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B.J. DuarteCríticas


ApresentaçãoSegundo o catalão Gaudí, não se deve erguermonumentos aos artistas porque eles já o fizeramcom suas obras. De fato, muitos artistas sãoimortalizados e reverenciados diariamente pormeio de suas obras eternas.Mas como reconhecer o trabalho de artistas ge niaisde outrora, que para exercer seu ofício muniramsesimplesmente de suas próprias emoções, de seupróprio corpo? Como manter vivo o nome daquelesque se dedicaram à mais volátil das artes, escrevendo,dirigindo e interpretando obras-primas,que têm a efêmera duração de um ato?Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguemesquecidos, quando os registros de seu trabalhoou se perderam ou são muitas vezes inacessíveisao grande público.A Coleção Aplauso, de iniciativa da <strong>Imprensa</strong><strong>Oficial</strong>, pretende resgatar um pouco da memóriade figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveramparticipação na história recente do País, tantodentro quanto fora de cena.Ao contar suas histórias pessoais, esses artistasdão-nos a conhecer o meio em que vivia todauma classe que representa a consciência críticada sociedade. Suas histórias tratam do contexto


Coleção AplausoO que lembro, tenho.Guimarães RosaA Coleção Aplauso, concebida pela <strong>Imprensa</strong>Ofi cial, visa a resgatar a memória da culturanacio nal, biografando atores, atrizes e diretoresque compõem a cena brasileira nas áreas decine ma, teatro e televisão. Foram selecionadosescri tores com largo currículo em jornalismo culturalpara esse trabalho em que a história cênicae audiovisual brasileira vem sendo re constituídade ma nei ra singular. Em entrevistas e encontrossuces sivos estreita-se o contato en tre biógrafos ebio gra fados. Arquivos de documentos e imagenssão pesquisados, e o universo que se recons tituia partir do cotidiano e do fazer dessas personalidadespermite reconstruir sua trajetória.A decisão sobre o depoimento de cada um na primeirapessoa mantém o aspecto de tradição oraldos relatos, tornando o texto coloquial, como seo biografado falasse diretamente ao leitor .Um aspecto importante da Coleção é que osresul ta dos obtidos ultrapassam simples registrosbio grá ficos, revelando ao leitor facetas quetambém caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafoe bio gra fado se colocaram em reflexõesque se esten de ram sobre a formação intelectuale ideo ló gica do artista, contex tua li zada na históriabrasileira , no tempo e espaço da narrativade cada biogra fado.


Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleçãoe a opção por seu formato de bolso, a facili dadepara ler esses livros em qualquer parte, a clarezade suas fontes, a icono grafia farta e o regis trocronológico de cada biografado.Se algum fator específico conduziu ao sucessoda Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,é o interesse do leitor brasileiro em conhecer opercurso cultural de seu país.À <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> e sua equipe coube reunirum bom time de jornalistas, organizar com eficáciaa pesquisa documental e iconográfica econtar com a disposição e o empe nho dos artistas,diretores, dramaturgos e roteiris tas. Com aColeção em curso, configurada e com identidadeconsolidada, constatamos que os sorti légios queenvolvem palco, cenas, coxias, sets de fil magem,textos, imagens e pala vras conjugados, etodos esses seres especiais – que nesse universotransi tam, transmutam e vivem – também nostomaram e sensibilizaram.É esse material cultural e de reflexão que podeser agora compartilhado com os leitores de todoo Brasil.Hubert AlquéresDiretor-presidente da<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São Paulo


Anos 1970


MemóriaFalar de Benedito Junqueira Duarte lança-mea luz de um passado distante, mas ainda muitopresente em mim. Possuidor de caráter e dignidadeímpar, sempre fiel a si mesmo e aos amigos,era um homem sensível a tudo o que fazia comempenho, de coração pleno de paixão. Versátil,praticou de forma brilhante a fotografia, o documentáriocinematográfico, a crítica de cinema,o ensaio e a escrita memorialista. Deixou vastaprodução artística e intelectual que, embora deindiscutível valor, é pouco conhecida.O cinema foi uma das grandes paixões de Benoit.Além de ter dirigido filmes importantes para amemória brasileira, como A Metrópole de Anchieta,inaugurou o cinema médico-científicoentre nós. Só neste gênero produziu cerca de 600fitas, recebendo 49 prêmios dentro e fora do país.Sempre batalhou por um bom cinema nacional.11Em 1946, fundava, com um grupo de sonhadoreso 2º Clube de Cinema, que realizava exibições edebates sobre grandes filmes. Em 1948, já lutavampela criação de uma cinemateca. Na décadade 1950, ao retornar da França, Paulo Emílio sejuntaria ao grupo e à sua luta. As solicitaçõesque faziam ao Governo eram assinadas por PauloEmílio, Almeida Salles e B.J. Duarte.


Mais ou menos na mesma época, B.J. Duartecomeçava a escrever crítica de cinema no jornalO Estado de S. Paulo; passaria, em seguida, àFolha de S. Paulo, onde colaboraria até 1965.Nos anos 50 também escreveu sobre cinemana revista Anhembi, dirigida pelo irmão, PauloDuarte. Seu método era direto, sincero e semconcessões. Parte do material escrito por ele, noperíodo, encontra-se neste livro.Rute Ginaque DuarteCom Rute Ginaque Duarte, Alberto Cavalcanti e NoêmiaMourão, anos 1970


Será o Benedito?18 maio 1968 - A Gazeta (SP)Benedito Junqueira Duarte – B.J. Duarte para milharesde leitores que guardam viva lembrança dosartigos sobre cinema que escreveu em tanto jornale revista. Benito para os familiares. Ditão para mim.Somos grandes amigos, mas moro longe dele,trabalhamos cada qual num canto, não o vejonunca e para completar, falamos embrulhado notelefone. Tenho a impressão às vezes que passoanos sem encontrá-lo.Sem falar no outro dia – quando sucedeu o quedaqui a pouco vou contar – acho que a última vezque nos encontramos foi numa extraordinária exibiçãode seus filmes que Rudá Andrade organizouna Sociedade Amigos da Cinemateca, a SAC. (Nãoconfundir com a Sociedade Inimigos da Cinemateca,SIC, também ativa e animada. Isso de amigose inimigos vem ao caso, aliás, pois durante anosa fio Benedito Junqueira Duarte foi o amigo maisfiel, tenaz e eficiente que a Cinemateca já teve).Voltemos àquela noite longínqua em que Rudános fez ver no Museu de Arte uma seleção defilmes de Benedito. Foi aí que se cristalizou algode que apenas desconfiava: B.J. Duarte tinha setransformado numa grande figura internacionaldo cinema científico. Lembro que manifesteiminha surpresa feliz num semanário que erachamado o jornal dos padres: o saudoso, bravoe puro Brasil Urgente.13


14Dias atrás – aqui chego ao que venho – relembreitudo isso na sessão solene que a Faculdade deMedicina convocou para entregar a B.J. Duartealguns dos prêmios internacionais que conquistouultimamente. Pude então contemplá-lo com vagar.Talvez estejam apontando em maior númeroos cabelos brancos que tardaram a chegar. Emdeterminado momento pareceu curvar-se: estavavergando sob o peso dos troféus. E se logo apósembaraçou-se um pouco foi porque não tinha mãose braços a medir diante da catadupa de diplomas edocumentos, comprobatórios de vitórias nos maisprestigiosos certames internacionais do cinemacientífico. Quando falou, era o Ditão de sempre:espigado e espinhoso como um cacto, fazendo dotom zangado uma comporta para o sentimento.A primeira parte do seu discurso foi ótima. Indicoude forma impecável o que significa para um paíscomo o Brasil o filme a serviço da ciência e datécnica além de denunciar lucidamente a falta deamparo a esses empreendimentos. A parte final dasua oração consistiu numa definição ideológica enovamente pude então constatar – com o espantode sempre – quanto Benedito é conservador. Ofato em si não me surpreende: todos nós que giramosem torno dos cinqüenta somos por demaisconservadores. O que me espanta é ter levadotempo para descobrir essa faceta do meu amigo.A verdade é que Benedito Junqueira Duarte sempredesafiou minha perspicácia: já não confesseique foi preciso que decorressem anos para eudescobrir que ele era uma notabilidade mundial?Paulo Emilio


profissional cinematográfico ou um fanático declube de cinema podem estar longe da culturacinematográfica quanto alguém que nunca vaiao cinema. Poderia ser mais atual?16Há bom tempo Rute Duarte, viúva de Benedito,e eu, tivemos as primeiras conversas, tendo emvista reunir alguns de seus textos para publicação.O ano passava. A empreitada foi retomada, agorajá com a mão na massa. Em imensos e grossos livros,lá estava boa parte do tesouro, aguardandopor uma seleção. Difícil, mas gostosa tarefa. Osrecortes das críticas foram presos com fita adesiva,e alguns se soltaram com o calor e o tempo. Semfalar da maratona que é mudança de endereço.E houve três! Felizmente, parte se salvou.Pensei em ter análises do mesmo filme feitaspor B.J.Duarte, Moniz Vianna e Almeida Salles.Infelizmente só foi possível em alguns casos. Otitular do Correio da Manhã deve mesmo ter sidoo recordista, em quantidade de críticas. Escreviatodos os dias, no jornal onde trabalhava em tempointegral. Esse fato não aconteceu com seus doiscolegas paulistas. Ainda assim, o número de textosdeixados por Benedito é considerável. É preciso,também, ter em vista que B.J esteve ausente dacrítica diária em jornal, de 1950 a 1956, períodoem que se dedicou ao documentário científico.Esse fato não é levado em conta, por quem costumacomparar, quantitativamente, a produçãodos principais críticos do eixo Rio/São Paulo.


Mas como era Benedito? Reservado diante daqueles que desconhecia, mas conversador, simpáticoe expansivo com os amigos. Ouvia históriascom interesse e as contava com bom humor. Esendo o assunto cinema brasileiro, aí então aconversa ia longe.Gostava de vinhos, tintos e brancos. Dos bons.Rute lembra os Bordeaux. Em suas memórias B.J.fala de tomar cerveja no verão, um copo de velhoBorgonha, cheiro de civilização e de uma taçade champanhe dos vinhedos de França, gosto demulher bonita. De Madri, diz que frequentou,além dos museus, é claro, bodegons e tavernastípicas. Comeu de seus pratos, bebeu de seusvinhos, do Rioja ao Xerez, esse inimitável Xerezespanhol, com o perfume de seu passado...17Não era fã de uísque, bem ao contrário de algunsamigos próximos e colegas de ofício.Recebia para deliciosos jantares, preparados comesmero por Rute e sempre elogiados por ele, umgourmet e gourmand de mão cheia. Escreveuque ensinou à consulesa do Brasil, em Milão, acorreta maneira de se fazer camarões à modagenovesa. Desses não provei.Não abria a porta para convidado, caso estivessesem paletó, nem ficava com a barba por fazer ou seesquecia da colônia preferida. Foi um homem bom,trabalhador, fiel, generoso, humano e civilizado.


O casarão de José Ferreira Guimarães, o Tio Guy, em BoisColombes, perto de Paris


Invento de J.F. Guimarães, anterior ao flash, anos 1920


Recebendo o prêmio Fritz Feigl pelo filme Substituiçãode Valvas Cardíacas por Valvas de Duramater, na 6ªMostra Internacional do Filme Científico, Rio de Janeiro,1974. O diretor da área de Audiovisual da ONU, MarcelMartin, é o primeiro à direita.


papel de auxiliar didático, em todos os níveis. Aesse respeito vale a pena dar-lhe, de novo, a palavra,por sua importância e atualidade: O filmecientífico, didático e de informação é eficientesubsídio para a prática do ensino... um excelenterecurso audiovisual para as técnicas da educação.Não visa, porém, substituir o professor, nemconstituir-se em aula. A contribuição humana doprofessor, sua presença, participação intelectuale cultural na prática do magistério permanecemintactas, insubstituíveis. O filme será uma ilustraçãoda aula, muitas vezes demonstração viva edinâmica de certos fenômenos de apresentaçãoimpossível, não raro sob outra forma que não ado cinema... É claro que a lição vale para as TVscriadas com finalidades educativas. Mas seus responsáveis,a partir de certo momento, fugiramdo auxílio ao ensino, como o diabo da cruz.27Ainda nas Folhas, com o Dr. Rui Bloem, sugeriuque o auditório do jornal servisse a distintasativi da des culturais e educativas, com apresentaçõesmusicais, exposições de pinturas, fotografiase cursos especializados. E sobre cinema, éclaro, por sua importância no campo da comunicação humana.B.J.Duarte não deixava de criticar o filme de umamigo, ou elogiar a obra de um inimigo. Doiscasos: o primeiro com Trigueirinho Neto e seuBahia de Todos os Santos. O outro, com FlávioTambellini, por causa de O Beijo.


Com Almeida Salles e Tavares de Miranda, anos 1960


Além da biblioteca, onde estavam coleções dassempre lembradas revistas A Cena Muda, Cinearte,Sight and Sound, Cahiers du Cinéma e Revuedu Cinéma, entre muitos outros documentos dahistória de nossa cinematografia. Fui testemunha,a tempo de ver como ficaram os espaçosonde trabalhavam Paulo Emílio Salles Gomes,Rudá de Andrade e Caio Scheiby, recebendo,gentilmente, quem os procurasse.30Pois o produtor de Arara Vermelha usou de suacoluna no jornal, edições de 12 e 14 de marçode 1957, para condenar as iniciativas, cujo objetivoera proporcionar novas condições à corretaguarda e preservação de filmes. Entendeu queseria melhor destinar o dinheiro à produçãocinematográfica e não a museu. Referiu-se àCinemateca Brasileira como uma filosofia queardeu e, àqueles que se esforçavam a seu favor,como uma camarilha a pretender tirar recursosdos produtores. As respostas não tardaram. AsComissões de Cinema do Município, e sua coirmãdo Estado de São Paulo reagiram com indignação.B.J. Duarte, bem a seu estilo, disse que ojornalista se comportou como um refinado farsantee procedeu com aquela costumeira má-fé.Quanto à edição de 1959 do prêmio Saci, criadopelo jornal O Estado de S.Paulo, Benedito nãose conformou com as sete estatuetas dadas aRavina. Tanto na Folha como em Anhembi nãoeconomizou adjetivos para condenar a obra de


Com Cavalcanti, Múcio Ferreira, Caio Scheiby, anos 1960


Biáfora, sabidamente a película mais ridícula doano, sendo mesmo um dos malogros artísticosmais lamentáveis de toda a história do cinemabrasileiro em geral.32Flávio Tambellini teve relevante papel, na áreacinematográfica: crítico do Diário de São Pauloe do Diário da Noite, membro das Comissões doEstado e do Município, integrante de júris depremiação, produtor e diretor de filmes. Esteve àfrente do Instituto Nacional de Cinema Educativo,o Ince, e presidiu o Instituto Nacional de Cinema,o INC. Com ele B.J. Duarte também polemizou ea refrega, longa e violenta, em certos momentos.Os motivos iam da diversidade de gostos por fitase seus autores, a questões bem mais importantes,como às relativas aos assuntos submetidos às citadasComissões, onde ambos tinham assento. Para obem de todos houve a reconciliação. Conversaram,se entenderam, com Benedito a elogiar O Beijo,ainda que com certas restrições e Tambellini, aconvidar o antigo adversário, a colaborar no Ince.Deixaram de lado as discussões de ordem pessoal,as preferências e idiossincrasias. Uniram esforços,em benefício do cinema que tanto amavam.A respeito da representação brasileira ao Festivalde Santa Margheritta Ligure, de 1960, houvedivergência com o crítico carioca Ely Azeredo.Depois de algum tempo e vários escritos, seucolega paulista reconheceu o engano da posiçãoque adotara e o caso foi encerrado.


O assunto agora é a Revisão Crítica do CinemaBrasileiro, considerado por Benedito como maisum panfleto polêmico, do que uma revisão crítica...porque seu livro se parece com ele, na sualinguagem pouco cuidada, seu estilo irreverente,às vezes desabrido e extravagante, no seu modode ver e julgar gentes e coisas do cinema brasileiro,principalmente as coisas e gentes do cinemapaulista. A esse respeito, B.J. diz que, na RevisãoCrítica, homens como Cavalheiro Lima, JacquesDeheinzelin, Chick Fowle, Lima Barreto, FlávioTambellini e outros, empresas como a Vera Cruzconstituem objeto da ira possessiva de GlauberRocha, que não perde uma única oportunidadepara diminuí-los, ou pejorativamente a todos sereferir, às vezes até a insultar vulgarmente, comoem muitas páginas acontece com Rubem Biáfora.33A questão relacionada à descoberta de HumbertoMauro reaparece na reedição ampliada dolivro de Glauber, que reproduz artigos de BeneditoJ. Duarte, publicados pela Folha de S.Paulo.Ao final de um deles, edição de 1/12/63, diz ocrítico: Pois não é que o Cinema Novo foi quemdescobriu Humberto Mauro?!... A propósitodessa mentira, urdida na Revisão Crítica, direi, nopróximo domingo, de como o velho Mauro, meuamigo, muito querido, veio a ser descoberto emSão Paulo, lá pelos idos de 1949. Segue-se umaNota do Editor, nos seguintes termos: B.J. Duartenão fará esta revelação por motivos vários, que


agora não posso revelar. A sua leitura sobrea recuperação de Mauro somente vem à tonaquatro anos depois em Roteiro de HumbertoMauro, no Estado de S.Paulo de 2 de setembrode 1967, Suplemento Literário, p. 4. Neste artigo,B.J. Duarte afirma que o texto fora escritoem 1963 para um livro que seria publicado pelaCivilização Brasileira, o que não ocorreu.Infelizmente, as referidas análises de Beneditoderam margem à interpretação maldosa, comoparece indicar a referida Nota do Editor. Provavelmentenão houve tempo suficiente para apesquisa. Caso contrário seu responsável teriaevitado a triste insinuação.34Ao se referir aos idos de 1949, B.J. deve ter consideradoo ano em que se consolidou a sua amizadecom Humberto Mauro, quando Caio Scheibyo descobriu, no Ince, como consta do capítuloO Freud de Cascadura, de suas memórias. Poisnessa parte da obra está toda a história, desdeo livro que não saiu, até o episódio envolvendoo autor de Ganga Bruta.O conhecimento da publicação relativa à PrimeiraMostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro(1952), teria sido útil ao editor. Igualmenteinstrutivo é o Catálogo do Festival, realizado noâmbito das comemorações do IV Centenário daCidade de São Paulo: Retrospectiva do CinemaBrasileiro (1954).


Capa de um volume de Memórias, 1982


Catálogo da 1ª Mostra de Cinema Brasileiro, 1952


Retrospectiva 1954: textos de B.J. Duarte


Filme Cultura, prestigiada revista criada porFlávio Tambellini, traz em seu número 3, dejaneiro/fevereiro de 1967, no ensaio de PauloPerdigão, a seguinte nota: O cinema de HumbertoMauro começou a ser objeto de revisãocrítica por ocasião da I Mostra Retrospectiva doCinema Brasileiro, promovida pelo Museu deArte Moderna de São Paulo em setembro de1952, quando foram exibidos alguns filmes dodiretor. Mais tarde, em 1961, o Festival de Cataguasesassinalou o conhecimento da obra pelacrítica jovem, que passou a reconhecê-la comoprecursora do novo cinema independente. Serápreciso juntar mais provas?38Já que não gostava do Cinema Novo, o premiadodocumentarista aproveitou para abater Garrincha,Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade,aclamado pelo autor de Barravento como: umpoema épico, o maior de todos os outros até agoraescritos na literatura brasileira. Para B.J. Duarte, apelícula não passa de um amontoado de imagenssoltas, pessimamente aproveitadas, pessimamentemontadas, tudo sem contar o texto do filme,dema gógico e pueril, claudicante e ridículo. Revio filme, na 31ª Mostra Internacional de Cinemade São Paulo. Ainda bem que Joaquim Pedro,anos depois, realizou, talvez, a sua maior obra: osimples, conciso e poético O Padre e a Moça.Chegou o momento de conhecer o que ilustresfiguras falaram de B.J. Duarte. De Paulo Emílio já


ficou, no início deste volume, um texto enxuto,de fina e sutil ironia.Na entrevista dada a Maurício Stycer, AlmeidaSalles indagado sobre os críticos de sua preferênciacita, em primeiro lugar, Benedito Duarte,por sua idoneidade crítica. Moniz Vianna, PauloEmílio e Rubem Biáfora vêm em seguida.Múcio Porphirio Ferreira foi amigo de Beneditoe jornalista de primeira ordem. Fundaram, aolado de outros, o Segundo Clube de Cinema deS. Paulo, depois Filmoteca do Museu de ArteModerna, e daí, Cinemateca Brasileira. Dessegrupo não fez parte Paulo Emílio Salles Gomes,que estava na França, na época. No prefácio parao primeiro volume da trilogia memorialista, deB.J., Múcio Ferreira lembra fatos da carreira efaz justiça ao companheiro. Diz da versatilidadede sua arte, de seu humanismo e sensibilidade.Mas lembra também a mordacidade e o realismo,presentes em vários de seus escritos.39Múcio resume bem a personalidade de Benedito.Mas há uma faceta de seu humanismo queprecisa ser explicitada: a generosidade. A esserespeito lembro alguns episódios.Jurandyr Pimentel, que atuara em Bahia de Todosos Santos, de Trigueirinho Neto, suicidou-se, jogando-sede um viaduto, na capital paulista. Beneditotomou todas as providências legais e buro cráticas


que o caso exigia. Outra passagem triste foi emrelação a Caio Scheiby que, doente e sem recursos,morreu só, em modesto apartamento da Av. SãoJoão, também na cidade grande. Os dois corposforam sepultados no jazigo da família de B.J., nocemitério São Paulo, no bairro de Pinheiros. Ainformação sobre o local do sepultamento devo aRute Ginaque Duarte. Essas ações foram motivadaspor caridade cristã, sem alarde ou demagogia.Ainda houve vários gestos de generosidade. Entreeles a doação dos honorários a que teve direitopelo documentário Transplante Cardíaco Humano.Com o Prof. Zerbini e Estanislau Szankovski, na realizaçãodo premiado curta Transplante Cardíaco Humano, 1966


Em meados dos anos 50, B.J. Duarte colaborou,desinteressadamente, com o Grupo de CulturaCinematográfica que, sob a liderança de Hélio Furtadodo Amaral e de Álvaro Malheiros, promoveucursos e palestras em colégios católicos, na capital eno interior de São Paulo. O objetivo era iniciar umconhecimento sobre o cinema, o que conduziria amelhor e mais ampla compreensão dos filmes. Oauxílio de Benedito incluiu a publicação dos trabalhosde final de curso, na revista Anhembi, de duasaplicadas alunas: Heloisa Buarque de Holanda eMaria Teresa de Araújo e Silva. A iniciativa, igualmente,teve o reconhecimento dos dirigentes da41Em palestra no colégio Des Oiseaux, anos 1950


Cinemateca Brasileira. A propósito vale consultar oartigo de Paulo Emílio, Catolicismo e cinema, queintegra o volume I da publicação Crítica de Cinemano Suplemento Literário.Na apresentação, identificada como Trailer, deUm Filme por Dia, Crítica de choque, Ruy Castrotece merecidos elogios a Antonio Moniz Vianna.Revela curiosos e importantes episódios relacionadosao crítico, seus autores preferidos e oreconhecimento prévio de fitas que se tornariamclássicas. Tudo isso com o honroso privilégio deter o apresentado como seu interlocutor.42Conta que o ex-secretário de redação do Correioda Manhã estimulou o jornalista Carlos HeitorCony a escrever sobre cinema. Uma pena não ter oautor de Quase Memória, seguido, totalmente, asugestão. Digo assim, porque, volta e meia, Cony,ainda bem, fale ou escreva sobre cinema, coma sua invejável cultura geral e cinematográfica.Para Ruy Castro, praticamente, só a sua turma doRio de Janeiro, a chamada Geração Paissandu, gostava,lia e recortava Moniz Vianna. Tivesse vindomais vezes a São Paulo e a outras praças, encontrariaadmiradores do crítico, cuidando, até hoje,de suas colunas. Entre elas a que elogia o citadoO Padre e a Moça, ausente de Um Filme por Dia.Lamentável que o autor do excelente O AnjoPornográfico, sobre Nelson Rodrigues, cometa a


injustiça de não incluir B.J. Duarte entre os críticoslembrados em seu texto. Pode não gostar dapessoa, do estilo, ou de seus premiados documentários.Mas esquecê-lo, aí já é demais!Outro caso de amnésia ideológica encontra-se noverbete Documentário, constante do volumosoDicionário Sesc – A Linguagem da Cultura, aotratar de nosso país fala de figuras pioneiras,como o português Silvino Santos. Também se fazjustiça a importantes documentaristas brasileirose suas relevantes obras sobre a nossa realidade.No entanto, nem uma linha sobre Benedito J.Duarte, Marcos Margulies, Rodolfo Nanni, TrigueirinhoNeto, Alfredo Sternheim, Ivo Brancoe outros. O verbetista não é identificado. Noentanto, como a nota Cinema Brasileiro no Finaldo Século XX, da mesma publicação, estejaassinada por Ismail Xavier e Leandro Saraiva,permite supor que a dupla também tenha seresponsabilizado pelo texto, parcial a mais nãopoder, relativo ao documentário.43Danilo Santos de Miranda, com seu status e nopapel de Diretor do Departamento Regional doSesc de São Paulo, assina o texto de apresentaçãodo Dicionário, com sabedoria e bom senso.O que vai adiante, quanto a enganos e injustiças,só pode ser atribuído à imaturidade e à ideologia,precocemente apropriada pelo autor, de um guru


mais velho. Quem sabe? Caso contrário, seria máfé,hipótese que afasto, em benefício da dúvida.Ocorre que o então garoto Arthur Autran escreveuuma tese, depois transformada em livro,enaltecendo o crítico e cineasta Alex Viany, aliás,Almiro Viviani Fialho. Até aí tudo bem. Viva odireito de expressão. Tanto dele, quanto o meu.Acontece que, para atingir seu propósito, preferiudiminuir e ironizar outros críticos. Veja quem:Almeida Salles, Benedito J. Duarte e MonizVianna, não-alinhados, ideologicamente, com ocolega homenageado, nem com o jovem mestre.Apropria-se da curiosa classificação de FábioLucas, para atestar que os três ilustres estariamentre os esteticistas, isto é, que consideram ocinema como realidade artística regida por leisque lhe são singularmente peculiares. Para estes,deve-se extirpar qualquer fio que ligue a artedo cinema a concepções sociopolíticas... Já oshistóricos seriam Salvyano Cavalcanti de Paiva,Carlos Ortiz e Walter da Silveira. Para esses, oque interessa no filme exibido é a mensagemque traz implícita ou explícita, contentando-seaqui o crítico com isolar os elementos discursivosque, alimentando a opinião pública, possam ounão influir nos destinos humanos.O autor atrapalhou-se todo, ao dizer que B.J.Duar te não teve carreira tão brilhante, se comparadocom críticos de sua época, sendo a sua


principal tribuna a revista Anhembi. A primeiraafirmação é um juízo de valor, sabe-se lá de ondesaiu. Sim, porque diante da diferença de idade,alguém deve ter, também aqui, lhe assopradonos ouvidos. A revista Anhembi criada por PauloDuar te era mensal e seu irmão teve mais espaçoe maior presença nos jornais diários, especialmentenas Folhas.Aqueles que insistiram em ignorar BeneditoJunqueira Duarte, ou dele falaram bobagens,talvez tenham se arrependido pela injustiça quecometeram, não raro com explícita desonestidadeintelectual.Luiz Antonio Souza Lima de MacedoOrganizador - Agosto 200845


O pai, Sr. Hermínio


A mãe, D. Jovina, com os filhos Benedito e Cornélio


Inauguração da Biblioteca Sérgio Milliet (sobrinho de B.J.):Lourdes Duarte Milliet, Prof. Paulo Nathanael Pereira deSouza (secretário de Educação e Cultura do município) eRute Duarte, na Prefeitura de São Paulo, anos 1970


Filmando Infortunística Rodoviária, 1972/73


AgradecimentosUma palavra a Carlos Augusto Calil, secretáriode Cultura do Município de São Paulo, pelointeresse inicial à idéia de reunir as críticas deB.J. Duar te. A Rubens Ewald Filho, coordenadorgeral da Coleção Aplauso, por sua generosaatenção. Imprescindível o papel de Rute GinaqueDuarte, ao tornar possível o acesso ao arquivode seu marido. A Lygia Fagundes Telles e LúciaTelles devo a honrosa cessão do artigo de PauloEmílio, Será o Benedito? Não vou me esquecerdo estímulo que recebi de John Herbert, RodolfoNanni, Alfredo Sternheim, Geraldo Moraes eInácio Araújo, quando lhes dei notícia sobre oprojeto. À Cinesdistri, produção e distribuiçãoaudiovisual, por seu diretor Anibal MassainiNeto, devo a gentileza da cessão da foto de oPagador de Promessas. Por fim, mas não menosimportante, sou grato a Aurora Duarte, por seutrabalho em localizar os textos de B.J. sobre AMorte Comanda o Cangaço e a Fernando HenriqueSantos de Macedo por sua competenteajuda na área da informática.51Luiz Antonio Souza Lima de Macedo


Críticas (organizadas por ordem alfabética)Acorrentados (The Defiant Ones)de Stanley Kramer, EUA, 195820 fevereiro 1959Já era tempo de Stanley Kramer retornar à casaantiga, isto é, às películas em que a tese e a mensagemsão o que mais conta. Orgulho e Paixãodeixou uma lamentável impressão pelo vazio deseu conteúdo, a grandiloqüência de sua linguageme o esplendor inútil de sua forma. Mas, agoravolta Stanley Kramer à velha temática e isto é oprincipal. Há por detrás desse produtor corajosoum passado respeitável que não deve ser esquecidoe no qual, em plena maré macartista, houveaquela tentativa intrépida de desmascarar os métodosintimidantes, de coação e corrupção, queo senador McCarthy punha em prática, à sombrade uma bandeira que se afirmava ser de defesa ede preservação das chamadas “instituições nacionais”.Stanley Kramer não se intimidou e por poucoconsegue firmar acusação mais ousada, numafita, que, a princípio, se intitulava “The Library” eque acabou sendo realizada por Daniel Taradash,algum tempo depois da morte de McCarthy, sobo título de “The Storm Center”, aqui exibida, emmaio de 1957, traduzida para “No Despertar daTormenta ”. Agora, aborda Stanley Kramer umtema não menos ousado, difícil e perigoso nocinema norte-americano – da segregação e pre-53


54conceito de raças no território dessa imensa nação.E de relance afronta também esse produtor, nasua censura e no seu libelo, a questão sempre palpitantedo sistema penitenciário norte-americano,falto de humanidade e cheio de lacunas, comoé sabido. A prática medieval de se acorrentarhomens, aos pares, de se unir principalmente umbranco e um negro, num país de população sensibilíssimaao preconceito de raças, da mais altaclasse social à sua camada mais baixa. Também em“The Defiant Ones” de modo severo e implacável,não poupando sequer o ódio com que uma autoridadecivil ou militar considera o delito e o delinqüente.Toda a sua fita é assim um requisitórioinflexível contra um estado de coisas institucionaise um estado de ânimo coletivo. Entretanto, comoem quase toda peça de tese, como em quase todapelícula de mensagem, “Acorrentados” peca, porvezes, pelo excesso de demonstração. Há nessafita cenas em que um longo diálogo, cheio defrases feitas e de figuras de retórica estica a açãoe a torna gongórica, não raro monótona. Isso severifica notadamente depois que os dois homensacorrentados, safando-se ilesos da viatura que ostransferia de uma prisão para outra, empreendemaquela fuga desesperada, através de campos encharcadose de pântanos intransponíveis, em buscade uma liberdade, ainda que transitória. Mas,toda essa seqüên cia inicial, bem como algumasoutras inseridas depois, se apresentam tocadasde uma rude e patética beleza, muito bem pon-


tuada por uma notação fotográfica do melhor emais funcional efeito. A montagem e a edição dapelí cula, por sua vez, se aproveitam disso e fazema transição do tempo, de uma ação para outra,através da iluminação pura e da sonoplastia bemaplicada, quando o corte direto não é utilizadoa propósito. O discurso cinematográfico se apóiaassim num ritmo e composição fotográfica capazesde dispensar os longos diálogos e por issotornando-os inúteis e deslocados no corpo dessapeça excelente. É lamentável que nem sempre osfreqüentadores das salas escuras estejam à alturade um espetáculo de tal nível. A exibição de “Acorrentados”se prejudicaria muitíssimo, ante a tristedemonstração de incultura, por obra e graça docomportamento grosseiro desse tipo indesejávelque infesta nossas salas de espetáculo.55Acossado (A Bout de Souffle)de Jean Luc Godard, França, 1960De toda a já vasta experiência empreendidapelos jovens na Nouvelle Vague, especialmentepela equipe atrevida do Cahiers du Cinéma, esta“A Bout de Souflle” me parece constituir umadas tentativas mais curiosas e da maior importânciano campo do cinema moderno. Trata-se, emverdade, de uma peça de vanguarda, a elevar-setalvez ao mesmo nível atingido por “Hiroshima,mon Amour”, guardadas as devidas proporções


56de gênero e de estilo, está claro, tanto “Hiroshima”quanto “A Bout de Souffle” se apresentandocom a mesma força de penetração, ambasa surdir de uma intensa e inquieta celebração,do inquieto e intenso terra a terra, em que hojevive aquela geração nascida sob a sombra monstruosados cogumelos atômicos, quer se tenhameles formado sobre um deserto do Nevada, quertenham sido provocados por cima das ruínascalcinadas de Nagasaki e de Hiroshima.Jean-Luc Godard, intelectual de seu tempo, panfletário,crítico e realizador de cinema a um tempo,com esta sua estranha e pertubadora “A Bout deSouffle”, remaneja um tema já abordado por Gidee por Camus (o autor de L´Etranger); a imotivaçãode gestos e de atos, ou a força do ato gratuito, nummundo em que o homem, pobre mortal, ou se vêa braços, com uma natureza, rude e imperecível,regendo o comportamento humano, numa épocainteira, ou apenas numa fração de tempo.“A Bout de Souffle” é assim inteiramente composto(creio que nesta película, o termo “composto”deve substituir o vocábulo “realizado”) por fragmentos(ou toda uma série) de atos gratuitos ou degestos imotivados. É um gesto gratuito que moveMichel a suspender a saia de uma desconhecidaem plena rua; é um ato gratuito que leva Michel aassassinar um guarda rodoviário, em sua viagem deMarselha a Paris; é um ato imotivado que impelePatrícia a denunciar Michel ao inspetor de Polícia;é um gesto motivado que leva este a matar Michel,


quando facilmente poderia prendê-lo ali na rua,pois, nesse momento, Michel já era um ser entreguee realmente “a bout de souffle”.E tão cedo, certamente, não se verá de novo umfilme em que a montagem, chocante por sua gratuidade,tão bem acompanhe, tão bem faça integrar,em sua dinâmica, os diálogos, o espí rito, ocomportamento das personagens (não raro coma sua imagem fora de campo), uma dialéticaem geral pontuada por movimentos de câmaraimpossíveis, por travellings circulares ou retos,ora completos em seu trajeto, ora bruscamenteinterrompidos e, também aqui, nem sempremotivados. E os atores seguem perfeitamenteessa linha sinuosa da criação cinematográfica deGodard, que sabe tirar deles um resultado que,afinal, está longe de ser gratuito nesse mosaicode motivações. E isso é o que vale em cinema,ou em qualquer outra obra humana.57A Aldeia dos Amaldiçoados(The Village of the Damned)de Wolf Rilla, Inglaterra, 196108 março 1961Há poucos dias, eu afirmava aqui, a propósito de“O Solar Maldito”, a minha aversão aos filmeschamados de “horror”, ou de “ficção científica”,dada a sua absoluta inverossimilhança, a ausênciatotal em seus argumentos de um mínimo aceitá-


58vel de realismo e de aproximação humana. Creio,repito, que para esses gêneros cinematográficosatingirem certo interesse dramático, é precisoque haja também em suas narrativas esse mínimoexigível, dentro de toda a irrealidade com quesão concebidos os “horrores” do cinema, nesseponto bem distante dos “horrores” do teatro,pois é sabido que aqueles espetáculos de “Grand-Guignol”, vistos em salas especializadas de Paris,oferecem no palco, o que nem sempre o cinemaapresenta na tela: uma intriga de tal forma interpretadae cenarizada, que seus espectadoressuam sangue em suas poltronas, tal a fidelidadedo real vista e sentida à frente deles.Pois hoje tenho que abrir exceção, para uma daspelículas mais interessantes do gênero “sciencefiction”, não apenas do ponto de vista de seu enredo,mas também no que se refere à sua construçãocinematográfica. Há, primeiramente, um espíritode sátira visível, espicaçando aquela elite arianacom que Hitler sonhava dominar a Europa, o mundoa seguir. Lembro-me bem ainda (e é precisolembrar-se sempre dos crimes horrorosos cometidoscontra a humanidade por aquele demagogoparanóico) das chamadas “juventudes hitleristas”,que hoje seriam os dirigentes do universo, jovenslouros, de olhos claros e frios, educados de modoespartano, destinados a uma ação futura, implacávele desumanizada. Houve crianças, ao tempo deHitler, que denunciavam serenamente os própriospais, os próprios irmãos ao martírio inquisitorial


da Gestapo, ou aos fuzilamentos dos “SS” sinistros,cometiam as maiores barbaridades sem queuma fibra sequer de seus músculos se retesasse,tangida por algum sentimento perdido, ou peloresquício de alguma emoção transviada em seuscorações. Em “A Aldeia dos Amaldiçoados”, alembrança dos pequenos monstros dessas elitesinfantis, de fato amaldiçoados, está nitidamenteevocada, no grupo louro das doze crianças, geradasnuma manhã de letargia, por seres invisíveise sumamente poderosos. Essa seqüência estáadmiravelmente descrita no início da película,antes dos letreiros, pontuada apenas por efeitossonoros, ruí dos campestres, sem qualquer músicademagógica a corromper o instante maravilhosode cinema puro. Tudo nesse momento é sugestão,é síntese, é raciocínio e sensibilidade, é linguagemcinematográfica de ótima origem.Mas, a seguir a narrativa terrível continua sob omesmo ritmo dramático, sob a mesma dinâmicaemotiva, a marcar-se ao longo dos episódios, semqualquer ruptura da linha expectante e em verdadeaterrorizadora. Não há imagem mais pungentedo que a daqueles meninos de olhar cruel, cheiode um estranho fascínio, meninos sem o encantoe a espontaneidade da infância, autômatos arianosa servir de instrumento a seres misteriosose, no entanto, sempre presentes em cada situação,em cada cena do filme. É essa atmosfera desorti légio, de algo cientificamente possível, emboracientificamente inexplicável, que confere à59


