A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro
A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro
A legitimação do intelectual negro no meio acadêmico brasileiro
- No tags were found...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A LEGITIMAÇÃO DO INTELECTUAL NEGRONO MEIO ACADÊMICO BRASILEIRO:NEGAÇÃO DE INFERIORIDADE,CONFRONTO OUASSIMILAÇÃO INTELECTUAL?*Ari Lima**Para Lande e Nelson Maca.Dois intelectuais subalter<strong>no</strong>s.One day I learnta secret art,Invisible-Ness, it was called.I think it workedas even <strong>no</strong>w you lookbut never see me...Only my eyes will remain to watch and to haunt,and to turn your dreams to chaosMeiling JinQual o homem <strong>negro</strong> mais conheci<strong>do</strong> e admira<strong>do</strong> <strong>no</strong> Brasil? Pareceóbvia a resposta. Este homem é Edson Arantes <strong>do</strong> Nascimento, o Pelé,“o maior joga<strong>do</strong>r de futebol <strong>do</strong> planeta”, também eleito o atleta <strong>do</strong> século.Qual mulher negra é tão conhecida e unanimemente admirada <strong>no</strong>Brasil quanto Pelé? Esta resposta não é nada óbvia, aliás desconfio que* Este texto foi originalmente apresenta<strong>do</strong> <strong>no</strong> GT Desigualdades Étnicas e Sociais ocorri<strong>do</strong> <strong>no</strong> XICongresso Nacional de Sociólogos, em Salva<strong>do</strong>r, maio de 1999, coordena<strong>do</strong> pelos professoresLivio Sansone (UERJ/CEAA) e Jeferson Bacelar (UFBA) e <strong>no</strong> Fórum Simpática Antropologiaocorri<strong>do</strong> na 22ª Reunião Brasileira de Antropologia, em Brasília, julho de 2000, coordena<strong>do</strong>pelos professores Livio Sansone (UERJ/CEAA), Maria <strong>do</strong> Rosário (UFBA) e Michel Agier(ORSTOM/CNRS). Agradeço aos coordena<strong>do</strong>res cita<strong>do</strong>s pela acolhida e estímulo e aos participantesdestes fóruns. Agradeço ao parecerista anônimo desta revista pelas críticas e sugestões.Também agradeço aos colegas <strong>do</strong> grupo de Estu<strong>do</strong>s de Relações Raciais <strong>no</strong> Brasil e <strong>no</strong> Mun<strong>do</strong> daUnicamp e, por fim, em especial, a Nelson Maca, Lande, Osmun<strong>do</strong> de Araújo Pinho e Sales A.<strong>do</strong>s Santos pela atenção, comentários e sugestões.** Doutoran<strong>do</strong> em Antropologia Social na Universidade de Brasília - UnB.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 281
ciar sobre as mais profundas compreensões, os mais profun<strong>do</strong>s desejosde reversão da desigualdade racial e injustiça social. 2A condição de subalternidade é a condição <strong>do</strong> silêncio. (...) Osubalter<strong>no</strong> carece necessariamente de um representante por suaprópria condição de silencia<strong>do</strong>. No momento em que o subalter<strong>no</strong>se entrega, tão somente, às mediações da representação desua condição, torna-se um objeto nas mãos de seu procura<strong>do</strong>r<strong>no</strong> circuito econômico e de poder e com isso não se subjetivaplenamente. (...) Para<strong>do</strong>xalmente, sua legitimidade passa a serdada por outra pessoa, que assume o seu lugar <strong>no</strong> espaço público,essencializan<strong>do</strong>-o como o lugar genérico <strong>do</strong> outro <strong>no</strong> poder.Daí a busca constante por capturar o momento em que a representaçãose funde à a-presentação, pois ele é especialmentepropício para o surgimento de processos de insurreição e demovimentos sociais não coopta<strong>do</strong>s e revolucionários, na medidaem que as classes subalternas tentarão controlar o mo<strong>do</strong> comoserão representadas. 3Deste mo<strong>do</strong>, embora saiba, como quer uma teoria crítica, queconstrói verdades resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> fluxo de enuncia<strong>do</strong>s compartilha<strong>do</strong>s comseus nativos, de que ao invés de os fazer falar, traduz experiênciasvivenciadas num encontro et<strong>no</strong>gráfico, como quer uma teoria clássica, o<strong>intelectual</strong> <strong>negro</strong> subalter<strong>no</strong> acaba por invisibilizar-se, apassivar e emudecersua autoconsciência, seu próprio corpo <strong>negro</strong> imiscuí<strong>do</strong> <strong>no</strong> contextode pesquisa. Assim, como objeto de estu<strong>do</strong>, representa<strong>do</strong> por umagrande