Dalva estão à mesa emfinal de jantar, servidos por Edwiges. Guimarãesabre uma garrafa de champagne. Cena silenciosa,cujo silêncio é rompido pelo estouro do champagne.Guimarães serve a bebida. Levanta-se,com o copo na mão, como quem vai fazer umdiscurso. Sente-se que está ligeiramente tocadopelo álcool)GuimarãesDalva... Minha irmã. Mais que irmã... Minha amiga.Festejamos hoje o seu aniversário. Aniver sáriotriste. Faltam duas pessoas nesta mesa: Floripese Gervásio. A ausência de minha mulher éproble ma meu. A de Gervásio é uma imposiçãosua. É sua greve em prol do casamento. Há trêssemanas que vivemos sós nesta casa. Neste solarda mediocridade. Levanto a minha taça... Taçanão... Copo... Para beber à sua saúde, neste seumelancólico natalício, fazendo votos que vocêvença a sua greve e que Gervásio se case comvocê, dando-lhe uma situação jurídica e moral, aque você tem direito, por todos os títulos. Améme tenho dito.439(Tomam os copos e bebem. Há uma pausa)


DalvaGuima: eu rompi com Gervásio. Eu exigi o casamento.Eu disse a ele que se não quisesse secasar comigo, não me procurasse mais. Ele temme procurado e eu não o tenho recebido...GuimarãesEste champagne que estamos bebendo e a sobremesaque comemos foram presente dele.440DalvaPois é. Mas não saí mais com ele. Agora vou tecontar uma coisa: não está certo o que você disse.Eu não tenho direito. Nenhum direito. A greveque estou fazendo é uma chantagem.GuimarãesNão sei por quê. Toda moça tem direito ao casamento.DalvaNão, meu irmão. Quero que você saiba que Gervásionão tem a menor responsabilidade. Ele... elenão foi o primeiro. Não posso me queixar dele. Éum bom companheiro. Sei que ele gosta de mim.Nós nos amamos. Eu tenho certeza.GuimarãesEntão, por que não se casa com você, ora essa?!Nada impede.


DalvaFoi o que pensei. Por isso fiz a greve. Se ele gostade mim, tem que se casar comigo. Foi assim queeu pensei. Foi uma chantagem.Não sei por quê.GuimarãesDalvaEu sou moça estragada, como vocês dizem. Nãotenho direito. Só se ele quiser casar. Se ele tivervontade de se casar, para constituir família. Masquem é que vai constituir família com uma moçaestragada?GuimarãesVocê está completamente errada e complexadacom esse negócio de...441DalvaNegócio de quê? Diga. Você não tem jeito, nãoé? Você está vendo? Negócio de virgindade. Pelanossa lei, pelos nossos costumes, a moça deveser virgem.GuimarãesHá muita moça virgem que não vale nada emuita mulher como você que dava ótima esposae mãe.


DalvaPode ser. Mas aqui, de acordo com nossas leis, ohomem que se casa fica preso à mulher durantetoda a vida. Aqui não há o divórcio. O homemfica marcado, vinculado. Há também a questãoeconômica: o homem é obrigado a sustentar amulher durante toda a vida. Mesmo depois deseparado. Por que tudo isso? Porque ele tirouuma moça virgem da casa dos pais. Porque essamoça, depois, não tem mais chance de se casar.A lei foi toda feita nesse sentido.442GuimarãesNum sentido mais econômico que moral. Mastudo isso evoluiu.DalvaA lei continua a mesma. O código não foi alterado.Modernizou-se. A coisa hoje não é maisassim.GuimarãesA lei devia ser diferente.DalvaPois é. Eu também acho. Mas não é. O que é quevocê quer que a gente faça? Eu acho que a leidevia variar conforme o caso. Por exemplo: commocinhas saídas da casa da família, virgens...O casamento como está na lei. Com todas as


esponsa bilidades. Com as moças estragadascomo eu, casamento com direito a divórcio.Assim é que seria justo. Por isso é que é bomesse casamento que não vale nada. Esses casamentosde pessoas desquitadas. No México. Éuma forma de resolver uma situação...GuimarãesSem responsabilidades irremediáveis. Quer dizer:o marido tem responsabilidade moral de sustentara mulher. Mas não fica vinculado a ela portoda a vida...DalvaTudo isso é muito complicado. Mas não é justo.GuimarãesO justo é quem se gosta se casar. Podendo secasar, é claro. E o Gervásio e você bem que sepodem casar.443DalvaEu só queria que o Gervásio chegasse para mime dissesse: está bem, Dalva. Você fez chantagemcomigo. Mas eu não posso viver sem você. Vamosnos casar. Eu juro, Guimarães: estava tudo salvo.Eu não me casaria com ele. Iria viver com ele.Continuava assim, vivendo com ele, ou morandojuntos, ou separados, não tem importância. Maseu queria que ele capitulasse.


GuimarãesE filhos? Você não gostaria de ter filhos?DalvaAh! Isso é outro caso. Então, eu me casaria. Tenhocerteza de que Gervásio casaria. Mas não queroassim. Gervásio deve querer casar-se comigo pormim mesma. E não para legitimar o filho. Vocême compreende?GuimarãesComo não? Está tudo tão claro! Agora vamos beberpelo seu casamento e pelo seu futuro filho.444(Guimarães enche novamente os dois copos. Osdois brindam e bebem)GuimarãesFilhos... O problema é filhos... Ter filhos. É ocaso da Floripes. É frustração. Ela não era tantoassim. Foi ficando. Com o tempo. Mas olha aqui.Já resolvi. Antes tarde do que nunca. Está vendoisto aqui? É uma consulta. Mil cruzeiros. No ginecologista.Só daqui a uma semana. Puxa vida!Como ganham esses médicos! A turma faz fila,a mil cruzeiros por cabeça! Mas vale a pena. Euvou acabar com esta alegria. Com esta folga. Voubuscar o meu tormento. Vou tratar dela. Vamoster um herdeiro.


EdwigesDeixa estar que dona Floripes, numa gravidez,deve ser de amargar.(Edwiges serve o café)GuimarãesNem é bom pensar. Mas vou agüentar a mão.Coitada da Floripes. Gênio mau. Como é que vaiviver sem mim? Sozinha, ela não pode. Os paisnão agüentam. Nem sei como suportaram tantotempo. Três semanas. Ela encrenca logo, na casadela. Só quem agüenta aquele gênio sou eumesmo. E ela sabe disso. Tenho certeza de queela voltará. Mas não vou esperar mais, não. Éegoísmo. Não vou fazer ela quebrar o orgulho.Amanhã mesmo vou buscá-la. E eu gosto de tudono seu lugar. A situação assim desgovernada nãome agrada. Não está caminhando bem. Afinal decontas, quem está com a razão? Ela ou eu?445DalvaNós dois com os nossos problemas, hein?GuimarãesE o pior não é isso. É um nunca acabar de problemas.Resolve-se um, aparece outro. Você não secasa com o Gervásio. Pronto. Acabou-se. Resolveuo problema da felicidade?


DalvaNão. Não é assim. Nesta vida a gente luta para sero menos infeliz possível. Acho que nós estamosmuito pessimistas, e que não é próprio para umdia de aniversário. E agora tenho que sair. Barrigacheia, companhia desfeita, como diria o bandidodo Gervásio. Tenho que dar o fora porque elepode aparecer por aqui.GuimarãesVocê tem medo dele no seu próprio reduto?446DalvaTenho sim. Se me encontrar com ele hoje, soucapaz de capitular. E por isso vou ao cinema. Jádevo estar atrasada. Marquei encontro com a Inêsàs 8 horas, na porta do cinema. Venha comigo,Guima. Vamos espairecer um pouco. Não é boma gente ficar aqui, ruminando amarguras.GuimarãesNão. Não vou ao cinema. Não gosto de ir ao cinemasem Floripes. Engraçado... Ela briga desdea escolha da fita. Implica. Eu quero uma e elalogo escolhe outra. Encrenca no ônibus. Fala nocinema. Comenta alto. Dá alteração. A turma olhaduro. Nada de lugar. Quando a fita é policial,então, é um desespero. Não entende nada. Querque eu explique. Me aperta o braço. Dá gritos...O engraçado é que me acostumei com tudo isso.