“A Aldeia dos Amaldiçoados” aquela profundidadehumana capaz de transformar um pensamento,o exercício intelectual, a invenção literária efictícia, numa profecia espantosa, plenamenterealizável alguns anos, ou alguns séculos depois.Os Amantes (Les Amants)de Louis Malle, França, 195811 novembro 195960Por fim, aí está na sala do “Monaco” esta “LesAmants”, em sua versão integral, sem aqueles cortesque certo moralista de arribação tudo faria, no Rio,para obter. Já, agora, a questão debatida, com oseu desfecho judiciário, pouco mais interessa. “LesAmants” e a lição que encerra exibem-se livrementeem São Paulo, como o foram no Rio e o serão emtodo o Brasil e isso é o principal. Compreende-se,aliás, a campanha sofrida, a ter como patrono certocronista social, de jornal e revistas cariocas. O “mundo”que em “Les Amants” se condena é o mundoda frivolidade, do ócio, até da corrupção no seio dasfamílias. É isso que Louis Malle satiriza e combateem sua fita, com um senso mordaz, documentale poético a um tempo, estilo muito próprio paraprovocar urticárias na pele de quem não suportase fale de cordas em casa de enforcado.Louis Malle, com “Les Amants” confirma os propósitosdelineados esplendidamente em “Ascenseurpour l´echafaud”, sua película de estréia. Há, nes-


se jovem autor da “nouvelle vague”, um ânimoquase panfletário, certo ímpeto de apresentar asquestões com uma crueza sem preconceitos, capazde, na exposição, dispensar a discussão, tão clarose convincentes se propõem os seus dados. Já naprimeira seqüência de “Les Amants” esses dadosse jogam: “Raoul”, “Maggy”, “Jeanne” definem omeio frívolo em que vivem. As seqüências seguintes,até o aparecimento de “Bernard”, completamessa visão de um mundo sem significado humano,só a adquirir importância depois que, casualmente,no caminho de “Jeanne”, na estrada que ligaa província à capital, que une seu lar a “garçonnière”de “Raoul”, surge aquele que preen cheriao vácuo e a inutilidade de uma existência semsentido. Os amantes vivem então sua noite deamor, uma noite quase irreal, transcorrida entrea luz de estrelas e a penumbra de alcovas, emimagens foscas, como se iluminadas por dentro,pela opalescência úmida das madrugadas. E a seqüênciafinal é a fuga para um outro dia, lavadoe purificado, mas ainda cheio de remorsos e incertezas.Jeanne Moreau e Jean-Marc Bory vivem asemoções desse casal de amantes deslumbrados.Cada seqüência, cada cena dessa fita é a lâmina emque se concentra um microclima social, ampliadapelo microscópio da comédia humana. “Raoul”e “Maggy”, “Jeanne” e seu marido e, por fim,“Bernard” animam esse microcosmo da sociedademoderna, cujas questões morais não são de hoje,nem sequer de ontem, mas de todos os tempos e61


de todas as sociedades. Por ser atual e universal,sua visão machuca e magoa aqueles que retrata,sem retoques, nem preconceitos. “Les Amants”,por isso, há de ser uma película maldita que muitosabominam. Outros, porém, hão de usufruí-lacomo uma grande obra de arte, como uma liçãode moral até, surdida de um mundo complexo,mas, apesar de tudo, digno ainda de ser vivido.Ascensor para o Cadafalso(Ascenseur pour l’echafaud)de Louis Malle, França, 19586226 novembro 1959Por ordem cronológica de realização, esta “Ascensorpara o Cadafalso” deveria ter sido apresentadaantes de “Les Amants”, já que a fita agora estreada,constituiu-se na primeira peça que Louis Malledirigiu, com plena responsabilidade de sua criação.Antes de “Ascensor para o Cadafalso”, Louis Mallefora assistente de Robert Bresson, em “Um Condenadoà Morte Escapou”, e do comandante Cousteau,naquela sua fita admirável “Le Monde duSilence”. Até então, Louis Malle só fizera crítica eescrevera ensaios no “Cahiers du Cinéma”, de cujaredação saíram também outros elementos pertencentesà chamada “nouvelle vague”, como ClaudeChabrol e François Truffaut. Aliás, ao ser estreado“Ascensor para o Cadafalso” em Paris, “Cahiers du


Cinéma” não pouparia seu realizador, criticandoimparcialmente a fita através de um comentárioassinado por Eric Rohmer, em sua edição de fevereirode 1958. Em certo sentido, ainda que estejade acordo com Eric Rohmer, para quem os pecadosde Louis Malle, nesta sua primeira fita, não sãomortais, mas apenas veniais, sou mais entusiastapor essa obra do que aquele crítico do “Cahiers”.Ora, por ser exatamente a obra de um estreanteé que “Ascensor para o Cadafalso” se apresentasob forma narrativa incisiva e linguagem cinematográficaatrevida. Louis Malle, como todos os seuscompanheiros do movimento da “nouvelle vague”(nova onda), não se perde em circunlóquios formais,nem nas delongas das pesquisas estéticas,ao desenvolver seu tema. Vai direto ao assunto,apresenta desde logo os aspectos essenciais dahistória, põe à frente as personagens que nelase envolvem e faz fluir a narrativa sem perder-seem desvãos. Quando uma das personagens se vêpresa num elevador, à noite, entre dois andares,percebe-se, desde logo, a condenação irremissíveldesse prisioneiro do acaso. Tudo quanto possa daípor diante acontecer não salvará “Julien”, mesmoque provada fique sua inocência no crime que nãocometeu: o da morte dos dois turistas alemães.Mas, nem com essa certeza, deixa o espectador departicipar das angústias daquele homem fechadonuma caixa de ferro, como um animal, numa armadilha, à noite, no edifício deserto, a ansiar e atemer a vinda do dia, que tanto poderia livrá-lo63


64dali, quanto denunciá-lo irremediavelmente. Emverdade, tal como seu título indica, toda a históriase conta entre dois andares e nos quatro ângulosdo elevador fatídico. Ao entrar nele, “Julien” jáera um homem a subir para o cadafalso. Nadamais pretendeu Louis Malle, senão retirar dessenúcleo dramático os elementos circunstanciais,expulsos pela força centrífuga de sua intriga policial.Do centro do elevador para a auto-estradaem que “Louis” e “Veronique”, no automóvel de“Julien”, rumariam para a aventura e o homicídio.Do centro do elevador para a perambulação nasruas e nos bares, onde “Florence” passaria a noiteà procura de seu amante. Do centro do elevador,finalmente, para os interrogatórios policiais e daípara o desfecho penal, que a fita apenas sugere,em seu título e em suas cenas últimas. Três direçõesopostas, originárias de um mesmo centro: o ascensorpara o cadafalso...Haverá, no cinema policial,um tratamento dramático tão esquemático, tãosingular e tão rico de sugestão?O Assalto ao Trem Pagadorde Roberto Farias, Brasil, 196207 setembro 1962Quando Roberto Farias estreou no cinema com oseu primeiro filme dramático, embora fizesse eumuitas restrições a essa obra de iniciação – “Cidade


Ameaçada” – considerei seu esforço como capazde constituir-se numa grande esperança para ocinema brasileiro, chegando mesmo a atribuirmuitas das falhas de sua fita à intromissão de seuprodutor na realização de “Cidade Ameaçada”, oque me valeu uma tremenda descompostura porparte daquele cavalheiro, permanecendo caladonessa oportunidade Roberto Farias, com seu silêncioa concordar com minhas afirmativas, cujos fundamentos,aliás, eu calcara em solo firme, atravésde informações seguras. Lamentei principalmenteo fato de não haver “Cidade Ameaçada” restringidosua circulação ao mercado interno, pois afita do sr. Orsini, seu produtor, conseguira vararfronteiras, indo a Cannes representar o Brasil,onde acabou sendo recebida melancolicamente,como era de prever-se.Agora, o caso se repete por dentro e por fora,de nada valendo as lições do passado. Nem RobertoFarias deixou de incidir nos mesmos errosde rea lização cometidos em sua primeira fita,nem o Itamaraty deixou de dar o seu beneplácitoa “O Assalto ao Trem Pagador”, escolhendo-opara a representação do Brasil em Veneza. Ora,o comparecimento do Brasil a festivais internacionaissó deve perfazer-se com muito critério,só realmente quando haja obras dignas de taldistinção. Do contrário, apenas dissabores eprejuízos poderão causar em Cannes, Venezaou Berlim obras como “Areião”, “Tumulto dePaixões” ou “Os Cafajestes”, ao contrário de65


66“O Cangaceiro”, “Sinhá Moça” e ultimamente“O Pagador de Promessas”, detentora do laurelmáximo de Cannes-1962, de fato películas devalor universal e perfeitamente integradas ao“nacional” das tradições e dos costumes genuinamentebrasileiros.E o que escrevi a respeito de Roberto Fariasquanto à sua ação em “Cidade Ameaçada” éválido para esta “O Assalto ao Trem Pagador”,sem tirar nem pôr. Película insegura, de estreanteainda, por vezes realizada com ótimamovimentação, por vezes esbarrando aqui eali em vacilações e incongruências de roteiro,notando-se o constrangimento de seu criadorem muitas passagens de sua fita, irritantes porseu primarismo e por sua demagogia barata. Einfelizmente agora não é mais possível afirmarseseja Roberto Farias uma promessa e que, comum pouco mais de traquejo, possa vir ele a serum diretor muito hábil e imaginoso do cinemabrasileiro. A experiência de “Cidade Amea çada”deverá ter-lhe servido – e muito para a rea lizaçãode “O Assalto ao Trem Pagador”. Mas, pelo visto,Roberto Faria estagnou sua inventiva e limitouseu conhecimento de cinema à cartilha de “CidadeAmeaçada”, contentando-se com isso. Suaúltima obra, afora um ou outro momento emque sua direção se mostra menos canhestra esua imaginação menos vacilante, no mais apenasdemonstra o exagero na procura do efeito fácile o afã de expressar-se pelo discurso grandilo-


qüente. Uma prova disso está bem afirmada napersonagem interpretada por Grande Otelo eno modo de visualizar a favela e de incluí-la nacenografia da fita. Tal inclusão se faz sempre deforma ostensiva, deliberadamente a descrevero morro e a existência de seus moradores nosseus mínimos pormenores, numa ênfase às vezesa perturbar até a narrativa cinematográfica.Quando, a certa altura do filme, Grande Oteloaponta para o enterro da criança, descendo aencosta da favela, declamando seu texto comose fora candidato a vereador e estivesse numcomício em época eleitoral, sua tirada, ao invésde comover o espectador e integrar-se na faladramática da peça, ao contrário, perturba a imagempungente e tira-lhe qualquer expectativaemocional. E isso porque a fala da personagemnão disfarça o efeito fácil da cena, nem mascaraa demagogia do texto, “decorado” e não“sentido”. E o que vale em cinema é sentir arealidade e fazer com que o público participede tal emoção. Sem essa comunicabilidade, ficao cinema restrito apenas à área da tela em queé projetado, sem a profundidade da dimensãohumana que lhe é imprescindível e que lhe dá oespírito da verdadeira obra de arte. “O Assaltoao Trem Pagador” está bem longe disso, comseus elementos dramáticos e o talento de seusatores dispersos aqui e ali, como Rute de Souza,por exemplo, perdida numa seqüência solta, semnenhuma função na narrativa.67


A Aventura(L’ Aventura)de Michelangelo Antonioni, Itália, 196005 outubro 196168Um crítico francês, Jacques Doniol-Valcroze, do“Cahiers du Cinéma,” colocou esta “A Aventura”no mesmo plano de “Hiroshima, Mon Amour”a seu ver inaugurando ambas as películas o queValcroze denomina de Le nouveau cinéma. Aliás,quase todo o grupo de “Cahiers du Cinéma”,classificou “A Aventura” como um filme excepcional,o que em verdade, nada quer dizer, ouquer dizer muito, pois esse que grupo da revistafrancesa nem sempre se caracteriza pela uniformidadede seus julgamentos, ora valoriza aomáximo o medío cre, ora exalta o que realmentedeve ser louvado sem restrições. Por outro lado,foi no “Cahiers du Cinéma” que se formou anouvelle vague, um movimento que registraexatamente essa linha ondulante, ora capaz decontornar uma obra-prima legítima, ora a traçara peça dúbia, senão mesmo sem nenhum sentidoestético, ou social mais importante.Quanto a mim, não me entusiasmou muito essa“A Aventura”, no mesmo grau com que meenterneceu “Hiroshima, Mon Amour”. E se nafita de Resnais a sua estrutura funcionalmentefragmentada representa tanto o símbolo de umacidade estraçalhada pelo engenho ciclópico dabomba atômica, quanto o da mente torturada de


um ser largado na voragem das guerras, já essaconformação racionalmente despedaçada na fitade Antonioni não denota a mesma profundidadeuniversal, nem alcança emocionalmente a compreensão,ou o senso comum do espectador de“Hiroshima”, a sofrer com esta um impacto psicológicoimediato, a perceber, com “A Aventura”,um travo cerebral de identificação retardada.A obra de Resnais é a percepção súbita de umsentimento subjacente em todo homem quesofre e que vem à superfície sob tal estímulo. Apelícula de Antonioni, com a sua ação arrastadae a sua interpretação sofreada, é um raciocíniofrio, necessitado de um desdobramento, ouda exposição de suas premissas para (talvez sódepois da exibição da fita) chegar-se às suasconclusões. Um silogismo enervado, uma exposiçãológica, ao contrário de “Hiroshima”, umaemoção espontânea a surdir logo, ao fim decada cena, de cada seqüência. Não há dúvida,contudo. A obra de Antonioni é algo de respeitável.É obra nova que merece meditação,trata-se certamente de un nouveau cinéma. Mas,justamente por se tratar de um cinema novo éque não pode ser julgada sem ponderação maisdetida, sem aquela dimensão do tempo, na faltada qual não é possível compreender-se o infinitodo universo, ou pelo menos a sua relatividade.E tanto “Hiroshima” quanto “A Aventura” sãodois pequenos universos largados em órbita nogrande espaço da sociedade contemporânea.69


Bahia de Todos os Santosde Trigueirinho Neto, Brasil, 196170IntroduçãoDiga-se, preliminarmente, que a entrada de“Bahia de Todos os Santos” marca uma vitóriada perseverança e de uma dura vontade de autorealização.Lembro-me bem quando, há anos,tivemos em mãos (Almeida Sales, Desidério Grosse eu) o primeiro tratamento de “Bahia de Todosos Santos”, cheio de fotografias impressas em“off set”, que Trigueirinho Neto desmembrara deum álbum sobre a Cidade do Salvador, através decujas ilustrações levantara os primeiros cenários,que iriam ser o palco de sua história. TrigueirinhoNeto estava, nessa época, na Itália, terminandoseu curso no “Centro Sperimentale di Cinema”e de lá nos enviara o calhamaço de “Bahia” coma narração primeira de seu drama juvenil. Lemoscom o maior interesse e ternura o argumentoainda tosco, pesamo-lhes as possibilidades deprodução e ao cabo de um estudo em comum dosdados relativos a um planejamento inicial, seriacom tristeza que escreveríamos uma carta únicaao nosso amigo na Itália, desaconselhando-o delevar por ora seu projeto à frente, dadas as máscondições vigentes na indústria cinematográficado Brasil, capazes de provocar um colapso narealização, quando fosse a meio caminho a suatomada de cenas, a necessitar de amplos meiosfinanceiros, na reconstrução de uma época, naestada de toda uma equipe fora de São Paulo,


no suprimento até de muitas lacunas técnicas,verificáveis certamente na capital baiana, ondeseria tomada “in loco” a grande maioria dasseqüências do filme. Trigueirinho Neto não desanimoucom nossa franqueza e ante os óbicesrealistas que púnhamos na rota de seus projetos.Continuou a trabalhar seu argumento, a discriminare a prever os itens e os encargos de seuplano de produção, até mesmo a modelar seuator principal, Jurandir Pimentel, nessa época naItália também, a seguir cursos de arte dramáticae que desde logo se integraria no papel de “Tonio”,imaginado expressamente para ele. Estavaeu sempre a par de tais trabalhos de preparaçãona Itália, pois durante toda a permanência de TrigueirinhoNeto na Europa, uma correspondênciagraúda nos unia quase que semanalmente. Foicontudo com inenarrável surpresa que recebi, emmarço de 1958, a inopinada notícia de que ele seachava em viagem para o Brasil e com indizívelalegria o abraçaria alguns dias depois. Retornaraa São Paulo com uma única determinação: realizar“Bahia de Todos os Santos”. Viera dispostoa tudo e sempre disposto a tudo empreendeua sua longa aventura, já agora numa baía detodos os transtornos...Seu plano de produçãoestava pronto, faltava-lhe contudo o principal:o financiamento para realizá-lo. Um pedido deempréstimo na carteira de crédito cinematográficodo Banco do Estado, seria torpedeadoimpiedosamente por certas forças ocultas, que71


72então tronavam, ou que contribuíam para a concessãodesse crédito. Imposições de todo gênerofaziam pressão sobre os responsáveis bancáriosde quem dependia o empréstimo, apregoando-sea imoralidade de “Bahia”, cobrindo-a de doestosos mais virulentos. Mas, Trigueirinho Neto tudoenfrentou, já agora com a participação de algunsamigos, conscientes de seus propósitos honestos.O cineasta perseverante chegou até a procurara Confederação das Famílias Cristãs, a submeterseu roteiro à Orientação Moral dos Espetáculose obter dessas autoridades (honra lhes seja feita)uma carta de aprovação que teve, junto ao Bancodo Estado, o condão de torpedear, a seu turno,a calúnia e o despeito. E com a promessa decrédito garantida e com o fundo financeiro queparticularmente conseguira levantar, abalou-separa Salvador, já agora laureado com o PrêmioFábio Prado para o roteiro cinematográfico,que pela primeira vez se distribuía na UniãoBrasileira de Escritores. Na Bahia todo o mundose pôs à disposição, autoridades administrativase personalidades particulares, levando-o, assimamparado, ao bom termo dos trabalhos da realizaçãoefetiva de sua fita, apesar das angústias edos dissabores surgidos no curso dessa realização,como é natural, aliás. Mas, nem com o términodela, se desafogariam as mágoas e as preocupações.Inscrevendo sua película na representaçãodo Brasil ao Festival de São Francisco, viu TrigueirinhoNeto recusado o seu pedido no Itamaraty,


pois a esse Ministério mais interessa (ainda?...)evidentemente o turismo e a falsa dramaturgiado cinema brasileiro, do que a história humildede alguns adolescentes, no realismo cotidiano desuas vidas, no cenário barroco de São Salvador.Sobre essa história no cinema, suas qualidades erestrições que oponho à realização de “Bahia”,escreverei em próximo artigo.Bahia de Todos os Santosde Trigueirinho Neto, Brasil, 1961Parte II - 18 março 1961Em “Bahia de Todos os Santos” há um aspectomuito importante, há um setor da criação cinematográficaem que Trigueirinho Neto melhor serevelou: o da direção de atores. Lidando com umelenco, em grande maioria composto por atoresestreantes, sem qualquer experiência dramática,conseguiu obter deles uma interpretação muitohomogênea, em linhas dominantes despidas deindividualismos, cada qual se salientando, emcada seqüência em que deveria normalmentepredominar. Está claro que alguns atores teriamque se sobressair em relação aos demais, ou porqueas circunstâncias da ação assim o exigiam, ouporque dotados de uma sensibilidade artística maisprofunda, teriam eles que “viver”, mais profundamentetambém, os episódios fragmentados da película.Estão neste rol Araçari de Oliveira e Jurandir73


74Pimentel, ambos estreantes, entretanto ambosa demonstrar uma maturidade dramática tãorealizada, que, em certos momentos, logram atéescapar da contenção que lhes impôs TrigueirinhoNeto, preocupadíssimo em evitar “estrelismos” eem integrar seus atores nas teorias de Brecht, istoé, fazer com que os atores julguem suas própriaspersonagens e não fazer com que as “revivam”;não sintam profundamente os diálogos, mas ossubmetam ao espectador, para que neste se realizeo mesmo mecanismo racional. Porque Brecht nãodeseja que o público seja transportado de sensaçãoem sensação, mas que se aproxime do autor edos atores, através da idéia central do drama, quedeve ser a base de toda peça (uso aqui a própriaterminologia de Trigueirinho Neto, aplicada numcomentário que para a revista “Anhembi”, junhode 1956, escreveu, a propósito de “Sr. Puntilla eseu criado Matti”, filme de Cavalcanti, tirado deuma peça de Brecht). Segundo essa ordem deidéias, não há quase sentimento na interpretaçãobrechtiana, não há quase emoção, mas uma análiserigorosa que precede o julgamento e uma críticafria que o coroa.Pois, em muitos momentos, na grande maioriadeles, Araçari de Oliveira e Jurandir Pimentelescapam da direção racionalista de TrigueirinhoNeto e, num à vontade esplêndido, dão asas àsua emoção e deixam que seus sentimentos deintérpretes se identifiquem à emoção e aos sentimentosdas personagens. Sente-se na fita que


foi impossível controlá-los nesses instantes defuga e de inspiração individual. Por isso mesmo,tanto Araçari, quanto Jurandir, principalmenteeste último, por ser detentor do papel principal,se apartam dos demais e realmente se apoderamda interpretação “emocional” da película, emcontraste com as demais interpretações, essassim, satisfatoriamente integradas nas intençõesdo diretor. De se notar, nesse setor, o desempenhode Antonio Luís Sampaio (“Pitanga”),Francisco Contreiras (o “Desenhista”) e GeraldoDel Rey (“Manoel”), todos estreantes, mas todosa obedecer com dignidade artística à orientaçãoque lhes traçou o diretor.E no final destes já longos comentários sobre“Bahia”, continuo a lamentar que seu criadornão houvesse dado à sua fita (inegavelmenteimportante como um exercício de estilo no cinemabrasileiro) uma estrutura dramática e formalmais acessível, menos cerebral e, por isso mesmo,mais humilde, mais realista e mais emotiva. Denada lhe valeu o barroco de São Salvador, nemmesmo funcionalmente, como pano de fundopara essa história de adolescentes marginaisbaianos. Tal como está estruturada, a obra deTrigueirinho Neto, de temática universal semcaracterísticas regionais, tanto poderia ter comocenário um bairro popular de São Paulo, quantouma favela no Rio, ou uma viela em Nápoles. Ea Bahia, tão plástica e tão humana, ficou apenasno título convencional da película.75


O Beijode Flávio Tambellini, Brasil, 196676Parte IFlávio Tambellini, valendo-se de um jogo hábil eimaginoso posto na equação imagem-som (imagemestática da pintura, som dinâmico dos diálogosproferidos pelas personagens reais da intriga),estabelece uma surpreendente integração da pistasonora à continuidade dos fotogramas, pesquisapura de cinema de tanto quanto aplicação autenticado artesanato cinematográfico (o de LucianoEmmer e de Alain Resnais, notadamente), na técnicado filme já então industrializado. Há seqüênciasem que sente a presença de um criador inquieto àprocura de um resultado estético, que não é maisum esforço de conseguir a fluência narrativa deuma historia, mais a ânsia e o cuidado de apresentarcom requintes a evolução de uma tragédia, atéatingir-se o ápice estético expressionista. A seqüênciado enterro (aquele longo e interminável esquifenegro a atravessar a tela), a marcação dramáticado interrogatório de “Arandir” no gabinete dodelegado Cunha, a expressão de uma estado deconsciência convulsivo nessas criaturas nauseantes(Ribeiro, Cunha, o sogro, até mesmo Selminha), unsaproveitadores do escândalo e das misérias alheias,vincula “O Beijo” ao que de mais sério e profundose tem procurado fazer no cinema contemporâneobrasileiro e ao assistir a essas seqüências tão trabalhadase de simbologia tão íntima, lembrei-me deum livro excelente, ultimamente publicado – “O


homens e seus símbolos”, de Carl G. Jung e colaboradores– de que destaco este trecho a mim parecerbem apropriado a certos filmes de Tambellini:“Cada homem, só conhecendo o mundo atravésde sua psique individual, percebeu diferentementeos outros homens. O homem, a mulher, a criançavêem o mesmo espetáculo, mas para cada qualhá fragmentos diferentes do panorama que aparecemnítidos e os esfumados. O mundo só existe‘exteriormente’ em nossa percepção consciente,mas na verdade, estamos envolvidos por algo decompletamente desconhecido e irreconhecível”.Ah, sim, lembrei-me de Jung, de Pirandello, daverdade de cada um, com o “delegado Cunha”,a criar, em sua psique, um mundo à imagem esemelhança do mundo que o cerca, pois, tendopor norma de profissão de lidar com delinqüentes,não pode admitir que “Arandir” não seja um.Para o delegado Cunha, aquele beijo no asfaltoseria um ato libidinoso, conseqüente de um atocriminoso. Para Ribeiro, o repórter policial, o beijoseria um brado de escândalo e não um gesto demisericórdia. Para o sogro a semente do ciúmee o fulcro de uma inapelável condenação. ParaSelminha o túmulo aterrado em que sepultariapaz e amor conjugal. Para Dália, apenas o prelúdiode uma outra tragédia, em cujo desfechohaveria um outro beijo. Só o mundo de Arandirpermanecia irreconhecível para todos, até para opróprio telespectador. Todos que presenciaram obeijo no asfalto viram a ocorrência de modo diferente,conceberam na percepção consciente algo77


78de irreconhecível para os outros, apenas sensível asi próprios. A verdade de cada uma, interpretadapelos os outros. Assim é, se lhe parece...E lamento que Flávio Tambellini, ao onerar pesadamenteseu trabalho com a carga temática deNelson Rodrigues, se houvesse também deixarprender pelo fascínio de um cinema expressionista,com toda a sua simbologia, até mesmo comum certo histrionismo excessivo. A seqüência damorte de Arandir é um desses momentos de interpretaçãogongórica, quase grotesca. O bailadono bar, a envolver Ribeiro, naquele seu processode culpa e de exame interior, é outro trecho excedente,que, se cortado do conjunto dramático,não faria falta nenhuma. E em geral os intérpretesnão estão à altura das situações mais significativasdo tema. Não há ainda no Brasil atores suficientementeformados para o cinema do porte de “OBeijo”. Jorge Doria, Xandó Batista, Nelly Martinse Norma Blum se incluem neste setor deficiente.Apenas Reginaldo Faria e Fregolente enfrentame si contém nos lances mais comprometedores.O Beijode Flávio Tambellini, Brasil, 1966Parte IIImagem estática, som dinâmico...Ao sair da sala, encontrei-me, com Flávio Tambellini,realizador de “O Beijo”, que eu acabara


de assistir. Não tive dúvida, nem acanhamento,em dizer-lhe, lealmente, o que pensava de seufilme, de transmitir-lhe a comoção que me causaramos ótimos momentos de cinema, contidos em“O Beijo”, tanto quanto a impressão deprimenteprovocada por suas falhas dramáticas, a meuver imputáveis à índole grosseira, à linguagemdesabrida a cercar tudo quanto escreve NelsonRodrigues, uma peça de teatro, um romance,uma crônica de jornal, tanto quanto um filmebaseado em tais escritos. Tambellini ouviu-meum tanto contrafeito e como logo percebi seuconstrangimento, deixamos o assunto e falamosde outras coisas, comentamos com entusiasmo abeleza tranqüila e profunda do filme de curtametragem“O Universo”, realizado no Canadáe a acompanhar “O Beijo”, em complementode programa. Mas, no dia seguinte, telefonavameFlávio Tambellini, já de partida para o Rio.Telefonava para assegurar-me que todas as deficiênciasdo filme, tanto as de adaptação quantoas de rea lização deveriam ser debitadas a umúnico setor de criação, o da produção e direçãodo filme, de sua inteira responsabilidade, nadatendo contribuído para a ocorrência de tais falhasa colaboração de seu amigo Nelson Rodrigues,de perfeita cooperação, infenso à vaidade, nuncaa recusar seu integral apoio durante toda arealização de “O Beijo”, sempre a conferir absolutamenteliberdade em todos os setores desua criação, inclusive nas modificações que ele,79


80Tambellini, propusera e depois introduzira naestrutura dramática e narrativa do filme. Essaatitude de superioridade e de maturidade deespírito, essa integridade profissional tão alheiado cinema brasileiro e de seus autores em geral,comoveu-me profundamente, contudo, como, emminha atividade crítica na imprensa, não alimentoo menor preconceito em relação a quem quer queseja, por adotar uma escrupulosa imparcialidadeem meus escritos, sem jamais poupar um amigo(quando me parece falha sua obra), ou de exaltarum desafeto (quando me impressiona favoravelmenteo seu trabalho), sinto-me à vontade paracomentar “O Beijo”, super-estimulado além domais pela tomada de posição de seu realizador.Entretanto, apesar das afirmações em contráriode Flávio Tambellini, continuo a crer que as falhasmaiores de seu filme decorrem de sua origem literária,de seus diálogos e das situações chocantesimaginadas por Nelson Rodrigues em sua peçae conservadas com as características pessoais eestilísticas do autor de “Vestido de Noiva”. Háem “O Beijo” seqüências de pura criação cinematográficae um espírito de análise psicológica ede síntese narrativa muito aprofundado. Há, porexemplo, uma exata função expressionista nascenas estáticas dos quadros de pintura sacra antigae de cenário, e o aproveitamento da própriacenografia, em longas e distanciadas perspectivas,naquele significado de fuga interior, de que estavampossuídas quase todas as personagens do


drama. Ademais, na utilização das figuras dessequadro bíblico (a acusação de Cristo pela tubade seus algozes), Tambellini se vale de um jogointeligente e imaginoso, posto, numa equaçãorigorosa e em perfeita equivalência, no binômioimagem-som, imagem estática de pintura e dodesenho, som dinâmico dos diálogos proferidospelas personagens da intriga.O Belo Antonio (Il Bell´ Antonio)de Mauro Bolognini, Itália, 196031 maio 1961Diga-se de início que esta “Il Bell’ Antonio”, deMauro Bolognini, à primeira vista, desconcertae acabrunha o espectador desprevenido, tal arudeza do tema e do seu tratamento, áspero eimpiedoso. É preciso, para bem compreender aobra de Bolognini, se integre o seu espectadorna comunidade social em que é vivida a ação de“Il Bell’ Antonio”, na província italiana, ou, maisprecisamente na Sicília, na cidade de Catania,num ambiente ainda tomado de superstições,de tabus de crenças primitivas, de preconceitos,os mais retrógrados.Confesso que, a princípio, me chocou muitíssimoa grosseria com que Mauro Bolognini tratouseu tema, e foi preciso que Claude Blum, aosusos e costumes sicilianos (pouco identificáveis81


Claudia Cardinale e Marcello Mastroiani em O Belo Antoniogeo gra fi ca mente na película), quanto à funcionalidadedessa estrutura dramática, cheia dearestas e aparentemente vulgar, que tanto medecepcionara, quando, no primeiro momento,me defrontei com a tragédia desse belo Antonio,sensível e frustrado.Antes tais esclarecimentos, reformaria eu a seguiro meu primeiro juízo, só então passando ame impressionar a película de Mauro Bolognini,com seu cenário pesado de arquitetura barroca,com suas personagens a lembrar figuras de Zola,com aquelas cenas da vida burguesa e, acima detudo, o drama humano de Antonio, a pureza deseus sentimentos em relação ao amor, sentimen-


tos platônicos de um poeta, nunca sensualidadecarnal de um sátiro ou de um libertino.Assim considerada “O Belo Antonio” assume aforça de uma peça documentária, o poder descritivode uma obra verista, em que as personagenssó podem ser o que são, não podem nunca aturarqualquer traço da ficção e da fantasia. “Il Bell’ Antonio”é, pois, uma dissertação sociológica, antesmesmo de ser uma análise psicológica. Antonio éuma criatura sensível a negar o meio em que nasceu,a repelir sua ancestralidade, tentando firmarsua personalidade traumatizada no ambiente deque logrou libertar-se moralmente, mas a cujasobsessões e preconceitos se vê irremediavelmentejungido. Seu drama, no filme, não é apenas umsofrimento individual, mas a tragédia de todauma comunidade, atos e heranças a se transferirempara cada um dos seus elementos, todosparticipantes, na sua escala, do mesmo “status”.83Os Boas-Vidas (I Vitelloni)de Federico Fellini, Itália, 195305 outubro 1963Os “vitelloni” (os “bezerrões”, numa tradução aopé da letra, ou ainda, “os boas-vidas”, no termomais popular) são o símbolo da indolência e dairresponsabilidade, esses rapazotes já em idade detratar da vida, mas que continuam a existir à custa


84dos pais, como certos bezerros crescidos que, aoinvés de trotar pelos pastos, com aquele sentimentode independência próprio dos verdes anos,ficam à sombra dos currais, à espera da alimentaçãomaterna, como parasitas incorrigíveis. Comesse material humano – o mesmo com que o cinemanorte-americano e o de outras procedênciasrealizaria inumeráveis películas sobre a chamada“juventude transviada” – Fellini compôs peça satírica,cruel e impiedosa, ainda que narrada sobum tom inocente. Há seqüências de um extremodespojamento formal, a contrastar com o pesocompacto de seu conteúdo: os “vitelloni” nas ruasprovincianas de Pesaro, à noite, a passear a suavadiação; a caricatura crua do baile de carnaval, a“ressaca” de Alberto, a fuga de sua irmã, tudo aacontecer como se o carnaval ainda continuasse;o grotesco do espetáculo de variedades, as pobresfiguras do velho comediante e de suas atrizes; e,na seqüência final, a ternura tépida da partida de“Moraldo”, o esboço do homem solitário, a contemplardo trem, já em movimento, a paisagemhumana que deixaria para trás, no prosaísmo deseus lares, uns ainda a dormir, outros já às voltascom suas ocupações cotidianas, todos mostradosdo ponto de vista de Moraldo, como se fossemvistos da própria janela do trem. E a última cena,o momento chapliniano muito puro escurece porsobre o vulto de “Guido”, o pequeno amigo dasmadrugadas, a equilibrar-se nos trilhos, essasparalelas que nem no infinito se encontram, o


último símbolo da solidão a sintetizar o tema e aconstante de Fellini em toda sua obra posterior,derradeiros despojos do neo-realismo, que nema imbecilidade de uns, nem a ganância de outrosconseguiu perverter e destruir.Revendo hoje “Os Boas-Vidas” e relendo o queescrevi por ocasião da estréia da fita de Felliniem São Paulo, em dezembro de 1957, não pudedeixar de transcrever o que então eu comentavanesse jornal, pois o filme desse grande cineasta resistenão apenas ao tempo, permanece tão vivo naatualidade quanto o fora ao ser realizado comocontinua despertando aquelas primeiras impressõescausadas pela força de sua criação. E nessasemana, duas foram as reapresentações interessantespara aqueles que realmente cul tuam ocinema: “O Delator” (aqui já comentado por meucolega A. Carvalhaes), a obra inesquecível de JohnFord, e o filme de Federico Fellini. Duas grandespeças do cinema universal, que devem ser revistasa cada vez que “milagrosamente” surjam emcartaz, ou de uma sala comercial, ou na de umaacademia de estudos cinematográficos.85A Casa dos Segredos (The House of Secrets)de Guy Green, Inglaterra, 195705 setembro 1957Trata-se de uma película de enredo a tirar-se,prova velmente dos arquivos da Interpol, polícia


86internacional, de quadros compostos com elementosrecrutados nos corpos policiais de muitasnações e destinados a cuidar da vigilância e dasegurança de todos os povos e cuja sede, se nãome engano, foi fixada em Paris (onde tambémtranscorre a ação de “A Casa dos Segredos”). Ocontrabando, o lenocínio, o tráfico dos entorpecentes,todos os problemas policiais que possaminteressar à tranqüilidade coletiva, à estabilidadee ao bem-estar sociais preocupam a Interpole seus inúmeros departamentos “A Casa dosSegredos”, à Rue du Bac, em Paris, é a sede darepressão contra falsificadores e contrabandistase em sua história se enredam as façanhas deuma quadrilha especializada em ambas as coisas:falsifica, com perfeição, notas de cinco libras eaproveita a oportunidade para o exercício rendosodo contrabando de ouro.Toda a intriga da película se conta num estilovivo, fluente e bem acordado à técnica narrativada fita policial, gênero a fazer no cinemauma escola própria, com feições diferentes emcada país. Evidentemente, uma dessas escolasmaiores – uma verdadeira “universidade”... – sesitua no cinema norte-americano, com muitosfatores favoráveis ao seu desenvolvimento e àapuração de sua estética: riquíssima literaturaespecializada a seu dispor, fatos verídicos, os maiscomplexos e inesperados, a acontecer todos osdias, um cinema com recursos sem conta e sempar para realizar os argumentos mais ambiciosos.