maioria de pesquisa<strong>do</strong>res brancos locais e estrangeiros — vários,aliás, autores sérios e fundamentais —, o <strong>negro</strong> tem si<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong>como “excesso et<strong>no</strong>gráfico” 4 , “resíduo de África” e deslocamento so-234Gayatri Spivak, “Can the subaltern speak?”, in Patrick William & Laura Chrisman (eds). Colonialdiscourse and post-colonial theory. A reader (New York, Columbia University Press, 1994),pp. 66-111.José Jorge de Carvalho, “O olhar et<strong>no</strong>gráfico e a voz subalterna”, Série Antropologia, 167 (Brasília,Depto. de Antropologia/UnB, 1999), pp. 1-30.Michel de Certeau, “Et<strong>no</strong>-grafia. A oralidade ou o espaço <strong>do</strong> outro: Léry”, in Michel de Certeau, Aescrita da História (Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1989), pp.211-242, aponta o papel e opoder da escrita et<strong>no</strong>gráfica em pôr os objetos e identidades em seu devi<strong>do</strong> lugar, fazen<strong>do</strong> históriadaquilo que se esvanece num corte cultural de alteridade, na oralidade, na inconsciência, naespacialidade ou quadro sincrônico de sistemas sociais sem história. Neste caso, Certeau opõe aAfro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 283
5cial em relação às “branquitudes”, que estes mesmos pesquisa<strong>do</strong>resrepresentam em seus campos de investigação. Como agente reflexivo,o lugar <strong>do</strong> <strong>negro</strong> na academia brasileira é quase o da absoluta ausênciae negação. Este trabalho inicia então um esforço de reflexão sobre aausência e negação <strong>do</strong> <strong>negro</strong> <strong>no</strong> <strong>meio</strong> <strong>acadêmico</strong>, um esforço de entendere explicar porque as relações são como são e assumem uma devidaforma. 5 Minha voz subalterna fala então não apenas de uma opressãoeconômica e racial, mas também de um passa<strong>do</strong> histórico deinacessibilidade a campos de saber e poder legitima<strong>do</strong>s, da contençãode símbolos e valores <strong>negro</strong>-africa<strong>no</strong>s, da restrição à palavra e da dificuldade<strong>do</strong> uso de categorias e conceitos que traduzam a minha experiênciacomo <strong>intelectual</strong> <strong>negro</strong> na academia brasileira.Reelaboran<strong>do</strong> então a questão título deste trabalho, pergunto: qualo lugar <strong>do</strong> <strong>negro</strong> como objeto e como agente reflexivo na academiabrasileira? Qual papel tem desempenha<strong>do</strong>? Como tem si<strong>do</strong> instaurada asua <strong>legitimação</strong>? O que é ser <strong>negro</strong> <strong>no</strong>s corre<strong>do</strong>res e departamentosmais prestigia<strong>do</strong>s da universidade brasileira? Para responder rigorosamenteestas questões precisaria de muitas páginas, teria que coletar eanalisar depoimentos de raros estudantes universitários <strong>negro</strong>s, teria queempreender uma árdua revisão bibliográfica <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre o <strong>negro</strong><strong>no</strong> Brasil. Distante aqui de uma coisa e outra, recortarei a minha faladiscutin<strong>do</strong> trabalhos importantes de quatro clássicos da Antropologiasobre o Negro <strong>no</strong> Brasil – Nina Rodrigues, Ruth Landes, Édison Carneiroe Thales de Azeve<strong>do</strong>.Estes autores foram escolhi<strong>do</strong>s, primeiro, pela importante contribuiçãoque deram ao desenvolvimento <strong>do</strong> pensamento sobre o <strong>negro</strong> <strong>no</strong>Brasil. Segun<strong>do</strong>, pelo esforço de deslocamento que cada um deles, aomeu ver, prometeram fazer, seja Nina Rodrigues, branco, racista, aristoescrita“que invade o espaço e capitaliza o tempo” à palavra “que não vai longe e que não retém”.Dito de outra maneira, se “a escrita isola o significante da presença, a palavra é o corpo quesignifica, enuncia<strong>do</strong> que não se separa <strong>do</strong> ato social de enunciação nem de uma presença que sedá, se gasta ou se perde na <strong>no</strong>minação” (Certeau, “Et<strong>no</strong>-grafia”, p. 217). Neste procedimento, aescrita produz um “resto”, um excesso et<strong>no</strong>gráfico ouvi<strong>do</strong>, visto, mas não compreendi<strong>do</strong>, quenão se escreve, mas também define aquele et<strong>no</strong>grafa<strong>do</strong>.Joan W Scott, “Experience”, in Judith Butler e Joan W Scott (eds). Feminists Theorize thePolitical (NY, Routledge, 1992), pp. 22-40.284 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