Sinto falta. No cinema, sinto falta. Nem vejo a fitaaté o fim. A natureza humana é gozada, não?DalvaIsso é vocação para faquir.GuimarãesNem tanto. O negócio também é recíproco. Porqueeu sou um chato, hein? Chato de galocha!Eu tenho me analisado ultimamente e cheguei àconclusão de que sou um grande chato. O Gervásioé um camarada divertido. É exuberante.Exagerado. Gosta de movimento. Se agita. Vibra.E eu? Eu sou uma múmia. Pensando bem, elatambém precisa ter estômago para me aturar.DalvaQuer dizer que a vida é isso? É um aturar ooutro?447GuimarãesEu acho que é. Não sei. O problema é viver. Agente vai vivendo. O tempo vai passando e agente vai se acomodando. Desgraçado daqueleque reage. Que não se acomoda. E no fim, comoaquele sábio da história universal: eles nasceram,sofreram e morreram.DalvaBelíssimo panorama! E para que vou casar, então?Para que você quer um filho?


GuimarãesFaz parte do programa. É a rotina melancólicada vida.(Dalva prepara-se para sair)DalvaAté logo, meu irmão.GuimarãesNão quer beber mais um pouquinho?DalvaNão. E você tenha juízo. Não vá beber demais.448GuimarãesJá ando cansado de ter juízo.(Guimarães despeja champagne no seu copoe bebe)DalvaEstá certo. Vou ao cinema. Só quero te dizeruma coisa. Vou agüentar esta greve mais umasemana. Se Gervásio não se render, quem vaicapitular sou eu.GuimarãesSeria a primeira greve fracassada na história dasgreves nesta terra.


DalvaPaciência. Mas vai ser assim. Só mais uma semana.Ciao.(Dalva beija o irmão no rosto e sai. Guimarães,só com os seus pensamentos, tira o paletó, agravata, abre a janela que dá para a área internado edifício, senta-se na poltrona e acende oseu cigarro. Edwiges entra e sai da sala, tirandoa mesa)EdwigesBoa moça. Muito boa moça: e foi gostar do seuGervásio. Aquele cavalão de homem! E ele fazendoluxo para se casar! Tomara ele pegar umaesposa como a dona Dalva!449GuimarãesPois é. Os dois vão se casar, você vai ver.EdwigesNão sei não. Os homens andam muito ariscos.Está tudo virado hoje em dia. Ninguém querfalar em casamento. Eu acho que é porque temmuita mulher sobrando por aí. O senhor vejao meu caso, seu Guima: até aquela peste doBenedito...GuimarãesVocê não é casada com o Dito, Edwiges?


EdwigesCasada, não senhor. Amancebada, sim senhor.Eu vivo maritalmente com ele, há quatro anos.Também não carece de casar. Agora nem temmais graça.GuimarãesMas você não gostaria de ter uma situação definida?De ter certidão de casamento?450EdwigesIsso não adianta nada. A gente apanha do homem,com certidão ou sem certidão. O senhorveja aí a vizinha, dona Hermengarda. Ela é casadano civil e no religioso...GuimarãesContinuam brigando?EdwigesEntão. Uma ou duas vezes por semana eles dãoo show.GuimarãesDizem que ele bate porque ela não lhe é fiel.EdwigesIsso é conversa, patrão. Ele bate porque ele é debater. Tem uns que são de bater e outros quenão. E o Dito? Também não bate em mim? E eu


não passo ele pra trás, não senhor. Eu sou pessoaséria. De respeito. Também não levo desaforopara casa, não. Medo de homem eu não tenho.GuimarãesIsso é uma questão de educação. Com gentebem-educada, não há dessas coisas.EdwigesOra, seu Guimarães, deixe disso. Eu já fui empregadaem casa de gente rica. De gente grã-finaque mora no Jardim América. E vi o pau comermuitas vezes. E minhas colegas também sabemdisso.GuimarãesEu falei com gente bem-educada e não comgente rica. Uma pessoa pode ser muito rica, morarno Jardim América, ter automóvel e tudo enão ter educação. E outra pode ser pobre e serbem-educada.451EdwigesÉ mais difícil. É mais fácil rico ser bem-educadodo que pobre. Dinheiro ajuda muito. Mas essenegócio de bater é questão de sentimento. Àsvezes a gente bate porque gosta. Outras vezes,porque não gosta. O que há é muita sem-vergonhicepor aí.


GuimarãesÉ. Talvez você tenha razão.(Guimarães levanta-se e vai servir-se de champagne)EdwigesO senhor devia era sair um pouco. Ir a um cinema.Passear com os amigos. Assim o senhor acabaneurastênico. Nem aproveitou as férias.Que férias?Guimarães452EdwigesAs férias conjugais. Dona Floripes lhe deu umafolga, o senhor não aproveitou.GuimarãesE as férias vão terminar, porque amanhã mesmoirei buscá-la.EdwigesAh, patrão! Espera mais uma semana, para completarum mês.GuimarãesNão Edwiges. Essa separação já durou muitotempo. Durou demais para meu gosto. Ou a genteé ou não é. Ou bem eu me separo ou então


continuo casado. Cem por cento de um lado oucem por cento do outro.EdwigesTá bom. O senhor sabe o que faz. Por mim, euesperava mais um pouquinho. Mas eu sou umaerrada. Não dou palpite.(Edwiges sai. Toque de campainha. Volta Edwigesresmungando)EdwigesQuem será? Que já vem encher a gente? Estouvendo que não saio cedo hoje!(Edwiges vai atender a porta. Barulho de vozesno vestíbulo)453Voz de GervásioBoa noite, moça. O patrão está aí?Voz de EdwigesEstá, sim senhorVoz de GervásioJá acabaram de jantar?Voz de EdwigesJá, sim senhor. Dona Dalva saiu. Foi para o cinema.Seu Guimarães está em casa. Esse é como ocaranguejo. Não larga a casca.


(Os dois entram na sala)GervásioBoa noite, meu velho.GuimarãesBoa noite, Gervásio. Muito obrigado pela lembrança.A sobremesa estava muito boa e estechampagne está ótimo. Quer provar um pouco?GervásioQuem dá e toma fica corcunda.454GuimarãesEu estou oferecendo. Vamos beber à saúde dosausentes, mas que estão presentes no nossocoração.Então, que vá!Gervásio(Guimarães serve a bebida, os dois, de pé, brindame bebem silenciosamente)GervásioBom champagne. É quase tão bom quanto o estrangeiro.Mas nós chegaremos lá. É uma questãode tempo. Fuma um charuto? Puro baiano.GuimarãesEspere o café. Edwiges, traz um cafezinho pragente.


GervásioEstá bom. Então vamos esperar pela rubiácea.(Pequena pausa)GervásioEntão, a Dalva saiu. Foi ao cinema. Nem esperoupela gente. No dia do seu aniversário. E eu tenhonovidades para contar. Duas grandes novidades.E trouxe também um presentinho para aquelaingrata. Está aqui, neste embrulhinho. Não veionuma caixa em condições porque eu comprei nocontrabando. Mas que é legítimo, é. De primeiraqualidade. O que vale é o conteúdo e não o rótulo.Está aqui. Manja só que beleza!(Gervásio abre o embrulho e mostra um colar depérolas de três voltas, que Guimarães examina)455GuimarãesMuito bonito. Mas isto deve ser um presentemuito caro, mesmo no contrabando. Aqui vaipelo menos um mês de ordenado!GervásioBote coisa nisso, velho. Dois meses de ordenado!E isso porque eu sei comprar. Para qualquertrouxa seria muito mais.GuimarãesQuer dizer que você anda de caixa alta?