E tudo isso a fazer-se com certa liberdade deação, impossível em outros gêneros no cinemanorte-americano. Mas, a França e a Inglaterra,não ficam atrás. Seus “modos” são diferentes, écerto, mas não menos interessantes. Clouzot, naFrança, fez com que algumas de suas peças policiaisentrassem definitivamente para a históriado cinema – “Le Corbeau”, “Quais des Orfèvres”,“Les Diaboliques” – com suas fórmulas algébricasde investigação criminal, singulares e tão caracteristicamentepessoais. E quanto ao cinema inglês,com o seu humor, próprio, de cores várias, do rosaao negro mais profundo, é preciso não esquecerque Alfred Hitchcock nasceu em Grã-Bretanha, alirealizou algumas peças notáveis no gênero policial,honrando muito o cinema de seu país e o dosEstados Unidos, onde criou peças inesquecíveis,com técnica e pesquisas originalíssimas. E aindano cinema inglês, aí está, em fresca memória. “OQuinteto da Morte”, um “policial” “sui-generis”,obra-prima de humor, de malícia e de sátira.Pois, “A Casa dos Segredos” não desmerece atra di ção do cinema britânico no gênero policial:é obra de ritmo nervoso, de trama complexa,mas logicamente exposta, a dispor-se na continuidadenarrativa em seus clássicos mistérios, sóperceptíveis e desvendáveis nos últimos carretéisda película. Muito bem interpretada, com aquelasobriedade dramática tão própria aos atoresingleses, “A Casa dos Segredos” transcorre comum interesse sempre crescente, a que não faltam87


os momentos de expectativa e algumas lutas,entre policiais e delinqüentes, das mais reaisvistas ultimamente. A cidade de Paris serve depano de fundo a essas aventuras. Suas estradas,suas avenidas, ruas, becos e escadarias formamo cenário natural, de grande efeito plástico, avalorizar-se ainda, pela cor excelente da fotografiade Harry Waxman.Casinha Pequeninade Glauco Mirko Laurelli, Brasil, 196330 janeiro 196388Mazzaropi acaba de levar a cabo sua segunda fitaem cores, essa “A Casinha Pequenina”, películasem pretensões como sempre foi o cinema deMazzaropi, peça, entretanto, cheia de qualidadese de ótimas intenções. Das intenções já falei aqui,quando apresentou “Tristezas do Jeca” no anopassado, peça em que já se previam as qualidadesagora tão visíveis em “A Casinha Pequenina”.Qualidades sim, e muitas. A começar pela indicaçãodo nome de Glauco Mirko Laurelli para adireção dessa película, o principal propiciadordas virtudes do filme.E ao assistir à película, é possível, desde logo,reconhecer a influência do antigo diretor dedublagem da Gravasom, não apenas no setor dadialogação, em que Glauco Mirko Laurelli se tor-


nara um especialista, mas também na direção deelenco (com atores bem marcados, movimentando-seà vontade sem qualquer constrangimentodramático), principalmente no enquadramentoda película, em muitas seqüências a apresentaruma composição fotográfica e uma dinâmicacinematográfica raras no cinema brasileiro, feitoem cores, de função dramática diferenciada nanarrativa e no encadea mento de sua dinâmica,a constituir por isso, um problema a mais à frentede um realizador inteligente e sensível. PoisGlauco Mirko Laurelli, nesta sua fita de estréia,com o auxílio certamente de seu iluminador, essegrande e competente artista que é Rodolfo Icsey,com o trabalho irrepreensível do tratamento dacor, a cargo da Rex Filme, enfrentou esse problemacom uma desenvoltura e um sentido decomposição cinematográfica só encontráveis emcinema altamente categorizado.Algumas cenas de reconstituição de época (a açãodo filme se passa no fim do século, pouco antesda abolição da escravatura) lembram gravurasde Debret, na disposição dos negros no terreirode café, nas plantações da fazenda, nessa cenografiatão simplificada do patriarcado rural,que marcou, com a casa grande e a senzala, osúltimos anos do patriarcado do café, até entãosustentado pelo braço escravo e a desconhecero trabalho e os costumes do imigrante.“A Casinha Pequenina” vale por esse trabalho decomposição, de aproveitamento da cor pura, de89


90ótima cenografia (a cargo de Pierino Massenzi ),e pela direção de elenco, setores de criaçãosalien tes nessa estréia de Glauco Mirko Laurelli,a torná-lo desde já como capaz de algo mais importantenos quadros do cinema brasileiro.Quanto a Mazzaropi, já que cuidou tão bemda parte formal de suas fitas, é preciso agoravoltar suas vistas para o seu conteúdo, ainda acaracterizar-se pela fragilidade e inconseqüênciade seus argumentos. Cinema sem pretensões essede Mazza ropi, destinado, sem dúvida ao divertimentode seu público habitual. Não o censuropor isso. Mas, gostaria de cumprimentá-lo como mesmo calor sentido em relação à técnica desuas fitas atuais, se suas futuras realizações apresentaremtambém histórias e adaptações maisconsistentes e de alcance social mais profundo.Tenho certeza de que será capaz de fazê-lo.Cidade Nua (The Naked City)de Jules Dassin, EUA, 194819 janeiro 1959“Jules Dassin está fazendo em ‘The Naked City’um trabalho magnífico, por uma razão: ele éum novaiorquino. É também um jovem diretor,com idéias extremamente boas, algumas muitoavançadas. Deixei-o inteiramente sozinho em seudepartamento, simplesmente porque ele sabe


o que faz.” – Estas palavras de Mark Hellinger,produtor de “Cidade Nua”, escrita pouco antesde sua morte, ocorrida em princípios de 1948,denunciam a importância de dois elementos nossetores primordiais da criação cinematográfica: ainteligência do produtor e a competência do diretor.Essas duas faculdades espirituais realmentecriam o cinema e o tornam o verdadeiro meio deexpressão dos tempos modernos. Mark Hellinger ,antigo jornalista, compreendendo muito bema força desse binômio, restringiu toda a suaatividade profissional no cinema à função deprodutor e, graças a essa determinação, iniciouuma revolução no cinema norte-americano, deprocesso só interrompido pela ocorrência de suamorte. Mas o exemplo ficou e muitas películassurgidas depois foram fortemente influenciadaspela obra do jornalista, que abandonara suamáquina de escrever para impelir exclusivamentesuas câmaras cinematográficas.Produzida e realizada por dois homens nascidosem Nova Iorque, toda ela fotografada por dentroe por fora da grande metrópole, “Cidade Nua”,após duas horas de espetáculo, dá a impressãode que seus realizadores não obedeceram roteiroalgum, a nenhum plano de produção. Tomaramda câmara, postaram-na nas ruas e praças, nasesquinas e nos becos, nas docas e nas casas, nasestações subterrâneas e no topo dos altíssimosedifícios e deixaram a película correr por entreas engrenagens do fabuloso instrumento.91


92Pontuaram depois essas imagens, essas frasescolhidas em plena vida, instantâneos fugazes decoisas e gentes, num ótimo trabalho de montageme com um ritmo nervoso nasceu “CidadeNua”, uma história, uma reportagem, uma crônicade Nova Iorque e de seus oito ou dez milhõesde habitantes, num período de 48 horas. Oitoou dez milhões de pessoas e 48 horas de temposão muita coisa para ser narrada em menos de120 minutos de projeção. Por isso, os cineastaslimitaram sua reportagem à vigência de um fatosurpreendido através de uma janela, um dramaem que se envolveram, durante dois dias, algunspersonagens tirados do elenco da grande metrópole.E em torno desse drama, que para a maioriados habitantes de Nova Iorque passará totalmentedespercebido, um drama ao preço de dezou quinze “cents”, o preço de um jornal diário,gira toda a ação de “Cidade Nua”, descrita como espírito de narração sintética, próprio das melhoresreportagens. Citarei apenas um exemplo,descompondo em quadros, uma seqüência quasetoda: pela madrugada, uma mulher é narcotizadae morta por asfixia dentro de uma banheira. Tudoquanto ocorre durante o crime e depois dele – oassassínio, a descoberta do cadáver, o aviso à polícia,as investigações preliminares, a classificaçãodo fato delituoso – é narrado por uma sucessãode quadros impressionantes pelo seu poder desugestão: a vítima sendo assassinada (uma torneiraque se abre) a imagem que se funde com


as mangueiras usadas na limpeza matinal dacidade; o despertar da metrópole; a descobertado cadáver (o rosto horrorizado da criada dequarto da vítima); conectores telefônicos quese engatam nos orifícios do “PBX” e a fundir-secom a imagem de uma ambulância do HospitalRoosevelt; conectores telefônicos novamente aestabelecer ligação com os laboratórios de pesquisascriminais e, afinal, com o Departamentode Homicídios da Polícia de Nova Iorque. Tudoisso a acontecer numa movimentação nervosa efuncional, numa excelente aplicação de termose recursos cinematográficos, num entrosamentoperfeito de som e imagem, tudo a obter-se pormeio de todos os recursos técnicos e intelectuaisde uma montagem dinâmica.Em boa hora, realmente, se propôs “Geralartes”uma reapresentação dessa obra de Dassin-Hellinger.Nada mais oportuno do que essa revisão deobras de Cinema, a fazer-se, infelizmente, emocasiões muito raras, se bem que sempre tenhammuito interesse histórico.93O Corvo Amarelo (Kiiroi Karasu)de Heinosuke Gosho, Japão, 195719 outubro 1961Eis uma película realizada por um dos diretoresmais sensíveis do Japão, Heinosuke Gosho. Pois,


94a cada filme importante do cinema nipônico quese exibe em São Paulo mais e mais se surpreendeo espectador, o estudioso de cinema, pela versatilidadedos cineastas de lá, pela competência eemotividade surgida do trabalho de suas equipestécnicas, pela delicadeza e profundidade comque são tratados os temas mais simples e os maiscomplexos. Este “O Corvo Amarelo” está entre osmais complexos e, apesar disso, foi exposto comsimplicidade comovente. Em verdade, o corvoamarelo é apenas um símbolo, pois o corvo real,que só aparece lá pela segunda metade da fita,continua a ser o pássaro negro habitual, portadorde mau agouro, a grasnar como sempre suarevolta contra a organização das coisas nestemundo que o repele supersticiosamente. O corvoamarelo é muito mais importante. Gerado pelolápis de cor de uma criança, esse pássaro estilizado,no colorido berrante em fundo preto, é umbrado de revolta, representa conflitos internos,processos psicológicos de defesa, de catarse, defuga, de derivação na mente do menino, crescidolonge do pai, para ele um estranho, um usurpadordo carinho materno. O lápis de cor para essacriança que se sente abandonada é um derivativoe sua pintura um desabafo. Todo esse conflitosentimental é tratado com sutileza espontânea, aobrigar o espectador a integrar-se na fabulação,a sofrer com esse menino o seu pequeno dramainterior, que, numa criança, pode tornar-se umagrande tragédia adulta. Está claro que as cores,


as admiráveis cores do cinema japonês participamintensamente dessa narrativa e desses embatespsíquicos. E a água, a chuva é também um elementodo drama, faz parte do cenário, integra-senele através daquela fotografia que só os japonesessabem fazer com a água, a chuva, o mar,ou um simples fio líquido a cortar seus jardins,os tranqüilos jardins dos lares nipônicos. A fugado menino, através de bosques e campos batidospelo vento e pela tempestade, num cenário todofeito de roxos e azuis cambiantes, conforme a iluminaçãointermitente dos relâmpagos, constituium dos momentos mais admiráveis do cinemacontemporâneo moderno. De se lamentar quea espontaneidade dos diálogos, traduzidos cominteligência pelo sr. e sra. Takeshita, não tenhasido inteiramente preservada no trabalho deinserção dos letreiros em português.95Deus e o Diabo na Terra do Solde Glauber Rocha, Brasil, 196404 setembro 1964Parte IAo afirmar, desde logo, que não me agradouo filme de Glauber Rocha, não quero, com essaapreciação preliminar e radical negar a inteligênciade seu realizador, nem menosprezar seu entusiasmode jovem, no manuseio dessa história de


96cangaço e misticismo, na sua ambição de realizaralgo definitivo nesse indefinido “cinema novo”,de que é ele o campeão insuperável e o guardacostasmais fiel. Uma longa conversa com GlauberRocha antes de assistir ao filme foi-me muitobenéfica, na antecipação da análise da obra, eas declarações prestadas por seu realizador a respeitode suas idéias, gerais e particulares, sobre“Deus e o Diabo”, a abarcar o panorama do cinemabrasileiro atual, firmaram posições, definirampontos de vista e esclareceram satisfatoriamentealgumas contradições e incoerências de atitudesencampadas no livro de Glauber Rocha – “RevisãoCrítica do Cinema Brasileiro” – sobre o qual euescrevera exaustivamente neste jornal. E, comoapós a leitura desse livro, a impressão que fica, aoacender das luzes depois da projeção de “Deuse o Diabo na Terra do Sol”, é a de que GlauberRocha deu um passo maior do que as pernas,claudicando grotescamente ao fim desse esforçono campo áspero do cinema. Seu filme é algo dedeplorável em matéria de linguagem cinematográfica,a demonstrar por parte do autor o desejode colocar o cinema do Brasil na órbita de ummovimento “artístico” surgido na Europa ultimamente(embora as idéias que o configuram sejamantiquadas e superadas), chamado na França de“cinéma-verité”, aqui caricaturado a expensasdo nosso “cinema novo”, também esse, como ésabido, sem ostentar nenhuma novidade dignade atenção e de respeito. De fato, até agora, tudo


quanto apregoa o “cinema novo” brasileiro oué algo de muito velho, ou algo de muito ruim.Suas derivações mais recentes, Glauber Rochaas contou, em prosa inflamada, na sua “RevisãoCrítica”, nesse livro tentando a árdua empresa deordenar o “modus faciendi” da técnica de susteruma câmara na mão, sem apoio de tripé, semóculos dos filtros, sem a reverberação compensatóriados rebatedores, coisa de adolescentes que,pela primeira vez, conseguiram ter à mão umacâmara de amador e que, através do visor restrito,descobrem um mundo novo, configurado poruma ótica que desconheciam. Acontece que omundo, para eles novo, continua a ser o mundovelho sem as porteiras de sempre e o que o aparelhoconsegue captar são as imagens capengase canhestras, só formativas da obra característicade aprendizes. Aprendizes de feiticeiro, que aofinal, ou ao meio da produção, não sabem comosituar-se no tumulto que criaram, nem como terminara empreitada que a princípio lhes pareciatão fácil. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é bemum exemplo disso. Projeção trêmula, quadrostrepidantes, incríveis vaivéns de panorâmicassem função, desrespeito absoluto pelas regrasmais elementares da técnica cinematográfica,iluminação precária da fotografia (não raro forade foco), totalmente apartada da dramaturgiacinematográfica, desintegração total da unidadedramática, ausência de qualquer elementocriador na montagem, narrativa fragmentada,97


descosida, muitas vezes incompreensível, eis oespetáculo de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”,algo a que se assiste com o enfado e fadiga, cujofinal se recebe com alívio e desafogo.Deus e o Diabo na Terra do Solde Glauber Rocha, Brasil, 196405 setembro 196498Parte II“Uma ópera popular primitiva, brasileira e semrebuscamentos”, eis como define sua obra opróprio Glauber Rocha, ao referir-se a “Deus e oDiabo na Terra do Sol”, em entrevista concedidaa este jornal. Primitivo, sem dúvida, seu filme o é;mas primário seria melhor qualificação. Primáriona exposição do tema, primaríssimo em sua feiturae em seu acabamento, uma negação totalde seu próprio título. Não há Deus, nem Diabo,nem Sol, nessa terra em que Glauber Rocha erigiuo cenário de sua ópera. O seu Deus é um pobrediabo negro, enfático e declamador, incapaz deconvencer o mais bronco dos sertanejos. O seuDiabo é um deus caricato, cabeludo, metido afiló sofo do sertão e bailarino das caatingas. E o Solbrilha por sua ausência, nessa terra que deveriaestar crestada por ele, nesse chão sofrido que oscantadores populares descrevem como algo deressequido e morto. Pois a paisagem de “Deus e o


Diabo”, ainda que árida, se apresenta sob o foco(ou fora do foco) da “câmara na mão” de GlauberRocha, sempre sob um céu nublado, nunca sapecadopelo sol abrasador. Nesse pano de fundo, nãoraro neutro e sem características maiores, movemseos personagens da “ópera”: Manuel e Rosa,Sebastião e Corisco, os camponeses do Nordeste,os escravos da gleba, o cego Julio, os minguadoscabras de Corisco, o Antonio das Mortes, chapelãotexano, capa preta a envolver esse “Zorro” do sertão.Tudo isso pode ter sido concebido de modometafórico, alegórico, simbólico, aceito de bomgrado essa possibilidade na expressão de “Deus eo Diabo”. Tais recursos, entretanto, sempre foramutilizados pelo homem, desde que, antes de teruma câmara na mão, pôde segurar um estilete,ou uma pena para pôr na pedra, no papiro, ouno papel suas idéias, sua sensibilidade e assimdescrever os abismos de sua alma, ou figurar osanseios de sua condição humana. Mas, é precisoque tais recursos – metáforas, alegorias, símbolos– sejam propostos no momento exato, conformeas circunstâncias e de modo funcional. Um homemvestido de capa preta, chapéu de aba larga, lençoao pescoço, espingarda à mão, a andar de lá paracá, a correr ou saltar no campo cinematográfico,sem integrar-se na linha, no cenário, no âmagoda ação dramática e na compreensão da história,só continuará a ser um homem de capa preta,simbolizando talvez um Tenório em Caxias, ouum “zorro” ao tempo das missões na Califórnia,99


100nunca a expressar um “coro”, ou um “prólogo”das tragédias antigas, ou mais simplesmente o“Antonio das Mortes”, matador de cangaceiros,no sertão de Cacorobó...Não sinto nenhum prazer, senão apenas umsen ti mento de melancólica decepção ao ter quecomentar o filme de Glauber Rocha, não demodo metafórico, mas às claras e sem preconceitos.Admiro a inteligência do jovem cineastabaiano e tenho-o na conta de alguém capazde muitas coisas no cinema brasileiro. Falta-lhecontudo a maturidade dos velhos, a experiênciados que envelheceram sob a luz dos refletores,desse instrumental cinematográfico que Glaubertanto condena. Mas, isso não é irremediável. Opassar do tempo lhe dará tudo e mais algumahumanidade, que é coisa de muita importânciana realização do cinema legítimo, desse cinemaque tanto ele quanto eu próprio almejamos parao Brasil. Vamos esperar, por isso.A Doce Vida (La Dolce Vita)de Federico Fellini, Itália, 196009 janeiro 1961A cada película de Federico Fellini que assisto,sinto-me impelido a reexaminar certos conceitosexpostos aqui mesmo, nesse canto de página daFolha de S. Paulo, quando escrevi sobre esse grandemestre do cinema universal, a propósito de


uma de suas peças, “Il Bidone”, ou “Il Vitelloni ”,não importa. E, a cada reexame, convenço-me dajusteza da observação, quando afirmei que “algumpsicólogo perseverante há de achar algum dia, naobra de Fellini, material bastante para a pesquisapsicanalítica da personalidade desse cineas ta obcecadoe introvertido, numa eterna luta dentro desi próprio, emaranhado por entre o desvario dadúvida e a alegria de reencontrar-se na exaltaçãocriadora da obra artís tica pura e simples. Que explicaçãosubjetiva se poderia obter através da análisedessa obsessão de Fellini, do seu drama de homemsó, tão realçado e tão repetido em toda a sua obra?Ninguém sabe, ninguém se lembrou de perguntarisso a esse homem, em Roma onde ele próprio viveisolado apenas com sua mulher, essa encantadoraGiulietta Massina, que, em três películas de Fellini,interpretou personagens também solitárias:‘Gelsomina’, ‘Iris’ e ‘Cabiria’”. E agora, ao assistir“La Dolce Vita”, ressurge de novo a observação,reencontro novamente o Fellini torturado peladúvida ou subjugado pela exaltação, em muitasseqüências dessa fita perturbadora e angustiada;reencontro novamente o Fellini em sua tragédia dehomem só, numa das personagens mais simbólicasde “La Dolce Vita”, aquele “Steiner” introvertido,que se considerava minúsculo ante uma catedralgótica, ou a ouvir uma fuga de Bach, aquele homemdesajustado e perdido no emaranhamentodo mundo moderno, que temia a paz e o silêncio,mas que só na paz e no silêncio terá encontrado101


102talvez a resposta definitiva para as interrogaçõessugeridas nas noites de insônia, ou ante o panoramamilenar da paisagem urbana de Roma. Mas,“Steiner” é apenas um elemento geométrico docaleidoscópio social, perdido na composição abstrata,que se forma a cada volta do tubo, atravésdo qual se observa a doce vida. “Steiner” se integrae acaba mesmo desaparecendo entre “Marcello”,“Emma”, “Silvia”, “Madalena”, ou por entre osfreqüentadores noturnos da Via Veneto, por entreos crentes e os comerciantes da fé, naquele pátiode milagres em que a “Madonna” surge sob achuva, ao sabor da imaginação infantil, ou sob oestímulo da ganância dos exploradores da religião.“La Dolce Vita” é um caleidoscópio, sim. Mas, ummicroscópio, também, por cima do qual Fellini sedebruça e através de cujas oculares examina aslâminas de toda uma camada social. Examina-asapenas, sem tirar qualquer conclusão. Há monstrosnesses microcosmos, monstros humanos, ummonstro marinho até, já meio apodrecido, masde olhos bem abertos ainda, com sua pupila voltadapara as criaturas atônitas em torno de si, oudirigida para a figura fresca, ingênua e arejadade uma menina, cuja voz Marcello não pode maisouvir, cujos gestos nem sequer pode interpretar,separado que está pela lama da maré baixa, oupelo lodo dos mais baixos instintos.Fellini expõe e analisa sem se preocupar com oantecedente, nem o conseqüente. Inconformadotalvez, sempre em dúvida, mas a acreditar ainda ,


num mundo que não é o dele, submete-se àtortura de sua análise, sem apegar-se a resíduosobjetivos. Prefere sublimar-se no símbolo, numasimples alusão, num esboço apenas. O rosto damenina, a última imagem do filme, tem de surgirassim, como uma declaração de fé, no futuroda própria humanidade, tal como o cenário do“Caracalla’s,” levantado sobre ruínas romanas,ou as cariátides do castelo, por onde perambulamos últimos representantes de uma aristocraciadecadente, são símbolos de um mundo acabado,que agora só tem interesse histórico, ou somenteuma importância arqueológica. E se há angústiae desespero, orgia e suicídio, sarcasmo e impiedadenesse filme amargo e comovente, numaconstante e paradoxal dinâmica, há também,por detrás dessa doce vida, inútil e suja, a purezade um olhar, o asseio de um rosto adolescente,a esperança infantil de sua última imagem comum lampejo fugaz de repouso, breve a surgir nanoite do desencanto e no abismo da degradação.103A Doutora é Muito Vivade Ferenc Fekete, Brasil, 195720 novembro 1957De fato, “A Doutora é Muito Viva”, constituisenuma autêntica revelação cinematográfica.Quando pela primeira vez fora eu informado das


104intenções de Fekete, nessa sua incursão pela direçãode cena, saindo ele de seu ambiente habitual– a direção da fotografia, onde sabe realmenteimpor os seus conhecimentos e a sua sensibilidade– estava eu certo de que essa obra apenascontinuaria a sagrar o molde de “A Pensão de da.Estela”, inenarrável aventura de que participouFekete, em companhia de Alfredo Palácios, peçacuja existência no cinema brasileiro é preferívelesquecer-se. Mas, na proporção em que avançamos trabalhos de estúdio de “A Doutora é muitoviva”, modificava-se também a opinião de quantos,de um modo ou de outro, tomavam conhecimentoda realização de Fekete. A fotografia eramagnífica, a interpretação criava algo de novodentro desse gênero tão desmoralizado pelocinema carioca – a comédia leve, o espetá culocinematográfico sem as pretensões e a grandiloqüênciada superprodução. Entretanto, mesmojá sabendo das qualidades da fita de Fekete, foipara mim uma enorme surpresa a exibição de suacópia “standard”. Pois, não só “A Doutora é muitoviva” se apresenta como uma fita incomum nogênero tão pervertido pelos medíocres do cinemabrasileiro, como vai além das dimensões estritasde uma peça de linha comercial, com técnicaperfeita, cuidada em todos os setores da criaçãocinematográfica, a par de um argumento muitosimples (simples até em demasia), narrado coma fluência dos estilos castigados. Nesse sentidoe guardadas as devidas distâncias diferenciais


entre um argumento e outro, a película de Feketeequipara-se à realização de Anselmo Duarte.De fato, tanto “Absolutamente Certo”, quanto“A Doutora” são películas de linguagem do Cinema,com uma produção caprichadíssima, nestesetor tão complexo se tornando uma animadoraevidência os cuidados de Osvaldo Massaini, naprodução da película de Anselmo Duarte e osde Carlos Szili, na de Francisco Fekete. Em verdade,na manufatura cinematográfica, o êxitoindustrial depende quase que exclusivamente dosetor da produção. E no que concerne ao cinemabrasileiro, tem surgido desse lado o seu problemamaior. Foi o setor da produção dos negócios da“Vera Cruz” que mais falhou em toda a sua curtae dispersiva existência industrial.O malogro técnico, artístico e comercial da grandemaioria das películas nacionais origina-sesempre do flanco da produção, o setor que, numexército em operações, se equipara ao da funçãodo Estado Maior e ao de seu abastecimento emhomens e material. Que tática ou estratégia poderácercar-se de êxito sem planos racionais decampanha e sem um roteiro seguro do abastecimentodas tropas em movimento nas vanguardase em exercício, ou repouso, nos acampamentosda retaguarda? A produção no cinema é o estadomaior dos exércitos. Se falham os chefes, porimprevisão ou incompetência, que resultadosfinais poderão esperar-se de uma batalha, ou daoperação cinematográfica? Foi graças a Osvaldo105


106Massaini e a Carlos Szili, que se reuniu uma equipeselecionada entre os maiores, com um elenco degente nova, planos e recursos, homens e material,tudo a funcionar, perfeitamente. Daí a surpresacom que ambos os produtores surgiram pelaqualidade da forma e se fizeram pelo significadode seu conteúdo e se tais planos consagraram osresultados da campanha, por que não prosseguirpelos rumos dessa tática, por que não aproveitaros ensinamentos de tal estratégia? Quanto aomais, isto é, quanto aos ignorantes, os espertos,os aventureiros de todo gênero e nacionalidades,quanto a isso... ai dos vencidos!Um último louvor, nessa película tão cheia delouvores: à fotografia de Rudolf Icsey (nuncaSão Paulo esteve tão bem fotografado, nuncaos noturnos paulistanos se cantaram com tantapoesia); à montagem e edição de Lucio Braun,digno discípulo de Oswald Hafenrichter; aolaboratório da Rex Filme, a se ultrapassar notratamento de cada película que se lhe confia;à atuação do elenco escolhido, num padrãointerpretativo da melhor classe (como AugustoMachado de Campos e Francisco Negrão estãodistantes das baboseiras da televisão, onde otalento de ambos quase sempre se perde irremediavelmente!);ao som tão bem moduladopela técnica de Boris Silitschanou; à esplendidacenografia de Pierino Massenzi. Um “bis” a todos,inclusive ao produtor e realizador de “ ADoutora é muito Viva”.


Doze Homens e Uma Sentença(Twelve Angry Men)de Sidney Lumet, EUA, 195724 janeiro 1958Ante certas circunstâncias objetivas, que estãoa tomar corpo continuamente, não sei se oadvento da era da televisão e o lugar que essamáquina infernal conquistou na preferênciadas massas, não terão sido, em última análise,muito favoráveis ao cinema norte-americano,bem em contradição com o que se afirmaraanteriormente, isto é, concorrentes perigososde Hollywood, capazes mesmo de destruir suahegemonia no domínio falaz do espetáculo,ou até desequilibrar a balança comercial norteamericana,onde, como é sabido, o cinema é umpeso respeitável. É verdade que, inicialmente,muitos estúdios se fecharam, ou passaram a produzirexclusivamente para as numerosas estaçõesde televisão. Isso obrigou Hollywood a pesquisarnovos campos de atração para o produto de suasindústrias, a inventar novas técnicas de exibiçãocinematográfica suscetíveis de enfrentar, comêxito, a concorrência da TV e a trazer de volta oespectador das salas escuras, que, num verdadeiroe alarmante êxodo, as houvera abandonado,em benefício do espetáculo gratuito desfrutadono conforto e na tranqüilidade doméstica. Semdúvida, engenhosas e importantes técnicas secriaram: as telas panorâmicas, o cinemascope,107


108o som estereofônico , quase a terceira dimensãocinematográfica. Mas, nada disso teve grandeimportância para o conteúdo do Cinema, muitoembora tudo isso provocasse uma transformaçãoquase completa no espetáculo cinematográficotradicional. O que realmente importou para ocinema norte-americano, foi a possibilidade dese renovarem os seus quadros, com a entrada demuita gente moça, até então a militar na televisão,onde iniciara sua carreira e adquirira umaexperiência que o cinema super industrializadode Hollywood seria incapaz de proporcionar. Umageração nova, decidida, experimentada, acostumadaa trabalhar com pouco e rapidamentesurgiria assim nos estúdios, toda ela vinda da TV edisposta a aplicar no Cinema as lições aprendidasà frente e por detrás das câmaras de transmissão.Há agora em Hollywood uma porção desses jovensa movimentar os estúdios cinematográficos,ou como cenaristas, ou como rea lizadores: StanleyKubrick, Frankenheimer, Ritt, Paddy Chayefsky,Delbert Mann e mais alguns são os trânsfugasda TV, ora a adquirir certa nomeada mesmo porentre os “velhos” do Cinema.Com “Doze Homens e uma Sentença”, apareceem Hollywood, mais um desses técnicos da televisão:Sidney Lumet, em sua primeira película, aele confiada por Henry Fonda e Reginald Rose,aquele intérprete principal também, este cenaristae autor igualmente da peça que, de início, levaraaos palcos da TV norte-americana. E logo de saída,


ea liza Sidney Lumet algo muito ambicionado pormuitos cineastas consagrados em Hollywood: aconcentração do tema, a sobriedade dramática, ocenário exíguo, onde a câmara mal pode mover-see onde, apesar disso, deve ser contada uma históriacinematográfica. Bem poucos conseguiramresultados satisfatórios e de todos os “grandes”vou citar apenas um – William Wyler com a suaadmirável “Detective Story”, aqui exibida sob o títulode “Chaga de Fogo”. Toda a ação de se passana sala de um distrito policial, por onde desfilam,nas 24 horas de um plantão, as personagens díspares,mas participantes de dramas de uma grandecidade. Nesse ambiente restrito, Wyler analisa,um por um, os representantes da fauna das ruase, não satisfeito com isso, examina também oscaracteres dos policiais em serviço, os inspetores,os delegados, os seus prepostos de plantão, comose fora uma coleção de tipos humanos, cada qualcom uma função, a passar ante os olhos do espectadorpara estudo e classificação.Sidney Lumet se propôs, senão o mesmo tema,pelo menos a mesma técnica narrativa, queReginald Rose adotara na televisão: 12 homensencerrados no aposento trancado aos jurados deum tribunal de justiça, devem decidir a sorte, amorte ou a vida de um menino de 18 anos, supostoassassino de seu próprio pai. A sentença desses12 homens deveria ser unânime, 12 a 0, culpadoou inocente, conforma manda a lei norte-americana.Mas, entre eles, um houve, considerando109


110inocente o menino, pelos demais já de antemãocondenado à cadeira elétrica. Em torno dessavoz discordante – “há sempre alguém para atrapalhare estragar a festa”, diz a certa altura umapersonagem num diálogo – gira toda a película,sem que seus atores e o drama de consciênciaque passam então a viver ultrapassem as quatroparedes da sala onde se proferem veredictos, deonde se manda um homem para a luz do sol, oupara as trevas da morte. O tema da película é aprópria instituição do Júri, a função desse microorganismo sociológico numa democracia, infalívelem tese, mas sujeito, como obra humana que é, aerros e irreparáveis injustiças. A Reginald Rose e aSidney Lumet não interessa a vida privada de cadaum dos homens reunidos acidentalmente, parajulgar um réu. Não interessa também a existênciapregressa do acusado, nem as circunstânciaspor que teria assassinado o próprio pai. O que éimportante na fita é apenas o seu realismo críticoe tal tese foi, inegavelmente, exposta com umasóbria e austera eloqüência.Sidney Lumet resolveu com inteligência a questãodo espaço. Sua narrativa se faz com tal força eexpressão dramática, que a questão do espaçose torna secundária, pois é o próprio espectadorquem, a certa altura do drama, passa a decidir ea prolatar a sentença. E isso para Lumet e parao próprio espectador é o que importa. Por umjogo de planos próximos, aproveitando-se dosmínimos movimentos de seus atores, de suas rea-


ções fisionômicas e de sua câmara, Sidney Lumetdesenvolve a sua dialética. Os menores incidentesda ação são utilizados em benefício dessa eloqüência.A ida de uma das personagens ao “reservado”é para esse diretor uma figura de retóricaque ele aplica à discussão, com isso quebrando,paradoxalmente, a tensão emocional criada nosdebates, nos quais homens, que nem de nome seconhecem, decidem a sorte de um terceiro que,esse sim, eles pensam conhecer suficientemente.Mas, é possível que a verdade nunca venha a serdesvendada integralmente. Entretanto, a dúvidaválida deve ser posta a favor do réu. Esse princípiojurídico foi o espírito triunfante de uma discussãoem que o espaço não importou, só o tempo valeu.111Entre Deus e o Pecado (Elmer Gentry)de Richard Brooks, EUA, 196003 dezembro 1959Sinclair Lewis, na literatura moderna dos EstadosUnidos e na era contemporânea de sua sociedade,é uma espécie de Zola ou Balzac (mais Balzacdo que Zola), com a cunha de sua crítica psicológicae social a penetrar fundamente pelas camadasburguesas, usos e costumes do homem americanodo norte, tomando a comédia humana,ou o drama das classes médias como elementode algo maior: a tragédia universal do Homem,


112simplesmente. Isso foi muito bem compreendidopelo diretor quando se propôs levar à tela o temaadmirável de “Elmer Gentry”, resolução aliáscompreensível em Richard Brooks, jornalista deprofissão antes de se tornar cineasta, atividadea influir muitíssimo em sua carreira posterior nocinema, na realização de algumas películas que,em verdade, se constituí ram em grandes reportagens,em candentes documentos sociológicos:“Deadline USA”, “Blackboard Jungle”, “Somethingof Value” e esta excelente “Elmer Gentry”.Pois, “Entre Deus e o Pecado” precisaria de umalonga e pormenorizada análise nesta minha colunade crítica, infelizmente impraticável, dada acrise do espaço com que lutam todas as empresasjornalísticas no dias atuais. Tenho pois que melimitar a uma panorâmica menos detida sobreo grande painel desdobrado por Richard Brooksna tela enorme, em que através de enérgicase precisas pinceladas expõe o grande tema deSinclair Lewis, numa interpretação excepcionalde seus atores, incansavelmente trabalhados poresse diretor de grande fôlego e pulso tão firme.Mas, além dessa contribuição dramática de BurtLancaster, Jean Simmons, Shirley Jones, ArthurKennedy e de todos os coadjuvantes, há que seadmirar a notável contribuição técnica da equipereunida por Brooks, desde seu iluminador atéo montador, este num trabalho preciso, quasematemático e de ritmo a medir-se pela própriadinâmica dramática dos diálogos.


Eis uma película digna de ser vista muitas vezes,tal a sua riqueza, em cada setor de criação, impossívelde apreciar-se numa única visão.A Esperança é Eternade Marcos Marguliés, Brasil, 195428 agosto 1957Essa peça de Marguliés teve uma carreira cheiade êxitos. Compareceu ao Festival de Punta delEste de 1955, ali quase conquistando o maior prêmiointernacional do certame. Laureou-se com o“Saci” de 1955, a maior recompensa destinadaao cinema brasileiro, promovida pelo “O Estadode S. Paulo”; conquistou uma Palma no Festivalde Berlim, na categoria de películas sobre arte.Tantas recompensas vieram apenas coroar osesforços de quem dedicou toda a sua atividadeintelectual e profissional ao cinema, ao cinemabrasileiro notadamente.Pois, “A Esperança é Eterna” passou com a melhoracolhida do público. E isso me permite agoraalguns comentários em torno dessa peça e deseu caráter de “película sobre arte”. Se bem melembro, é esse o terceiro documentário sobre arteque Marguliés realiza em São Paulo. Nos dois primeiros– “Os Tiranos”, baseado num quadro deAntoine Caron, e “O Descobrimento do Brasil”,segundo a iconografia antiga e a pintura histórica113


114relativa a este país – não contava esse documentaristapaciente com nenhum recurso técnico, quelhe facilitasse a realização cinematográfica nesseramo tão áspero do cinema documentário contemporâneo.Já com “A Esperança é Eterna”, não.Não só pode usar na execução da película, na análiseda obra de Segall, um equipamento própriopara a montagem de uma “fita sobre arte”, comoaté música expressamente composta para grifaras imagens pôde ser aplicada à sua fita. A esseselementos positivos se deve, em grande parte, aeliminação de todos os defeitos notados nos doisdocumentários anteriores. Além disso, Marguliésevoluiu muitíssimo entre a execução daquelaspeças e a de “A Esperança é Eterna”. Sua presençanas aventuras do cinema brasileiro, vividas na“Maristela” ou na “Multifilmes”, seus trabalhos eestudos que jamais abandonou, a experiência queadquiriu durante seu estágio naqueles estúdios,lhe valeram, certamente, a segurança que a suarealização, agora re-exibida, está a mostrar emcada metro de película projetada. É essa firmezaque se nota logo ao apagar das luzes. Firmezana concepção do argumento e na do roteiro. Firmezano traçado da linha dramática da película.Firmeza na seleção das obras de Segall. Firmezana sua enquadração e no transpor a gama cromáticadas peças fotografadas para a película dobranco e preto. Firmeza, finalmente, no jogo dosplanos, na sua duração e no seu rendimento namontagem. Não há hesitação nesse trabalho tão


sutil, que é o de compor uma continuidade e delhe insuflar aquele sopro vital interior que é oritmo de uma obra cinematográfica.Sou talvez um tanto suspeito para comentaruma fita sobre arte. Nessas peças, reconheço umenorme valor didático, sem dúvida, mas escassaimportância cinematográfica. Para mim, há semprealgo de artificial, de superficial nessa ânsia docineasta de querer dinamizar o que, por natureza,é estático. A pintura, por exemplo, ou o desenho.Muitos, entretanto, asseveram que mesmo napintura ou no desenho “há movimento”. E há,realmente, mas esse movimento é incompleto,há apenas uma fração de movimento. E é essaparcela que vai servir, mais tarde, ao sabor dascircunstâncias, de ponto de partida para a obrade um cineasta, cuja maior ambição nada maisserá, senão a de procurar completar o movimento,apenas traçado numa fração fixada na mentee na tela do pintor, ou no papel do desenhista.Quando, por exemplo, em “Moulin Rouge”, deJohn Huston, se pretendeu fazer a pintura e odesenho de Toulouse-Lautrec dançarem aquele”can-can” nas telas de todo o mundo, houve detudo ali: prodígios de habilidade, de paciên cia ede montagem, mas CINEMA só existiu em dosesmuito pequenas, porque não é possível dinamizaro que, por natureza, é estático. No caso próprio de“A Esperança é Eterna”, em circunstâncias idênticas,na seqüência em que se focaliza a obra deSegall, sofrendo já a influência do meio, tomando115


116o samba e o sensualismo da terra tropical para oconteúdo de sua pintura, Marcos Marguliés tevea virtude e a coragem de não cair na tentaçãodo virtuosismo, e não pretende fazer a obra deSegall dançar o samba e o batuque. Ficou apenasna sugestão do sensualismo, emergido através decortes secos, de planos de curta duração – quaseque se poderia afirmar em ritmo de samba....E talseqüência ganhou muito em dramaticidade e atéem movimento interior, o que é o principal.A “A Esperança é Eterna” seria cabível talvezuma restrição: quando as “falas” da pista sonorapretendem explicar as situações do argumento.Principalmente quando essas falas são ditaspor vozes femininas. Aí reside, na pluralidadedos locutores e no excesso dos textos, o pontomais fraco de “A Esperança é Eterna”. O queem parte se justifica por se tratar de obra didática,destinada à explicação da arte às camadasmais populares. Daí também a razão possível deaquele grande letreiro inicial ser também falado,quando deveria apenas destinar-se a ser lido.E diga-se finalmente que Marguliés teve doisgrandes colaboradores: Bernardo Segall e GeorgeTamarski, o primeiro autor da música e o últimoresponsável pela fotografia. Não se poderia desejar partitura melhor, mais dramática e maisexa ta, posta ao serviço da imagem, pronta parasustentá-la no momento oportuno, para deixá-laem silêncio, quando também este se torna paradoxalmenteuma expressão sonora. E a fotografia


de Tamarski, em sua tarefa dificílima de mostrarno branco e preto os matizes de Segall, cumpriuserenamente sua missão.A Fortaleza Escondida(Kakushi-toride no san-akunin)de Akira Kurosawa, Japão, 195813 novembro 1959“A Fortaleza Escondida”, de Akira Kurosawa, ogrande realizador de “Rashomon” e de tantasoutras películas do nunca assaz louvado cinemajaponês. Uma decepção, entretanto, me aguardava.Eu não veria ali uma fita que a inteligência ea sensibilidade de Kurosawa costumam realizar,aquela sobriedade dramática, aquela construçãocinematográfica austera, aquele “cinema” enfimde Akira Kurosawa que o incluiu no rol dos maiorescineastas contemporâneos. Em “A FortalezaEscondida” não há um Kurosawa autêntico, capazde transpor para o “seu” cinema um romancede Dostoievski, ou uma tragédia de Shakespeare,narrando essas histórias de outras épocas ede outras terras dentro da mais rígida tradiçãodramática japonesa; não há um Kurosawa trazendopara as telas brancas do século XX a sagaeterna dos samurais, com toda a autenticidadedas lendas desses guerreiros, mas um Kurosawadisplicente, vacilante, valendo-se de um cinema117


118sem inspiração, de um cinema de imitação (umaespécie de “western” japonês), a transcorrer emépoca indefinida, com guerreiros utilizando-sede armas de fogo, até uma “cow-girl”, vestidade “short”, a participar da aventura, da fuga porentre desfiladeiros e dos “rodeios”, no “festivaldo fogo”...Não, positivamente, não é esse o AkiraKurosawa que eu esperava admirar nessa fita,cujo título já era a esperança de um espetáculodigno dele e do cinema japonês. E nem algumasseqüências otimamente conduzidas, o “festivaldo fogo”, a revolta de prisioneiros nos subterrâneosde um castelo feudal, do duelo entre doisguerreiros, trariam à película o interesse que onome de seu realizador de pronto despertara.Ao lado desses momentos, de excelente cinemasem dúvida, há o resto, seqüências arrastadas eepisódios insossos, por vezes animados por umadupla de atores cômicos, sem outro fim senão ode vulgarizar ainda mais essa peça de “pastiche”,cujas intenções não sei bem como classificar. Masa esse cinema de imitação, prefiro aquele denobre inspiração, o cinema dos “Sete Samurais”,o de “Trono Manchado de Sangue”, o cinemadesse homem, só ele, no cinema japonês, capazde sentir, com toda a força de sua cultura e desua inteligência, a beleza e o significado de umapeça de Shakespeare, o terrível sentido de um romancede Gorki, ou de Dostoievski, a maravilhosapoesia das lendas dos samurais, a nobreza austeradas tradições milenares do povo nipônico.