crata, logo após o fim da escravidão, <strong>no</strong>s primórdios das ciências sociais,defenden<strong>do</strong> a necessidade de se transformar o “<strong>negro</strong>” em objetode ciência; seja Ruth Landes lapidan<strong>do</strong> um olhar estrangeiro sobre aquestão racial brasileira; seja Edison Carneiro, <strong>negro</strong> de classe média,realizan<strong>do</strong>, <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 30, bastante inconsciente, uma socioantropologiaauto-reflexiva; seja Thales de Azeve<strong>do</strong>, minan<strong>do</strong> a reificação que elepróprio fez da democracia racial brasileira emblematicamentepresentificada <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong>, nas relações sociais de uma Bahia hierárquica,estamental e clientelista da década de 50.Além <strong>do</strong> trabalho destes autores, vou considerar o “drama social” 6que tenho vivi<strong>do</strong> como <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> <strong>no</strong> Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social-PPGAS — da Universidade de Brasília (UnB), depoisde uma injusta e mal versada reprovação numa disciplina obrigatóriaministrada pelo professor Dr. Klaas Woortmann, eminente <strong>no</strong>me daAntropologia <strong>do</strong> Parentesco, <strong>no</strong> Brasil. Acomoda<strong>do</strong> ao status de “excelente”que adquiriu ao longo <strong>do</strong>s seus quase 30 a<strong>no</strong>s de existência, esteprograma é um consistente resíduo conserva<strong>do</strong>r <strong>no</strong> Brasil. Resiste adiscutir uma questão tabu na sociedade e na academia brasileira como aquestão racial. Não possui sequer um professor <strong>negro</strong> ou que se apresentecomo tal. Apesar de ser um <strong>do</strong>s seus raros alu<strong>no</strong>s <strong>negro</strong>s, numauniversidade visivelmente branca 7 , o corpo de <strong>do</strong>centes que controla asinstâncias de poder e decisão <strong>do</strong> PPGAS vem tentan<strong>do</strong> sufocar as tensõese os conflitos gera<strong>do</strong>s pela minha presença negra através de umdiscurso universalista e meritocrático. Discurso este, contraditório umavez que referenda o humanismo parcial que, <strong>no</strong> Brasil, favorece o segmentosocial branco. Ou seja, é a condição, a fala e presença brancaque se reatualiza como universal, positiva, neutra e contínua. Enquantoa negra parece só poder se inscrever como tal pela afirmação de umconflito de caráter histórico e político <strong>do</strong> qual sou personagem.67Victor Turner, Schism and Continuity in an African Society. A Study of Ndembu Village Life,Lusaka/New York, Institute for African Studies/University of Manchester, 1972.A propósito <strong>do</strong> alto grau de embranquecimento da UnB, evidente para nós estudantes <strong>negro</strong>sautoconscientes, recentemente a inédita pesquisa “Desigualdades Raciais <strong>no</strong> Ensi<strong>no</strong> Superior”,realizada pela Profa. Delcele M. Queiroz ,<strong>do</strong> Programa A Cor da Bahia, da UFBA, apontouda<strong>do</strong>s impactantes.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 285
Construin<strong>do</strong> o <strong>negro</strong> como objeto de ciênciaPara o Negro só há um desti<strong>no</strong>. E estedesti<strong>no</strong> é branco. A questão não é serNegro, mas sê-lo para o Branco.Frantz Fa<strong>no</strong>nNos quatro autores cita<strong>do</strong>s é possível <strong>no</strong>mear alguns tropos e apelos queos <strong>no</strong>rteiam. Nos <strong>do</strong>is primeiros, por exemplo, o <strong>negro</strong> é um objeto científicoenfaticamente distancia<strong>do</strong> <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r. Em Nina Rodrigues, istose dá pela <strong>no</strong>meação, aferição da homogeneidade e degeneração <strong>do</strong> outro,através da afirmação de uma força exterior, um saber médico esocioantropológico, que em sua certeza e superioridade “naturalmente”explicita uma subjetividade branca obscurecida. Ruth Landes, fragilizadapelo fato de ser mulher e estrangeira, num contexto <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelos homens,revaloriza-se