GervásioGraças a você. Eu disse, meu velho: você vaipreparar o prato para os outros comerem. Foi oque aconteceu.GuimarãesÉ. Eu soube. Todo mundo já soube. Atenderam àreivindicação do sindicato dos beneficiadores. Earquivaram a autuação, tudo. Que me importa?Melhor assim. Vamos beber à saúde do seu primo.O advogado dos beneficiadores, pela vitóriaque teve.456GervásioVitória?! A vitória foi minha! Estava na cara. Eu tedisse. Cantei a bola direitinho. Você não topou.Foi melhor para mim.Melhor, por quê?GuimarãesGervásioBem. Vou te contar. Antes, vamos virar mais umcopo. In vino veritas. Hoje vamos sair do sério.Eu e você vamos encher o canecão. (Servem ebebem vinho) Saúde! Eu menti quando disse avocê que não estava levando nada. Menti. Vocêsabe: o segredo é a alma do negócio. E eu sousafado mesmo. Não com os amigos. Com os amigossou batata. Amicus certus in re incerta. Mas


negócio é negócio e ninguém precisa saber comquantos paus se faz uma canoa. A bolada era de5 milhões. Os homens entravam mesmo era comcinco milhões. Eu dava três a você e engavetavadois. Você não quis. Eu tinha que me virar. SãoPaulo não pode parar. Então trabalhei o chefe.Eu disse a você. Você jogou fora a pepineira. Jogoupela janela e o chefe estava lá embaixo parapegar. Mas eu não fui besta. Meti a conversa nochefe. Não deu trabalho: nem foi preciso muitorodeio. Foi barbada. Só que inverti o programa.Dois milhões para ele e 3 para mim. E dito e feito.O homem achou que você era uma besta. Umexagerado. Que não conhecia direito fiscal.Achou que meu primo é que era um crânio.Baseou-se no parecer do jurista e pronto. Doismilhões para lá e 3 para cá. Está bem?457GuimarãesÉ. Todo mundo na repartição já soube do fato. Sóse comenta isso. Que eu não topei; que eu recuseimilhões e que o chefe entrou na bola.GervásioQuer dizer que você está de herói?GuimarãesHerói?!! O contrário. Olham-me como umidio ta. Como um louco. Ou como um cretino,preten sioso. Passei a ser uma figura incômoda


na repartição. O chefe, com culpa no cartório,trata bem todo o mundo. Releva faltas. Aquiloestá uma bagunça! A turma toda tem medo demim. Me olham com reservas. Não tenho maisserviço. O ambiente lá, para o meu lado, estámuito desagradável!GervásioMas, como foram saber? Foi tudo entre quatroparedes!GuimarãesDeve ter sido a Floripes. Você sabe como elafala.458GervásioE um assunto desses! Não tem importância. Oque está feito, está feito. E a gaita já entrou. É oprincipal. O que desceu pelo esôfago e caiu noestômago, eu não vomito mais.GuimarãesNão sei como o chefe acomoda a sua consciência.Afinal de contas, ele é um chefe... Como é queele se organiza?... A disciplina... A moral...GervásioO corcunda sabe como se deita. Essa é a grandeverdade. O corcunda sabe como se deita. Vocêvai ver que ele se ajeita muito bem. Dois milhões,meu velho, resolvem muitos problemas.


GuimarãesE três, ainda mais, não é, doutor Gervásio?Você sabe, Gervásio. Perdemos a representação.Você se lembra? Pois, não deram bola.Um parecer de lá, uma informação de cá, e umindeferimento em seco. Nem houve fundamentação.Nem considerando. Nada. Um despachoem seco: Não assiste razão aos peticionários.Indefiro a representação de folhas. Quatro linhas.Escrevemos 16 laudas e, em quatro linhas,foi tudo por água abaixo. Tenho a impressãoexata de que houve desconsideração. A classenão se impõe, por causa dessas coisas.GervásioIsso é uma injustiça. Pouca gente pode atirara primeira pedra. Até me revolta, sabe?Mas vocês não vão entrar com o mandado desegurança? Vocês querem ir no mole? Tocaum mandado de segurança na cabeça deles eacabam com essa conversa! Ora bolas! O queé que estão pensando?459GuimarãesEra o que se havia resolvido, naquela reunião.Mandado de segurança. Aliás, eu queria entrarimediatamente com a ação judicial. Agora ninguémmais quer entrar com o mandado, estábem?! Ninguém! Dizem que é melhor deixar. Émelhor não procurar encrenca. Que o aumento


sai mesmo. Você está vendo? É um pessoal deamargar!GervásioMalandro não estrila; desaperta para a esquerda.Eles resolvem o problema pelas laterais.Qual é o deles? Eu disse a você. Você estavacom a faca e o queijo na mão. Agora...GuimarãesEu vou entrar com o mandado de segurança. Euvou. Sozinho. É direito meu, ora essa! Eles quese danem!460GervásioÉ um direito que lhe assiste. E ganha. Não hádúvida. E aproveita a todos. É sempre assim.GuimarãesPaciência. Eu vou entrar com o mandado. Nãotenho nada com a desonestidade deles. Nãotenho rabo-de-palha.GervásioEles são umas bestas! Poltrões, para não dizeroutro nome. Não têm classe! Estão passando orecibo. Foram preteridos porque são ladrões,porque são safados. Porque pegam tudo. E passamrecibo. Ficam quietos. Não reagem. Falta declasse! Comigo não tinha conversa. Continuava


oubando e estrilava. E abria a boca e cantavade galo. Comigo não. Enquanto eles vão com omilho, eu já volto com o fubá. Ninguém podeapontar o dedo para ninguém.(Entra Edwiges com o café. Os dois tomam o caféem silêncio)GervásioÓtimo café! Excelente! Dona Edwiges está de parabéns.E cá estão 200 mangos para melhorar osseus males. (Gervásio tira do bolso uma carteirarecheada de notas e dá o dinheiro à criada)EdwigesMuito obrigada, doutor Gervásio.461GervásioVocê está vendo, colega? A força do dinheiro? Jáfui promovido. Dinheiro põe até DR na frente donome da gente. Dinheiro dá até diploma.GuimarãesSer doutor não é documento. Eu conheço umafamília... São quatro irmãos. Três formados. DoutorJosé, doutor Edgar, doutor Valêncio. Tudopronto, vivendo de ordenado. O Geraldo nãose formou. Está rico. O filho do dr. José dizia:quando crescer quero ser seu: seu José.


GervásioE não deixa de ter suas razões.GuimarãesEu não sei se estou certo ou errado. Penso muitodiferente da maioria. Puxei pelo meu pai. Não hánada que pague o direito de estrilo. O indivíduomuito rico, o grande industrial, o tubarão, temmuitas responsabilidades a zelar...GervásioTomar conta de dinheiro também dá muitotrabalho.462GuimarãesÉ isso mesmo. Você sabe: o rico é ambicioso;quanto mais, melhor. Tem patrimônio a defender.Posição para sustentar. Então vivem nadependência de muita gente. Têm que agradare engolir milhares de pessoas. Gente do governo.Políticos. Café society. Até cronista social! Odiabo! Vivem sorrindo amarelo. E com dinheiro,hein! Eu não. Não tenho nada, mas nada devo. Enão abaixo a crista para ninguém. Vivo modestamente.Mas não tenho que dar satisfações paraninguém. O direito de estrilo ninguém me tira.Sou pobre, mas em compensação posso gritar eestrilar. Não preciso bajular ninguém. Idiota é opobre que ainda bajula. Esse tem alma de cachorro.Pois, se a gente não tem nada a perder, ainda


vai suportar panca dos outros? Não. Só imbecil.Buliu comigo, levou troco. Essa é a vantagem dopobre. Veja esses industriais. Quinhentas fábricas.Bilhões e mais bilhões. Têm que agradar o governo.Têm que fazer rapapé para senador, paradeputado, senão é espeto. Aumentam o imposto.Tocam-lhe uma fiscalização. É o diabo. E com osjornalistas ainda é pior. E com os comunistas.Você sabe que tem muito tubarão aí que comparececom dinheiro para o partido comunista?Eles querem é sossego. Então, procuram cobrir-sede todos os lados. Vida miserável! Não invejo avida dessa gente, não.GervásioNem eu. Se eu pudesse ter o dinheiro, sem asresponsabilidades... É impossível... Todo o mundose incomoda com os ricos. Quando não é porinteresse, é por inveja.463GuimarãesVá se preparando, que você vai indo pelo mesmocaminho. Hoje 3 milhões. Amanhã, 5...GervásioQuem? Eu? Ainda estou muito longe! Quemnasceu para dez réis não chega a vintém! Vocênão sabe da missa a metade. Há gente por aí queganha 3 milhões por dia! Três milhões por dia!De renda, está bem? Eu podia meter os peitos.