Freud – Além da Alma (Freud)de John Huston, EUA, 196213 junho 1964Sou grande admirador de John Huston e gostoda maioria de seus filmes. Huston no cinemanorte-americano teve que abrir seu caminho agolpes de inteligência, até que os produtores reconhecessemnele o cineasta inquieto, o homemde cultura e aquele espírito criador legítimo, queo anima e o impele a realizar no cinema obra originale pesquisa real. Há ainda poucos dias pôdeo espectador paulistano rever uma de suas obrasmelhores – “O Tesouro de Sierra Madre” – que otempo conservou intacta em toda a sua essênciacinematográfica mais pura. E há apenas poucassemanas passadas, tivemos em São Paulo aqueleexcelente “A Lista de Adrian Messenger”, obrade sátira e humor, de grande penetração críticae admirável forma de revestimento estilístico.Pois, se não conhecesse tão bem John Huston,se não soubesse que seu espírito continua irrequieto,sempre inquiridor e insatisfeito, eu diriaque este “Freud – Além da Alma”, é uma obrade decadência. Há no filme algo que não sei bemo que seja, que me constrange, não me satisfaze não me convence, como se eu próprio fizesseparte daquele grupo de médicos que no filme,embora admirasse Freud, não se satisfazia, nemse convencia com os primeiros resultados obtidospor esse admirável cientista, na sua incansável119


120e perambulante pesquisa nos labirintos e confinsda alma humana. Já muitas personalidadesilustres da Sociedade Paulista de Psicoterapia ePsicologia de Grupo se manifestaram a respeitodesse filme, todas elas pesando os muitos méritosna obra de Huston, mas reconhecendo no filme“algo incompleto, nem sempre rigorosamentefiel aos fatos históricos”, como se manifestou oprof. Darci Mendonça Uchôa, ou como afirma oprof. Henrique Schloman: “o filme não pôde evitarcertas deformações e incorreções históricas,ainda que os aspectos da vida de Freud sejambem apanhados e tenham intensidade dramática,ao mostrar esse grande gênio lutando, pelaverdade, isolado do mundo. Mas, quando a fitatenta divulgar e explicar algumas concepções dapsicanálise (regressão, transferência e sexualidadeinfantil), não consegue convencer”.De fato, talvez estejam esses argumentos, quenão convencem, e esse algo que não satisfaz,nas seqüên cias em que Huston tenta movimentaro estranho e complexo mecanismo interior dossonhos, em função de uma realidade, ou de umestímulo exterior, a meu ver a parte mais fraca dofilme, quando, em verdade, deveria constituir-senas seqüências mais importantes e que melhorpoderiam explicar as teorias primeiras de Freud.Isso quer dizer que Huston esbanjou exatamenteaquele fabuloso material onírico, de símbolos,alegorias, sugestões e alucinações de toda sorte,que leva o cinema, quando bem inspirado,


a níveis dramáticos, estéticos e plásticos quenenhuma outra arte consegue atingir.Glória Feita de Sangue (Paths of Glory)de Stanley Kubrick, EUA, 195717 outubro 1958Somente 23 anos após haver sido adaptada para oteatro, é que os produtores do cinema se animarama trazer para a tela a obra de Humphrey Cobb,“Paths of Glory”, que na versão cinematográfica,tomou o nome de “Glória Feita de Sangue”. Porser talvez matéria capaz de provocar rea çõesperigosas e apaixonadas polêmicas, tal fato explicacertamente a hesitação dos produtores emse apoderar do livro de Humphrey Cobb, paradestiná-lo à exibição cinematográfica internacional.Foi preciso que alguns independentes se munissemde coragem, os componentes da “Bryna”(incluídos, com essa fita, ao lado dos “revoltadosde Hollywood”), James Harris, Stanley Kubrick eKirk Douglas, para que hoje contasse o cinemacom uma de suas obras mais importantes e quemais cruamente aborda um tema perigosíssimo,sempre visto com a maldição do mau olhado dospatrioteiros e daqueles para quem uma vida humanapouco vale em determinadas circunstâncias,provocadas pela alucinação coletiva de uma guerra.E embora Humphrey Cobb se valesse de documentaçãoautêntica, de fatos comprovadamente121


122válidos e indiscutíveis, a fita, que de sua obra seextraiu, levantou imediatamente uma onda deindignação em determinados países, França e Bélgicaprincipalmente, no território daquela naçãohavendo sido proibida “Glória Feita de Sangue”,no da Bélgica vaiada com grandes tumultos e emmuitas salas, e acerbamente comentada por várioscríticos de Bruxelas e de outros centros europeus.Entretanto, Humphrey Cobb aponta lealmente asfontes de onde tirou o material de seu livro: “LesCrimes des Conseils de Guerre”, de R. G. Reau,“Les Fusillés pour exemple”, de J. Galtier Boissière,“Les Dessous de la guerre revelés par les ComitésSecrets” e “Images Secrètes de la Guerre”, de PaulAllard. Eu mesmo me lembro de haver lido, hámuito tempo, numa revista francesa de combatee polêmica, “Le Crapuillot”, um tremendo libelode J. Galtier Boissière contra certos atos arbitráriospraticados pelos Conselhos de Guerra, durante acarnificina de 1914-1918, fartamente documentadopor fatos inegáveis e provas indiscutíveis.Evidentemente, a equipe da “Bryna”, James Harrise Stanley Kubrick particularmente, ao realizar “Pathsof Glory”, não limitou a denúncia dos odiososacontecimentos ali narrados ao âmbito do exércitofrancês, ou à pessoa de um ou dois militaresinescrupulosos, ávidos de glória a qualquer preço,mas generalizou o seu libelo e as suas acusações,fazendo-as mesmo alcançarem o próprio exércitonorte-americano, à semelhança do que fez, maisobjetivamente, Robert Aldrich, em sua película


“Attack” (“Morte sem Glória”), o que lhe valeunão apenas o mau olhado do Pentágono, senãotambém a oposição de muitos circuitos exibidoresnorte-americanos, temerosos das reações contráriasque o público de lá poderia manifestar porocasião do lançamento de “Attack ”. Assim, évisível a intenção dos realizadores de “Paths ofGlory”em estender o seu libelo a outros exércitos,principalmente quando, na seqüência do julgamentodos três soldados, acusados de covardiamediante um sorteio odioso, se adota, em plenoconselho de guerra francês, não o rito consagradopelas leis do processo penal da França, mas os usose as praxes do sistema criminal norte-americano:o promotor e o defensor andando de um ladopara outro, à frente dos jurados, tal como fariaum “district attorney ” (promotor público) emqualquer tribunal norte-americano...Em “Glória Feita de Sangue”, Stanley Kubrick tirariao maior partido de todos os setores da criaçãocinematográfica. Não fosse ele próprio um grandecriador, um homem que conhece profundamenteo Cinema, a direção, a montagem, a iluminação,havendo feito de tudo isso numa de suas primeirasfitas, aqui passada obscuramente sob o título de“A Morte Passou por Perto”. Em “Paths of Glory”cuidou com inteligência desses elementos, cujaharmonia e concatenação lógica e visual (aindaquando desprezam a própria cronologia da açãodramática e temática), fazem do cinema o meiode expressão mais representativo da idade con-123


124temporânea. Que se atente, em tal sentido, paraa cenografia e a iluminação de “Paths of Glory”,notadamente para as seqüências vividas no casteloonde o comando de um setor militar fizera sedede seu Q.G. Todos os cenários dessas seqüências,alguns decorados com quadros e tapeçarias daRenascença, são cruamente iluminados, de formaa se opor às personagens, que em tais ambientesse movimentam, vistos em recortes de sombraviolenta, ou delineados pela luz contrastada, provindaatravés das altas janelas. O efeito obtido éde grande força expressionista, de patética beleza,tudo a grifar-se pelo eco retumbante das falasperdidas nas salas imensas, onde se consumavaminconfessáveis infâmias dos homens...Uma fita excepcional, digna de figurar ao ladodos grandes momentos do cinema, das clássicaspelículas de guerra, de “Sem Novidade noFront”, de Lewis Millestone, até “Os Deuses Vencidos”,de Edward Dmyctrick, de “Um Passeio aoSol”, também de Lewis Millestone, até “Mortesem Glória”, de Robert Aldrich.A Grande Feirade Roberto Pires, Brasil, 196108 fevereiro 1963O que menos contou em “A Grande Feira” foi oaspecto puramente documentário da Água dos


Meninos, as entranhas da velha capital baiana,cuja topografia, na parte baixa de Salvador,confere essa feição visceral invocada por umadas personagens, a certa altura dos diálogos. Emvez de remexer esse caldo fertilíssimo de cultura,onde o homem e a paisagem, o drama e o cenário,se integram intimamente, preferiu Roberto Piresentrosar suas personagens numa intriga que abarcassea cidade toda, de alto a baixo, fazendo-ode modo superficial, contudo. Sua crônica esbarraapenas de leve no ambiente do escritório de umadvogado, nas cortinas do “boudoir” e do quartode dormir de “Eli” (péssima e vulgaríssima cenografia,em que aparece, às vezes, um mordomoem mangas de camisa, desajeitado e desalinhado),num automóvel de luxo antigo, numa varandade casa de rico, onde esse automóvel vemestacionar, já noite, depois das exaltações eróticasde “Eli” e do “Sueco” numa lancha sem direção,ali à entrada de Salvador. Nisso se resume a classeabastada do “melting pot” baiano. Quanto àÁgua dos Meninos, o cabaré de Zazá, um refúgiode mendigos, uma tenda de jogo de bicho comalgumas mesas toscas para servir-se uma cervejamais ou menos gelada aos usuários e algunsaspec tos dos feirantes nesse mercado sujo e beloda baixada de Salvador, foram o bastante, segundoRoberto Pires, para o desenvolvimento de umahistória rala que o Cuíca de Santo Amaro berraao pé do Elevador Lacerda. E o resíduo social detudo isso destila-se de alguns metros de película125


126em que se impressionaram as cenas rápidas docomício de um líder sindical e em que se gravoua dialogação desajeitada entre as várias personagens,ao correr de todo o filme. Personagensum tanto constrangidas (com exceção de LuisaMaranhão, “Maria”, de Helena Ignês, “Eli”, e deGeraldo Del Rey, “Ronny”, mais seguros), sob aluz dos refletores, e sentindo diante de si o olhoimplacável da câmara de Valdemar Lima.De fato, só Luisa Maranhão, em quase todo o seudesempenho; Helena Ignês e Geraldo Del Rey emmuitos dos lances que interpretam se mostrammais à vontade sob a direção de Roberto Pires.Os demais, vacilantes e redundantes, principalmenteAntonio Luís Sampaio (Chico Diabo), quemais representa com as mãos em gestos desordenados,do que com a sensibilidade de que évisivelmente dotado. É que faltou a Roberto Piresa maturidade do cinema que só a experiência eaprendizado mais profundo podem conferir, nacontenção do ator e no rendimento dramáticoque cada qual pode dar.Quanto à fotografia de Hélio Silva e à cenografiade Teixeira, uma equivale à outra em vulgaridadee falta de função no drama. O primeiro poucoconstruiu com suas luzes, nos interiores do filme,e de nada se valeu do riquíssimo manancial plásticoda Água dos Meninos.Que me perdoem todos a frieza de meu comentário.Prefiro magoá-los a iludi-los com o falsoincentivo das exaltações pouco construtivas.


Louvo-lhes as intenções e admiro o entusiasmoda equipe inteira, de Rex Schindler e Braga Neto,a Walter da Silveira e Riachão, dos produtores aosmodestos atores coadjuvantes. E tenho certezade que “A Grande Feira”, com todos os seus defeitos,permanecerá como um ponto de partida,nunca como um símbolo de malogro, na históriacontemporânea do cinema brasileiro.O Grande Golpe (The Killing)de Stanley Kubrick, EUA, 195610 maio 1957Duas fitas de alto valor cinematográfico, ambasdistribuídas pela “United Artists”, passaram praticamentedesapercebidas. A primeira é “A Mortenum Beijo” (Kiss me Deadly), de Robert Aldrich.A segunda é essa “O Grande Golpe”, de StanleyKubrick. A respeito de “ A Morte num Beijo” foraeu alertado por meu amigo Almeida Salles, velhocompanheiro de muitas campanhas em prol dacultura cinematográfica do Brasil.Nada sabia a respeito de Stanley Kubrick antesdessa sua fita que acabo de ver. E segundoin for mes que estou lendo agora nas “Indicaçõesda Semana” de um matutino paulistano,Stanley Kubrick é um dos diretores mais jovensde Hollywood (29 anos), que as duas primeirasfitas de sua carreira – “Fear and Desire” e “Viola-127


128ted” – conferiram-lhe grande renome nos meiosintelectuais, graças a seu estilo de cineasta devanguarda. Esse “O Grande Golpe” foi realmentepara mim uma surpresa.Sem qualquer preparação, eis-me abruptamenteante uma película narrada com um rigor quasematemático (um locutor, em certos trechos, pontuaa história com dados cronométricos), anteaquele estilo exatamente exigido pelo gêneropolicial no cinema – nervoso, criando expectativaa cada momento, incluindo o espectador no jogoe no problema das personagens, aproveitando-se,com um senso preciso de oportunidade dos movimentosda câmara, da sua maleabilidade, dosrecursos da montagem, fazendo mesmo chegarsua precisão narrativa à dupla descrição de umaseqüência, para melhor encaixá-la na continuidadetemática. Nesse sentido, é típica (e muitíssimooriginal) a seqüência em que “Maurice” provocauma rixa no bar do hipódromo: da primeira vez,a seqüência se narra por inteiro; da segunda,repetem-se seus lances principais para ligá-losconvenientemente ao comportamento anteriorde certa personagem (“Johnny”), vivido meiahora antes. Só depois dessa repetição preliminar,inesperada, mas muito lógica, é que se inicia novaseqüência, em prosseguimento da anterior, coma entrada de “Johnny” no departamento decontabilidade do hipódromo e com o assalto aseus cofres. Só esse pequeno trecho de antologiae de força narrativa puramente cinematográfica,


demonstra plenamente a capacidade e a fibranervosa do estilo vivíssimo de Stanley Kubrick.Há mais, no entanto. O massacre compacto dequase todas as personagens, no apartamentode “Randy”, com a câmara a passar por cimados cadáveres, numa longa tomada subjetivae sem cortes; o modo de dispor esses corpos naenquadração da cena, naquelas atitudes grotescasque se fixam no último gesto, de derradeiroestertor, ao esvair-se a vida; a morte de “Sherry”e de “George”, o silêncio que se segue a essemomento de violência, apenas perturbado pelavoz esganiçada de um papagaio; a expectativae as reações fisionômicas de toda a quadrilha, aseguir pelo rádio a descrição do assalto à caixa dohipódromo, momentos antes de serem eles própriosassaltados também; as cenas tomadas emplena corrida dos cavalos e muitos outros trechosdessa fita singular, colocam sobre os ombros deStanley Kubrick as esperanças daqueles que almejampara o cinema dos Estados Unidos um quadromais real e mais humano, a ser colocado bem distantedo falso otimismo, da riqueza fictícia, comque se distorce hoje a realidade norte-americana,por artes e gramática dos seus fazedores de fitas.Creio que, sem contraste violento, pode pôr-seStanley Kubrick ao lado dos Richard Brooks, dosRoberto Aldrich, dos Jack Webb e de outros quehoje melhor representam a ala moça e resolutanos quadros de Hollywood.129


O Homem do Braço de Ouro(The Man with the Golden Arm)de Otto Preminger, EUA, 195514 agosto 1957130Há muito tempo que Otto Preminger se tornou oprodutor de suas próprias fitas, já quando, com“Laura”, iniciava sua carreira cinematográfica,considerando ele essa película como a primeirade sua cinegrafia, conforme declarações suas auma revista francesa. E de todo seu currículo, sóem algumas fitas deixou de ser o produtor delas,neste posto figurando Ernst Lubitsch, WilliamPerlberg, Howard Hughes e poucos mais. Issoquer dizer que a acumulação desses dois cargosna hierarquia cinematográfica, defere-lhe inteiraliberdade de execução e criação, faculdade nemtodos a possuí-la, como é notório em Hollywood.Isso explica também a razão por que suas fitastêm aquela forma trabalhada, aquela direçãode atores levada às últimas conseqüências, suacâmara e suas personagens sempre em movimentoconstante.“O Homem do Braço de Ouro” é um exemplodessa atividade artesanal que Preminger incuteem suas peças. Há nessa película um extremocapricho, posto em todos os setores de criação,desde a técnica de iluminação de seus cenáriosaté no da música (por sinal que trabalhada umtanto em excesso, segundo me pareceu). A câmarararamente se imobiliza, na captação de um


plano; percorre os ambientes, passa por entre osatores e os objetos componentes do quadro, sobee desce escadas, perambula pela rua. Quase ao finalda fita, em sua última seqüência, quando umadas personagens se atira de um quarto andar, acâmara quase que cai também, ao lado do corpolargado no ar. Mas, se não faz isso propriamente,não perde, porém, a oportunidade de acompanharum dos atores, que assistiu àquele ato dedesespero, na sua louca descida por uma escadade incêndio, de quatro em quatro degraus, atéo rés-do-chão, quando a tomada termina, semcorte, num plano próximo das duas personagens,uma estendida na sarjeta, a outra de joelhos aseu lado. Essa técnica dinâmica se desenvolvesobretudo do meio da película para o fim, comose Otto Preminger quisesse compensar o desenvolverarrastado das primeiras seqüências, ritmolento, funcional evidentemente, ao expor todosos problemas psicopatológicos do tema e de suaspersonagens. Com essa forma, apurada por umpaciente trabalho, Otto Preminger é tido hoje,em Hollywood, por seus técnicos, como um dosdiretores mais difíceis de contentar, sempre aoptar pelas soluções mais complexas, num movimentoou num ângulo de câmara, na iluminaçãode um cenário, no gesto ou na expressão de umintérprete, por mais secundário que seja na estruturanarrativa. Ator excelente ele próprio, porisso costumam dizer, nos estúdios, que Premingeré sempre uma figura avulsa no elenco de suas131


132películas. E “O Homem do Braço de Ouro” nessesetor, ainda é um exemplo eloqüente. Orientado,de certo, por algum conselheiro científico consciencioso,não descuida de nenhum pormenorno decorrer desse tema, perigoso entre todos. Emuitas vezes teve de contornar certas situaçõesdo enredo, presas por um fio entre o melodramae o ridículo, de um lado, entre o grotesco e odramalhão de outro.De todas as situações, entretanto, saiu-se coma maior sobriedade. Mesmo naquelas em quedescreve os primeiros sintomas do entorpecenteagindo nas criaturas, aquela sensação de forçae bem-estar, a loquacidade do início, o desaparecimentoa seguir dessa euforia, o enfraquecimentodas funções intelectuais, as grandes crises,a fadiga, a exaustão, as insônias, as coceiras e oformigamento insuportável e por fim o emagrecimentodo paciente, seus olhos encovados, suaspupilas dilatadas, queda da pressão sanguínea,tremores e calafrios indizíveis.Sua peça, de ambiente de vício, jogo e entorpecentes,sufocante pela sua dramaticidade eseu rea lismo, é também uma galeria de tipos.“Frankie”, “Zosh”, “Sparrow”, “Vi”, “Louie” eaquele repulsivo promotor de batotas, de nomearrevesado, com seu charuto sempre a mastigarsenum canto da boca, a acender fósforos nosdentes, são de fato alguns dos participantesdaquela ampla tragédia, que La Fontaine diziater no palco o universo. Algumas seqüências


em que estas personagens evoluem, são dignasde registro: o jogo a varar a madrugada, a criseaguda de um toxicômano na cadeia, o acesso defúria de “Frankie” no apartamento de “Louie”,a morte deste na escada, o suicídio de “Zosh”quando vê descoberta sua odiosa simulação, etc.E, evidentemente, as concessões habituais aoscódigos da produção, põem as suas restrições aessa peça, apesar disso digna de ser vista, digna,sobretudo, por ser uma realização de OttoPreminger, um grande artesão e um excelentecontador de histórias, sem dúvida.O Homem Que Matou o Facínora(The Man Who Shot Liberty Valance)de John Ford, EUA, 196213311 maio 1962John Ford, embora haja manejado argumentose temas os mais disparatados ao longo de suaprofícua carreira no cinema, sempre demonstrouuma particular predileção pelas históriasdo Oeste norte-americano, pelas aventuras dospioneiros, pelos costumes agrestes do Wyoming,ou pelos “casos” vividos nas áridas planícies doTexas. Sua obra clássica nesse gênero, – “NoTempo das Dili gências” ainda hoje é lembrada,toda vez que se fala em “western” e muitos dosrealizadores que se aventuraram pelos caminhos


134do oeste não se constrangeram em tomar pormodelo o “Stagecoach” do velho Ford. Sou donúmero de seus antigos e persistentes admiradores.Exulto-me quando reparo com um JohnFord legítimo, a demonstrar todo o vigor desua inteligência e de sua imaginação (“O Delator”,“No Tempo das Diligências”, “Depois doVendaval” etc); entristeço-me instintivamentequando em obras menores desconheço JohnFord, ao manifestar cansaço de espírito e embotamentode sua sensi bilidade – e “Um Crimepor Dia” é exatamente um exemplo disso, como seu humor por vezes espesso, bem distante dosal da deliciosa ironia com que o velho mestresalpicara as seqüências de algumas de suas fitas,notadamente a sua “Depois do Vendaval”, umatranqüila reminiscência da paisagem e dos costumesde sua Irlanda natal.Nesta “O Homem que Matou o Facínora” reencontroo velho cineasta dos seus melhores tempos.Reen contro-o em companhia de seus atorespreferidos e é comovente revê-los todos – JohnWayne, Andy Devine, John Carradine (faltaram aochamado Thomas Mitchell e Ward Bond, já levadospela morte, ou Maureen O’Hara e Claire Trevor,não sei por que ausentes desse elenco sentimental,a tornar o tempo de projeção de “O Homemque Matou o Facínora” num “tempo” de saudadetípico das emoções de John Ford...).Aí está, realmente, o velho Ford em plena forma,em pleno hausto de sua imaginação criadora,


capaz de transformar o gesto casual de umator numa atitude de boa-fé, ou num símbolopremonitório de conflitos próximos. John Ford,mais talvez do que qualquer outro cineasta sabedosar seus efeitos dramáticos ou cômicos, sabecomo dar-lhes seqüência ou transforma-los emconseqüências. E duas cenas rápidas desse delicioso“O Homem que Matou Liberty Valence” sãouma comprovante desse controle psicológico tãocaracterístico do estilo do criador de “No Tempodas Diligências” já nessa fita tão notoriamenteengastado: a cena da aula de alfabetização, emque o pequeno mexicano levanta o braço e doisdedos, no seu pedido de “ir lá fora” e o trocadilhodramático proferido por “Peabody”, ao sertorturado por “Liberty Valence”, em que o nomedesse facínora se presta ao jogo de pala vras e defrases – “Liberdade”, “tomar-se de liberdade”e “liberdade de imprensa”... Nestas duas cenas,tiradas a esmo, ao longo da narrativa dramáticade John Ford, está o seu espírito, terno e jovem,sarcástico e irônico, tudo dependendo das circunstâncias.Sim, reencontro o velho Ford a usufruirde toda a sua juventude espiritual. É um prazerrevê-lo assim rejuvenescido, nessa fita que é umaaragem outonal por sobre o deserto espúriodesses jovens do “cinema novo”, parece que jánascidos cansados, exauridos e senis, sem haverparticipado de qualquer dos momentos generososque a vida costuma oferecer aos jovens.135


Lawrence da Arábia (Lawrence of Arábia)de David Lean, Inglaterra, 196207 novembro 1963136Já fui daqueles que encaravam o espetáculo cinematográficocomo uma praga daninha no campoda criação artística, por isso era preciso combatê-lopor todos os meios, para alcançar tal fim qualquerrecurso servindo. Não penso mais assim porquehoje tenho os pés presos à realidade do cinema,os anos vividos, dia a dia, em contato com suasgentes e coisas proporcionaram-me uma visãodireta e prática sobre a existência do cinema, seusmúltiplos e complexos aspectos foram para mimdados de experiências a trazer um conhecimentoobjetivo do fenômeno que mais implicaçõessociais, sociológicas e psicológicas provocam navida do homem contemporâneo. Porque o cinemahoje, como ontem, como arte e expressão humanade seu tempo, precisa do espetáculo, condicionaseao espetáculo, é, antes do mais, um espetáculo.Que seria do cinema sem a existência da indústriae do comércio, a usina e o distribuidor do espetáculo?Seria, evidentemente, uma arte a depender,por sua complexidade e por seu custo altíssimo, dosimples mecenato e os mecenas, com motivos desobra, se tornam, nesta nossa época turbulenta,cada vez mais raros...Hoje, pois, encaro o espetáculo cinematográficocomo uma necessidade e, quando bem realizado,sou dos primeiros a aplaudir e a usufruí-lo. Não


me envergonho absolutamente quando confessode público a fruição do prazer proporcionadopor um filme como “Spartacus”, pelas aventurasdo cinerama, ou pela beleza épica deste agora“Lawrence da Arábia”, um magnífico espetáculo,dos mais perfeitos em forma e conteúdo a quejá me foi dado assistir. Atinge-se neste filme deDavid Lean à perfeição da cor, à pureza, fidelidadee expressão do som, à beleza de composiçãofotográfica no amplo mural da tela panorâmica,tudo a deferir ao espetáculo do cinema contemporâneouma dignidade ainda não suspeitada,dimensões planas, sem dúvida, mas capazes deprovocar o “relevo” (sonoro e pictórico), essapedra filosofal que os alquimistas da técnica eda indústria do cinema tanto buscam, através deanos de perseverança nos laboratórios de pesquisasdeste nosso admirável mundo novo...Não conheço o livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”,em que se baseou David Lean para estruturarseu filme. Pouco sei a respeito da estranha figurado coronel Lawrence e de suas andanças no desertoe por entre os homens da Arábia. Em tornodesse homem misterioso constituiu-se uma lenda eerigiu-se um mito. Há até quem ponha em dúvidasua própria existência. De qualquer forma, DavidLean soube como figurar, soube como recortar ovulto e engastar o espírito de Lawrence no desertoescaldante de suas atividades, por entre a organizaçãotribal dos árabes, soube como contar, naimagem do cinema, a vida, ou melhor, a fábula137


desse homem fascinante. Há uma indizível beleza,uma épica narrativa na primeira metade do filme.E se depois decai um pouco o ritmo e o interessedessa narração, isso não impede que a obra conserveo seu atrativo inicial, de forma tanto quantode interpretação. Eis, pois, um espetáculo. E queesplendor de espetáculo!Longe dos Olhos (Perfect Strangers –Inglaterra, Vacation from Marriage – EUA)de Alexander Korda, Inglaterra, 194513 outubro 1946138É preliminarmente uma fita cem por cento britânica:no tema, na ação, na direção, na interpretação,a caracterizar-se, principalmente, por uma sobriedaderaramente sentida no cinema em geral, masmuito própria do cinema britânico.Há essa justa medida em cada momento que surgena magnífica realização de Alexander Korda .Até mesmo na descrição daqueles terríveis momentos,dos mais graves da história da Inglaterra– setembro de 1940 – tão próprios para o cinemacometer os seus habituais exageros, desdea ação dos que defendiam os céus de Londresaté os que resguardavam seu solo. Contudo, oheroísmo daqueles idos de 1940 é apresentadona fita de Alexander Korda de modo simplese comovente, em apenas algumas dezenas de


metros de película, em meia dúzia de quadros,feérica e intermitentemente iluminados peloclarão sinistro das bombas nazistas.Dentro desse ambiente de guerra – onde sesente a guerra e quase se não a vê – desenvolvesea história imaginada por Clemence Danee Anthony Pelissier, um tema humano, real,capri chosamente recortado no tecido grosso davida diária, a história de dois entes desajustados– iguais a tantos outros – que se uniram, não sesabe por que, e viveram, não se sabe como, umaexistência rotineira, na pasmaceira aborrecívelde um bairro populoso de Londres. Foi precisouma guerra, uma brusca separação daquelas duascriaturas inseparáveis e três anos de afastamentopara que elas se achassem a si próprias, paraque descobrissem um outro “eu” latente emsua personalidade, a se revelar vigorosamentenas agruras dos combates navais e nos horroresdos bombardeios aéreos. E o reencontro dessesdois temperamentos, primeiramente nas trevasde Londres e, depois, sob a luz crua do “bar daesquina”, permitiu a Alexander Korda, o grandecineasta húngaro, agora inglês “par droit deconquête”, a realização de cenas, prenhes de“humour” e de observação, dos mais finos queo cinema tem proporcionado.E sob essa diretriz bem traçada, há um perfeitoequilíbrio na interpretação, Robert Donat e DeborahKerr, Glynis Johns e Ann Todd.139


A Marca da Maldade (Touch of Evil)de Orson Welles, EUA, 195713 fevereiro 1959140Quando, há pouco tempo, foi possível rever-se,na Cinemateca Brasileira, a primeira fita de OrsonWelles, aquela sua admirável “Cidadão Kane”,com certo ceticismo eu entraria na sala do Museude Arte, no início da projeção da película lendáriae clássica. Temia uma decepção, ao assistir de novoà peça que admirara extasiado e cuja lembrançaeu receava ver destruída sob a perspectiva implacáveldo tempo decorrido. Mas, ao contrário,o tempo ao invés de aniquilar “Cidadão Kane”conferira-lhe outras dimensões, conservara intactatoda a sua força, sem abalar e sequer arranhar oarcabouço de sua solidíssima estrutura. Com essa“A Marca da Maldade” aconteceria o mesmo,idêntico ceticismo se faria de novo presente, agorajá em conseqüência de uma impressão contrária:o tempo não viria denunciar sinais evidentes edefinitivos da decadência do criador de “CidadãoKane”, depois de haver ele tentado, em muitosanos e por todos os meios, consolidar sua experiência inicial, em películas várias, algumas excepcionais,como “The Magnificent Ambersons” e“The Lady from Shanghai”, outras de resultadosdiscutíveis, como “The Stranger” e “ConfidentialReport”? “A Marca da Maldade” surgiria assimcom uma peça, que se espera com ansiedadee inquietação, entre a expectativa alternada e


para doxal da contemplação próxima de umaobra-prima, ou a visão irremediável de um desastrecompleto. Acontece ainda que Orson Welles,ele próprio, renegou em muitos pontos a própriaobra, segundo ele remanejada, sem a sua presençae aprovação nas salas de corte e de montagem,cuja entrada lhe fora interditada depois de findaa tomada de cena de “A Marca da Maldade”.Era, pois sob expectativa contraditória que eu iriaassistir a “Touch of Evil”. Que dizer agora, depoisdo estranho ainda um Orson Welles a ostentar, adesperdiçar até o seu talento enorme, a sua inteligênciavivíssima, o seu poder criador fecundíssimonesse “policial”, que em outras mãos seria umapeça sem importância, talvez medíocre, mas que,nas suas, atinge o mais alto nível da criação pura.Ao realizá-la, fá-lo-ia como um pródigo, gastandodesabridamente um patrimônio espiritual, decerto a lhe parecer inesgotável, sem poupançade suas reservas físicas e mentais. Em “Touch ofEvil” está o Orson Welles de “Cidadão Kane” e de“Soberba”, as duas fitas de sua mocidade, de possecompleta de seu espírito inovador incrível, emplena junção de seus métodos narrativos típicos,a ordem lógica a prescindir da ordem cronológica;a fluência livre dos acontecimentos, embora alterandoa continuidade temática, não prejudicandoa sua compreensão; a exposição prévia dos fatosposteriores auxiliando a explicação dos fatos anteriores,os cortes bruscos da ação de uma seqüênciaa fazer suceder a ação de outra seqüência, embora141


142sem ligação aparente, provocando espetáculoproporcionado por essa película admirável? Poisaí está a perspicácia do espectador, espicaçandoconstantemente sua atenção, estimulando-ainces santemente e de modo até inconsciente,provocando esse espectador sob contínua pressão,fazendo-o participar da intriga cinematográfica,tornando um paciente ativo aquele que, em geral,é apenas um agente passivo da narração fílmica.Por isso, ao apagar-se a última imagem de “AMarca da Maldade”, tal como em qualquer outrade suas grandes realizações, “Soberba”, “CidadãoKane”, ou “Macbeth”, o espectador, sentadoainda em sua poltrona, é um ser extenuado, masainda com forças suficientes para discutir e muitasvezes tentar compreender o espetáculo que, sobsombras e luzes, sem profundidade física, acabade projetar-se à sua frente. O espetáculo dessecinema personalíssimo continua realmente depoisde acabado. E essa continuidade dramática,impossível de analisar-se sem a inteligência e oraciocínio é que torna grande e clássica um “CidadãoKane”, feita sob aclamações e fama, ou uma“A marca da Maldade”, realizada na provação eamargura. De 1940, ano de “Cidadão Kane”, a1957, época de “A Marca da Maldade”, dezesseteanos se passaram, dezessete anos envelheceramprematuramente um grande criador, um grandepensador do Cinema. Orson Welles hoje, adiposoe encharcado, não se distingue mais do jovemlépi do dos tempos em que levava o pânico às ruas


com a simples audição de um espetáculo de rádio,a simular a invasão da Terra por hipotéticos seresde outro planeta. Mas, embora sob o físico dadecadência, seu espírito conserva a agilidade dosverdes dias, encorpado, agora, pela maturidadeadvinda por muitos anos de provação. “CidadãoKane” torná-lo-ia um homem sem pátria, massagrá-lo-ia cidadão do mundo, do estranho einsondável mundo da Inteligência e da Criação.Maré da Vida (Ruten)de Tatsuo Ohsone, Japão, 195704 dezembro 1959Realizado por Tatsuo Ohsone, um dos mais versáteisdiretores do cinema japonês, ora na empresaShochiku, onde maneja à vontade e com amesma inteligência o tema cinematográfico, dacomédia dramática, ao “policial” puro e simples.Esta sua fita de agora prova, uma vez mais, a suacapacidade. Por desconhecer a primeira versão de“Maré da Vida”, não posso agora estabelecer umparalelo entre a fita de hoje e aquela realizadaem 1938. Valho-me apenas das impressões, profundase enternecedoras deixadas pela exibiçãoatual e provocadas pela delicadeza da realizaçãode Tatsuo Ohsone no tratamento cinematográficodesta sua obra. Aliás, é sempre arriscado àcritica ocidental julgar uma película oriental pelos143


144padrões costumeiros com que o faz em relaçãoao cinema do lado de cá... O ambiente daqui ede lá, os costumes, a mentalidade, quase diria a“consciência coletiva” de uns e outros povos deambos os lados do universo, exigem critérios diversosno julgamento e na compreensão de umaobra cinematográfica, no tratamento a que foisubmetida, através da capacidade e da sensibilidadede cada cineasta. No caso de “Maré da Vida”,tão intimamente integrado aos costumes maistradicionais do povo nipônico, só a sensibilidadepode valer quando aqui se assiste a essa fita. Issoé o bastante para caracterizá-la como uma autênticaobra de arte, que, em geral, só também com asensibilidade pode ser contemplada. Gosta-se ounão se gosta de uma pintura, de um desenho, deuma escultura, eis tudo. Não é preciso conheceras “escolas” ou as “tendências” a que pode estarfiliado o artista, nem sequer é preciso vislumbrarem sua obra as suas “intenções”, ou o “seu” tema.Gosta-se, ou não se gosta e acabou-se. A fita docine Nippon também está incluída na hipótese.Gosta-se dela, ou não. Excluem-se a compreensãoe o conhecimento dos usos tradicionais, dosignificado dos bailados simbólicos, da música edo canto expressionistas que os pontuam, das leismilenárias, escritas ou costumeiras, que regem oshomens de lá, em comunidade, ou simplesmenteem seus lares. Basta que o espectador de “Maréda Vida” saiba sentir toda a beleza material emoral de que está imbuída essa fita. Basta sentir


o alcance que para “Shingiro” e “Oaki” tinham,em suas vidas, a sua música e sua dança. Basta quese saiba fruir todo o repousante matiz de umafotografia, parece que “pintada” em aquarela.Basta que se perceba, com o cérebro e os sentimentos,toda a dignificante beleza do Humanode que está porejada essa fita japonesa. O restonão importa. Porque, só com isso, caracteriza-sea peça, como uma obra de “sensibilidade” universal.E isso é o suficiente.Morangos Silvestres (Smultronstället)de Ingmar Bergman, Suécia, 195717 outubro 1962145Parte IFinalmente, aí estamos ante esta mui esperada“Morangos Silvestres”, que em São Paulo ninguémqueria exibir, só a encontrar guarida nasala confortável do Marco Pólo, cerca de cincoanos após sua realização! Bem haja a esses exibidoresde coragem e bom gosto, a quem vai ficardevendo o público lúcido de Ingmar Bergman.Trata-se, realmente, de uma obra singularíssimado cinema moderno, realizada com aqueles requintesde observação psicológica, de experiênciasvividas, talvez até – quem sabe lá? – feita comreminiscências biográficas desse autêntico autordo cinema da Suécia. Em verdade, toda obra deIngmar Bergman, a surgir com uma pontualís-


146sima regularidade, uma impressionante e versátilevolução, constitui uma surpresa a contribuir paratornar mais denso o mistério de sua mecânica criadora.Muitos pensam conhecer em profundidadeo âmago da dialética bergmaniana e a sistemáticade sua exposição, após a visualização de algumasou de muitas de suas películas. Há mesmo imitadoresseus, uns poucos em toda parte, na França, naItália, tanto quanto na Argentina e no Brasil (nãome admirarei se aqui, no chamado Cinema Novo,aparecer um dia destes algum “Amoras do Mato”ou, melhor ainda, de acordo com a sistemática deBergman, “Pitangas de Verão”). Mas o certo é quecada película sua em estréia constitui-se numaquestão aberta, numa interrogação interior, a quesó ele e mais ninguém possa responder. Não lheinteressa, contudo, desnudar sua verdade, cadaqual que conserve a própria, segundo a tese pirandeliana.Para uns, Bergman é um criador amargoe angustiado, só ele é capaz de realizar “Noite deCirco”, num exemplo típico. Para mim, no entanto,só há alegria e otimismo nesse homem que tantoama o verão, o curtíssimo verão de seus horizontesdomésticos, que cultua o sol, o sol nada quente,pouco mais do que tépido, dos céus da Escandinávia.E poderá haver amarguras e tristezas numhomem que ama o verão, que cultua o verão, quecultua o sol dos campos abertos, que sabe sentir ovento do mar largo? Que Ingmar Bergman seja uminsatisfeito, um ser inquieto sempre em busca damelhor e mais rica expressão artística em sua obra,


admite-se de bom grado. Mas insatisfação nãoquer dizer pessimismo, ao contrário. O pessimistaé um conformista que aceita o fato consumado,a rotina e o evento futuro já bitolados, numamesma medida negativa, temporal e espacial. EIngmar Bergman, longe de ser um conformista, éum revoltado permanente, que se insurge contraa rotina e se integra exuberantemente no tempoe no espaço, no “seu” tempo e no “seu” espaço,sempre à procura de melhor, histórias e argumentos,pureza de estilo e de forma, genuinidade deexpressão etc, conforme já debati aqui, com meuamigo Almeida Sales, a propósito de “Sorrisos deuma Noite de Amor”, para o crítico de O Estadode S. Paulo, película a representar “o mundo pessimista”do cineasta sueco. Pois, para mim, essadivergência de opiniões em pessoas que, em linhasgerais, são concordes sobre certos aspectos do cinemacontemporâneo, representa bem a atitudede perplexidade em que se integra o espectadorante cada obra nova de Bergman. Mas, a pesquisainquieta, a precisão da linguagem, a exuberânciae a exaltação da forma, a profundidade do conteúdoserão uma característica do pessimismo,ou tão-somente a marca pessoal de um homemque à gargalhada sarcástica, a um rictus mordaz,prefere sorrisos e malícias, à frieza de um espíritoconformado, prefere o calor do verão e a poesiado amor?Com tais considerações, eis-me afastado de “MorangosSilvestres”. A importância desta fita impôs147


tal divagação necessária. Ao espetáculo do MarcoPólo voltarei amanhã.Morangos Silvestres (Smultronstället)de Ingmar Bergman, Suécia, 195718 outubro 1962148Parte IICinema da AlmaIngmar Bergman, a propósito de um filme seu,(“Ansiktet” – “O Rosto”), apresentado em Venezaem 1959, onde conquistou o Prêmio Especialdo Júri, declarou numa entrevista concedida a“Match,” respondendo à seguinte pergunta: -“Em “O Rosto”, o “close up” tem uma funçãoainda mais importante do que em outros de seusfilmes. Dentro em pouco, dos olhos você passaráa focalizar apenas as pupilas... E daí?”“Talvez, nesse momento, responde Bergman, eudescubra uma fenda na pupila de minhas personagens,por onde eu possa entrar com minhacâmara para registrar o que se passa aí detrás...Acâmara cinematográfica é um instrumento deforça penetradora e poder especulativo aindapouco suspeitado. E o que me interessa é o cinemada alma...”Tal afirmação se ajusta bem a esta admirável“Mo rangos Silvestres”, realizada dois anos antesde “O Rosto.” Trata-se de um cinema feito dentro


do subconsciente de um homem de 78 anos, presode sonhos estranhos, de presságios angustiantes,perdido nas reminiscências de sua infância, decujo cerne, na ação onírica, não participa mais, éapenas mero espectador, um pobre fantasma queda janela do Tempo assiste à sarabanda de suaslembranças, sob sua forma física atual, como sefora um filho mais idoso do que a mãe, ou um noivoque poderia ser o avô de sua amada... Quando,pois, Bergman anuncia que vai tentar descobriruma fenda nos olhos de suas personagens paradesvendar o que haja detrás do muro de sua alma,em verdade ele já falava com conhecimento decausa, pois já fizera sua câmara penetrar no subconscientedo“dr. Borg” (personagem principalde “Morangos Silvestres”) e das nebulosas de suaalma trouxera, para o mundo físico do cinema, oque lá perquirira. “Morangos Silvestres” é, assim,um cinema de psicanálise, um cinema de catarse,um cinema de sublimações, em que o símbolo temuma função preponderante, em que o galho desfolhadode uma árvore, ou o prego fincado numaparede e a rasgar a palma da mão da personagemassume um significado denunciador de recalques,de complexos, das frustrações da infância, dosconflitos da adolescência.Entretanto, embora faça um cinema assim profundo,Bergman não se utiliza de nenhum virtuosismo,nem da trucagem em geral aplicadaà realização de tais temas. Sua câmara poucose movimenta, suas personagens, mesmo as dos149


150sonhos, são criaturas comuns, com os defeitos eas qualidades humanas. Até os símbolos de quese valeu são coisas e fatos do nosso velho mundofísico. Só a plástica fotográfica age intensamente.Mas, sempre funcionalmente. No primeiro sonhodo dr. Borg, aquela tétrica visão de um cenáriomorto, de janelas sem vidraças, de ruas semgente, de relógios sem ponteiros, a fotografia édura, seca, contrastada. Em outras visões oníricas,contudo, os quadros são bucólicos, a fotografiaé fluida e cheia de matizes, a ação é marcadacomo se fora sob um ritmo de música de câmara,um “concertino” de Vivaldi, ou um quartetode Mozart. Já no terceiro sonho, quando o dr.Borg é submetido a um exame escolar, naquelasua idade provecta, como se fora um candidatojovem no vestibular de Medicina, a fotografiaé carregada, de sombras e luzes violentas, emfundos sem matizes. E, evoluindo nesses cenáriossem penumbras, ou nesses ambientes ondedesponta a primavera, agem as personagens deBergman, os fabulosos atores do cinema sueco!Todos cumprem sua missão, todos representamseu papel sem uma falha, sem uma vacilação.Uma vez mais, Ingmar Bergman é aquele diretorde elenco que se integra em cada personagem,que participa da vida, da sensibilidade, da imaginação,das alegrias e tristezas de cada um.Cinema da alma, sem dúvida. Cinema, da Inteligência,da Cultura, cinema do Humano, enfim.