enfatizan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o tempo sua fala de mulher branca.Nos outros <strong>do</strong>is autores, um compromisso subliminar com a reversão dasdesigualdades de classe e cor, a rejeição da tese da inferioridade atávica<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s não esvanece a ambigüidade e nebulosidade de suas identidadesraciais refugiadas na assepsia de suas categorias analíticas. Alémdisso, a propalação da Bahia como uma região racialmente mestiça, atese da <strong>no</strong>ssa radical diferença em relação aos EUA, <strong>do</strong> <strong>no</strong>sso mínimo detensão racial, da assimilação <strong>do</strong>ce e firme das manifestações <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>sé um acor<strong>do</strong> tácito que ratifica uma enunciação branca sobre os <strong>negro</strong>s.O esforço <strong>intelectual</strong> desta Antropologia é similar àquele que ClaudeLevi-Strauss atribuiu ao “pensamento selvagem” na sua relação com anatureza. Ou seja, os <strong>negro</strong>s, expostos a níveis varia<strong>do</strong>s de interação ereciprocidade, são subjuga<strong>do</strong>s mediante observação metódica, posteriorclassificação, taxo<strong>no</strong>mização e representação da sua diferença, procedimentoscientíficos que conduzem ao conhecimento. 8 Estes procedimentosse ordenam a mente <strong>do</strong> “selvagem”, o fazem também em relaçãoàquela <strong>do</strong> antropólogo, ao discriminar, registrar, colocar tu<strong>do</strong> aquilo que amente tem consciência em um lugar seguro e fácil de achar, dan<strong>do</strong> assim8Claude Lévi-Strauss, “A Ciência <strong>do</strong> Concreto”, in Claude Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem(Campinas, Papirus. 1997), pp. 15-50.286 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
aos <strong>negro</strong>s algum papel a cumprir na eco<strong>no</strong>mia de objetos e identidadesque formam um ambiente. Porém, se estes procedimentos têm uma lógica,suas regras não são previsivelmente nem racionais nem universais;são acompanhadas por valores históricos e em certa medida puramentearbitrários. 9O pioneiro Nina Rodrigues afirmava que não se deve confundir ovalor de certas pessoas — homens <strong>negro</strong>s ou de cor de merecimento,estima e respeito, civiliza<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s — com o fato de que os<strong>negro</strong>s, como grupo racial, nunca puderam se constituir como povosciviliza<strong>do</strong>s. Nina Rodrigues não via saída para esta raça compensar asua inferioridade e bestialização que não fosse a tutela moral, a condução<strong>intelectual</strong>, a vigilância e o controle de padrões culturais e comportamentais.A despeito <strong>do</strong> valor <strong>intelectual</strong> de Nina Rodrigues, da sua relevânciapara a construção de um campo de reflexão, é este substrato evolucionistae racista que informa a Antropologia sobre o <strong>negro</strong> <strong>no</strong> Brasil. 10Nina Rodrigues, apesar de toda sua empáfia, não deixou de serum <strong>intelectual</strong> lutan<strong>do</strong> contra uma posição subalterna. Ao mesmo tempoem que acreditava e defendia o cosmopolitismo, a impessoalidade e universalidade<strong>do</strong> saber científico gesta<strong>do</strong> na Europa, exibia a crescenteabrangência de seu saber médico e teórico social, atestava a incompatibilidadee insuficiência deste saber para a análise e solução <strong>do</strong>s problemasnacionais “num vaivém constante, que não se encerrou nele, entrea afirmação de <strong>no</strong>ssa especificidade e a confirmação da ciência européiacomo parâmetro teórico que permitia (ou não) validá-la”. 11 Assimé que ao mesmo tempo que considerava científicos os critérios deinferiorização da raça negra, uma vez que para “a ciência não é estainferioridade mais <strong>do</strong> que um fenôme<strong>no</strong> de ordem perfeitamente natural,produto da marcha desigual <strong>do</strong> desenvolvimento filogenético da humanidadena suas diversas divisões ou seções” 12 , considerava anti-ci-9101112Edward W. Said, “O âmbito <strong>do</strong> orientalismo”, in Edward W. Said, Orientalismo. O Orientecomo invenção <strong>do</strong> Ocidente (São Paulo, Companhia das Letras, 1990), p.64.Mariza Corrêa, As Ilusões da Liberdade: A Escola Nina Rodrigues e a Antropologia <strong>no</strong> BrasilBragança Paulista, Edusp, 1998.Corrêa, As Ilusões da Liberdade, p. 101Nina Rodrigues, Os Africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Brasil, São Paulo/Brasília, Coleção Temas Brasileiros v. 40/Brasiliana v. 9, Editora Nacional/Editora Universidade de Brasília, 1988, p. 5Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 287