Botava um negócio aí. Contrabando. No fim deum ano teria 10 milhões. Ou bunda de fora oucalça de veludo. Ou bem cabeludo ou carecade tudo. Para quê? Para sair do meu natural?Deixa.GuimarãesEstá certo. Um dia lhe apreendem a moamba elá se vai todo o lucro. E não há remédio, porqueo negócio é imoral e extralegal.464GervásioExtralegal, de acordo. Mas imoral, não. Todomundo faz contrabando. Você vai a Nova Iorque,encontra a brasileirada lá. Só pensam emcontrabando. Só falam em contrabando. Vocênem queira saber!GuimarãesÉ. Essa corrida atrás do dinheiro... Do dinheiro...A corrida não pára... Depois do dinheiro... Anotoriedade... A fama... A glória. Vaidade. Éuma coisa louca!GervásioO expresso não pára. É a reação em cadeia.Uma coisa puxa a outra. Você sabe que temmilionário aí que dá para artista. Não sabemmais o que fazer com o dinheiro, então botampanca de artista.


GuimarãesPois eu penso diferente. Talvez seja por eunão ser rico. Quem sabe, se fosse rico, naturalmenteagiria como rico. Mas, não se tendodinheiro, o panorama é outro. É levantar acabeça. É não entrar na gaveta de ninguém.O estrilo é livre. Exigir e não pedir. Lutar pelomeu direito. É uma condição humana. A gentetem que manter a condição humana!GervásioMuito bem, Guimarães! Bravo! É isso mesmo!Você é um braço! Você é que está com a razão!Às vezes eu fico pensando... Pensando...Eu sou um ladrão de galinha, colega! Destavez eu entrei na bolada. Mas já me vendi porgorjeta. Por 500 mil réis. Com qualquer gorjetinhaeu facilitava as coisas. Eu não tenhodignidade. Eu falo isto aqui, para você. Entreamigos. Ninguém me diz isso na cara, que eureajo à altura. Mas é a verdade. Eu não passode um ladrão de galinha. De um achacador! Cápara nós, hein? In vino veritas. Eu tenho umaprofunda admiração por você, colega! Você éque está certo!465(Pausa. Guimarães levanta-se e avança para ocentro da cena, lentamente, com um copo devinho na mão)


466GuimarãesEu não sei se estou tão certo assim, Gervásio. Nãoestou nada convencido da minha certeza. Eu tambémestive pensando... Pensando... Você sabe...Três semanas. Há 20 dias que a Floripes saiu... Eutive bastante tempo para pensar... Não tenhofeito outra coisa... Não sei... Dúvida... A dúvida. Aprincípio parecia absolutamente certo. Convencido.Agora, não. Eu não me vendi. Não comi bola.Três milhões de cruzeiros... Em moeda correntedo país... Está certo. Você pensa que eu recuseipor patriotismo, em nome da pátria, por civismo?Não. Nada disso. Minha recusa foi automática.Inconsciente. Nem ponderei prós e contras. Nãocomo bola, acabou-se. Foi um problema íntimo.Todo pessoal. A coisa é cá por dentro. Não penseiem ninguém. Talvez só em mim. Aí é que está.Isto também é cá pra nós, hein? Vai por contado vinho e de nossa amizade. Minha recusa foium ato puramente egoístico. O que eu ganheicom isso? Nada. Não agi dessa maneira atrás decompensações. Não. Foi automático, já disse. Amoral da repartição não melhorou. Até piorou.Porque a venalidade veio de cima. Do chefe. Eeu sabia que ele cederia. Mas o problema nãoera só meu. Havia a Floripes. Eu joguei fora achance de ficar rico. Uma chance de Floripes melhorarconsideravelmente de vida. Eu encarei oproblema do meu lado exclusivamente pessoal.


Egoísmo. Vaidade. Sou um grande pretensioso.No fundo, não passo de um idiota pretensioso.Vou reformar o país? Vou moralizar a nação? Eu?Quem sou eu para recusar 3 milhões... Em moedacorrente do país? Eu faço questão de que vocêsaiba, Gervásio, que não estou arrependido. Nãoestou chorando o dinheiro que deixei de ganhar.Não. O que está se passando comigo é que nãoestou tão convencido de estar com a razão. É isso.Está tudo bailando, aqui na minha cabeça. Estouconfuso. É isso. Confusão. Não sei mais onde estáa verdade. Talvez a verdade esteja dentro destagarrafa. Vamos a ela.GervásioMas se todo mundo pensar assim, então, estepaís não tem mais salvação!467GuimarãesEu sei lá! O fato é que todo mundo se vende e opaís vai indo para a frente. Eu acho que é comoesse negócio de terras. O desbravador do sertãonada mais é que um grileiro. Ele rouba a terrado Estado. E leva o progresso para a região. Ahistória da terra vem dos posseiros. Do grilo.De um roubo. Na indústria é a mesma coisa: ocapitalista, com o dinheiro, ajeitando as coisas,uma facilidade de cá, uma licença de exportação,uma moleza cambial por baixo do pano. Emonta a fábrica. Depois dana-se a vender sem


nota. Compra tudo que é fiscal. Esconde o lucrona contabilidade. Fraude. Ajuda na caixa do partidoda situação... E está aí mais uma fábrica...Mais um fator de progresso. E a verdade é quetodo mundo ganha com isso. Você está vendo aconfusão?GervásioQuer dizer que a ordem é roubar?468GuimarãesEu não quero dizer nada. Estou pensando alto.Estou considerando os fatos. E agora vamos nosdespedir desta bebida. Vamos, colega. Meu colegarico. O colega pobre e o colega rico. Você coma gaita no banco e eu com a conta no empório.Mas o tal sou eu? Está bom, Guimarães, pobre,porém honesto. Bonito... Não há dúvida! Hein!Edwiges! O que é que você acha disso tudo?EdwigesEu não acho nada. Cada qual sabe onde lheaperta o sapato.GervásioBoa, Edwiges! Nada como a sabedoria popular.GuimarãesAdeus, meu bom champagne. Desculpe, se nãoo saboreei como um mestre-de-cerimônias. Seugazua! Abridor de cofres de segredo!


EdwigesQuer mais café? Está na hora de tomar café semaçúcar.GuimarãesVocês pensam que eu estou bêbado? Absolutamente.Estou apenas um pouco alegre. Assim,no ponto de dizer umas verdades. E mais este epronto. Adeus. Vamos voltar à rotina. Amanhãa rotina. Trezentos e sessenta e cinco dias derotina. E nos bissextos, 366. E a gente vai vivendo.Vai-se tocando o barco para a frente. Viva amediocridade! Peito! Bem que a Floripes disse.Peito! Me faltou peito para aceitar os 3 milhões.Eu sou um medíocre. E hei de ser isso toda a vida.E viva a mediocridade!469GervásioGuimarães: você é que está certo. Um tipo honesto,direito, correto. Pode gritar, não está na gavetade ninguém. Tem um nome para deixar paraseus filhos. Uma tradição de honestidade...GuimarãesPobre de mim! Nem filhos tenho. Ainda bem.Senão eles tinham que herdar um nome honrado.O que você prefere: herdar um nome honradode um pai liso como bunda de anjo, ou receberuma fortuna de um pai sujo como pau de galinheiro?Vamos, meu colega, responda. Um nome


honrado. Ou gaita? Está aí. Vamos ouvir o sensocomum do povo. Edwiges, responda você.EdwigesEu, seu Guima? Quem sou eu para herdar qualquercoisa? Nem dinheiro nem nome honrado.Que meu pai, como muito pernambucano, eraladrão de cavalo.GuimarãesMas o que é que você preferiria?EdwigesDinheiro, seu Guima. Dinheiro não tem cor nemprocedência. Vale por si...470GuimarãesE quem responder o contrário, está mentindo.O dinheiro tem uma força descomunal. Vocêtem um padrinho rico. Ele lhe faz bem. Lheencaminha na vida. Lhe socorre nas suas dificuldades.Você lá quer saber se o dinheiro dele éroubado? Você é naturalmente amigo de quemlhe ajuda. Votará nele, se for o caso. O restoé teoria. Você veja o que aconteceu comigo.Continuo pobre, fui preterido, sou uma figuraindigesta na repartição onde trabalho. Brigueicom minha mulher e durante toda a minha vidavou ouvir dela esse queixume: Idiota, imbecil,medíocre. Há de ser um pé-rapado toda a vida.Coitada da Floripes! Deve ter amargurado.