A Morte Comanda o Cangaçode Carlos Coimbra, Brasil, 196029 dezembro 1960Parte IHá muito está precisando o cinema deste país doar livre de sua paisagem, da pureza e do pitorescode seus costumes, da doçura de suas estórias, sóde quando em quando a insuflar a obra de algunsraros cineastas sinceros...Se admiro muito aqueles que procuram um estilo,que pesquisam uma forma, que pretendemsinceramente insuflar sua inteligência com oâni mo criador de escolas, de influências, como subs trato de gêneros e de estéticas de váriaspro ce dências e caracterização, detesto, poroutro lado, os simuladores confusos, os imitadoresservis, os aproveitadores de circunstânciasocasionais, os contra-fatores de toda espécie,os improvisadores, quaisquer que sejam e ondequer estejam colocados.Ora, numa ante-estréia beneficente, uma mulhere alguns homens do cinema brasileiro proporcionaramuma humilde lição a muitos dos simuladorese dos pretensos cineastas, que infestameste país. Uma lição realmente, de humildade,de inteligência e de sensibilidade, ao narrar umaestória de cangaço, a saga eterna do Nordeste, dasua paisagem torturada pela seca, ou subitamenteverde, quando chega o “inverno” vivicante daestação das águas, normalmente distribuídas.151


152Pois, Aurora Duar te, vinda de Pernambuco pelamão de Cavalcanti para integrar-se no cinemabrasileiro (no cinema de “O Canto do Mar”), nocinema de São Paulo, onde se radicou depois,quis, na primeira tentativa de sua empresa produtora,voltar ao Nordeste de suas origens, para alibuscar as cores, o clima, os costumes, as personagensde um filme autenticamente brasileiro, certade que lá encontraria tais ingredientes, parcialmentemanipulados em nosso cinema, ainda queabundantemente utilizados pelos “cantadores”populares, esses humildes rapsodos nordestinos,através de cuja lavra ainda é possível guardar e difundiras lendas do cangaço e a mitologia heróicadas caatingas. Não importa que, há já algunsanos, uma outra criatura tenha perambulado,pela primeira vez, por esses caminhos do chãoseco do Nordeste e, através deles, com Galdino eseus cabras, tenha atingido os centros mais civilizadose mais distantes do mundo. Lima Barreto,homem inteligente e sensível também, valeu-seda saga do cangaço, para com isso fazer um cinemabrasileiro genuíno, a deitar raízes atrevidasno cinema universal. Tomou de um tema o autorde “O Cangaceiro”, que permite todas as incursõese proporciona estórias infinitas. Mas, paraanalisar “A Morte Comanda o Cangaço” não épreciso hoje lembrar “O Cangaceiro” e estabelecerparalelos, como para analisar um “western”norte-americano, ou um samurai japonês, nãoé preciso lembrar obrigatoriamente “No tempo


das Diligências” e “Shane”, nem “Rashomon”e“As Portas do Inferno”. Esses temas são de todose não pertencem a ninguém. Por isso, não assistià “A Morte Comanda o Cangaço” pensando emLima Barreto, ou no cabra Galdino – que eles têmfeição e personalidades próprias. Preferi ver a fitade Aurora Duarte, admirando Carlos Coimbra,aplaudindo Raimundo e...Mas, isso será objeto de uma próxima nota.A Morte Comanda o Cangaçode Carlos Coimbra, Brasil, 196031 dezembro 1960Parte IIO Diretor e a NarraçãoÉ com indizível satisfação que volto a escreversobre “A Morte Comanda o Cangaço”, realizadaem grande parte no Ceará, pela equipe reunidaem São Paulo por Aurora Duarte, sob a produçãode Marcelo de Miranda da Torres. Mas, a trêshomens principalmente, dentro dessa equipe homogêneae discreta, se deve o resultado técnicoe artístico fora do comum e acima de qualquerexpectativa, alcançada por essa película paulista,digna realmente de ser considerada como umapelícula brasileira genuína: a Carlos Coimbra,que a dirigiu sóbria e firmemente, trazendoseus atores para aquela contenção dramática153


154saída do melhor naturalismo cinematográfico;a Tony Rabattoni, iluminador da fita, com seutrabalho a obter uma fotografia em cores depadrão internacional, mais alto ainda do queo fruído pela fotografia em branco e preto de“Cidade Ameaçada”, já considerado excepcional,entretanto: e a Osvaldo Kemeni, técnico da RexFilme que no laboratório tratou dessas cores elhes deferiu uma uniformidade, uma limpeza,uma “gama cromática” admirável, comparávelaos resultados melhores alcançados pelos técnicoseuropeus, ou norte-americanos.Em “A Morte Comanda o Cangaço”, Carlos Coimbraatinge o ápice de um longo e paciente aprendizado,em que nunca se valeu da improvisação,nem da mistificação. Iniciar-se-ia, entretanto, nocinema, com o “pé esquerdo”, como assistente emum filme muito ruim – “Luzes nas Sombras”, deCarlos Ortiz. E foi também com outra fita muitomedíocre, que surgiria sua primeira oportunidadede direção – “Armas da Vingança”, inexplicável einesperadamente contemplada com cinco ou seis“sacis”, em 1955, inclusive um para a sua direção...Depois dessa surpresa Carlos Coimbra trabalhouem “Dioguinho”, em “Crepúsculo de Ódios”, namontagem de “Padroeira do Brasil”, “Rastros nasSelvas” e “Fronteiras do Inferno”, tal atividadeproporcionando-lhe um exercício técnico contínuo,a contribuir certamente para a obtençãoda segurança narrativa e da frase coerente, orasentida na edição de sua “A Morte Comanda o


Cangaço”, completando-o na sua função de diretor,onde real mente se distinguiu e agora se firmacomo um dos melhores orientadores de elencodo cinema brasileiro contemporâneo. Graças,pois, à energia de sua direção, à fluência de suanarrativa e à uniformidade dramática obtida comseus intérpretes, pôde Carlos Coimbra apresentarsua fita ao público e à critica que, desta feita,não mais se sentiu constrangida, ao surgir à luzdas salas de espera, depois que se apagou a dosprojetores, nas salas de projeção...Algumas restrições sérias devem ser feitas a “AMorte Comanda o Cangaço”. Prefiro, contudo,deixar para outra ocasião a análise desses tropeços,só consignando agora os aspectos positivos quemais categorizam a obra, os momentos de grandebeleza, plástica ou dramática, que mais a caracterizam.Há, realmente, cenas ou seqüências que sepoderiam classificar de “antológicas” se esse termojá não tivesse caído no lugar-comum. E “A MorteComanda o Cangaço” não merece que sobre suacrônica incida o lugar-comum. Seqüências como ado apresamento de um boi, em pleno cerrado nordestino,com aquela movimentação de câmara, dehomens e de animais, construindo um dos trechosmais significativos de plástica, de cor, de discursocinematográfico; cenas como as do casamento aoluar, da distribuição de armas aos vaqueiros deRaimundo, dos tiroteios por entre os penedos da“Caatinga do Espinheiro”; episódios como o doataque e do incêndio da casa de “d. Cidinha”; o155


aproveitamento plástico e sonoro do prólogo dafita, um poema bucólico enternecedor; a descriçãotelúrica do funeral rústico, na vila assaltada peloscabras de Silvério, ou as exéquias vagnerianas do“cabra Coruja”, são realmente momentos do maisalto nível cinematográfico, obtido pela conjunçãoótima de um diretor inteligente, de um iluminadorsensível, de uma equipe funcional e plenamenteintegrada na criação de uma obra cinematográficadigna dessa qualificação.Em outra oportunidade, analisar-se-á “A MorteComanda o Cangaço” sob considerações outras,que essa peça ainda sugere.156A Morte Comanda o Cangaçode Carlos Coimbra, Brasil, 196005 janeiro 1961Parte IIIConsiderações FinaisVolto hoje a escrever sobre “A Morte Comanda oCangaço”, num último contacto crítico, fechandoa série de crônicas que a essa peça dediquei. Atéentão, não quis referir-me às restrições que faço àpelícula de Aurora Duarte – Carlos Coimbra, preferindoexaltá-la quando posso, a criticá-la quantodevo. Sobre seus aspectos positivos principais, jáme referi exaustivamente – produção bem planejada,fotografia em cores e tratamento de labora-


tório excelentes, direção segura, narrativa fluente,nível internacional de qualidade cinematográficaamplamente alcançado, predicados muito rarosno cinema brasileiro de todos os tempos.Faltou, contudo, em minhas considerações, umareferencia à interpretação, a meu ver a mais homogêneaobservada na produção paulista destesúltimos anos. E, justamente por ter atingido a talhomogeneidade, não quero agora destacar esteou aquele, pois qualquer referência mais pessoalquebraria esse padrão de conjunto interpretativo,para cuja obtenção cada ator contribuiucom o seu esforço particular, colaborando plenamentecom Carlos Coimbra, em quem desde logocertamente reconheceram um orientador capaze a saber o que fazia. Creio que Alberto Ruschel,Aurora Duarte e Milton Ribeiro, por ordem meramentealfabética e como cabeças de elenco,se igualam naturalmente, na vivência sincera desuas personagens, tanto quando Apolo Monteiro,no papel de “Mortalha”, Edson França no de“d. Cidinha”. Estreantes no cinema e intérpretescoadjuvantes se realçam igualmente, cada qualno seu papel, de maior ou de menor importância.Talvez nesse setor (dos estreantes) deva-se incluirLyris Castellani, muito embora essa dançarina játenha trabalhado em outras fitas, onde, contudo,não teve a menor oportunidade dramática. Nesta“A Morte Comanda o Cangaço”, Liris Castellani serevela também uma excelente intérprete, aindaque num papel de curta duração, mas muito157


158expressivo. Rute de Souza vive a sua intromissãona fita com uma segurança e uma sinceridadeque há muito lhe houvera fugido, em ravinadase americanadas de má morte, em que todo o seutalento se perdera na mediocridade geral queimperou nesse cinema falsificado.Foi pena que Carlos Coimbra não houvesse trabalhadoum pouco mais sua película, quer na tomadade certas cenas, quer na edição final delas. Hápequenos senões que lhe prejudicam a sintaxe dafrase, rompe-lhe o ritmo cinematográfico da ação,ou ofuscam-lhe a eloqüência do discurso, que oraatinge um nível muito alto de poder convincente,ora cai na demagogia dramática, fácil demais paraser aceita sem discussão. Justamente foi esse ladodiscutível do filme, que impediu Carlos Coimbrade atingir os limites da obra cinematográficacompleta. Assim ao correr das lembranças, queroassinalar a longa duração do xaxado, dançadopelos cabras de Silvério, arrastando-se em demasiae retardando a dinâmica do filme; a cenaem que Raimundo é ferido no assalto à sede dafazenda de “d. Cidinha”, uma “tomada” fraca,incluída numa seqüência, contudo, de grandeforça dramática; o diálogo à beira do cercado,enquanto o Beato procede à encomendação doscorpos das vítimas de Silvério, um “tête-à-tête”tecnicamente bem realizado, prejudicado, entretanto,pelo diálogo convencional, sem espessuraem sua função de complemento da imagem.Note-se finalmente a par de outras restrições de


menor importância, a música, francamente ruime muitas vezes inoportuna, de Simonetti, daspiores partituras desse compositor, em sua longaatividade no cinema brasileiro.Que mais dizer sobre essa fita, sobre esse soproreju venescedor do cinema brasileiro? Apenasuma palavra de estimulo a mais, a todos que deleparti ciparam, mais efetivamente: a Aurora Duarte,por sua perseverança e acerto em sua produção;a Carlos Coimbra, que de hoje em diante assumesérios compromissos com o cinema paulista e nãopode mais retroceder; finalmente, a Marcelo deMiranda Torres, que, com tanta fé, abriu o créditode sua confiança a seus colaboradores e que coma contribuição deles conseguiu reanimar o corpoquase exangue do cinema brasileiro. A todos asinceridade de meu aplauso e o atestado de minhacrença na obra que certamente já devem estarplanejando. Vamos esperar por esse futuro, quenão haverá de iludir, nem desiludir ninguém.159Morte à Fera (Yaju Shisubeshi)de Eizo Sugawa, Japão, 195926 setembro 1962É inegável que, depois de se calar o último canhãoem 1945, a juventude que voltava das frentes debatalha, ou a que houvera curtido os horrores daretaguarda, em sua maioria, mais se dirigiu para


160as universidades, para os laboratórios, para osanfitea tros do que procurou as “caves” de Montparnasse,ou os antros dos “beatnicks”. Nessestugúrios enfumaçados ficaram os exibicionistas, ospseudo-inconformados, que por mera atitude setransformaram em seres hirsutos negativistas, amorais,símbolos da indolência e da irresponsabilidade.Em todos os países do mundo, mesmo naquelesque pouco sofreram com a guerra, exis tem eles, aviver à custa da bolsa dos pais, como certos bezerroscrescidos, que ao invés de trotar pelos pastos coma independência própria da idade, ficam à sombrados currais, à espera da alimentação materna, comoparasitas incorrigíveis, os mesmos que, numa paráfrase,Fellini chamava de “I Vitelloni”, ao descrever,numa deli ciosa película, os “transviados” de certacidade da província italiana.Mas “Morte à Fera” não trata desses. Seu heróié, na verdade, um psicopata obcecado, um paranóicocalculista e agressivo, que mata, premeditadamente,com prazer, com volúpia, mais doque por impulso incontrolável. Estudante numauniversidade, escreve tese insólita, a fim deconcorrer a uma bolsa de estudos nos EUA. “Osmesmos efeitos de hoje já não se geram mais dasmesmas causas de antigamente” – escreve ele emsua monografia. Outras influências determinamagora outras conseqüências. O delinqüente dostempos presentes não é mais o mesmo das eraspassadas. Ele está agora na burguesia, nas escolas,nos meios intelectuais, mais do que entre as classes


mais baixas. É em verdade um autômato movidopela engrenagem social dos dias atuais.Está claro que esse estudante inteligente e cultohá de pôr à prova, numa dramática demonstração,a teoria de sua tese. Passa a agir não apenas antisocialmente,como criminosamente. Tal é o conteúdodesse “policial” impressionante, realizado porEizo Sugawa, a marcar sua fita por uma sintaxecinematográfica corretíssima, a serviço de umadialética personalíssima, caracterizada por umteor plástico e emotivo incomuns. A utilização dosrecursos formais e da linguagem do cinema em“Morte à Fera” transcendem da rotina industrialpara atingir o nível superior da pesquisa, própriodas obras de vanguarda, “Morte à Fera”, por sinal,me faz lembrar uma outra fita japonesa em quehavia também “jovens feras” no título e no temacinematográfico, também da Toho Filmes, aquiexibida em fins de julho de 1959. Ambas as fitasse caracterizam por essa ânsia de renovação, ambasa tratar de problema atual e atuante, ambasrealizadas por cineastas jovens, mas a denotar emsua obra o classicismo dos bons autores.161Mulheres e Milhõesde Jorge Ileli, Brasil, 196114 outubro 1961Escrevi há poucos dias sobre a inconveniência dese lançar um crítico à prática do filme dramático,


162nessa realização (que não é mais gerada na tranqüilidadedos gabinetes, mas a concebida sob asagruras dos estúdios) a se confundir, quase sempre,em estilos e modos dos cineastas que mais admira,disso resultando, quase sempre também, o “pastiche”puro e simples, pouco de pessoal, ou de pesquisamais profunda. Os exemplos são muitos, láfora, tanto quanto aqui dentro e, para não entrareu a rebater essa tecla desafinada, limitar-me-eiagora ao exemplo atualíssimo proporcionado por“Mulheres e Milhões”, uma vez mais a comprovar atese. Desta vez, saímos do mundo “intimista”, paracair no prosismo do “policial”. Se não há Bergman,ou Stiller e Wyler, temos o Dassin, de “Rififi”, quepor sua vez viera de Huston de “O Segredo deJóias”, este realmente a constituir-se na explosãooriginal daquela reação em cadeia.No Rio, “Mulheres e Milhões”, fascinou os comentaristasespecializados, mas em São Paulo está sendomais comedida a crítica. Meu colega AlmeidaSalles já se manifestou e fê-lo com ponderação,reduzindo a justa medida essa “Mulheres e Milhões”,para ele um filme frustrado, se bem quede bom nível técnico e com algumas qualidadesno setor da interpretação. A mim impressionouainda menos o filme de Jorge Ileli. Não lhe discutoo nível técnico alcançado, principalmenteno setor da fotografia, otimamente iluminadapor Rudolf Icsey. Mas, que dizer da interpretaçãoque vai apenas do razoável ao péssimo, dassituações ridículas, das cenas de um deplorável


mau gosto (a cena da sedução vivida por AndréDobroy e Norma Benguel, esta com aquela suamalha colante horrorosa, aquele a demonstrarque não dorme com sapatos...), dos diálogosartificiais e tolos, do coitado do José Mauro, emsituações do cinema mexicano, ou naquele finalbobo, dispersando seu talento, juntamente comos milhões tangidos pelo vento, um final já vistopelo menos em duas ou três películas do cinemauniversal, entre as quais, se bem me lembro, “OTesouro da Serra Madre”, de John Huston, e“Touchez pas au Grisbi”, de Jacques Becker, emque realmente o símbolo das ambições perdidas,levadas pelo vento, funciona perfeitamente? Mas,a mesma idéia em “Mulheres e Milhões”, apenasdá um toque a mais de um cinema de imitação,nunca de um cinema de criação.163A Estrada da Vida (La Strada)de Federico Fellini, Itália, 195419 agosto 1957A humaníssima película de Federico Fellini – “NaEstrada da Vida” – ao tempo de sua estréia emSão Paulo muito mal-recebida pela crítica, nãose sabe por que razões estéticas, ou de outra origem,ainda que, em verdade se trate de uma daspelículas mais importantes do cinema contemporâneo.O drama humilde de “Gelsomina” e de


164“Il Matto”, a tragédia tremenda de “Zampano”não comoveram o espírito de muita gente e afita, na opinião desses críticos, foi um malogrocinematográfico, foi apenas o esboço de outrapeça, a ser feita por outros, em ocasião oportuna.E a admirável interpretação de Giulietta Masina,para eles, não passou de uma imitação da personagemque Chaplin, no seu Cinema, transformounum mito, como se a influência desse criadorilustre em qualquer película, sobre quaisquercineastas, pudesse diminuí-los e à sua obra! É evidenteque Chaplin e sua criação fabulista teriamde incutir duramente a sua marca, não apenas nasua extensa cinegrafia, desde os tempos da “Mutual”ou da “Keystone”, até “Luzes da Ribalta”,mas, também, na de muitos outros cineastas, jámortos, em atividade, ou ainda por chegarem.Vittorio de Sica e o próprio neo-realismo italiano– um grande cineasta, um ator dos maiores e todauma escola – se apegaram muito à obra e até aoestilo chapliniano. De mitos e de influências oCinema está cheio e, ainda que arte novíssima,sua tradição se conta por séculos. “La Strada”,no dizer de Dominique Aubier, vem provar, umavez mais, que o Cinema de hoje precisa mais dealguns homens com estrutura mental, do quedaqueles a cujo alcance se põe somente umaestrutura técnica bem consolidada. Pois, sem dúvida,vale muito mais a estrutura mental de “LaStrada” – a saga humaníssima do homem solitário– do que a sua estrutura técnica, forma humilde


a revestir a tragédia de três criaturas diferentes,só igualadas em sua triste condição humana. Etão humildes quanto o próprio drama narradopor Fellini foram os atores que o interpretaram.Giulietta Masina, pouco conhecida no cinemaitaliano, Anthony Quinn e Richard Basehart, atoressecundários do cinema norte-americano, emcujos elencos nunca passaram de coadjuvantes,ou de intérpretes de peças das chamadas “classeC ou B”, as mais modestas dos planos anuaisde produção. Aliás, foi o próprio Fellini quemdelimitou o significado de “La Strada” – obrade inspiração franciscana. É ainda DominiqueAubier (“Cahiers du Cinéma” n° 49), nesse sentido,quem analisa cada personagem em termose em função da figura do “povorello” de Assis.Evidentemente, uma obra de tal simplicidade nãopodia adaptar-se à estrutura oca e frágil de certasestéticas confusas (serão mesmo uma estética?),cujas características não foram até hoje definidascom clareza. E a clareza da linguagem de “LaStrada”, tal como a de Chaplin, no seu despojamentoe na sua universalidade, terá que chocaraqui e lá fora aqueles que preferem gravitar emtorno de nebulosas.“Zampano”, “Gelsomina”, “Il Matto”, três personagensa se repelirem por força de seus temperamentose de seus impulsos, mas unidas como ospontos de um triângulo. Nessa área geométricavivem e atraem-se mutuamente. Mas, quandoum deles quebra a unidade ternária, destrói-se165


166a si próprio, eliminando a figura e seus pontosde contato. Morto “Il Matto”, acaba-se “Zampano”,muito antes de acabar-se “Gelsomina”.Entretanto, só com o sacrifício dos dois outros éque “Zampano” vem a humanizar-se. Mas esseprocesso, pelo qual um homem torna-se Homem,será lento e doloroso. A dor e o remorso se implantarãoem “Zampano” desde o momentoem que seu ódio se apazigua com a morte de “IlMatto”. Daí em diante, porém, sofrerá com osolhos assustados de “Gelsomina”, sempre voltadospara ele, sofrerá com o despertar de suaconsciência, sofrerá com a sua decadência, sofrerácom o desaparecimento da parceira, que, numamanhã de inverno, abandonara à beira de umaestrada, à sombra gélida de um muro em ruí nas.Sua solidão será agora mais cruenta, porque“Gelsomina” não terá substituta. Nem o trabalhorude, nem o álcool, nem o tempo apagarão de suamemória rústica o vulto grotesco da companheira,simplória e assexuada, que, certa vez, compraranuma praia deserta, por um milhar de liras, deuma família faminta. E noutra praia deserta, nasombra noturna, ao quebrar de ondas e uivar deventos, ouvirá, pela primeira vez, o rugido de dorde sua alma, a morrer apenas nascida...Tal é a tragédia franciscana que Fellini narrou aolongo das estradas, à beira do mar, nas encostasdas colinas, no tope das montanhas. Numalinguagem sem atributos, nem adjetivação fácil;contou a história de um homem solitário, preso


dentro de si mesmo. As correntes que envolvemseu tórax e que arrebentam sob a tensão deseus peitorais num picadeiro de circo, ou à vistade basbaques numa esquina, até elas têm valorsimbólico na temática da película – uma longalibertação de almas e de impulsos. O mesmovalor das pedras e dos seixos dispersos peloscaminhos do vasto mundo.Nas Garras da Fatalidade (I Became aCriminal / They Made Me a Fugitive)de Alberto Cavalcanti, Inglaterra, 1946/194706 julho 1949Logo nas primeiras imagens de “Nas Garras daFatalidade”, se traçaram, iniludivelmente, os contornosde uma grande peça de cinema, tão fortee absorvente quanto “Na Solidão da Noite”, ou“O Condenado” (“Odd man out” de Carol Reed),com as quais mantém estreitas relações estéticase semelhanças de temas.Já nas primeiras imagens, em verdade, não émais possível escapar-se da intensidade da narraçãode “I Became a Criminal”, que vai envolvendoo espectador na sua narração e no seu clima,de modo a fazê-lo respirar, insensivelmente, aatmosfera densa daquele drama derivado dasconseqüências inelutáveis dos conflitos armados.A Alberto de Almeida Cavalcanti se deve167


168essa grande peça de cinema que é “Nas Garrasda Fatalidade”, um cineas ta que não é “potencialmenteum dos maiores”, segundo asseveramcertos juízos apressados.Cavalcanti não está nessa “potencialidade”. Seupassado no cinema francês e no cinema da Inglaterraestá pejado de um lastro cinematográfico damelhor qualidade, com origens no cinema mudo eem plena floração no cinema moderno. Passandopor aquela fase intensa da pesquisa estética ou daexperiência técnica, a fase do cinema de vanguarda,Cavalcanti pode hoje exibir um estilo pessoal,provindo de uma atividade intensíssima nos estúdiosda França e da Inglaterra e no qual se achasedimentado tudo quanto de sólido apurou aotempo de suas realizações de “Em Rade” ou “Rienque les Heures”. Longo, em verdade, foi o caminhopor ele percorrido para atingir a integridadeartística de “Na Solidão da Noite” e de “Nas Garrasda Fatalidade”. As obras de história do cinema eas de sua antologia aí estão para quem souber lerir buscar o atestado dessa competência afetiva edevidamente reconhecida, que alguns, por paixãoou preconceito, querem negar de qualquer forma.Para esses, evidentemente, incapazes de sentirtoda a beleza poética de um “La Belle et La Bête”,a beleza rústica e violenta de um “O Tesouro daSerra Madre”, ou simplesmente o lado humanode “Um Dia na Vida”, há de passar despercebidotodo o valor estético e cinematográfico que um“Nas Garras da Fatalidade” possa conter.


E um dos aspectos mais importantes dessa películade Cavalcanti é sua integração dentro do chamado“neo-expressionismo” e o interesse artístico quedaí decorre. Nesse sentido, “Nas Garras da Fatalidade”é uma das obras mais representativas dessatendência, a superpor-se talvez às do próprio FritzLang, dentro do cinema norte-americano.Nessa sua última película, Cavalcanti expõe, comuma sinceridade e uma emotividade dignas de seupassado, todos os elementos formadores dessacorrente artística no cinema atual. Porque tudono filme tem o seu valor próprio, se bem que cooperantepara a realização integral do conjunto.Fotografia e plástica, direção e interpretação,montagem e ritmo, tudo se liga rigidamente paraa criação total da peça, dentro desse expressionismotão decisivo na formação de Cavalcanti (digasede relance que esse grande cineasta colaborouativamente, em 1923, com Fernand Leger, Mallet-Stevens e Claude Autant-Lara, na cenografia de“L´lnhumaine” de Marcel L´Herbier, tida por muitoscomo “O Gabinete do dr. Caligari” do cinemafrancês). De fato, o cenário, por exemplo, como,aliás, todos os demais elementos de criação de“I Became a Criminal”, tem uma função primordialna formação artística, no clima psicológico queenvolve as personagens, tomadas em conjunto, ouseparadamente, como seres de uma coletividadea sofrer em sua carne todas as inevitáveis conseqüênciasde uma guerra, como essas provindasdo último conflito: fome, privações, alcoolismo e169


170banditismo, mercado negro e aproveitadores detoda espécie, desde os de alimentos até os do vícioe das meias “nylon”. O próprio expressionismo,não terá sido, também ele, uma conseqüênciadireta da guerra de 1914-18?Dentro desse ponto de vista, citaremos o exemplotirado de algumas cenas de “Nas Garras daFatalidade”, em que é mais evidente a funçãodo cenário, composto como um desdobramentofísico do estado de espírito dos participantes dodrama, ou como a condensação de sua atmosfera:as cenas iniciais, que situam o espectador nos quadrosde ação, o contraste daquele coche funerárioestacionado numa rua plácida e de onde homensde negro tiram um esquife para com ele penetrarnuma dessas “casas de morte”, organizaçõescomerciais que tudo fornecem, desde o ataúde,até a sala para o velório; o aproveitamento desseambiente tétrico para nele fazer decorrer oslances mais intensos do enredo, aquela armadilhapara aprisionar “Clem Morgan”, a luta que nelase desenvolve, o seu terrível desfecho, momen tosem que o corte e a montagem se fazem rigorosamentecertos; o encontro entre “Narcy” e “Sally”,no camarim desta, onde as lâmpadas acesas seacham multiplicadas ao infinito e onde um espelhodefor mante reflete toda a brutali dade docará ter de “Narcy”; a estrada infinita, a se perderna bruma, onde os faróis de um caminhão são doisolhos postos num homem que foge; o diálogo,entre este e o motorista, um contraponto de falas


e imagens da estrada e da paisagem esquiva; ascenas da prisão de “Sua Majestade”, mostrada pelospés dos sentenciados, em tomadas próximas,em fusões sucessivas, uma síntese vem marcadade um largo período de tempo decorrido,...... aambientação úmida e brumosa a reinar em todaa fita... e citaría mos a continuidade inteira de“Nas Garras da Fatalidade” se prosseguíssemosnessas observações.Mas, ao lado do nome de Cavalcanti, notemos osde Otto Heller e Marius François Gaillard, diretorda fotografia e autor da partitura musical dapelícula, dois elementos de criação de notávelplasticidade, impregnados de uma violência descritivabem acordada ao ritmo e à movimentaçãogeral da obra.171No Tempo das Diligências (Stagecoach)de John Ford, EUA, 193923 abril 1950Moniz Vianna, crítico de cinema do “Correio daManhã”, ao comentar “No Tempo das Diligências”,coloca essa fita numa das poucas subdivisõesdo “western”: o “western” psicológico,segundo suas próprias palavras. De fato, aí estáum dos valores positivos e permanentes da fitade Ford. Até então o chamado “western” não sepreocupava com outra coisa senão com a aventurapura e simples, a envolver o trio clássico: o


172par de namorados e o bandido temível. Todas asdemais personagens eram apenas acessórios, agirar em torno das três principais. Em “No Tempodas Diligências”, Dudley Nichols e John Ford,cenarizador (roteirista) e diretor de cena respectivamente,eliminaram a preponderância das trêsfiguras principais, nivelando-as a todas as outras.Assim, todo o elenco de “Stagecoach” passou aser a soma das funções de cada desempenho deper si. Uma interpretação de conjunto, já se vê,onde cada um dos caracteres é analisado dentroda função por ele desempenhada no decorrer dodrama e sem se superpor um ao outro. A soma detodos, passa ser o espelho da própria sociedade decerto momento histórico: o aventureiro do ouro edo gado; o banqueiro inescrupuloso, a aparentarmoral e honestidades; a pobre mulher decaídaa seguir como uma sombra os rastros do “goldrush”; o vaqueiro foragido da Justiça, que setornara criminoso por uma questão de vingançae de honra familiar; o “sheriff”, o vendedor debebidas, a esposa de um soldado que o procurade guarnição em guarnição, para a seu lado ter ofilho longamente esperado; o médico filósofo queafoga no álcool o seu drama incompreendido, sãofiguras humanas, heterogêneas como o própriomeio em que evoluíam, desprezadas até entãopelos cineastas do “western” e de que DudleyNichols e John Ford se apropriaram para analisare estudar as respectivas reações, em face de umperigo comum e sob circunstâncias diversas.


Ora, se bem que essa análise psicológica seja porvezes superficial, por vezes convencional, nãoresta dúvida de que “No Tempo das Diligências”representa a escola e a forma de que saíram depoistodas as grandes obras do mesmo gênero.Até outras peças do próprio Ford, como “Paixãodos Fortes”, superior, do ponto de vista psicológico,a “No Tempo das Diligências”. Essa importânciade “Stagecoach” é inegável e indiscutível.Acrescente-se a isso, outras qualidades quepossui, como a magnífica seqüência da corridadesabalada da diligência perseguida, o combatevertiginoso entre os seus ocupantes e os índios, asquedas dos atingidos, principalmente a daquele“apache” por entre as patas dos cavalos que lhepassam por sobre o corpo, largado depois naareia escaldante, uma movimentação tremendaque a câmera acompanha numa das mais significativaspanorâmicas de que se tem memória noCinema. Só a montagem e o corte desta seqüênciabastariam para tornar “No Tempo das Diligências”uma peça clássica. Clássica, sem dúvida, masnão íntegra. Muitas restrições se opõem a essarealização de Ford; personagens caricatas, comoa do médico, vivido por Thomas Mitchell e a dococheiro da diligência, personificada por AndyDevine, cuja voz arroucada, ultra-explorada pelodiretor de cena, serve até de elemento cômico,numa deslocada aplicação em certas cenas dafita; abuso do elemento sonoro, como os berrosdo cocheiro em todas as suas tomadas próximas,173


174como a música de fundo, sempre a mesma, asurgir todas as vezes em que tomadas distantesmostram a diligência a cortar a planície; oarras tamento das cenas primeiras, a demagogiacom que se narram outras mais (como o vício domédico e a desonestidade do banqueiro), são ospontos negativos dessa fita, hoje integrada nahistória do Cinema. Esteticamente, “Stagecoach ”resiste ainda à ação dissolvente do tempo. Masé possível que após a passagem de mais algunsanos, tenha apenas um valor meramente histórico,representativo de certa época em queFord era ainda um criador. Com a lamentávelrepetição de si próprio, advinda principalmentedepois que andou chefiando missão cinematográficadurante a guerra, Ford hoje nada mais édo que uma sombra de que foi. Que o digam assuas últimas realizações: “Sangue de Heróis” e“O Céu mandou alguém”, em que teve a direçãode cena, e “O Monstro de um mundo perdido”,que lhe pertence, como produtor.A Noite (La Notte)de Michelangelo Antonioni, Itália, 196123 junho 1962Com esta “La Notte”, Antonioni consegue fazercom que seu espectador, em duas horas, vivauma noite inteira; consegue fazê-lo participar


desse período em claro e insone, através de umade suas personagens, insatisfeita, deprimida, angustiada,a atravessar a festa na mansão luxuosacomo se fora sonâmbula, passando dos jardinspara os salões, e de dentro para fora novamente,como se não existissem obstáculos nem paredes,no ar, num deslizamento de vigília sem fim, aansiar pela luz da madrugada. Tanto quanto oespectador pela sala de projeção, anunciando otérmino dessa “La Notte” fatigante e arrastada.A fita de Antonioni, com sua ação lenta e sua interpretaçãosofreada, é um raciocínio frio de quenão participa o sentimento, apenas a sensação,um raciocínio necessitado do desdobramento desuas premissas para (talvez só depois da exibiçãoda fita) chegar-se às conclusões ou às intençõesde seu autor (ou de seus intérpretes).Reconheço que “La Notte”, tal como a obra anteriorde Antonioni, “A Aventura”, é algo respeitável,é uma experiência sensorial que ele desejatraduzir através de um cinema puramente cerebral.Mas não me entusiasma muito esse cinemaraciocinado, em que tudo parece ter sido medidoe provado, o gesto de uma personagem, tantoquanto um movimento de câmara, uma demonstraçãocinematográfica do velho princípio aristotélico(será mesmo de Aristóteles?): nada existeno intelecto que não tenha passado antes pelossentidos. Pois Antonioni não faz por menos. Seuespectador tem de sofrer com suas personagens,sofrer com todos seus sentidos, antes de construir,175


176ou melhor, antes de sentir sua tese. Por isso, apesarde ser obra sofrida é fria e fatigante. Mas, porser justamente uma obra de tais dimensões, nãopode ser julgada sem a participação do tempo,não pode ser ponderada sem essa dimensão temporal,cuja falta torna impossível compreenderseo infinito, ou pelo menos sua relatividade. Etanto “La Notte” quanto “A Aventura” são doispequenos universos largados no espaço infinitoda sociedade contemporânea. O que se disser deum, adaptar-se-á perfeitamente ao outro, ambosobedecendo a uma lei irreversível de semelhanças,um princípio que se não percebe, mas que estápresente em todo o transcorrer da obra singularde Antonioni, estranha e densa.Noite de Lua Minguante(Night of the Quarter Moon)de Hugo Haas, EUA, 195912 dezembro 1959Há algo na carreira de Hugo Haas que a ninguémserá lícito negar: a sua coragem, tantas vezes demonstrada,não apenas em sua luta pela vida, nummundo cheio de desleais competições, o mundoprofissional do cinema, senão também na defesae na exposição de suas idéias, na realização desuas fitas, todas elas de conteúdo definido, nuncavazias de significado humano, nem de objetivos


inconseqüentes, como costuma acontecer com amaioria da produção de Hollywood. Hugo Haasnão teme ninguém, não se arreceia em abordartemas de glosa perigosa, a psicanálise, por exemplo,que aproveitou numa película cheia de dignidadee de beleza interior, a sua “Desejos Ocultos”(Lizzie ), em que Eleanor Parker, com a suasegurança e sua inteligência nunca assaz louvada,encarnou um tipo hebefrênico, de personalidadesdistintas, a se manifestarem, física e psicologicamente,com feições e comportamentos diferentes.E é preciso não esquecer ainda de outra fita corajosade Hugo Haas, aquela que sob o título de “DoAbismo do Ódio” (The Other Woman), satirizou edesmascarou certos métodos de produção e certostipos de produtores tronantes em Hollywood. Emtal película, Hugo Haas interpretou, ele próprio,a personagem de um cineasta europeu, largadoà própria sorte na Babel do cinema, no ambienteultracomercializado da produção de linha, personagema viver as situações por vezes grotescas,que os atritos entre uma cultura e o progressopodem deflagrar.Eis que agora, Hugo Haas envereda por outra via,não menos cheia de abrolhos – a do preconceitode raças, da segregação e da miscigenação. Temaingrato, em verdade, a não comportar meio-termo:ou torna a peça que o desenvolve em algo deexpressivo e realmente importante, ou fá-lo derivarpara uma demagogia que a custo se suporta.Hugo Haas, entretanto, conseguiu o impossível,177