entífica e revoltante a exploração que desta raça fizeram os interessesescravistas.Estava em questão para Nina Rodrigues, o futuro e a definição <strong>do</strong><strong>brasileiro</strong> como povo, a proteção de imagens ideais de uma nação brasileira,a assegurar seu lugar <strong>no</strong> concerto das nações modernas, promissoras,pujantes. Logo, a presença massiva de <strong>negro</strong>s livres <strong>no</strong>s centros urba<strong>no</strong>s,especialmente na Bahia, “onde todas as classes estão aptas a se tornaremnegras”, era um tema de magnitude. Acompanhan<strong>do</strong> Silvio Romero, Ninaacreditava que, mais <strong>do</strong> que “peça econômica”, se tornava dever da <strong>intelectual</strong>idade<strong>no</strong> Brasil atentar para o valor <strong>do</strong> <strong>negro</strong> como “objeto de ciência”.Conhecê-lo cientificamente, e de imediato moral e mentalmente, erareconhecer “<strong>no</strong>ssos limites inferiores mais baixos”, <strong>do</strong>minar a possibilidadede compensação diante das nações e povos brancos.Os <strong>negro</strong>s que de certa forma entraram na sociedade civil com aabolição, se tornam o grande horror que Nina Rodrigues denunciariasem tréguas: a possibilidade da alteração, da transformação<strong>do</strong> branco em outro. As pesquisas de Nina são empreendidasentão na tentativa de demonstrar essa alteração, já realizada,fosse <strong>no</strong> catolicismo pelas religiões negras, fosse nas descendênciasmestiças, ‘degeneradas’ pela presença <strong>do</strong> sangue <strong>negro</strong>.Ele concentrou então na figura <strong>do</strong> mestiço todas as possibilidadesnegativas desta invasão interior. Essa preocupação, não seesgotou na enumeração de falhas biológicas vistas como o resulta<strong>do</strong>inevitável de cruzamentos desiguais, mas se expressoutambém na denúncia <strong>do</strong> perigo virtual <strong>do</strong> sangue <strong>negro</strong> contaminarculturalmente as outras categorias sociais. 13Indiretamente, ao estabelecer <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s incompatíveis, um africa<strong>no</strong>bárbaro, outro branco europeu civiliza<strong>do</strong> e um terceiro mestiçomanipulável e degenera<strong>do</strong>, Nina Rodrigues ofereceu a pista para a <strong>legitimação</strong>ideológica <strong>do</strong> Brasil culturalmente sincrético, racialmentemiscigena<strong>do</strong> e segregacionista. Em Africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Brasil, por exemplo,o <strong>negro</strong> não existe em si mesmo, ele é um objeto de transparência supostamentecientífica cujos valores, moral e visão de mun<strong>do</strong>, estão lá13Corrêa, As Ilusões da Liberdade, pp. 168-169.288 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
porque o próprio pesquisa<strong>do</strong>r os colocou. Negros específicos, eram, emseu gabinete de trabalho, fontes cooptadas, anônimas e passivas.Um outro caso <strong>no</strong>tável da presença negra ainda como objeto, é olivro A Cidade das mulheres, de Ruth Landes, antropóloga <strong>no</strong>rte-americanaque chegou à Bahia em 1938, enviada pelo Departamento deAntropologia da Universidade de Columbia para estudar “a gente <strong>do</strong>can<strong>do</strong>mblé” e o modelo racial <strong>brasileiro</strong>. Normalmente, os autores usamo trabalho de Ruth Landes para referendar suas críticas contra “o idealismode África”, “a pureza nagô” ou o tabu “da presença destacada <strong>do</strong>homossexualismo <strong>no</strong> Can<strong>do</strong>mblé”. 14 Assim é que Peter Fry, ao mesmotempo em que enfatiza o desgosto da autora pela presença <strong>do</strong>s homossexuaismasculi<strong>no</strong>s, ou a sua corroboração da opinião de que os homossexuaismasculi<strong>no</strong>s traem a “tradição” e a seriedade <strong>do</strong> culto das grandesmães de santo, destaca a ousadia de Landes em tocar num tematabu, levantar uma polêmica sobre a regularidade da presença de homossexuais<strong>no</strong>s cultos afro-<strong>brasileiro</strong>s e suscitar um debate sobre osrecortes e contradições da “pureza nagô”. 