GervásioNão adianta, Guimarães. Você é que está certo.Você sabe disso. Eu não sei provar. Não sei demonstrar.Sou um ignorantão. Só sei provérbio.E me virar por aí. E quando é preciso eu me viromais que charuto em boca de bêbado. Mas vocêé que está certo.GuimarãesAcho engraçado você dizer isso com esse charutãona boca! Com esse ar de prosperidade.De industrial em férias. Você é quem está certo,Gervásio. Todo mundo se vendendo por aí. Aturma do dez por cento. Não sai um empréstimosem correr o dez por cento. Não se paga um fornecimento,sem o dez por cento. Não se venceuma concorrência. Não se constrói uma casa. É acaixinha, a moleza, sei lá! E o governo a aumentaros impostos! O pior cego é aquele que nãoquer ver. E está na cara. É só fiscalizar. É só fazerpagar o que já é de lei. Se não houvesse sonegação,a arrecadação atingiria cifras astronômicas.Mas não, aumentam-se os impostos. Os trouxasirão pagar mais. Pagam pelos águias. Qual, seuGervásio. É uma situação muito cômoda.471GervásioEu não sirvo de exemplo para ninguém. Até nemfica bem estar falando assim. Mas você acreditese quiser: ainda que pareça mentira, eu preferiria


ser como você, Guimarães. Ter a sua moral, asua têmpera. Você é como um sacerdote. Comoum militar. Já tem a sua trilha certa. Não sai doregulamento e não há problema. Não há a encruzilhadapara se escolher. Você me entende?O caminho já está traçado. É mais simples.472GuimarãesÉ mais simples. Já sei tudo que me vai acontecerna vida. Trabalho mais 15 anos. Subo duasletras. Me aposento. E fico esperando a mortesentado. É. De fato. É mais simples. Mais fácil,é a expressão. Há muita coisa que não entendo.Nós não somos donos da verdade. Por isso éque não se deve ir julgando nem condenando.Você veja a minha irmã, Dalva. Ela tem a mesmaformação moral que eu. A mesma educação. Egosta de você. E irá com você para onde vocêfor. Que importa a ela que você tenha sido umvenal, um... Ladrão de galinhas? É como vocêdiz. Onde é que está a sanção?GervásioPuxa! Você agora tocou na ferida. E está na horada segunda novidade. Você já sabia. Mas esta é:eu vou procurar a Dalva. Ela ganhou a parada. Hámales que vêm para bem. O casamento é contra aminha religião, mas vou me casar com ela. E voudividir esses 3 milhões com ela. E depois você dizque não adianta ser honesto. Vou me casar com


ela porque ela é assim como você. Batata! Cempor cento! Vinho da mesma pipa! Quero lhe pedira mão de sua irmã. Você é o irmão mais velho.Meu colega, meu amigo e meu futuro cunhado.Venha de lá um amplexo.(Guimarães levanta-se e abraça longamenteGervásio)GervásioEntreguei os pontos direitinho, hein? Eu gostodela, sabe? E te digo francamente. Há muitotempo que já estava resolvido. Vou me casar coma bichinha. Entro nos 3 milhões e caso com ela.Há mal que vem para bem.473EdwigesMeus parabéns, doutor Gervásio... Agora o senhorfalou com sabedoria.GervásioEm que cinema que ela foi? Quero me encontrarcom ela. Já. Quero lhe dar os parabéns peloaniversário. Este modesto presente. Oitenta milcruzeiros e a grande novidade.GuimarãesNão sei qual o cinema. Sei que marcou com a Inêsna sessão das 8.


EdwigesAcho que ela foi ver Ben-Hur no cinema Regina.GervásioQuatro horas de projeção! Enche, hein? Nãofaz mal. Isso já vai por conta do casamento. Vaicomeçar a minha via sacra. Bem. Até logo, meufuturo cunhado. Até logo. Depois você escreveum tratado de filosofia. Até logo, Edwiges.474(Gervásio sai e Guimarães o acompanha ao vestíbulo.Edwiges já terminou o serviço da sala. Tudoem ordem. Sai em direção à cozinha. Guimarãesvolta. Apaga a luz maior da sala; pega uma revista.Prepara seu cigarrinho e vai refestelar-sena poltrona. Aparece Edwiges pronta para sair,carregando o balaio de costume)EdwigesAté amanhã, patrão.GuimarãesAté amanhã, Edwiges. Muito obrigado pelo jantar.Estava ótimo. Hê! Edwiges!(Edwiges, que ia saindo, pára na porta)Pronto, patrão.Edwiges


GuimarãesBalaio cheio, hein? Aproveita que essa alegriavai se acabar. O controle vem aí.EdwigesO diabo não é tão feio quanto se pinta, patrão.Nós dá um jeitinho. Bye, bye.(Edwiges sai. Calma, sossego, tranqüilidade. Háuma pausa longa. Guimarães larga a revista evai acender a TV. Acende e volta à sua poltrona,cigarro na boca. De repente, entra Floripes, comosaiu no final do segundo ato. Com o mesmo vestidoe a mesma mala na mão. Só que a direção desua marcha é diferente. Antes saía. Agora volta.Floripes pára no centro da sala e quase sem sevoltar para Guimarães, exclama, secamente, semser perguntada)475Eu voltei.Floripes(E entra para o interior. Guimarães nem se mexe.Fuma, e o pano se fecha lentamente)Fim


Abílio Pereira de Almeida no teatro(organizado por datas de estréia)Pif-pafComédia em três atosEstréia: São Paulo, Grupo de Teatro Experimental,20 de setembro de 1946, Teatro MunicipalPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)LauraIrene de BojanoLuiz Mário, seu filho Haroldo GregoriJoão, criadoCarlos FalboOscarPaulo MendonçaStelaHelenita MattosoRobertoGema BarbettaCondessa Simone Marina Freire FrancoEduardoDelmiro GonçalvesConde LeonChurchill C. LockeMárioAbílio P. de AlmeidaAderbal Torres Homem José de Q. Mattozo477DireçãoAbílio P. de AlmeidaCenárioClovis GracianoExecuçãoLéo Rosseti e MolinaPontoHélio Pereira deQueirozAcessórios de decoração Casa PrintalFourruresCasa VogueDéshabillé do 1º ato, execução Modas Maria


A Mulher do PróximoPeça em três atosEstréia: São Paulo, Grupo de Teatro Experimental(GTE), 11 de outubro de 1948, Teatro Brasileirode Comédia (TBC)478Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)AlfredoAbílio P. de AlmeidaCarlosPaulo CajadoJorgeCarlos Vergueiro“Seu” FilintoRaphael Ribeiro daLuzGarçonIldo PássaroFernandoSergio JunqueiraCarmenCacilda BeckerLuizaMarina Freire FrancoManoelDelmiro GonçalvesDireçãoCenáriosExecução de cenáriosFigurinosAbílio P. de AlmeidaAldo CalvoVaccariniBeatriz GonçalvesBiarPaiol VelhoPeça em três atosEstréia: São Paulo, 10 de janeiro de 1951, TeatroBrasileiro de Comédia (TBC)


Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)LinaCacilda BeckerTonicoCarlos VergueiroBastianaZeni PereiraLourençoMilton RibeiroMarianaRachel MoacyrJoão CarlosMaurício BarrosoDoutor Boaventura A. C. CarvalhoQuinzinho Pereira Fredi KleemannTabeliãoGlauco de DivitisTio JorgeEugênio KusnetDireçãoCenáriosExecução cenáriosSup. guarda-roupaDiretor de cenaAdolfo CeliBassano VaccariniArquimedes RibeiroCleide YaconisPedro Petersen479Santa Marta Fabril S.A.Peça em três atosEstréia: São Paulo, 2 de março de 1955, no TeatroBrasileiro de Comédia (TBC)Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)MartaCleide YaconisJuliaMargarida ReyVeraCélia BiarTonicoFredi Kleemann