178conseguiu esse meio-termo. Isso quer dizer quesua película nem é algo de insuportavelmentedemagógico, nem tampouco uma grande peçaque se vê com admiração e de que se lembra comrespeito. “Noite de Lua Minguante” permaneceexatamente entre ambos os extremos. Abordacom a costumeira coragem o problema lancinante,cuja existência enodoa a civilização de certasnações, mas, de certo modo, não pôde fugir dasinjunções que a exposição do tema normalmenteapresenta. Uma dessas injunções é a exigência demuita demonstração para situar a questão, o que,logo de início, sobrecarrega o preâmbulo da discussãoe provoca aquele excesso de provas, afinal aprejudicar o próprio poder de convicção de quemse propôs apresentar e discutir o assunto. HugoHaas obteve o resultado que dele se esperava.Saiu-se muito bem da enrascada e inteligentementesoube conduzir o espetáculo e os debatesque provoca com muita habilidade. A grandemaioria dos espectadores, ao acender das luzes,estará mais disposta a aceitar seus argumentos,do que a contradizê-los. E isso para um cineastade seu porte já não será um excelente resultado?Solidariedade a Walter Hugo Khouri30 setembro 1964Uma vez mais – e certamente não será a última –,enfrenta o cinema brasileiro a incompreensão e


Mário Sérgio e Andrea Bayard em Estranho Encontro, deWalter Hugo Khoury (Divulgação)a intolerância da censura, à vista do que, à horaem que escrevo, está acontecendo a Walter HugoKhouri e seu filme, “Noite Vazia”, cuja estréia deveriater-se verificado anteontem, no circuito doCine Ipiranga. Submetida a obra aos censores deBrasília, foi-lhe recusado o visto liberatório, nãosei a que pretexto, impedindo, assim a apresentaçãoda fita na data marcada, isso acarretandoaos produtores e distribuidores enormes prejuízos,programação tumultuada, publicidade desperdiçada,tempo perdido em viagens a Brasília,dinheiro dispersado inutilmente nos vaivéns entre


180São Paulo e o Distrito Federal. Diga-se desde logoque não vi ainda o filme de Walter Hugo Khouri,se bem que uma apresentação reservada tenhasido feita a vários membros da crítica e do corpocinematográfico de São Paulo. Diga-se ainda quenão faço parte do grupo de admiradores, incondicionaisde Walter Hugo Khouri ou de sua obrapermanecendo eu o comentarista mais severo emenos benevolente. De mim para mim, acreditoque o autor de “Noite Vazia” não precisa maisda benevolência de quem quer que seja, sua cinegrafia,vultosa agora, carece mais de uma análiseem profundidade do que da extensão de aplausosfáceis nas colunas de jornais, ou perante as comissõesde premiação, oficiais ou não, tronantesem São Paulo. Contudo, se em Khouri recriminoprincipalmente a tendência irrefreável na imitaçãode estilos vários, reconheço-lhe sinceramente,em contrapartida, uma inteligência espontâneae uma integração consciente na fenomenologiado cinema, no que tem esta arte de mais elevadoem meio da sensibilidade e dos comportamentoshumanos. Assim, com o maior respeito à suapersonalidade e às suas preferências, totalmentediversas das minhas embora, julgo-o incapaz dequalquer ato menos digno contra o cinema, queé algo de todos nós, contra o “seu” cinema, quepode ser só o dele. Quero, por isso, estar inteiramentea seu lado nesta emergência, quero tornarpública minha atitude (que é também a destejornal, por tradição e por convicção), uma vez que,


particularmente, disso o cientifiquei por intermédiode comunicação feita à sua esposa, durantesua ausência de São Paulo, às voltas com a censuraem Brasília, como é sabido. Não vi ainda “NoiteVazia”, repito. É possível que pessoalmente eunão aprecie a obra e, a seu respeito, depois deassistir a ela, possa vir a cercá-la de muitas restrições.Mas, em nenhum momento, posso admitirtenha Walter Hugo Khouri derivado para a vulgaridadee a pornografia, como tem acontecidoultimamente com certas películas aqui exibidas(“Os Cafajestes”, “Boca de Ouro”, “Bonitinha,mas Ordinária”, “Asfalto Selvagem”), entretantoapenas proibidas a menores de 18 anos, sem qualqueroutro obstáculo levantado pela Censura, nacirculação desimpedida de tais obras.Não hesito pois a me colocar ao lado de WalterHugo Khouri, em tais circunstâncias, ainda que,em outros campos, nos domínios do debate deidéias, estejamos bem distantes, separados portendências e preferências divergentes. No momento,entretanto, tudo precisa ser posto à margem,só valendo o problema mais premente, o deum artista, o de um autor impedido de livrementeexpressar-se. Sim, isto é o que vale agora.N. da R. – O comentário sobre a interdição de“Noite Vazia” já se encontrava paginado, quandochegou à Redação a notícia da desinterdição. Épublicado, porém para fixar o ponto de vista pessoalde B.J. Duarte em face do episódio, passívelde repetição.181


Noite Vaziade Walter Hugo Khouri, 196415 dezembro 1964182Bem, aí estamos ante essa “Noite Vazia”, ou vadia,ambos os qualificativos lhe assentam bem,vazia real mente de qualquer conteúdo humanolegítimo, vadia pelo espírito de suas personagens,dois homens e duas mulheres, vazios e vadiostodos. Não sei bem como comentar esse filmedeplorável; só com ânimo deprimido podereilamentar suficientemente a decadência mentalde seu realizador, desse cineasta, jovem ainda,que tanto prometia no início de sua carreira eque ao cabo de menos de uma dezena de filmescriados, já se apresenta decrépito e senil, comoesses pobres velhos escleróticos, a viver de lembrançassensuais e que para melhor excitá-lasse valem da fotografia e do filme pornográfico,procurados num desvão de esquina, ou em casasclandestinas, especialistas no fornecimento doestimulante dessa devassidão crepuscular...Não tenho dúvidas de que “Noite Vazia”, reduzidapara a bitola do 16 mm, depois de esgotadasua exibição fescenina nas salas comerciais, aindaproporcionará boa renda em projeções privadas,nesses apartamentos de encontros escusos, tãobem descritos no filme de Walter Hugo Khouri.Porque sua fita é uma enciclopédia de modos epráticas sexuais, ilustrada com imagens que vãodas gravuras de livros eróticos, à vulgaridade e


grosseria das películas pornográficas francesas,das excitações sáficas, à depravação dos atosmais íntimos, praticados em comum entre esseshomens e essas mulheres, que se revezam comoanimais em cio. A isso se resume o filme do sr.Walter Hugo Khouri. Formalmente bem-feito (afotografia de Rodolfo Icsey é das mais belas docinema brasileiro de todos os tempos), é realmentede lamentar-se tão boa cera gasta comdefunto tão decomposto. Entretanto, já estouvendo daqui essa noite vazia a encher-se comtodos os prêmios oficiais e particulares, a seremdistribuídos para a produção de 1964, concedidospor esse grupo permanente e em constanteação nas comissões de seleção, do “Saci” ao“Governador do Estado”, com baldeação pela“Municipalidade de São Paulo”.Enfim, aí está essa “Noite Vazia”, de tédio eprostituição cheia. Ao resolver assistir a ela, tivea precaução de ir sozinho ao “Ipiranga”, tirandobom proveito do aviso que me proporcionouum velho amigo, obrigado a deixar a sala do“Astor” na metade do filme, de tal forma seconstrangeu na presença da esposa ao lado.Que assim procedam aqueles que, como nós,não querem sofrer vexames junto de noivas oufamiliares mais chegados. Para evitar tais inibições,não teria sido mais proveitoso para todosque o filme de Khouri houvesse sido exibido nasala “especializada” do “Jussara”, ou naquelasda Rua Conselheiro Nébias?...183


Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria)de Federico Fellini, Itália, 1957184Possivelmente algum psicólogo perseverante háde achar algum dia, na obra de Fellini, materialbastante para a pesquisa psicanalítica da personalidadedesse cineasta obcecado, certamenteintrovertido, numa eterna luta dentro de si mesmo,emaranhado por entre o desvario da dúvida e aalegria de reencontrar-se na exaltação criadora daobra artística pura e simples. Já escrevi isso aquihá tempos e esses conceitos me parecem sempreatuais, a cada peça que assisto do criador de “LaStrada”, agora com “Le Notti di Cabiria”, a atingiro último elemento de uma trilogia muito sintomática,composta por essas duas películas citadas emais “Il Bidone”, todas elas de certo a expressaremalgo torturante para Fellini: a tragédia do homemsolitário. Em “La Strada”, três são as criaturaserradias, a se repelirem por força de seus temperamentose de seus impulsos, mas unidas como ospontos de um triângulo: “Zampano”, o rústico,“Gelsomina”, ingênua e simplória, “Il Matto”, umlouco lúcido, cheio de comiseração humana. Nessaárea geométrica, vivem e atraem-se mutuamente.Mas, quando um deles rompe a unidade ternária,a figura destrói-se a si própria, eliminando-se seuspontos de contato. Morto “Il Matto” acaba-se“Zampano”, muito antes de acabar-se “Gelsomina”,três criaturas distintas, solitárias, cada quala viver um mundo todo próprio. Em “Il Bidone”,


muitas são as figuras isoladas, apartadas uma dasoutras, mas a mover-se num meio único, o dosvigaristas. “Augusto”, entretanto, representa oisolamento comum, é “Augusto” quem sofre,castiga-se, morre sozinho, em plena luz do dia, àbeira de um precipício, tal como “Zampano”, em“La Strada”, morria numa praia deserta, na sombranoturna. Finalmente, no terceiro ramo da trilogia,há, ainda e sempre, o drama de um ser isolado noseu íntimo, nos dias e nas noites de Cabíria. Queexplicação subjetiva se poderia obter através daanálise dessa obsessão de Fellini, tão realçada emsua obra? Ninguém sabe, ninguém se lembroude perguntar a esse homem, que, em Roma, vivetambém isolado, com sua mulher, um dos tiposconstantes da tripeça, “Gelsomina”, “Iris”, “Cabiria”,no apartamento tranqüilo, que, para ambos,deve ser também um mundo à parte.Pois a saga humaníssima do homem solitário desenvolve-secom exuberância e atinge seu ápicemais pungente nas noites de Cabíria. A pequenarameira, que só terá caído nos abismos dessadegradação humana por forças de circunstânciasque a intriga da fita não revela, mas sugere deleve, a velha história de sempre, a pequena rameira,em seu mundo de ingenuidade e de bondadepueril, acredita nos homens apesar de tudo,e por causa da solidão em que vive está sempreà procura de um companheiro, que a queira porsi mesma, nunca pelo dinheiro, que, só Deus eela própria, sabem a que duras penas conseguiu185


186amealhar. Apesar de tudo, dos enganos brutais edas desilusões amaríssimas, acredita nos homens,em todos os homens. Basta por parte deles umgesto de carinho, ou de simples compreensãohumana, para que Cabíria lhes volva os olhosconfiantes, sem maldade ou malícia, cheios daquelapureza que só existe nos olhos da mulherquando ama, quando é mãe, ou quando é santa.Cabíria, no decorrer de sua história, passarágolpes rudes, conhecerá muitos homens, quasemorrerá afogada por um deles, que lhe rouba abolsa de seu dinheiro suado e a atira nas águassujas de um rio. Que seja, entretanto, o malandroque vive à sua custa, que só veste camisa deseda, só Cabíria sabe a que preço obtida, queseja o ator de cinema, polpudo de glória e defortuna, que numa noite de fastio e de despeitoa leva para o luxo de seu apartamento, que sejao homem do último logro, funcionário públicoe que parecia tão só quanto ela própria, paratodos há de volver Cabíria seus olhos confiantes,sem maldade nem malícia, a troco apenas de umgesto de bondade e de compreensão humana.E quando, afinal, despojada de tudo, de sua fé,de seu dinheiro, de seu homem, Cabíria acorda,novamente sozinha, no meio de uma estrada aocrepúsculo, envolvida por um bando de adolescentesa gozar o fim de um piquenique, bastauma simples frase – “Buona notte, signorina” –pronunciada por uma dessas crianças, para queCabíria se reencontre, a si, a sua fé, a sua crença


na vida. Volverá então seus olhos comoventespara o espectador, para o público que sofreu comela e, sem pousá-los na multidão da sala escura,há de distinguir no meio de todos, aquele queum dia talvez a queira para si, por ela própria,sem maldade e sem intuitos de iludi-la. E esse,então, será o fim das noites de Cabíria.Oito e Meio (8 )de Federico Fellini, Itália, 196323 maio 1964Parte IQuem quer tenha assistido “Oito e Meio” e, comoeu, lido algo do que se publicou na Europa arespeito desse filme estranho e sobre as própriasconfissões de seu autor, há de sentir a obra, já departicipar da sensação de dúvida e confusão emque se envolvem as situações, no entrechoquede sua vivência no plano da realidade ou nosmeandros do sonho e pesadelos. Embora Fellinipouco tenha falado sobre o seu filme, sobretudoquando este se realizava, sempre que seabriu, entretanto, se mostrou titubeante, cheiode incertezas, talvez assim vacilante de modopremeditado, como se quisesse transpor paraaqui, na realidade de seu cotidiano, as dúvidas,as incertezas, as vacilações, alucinante confusãomental vivida pela personagem típica de “Oito187


188e Meio”, esse Guido Anselmi, um reflexo emduas dimensões do físico e do espírito do próprioFellini. Tal estado de consciência, que deve ser odesse grande criador, quando engendra e realizaseus filmes, se fazia sentir antes de iniciar “Oito eMeio”, segundo se depreende dos termos de umaexcelente reportagem publicada em “Cinema631”, de autoria de Camilla Cerderna, jornalistaque acompanhou Fellini quando este procuravaem Milão uma criatura capaz de interpretar opapel de “Carla”, amante de “Guido Anselmi”,na intriga do filme. Isso acontecia pouco antesde Fellini principiar a filmagem de sua película,tendo ele confessado então: “Francamente, atéagora não sei por quantas ando. Resolvi realizaro filme e o farei de qualquer modo, mas tudo seapresenta como um trem a que faltam os trilhos.Imagine-se alguém que comprou sua passagem,que se põe em fila com os outros viajantes, quecoloca sua bagagem no vagão e se apresta paraouvir o sinal da partida. Mas, e as rodas do comboio?Tenho uma porção de pequenos trechosescritos do meu roteiro, sim, mas tudo se transformacontinuamente, eu disponho de situações emnúmero infinito, tudo isso não basta, entretanto.Tais situações eu não consigo localizá-las, é otrabalho artesanal que me falta. E enquanto eume atemorizo por não ser capaz de configuraresse filme, vejo-me, por outro lado, envolto pelamecânica de sua produção, que, essa sim, vai devento em popa. De falto, muita coisa já está em


plena rea lização. Mastroiani (ator principal) jáfoi contratado, e Fracassi (produtor executivo),louvando-se em minhas mentiras (“claro, dentrode três, quadro dias no máximo, o roteiro estaráconcluído. Não acredita? Minha palavra nãobasta?...”) está pronto com o planejamento daprodução, a construção dos cenários já se iniciou,pois com imprecisas indicações minhas, Gherardi(cenógrafo) executou alguns belos “decórs”.Entretanto, há ainda poucos dias, quase tomeiFracassi pelo braço para lhe dizer: é melhor desistirde tudo; paciência, não faremos mais “Oitoe Meio”...”A obra de Fellini apresenta-se, realmente, comoalgo tumultuado, pelo menos em sua aparência,desnorteante muitas vezes, ligado por uma lógicaabsurda, a lógica dos sonhos, em que realidadee ficção se alteram e se misturam, reminiscênciasda infância e eventos atuais se interligam e se engastamem cenários barrocos, ou, num contrastesignificativo, extremamente despojados, povoadospor fantasmas, por gente de um outro século,pela fauna exótica dos estúdios e dos meiosartísticos, da caterva da produção, ou pelas ferasda crítica cinematográfica... Fellini não poupaninguém, nem a ele próprio. Coloca-se no mesmoplano em que situa as demais personagens e sedá ênfase ocasional ao seu tipo, num “close up”eventual, é para, a seguir, trazer à mesma linhade aproximação, os atores secundários ou parasublinhar um episódio mais característico da ação.189


Oito e Meio (8 )de Federico Fellini, Itália, 196324 maio 1964190Parte IITudo em “Oito e Meio” se constrói, se desdobra,se revela, ou se narra através de uma linguagemem contraponto, sob a expressão de contracampos,numa alternância de ficção e realidade,do sonho e da vigília, sonhos antigos e sonhosrecentes, recordações da infância e a vivência dafase adulta. O cenário participa da contradiçãoe dos termos em contraposição, ora com a suacarga barroca a pesar sobre o jogo dramático dosatores, ora com o seu despojamento influindosobre a nudez subjetiva das personagens. Nudez,em verdade, porque em todo o desenvolver daação turbilhonante desse tema complexo Fellininão faz outra coisa senão desnudar, pela analisepsicológica, toda a galeria das personagens dofilme, ele próprio, seus amigos e colaboradores,os produtores da película, até os críticos poderosose implacáveis, ou o mais humilde artesãoda equipe realizadora da obra. Seqüências háe uma admirável, patética e contida composiçãodramática, estruturadas em elementos dedecomposição alegórica, subjetivas no cenárioestático, objetivas na movimentação dos tipos,soltos na intriga desordenada, presos na atualidadecoletiva (como se fora uma fatia viva damassa social), ou a fundir-se na solidão individual


desse homem atormentado nos abismos de suaconsciência, perdido na corrente contínua desua imaginação, largado no meio maledicenteda classe profissional de que depende, a que seincrusta, mas que repele e é por ela repelido, aomesmo tempo em que é por ela atraído. “Queriafazer um filme e nada consegui. Em ´Oito e Meio´apresento as minhas tentativas”, teria dito Fellini,ao estrear o filme em Roma. Terá sido sincero ogrande criador dessa obra singular? Ou teria sidoirônico consigo próprio, numa atitude esnobeque gosta de assumir, ou em relação a um público,que, em grande maioria, não compreenderáessa obra premeditadamente desigual e contraditória?Passado, presente, futuro, tempo/espaçonão contam para Fellini. Seu filme se movimentapelo impulso adquirido inicialmente na explosãode sua lógica fragmentada e numa atmosfera,ora rarefeita, ora adensada, alcança apogeus eperigeus de êxitos e malogros, de ódio e amor,de sarcasmo e ironia, do grotesco e do patético.Em certos momentos de “Oito e Meio”, Felliniatinge os extremos de sua sensibilidade criadorae não apenas se vale de suas próprias recordações,projetadas nas da infância de sua personagemno filme, numa incrustação dramática pungente,como atualiza esse passado, na justificação de seucomportamento de adulto, quase como querendoautojustificar seus deslizes humanos em relaçãoà sociedade em que vive, ou à mulher que ama.Assim é em todas as seqüências em que Guido191


192Anselmi recorda fases e acontecimentos de suameninice, provocadores, certamente, através defenômenos catárticos, ou de fixação, de suas indecisões,dos tormentos de sua imaginação artística,a serviço de sua profissão. E na ronda grotesca daúltima seqüência, com o bailado burlesco de todasas personagens do drama, fantasmas acusadoresdo malogro de Guido, só a derradeira imagemdo filme permanecerá pura, vivaz e otimista nodesfilar contínuo de todas as demais: um meninode branco a tocar um pífano solitário, enquantose esfumam as figuras da farsa, padres e palhaços,camponeses e prostitutas, um caleidoscópiohumano, patético e mordaz de que, afinal, só háde restar a imagem de um menino de branco, atocar um pífano solitário...Pacto Sinistro (Strangers on a Train)de Alfred Hitchcock, EUA, 195116 março 1962Fui rever “Pacto Sinistro”, do velho Hitchcock,talvez uma de suas peças de gênero melhor realizadas.Manejando uma excelente cenarização(roteiro), um grupo escolhido de atores e umiluminador competente, levou Hitchcock sua fitaao ápice da tensão emocional, aproveitando aomáximo as situações criadas pelo enredo. E é porisso que se sente o dedo desse veterano cineasta


em todos os momentos da película, até em pequenospormenores, valorizando-os e nivelando-osnum conjunto da mais alta expressão cinematográfica.Vejam-se, por exemplo, os trechos iniciaisda película. Em alguns metros e poucos minutosde projeção, identificam-se as personagens pelastomadas próximas dos pés descendo de um táxi,perambulando pela estação ferroviária, subindo aocarro “pullman” e, finalmente, cruzando-se, frentea frente, por debaixo da mesa do bar. O mesmocontra-ponto irá repetir-se mais tarde, numa situaçãotrágica, quando os esforços do campeãode tênis se mobilizam até o auge para vencer, empoucos “sets”, o seu adversário, ao mesmo tempoPacto Sinistro, de Alfred Hitchcock, 1951


em que os esforços do assassino paranóico se conjugampara reaver um isqueiro comprometedor,caído desastradamente dentro de uma “boca delobo” urbana. Tais situações são inúmeras em todoo transcorrer de “Pacto Sinistro”, temperadas àsvezes por momentos em que um humor macabro,tão grato a Hitchcock , dá um travo amargo-doce àsua peça, quando a personagem vivida por RobertWalker demonstra, a duas damas, em plenarecepção em casa de um senador da República,como se pode matar em silêncio um marido muitoquerido... O inesperado do lance e a sugestão dasimagens não só criam atmos fera de alta dramaticidade,provocadora mais de um esgar do que deum sorriso, como também mostram num relance apericulosidade mórbida da personagem, capaz detudo, até de assassinar o próprio pai, pelas mãos deum estranho, casualmente encontrado num trem.E seriam muitos os trechos a citar. Mas não possodeixar de falar sobre aquele que descreve a mortede “Miriam”, mostrada através de um par deóculos caído ao chão, numa atmosfera de parquede diversões, ao som da música de realejo, apenasentrecortado pelo ruído sinistro de um pulmão asufocar-se. E o desmantelamento de um carrossel,em seguida à luta de dois homens, por entre opavor dos cavalinhos de pau, são momentos hojeraros no cinema, em que poucas vezes se terámostrado maior sobriedade e maior dramaticidadeem tão poucos metros de película. Mas, só Deus eHitchcock sabem quanto custou tão pouco...195


Dionísio Azevedo e Leonardo Villar em O Pagador dePromessas, de Anselmo Duarte, 1962


O Pagador de Promessasde Anselmo Duarte, Brasil, 196208 agosto 1962Parte IBem, aí está esse “O Pagador de Promessas”, quetanto deu de falar de si, aqui e alhures, bem e mal láfora (certos críticos franceses não se conformaramcom a concessão da Palma de Ouro à película brasileira),bem e mal aqui dentro, pois, por incrível quepareça, já se destratou “O Pagador de Promessas”em São Paulo, logo após a sessão especial dedicadaà crítica, antes mesmo do Festival de Cannes.Mas isso não tem importância e o principal é ofato de haver a Palma de Ouro sido conquistadanum confronto duro, imparcialmente julgadoe em que se colocavam, como vencedor certos,homens como Buñuel, Bresson, Antonioni, PietroGermi ou Otto Preminger. O mais modesto de todos,um jovem desconhecido, quase um estreantena direção cinematográfica, foi contudo o vencedore, com a outorga do grande prêmio, talvezquisesse o júri de Cannes distinguir exatamenteo mais modesto, o mais jovem, o estreante dofestival, numa homenagem à sua juventude e aocinema que ele representava, tão digno da Palma,quanto os grandes ao seu lado. Não importa,realmente, que o despeito se haja manifestadodentro e fora. “O Pagador de Promessas” nãoprecisa desses exegetas de mau agouro, seu valorindepende da opinião deles.197


198Impressionara-me profundamente a obra de AnselmoDuarte, quando a assisti em abril último,antes de Cannes. Revi ontem, com a mesma emoçãoprofunda, a transposição dessa peça do teatrobrasileiro moderno para os quadros do cinema,brasileiro, principalmente. Cinema genuíno, originale sem imitações. Filme que, prendendo-se aoregional, ao nacional, se integra no universal e que,por ser a partícula de uma comunidade, é a célulade uma universidade. Cinema de linhas simplesmas de realização tão complexa, exatamente porse relacionar a uma intriga de raízes psicológicas,sociológicas, sentimentais e telúricas tão íntimas.Mas, apesar de contar com recursos que o teatronão possui, não quis Anselmo Duarte fugir dadimensão geográfica e dramática ideada por DiasGomes em sua peça, limitando, como num desafiotoda a ação cinematográfica ao âmbito muito restritodo adro da igreja de Sta. Bárbara, palco (e essetermo vem a calhar, justíssimo) de toda a tragédiadaquele homem rústico, que faz de sua promessauma questão de honra e de dignidade. O adro deSta. Bárbara seria assim um início e um fim. Iníciodo cumprimento da palavra dada e fim da vida deZé do Burro. E em redor desse pequeno mundo, agirar, como satélites, as personagens secundáriasda ação, atraídas pela força centrípeta do dramainterior de Zé do Burro, gerada naquele diálogode surdos, entre ele e o padre Olavo. Um, firmadoem sua fé de homem simplório, curtida ao sol dosertão. Outro, apoiado nos espeques do dogma,


nas sutilezas teológicas e em seus preconceitosde seminário. A fé, a boa e ingênua fé, contra aintolerância e a incompreensão. E em redor dosdois surdos, a cidade antiga. E no cenário barroco,os festeiros de Sta. Bárbara, os capoeiras de Canjiquinha,a mãe de santo, o Galego do Boteco, asvendedoras de acarajé, o Zé Coió, o Bonitão, exploradorde Marli, as beatas do pequeno submundoda Bahia, de Salvador, tão bem aproveitado porAnselmo Duarte, numa função certa e essencial nacaracterização universal de sua película. Um microcosmoem que costumes, crendices, superstiçõesancestrais se entrechocam com a fé, o dogma, aliturgia religiosa, num sincretismo por vezes primárioe agressivo.E se para alguns “O Pagador de Promessas” éum libelo contra a Igreja, creio que para muitosé uma exaltação da fé católica e da infinita tolerânciade Cristo. Assim pensou o clero da Bahia,que deu a Anselmo Duarte toda a sua ajuda.Bem haja a esses padres inteligentes.199O Pagador de Promessasde Anselmo Duarte, Brasil, 196209 agosto 1962Parte IIDireção e InterpretaçãoEm crônica de ontem, analisei o tema de “O Pagadorde Promessas” e o tratamento dramático


200que lhe deu Anselmo Duarte no cinema, quaseque limitando sua ação a um único cenário, noadro de Sta. Bárbara, onde fez evoluir a tragédiade Zé do Burro, na inutilidade de seu diálogo compadre Olavo, à frente de algumas dezenas depersonagens secundárias, o povinho das ladeirasde Salvador. Propósito árduo, levado a termo,contudo, através de soluções inteligentes, nãoraro engenhosíssimas. Aquele longo “travelling”ascendente, desdobrado no plano inclinado dasescadas de Sta. Bárbara, com a câmara a seguirpadre Olavo e Zé do Burro, à luz cinzenta da manhãnascente, é um exemplo bem representadoda habilidade com que se houve Anselmo Duartee sua equipe, na execução prática dessa inventiva,realizada com tal precisão que só os enfronhadosdas sutilezas técnicas do ofício podem perceber aexistência do artifício, sem imaginar entretantoa armação da carpintaria necessária a essa movimentaçãode câmara tão complexa. O efeito obtidopor essa subida de escadas (a transformar-seno símbolo capital da obra, o calvário de Zé doBurro) é surpreendente e funcional, provoca no espectadora impressão de que é o cenário todo quese movimenta em torno das duas personagens,abafando-as, mantendo-as quase imobilizadasno centro dramático da cenografia barroca. Háassim, visivelmente caracterizada em “O Pagadorde Promessas”, uma ânsia de criação raramentesentida antes no cinema brasileiro talvez apenasobjetivada em seqüências esparsas de muitas de


suas fitas, sem conseguir caracterizar-se num blocoorgânico. Sente-se esse ânimo criador a insuflartoda a película de Anselmo Duarte. Apenas numúnico momento abre-se uma brecha nesse bloco:quando aquele repórter sensacionalista, com aturba da televisão, entra no campo das câmaras,invadindo os degraus de Santa Bárbara com suademagogia jornalística. Que houvesse o demagogoa perturbar, com sua presença, o espíritopopular e a visão folclórica da festa pitoresca, seriaadmissível e funcional pela força do contraste. Oque destoa, contudo, é o traço, por demais carregadode caricatura, com que Anselmo Duartedelineou sua personagem, a mais insignificantede toda a galeria de tipos de “O Pagador dePromessas”. Fora disso, não há como deixar deadmirar a segurança e o “aplomb” com que Anselmoconduziu seus intérpretes nos meandrospejados de sutilezas psicológicas da representaçãodramática. E de que intérpretes conseguiu elevaler-se! Leonardo Vilar, primeiramente, por ser ocentro de toda a intriga, numa demonstração atéesbanjadora de seu talento, de sua versatilidadede ator. Sai das dimensões restritas do palco evai lá fora enfrentar as câmaras, não raro numatomada próxima em que vale mais o significadode um gesto, ou a centelha de um olhar, do queo fraseado do diálogo, ou a implicação da mímica.A enfrentá-lo, outro ator não menos seguro,não menos sombrio: Dionísio de Azevedo, o meuamigo Dionísio, que tanto se ressentiu, quando,201


202há alguns anos, tive a sinceridade de, neste jornal,lhe dizer, sem rodeios, minha opinião sobre a fitaque ele realizara então.Dionísio, por essa época,andava emperrado na falsa estética de um teatrode televisão que se dizia de vanguarda. Mas soubelibertar-se dele, a crise passou e Dionísio podeaparecer como, em verdade sempre foi, o atorgenuíno que é, com aquela humildade artísticaque tanto admirei, ou no teatro (“A Morte doCaixeiro Viajante”), ou no cinema (“A PrimeiraMissa”). Agora aí está ele em “O Pagador dePromessas”, em “Padre Olavo”, papel tão difícilquanto o de “Zé do Burro”, ao lado de LeonardoVilar, na mesma linha emotiva e humana, semnunca se apartarem ambos da austeridade desuas funções. E há que falar de Glória Menezes,de Norma Benguel, de Geraldo D´El Rey, de RobertoFerreira, de todo aquele elenco secundárioe humilde que dignifica a película de AnselmoDuarte. Mas isso ficará para outra oportunidade.O Pagador de Promessasde Anselmo Duarte, Brasil, 196210 agosto 1962Parte IIIComentários finaisNão tenho dúvidas de que um dos grandes fatoresdo êxito de “O Pagador de Promessas”


em Cannes foi a absoluta originalidade de seutema, de sua cenografia exterior, do aproveitamentodo folclore riquíssimo da Bahia e, só maisremotamente, o da interpretação de todos osatores. A arte dramática na Europa chegou a talrefinamento que um ator de fora, um ator sem aformação profissional (e só Deus sabe quão complexoe árduo é esse aprendizado), adquirida emescolas especializadas, em academias dramáticase no aperfeiçoamento com grandes professores,dificilmente há de impressionar um júri, numfestival internacional, em Cannes, em Veneza, emBerlim, em Edimburgo ou em Locarno. Acredito,pois, mais no fator da originalidade do tema, docenário barroco baiano, do aproveitamento folclóricocom que se armou a película de AnselmoDuarte (e na sua criação pessoal, está claro) a tercertamente uma extraordinária influência nojúri de Cannes, do que na possível contribuiçãodos intérpretes de “O Pagador de Promessas”na conquista da Palma de Ouro. É evidente queessa interpretação teve o seu peso no conjuntocriador da película, mas não foi, a meu ver, ofator decisivo da vitória. Ninguém, contudo, háde esquecer a figura patética de Leonardo Vilar,o vulto torturado de Dionísio de Azevedo, orosto conformado de Glória Meneses, a extremavitalidade de Norma Benguel, a contenção dramáticade Geraldo D´El Rey, o talento histriônicoe chaplinesco de Roberto Ferreira, aquele sinceríssimo“Zé Coió”, e a intuição dramática de todo203


204o elenco secundário de “O Pagador”, em que sesobressai a sensibilidade de Gilberto Marques (o“Galego”), de Antonio L. Sampaio (“Pitanga”), deMilton Gaúcho (o guarda), de Maria Conceição (a“Tia”) e a da turma dos capoeiras de Canjiquinha.Glória Meneses é realmente uma grande esperança(sua estréia em “O Pagador” já é mesmo umacerteza), desde que tenha a sorte de encontrarem suas próximas criações um diretor de elencoque, como Anselmo Duarte, saiba o que quer. Omesmo se dirá de Norma Benguel, irreconhecívelem “O Pagador”, totalmente diversa daquelaatriz apática e passiva de “Os Cafajestes”, ademonstrar, em toda cena em que aparece, dequanto é capaz numa interpretação dramáticaverdadeira e sincera. Geraldo D´El Rey, que viapagado e apático também em “Bahia de Todosos Santos”, de Trigueirinho Neto, ressuscita-seem “O Pagador” no papel dificílimo de “Bonitão”,sobriamente vivido, sem os exageros e ademagogia próprios do tipo que interpreta. Namesma linha de contenção se coloca Antonio L.Sampaio, “Pitanga”, que também em “Bahia deTodos os Santos” pouco se distinguiu (quantovale um diretor que saiba sofrer o papel de seusintérpretes, que saiba orientá-los nos meandrosperigosos da dramaturgia cinematográfica).Enfim, “O Pagador de Promessas” se apresentoudentro e fora do Brasil como uma película maiscompleta, técnica e artisticamente, que até hojese fez neste país. Nenhum setor de sua criação foi


menosprezado, desde o da esplêndida fotografiade Chick Fowle, um dos trabalhos mais importantesde seu currículo brasileiro, até o acabamentoda película, obra de montagem e de edição dignade grandes mestres (a Carlos Coimbra pertenceesse setor, que ele soube valorizar com a suacompetência, seu espírito de equipe e seu ânimode criador). Finalmente os louvores ao trabalhodo grupo da Rex Filme, laboratórios que se encarregaramdo tratamento de “O Pagador”, e aOsvaldo Massaini, o produtor corajoso que soubeacreditar em Dias Gomes, em Anselmo Duarte ena vitalidade admirável do cinema brasileiro. Atodos o meu aplauso comovido e sincero.205A Ponte do Destino (Across the Bridge)de Ken Annakin, Inglaterra, 195702 fevereiro 1961Em toda a sua literatura, talvez seja esta novela deGraham Greene – “Across the Bridge” – a que melhorse adaptou à linguagem dinâmica do cinema,dentro daquele jogo de paradoxos e contradições,tão caro a esse escritor amante de sarcasmos eironias, a manejar suas personagens em meio deeventos ambíguos e expectantes, como se fora,ele próprio, um deus humorista a rir-se lá de cimadas esquisitas situações que provoca entre os homensaqui embaixo. Sua linha dramática sempre


206se orientou nesse sentido e, em todas as películasoriundas de seus livros, há a predominância dojogo de antítese, a gerar sofrimentos, a fomentaródios, a criar angústias e tensas expectativas.“A Ponte do Destino” é uma película típica deGraham Greene e, diga-se desde já, uma peçaexcelentemente realizada, que há muito não seassistia no cinema inglês, nesse gênero tão caro aseus criadores maiores, Hitchcock inclusive, nessemisto de filme policial e de análise psicológica.Em “A Ponte do Destino”, conservaram-se fielmenteas características do estilo e das intençõesdo escritor inglês, integrando-se o diretor dofilme, ao espírito mordaz de Graham Greene eà atmosfera dramática e documentária própriado cinema britânico. Quase toda a peça foi realizadana Inglaterra, nos estúdios de Pinewood,estando perfeitamente ambientados os cenáriosdo filme, cuja ação ora transcorre em territórionorte-americano, ora em ruas e interiores de umapequena cidade da fronteira do México.Mas, é o lado humano que mais interessa nestapelícula inglesa, perfeitamente enquadradanuma técnica excelente, sob forma e dinâmicaeminentemente cinematográficas. O drama dofinancista, do estelionatário fugitivo (há quasesempre um fugitivo na ficção de Graham Greene ),possuidor de milhões e que com o seu amor aodinheiro não pôde comprar sua liberdade e suatranqüilidade, encontra nesta “A Ponte do Destino”o quadro expressivo para desenvolver-se,


numa fuga contínua e esquiva, em linhas retas ouondulantes, ora a quebrar-se aqui, reatando-semais adiante, ora a traçar-se ininterruptamenteaté de novo arremeter contra novos e imprevistosobstáculos, quando então tem de recompor-se eassim sucessivamente, atingindo afinal seu pontoúltimo em outra linha, essa a barrar a fuga, naponte internacional, a linha da fronteira, postaentre o México e os Estados Unidos.A película está otimamente interpretada, comRod Steiger sobriamente contido, sem os exageroshistriônicos do “Actor’s Studio”, bem adaptadoà escola naturalista do cinema inglês. Mas, a seulado, há outra intérprete que é preciso destacar:“Dolores”, uma pequena cadela “spaniel”, quesó falta falar. Rod Steiger e “Dolores” são realmenteos intérpretes maiores, o homem vivendoo seu drama de homem solitário (e há sempre umhomem só na obra de Graham Greene), o animalparticipando desse drama com o seu próprio drama,também o drama de um ser solitário.207A Primeira Missade Lima Barreto, Brasil, 1960junho de 1961Maio último viu passar pelas telas paulistanas amui esperada película “A Primeira Missa”, queLima Barreto, seu criador, vinha preparando e


208depois realizando, por conta e risco da CinematográficaCampos Elíseos. Segui intensamente apreparação liminar, a realização a seguir, acompanhandode perto o trabalho do autor de “OCangaceiro”, pois tudo quanto faz Lima Barretono cinema ou fora dele é para mim motivo dealto interesse e pretexto para com ele debaterproblemas do cinema em geral, do cinema brasileiroem particular. Apesar disso, sempre me sintodesgarrado de qualquer vínculo sentimental aotratar da obra de Lima Barreto, com quem sou deuma severidade sem freios, justamente por se tratardo cineasta experimentado e inteligente queé e não do estreante da criação cinematográfica,esse sim, a merecer indulgências, senão mesmoremissão de todos os pecados. Lima Barreto nãoprecisa mais de benevolências. Carece agora deuma crítica imparcial, dura e penetrante quandofor o caso, eis que sua obra, vasta e versátil nocinema documentário primeiramente, mais reduzida,mas de repercussão internacional quantoao cinema dramático, exige se escreva sobre suaspelículas com o rigor que sua importância impõe,toda vez que numa sala escura se projete algoassinado por ele.“A Primeira Missa” aí esteve nas salas escuras deSão Paulo. E talvez por haver sido muito esperada,constituiu-se essa peça romântica do criadorde Galdino num decepcionante espetáculo; afazer que o próprio público a quem se destinava“A Primeira Missa” saísse das casas de espetáculo


onde se exibia a fita sem aquele sentimento deentusiasmo que contribui para a melhor propagandade uma película, a propaganda oral, transmitidade boca em boca, da porta dos cinemasàs residências de cada espectador, a se difundircom a rapidez de uma gota de azeite caída sobreuma toalha de linho.Diga-se, contudo, desde já, que “A Primeira Missa”não é uma película ruim. É apenas uma películado meio-termo, o que, em se tratando de LimaBarreto, se torna realmente uma decepção. Mas,antes de tudo, “A Primeira Missa”, apesar de todaa sua paciente preparação intelectual, é uma peçapouco trabalhada. E se Lima Barreto, nas primeirasseqüências de sua fita, acertou em cheio – todo otrecho da infância de Bentinho –, já nas últimasdeixa-se levar por uma demagogia sentimentalque acabou por enredá-lo e o levou a perder-seno seu turbilhão dramático, prejudicando sua fitae comprometendo seu cinema. E se nas seqüênciasiniciais se houve ele com um ótimo cinema, aquelecinema de um Lima Barreto lúcido, aquele cinemavindo de quem sabe o que quer, nas finais, desgraçadamente,houve apenas algo de melodramáticoum tanto pueril e pouco inspirado, com soluçõesfáceis, com caracterização falsa, com situaçõesconvencionais, uma interpretação facciosa, porvezes a desandar pela caricatura simplória (ascenas da quermesse, com um Luciano Gregoryinsuportável, um “Luar do Sertão” intolerável, umleilão de roça a servir de símbolo de transição de209