15 Patrícia Birman, por suavez, afirma que, na polêmica levantada por Landes, chamava a atençãoo fato de que a crítica à autora ter se apresenta<strong>do</strong> como uma “defesa”<strong>do</strong> culto, como se o mesmo sofresse um ataque à sua legitimidade pelapresença de homossexuais ou como se houvesse uma tentativa deestigmatização <strong>do</strong>s já tão sofri<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s. Afirma Patrícia Birman queArthur Ramos, Roger Bastide ou Melville Herskovits reagiram, certosde que Landes pecava ao questionar a correspondência entre gênero esexo biológico. Isto porque Ruth Landes afirmava a presença <strong>no</strong> Can<strong>do</strong>mbléde um papel femini<strong>no</strong> disponível, que poderia ser assumi<strong>do</strong> porhomens desde que estes, homens <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> biológico, socialmente, fossemidentifica<strong>do</strong>s como mulheres. 16 Deste mo<strong>do</strong>, Ruth Landes não só14Peter Fry, “Homossexualidade e Cultos Afro-Brasileiros”, in Peter Fry, Para Inglês Ver. Identidadee Política na Cultura Brasileira (Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982), pp. 54-85; BeatrizGóis Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco. Usos e Abusos da África <strong>no</strong> Brasil, Rio de Janeiro,Graal, 1982; Patrícia Birman, Fazer Estilo Crian<strong>do</strong> Gêneros. Possessão e Diferenças de Gêneroem Terreiros de Umbanda e Can<strong>do</strong>mblé <strong>no</strong> Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Relume-Dumará/EdUERJ, 1995; Jocélio Teles <strong>do</strong>s Santos, O Do<strong>no</strong> da Terra. O Caboclo <strong>no</strong>s Can<strong>do</strong>mblésda Bahia, Salva<strong>do</strong>r, Sarah Letras, 1995.15Fry, “Homossexualidade e Cultos Afro-Brasileiros”, p. 61.16Birman, Fazer Estilo Crian<strong>do</strong> Gêneros, pp. 65-66.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 289
acor<strong>do</strong>u to<strong>do</strong>s, para a presença de uma identidade masculina repugnada,mas evidenciou que o matriarca<strong>do</strong> independia <strong>do</strong> sexo biológico daquelesque o exerciam, era, portanto, um princípio religioso historicamenteconstruí<strong>do</strong> e legitima<strong>do</strong>, inclusive, através <strong>do</strong>s arquétipos de determinadasentidades místicas associadas aos sacer<strong>do</strong>tes.Há, entretanto, outro aspecto de A Cidade das mulheres e daposição <strong>no</strong> campo de Ruth Landes, negligencia<strong>do</strong> pelos intérpretes cita<strong>do</strong>sacima, que gostaria de enfatizar. Este aspecto diz respeito à questãoracial na Bahia e <strong>no</strong> Brasil. 17 Landes afirma ter chega<strong>do</strong> à Bahia jáimpressionada com prévias informações de que, ao contrário <strong>do</strong> seupaís, <strong>negro</strong>s e brancos, conviviam juntamente de maneira civil e proveitosa.Na introdução <strong>do</strong> seu livro, adianta que não discute problemas derelações raciais na Bahia por que não havia nenhum, descreverá, simplesmente,“a vida de <strong>brasileiro</strong>s de raça negra, gente graciosa e equilibrada,cujo encanto é proverbial na sua própria terra e imorre<strong>do</strong>uro naminha memória”. 18 Por fim conclui, dizen<strong>do</strong> queem retrospecto, a vida de lá parece remota e fora <strong>do</strong> tempo. Fuienviada à Bahia para saber como as pessoas se comportam quan<strong>do</strong>os <strong>negro</strong>s com quem convivem não são oprimi<strong>do</strong>s. Verifiqueique eram oprimi<strong>do</strong>s por tiranias políticas e econômicas, mas nãopor tiranias raciais. Nesse senti<strong>do</strong> os <strong>negro</strong>s eram livres e podiamlivremente cultivar a sua herança africana. Mas estavam <strong>do</strong>entes,subnutri<strong>do</strong>s, analfabetos e desinforma<strong>do</strong>s, exatamente como a gentepobre de origens raciais diferentes. Era a sua absoluta pobreza queos isolava <strong>do</strong> pensamento moder<strong>no</strong> e os obrigava a construir oseu próprio e seguro universo. Viviam <strong>no</strong> único mun<strong>do</strong> que lhesera permiti<strong>do</strong> e o tornavam íntimo e amistoso através da instituição<strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé, cujo vigor, fausto e promessas de segurança seduziamoutras pessoas na Bahia e eram motivo de exaltação e orgulhopara o resto <strong>do</strong> Brasil. 