Dona MartaClóvisCláudioMartuxa (6 anos)AcrísioNenê ParaísoMartuxa (21 anos)Dina LisboaLeonardo VilarWalmor ChagasVera Lucia AlcazarWaldemar WeyOdette LaraElizabeth Henreid480DireçãoAdolfo CeliCenáriosMauro FranciniAssist. direçãoArmando PaschoalExec. cenáriosArquimedes RibeiroFigurinosDarcy PenteadoExec. fig. femininos Maria PenteadoExec. fig. masculinos Odilon NogueiraMaquilagem e cabeleireiras L. TymoszenkoEletricistaAparecido AndréDireção de cena Sebastião RibeiroA ação se desenvolve em três épocas:1926 / 1933 / 1948Personagens1º ato 1926Marta 20 anosCláudio 25 anosTonico 35 anosVera 30 anosJulia 40 anosClóvis 44 anos


Dona Marta 60 anos2º ato 1933Marta 27 anosCláudio 32 anosTonico 42 anosVera 37 anosJulia 47 anosClovis 51 anosDona Marta 67 anosMartuxa 6 anosAcrísio 50 anosNenê 30 anos3º ato 1948Marta 43 anosCláudio 47 anosJulia 62 anosMartuxa 21 anosAcrísio 65 anosRapaz Vulto481Moral em ConcordataComédia em três atosEstréia: São Paulo, 10 de agosto de 1956, TeatroPopular de Arte.Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)EstelaOdette Lara


482YoleRosárioEncanadorRaulZecaChicoFilomenaJuvenalDorotéiaKaturianDireçãoCenáriosAssist. direçãoFigurinosMontagemContra-regraDiana MorellMaria Della CostaBenjamin CattanJardel FilhoSerafim GonzálesArmando BogusLuís TitoEdmundo LopesRosamaria MurtinhoFelipe CaroneFlaminio Bollini CerriTúlio CostaJardel FilhoTúlio CostaJosé de BarrosRogério CardosoO ComícioComédia em três atosEstréia: São Paulo, 10 de janeiro de 1957, TeatroBela Vista, Companhia Nydia Lícia – SérgioCardosoPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)TotóJaime CostaMirinhoCarlos ZaraFifiRita CleosComissão da Coeca Berta Zemel / Gustavo


Pinheiro / RaymundoDupratJornalistas Wilson Santoni /Abe lar do Escolano /Vitó rio Mayda / JoséTava res / DanielDornaAmim Farah Filho Sérgio CardosoNicotaLabiby MadyCoryntho de Worms Guilherme CorrêaD. Chiquinha Lola GarciaDep. Gouvarinho Emanuele CorinaldiBlanchette Dubois Marie Louise OurdanLouis MavilleNieta JunqueiraDadaMárcia RibeiroEverardoColaborações EspeciaisComent. TelevisãoGarotas-propagandaO cão Aladim e a cadela LassieJorge Fischer JuniorPaulo Autran / AbílioP. de Almeida / JorgeFischer JuniorOdette Lara / NydiaLicia483DireçãoSérgio CardosoRua São Luis, 27, 8ºComédia em três atosEstréia: São Paulo, 25 de julho de 1957, TeatroBrasileiro de Comédia (TBC)


484Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)LuizinhaMaria HelenaFrediOscar FelipeHelôElizabeth HenreidNandoEgydio EccioMayJussara MenezesBobRaul CortezRenataFernanda MontenegroFerreiraMauro MendonçaMariluNatalia TimbergFafáSérgio BritoBabyRosamaria MurtinhoRobledoOswaldo de AbreuGastãoVictor JamilKikiLia MaioneArletteGladys AretaEnfermeiraMonah DellacyDoutor Moreira Fernando TorresDoutor Quinzinho Ítalo RossiZecaAldo de MaioDireçãoCenáriosAssist. direçãoExecução cenáriosAlberto D’AversaMauro FranciniArmando PaschoalArquimedes Ribeiro


Dona Violante MirandaComédia em três atosEstréia: São Paulo, 27 de maio de 1958, Companhiade Teatro Cômico, Teatro Cultura Artística,Pequeno Teatro de Comédia.Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)Dona ViolanteDercy GonçalvesSantinhaDalva DiasGuardaJosé IgídioRapazMarcelo PauloBonecaWanda MarchettiJosetteMarly MarleyRositaZoraia MartinsPolidoroPalmeirimTotóWalter TeixeiraZazáCarmen ArtigasLolóMary LinoMargarethMarlene RochaDona GabyLabibi MadiDuduHelena NunesTonicoGustavo PinheiroFirminoCataldo485DireçãoCenáriosExecução cenárioGuarda-roupaEletricistaDercy GonçalvesFrancisco GiachieriA. Galdi e R. CâmeraHelena SantiniRafael Bifulco


Alô!... 36-5499...Comédia em três atosEstréia: São Paulo, 10 de outubro de 1958, TeatroCultura ArtísticaPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)SandraIrina GreccoDoutor WalterLuiz Eugenio BarcellosSamuelElizio de AlbuquerqueDoloresIrene BojanoRicardoArmando BogusTranseunteNelson DuarteO homemNelson Duarte486DireçãoAntunes FilhoAssist. direçãoAdemar GuerraCenáriosMauro FranciniDiretor produção Nelson DuarteMaquilagemVictor MerinovDiretor de cena Rubens SilvaContrarregraDonatoSonoplastiaAymar BergelMontagemPaulinho e PupeCamareiraMargarida ToschiMontagem de som Alcides VivianiMúsica Amor Impossível, de Wilma CamargoOs vestidos para Irene Bojano e Irina Greccoforam confeccionados por Modas Ligia, comTecidos Carone


Liga de Repúdio ao SexoComédia em três atosEstréia: São Paulo, setembro de 1960, Teatro CômicoDercy Gonçalves, Teatro Cultura ArtísticaPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)CastidadeDercy GonçalvesCastinhoRony TorreBelquisDinorah MarzuloOrozimboManoel PêraPelópidasFernando VillarManducariGilda NeryDireçãoCenografiaJosé Maria MonteiroLuiz Paulo Serra eFrancisco Leal487...em moeda corrente do paísComédia em atos 3Estréia: São Paulo, 16 de dezembro de 1960, Companhiade Teatro Cômico, Teatro Cacilda Becker,pela Companhia Brasileira de ComédiaPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)FloripesCacilda BeckerGuimarãesWalmor ChagasGervásioFredi KleemannEdwigesKleber MacedoDalvaAlzira Cunha


DireçãoWalmor Chagas(Prêmio Governador do Estado como diretorrevelação)CenáriosJean GillonO Bezerro de OuroComédia em três atosEstréia: São Paulo, 10 de novembro de 1961,Teatro Leopoldo Fróes488Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)Barão Mastrorosso Dionísio AzevedoFâmulo de confiança Elias GleiserPaulo SérgioRaul CortezRafaelaLiana DuvalA BaronesaCélia BiarNonna, mãe do Barão Dina LisboaO noivoLaerte MorroneSatãOsmano CardosoDireçãoAbílio Pereira deAlmeida e ArmandoBogusCírculo de ChampagneComédia em três atosEstréia: São Paulo, 9 de outubro de 1964, TeatroParamount, pela Empresa Massaini, Llorente


Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)Maria HelenaRosamaria MurtinhoRobertoAltair LimaMinistroDionísio AzevedoOlgaKarin RodriguesMagdalenaCecília CarneiroConsueloMaria Helena DiasHermantinaJacira Sampaio<strong>Oficial</strong> de justiça Homem de MelloVeraMaria Aparecida AlvesGiselaNadir FernandesMarinaVilma de AguiarPauloMarcio D’AlmeidaClodomiroJosé Carlos MedeirosFábioArnaldo FernandesMaurícioEdgard FrancoEstevãoPedro FerreiraEstanislauDavid NetoJustinoGilberto SálvioGuilhermeFabio Block489DireçãoBenedito CorsiAssistente de Direção José Carlos CarneiroCenografiaUgo de PacceDireção de Guarda-roupa Célia BiarIluminaçãoRui SantosFotografiaRui SantosSeleção Musical Carlos Vergueiro