210tempo, sem funcionalidade) e concessões transigentes(o horror de Mestre Zuza a bater no peitonum insustentável “mea culpa”) incompatíveisnum homem intransigente como Lima Barreto,cineasta de alta inteligência, inegavelmente umótimo diretor de elenco (o que conseguiu ele domenino José Mariano Filho, no papel de Bentinhoé algo que roça pelo milagre).Por outro lado, não conhecendo a novela de NairLacerda, que serviu de base e inspiração para “APrimeira Missa”, não sei até que ponto o autorde “O Cangaceiro” se tomou de liberdades paraadaptar a peça literária à tela. Creio, contudo, queLima Barreto usou e abusou em sua adaptação, emsua realização sobretudo, fazendo da novela umaoutra novela, esta numa linguagem de cinema,por vezes gongórico, enfático e até redundante.É isso, justamente, o que mais recrimino em “APrimeira Missa”, em sua versão definitiva. Os enxertos,as interpolações, as seqüências por demaisesticadas, ou excessivamente cortadas, fizeramda película uma obra fragmentada, não rarogratuitamente artificiosa. Não há uma estruturanarrativa uniforme e compacta, como seria de esperarde um Lima Barreto, com toda a experiênciae a fruição de todas as lições proporcionadas por“O Cangaceiro”. Há somente fragmentos, algunsexcelentes, de uma obra ótima, trechos dignos deuma antologia do cinema brasileiro, mas perdidosnessa peça desigual. E há ainda uma agravante:seqüências inteiras foram suprimidas na edição


definitiva da fita, umas das quais hei de lamentarsempre a omissão: a do velório de “Nhô Tonico”,quando uma pretinha de Remanso, que certamenteem sua existência humilde só vira velas acesasem bolo de aniversário, ao entrar no quarto emque jazia Tonico entre os quatro círios tradicionais,entoa o “parabéns a você”, sob o ritmo alegre daspalmas e dos gestos com as mãozinhas ingênuas...Pois esse momento de excepcional inspiração cinematográfica,que eu vi no copião grosso de “A PrimeiraMissa”, foi impiedosa e inexplicavelmentepodado da versão definitiva. Outras cenas foramtambém suprimidas, quando poderiam ter sidoapenas encurtadas, algumas, em compensação,foram encurtadas em demasia, daí talvez a origemdesse ritmo torto, desse aspecto desigual da películade Lima Barreto. Desigual, em verdade, oraa denunciar um Lima Barreto legítimo, apurado eromântico, ora um Lima Barreto grandiloqüente,até primário cinematograficamente. Genuíno,cheio de ternura, lá está o velho Lima, jogandoapenas com Bentinho e Mestre Zuza (admiravelmenteinterpretado por Dionísio de Azevedo).Enfático, ou simplesmente caricatural, aí está umLima Barreto falsificado, resolvendo situações oufrases de sua narrativa em fusões sem função,ou em movimentos de câmara na construção desímbolos ou alegorias, há muito superados, oupobremente imaginados.Desigual sim, até mesmo na formalística litúrgicado catolicismo, com Lima Barreto, tal como o211


212fizera com a novela de Nair Lacerda, se tomandode liberdades com o ritual das cerimôniasreligiosas, como foi o caso do ritual da “primeiramissa” de Bentinho, aquele entra e sai de oficiantesno altar mor da igreja de Remanso, lancecinematográfico assim realizado somente como fito de criar expectativa emocional em “NháColaquinha”, à espera da aparição do filho noaltar, e, evidentemente, no público, à espera tambémda personagem na tela. Por outro lado, hácertas incongruências imperdoá veis na estruturadramática da fita. Por exemplo: não é admissívelque um seminarista formado, se lance num cursosuperior de extensão cultural e de doutorado emTeologia, sem haver rezado sua primeira missa,como o óbvio. Pois, Bentinho, não só passoutoda sua infância, depois sua adolescência, aseguir parte de sua idade adulta sem uma vezsequer visitar sua mãe em Remanso (o que seriauma desumanidade por parte das autoridadeseclesiásticas, que não fariam isso em nenhumahipótese), como também Bentinho, já sacerdoteformado, se foi para a Universidade de Louvain,lá se doutorou, sem haver rezado uma única missa,reservando essa cerimônia, que seria, querocrer, uma espécie de “colação de grau” da carreirasacerdotal, para oficiá-la em Remanso, tudopor obra e graça de Lima Barreto, um cineastaa se achar cercado por conselheiros, sacerdoteseruditos, sem dúvida. Não os culpo, contudo, levotudo à conta do diretor da fita, às vezes teimoso


e intransigente em suas rea lizações. Mas, se “APrimeira Missa” se produziu primordialmente,tendo em vista narrar a história de uma vocação,se a Igreja tinha todo interesse em reconstituirnessa história uma realidade essencial e espiritual,por que haveria Lima Barreto de falsear essarealidade e a Igreja de permitir o desvirtuamentode suas próprias liturgias?E que dizer de Mestre Zuza, quando se propõepreparar Bentinho para o seminário? Então prepararum menino humilde, semi-alfabetizado, épapaguear erudição, é explicar-lhe as teses daSumma Theologica, é integrá-lo no pensamentotomista? Não teria sido melhor haver ensinado aBentinho a declinação de “Rosa-ae” e deixar SãoTomás sossegado? Perdido nesse “imbróglio”litúrgico, nesse emaranhamento dramático, LimaBarreto deixou escapar a única oportunidadeque já teve de realizar uma obra-prima completano cinema brasileiro. Sua fita, se posta sob a luzda atualidade de nosso cinema, é apenas umaboa fita. Se colocada sob a dinâmica do cinemauniversal é uma peça francamente ruim. Fragmentáriae dispersiva, salvam-se retalhos de “APrimeira Missa”, com interpretação em geralmuito boa, fotografia de Chick Fowle fora docomum, música de Gabriel Migliori também aseguir o bom nível técnico da película.Que as boas graças da madrinha de Bentinho alcancemtambém Lima Barreto e o ajudem daquipor diante a mudar de caminho. Atitudes espar-213


Filmagens de O Cangaceiro: Marisa Prado e Chick Fowle,fotógrafo do filme de Lima Barreto, 1952


amadas e trabalho com olhos fitos em prêmiose honrarias só podem trazer doestos e angústias.Humildade perante a grandeza do Cinema emodéstia perante a obra humana é o que deveagora contar. Agora e sempre, amém!Revista AnhembiO Príncipe Encantado(The Prince and the Showgirl)de Laurence Olivier, Inglaterra/EUA, 195709 julho 1958Depois de haver demonstrado convincentementede como se deve manobrar para agarrar-se ummilionário, no cinema norte-americano, MarilynMonroe reaparece agora empunhando outro corolário,que se propõe demonstrar também, destafeita no cinema inglês: como agarrar um príncipelegítimo, a reinar numa região qualquer dos Bálcãs.Cansada, talvez, de tanto rebolar-se, por obrigaçãoe força contratual, farta possivelmente dasglórias de seu campeão de “baseball”, grosseiro echucro, Marilyn não pestanejou: tratou dos estatutosde nova sociedade conjugal, paragrafando-oscom Arthur Miller – o excomungado do macarthismo– e de posse dessa carta constitucional,foi tentar vida nova em sua carreira dramática naInglaterra, ao lado de um dos maiores intérpretesde Shakespeare, no cinema e no teatro – Laurence215


Marilyn Monroe e Laurence Olivier em O PríncipeEncantado, 1957


Olivier. Desse conúbio artístico nasceu o “O PríncipeEncantado”. Pois, ali estão, perfeitamentecomprovados, dois fatos novos: a direção de Olivier,derivando dos mares caudalosos da tragédiashakespeariana e a bifurcar para as águas maisamenas da comédia satírica; e a experiência deMarilyn Monroe, menosprezando alguns milhõesde devotados admiradores, de todas as idades, ede quem se tornara a “pin up” preferida, para, emoutras plagas, tentar a comédia dramática, gêneropor que se sentia irresistivelmente atraída. Ambasas experiências se conjugaram perfeitamentenessa película engraçada, tão bem e sobriamentelevada a cabo por Olivier, que ao lado de Marilyn,interpreta-a a seu modo, isto é, num estilo clássico,quase litúrgico, naquele seu ritual costumeiro,estigmatizado em suas criações no cinema desde“Henrique V” até “Ricardo III”. Evidentemente,a distância é longa, no espaço e no tempo, entreShakespeare e Terence Rattingan, autor da peçae do argumento cinematográfico de “The Princeand the Showgirl”, e na afirmação anterior nãovai o menor intento de equiparar o comediógrafomoderno, com o bardo antigo. Laurence Olivier,entretanto, soube aproximá-los discretamente,dentro da dignidade da dramaturgia, nivelando-osna correção de sua “cineturgia”, seja-me permitidaa expressão. Sentem-se, assim, na comédia satíricade agora, o estilo tão pessoal, o criador, o intérpretedas tragédias apaixonadas do poeta do Avon.E nem Shakespeare se sentiu diminuído com isso,217


218nem a Terence Rattingan será licito envaidecer-secom o fato, todo o mérito cabendo a Olivier, naverdade, um dos homens mais inteligentes docinema e do teatro contemporâneos.O tema de “O Príncipe Encantado” não é novo,nem no teatro, nem no cinema. O “vaudeville” ea opereta exploraram-no até exaustão no palcoe, na tela, não faltaram também os seus aproveitadores,Ernst Lubitsch, notadamente. Mas a fitade Olivier não é “vaudeville”, não é opereta, nemmuito menos poderá ser aproximada de qualquerdas fitas de Lubitsch. Este último realizador costumavaimpor às suas películas um “toque” demalícia, mais do que sátira, um sinete mais latino,do que saxônico. Olivier, não. Sua formaçãocultural e suas origens essencialmente britânicasconduziram-no diretamente da crítica de costumesà sátira, ao sarcasmo e à ironia, tendênciasespirituais, que os ingleses cultivam reverentementee de que sua literatura se fez um espelhocheio de reflexos. A sua interpretação do regentebalcânico está mais próxima de um príncipe deGales, do que, em verdade, de qualquer príncipedo Danúbio. O regente é ferino, fleugmático eirônico até as raias da crueldade, como todo bom“gentleman” dos princípios do século. Só a ingenuidade,a sinceridade, a bondade de coração dacorista bonita e plebéia enfrentariam com sucessoa insolência desse regente dos Bálcãs, mas tãobritânico, sob a pele de Laurence Olivier. Dessecontraste entre os dois intérpretes – a arrogância


de Olivier e a beleza simples de Marilyn Monroe –nasce o encanto maior desse “O Príncipe Encantado”,que é toda uma corrente, fluida e contínua,de seqüencias e cenas de encantadora e ocultamalícia. É sob a ponta amável, mas aguçada, deseu espírito, que Olivier vergasta a nobreza, atradição, os costumes, a inquebrantável etiquetadas cortes européias, da inglesa principalmente.Quando o príncipe condecora a corista com umaordem de segunda classe, mas muito mais vistosado que qualquer outra de primeira, fica-se apensar como se condecoraria uma Eva Perón, porexemplo, se a corte britânica se visse enredadaem tal alternativa diplomática... E ao sair a pobrecorista do palácio, com as jóias e os “souvenirs”conquistados por essa dama de um só dia, abrigadaagora no seu impermeável humilde, emsubstituição à capa de arminho que envergarana véspera, imaginam-se facilmente todas asgatas borralheiras, da fábula e da realidade, queviveram neste e em outros séculos com as glóriasdos reis e o escárnio das multidões, a arrastá-las,depois, nas sarjetas de todas as revoluções.219Quando Fala o Coração (Spellbound)de Alfred Hitchcock, EUA, 194505 julho 1946Por várias vezes tem tentado penetrar o cinemanorte-americano nesse mundo de sonhos e


220recalques, do consciente e do subconsciente dolibido e do complexo: o mundo da psicanálise.E malogro total quase sempre tem resultadodessas tentativas, não raro a adernar para umridículo sem apelação, abalroando a realidadeem situações falsas e pueris, sem qualquer consistência,como, por exemplo, “A mulher quenão sabia amar” (“Lady in the dark”), em queGinger Rogers desperdiçou o seu talento e o“tecnicolor” a paleta de seus matizes.O tema, em verdade, atraente e apaixonante, nãocomporta meio-termo; ou proporciona elementosda mais alta qualidade, tanto para um diretor decena sutil e, principalmente, culto como a burilaçãode efeitos especiais de fotografia, cujos técnicos,bem enfronhados no assunto, têm, nos meandrosdo inconsciente as mais fantasmagóricas arestaspor onde se agarrar a composição analítica deseus quadros; ou acomoda tudo isso e possibilitauma obra de arte, de puro cinema, ou descamba aexperiência para um fracasso absoluto, como, atéagora, em geral, tem acontecido. Que nos lembremos,um diretor apenas realizou qualquer coisanesse sentido, ainda que não haja baseado o temade seu trabalho na psicanálise tão-somente: CurtisBenhardt, em “Conflitos d’alma”, esse refugiadoalemão, que se revelou plenamente nos estúdiosda Warner Brothers aflorou naquela fila, a teseabsorvente, havendo obtido notáveis resultadosna demonstração cinematográfica dos processosinteriores da mente de um psicopata.


Alfred Hitchcock não tentara ainda a aventura.Lançou-se, finalmente por esse caminho cheio deabrolhos, mas tê-lo munido de todas as precauçõescontra o inimigo escorregadio – o ridículo -,a espreitar sua vítima, pronto para o bote oportuno,em cada fase da realização de tais temas nocinema. Cercou-se de conselheiros, técnicos, depsi quia tra, de habilíssimo cenarista, de artistasde alta sensibilidade, de fotógrafo mestre emsua arte, de notável diretor artístico e, até, deum pintor moderno, pois talvez só a pintura, asurrealista, principalmente, poderia objetivar, demodo preciso, a abstração do mundo dos sonhos.Pois Hitchcock ultrapassou qualquer previsão; oque, para muitos, poderia ter parecido irrealizável,para esse diretor britânico a tese se transformounuma vivíssima dramatização, glosada com tal purezae simplicidade, que os estados de consciênciapor ele descritos vêm cá fora, desprendem-se datela numa terceira dimensão, peneiram na mentedo espectador, fazendo com que ele, dali pordiante, participe da luta e do sofrimento naqueleemaranhado mórbido, de ação por vezes violentíssima,em torno do qual gravitam a fé e a paixãoinacabáveis, comoventes, da “Dra. Constance”pelo pobre e esquálido “J.B.”.Só grandes mestres em cinema e de arte em geralpoderiam realizar uma película do valor excepcionaldessa “Spellbound” – titulo originário, asignificar “encantamento, palavras mágicas”, queo tradutor comodista verteu para “Quando fala o221


222coração”. Grandes mestres como Alfred Hitchcock ,na direção de cena, James Basevi, na direçãoartística, Ben Hecht, o cenarista, Salvador Dalí, osurrealista catalão, autor dos desenhos descritivosdo sonho do pseudo “dr. Edwardes”, um dos maisloucos e notáveis momentos que o cinema temalcançado: George Barnes, o mago da fotografia,que ultrapassou a sua técnica, toda própria, naperfeição daqueles impossíveis efeitos que logrouatingir nas seqüências de “Quando fala o coração”(veja-se, entre outros, o primor da cena tomadaatravés de um copo de leite a mergulhar, gole agole, o consciente de “J.B.” na brancura do nada;a visão interior, no intimo do “dr. Edwardes”, doprocesso psicológico provocado pelo primeirobeijo trocado entre ele e a “Dra. Constance”; apenúltima cena da fita, aquele realíssimo suicídio,aquele tiro desfechado, à queima-roupa, nocoração do próprio espectador, num clarão avermelhadotomando instantaneamente a tela toda,a concepção mais arrojada de um tiro de revólver,jamais realizada no cinema.)O elenco esteve à altura dos executores: IngridBergman, num dos melhores desempenhos desua carreira; Gregory Peck, a sobriedade personificada,na expressão de um dificílimo papel; MichaelChekhov, - uma autoridade em matéria deteatro americano e europeu, sobrinho do grandedramaturgo Anton Chekhov -, pela primeira vez,na tela, personifica um psicanalista que desta feitaconvence, em verdade; Rhonda Flemming faz


a sua estréia nessa fita, na pele de uma neuróticae fá-lo expressivamente. Os demais participantesseguem essa linha de alta qualidade dramática,um conjunto unido, sem restrições, numa obrade puro, de puríssimo cinema.Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot)de Billy Wilder, EUA, 195903 dezembro 1959A esta película de Billy Wilder – “Some Like itHot” – os franceses a chamariam certamente deloufoque (lunática,maluca), tais os desatinos quenela se cometem e a lógica do absurdo que emseu argumento se desenvolve. No Brasil, paramuitos, a comédia será apenas uma variante da“hora da saudade”, transposta para o cinema edestinada a trazer à tona da memória as lembrançascinematográficas dos tempos antigos,da época em que Al Capone reinava absoluto emChicago e Hollywood dele e de seus homens seaproveitava para explorar nas telas as conseqüênciasda “proibição” e as aventuras das “gangs”organizadas. Para mim, contudo, “Quanto maisquente melhor” é um misto disso tudo, tratadonuma saborosíssima comédia, pontuada de sátiraao próprio cinema, não apenas aquele emque Mack Sennett apresentava suas “bathingbeauties”, senão também o de Howard Hawks,223


224valendo-se das façanhas dos “gangsters” para denunciarnas telas a corrupção pelo poder trazidanos rastros de uma lei puritana e reacionária – alei da Proibição – mais danosa para a grande naçãonorte-americana, do que os efeitos do álcoolque pretendia suprimir. Com tais elementos, BillyWilder realizou sua “Some Like it Hot”, tudo a seprestar para uma dessas sátiras que ele, mais doque qualquer outro, compõe com perfeição. Defato, a moda de 1929 (tão grotesca então, quantoridícula a de hoje, que procura imitar a daqueletempo), os feitos “gloriosos” dos “gangsters” eos tipos inigualáveis de suas quadrilhas, os estilose as tendências cinematográficas da década dosanos vinte transportados para o cinema da eraatômica, de alta fidelidade eletrônica, tudo haveriade resultar, por absurdo, no mesmo efeitoque um mosqueteiro desbragado produziria numconvento, ao tempo do fogo da Inquisição. Essesefeitos de surpresa, Billy Wilder soube tirar doargumento de sua comédia, transformando-osem “gags” irresistíveis, pelo contraste de seutratamento: o estilo cinematográfico de 1929, desenvolvidocom a técnica aperfeiçoadíssima e osrecursos infinitos do cinema de 1959. E para quetudo se cobrisse de um verniz de autenticidade,desdenhou Billy Wilder a cor e o cinemascópio,elementos característicos do cinema moderno,para adotar uma fotografia em branco e pretocuidadíssima, nas dimensões antigas, elementospróprios do cinema de então. E no seu elenco fez


figurar nomes de velhos atores, numa rememoraçãodos velhos tempos também: George Raft,Joe E. Brown, George E. Stone, Pat O’ Brien eoutros de feições características, especializadosna interpretação de tipos representativos dasantigas quadrilhas de Chicago, Marilyn Monroe,Tony Curtis e Jack Lemmon se encarregam dospapéis principais.Não será preciso dizer que se comportam com ainteligência e a sensibilidade costumeira, nessafita desempenhando papéis e vivendo situaçõestotalmente opostas àqueles que rotineiramentelhe são confiados.Um espetáculo inteligente e divertido, poucasvezes visto nestas últimas temporadas.225Romance na Itália (Viaggio In Itália)de Roberto Rossellini, Itália/França, 195325 novembro 1957De uma dramática ironia se reveste a exibição emSão Paulo de “Romance na Itália”, de RobertoRossellini, pouco tempo depois de ser conhecidaa separação de Ingrid Bergman desse cineastaitaliano, a realidade, como sempre, ultrapassando,de muito, os limites da simples ficção. Ao tempoem que foi realizada a fita, Rossellini e a bela atrizsueca vivem serenamente a história de amor, iniciada,poucos anos antes, nas encostas do Stromboli.


226Em Nápoles se desenvolve “Viaggio in Italia”,nessa cidade de estranha plástica, em cuja atmosferapaira um sentimento realista, imediato eprofundo, o sentimento da vida eterna, conformeo próprio Rossellini descreveu o ambiente de suapelícula. Nápoles e seus “lazzaroni” espertos, as“scunizzas” de grandes olhos negros e álacresde seus becos e vielas, os seus museus eternos,Miguel Ângelo, ou o escultor cujo nome os séculostornaram desconhecido, as catacumbas,iluminadas pela chama de centenas de velas,lâmpadas votivas comoventes, que a superstiçãoe a bondade inata do napolitano por ali dispuseram,em memória de uma criatura morta hámais de mil anos, Capri bem defronte, o Vesúviolá ao longe, Herculanum e Pompéia acolá, eis apaisagem antiqüíssima a envolver, um casal deingleses, tocado por aquela mútua indiferençasurdida de vidas malogradas. Mas, cada cantode Nápoles, impregnado de misteriosos sortilégios,estranhos eflúvios deixados pela tradiçãodos muitos conquistadores da antiga cidadela,começa a soprar o seu calor na alma de ambos,tão fria e imune aparentemente à influência dessemeio sentimental. Cada elemento dessa paisagemcontribui para a transformação dos dois seres quese amam secretamente: os ingênuos oratórios dasruas, as mulheres grávidas em peregrinação porcertos recantos da cidade velha, as estátuas dosmuseus, os ossos das catacumbas, o comoventedespertar dos mortos de Pompéia, retornando à


forma e à posição em que foram surpreendidosem suas casas, nas ruas, nos banhos, subitamentecobertos e sufocados pela chuva de cinzas e aonda de gases cuspida pela montanha terrívele impiedosa, tudo é um símbolo de esperança,um sinete revelador, uma contribuição para oretorno aos verdes anos, ao amor antigo, queincompreensões e orgulhos mal feridos atingiramprofundamente. Rossellini conta essa história coma sua sutileza característica, abrindo, uma vezmais, o mundo introspectivo de suas personagens,para uma análise psicológica, mais sentida numolhar, num movimento dos atores ou de câmara,do que cruamente exposta à vista ou à perspicáciado espectador. Entretanto, embora narrada subjetivamente,eis a fita de Rossellini que mais seajusta aos princípios da escola de que foi um dosmais ilustres fundadores – o neo-realismo, princípiospara ele, aliás, a constituírem uma posiçãomoral, antes de se tornar uma posição estética.Mas, “Viaggio in Italia” será talvez uma posiçãoestética, antes de ser uma posição moral. Abrindonovas perspectivas à linguagem do cinema, descobrenovos aspectos de sua paisagem infinita.Numa obra de tal envergadura, a dotar a tela deuma terceira dimensão, que não vem de nenhumatécnica atual, sem cinemascópio para rasgar grandesamplitudes, apenas emergida da inteligênciae da sensibilidade desse grande cineasta, nessapelícula excepcional, não há pormenores nemsupérfluos. Tudo nela é essencial. O Hércules de227


Miguel Ângelo ou o casal de pompeanos, despertadodo seu sono milenar sob o ímpeto de umainstilação de gesso, para acordar a consciência dedois entes que se amam neste século, tal e qual seamavam o patrício ou o plebeu na antigüidadedos gregos e dos romanos. Milagre napolitano,milagre de “San Gennaro”, milagre de Rossellini,numa época tão avessa aos milagres. Milagres docinema, simplesmente.Seduzida e Abandonada(Sedotta e Abbandonatta)de Pietro Germi, Itália/França, 196422826 março 1965Em verdade, esta “Seduzida e Abandonada” éuma seqüela imediata de “Divórcio à Italiana”,obra do mesmo realizador, Pietro Germi, comalguns dos atores que participaram do elencodaquele filme em 1962, a transcorrer até no mesmocenário na Sicília, a província italiana cujoscostumes e tradições têm servido de tema naobra naturalista de tantos realizadores do cinemapeninsular. Ao tempo de “Divórcio à Italiana”,escrevi aqui a respeito de Pietro Germi:“Com esta sua ‘Divórcio à Italiana’, Pietro Germidespoja-se inteiramente de qualquer escrúpulo,de qualquer censura subjacente, numa comédiade crítica por fora, numa tragédia burguesa por


dentro. Peça tragicômica, se quiser, para mim umaobra amarga implacável e sarcástica, mas capaz deprovocar um ricto de saturação do que um sorrisode satisfação. Desta feita, ninguém escapa do olhoferino e mordaz de Pietro Germi. Toma ele de umacomunidade provinciana, disseca-a primeiramentee a reduz a lâminas, expondo-a depois aos olhosdo espectador com crueza impiedosa e ampliadaainda pelas lentes de fundo alcance de sua câmara.As lâminas se vão renovando na tela, na proporçãoem que se desdobra a dramaturgia cinematográfica,dentro de quadros próprios, do cenário rococó,em que todos os recursos do cinema são válidos,mesmo os do cinema mudo, até os de um cinemasurrealista, até os de uma música gongórica comoa de uma ópera, ou como a eloqüência retórica deum tribuno da plebe.”Pois bem, eis que retorna o diretor ao cenárioprovinciano, com o mesmo ímpeto anterior,com fúria redobrada agora, não apenas sarcásticae ferina, mas francamente caricatural eimpiedosamente demolidor. Não satisfeito dehaver satirizado em “Divórcio à Italiana”, umaaristocracia decadente de grandeza só restanteno brasão esculpido em pedra carcomida, à portadas mansões quase em ruínas, Pietro Germi arremeteagora contra a burguesia, classe eterna,que não desaparecerá nunca. Agora é a vez dochefe de clã, intransigente em matéria de honrafamiliar, prepotente e grosseiro, capaz de moerde pancada a filha que prevaricou e perverteu-se229


230e que para salvaguardar as aparências cometeráos atos mais prosaicos e brutais, por meio de subterfúgios,evasivas e barganhas. Pietro Germi secompraz nesses impulsos furiosos e furiosamentearrasa tudo. Numa turbulência raramente vistaem cinema, teatro ou literatura, vai às últimasconseqüências de um ato, esmiúça um comportamentono que possa ter de mais íntimo, analisauma situação individual ou coletiva em seustraços mais ásperos, em sua índole mais rude.Por isso, seu filme, por vezes, se apresenta irreverentementechocante e até repulsivo. Mas, emmuitas seqüências, assume proporções patéticas,como a da morte do chefe da família, algo tãobem descrito, tão dramaticamente observado,quanto “La Mort du Père”, narrada em “LesThibauds”, de Roger Martin du Gard, páginaseternas da literatura universal, fragmento cinematográficodigno de uma antologia. E o finaldo filme, a pedra tumular com sua divisa tribal– “Onore e Famiglia” – é ainda uma última emordaz tirada de Germi às gentes e costumes daSicília, pequeno microcosmo da grande aventurahumana no Mediterrâneo, que, com pequenasderivações, tanto poderia viver-se ali, quanto noAtlântico ou no Pacífico. Ao assistir ao espetáculo,tive a impressão muitas vezes de me achardebruçado à janela a observar a vida lá embaixo,no Brás, Bexiga ou Barra Funda... Fiquei a melembrar de Antonio de Alcântara Machado, o escritorpaulista que tão bem descreveu o pitoresco


mundo ítalo-brasileiro, o mundo da “Bianca” eda “Carmela” (“se via que era distinta”...) e do“Gaetaninho”, que “amassou o bonde”...Sorrisos de Uma Noite de Amor(Sommarnattens Leende)de Ingmar Bergman, Suécia, 195506 fevereiro 1959Anunciada há muito tempo, aguardava-se comgrande expectativa a exibição de “Sorrisos de umaNoite de Amor”, cujo diretor, Ingmar Bergman, éhoje um dos realizadores mais inteligentes do cinemaeuropeu, talvez um dos mais inquietos dessecinema singular qual é o da Suécia. Sob grandeexpectativa, sem dúvida, era esperada sua película,pois esse cineasta desfruta de enorme prestígioem São Paulo, desde que a Cinemateca Brasileira,atendendo à solicitação de alguns estudiosos desua obra, conferiu-lhe as honras da apresentaçãode um ciclo de suas películas, há questão de unsdois ou três anos. Tudo que se fizer, realmente,em benefício do maior conhecimento de IngmarBergman e de sua cinegrafia, justifica-se de plano,eis que se trata de um homem excepcionaldentro dos quadros do cinema contemporâneo,um homem sensível e culto, dotado de grandepoder de observação, de fertilíssima imaginação,atributos que sabe colocar a serviço de “seu”231


232cinema, personalíssimo e poético, um cinemaque não é feito de improviso, mas sob pacientee árduo trabalho de pesquisa e de elaboração.“Realizar uma película, diz Ingmar Bergman, éorganizar, cada vez, um universo novo, é jogarcom os elementos da indústria, dinheiro, meios defabricação, tomadas de vista, revelação da película,a observância de um horário pré-estabelecido(que nunca pode ser levado à risca, entretanto)e de um plano de produção rigorosamente estudadoe todos aqueles fatores imprevisíveis eirracionais, aos quais é preciso conceder a maiorporcentagem, no total previsto. Mas, realizar umapelícula é também suportar dias e dias de trabalhoobstinado, é também a luta ininterrupta entre avontade e o dever, entre a visão e a realidade,entre a consciência e a preguiça. E quando afirmoisso, refiro-me igualmente às noites sem dormir,refiro-me a um sentimento mais agudo do que aprópria continuidade da vida, a essa espécie defanatismo em que só o trabalho conta e pelo qualeu me torno uma parte integrante da mecânicado cinema, eu me transformo num aparelho ridiculamenteminúsculo, cujo único defeito é o deprecisar comer e dormir”. Nessa afirmação sincerae exaltada está toda a dinâmica criadora da obrade Bergman, certamente um místico do cinema,um iluminado da gênese cinematográfica, umde seus poetas maiores e mais sutis. Toda peçasua é um ímpeto febril, é aquela exaltação quemove e impele os que crêem, os que precisam


gerar algo e sentem que não têm muito tempopara fazê-lo. Trabalham assim sob uma constanteexuberância, estado de ânimo a se refletir depoisna obra gerada. As fitas de Ingmar Bergmanprovocam realmente essa impressão exultante, atraduzir-se em todos os seus setores de criação,na composição do quadro, na sua funcionalíssimailuminação, na intriga da história, no seu ritmonarrativo e sobretudo na inspirada direção deatores. “Sorrisos de uma Noite de Amor” é bemum hino à gestação, é bem uma obra parece quefeita sob o choque de um único impulso, sob oatrito daquela centelha do infinito, pela qual umser superior pôde criar todas as coisas, segundo adialética hegeliana. Introspectivo ao extremo, cultivaBergman os símbolos e se expressa por meiode constantes, que também são uma afirmativade seu temperamento exaltado. Assim por exemplo,o curto verão nórdico é uma obsessão em suaobra: “Sommarlek”, “Sommaren Med Monnika”,“Sommarnattens Leende”, a palavra “Sommar”(Verão) a repetir-se incessantemente nos diálogosde muitas de suas fitas, nessa “Sorrisos de umaNoite de Amor” mais particularmente, e cujo títulooriginal é “Sorrisos de uma Noite de Verão”.Aliás, tanto o Verão, quanto o Amor, símbolos decriação e procriação, constituem os temas preferidosde Ingmar Bergman , fato perfeitamenteexplicável, pois tanto o sentimento, quanto acurta estação climática das regiões nórdicas sãouma exaltação, são uma febre avassaladora a233


234envol ver todas as coisas e todos os seres, para quetudo possa gerar, crescer e frutificar, antes quesurjam, nas planícies, a bruma, os ventos, os gelose as neves dos invernos. Autor genuíno e puro,suas comédias, cheias de sátira e malícia ainda quepersonalíssimas, talvez possam ser tidas como a sofrera influência de Lubitsch, ou de Feydeau, pois,à primeira vista, o estilo de Bergman se traduzassim com aquela leveza da opereta ou das peçasquase dançantes do teatro de “vaudeville”. Mas,Bergman, como já disse, está isento de influências,o tratamento de suas fitas revela a genuinidadee a força pura desse artista singular, talvez únicono quadro universal do cinema contemporâneo. Apelícula que ora se apresenta em São Paulo é obraadmirável, que bem revela a estranha temáticadesse autor original. Terei a ela de voltar, logoque uma oportunidade se ofereça.Spartacus (Spartacus)de Stanley Kubrick, EUA, 196023 março 1961A carreira de Stanley Kubrick no cinema norteamericanopode ser classificada como a de umjovem que venceu súbita e triunfalmente. Já aos23 anos, Kubrick era documentarista, iluminador,roteirista, montador, editor, produtor, fazendotudo isso no “seu” cinema, ora no documentário


simples, como “Flying Padre”, ora no filme delonga-metragem, como “A Morte Passou porPerto”, ou “O Grande Golpe”, além de ser umpolemista vee mente com aquela sua excepcional“Glória Feita de Sangue” (proibida em muitospaíses europeus) ou com a sua próxima “Lolita”,em curso de produção. Entrementes, lançar-se-iana realização do grande espetáculo, com “Spartacus”.Por se tratar justamente de um espetáculode alta montagem, como é de hábito no cinemanorte-americano, em tal gênero de produçãonada se negou a Stanley Kubrick, até mesmo lhefoi proporcionada a película de bitola larguíssima,a cor caríssima do “tecnicolor”, a cenografiaambiciosíssima, um elenco enorme, compostode grandes nomes e um corpo de técnicos deprimeira grandeza. Estamos, pois, muito distantesdas modestas produções de Kubrick, em queesse jovem fazia de tudo em sua realização. Mas,mesmo lá no alto dos escalões cinematográficosde grande montagem, Kubrick não deixou quesua inteligência e sua competência se comprometessem,conseguindo que “Spartacus”, comopeça de cinema, propriamente dita, se colocassebem acima de “Ben-Hur”, ou de “Os Dez Mandamentos”,nada lhes ficando a dever em matériade riqueza de montagem, ultrapassando-as demuito no que concerne à estrutura cinematográfica,à dinâmica, à pesquisa plástica e à sintaxe docinema. Realmente, Stanley Kubrick conseguiuinfundir ao grande espetáculo aquela ânsia de235


236renovação com que costumava caracterizar suaspelículas mais modestas. “Spartacus” reflete bemas pesquisas antigas, iniciadas na conquista de umvocabulário que tanto serviu para os exercíciosde estilo, para o jogo das figuras de retórica, daselipses, das ênfases, dos paradoxos, dos termosnovos que tanto marcaram “A Morte Passou porPerto”, ou que entraram na construção, maissóbria, de “Glória feita de Sangue”.Em “Spartacus”, há momentos de inexcedívelbeleza, na cor, na técnica, na interpretação, nacenografia, na movimentação da câmara e deatores, tudo se conjugando em perfeita enquadração,tudo se completando na edição final.Vejam-se as cenas do treino dos gladiadores; aseqüência da morte de Marcelo; as sessões do SenadoRomano, as da batalha campal entre os escravosrevoltados; a Via Appia, com suas margenssinistras fincadas pelo martírio dos crucificados.Momentos de uma beleza épica, de uma poesiatrágica, de cor e plástica participantes.E foi pena que Stanley Kubrick não houvessecontido a eloqüência muitas vezes inoportunade Alex North, autor da partitura musical da fita,obra bombástica e gongórica, a abafar quasesempre a sonoplastia da película e a atordoarnão raro o espectador envolvido pelas faixas dosom estereofônico, sem defesa em sua poltrona.E ante o realismo reconstituído de “Spartacus”,fico a imaginar o que seria uma película dessegênero, de argumento calcado no esplendor


de Roma, com todos os seus diálogos em latim.Latim erudito e latim plebeu, desse latim talvezbárbaro, mas de onde se originou a maioria daslínguas ocidentais, com que Cícero, Gaio e Ulpianoerigiram o monumento do Direito Romano,base ainda hoje de toda a estrutura jurídica dospovos modernos.A Trapaça (Il Bidone)de Federico Fellini, Itália, 195516 abril 1958Possivelmente, algum psicólogo perseverante,há de achar, um dia, na obra de Fellini, materialbastante para a pesquisa psicanalítica da personalidadedesse cineasta obcecado, certamente introvertido,numa eterna luta dentro de si mesmo,emaranhado por entre o desvairo da dúvida e aalegria de reencontrar-se na exaltação criadorada obra artística pura e simples. Pois, a cinegrafiade Fellini, ainda que relativamente curta no setorda realização cinematográfica, compõe-se jáde uma trilogia muito sintomática: “La Strada”,“Il Bidone” e “Le Notti di Cabiria”, todas essaspeças a extravasarem, de certo, algo torturantepara Fellini: a tragédia do homem solitário. Naprimeira fita, três são as criaturas erradias, desemparceiradas,a se repelirem por força de seustemperamentos e de seus impulsos, mas unidas237


238como os pontos de um triângulo – “Zampano”,o rústico, “Gelsomina”, ingênua e simplória, “IlMatto”, um louco lúcido, cheio de comiseraçãohumana. Nessa área geométrica, vivem e atraemsemutuamente. Mas, quando um deles rompe aunidade ternária, destrói-se a si própria a figura,eliminando-se seus pontos de contato. Morto “IlMatto”, acaba-se “Zampano”, muito antes deacabar-se “Gelsomina”, três criaturas distintas,solitárias, cada qual a viver um mundo todopróprio. Em “Il Bidone”, muitas são as figurasisoladas, apartadas uma das outras, mas a moversenum meio único, o dos vigaristas. “Augusto”,entretanto, representa o isolamento comum, é“Augusto” quem sofre, castiga-se, morre sozinho,em plena luz do dia, à beira de um precipício talcomo “Zampano”, em “La Strada”, morria numapraia deserta, na sombra noturna. Finalmente, noterceiro ramo da trilogia, há, ainda e sempre, odrama de um ser isolado no seu íntimo, nos diase, principalmente, nas noites de Cabiria.Pois, a saga humaníssima do homem tristedesenvolve-se exuberantemente em “Il Bidone”.“Augusto” quase não ri, apenas um rictus deformantelhe corta por vezes o rosto torturado, talcomo o grunhido momentâneo de “Zampano”riscava suas faces lanhadas, nos instantes de bomhumor. “A Trapaça” é toda pontuada por esserosto tumefacto, feito de traços grosseiros, semprepreocupado, sempre na expectativa da chegadada polícia, ou das alternativas angustiosas da


próxima trapaça. Fellini explora ao máximo essamáscara dolorosa e inquieta, nos primeiros, ounos planos gerais. E é tal o poder de comunicaçãode sua linguagem, a força de convicção dovigarista emérito e sofredor, que na seqüênciafinal da película, “Augusto”, no último esforçode uma façanha derradeira, não apenas convenceo chefe do bando do malogro da última trapaça,como também inclui o espectador nesse estado deespírito. Ao descobrir-se a farsa, não são apenasos seus comparsas que se revoltam contra a burla,mas os próprios assistentes do drama, igualmente,já então colocados entre a repulsa e a piedade. Eo rosto ferido de “Augusto”, o seu vulto jogadona paisagem hostil, o seu corpo a galgar, de arrastão,o talude pedregoso, até que a morte venhasurpreendê-lo à beira do abismo, depois de havêlopoupado no fundo dele, são ainda o símbolocruel da solidão humana, num mundo que não émais o de homens, mas o de lobos, prestes a seentre devorar, numa aflição faminta.Mas, se a condição humana de “A Trapaça” se demonstrapela ação de um ator, todo o seu conteú dose revela pelo desenvolvimento de três seqüências:a do cortiço, quando ali penetra o bando de vigaristaspara, em seus moradores aplicar o “conto dacasa própria”; o da festa de fim de ano, no apartamentode “Rinaldo” e a da morte de “Augusto”,numa paisagem abrupta. Três seqüências antológicas,que tão bem definem a obra e a sensibilidadede um dos maiores cineastas contemporâneos.239