19171819Entre os intérpretes da obra de Landes cita<strong>do</strong>s é preciso lembrar que Dantas, Vovó Nagô e PapaiBranco, p. 206, embora não se detenha sobre esta questão em Ruth Landes, constitui uma exceçãoquan<strong>do</strong> afirma que a autora percebeu, <strong>no</strong> seu contexto de pesquisa, a utilização <strong>do</strong> <strong>negro</strong>baia<strong>no</strong> como símbolo de identidade nacional, mas termina por proclamar a <strong>no</strong>ssa democraciaracial e cultural.Ruth Landes, A Cidade das Mulheres, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1967, p. 2Landes, A Cidade das Mulheres, p. 278.290 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
Neste senti<strong>do</strong>, Melville Herskovits observa, numa resenha queescreveu sobre a edição em inglês de A cidade das mulheres, que,apesar das várias qualidades <strong>do</strong> trabalho de Landes, a autora estavapouco familiarizada e pouco habilitada para lidar com aspectos delica<strong>do</strong>s<strong>do</strong> seu campo de pesquisa:Há várias passagens em A Cidades das Mulheres que demonstrama má preparação da Senhorita Landes. A autora conheciamuito pouco o background africa<strong>no</strong> e perspectivas <strong>do</strong> seu materialet<strong>no</strong>gráfico. Isto pode ser constata<strong>do</strong> tanto em detalhes quantona orientação geral da obra. Explica-se, assim, a má interpretaçãoou erros <strong>no</strong> entendimento <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> de da<strong>do</strong>s sutis. (...) ofato é que a autora revela pouco trei<strong>no</strong> <strong>no</strong> manejo <strong>do</strong> que poderiaser chama<strong>do</strong> de aspectos diplomáticos <strong>do</strong> trabalho de campo,perde-se, em muitos casos, por causa da não familiaridade com obackground histórico <strong>do</strong> campo sem corresponder às mais amplasdemandas da pesquisa et<strong>no</strong>gráfica. 20Em sua perspectiva mali<strong>no</strong>wskiana, Landes acreditava “estar viven<strong>do</strong>entre os <strong>negro</strong>s baia<strong>no</strong>s”, “participan<strong>do</strong> de suas vidas”, “entenden<strong>do</strong>-osde fato”. A autora percebeu as ambigüidades nas relaçõesentre <strong>negro</strong>s e brancos, entre intelectuais e o povo, entre cor, classe estatus, distâncias estruturais entre mulheres e homens <strong>negro</strong>s <strong>no</strong> Can<strong>do</strong>mblé,desigualdades sociais e econômicas entre um mun<strong>do</strong> branco eoutro <strong>negro</strong>, a<strong>no</strong>tou a perseguição policial e moral às manifestaçõesculturais e religiosas <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s, mas termina sua pesquisa confirman<strong>do</strong>o que já sabia, ou seja, a suposta harmonia e inexistência de conflitosentre um mun<strong>do</strong> <strong>negro</strong> bárbaro e outro branco civiliza<strong>do</strong>. Isto porque,contraditória como Bronislaw Mali<strong>no</strong>wski 21 , a autora confessa ter vivi<strong>do</strong>entre os <strong>negro</strong>s baia<strong>no</strong>s hospedada num <strong>do</strong>s melhores hotéis da época,pagou praticamente a to<strong>do</strong>s os seus cordiais informantes, não exploroumais detidamente suas contradições ou sobre o contexto racial <strong>no</strong>qual estavam inseri<strong>do</strong>s, poucas vezes investiu ou aproveitou fontes que2021Melville J. Herskovits, “The City of Women. Ruth Landes”, American Anthropology, v. 50, n.1, Part 1 (January-march, 1948), Menasha/Wisconsin/U.S.A, p. 125. Tradução <strong>do</strong> autor.Bronislaw Mali<strong>no</strong>wski, Argonautas <strong>do</strong> Pacífico Ocidental: Um relato <strong>do</strong> empreendimento eda aventura <strong>do</strong>s nativos <strong>no</strong>s arquipélagos da Nova Guiné Melanésia, SP, Abril Cultural, ColeçãoOs Pensa<strong>do</strong>res, 1978.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 291