Licor de MaracujáComédia em três atosEstréia: São Paulo, 28 de abril de 1966, TeatroCacilda Becker490Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)NetinhoSebastião CamposEglantinaMaria Aparecida AlvesTeófiloAugusto M. de CamposTatianaLiana DuvalRaimundoAbílio Pereira deAlmeidaDona NhanhãCarmem SilvaVeridianaRuth de SouzaProdução, Direção eCenografiaConsultor de direçãoExecução de cenáriosContra-regraEletricistaAbílio Pereira deAlmeidaFredi KleemannA. Ribeiro e Atílio DelFioreEnor FonsecaGian Carlo BortolottiO Clube da FossaComédia em três atosEstréia: São Paulo, 24 de outubro de 1968, TeatroBrasileiro de Comédia (TBC)


Personagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)TatianaCélia HelenaFogaçaJairo Arco e FlexaMaraLiana DuvalGuaraciHumberto de LorenaJoãozinhoLino SérgioDaniGilson BarbosaDireçãoFredi KleemannCenários e Figurinos Gilson BarbosaEncarregada da Produção Léa RudnickasAssistente-geral Marga JacobySeleção Musical Carlos VergueiroEfeitos SonorosJosé ScattenaChefe Eletricista Aparecido LeonardoContra-regraAntoninhoDiretor de Cena Renato Pagliari491Marginália (Os Marginalizados)Comédia em três atosEstréia: São Paulo, 28 de julho de 1972, TeatroAliança FrancesaPersonagens e elenco da estréia(por ordem de entrada em cena)WalkiriaDercy GonçalvesMarrocasAparecida PimentaTadeu / DudaFernando VillarBrunildesLuci FontesGuardaAntonio Carlos


DireçãoFredi KleemannCenárioGilson BarbosaAssistente de direção Jon Albano PereiraSonoplastia e Iluminação FigueiredoContra-regraA. Carlos do CarmoAdministraçãoKleber MacedoProd. e Supervisão-geral Ari Soares492


ÍndiceApresentação – José Serra 5Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7Abílio Pereira de Almeida - Ceiça Campos 13Ao leitor - Maiza 45Paiol Velho 49Santa Marta Fabril S.A. 149...em moeda corrente do país 313Abílio Pereira de Almeida no teatro 477


Crédito das fotografias:Fotos do acervo pessoal de Maria Luiza Pereira deAlmeidaCapa: Tônia Carrero e Paulo Autran em Santa MartaFabril S.A., por Fredi KleemanA despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora paraidentificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não éde autoria conhecida de seus organizadores.Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativaà autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos,para que sejam devidamente creditados.


Coleção AplausoSérie Cinema BrasilAlain Fresnot – Um Cineasta sem AlmaAlain FresnotAgostinho Martins Pereira – Um IdealistaMáximo BarroO Ano em Que Meus Pais Saíram de FériasRoteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaerte Cao HamburgerAnselmo Duarte – O Homem da Palma de OuroLuiz Carlos MertenAntonio Carlos da Fontoura – Espelho da AlmaRodrigo MuratAry Fernandes – Sua Fascinante HistóriaAntônio Leão da Silva NetoO Bandido da Luz VermelhaRoteiro de Rogério SganzerlaBatismo de SangueRoteiro de Dani Patarra e Helvécio RattonBens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaiae Carlos ReichenbachBraz Chediak – Fragmentos de uma vidaSérgio Rodrigo ReisCabra-CegaRoteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturie Ricardo KauffmanO Caçador de DiamantesRoteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro


Carlos Coimbra – Um Homem RaroLuiz Carlos MertenCarlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de ViverMarcelo LyraA CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner de AssisCasa de MeninasRomance original e roteiro de Inácio AraújoO Caso dos Irmãos NavesRoteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio PersonO Céu de SuelyRoteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício ZachariasChega de SaudadeRoteiro de Luiz BolognesiCidade dos HomensRoteiro de Elena SoárezComo Fazer um Filme de AmorRoteiro escrito e comentado por Luiz Moura e JoséRoberto ToreroO Contador de HistóriasRoteiro de Mauricio Arruda, José Roberto Torero, MarianaVeríssimo e Luiz VillaçaCríticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e GenerosidadeOrg. Luiz Antônio Souza Lima de MacedoCríticas de Edmar Pereira – Razão e SensibilidadeOrg. Luiz Carlos MertenCríticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção:Os Anos do São Paulo ShimbunOrg. Alessandro Gamo


Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – AnalisandoCinema: Críticas de LGOrg. Aurora Miranda LeãoCríticas de Rubem Biáfora – A Coragem de SerOrg. Carlos M. Motta e José Júlio SpiewakDe PassagemRoteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo EliasDesmundoRoteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina AnzuateguiDjalma Limongi Batista – Livre PensadorMarcel NadaleDogma Feijoada: O Cinema Negro BrasileiroJeferson DeDois CórregosRoteiro de Carlos ReichenbachA Dona da HistóriaRoteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel FilhoOs 12 TrabalhosRoteiro de Cláudio Yosida e Ricardo EliasEstômagoRoteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da NatividadeFernando Meirelles – Biografia PrematuraMaria do Rosário CaetanoFim da LinhaRoteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboardsde Fábio Moon e Gabriel BáFome de Bola – Cinema e Futebol no BrasilLuiz Zanin OricchioGeraldo Moraes – O Cineasta do InteriorKlecius Henrique


Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta CinéfiloLuiz Zanin OricchioHelvécio Ratton – O Cinema Além das MontanhasPablo VillaçaO Homem que Virou SucoRoteiro de João Batista de Andrade, organização de ArianeAbdallah e Newton CannitoIvan Cardoso – O Mestre do TerrirRemierJoão Batista de Andrade – Alguma Solidãoe Muitas HistóriasMaria do Rosário CaetanoJorge Bodanzky – O Homem com a CâmeraCarlos Alberto MattosJosé Antonio Garcia – Em Busca da Alma FemininaMarcel NadaleJosé Carlos Burle – Drama na ChanchadaMáximo BarroLiberdade de <strong>Imprensa</strong> – O Cinema de IntervençãoRenata Fortes e João Batista de AndradeLuiz Carlos Lacerda – Prazer & CinemaAlfredo SternheimMaurice Capovilla – A Imagem CríticaCarlos Alberto MattosMauro Alice – Um Operário do FilmeSheila SchvarzmanMiguel Borges – Um Lobisomem Sai da SombraAntônio Leão da Silva NetoNão por AcasoRoteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski eEugênio Puppo


Narradores de JavéRoteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de AbreuOnde Andará Dulce VeigaRoteiro de Guilherme de Almeida PradoOrlando Senna – O Homem da MontanhaHermes LealPedro Jorge de Castro – O Calor da TelaRogério MenezesQuanto Vale ou É por QuiloRoteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio BianchiRicardo Pinto e Silva – Rir ou ChorarRodrigo CapellaRodolfo Nanni – Um Realizador PersistenteNeusa BarbosaSalve GeralRoteiro de Sérgio Rezende e Patrícia AndradeO Signo da CidadeRoteiro de Bruna LombardiUgo Giorgetti – O Sonho IntactoRosane PavamVladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejasno PlanaltoCarlos Alberto MattosViva-VozRoteiro de Márcio AlemãoZuzu AngelRoteiro de Marcos Bernstein e Sergio RezendeSérie CinemaBastidores – Um Outro Lado do CinemaElaine Guerini


Série Ciência & TecnologiaCinema Digital – Um Novo Começo?Luiz Gonzaga Assis de LucaA Hora do Cinema Digital – Democratizaçãoe Globalização do AudiovisualLuiz Gonzaga Assis de LucaSérie CrônicasCrônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeçasMaria Lúcia DahlSérie DançaRodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança UniversalSérgio Rodrigo ReisSérie Teatro BrasilAlcides Nogueira – Alma de CetimTuna DwekAntenor Pimenta – Circo e PoesiaDanielle PimentaCia de Teatro Os Satyros – Um Palco VisceralAlberto GuzikCríticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como OficioOrg. Carmelinda GuimarãesCríticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas eUma PaixãoOrg. José Simões de Almeida JúniorFederico García Lorca – Pequeno Poema InfinitoRoteiro de José Mauro Brant e Antonio GilbertoJoão Bethencourt – O Locatário da ComédiaRodrigo Murat