Um Condenado à Morte Escapou(Un Condamné à Mort s´est Echappé)de Robert Bresson, França, 195607 novembro 1959240Robert Bresson é um realizador singular dentrodo cinema francês. Cineasta de poucas fitas,homem de poucos gestos e quase nenhumaspalavras, cabelos grisalhos, mas jovem no andar,olhos claros, calmos e frios, voz grave e envolvente,grande mãos viris, que servem para grifar,em gestos tranqüilos, suas palavras comedidas,eis a descrição física desse homem perturbávele enigmático, de cuja última obra, essa “UmCondenado à Morte Escapou”, não se sabe bemo que pensar. Ao que dizem seus colaboradores,quando Bresson trabalha no estúdio ou fora dele,em plena criação da tomada de cena, mesmojulgando excelente o último “take”, sempre o repeteuma vez mais, “para maior segurança”. Ora,para se apreciar essa “Um Condenado à MorteEscapou” será sempre necessário também,”paramaior segurança,” assisti-la uma vez mais, tal aimpressão esquisita que produz no espectador,mesmo prevenido como era o meu caso. E aindaassim não sei agora, ante uma folha de papel embranco, como comentar a película de Bresson,nem se de fato eu a senti como uma grande obrado cinema contemporâneo, capaz de conquistarpara seu realizador o prêmio maior de Cannes,


quanto à direção de cena, como aconteceu naquelefestival, em 1957. Há, primeiramente, porparte de Bresson (neste ponto a parecer-se comJacques Tati, por maior que seja o antagonismodessa comparação) um arrogante desprezo pelosrecursos técnicos, que possam oferecer, à realizaçãoartística, as câmaras e os laboratórios docinema. A dinâmica de “Um Condenado à MorteEscapou” não se faz formalmente, pela deslocaçãode câmara (quase imóvel) pela duração dosplanos (por vezes longos e irregulares, cortadospor “escurecimentos” e fusões sem sentido), maspelo “animus” de cada cena, de cada situação,pelo ritmo interior de sua coordenação e pelatransposição do temperamento individual dorealizador às suas personagens. Todos os tipos de“Um Condenado à Morte Escapou” são frios emseu sofrimento, impassíveis em suas atitudes deprisioneiros, impossíveis de classificar-se em suasreações de homens martirizados. Com tal comportamentopor parte de todos, teria de ressentir-semuito a continuidade dramática da fita. O espectadornunca, em nenhum momento, é levado acolocar-se no lugar das personagens, em nenhuminstante se sente encarcerado também, dentro dacela, do pátio, dos muros, da prisão de Montluc.A evasão de “Fontaine” e a sua preparação transcorremtão naturalmente, tão facilmente (emplanos e situações repetidos ao infinito), que oespectador não chega a participar das angústias edos medos que um prisioneiro, prestes a se evadir ,241


242deve sentir certamente. Entretanto, segundosuas próprias declarações, Bresson quis conferir,à sua fita, a forma e o sentido do documentário.Não me pareceu assim, ao assistir, pela primeiravez, à sua película. Nem mesmo sua fotografia,despojada e com intenções visíveis de parecer“ambiental”, pode ser tida como participante danatureza naturalista do documentário. Faltou a“Um Condenado à Morte Escapou” aquele calorhumano, aquele sopro de vida, aquela espontaneidaderealista que dá à imagem do cinema,ainda que sem cor, a terceira dimensão das imagenscoloridas do mundo.Estranho homem, em verdade, esse criador introvertidodo cinema francês!...O Grande Momentode Roberto Santos, Brasil, 195807 janeiro 1958Parte ITal como aconteceu com “Cara de Fogo”, a películade estréia de Galileu Garcia, também “O GrandeMomento”, de Roberto Santos, outro estreante,seria obscuramente apresentada em São Paulo,sem publicidade preparatória, numa época ruim,sob a indiferença de todo o mundo, público eexibidores. Mas, em verdade, por que haveria RobertoSantos de, em sua fita, tentar sair do padrão


comum do cinema brasileiro, por que haveria elede, honestamente, integrar-se nas novas tendênciasdo cinema contemporâneo e, dentro delas,contar a sua história simples, vivida entre a gentehumilde da Mooca e do Cambuci?... Por que foiele intrometer-se na vida, sem importância, de suaspersonagens, homens desconhecidos, perdidos noanonimato cruel da enorme cidade?Ora, a existência dos submundos urbanos, numanarrativa despojada, nunca poderia mesmo interessarpúblico e exibidores, uns por falta de preparaçãoespiritual, outros porque, antes de tudo,têm transações comerciais a cuidar, obrigações asaldar todo fim de mês e não há de ser com umproduto de pouco consumo que se enfrentarãoos compromissos mercantis e inadiáveis do negóciocinematográfico.Por isso, antes do mais, “O Grande Momento”,tal como “Cara de Fogo”, representa uma atitudede coragem, que só o inconformismo e a indocilidadedos jovens podem fazer valer, na sua ânsiade contar uma história a seu modo. Mas, no casode Roberto Santos e Galileu Garcia, tal atitudeassume proporções maiores.De fato, quando os inconformados surgemem outros meios, de público mais educado emais sensível às inovações artísticas como umRossellini, na Itália, ou um Paddy Chayefsky, naAmérica do Norte, sua obra, como um bradorevolucionário, há de ecoar irresistivelmentenas bilheterias das salas de espetáculo, pelo243


244menos quando, de surpresa, aparecem tais peças,como ainda mesmo exemplo, foi o caso de“Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellinie “Marty”, de Chayefsky, um lançamento, naEuropa, o chamado do neo-realismo, outro captandona América do Norte a mensagem dessatendência do cinema moderno, ambos obtendo,num e noutro lugar, a enorme repercussão, decrítica e de bilheteria, como é notório. Que poderiam,no entanto, esperar de Galileu Garcia eRoberto Santos do clamor inquieto, contido em“Cara de Fogo” e “O Grande Momento”, senãoa indiferença de um público, ou obscurecidoe viciado pelo entorpecente das “lucrécias” edas “baronesas”, ou descrente da versatilidadedo cinema brasileiro, desmoralizado inteiramentepela ação daninha de aventureiros detoda sorte? Por isso, antes do mais, “O GrandeMomento” e “Cara de Fogo” representam umaatitude de indomável coragem. Representam,a seguir, duas peças de importância insuspeitana análise do cinema brasileiro de hoje, nãona sua estéril atualidade, mas, principalmente,quando, em futuro, às duas películas, deferir otempo a sua perspectiva austera, indispensávelà sua compreensão, à afirmação definitiva desuas linhas, no panorama histórico e estético denosso cinema. E, de certa forma, terá sido excelentea oportunidade de haverem ambas as fitassido apresentadas na mesma época, ainda queprejudicial aos interesses da bilheteria.


Assistidas, entretanto, quase que na mesma semana,o seu julgamento, por parte da crítica lúcida, foivalorizado pelo paralelo que ambas oferecerem, sebem que cada qual levemente a divergir em seusrumos, uma a tomar os caminhos de um naturalismorural da melhor procedência poética, outra atender para um realismo social mais doutrinário,as duas se igualando e atingindo o mesmo nível deimportância, quando postas sob a mesma luz dadiscussão e da análise crítica. “O Grande Momento”merece outras considerações, relativamente àsua forma e ao seu conteúdo. A escassez do espaçoagora me obriga a transferir para outra ocasião aoportunidade de seu comentário.245O Grande Momentode Roberto Santos, Brasil, 195811 janeiro 1958Parte IISem dúvida, a fita de Roberto Santos foi umgrande momento em nosso cinema. Primeiramente– até que enfim! – porque marcou nocinema brasileiro a primeira tentativa válida deum ensaio neo-realista, uma película em que,em seu conteúdo e em sua forma, não é precisoa ninguém andar em busca de qualquer coisapara com a fita e seu autor ser benevolente, outolerante. “O Grande Momento” é uma peça que


246vale por si mesma, a denunciar a cada instantea inteligência de seu criador, a firmeza de suadireção e a existência autêntica de seus intuitos.Não há gratuidade narrativa em nenhuma desuas cenas, permanecendo fluente a sua continuidadeem suas seqüências, ligadas umas àsoutras ou pela própria vivência da ação, ou pelostermos exatos da linguagem cinematográfica,extremamente despojada de artifícios.Roberto Santos, ao levantar a estrutura dramáticade “O Grande Momento”, conservou-se fiel a simesmo, nem permitiu que algo viesse trair o significadosocial, artístico e estético da “escola” a quese vinculara, conservando sua essência pura e íntegraem todos os setores da criação cinematográficada película, de sua cenografia, de ar ma ção sóbriae a adotar apenas o indispensável, à fo to grafia,também, rigorosamente depurada.“O Grande Momento”, em última analise, é umaobra de moços, pertencentes a uma geração quepresenciou as etapas por que passou o cinemabrasileiro, de 1949 até hoje, por vezes participandointensamente dos avanços admiráveis e dos desanimadoresrecuos, verificados principalmente nocinema paulista. Nessa década, poucos surgiram,mas os que conseguiram expressar-se e varar abarreira dos demagogos e dos aproveitadores,felizmente não se corromperam. Valeram-se daescola dos estúdios e dos ensinamentos das cinematecasdos cursos e das “retrospectivas”, permanecendopuros e sinceros. Deles depende agora


uma decisão definitiva nos destinos do cinemabrasileiro e de sua sobrevivência, como expressãosocial e artística. Ou continuam puros e sinceros eo cinema brasileiro viverá, ainda que a se movernos “exteriores” da Mooca e do Cambuci a chorar asua miséria, ou se corromperão também e o cinemabrasileiro perecerá de vez. Que Roberto Santos e osda geração dos novos, puros e sinceros escolham ocaminho: Mooca e Cambuci ou o rumo das venezasde estúdio e das mansões de fancaria...Película feita sem recursos materiais, “O GrandeMomento”, teria de ressentir-se enormemente emsua forma. Tanto sua fotografia se prejudicaria notratamento precário de um laboratório de técnicainstável, quanto sua pista sonora se apresentariamuito deficiente, com o aproveitamento integralda banda do “play-back” na expressão definitivados diálogos, muito lesados, assim, com a interferênciado eco de sons parasitas, proporcionadospor estúdios levantados sem a devida proteçãoinsonora. Por outro lado, nem sempre os atoresdo elenco observaram a contento a linha rígida dainterpretação neo-realista, por natureza a exigirsobriedade conventual, quer nas situações maisdramáticas, que nas de maior distensão emocional.Assim, Jaime Barcelos é o ator que mais destoano quadro de “O Grande Momento”, não porqueseja um mau ator, mas por se tratar de intérpretemuito marcado pelos cacoetes da televisão. Assimtambém, Paulo Goulart, embora mais contidopelo diretor da fita. Mas entre os que militam247


248profissionalmente na televisão, Norah Fontes foia grande surpresa.Talvez por se tratar de participante mais humildenos inumeráveis “tele-dramas” (alguns insuportáveis),Norah Fontes, também com humildade,viveria o seu papel em “O Grande Momento”. Evivê-lo-ia magnificamente, sobressaindo-se pelasua modéstia e pelo exato lugar em que sempresoube colocar-se no quadro da composição dramáticada película. Quanto aos componentes doTeatro de Arena, nunca será bastante louvá-los.Sua colaboração foi eficiente e conclusiva, cadaqual no seu papel, principal ou coadjuvante,Gianfrancesco Guarnieri e Vera Gertel, ambosestreantes no cinema, se não me engano, e ambosdotados de um absoluto controle dramático.Grianfrancesco Guarnieri nunca se deixando levarpelos exageros histriônicos a que tanto se prestavaseu papel, Vera Gertel grácil e “espevitada”,nas exatas medidas exigidas por seu tipo, na galeriahumana de “O Grande Momento”.Restrições sérias, sem dúvida, mais de forma quede conteúdo, restrições, entretanto, sem forçasuficiente para diminuir o mérito da película deRoberto Santos, concorrente respeitável, a “paripassu”) com “Cara de Fogo”, de Galileu Garcia),aos prêmios cinematográficos de 1958. Que ascomissões de julgamento saibam ver nesses “novos”as grandes esperanças que representam, napermanência do cinema brasileiro e legítimo.


Uma Mulher de Osaka (Aru Osaka no onna)de Eizo Sugawa, 1962]19 julho 1963Eizo Sugawa, com esta “Uma Mulher de Osaka”,vem consolidar ainda mais a posição que atinge nocinema moderno, posição de rígida coerência consigopróprio e de lúcida observação dos problemashumanos de sua época. Seus filmes, na proporçãoem que são realizados, denotam, mais e mais, amaturidade artística que esse cineas ta, apesar detão jovem, alcançou, ou através da sintaxe corretíssimade sua linguagem, (em que as relações entreas frases cinematográficas ligam-se, com justeza,às expressões de seu pensamento) ou pela inquietaçãosociológica dos temas constantes de suaspelículas. Sugawa realiza-se plenamente com atécnica do cinema mais avançado, não oculta suaspreferências pela manufatura seca de seu discurso,ao modo, certamente, do cinema que ora se fazna Europa, na França e na Itália, notadamente.Entretanto, o que possa parecer pesquisa e meraexperiência em Resnais, ou em Antonioni, emSugawa tudo se apresenta consolidado, sob umestilo irrequieto e ardente, mas sóbrio e apuradona dinâmica dramática de sua narrativa e na análisepsicológica de suas personagens. Por causa talvezde sua juventude e de sua própria formação, paraSugawa o cinema é uma forma de inquérito, ummodo de interrogar testemunhas e de registrardepoimentos. Apresentam-se os fatos. Sugawa os249


250observa, mas não os discute, nem lhes tira conclusões.Quem quiser que o faça, depois dele. Para isso,fornece ao seu espectador os dados para discussão,levanta, logo aos letreiros iniciais, o cenário dosfatos, aquele painel urbano de Osaka, à noite, àtarde, ao crepúsculo e ao iniciar-se a aurora, cidadede aspecto frio e implacável, fisionomia impassíveldesse Moloch metropolitano, que deglute e digereseus súditos sem que uma feição única de seu rostodenote a menor emoção humana. As grandes cidadessão assim, principalmente os grandes centrosindustriais. Já nessa fria visão de Osaka, Sugawadeixa pressentir o drama, o símbolo dramático daintriga que ali vai viver-se. E as personagens vêmlogo a seguir, engastadas no cenário da história,sem possibilidades de livrar-se desse pano de fundoa cuja frente se agitam os títeres humanos. Seusintérpretes nada mais expressam, senão a representaçãode elementos típicos de uma estatísticaa fazer-se. Mas, a ponderação dos dados colhidossó se representará mais tarde, quando a mulher deOsaka, na última cena da fita, se imobilizar na paisagemurbana e tudo se tornar estático no quadrofatal, na pequena área deste mundo de conflitos epaixões, covardia e maldade.É este, se não me engano, o segundo filme emcores de Eizo Sugawa, o primeiro sendo aqui exibido,em dezembro de 1962, sob o título “Desafioà Vida”. Já nessa película, Eizo Sugawa manejavacom propriedade as cores do “eastmancolor ”,aproveitando-as e a seus matizes nas situações


mais críticas dos conflitos psicológicos de suaspersonagens, ou nos cenários em que atuavam.Em “Uma mulher de Osaka”, as cores tambémfuncionam assim, também se exalam dos cenáriose atuam na representação dos comportamentosde seus tipos. Cores frias, cinzas e azuis, no cenáriourbano, cores mais quentes, vermelhos e derivados,ao cair da noite sobre Osaka, nos interioresdas casas de diversão noturna, nos pequenosapartamentos, onde os homens “respeitáveis”do mundo dos negócios escondiam seus amoresclandestinos. E a frieza cromática retorna novamente,nas seqüências circulares, quando, naPolícia, se interrogam as testemunhas do dramasolitário de “Ayako” (Reiko Dan), pobre, pequenae patética mulher de Osaka, figurante natrajetória urbana, incrustada definitivamente nofundo do palco, em que se movem, indiferentes,os comparsas daquela comédia humana, de cematos diversos, cuja cena pode ser a do universo,como diria o velho La Fontaine, brincando combichos e com eles retratando homens...251Vidas Secasde Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 196309 maio 1964Parte ITristão de Ataíde, numa de suas crônicas paraeste jornal, depois de haver assistido à “Vidas


252Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, confessa quejamais poderia supor algum êxito na transposiçãodo livro de Graciliano Ramos para as imagensdo cinema. “Como acreditar na versão cinematográficabrasileira desse Machado de Assis dosertão, seco como uma queimada de agosto,com seu intencional estrangulamento emotivoe despojamento paisagístico?” – indaga Tristãode Ataíde, justificadamente assombrado. E, realmente,essa adaptação tão fiel ao espírito tãoaustero da obra literária pura, difícil entre todasde qualquer tradução, seja para outro idioma,seja para a linguagem do cinema, constituiu agrande surpresa e o enorme espírito desse filme,um dos mais importantes já realizados em toda anossa atribulada história cinematográfica.Creio que desde a época em que conheci NelsonPereira dos Santos – e já lá vão dez anos, quase– alimentava ele o desejo, uma idéia fixa, de realizar“Vidas Secas”, no cinema. Em 1960, se bemme lembro, chegou a atrair-se para os sertõesdo Norte brasileiro, com toda a sua equipe, paraali produzir “Vidas Secas”, segundo uma adaptaçãopor ele trabalhada, anos a fio. Contudo,fora esse um ano excepcionalmente chuvoso noNordeste, com inundações e desabamentos portoda a parte, a invalidar e a adiar os projetos deNelson Pereira dos Santos. Pois, talvez lhe tenhasido proveitoso o adiamento. Em suas andançasposteriores por aquelas regiões dramáticas doBrasil, teria Nelson Pereira dos Santos não apenas


a oportunidade de amadurecer sua criação, senãotambém a de escolher definitivamente seus locaisde filmagem, delimitados em Alagoas, na Fazendado Encantado, distante 30 quilômetros de Palmeirados Índios, onde nasceu Graciliano Ramos,nessa propriedade agrícola exercendo ainda aprofissão de vaqueiro um irmão do escritor, ClovisRamos, que foi um eficiente informante dos realizadoresdo filme e seu consultor durante todaa produção da obra. Assim assessorado, poderiaNelson Pereira dos Santos trabalhar sua película,no próprio clima do livro, no próprio chão pisadopor Fabiano, à sombra do juazeiro em que os meninose a cachorrinha Baleia caçavam preás e seespojavam no areião, no próprio casebre em queSinhá Vitória, acocorada, as saias presas entre aspernas, soprava o lume do fogão primitivo. Comtais elementos, documentários, dramáticos e atéecológicos, o filme ganharia aquelas dimensõessociológicas, tão raras no cinema brasileiro, queNelson Pereira dos Santos alcançou sem a menordemagogia e sem se afastar um palmo sequer doespírito da obra literária. As personagens do livroadquirem na tela aquele sopro do infinito, aquelacentelha do Humano, que fazem do “nacional”,até do “regional”, uma obra, uma personagemdo “universal”, algo de eterno e sempre atual. Háseqüências em “Vidas Secas” que se tornarão inesquecíveiscomo criação cinematográfica, comodocumento social, como um terrível e pungentedepoimento, sobre que, agora, deverão meditar,253


com seriedade, os homens da política, da administração,da sociedade brasileira (prosseguireina análise de outro aspecto de “Vidas Secas”).Vidas Secasde Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 196312 maio 1964254Parte IIEm “Vidas Secas”, o que mais se admira é a equivalênciacinematográfica daquilo que o cérebro,a sensibilidade e o estilo de Graciliano Ramos descreveramem seu livro. Nelson Pereira dos Santosconseguiu espelhar, na seqüência de seu filme, oscapítulos, ou melhor, os períodos do romance deGraciliano Ramos, cuja arquitetura pode ser “desmontada”,em partes distintas, como observouRubem Braga, com muita sagacidade. Há, realmente,essa equivalência entre a imagem literáriae a frase do cinema, em quase todo o filme, compequenas exceções que não prejudicam a visãode conjunto da obra nem lhe desviam o cursodo estilo original. Episódios inteiros se decalcam,assim, sobre a criação de Graciliano Ramos, comoo da morte de Baleia, por exemplo, a comoventecachorrinha do livro, de que Nelson Pereira dosSantos teve a boa sorte de encontrar a sósia numpequeno “vira-lata”, com o físico e o “espírito” doanimalzinho do romance, personagem tão impor-


tante no elenco literário, quanto à dos meninos,a de Sinhá Vitória, ou a de Fabiano. Pois, a Baleiade Nelson Pereira dos Santos é o reflexo exato dade Graciliano Ramos e a seqüência de sua morteserá, daqui por diante, um trecho antológico docinema brasileiro de todos os tempos.Entretanto, ao lado desse ímpeto criador, do rigordesse trabalho artesanal, há descaídas desequilibrantesna realização do filme, algumas imputáveisà própria direção cinematográfica, outrasverificáveis sob a responsabilidade de algunsmembros de sua equipe. Recrimino em NelsonPereira dos Santos, preliminarmente, a sua displicênciana concepção de vários momentos (muitoruins) de sua película, sem desculpa, nem justificaçãopor parte de quem, em quase toda a peça,houvera procedido a uma paciente e estafanteelaboração artística e dramática. A seqüência deFabiano no cárcere, a sofrer sua flagelação, emcenas mal enquadradas, mal dirigidas, a destoarda composição sóbria que preside a grande partedo filme; a do menino mais velho em que repete,interminavelmente, a palavra “inferno” e sobretudoas cenas do reisado do bumba-meu-boi,pessimamente anguladas e de iluminação primaríssima,são exemplos, entre outros, do desmazelode Nelson Pereira dos Santos em sua direção e noacabamento de seu filme. ... Pois, agora, nesta“Vidas Secas”, tão digna de conteúdo, que deveráser para Nelson Pereira dos Santos uma obra dematuridade artística e intelectual, continua ele255


a demonstrar o mesmo relaxamento formal... Éde lamentar tal experiência pueril num filme tãoadulto como “Vidas Secas”Viver (Ikiru)de Akira Kurosawa, Japão, 195215 maio 1964256Eis-nos finalmente, em presença dessa “Viver”, afigurar na cinegrafia de Kurosawa entre os primeirosfilmes que realizou, da época do seu “OAnjo Embriagado”, do tempo em que esse grandediretor mais se influenciava com a obra de cineastaseuropeus. Foi tal e tão perceptível essa influência,que era moda, há poucos anos, dizer-se queKurosawa se tornara no mais ocidental dos cineastasorientais. “Viver” reflete bem esses “modos”europeus, essa maneira de realizar cinema atravésde filmes de grande profundidade psicológicae de observação subjetiva predominante. Masao assistir-se hoje a essa peça de 1952, torna-securioso verificar-se que, de lá para cá, quase nadade original se criou no cinema, que são muitoprecárias e falhas as inovações tão apregoadascomo características de um “cinema novo”, do“cinema-verdade”, da “nouvelle vague” ou queoutro título tenham esses movimentos, às vezesde permanência tão transitória e de realizaçãotão parca em resultados cinematográficos legí-


timos. Pois “Viver” me lembrou, em muitos momentos,a técnica da “nouvelle vague” e de outras“escolas” antecedentes ou decorrentes: direçãode atores espontânea com a reação deles captada“sur le vif”, cenários ao natural, fotografia despojadade efeitos, montagem dinâmica (às vezes,um corte brusco na ação fragmenta o “tempo”dramático, sem qualquer transição), pontuaçãonervosa e sem qualquer trucagem. A acreditarnesses jovens que se dizem inovadores, poderse-átambém qualificar Kurosawa, lá no Japão,na época com o seu cinema quase desconhecido,como um pioneiro dos movimentos renovadores,se é que antes disso, já não se fazia cinema assim.Mas, em “Viver”, há antes de tudo, o poder expressivode uma interpretação levada aos últimosextremos dramáticos. Takashi Shimura, no papelde um chefe de seção dos quadros funcionais dealgum município nipônico, vive intensamente atragédia de um homem atacado de câncer gástrico,com seus dias contados, por isso a querersair de sua rotina burocrática para desfrutar, emuns poucos meses, o que, em muitos anos, elenão houvera sabido extrair do “terra a terra” doseu cotidiano. É um outro mundo que se espraiaà sua frente, a fazer surgir diante dele, no ocasode sua existência, a curta alvorada de um universoaté então desconhecido. Pois Takashi Shimura,sob o impulso criador de Kurosawa, vive essa tragédiasolitária e quase silenciosa, com o mínimode palavras e o máximo de ação dramática, por257


vezes só expressada por um jogo mímico de muitaeficiência. E em certos momentos, Kurosawa semostra capaz de uma implacável mordacidade.Quase já ao final do filme, há a seqüência emque se desenvolve uma cerimônia fúnebre, emmemória do sr. Watanabe, o funcionário municipal,já morto então, em conseqüência do câncerinoperável. Kurosawa constrói tal seqüência comimpiedoso sarcasmo, vergasta costumes e homenscom o ácido corrosivo de seu espírito de sátira ede crítica social.O filme é um tanto arrastado e, por vezes, um tantomonótono. Mas, é peça de grande importânciana filmografia do grande criador de “Rashomon”.258Winchester 73 (Winchester 73)de Anthony Mann, EUA, 195011 abril 1962Eis, em verdade, uma excelente reapresentaçãoessa “Winchester 73”, uma das melhores realizaçõesde Anthony Mann, tirada da saga eterna do“western”, mas a fugir do escalão habitual dasfitas sobre o Oeste norte-americano. Realmente,o Oeste, em “Winchester 73”, é apenas o cenáriode vários eventos, ocorridos em torno de um rifleWinchester, uma dessas esplêndidas espingardasque só se fabrica uma em cada mil. Na proporçãoem que a arma muda de mão e de dono, o


cenário, embora permanecendo o mesmo, fazsurgir nova história, completando e esclarecendoa anterior. E têm-se, então, seqüências excelentes,muito bem narradas pela direção segura deAnthony Mann, otimamente fotografadas porWilliam Daniels e – não seria preciso dizer – inteligentementeinterpretadas por James Stewart,Stephen McNally, John McIntire, Millard Mitchele outros. Sob certo aspecto, “Winchester 73” éuma espécie de antologia clássica das histórias doOeste, a desdobrar ante os olhos do espectador osepisódios mais característicos, as aventuras maisexpressivas dos pioneiros norte-americanos noseu desbravamento da terra e na sua luta braviacontra os rigores da natureza, o primitivismo daregião, de armas e munições, a luta entre índiose brancos, os episódios do saloon, os assaltos abancos e diligências etc., uma espécie de “potpourri”daqueles tempos e dos costumes daquelaépoca, como muito bem observou Moniz Vianna,numa crônica antiga, quando no Rio se apresentoua fita de Anthony Mann. Uma película quevale a pena rever, ou assistir pela primeira vez,a qual recomendo particularmente aos amantesdo western, que os sei muitos, dispersos por estanossa velha São Paulo.259


ÍndiceApresentação – José Serra 5Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7Memória – Rute Duarte 11Será o Benedito? – Paulo Emilio 13Paixão, Polêmica e Generosidade 15Agradecimentos 51Críticas 53


Crédito das FotografiasAcervo Organizador 36, 37, 41Cinearte 196Divulgação 82, 179, 193, 194, 214, 216, 260Demais fotografias pertencem ao acervo deB.J. DuarteA despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora paraidentificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não éde autoria conhecida de seus organizadores.Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativaà autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos,para que sejam devidamente creditados.


Coleção AplausoSérie Cinema BrasilAlain Fresnot – Um Cineasta sem AlmaAlain FresnotAgostinho Martins Pereira – Um IdealistaMáximo BarroO Ano em Que Meus Pais Saíram de FériasRoteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaerte Cao HamburgerAnselmo Duarte – O Homem da Palma de OuroLuiz Carlos MertenAntonio Carlos da Fontoura – Espelho da AlmaRodrigo MuratAry Fernandes – Sua Fascinante HistóriaAntônio Leão da Silva NetoO Bandido da Luz VermelhaRoteiro de Rogério SganzerlaBatismo de SangueRoteiro de Dani Patarra e Helvécio RattonBens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e CarlosReichenbachBraz Chediak – Fragmentos de uma vidaSérgio Rodrigo ReisCabra-CegaRoteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e RicardoKauffmanO Caçador de DiamantesRoteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo BarroCarlos Coimbra – Um Homem RaroLuiz Carlos MertenCarlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de ViverMarcelo Lyra


A CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner de AssisCasa de MeninasRomance original e roteiro de Inácio AraújoO Caso dos Irmãos NavesRoteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio PersonO Céu de SuelyRoteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício ZachariasChega de SaudadeRoteiro de Luiz BolognesiCidade dos HomensRoteiro de Elena SoárezComo Fazer um Filme de AmorRoteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José RobertoToreroCríticas de Edmar Pereira – Razão e SensibilidadeOrg. Luiz Carlos MertenCríticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção:Os Anos do São Paulo ShimbunOrg. Alessandro GamoCríticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – AnalisandoCinema: Críticas de LGOrg. Aurora Miranda LeãoCríticas de Ruben Biáfora – A Coragem de SerOrg. Carlos M. Motta e José Júlio SpiewakDe PassagemRoteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo EliasDesmundoRoteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina AnzuateguiDjalma Limongi Batista – Livre PensadorMarcel NadaleDogma Feijoada: O Cinema Negro BrasileiroJeferson De


Dois CórregosRoteiro de Carlos ReichenbachA Dona da HistóriaRoteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel FilhoOs 12 TrabalhosRoteiro de Cláudio Yosida e Ricardo EliasEstômagoRoteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da NatividadeFernando Meirelles – Biografia PrematuraMaria do Rosário CaetanoFim da LinhaRoteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboardsde Fábio Moon e Gabriel BáFome de Bola – Cinema e Futebol no BrasilLuiz Zanin OricchioGeraldo Moraes – O Cineasta do InteriorKlecius HenriqueGuilherme de Almeida Prado – Um Cineasta CinéfiloLuiz Zanin OricchioHelvécio Ratton – O Cinema Além das MontanhasPablo VillaçaO Homem que Virou SucoRoteiro de João Batista de Andrade, organização de ArianeAbdallah e Newton CannitoIvan Cardoso – O Mestre do TerrirRemierJoão Batista de Andrade – Alguma Solidão eMuitas HistóriasMaria do Rosário CaetanoJorge Bodanzky – O Homem com a CâmeraCarlos Alberto MattosJosé Antonio Garcia – Em Busca da Alma FemininaMarcel Nadale


José Carlos Burle – Drama na ChanchadaMáximo BarroLiberdade de <strong>Imprensa</strong> – O Cinema de IntervençãoRenata Fortes e João Batista de AndradeLuiz Carlos Lacerda – Prazer & CinemaAlfredo SternheimMaurice Capovilla – A Imagem CríticaCarlos Alberto MattosMauro Alice – Um Operário do FilmeSheila SchvarzmanMiguel Borges – Um Lobisomem Sai da SombraAntônio Leão da Silva NetoNão por AcasoRoteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski eEugênio PuppoNarradores de JavéRoteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de AbreuOnde Andará Dulce VeigaRoteiro de Guilherme de Almeida PradoOrlando Senna – O Homem da MontanhaHermes LealPedro Jorge de Castro – O Calor da TelaRogério MenezesQuanto Vale ou É por QuiloRoteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio BianchiRicardo Pinto e Silva – Rir ou ChorarRodrigo CapellaRodolfo Nanni – Um Realizador PersistenteNeusa BarbosaO Signo da CidadeRoteiro de Bruna LombardiUgo Giorgetti – O Sonho IntactoRosane Pavam


Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejasno PlanaltoCarlos Alberto MattosViva-VozRoteiro de Márcio AlemãoZuzu AngelRoteiro de Marcos Bernstein e Sergio RezendeSérie CinemaBastidores – Um Outro Lado do CinemaElaine GueriniSérie Ciência & TecnologiaCinema Digital – Um Novo Começo?Luiz Gonzaga Assis de LucaA Hora do Cinema Digital – Democratizaçãoe Globalização do AudiovisualLuiz Gonzaga Assis de LucaSérie CrônicasCrônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeçasMaria Lúcia DahlSérie DançaRodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – DançaUniversalSérgio Rodrigo ReisSérie Teatro BrasilAlcides Nogueira – Alma de CetimTuna DwekAntenor Pimenta – Circo e PoesiaDanielle PimentaCia de Teatro Os Satyros – Um Palco VisceralAlberto Guzik


Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como OficioOrg. Carmelinda GuimarãesCríticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas eUma PaixãoOrg. José Simões de Almeida JúniorJoão Bethencourt – O Locatário da ComédiaRodrigo MuratLeilah Assumpção – A Consciência da MulherEliana PaceLuís Alberto de Abreu – Até a Última SílabaAdélia NicoleteMaurice Vaneau – Artista MúltiploLeila CorrêaRenata Palottini – Cumprimenta e Pede PassagemRita Ribeiro GuimarãesTeatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBCNydia LiciaO Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: ÓperaJoyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso– Pólvora e PoesiaAlcides NogueiraO Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatroveloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantosde Maldoror – De Profundis – A Herança do TeatroIvam CabralO Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e DonaCoisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista VilmaNoemi MarinhoTeatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o ArNeyde Veneziano


O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor– A Terra PrometidaSamir YazbekTeresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadasem CenaAriane PortoSérie PerfilAracy Balabanian – Nunca Fui AnjoTania CarvalhoArllete Montenegro – Fé, Amor e EmoçãoAlfredo SternheimAry Fontoura – Entre Rios e JaneirosRogério MenezesBete Mendes – O Cão e a RosaRogério MenezesBetty Faria – Rebelde por NaturezaTania CarvalhoCarla Camurati – Luz NaturalCarlos Alberto MattosCelso Nunes – Sem AmarrasEliana RochaCleyde Yaconis – Dama DiscretaVilmar LedesmaDavid Cardoso – Persistência e PaixãoAlfredo SternheimDenise Del Vecchio – Memórias da LuaTuna DwekElisabeth Hartmann – A Sarah dos PampasReinaldo BragaEmiliano Queiroz – Na Sobremesa da VidaMaria Leticia


Etty Fraser – Virada Pra LuaVilmar LedesmaEwerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memóriae PoéticaReni CardosoGeórgia Gomide – Uma Atriz BrasileiraEliana PaceGianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no ArSérgio RoveriGlauco Mirko Laurelli – Um Artesão do CinemaMaria Angela de JesusIlka Soares – A Bela da TelaWagner de AssisIrene Ravache – Caçadora de EmoçõesTania CarvalhoIrene Stefania – Arte e PsicoterapiaGermano PereiraIsabel Ribeiro – IluminadaLuis Sergio Lima e SilvaJoana Fomm – Momento de DecisãoVilmar LedesmaJohn Herbert – Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa BarbosaJonas Bloch – O Ofício de uma PaixãoNilu LebertJosé Dumont – Do Cordel às TelasKlecius HenriqueLeonardo Villar – Garra e PaixãoNydia LiciaLília Cabral – Descobrindo Lília CabralAnalu RibeiroLolita Rodrigues – De Carne e OssoEliana Castro


Louise Cardoso – A Mulher do BarbosaVilmar LedesmaMarcos Caruso – Um ObstinadoEliana RochaMaria Adelaide Amaral – A Emoção LibertáriaTuna DwekMarisa Prado – A Estrela, O MistérioLuiz Carlos LisboaMauro Mendonça – Em Busca da PerfeiçãoRenato SérgioMiriam Mehler – Sensibilidade e PaixãoVilmar LedesmaNicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em FamíliaElaine GuerriniNívea Maria – Uma Atriz RealMauro Alencar e Eliana PaceNiza de Castro Tank – Niza, Apesar das OutrasSara LopesPaulo Betti – Na Carreira de um SonhadorTeté RibeiroPaulo José – Memórias SubstantivasTania CarvalhoPedro Paulo Rangel – O Samba e o FadoTania CarvalhoRegina Braga – Talento é um AprendizadoMarta GóesReginaldo Faria – O Solo de Um InquietoWagner de AssisRenata Fronzi – Chorar de RirWagner de AssisRenato Borghi – Borghi em RevistaÉlcio Nogueira Seixas


Renato Consorte – Contestador por ÍndoleEliana PaceRolando Boldrin – Palco BrasilIeda de AbreuRosamaria Murtinho – Simples MagiaTania CarvalhoRubens de Falco – Um Internacional Ator BrasileiroNydia LiciaRuth de Souza – Estrela NegraMaria Ângela de JesusSérgio Hingst – Um Ator de CinemaMáximo BarroSérgio Viotti – O Cavalheiro das ArtesNilu LebertSilvio de Abreu – Um Homem de SorteVilmar LedesmaSônia Guedes – Chá das CincoAdélia NicoleteSonia Maria Dorce – A Queridinha do meu BairroSonia Maria Dorce ArmoniaSonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana?Maria Thereza VargasSuely Franco – A Alegria de RepresentarAlfredo SternheimTatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte OutraSérgio RoveriTony Ramos – No Tempo da DelicadezaTania CarvalhoVera Holtz – O Gosto da VeraAnalu RibeiroVera Nunes – Raro TalentoEliana Pace


Walderez de Barros – Voz e SilênciosRogério MenezesZezé Motta – Muito PrazerRodrigo MuratEspecialAgildo Ribeiro – O Capitão do RisoWagner de AssisBeatriz Segall – Além das AparênciasNilu LebertCarlos Zara – Paixão em Quatro AtosTania CarvalhoCinema da Boca – Dicionário de DiretoresAlfredo SternheimDina Sfat – Retratos de uma GuerreiraAntonio GilbertoEva Todor – O Teatro de Minha VidaMaria Angela de JesusEva Wilma – Arte e VidaEdla van SteenGloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda doMaior Sucesso da Televisão BrasileiraÁlvaro MoyaLembranças de HollywoodDulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo SternheimMaria Della Costa – Seu Teatro, Sua VidaWarde MarxNey Latorraca – Uma CelebraçãoTania CarvalhoRaul Cortez – Sem Medo de se ExporNydia LiciaRede Manchete – Aconteceu, Virou HistóriaElmo Francfort


Sérgio Cardoso – Imagens de Sua ArteNydia LiciaTV Tupi – Uma Linda História de AmorVida AlvesVictor Berbara – O Homem das Mil FacesTania CarvalhoWalmor Chagas – Ensaio Aberto para Um HomemIndignadoDjalma Limongi BatistaFormato: 12 x 18 cmTipologia: FrutigerPapel miolo: Offset LD 90 g/m 2Papel capa: Triplex 250 g/m 2Número de páginas: 280Editoração, CTP, impressão e acabamento:<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São Paulo


Coleção Aplauso Série Cinema BrasilCoordenador GeralCoordenador Operacionale Pesquisa IconográficaProjeto GráficoEditor AssistenteEditoraçãoTratamento de ImagensRevisãoRubens Ewald FilhoMarcelo PestanaCarlos CirneFelipe GoulartSelma BrisollaAline Navarro dos SantosJosé Carlos da SilvaDante Pascoal Corradini


© 2009Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca da <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloMacedo, Luiz Antonio Souza Lima deB.J. Duarte: críticas / Luiz Antonio Souza Lima de Macedo –São Paulo : <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São Paulo, 2009.280p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema / Coordenadorgeral Rubens Ewald Filho)ISBN 978-85-7060-704-11. Crítica cinematográfica 2. Críticos de cinema – BrasilI. Duarte, B.J. (Benedito Junqueira), 1910-1995. I. Ewald Filho,Rubens. II. Titulo. III. Série.Índice para catálogo sistemático:1. Cinema : Literatura : História e crítica 809.2CDD 809.2Proibida reprodução total ou parcial sem autorizaçãoprévia do autor ou dos editoresLei nº 9.610 de 19/02/1998Foi feito o depósito legalLei nº 10.994, de 14/12/2004Impresso no Brasil / 2009Todos os direitos reservados.<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921 Mooca03103-902 São Paulo SPwww.imprensaoficial.com.br/livrarialivros@imprensaoficial.com.brSAC 0800 01234 01sac@imprensaoficial.com.br


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