Leilah Assumpção – A Consciência da MulherEliana PaceLuís Alberto de Abreu – Até a Última SílabaAdélia NicoleteMaurice Vaneau – Artista MúltiploLeila CorrêaRenata Palottini – Cumprimenta e Pede PassagemRita Ribeiro GuimarãesTeatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBCNydia LiciaO Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: ÓperaJoyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso –Pólvora e PoesiaAlcides NogueiraO Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatroveloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantosde Maldoror – De Profundis – A Herança do TeatroIvam CabralO Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e DonaCoisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista VilmaNoemi MarinhoTeatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o ArNeyde VenezianoO Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista –O Fingidor – A Terra PrometidaSamir YazbekTeresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadasem CenaAriane Porto


Série PerfilAracy Balabanian – Nunca Fui AnjoTania CarvalhoArllete Montenegro – Fé, Amor e EmoçãoAlfredo SternheimAry Fontoura – Entre Rios e JaneirosRogério MenezesBete Mendes – O Cão e a RosaRogério MenezesBetty Faria – Rebelde por NaturezaTania CarvalhoCarla Camurati – Luz NaturalCarlos Alberto MattosCecil Thiré – Mestre do seu OfícioTania CarvalhoCelso Nunes – Sem AmarrasEliana RochaCleyde Yaconis – Dama DiscretaVilmar LedesmaDavid Cardoso – Persistência e PaixãoAlfredo SternheimDenise Del Vecchio – Memórias da LuaTuna DwekElisabeth Hartmann – A Sarah dos PampasReinaldo BragaEmiliano Queiroz – Na Sobremesa da VidaMaria LeticiaEtty Fraser – Virada Pra LuaVilmar Ledesma


Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memóriae PoéticaReni CardosoFernanda Montenegro – A Defesa do MistérioNeusa BarbosaGeórgia Gomide – Uma Atriz BrasileiraEliana PaceGianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no ArSérgio RoveriGlauco Mirko Laurelli – Um Artesão do CinemaMaria Angela de JesusIlka Soares – A Bela da TelaWagner de AssisIrene Ravache – Caçadora de EmoçõesTania CarvalhoIrene Stefania – Arte e PsicoterapiaGermano PereiraIsabel Ribeiro – IluminadaLuis Sergio Lima e SilvaJoana Fomm – Momento de DecisãoVilmar LedesmaJohn Herbert – Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa BarbosaJonas Bloch – O Ofício de uma PaixãoNilu LebertJosé Dumont – Do Cordel às TelasKlecius HenriqueLeonardo Villar – Garra e PaixãoNydia LiciaLília Cabral – Descobrindo Lília CabralAnalu Ribeiro


Lolita Rodrigues – De Carne e OssoEliana CastroLouise Cardoso – A Mulher do BarbosaVilmar LedesmaMarcos Caruso – Um ObstinadoEliana RochaMaria Adelaide Amaral – A Emoção LibertáriaTuna DwekMarisa Prado – A Estrela, O MistérioLuiz Carlos LisboaMauro Mendonça – Em Busca da PerfeiçãoRenato SérgioMiriam Mehler – Sensibilidade e PaixãoVilmar LedesmaNicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em FamíliaElaine GuerriniNívea Maria – Uma Atriz RealMauro Alencar e Eliana PaceNiza de Castro Tank – Niza, Apesar das OutrasSara LopesPaulo Betti – Na Carreira de um SonhadorTeté RibeiroPaulo José – Memórias SubstantivasTania CarvalhoPedro Paulo Rangel – O Samba e o FadoTania CarvalhoRegina Braga – Talento é um AprendizadoMarta GóesReginaldo Faria – O Solo de Um InquietoWagner de Assis


Renata Fronzi – Chorar de RirWagner de AssisRenato Borghi – Borghi em RevistaÉlcio Nogueira SeixasRenato Consorte – Contestador por ÍndoleEliana PaceRolando Boldrin – Palco BrasilIeda de AbreuRosamaria Murtinho – Simples MagiaTania CarvalhoRubens de Falco – Um Internacional Ator BrasileiroNydia LiciaRuth de Souza – Estrela NegraMaria Ângela de JesusSérgio Hingst – Um Ator de CinemaMáximo BarroSérgio Viotti – O Cavalheiro das ArtesNilu LebertSilvio de Abreu – Um Homem de SorteVilmar LedesmaSônia Guedes – Chá das CincoAdélia NicoleteSonia Maria Dorce – A Queridinha do meu BairroSonia Maria Dorce ArmoniaSonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana?Maria Thereza VargasSuely Franco – A Alegria de RepresentarAlfredo SternheimTatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte OutraSérgio Roveri


Tony Ramos – No Tempo da DelicadezaTania CarvalhoUmberto Magnani – Um Rio de MemóriasAdélia NicoleteVera Holtz – O Gosto da VeraAnalu RibeiroVera Nunes – Raro TalentoEliana PaceWalderez de Barros – Voz e SilênciosRogério MenezesZezé Motta – Muito PrazerRodrigo MuratEspecialAgildo Ribeiro – O Capitão do RisoWagner de AssisBeatriz Segall – Além das AparênciasNilu LebertCarlos Zara – Paixão em Quatro AtosTania CarvalhoCinema da Boca – Dicionário de DiretoresAlfredo SternheimDina Sfat – Retratos de uma GuerreiraAntonio GilbertoEva Todor – O Teatro de Minha VidaMaria Angela de JesusEva Wilma – Arte e VidaEdla van SteenGloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda doMaior Sucesso da Televisão BrasileiraÁlvaro Moya


Lembranças de HollywoodDulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo SternheimMaria Della Costa – Seu Teatro, Sua VidaWarde MarxNey Latorraca – Uma CelebraçãoTania CarvalhoRaul Cortez – Sem Medo de se ExporNydia LiciaRede Manchete – Aconteceu, Virou HistóriaElmo FrancfortSérgio Cardoso – Imagens de Sua ArteNydia LiciaTônia Carrero – Movida pela PaixãoTania CarvalhoTV Tupi – Uma Linda História de AmorVida AlvesVictor Berbara – O Homem das Mil FacesTania CarvalhoWalmor Chagas – Ensaio Aberto para Um HomemIndignadoDjalma Limongi Batista


Formato: 12 x 18 cmTipologia: FrutigerPapel miolo: Offset LD 90 g/m 2Papel capa: Triplex 250 g/m 2Número de páginas: 512Editoração, CTP, impressão e acabamento:<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São Paulo


Coleção Aplauso Série Teatro BrasilCoordenador GeralCoordenador Operacionale Pesquisa IconográficaProjeto GráficoEditor AssistenteEditoraçãoTratamento de ImagensRevisãoRubens Ewald FilhoMarcelo PestanaCarlos CirneFelipe GoulartAline NavarroJosé Carlos da SilvaWilson Ryoji Imoto


© 2009Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca da <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloO teatro de Abílio Pereira de Almeida; introdução de CeiçaCampos – São Paulo : <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de SãoPaulo, 2009.512 p. : il. – (Coleção aplauso. Série teatro Brasil /Coordenador geral Rubens Ewald Filho)ISBN 978-85-7060-756-0 (<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong>)1. Atores e atrizes de teatro – Brasil 2. – Atores e Atrizescinematográficos – Brasil 3. Teatro – Produtores e diretores4. Almeida, Abílio Pereira, 1906-1977 I. Campos, CeiçaÍndices para catálogo sistemático:1. Brasil : Teatro : Biografia 792.098 1CDD 792.098 1Proibida reprodução total ou parcial sem autorizaçãoprévia do autor ou dos editoresLei nº 9.610 de 19/02/1998Foi feito o depósito legalLei nº 10.994, de 14/12/2004Impresso no Brasil / 2009Todos os direitos reservados.<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921 Mooca03103-902 São Paulo SPwww.imprensaoficial.com.br/livrarialivros@imprensaoficial.com.brGrande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109Demais localidades 0800 0123 401


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