não fossem aquelas intermediadas por Édison Carneiro, <strong>intelectual</strong> nativo,estudioso das religiões afro-baianas.Acomodada às facilidades de acesso que obteve, à “<strong>do</strong>çura <strong>do</strong>povo baia<strong>no</strong>” 22 , incapaz de compreender a posição <strong>do</strong>s seus informantesnum sistema racial onde a desigualdade e a discriminação estavaminstituídas, onde a perseguição policial era <strong>no</strong>rma e a sociedade semprehostil, como comprovam suas a<strong>no</strong>tações de campo, Ruth Landes ostrata como personagens maliciosos, dissimula<strong>do</strong>s, interesseiros e submissosao dinheiro que a pesquisa<strong>do</strong>ra usava para obter informações.De fato, a malícia, a dissimulação, o interesse e a submissão ao dinheiroe prestígio <strong>do</strong> branco, neste caso representa<strong>do</strong>s por uma antropólogaestrangeira branca, foi um articula<strong>do</strong> estilo de negociação da “gente <strong>do</strong>can<strong>do</strong>mblé”. Este estilo, infelizmente ainda vigente na Bahia, está “marca<strong>do</strong>basicamente por uma interlocução assentada nas relações de prestígioe interpenetração de interesses” 23 , na aproximação e distanciamentocalcula<strong>do</strong> <strong>do</strong> outro, rotiniza<strong>do</strong> como superior e poderoso. Ao que parece,a autora não participou realmente da vida da gente que pesquisou, mediouexageradamente seu encontro et<strong>no</strong>gráfico com os nativos baia<strong>no</strong>s,através da figura “sempre companheira” de Édison Carneiro.O estu<strong>do</strong> e registro da cultura e religião <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s da Bahia foitrabalho de toda a vida de Édison Carneiro. Ele escreveu sobre o can<strong>do</strong>mbléKetu, mas também sobre o Angola e o Caboclo, sobre capoeirae samba. 24 Desde de muito jovem se empenhou pela liberdade de expressão<strong>do</strong>s cultos afro-<strong>brasileiro</strong>s, num momento de aberta e violentaperseguição policial aos terreiros de can<strong>do</strong>mblé, articulan<strong>do</strong> com outros22232425A propósito de uma discussão sobre a construção ideológica e racializada de uma “idéia deBahia” e <strong>do</strong>s baia<strong>no</strong>s na literatura, <strong>no</strong> pensamento social e <strong>no</strong> senso comum, ver o excelenteartigo de Osmun<strong>do</strong> de Araújo Pinho “‘A Bahia <strong>no</strong> fundamental’: <strong>no</strong>tas para uma interpretação<strong>do</strong> discurso ideológico da baianidade”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, V.13, n. 36, SãoPaulo, Anpocs (1998), pp.109-120.Júlio Braga, Na Gamela <strong>do</strong> Feitiço. Repressão e Resistência <strong>no</strong>s Can<strong>do</strong>mblés da Bahia, Salva<strong>do</strong>r,CEAO/EdUfba, 1995, p. 70.Édison Carneiro, Can<strong>do</strong>mblés da Bahia, s/l, Edições de Ouro, s/d; Édison Carneiro, Ursa Maior,Salva<strong>do</strong>r, CEAO/Conselho Editorial da UFBA, 1980; Édison Carneiro, Folgue<strong>do</strong>s Tradicionais,Rio de Janeiro, Edições Funarte/INF, 1982; Édison Carneiro, Religiões Negras. NegrosBantos, Rio de Janeiro, 3 a edição, Civilização Brasileira, 1991.Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco, p. 203.292 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
intelectuais e o “povo de santo” a União das Seitas Afro-Brasileiras.Reconhecia, ainda que de certa forma monitoran<strong>do</strong>-os 25 , a dignidade eautoridade <strong>intelectual</strong> de lideranças negras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Can<strong>do</strong>mblébaia<strong>no</strong>, sen<strong>do</strong> uma demonstração disso, o convite que fez ao BabalaôMartinia<strong>no</strong> Eliseu <strong>do</strong> Bonfim para que exercesse a Presidência de Honra<strong>do</strong> 2 o Congresso Afro-Brasileiro e à Ialorixá Eugênia Ana <strong>do</strong>s Santos,conhecida como Mãe Aninha, <strong>do</strong> terreiro Axé Opô Afonjá, para queescrevesse o que se chamou “Notas sobre comestíveis africa<strong>no</strong>s”, apresenta<strong>do</strong>aos participantes deste congresso, organiza<strong>do</strong> por Carneiro,Ayda<strong>no</strong> <strong>do</strong> Couto Ferraz e Reginal<strong>do</strong> Guimarães, em Salva<strong>do</strong>r, em 1937. 26Além disso, sua projeção como <strong>intelectual</strong> descontente com a injustiçasocial e racial, num momento em que o Brasil vivia sob a ditadura <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Novo, lhe obrigou a viver, durante os a<strong>no</strong>s de 37/38, fugin<strong>do</strong> dapolícia política caça<strong>do</strong>ra de “comunistas”. 27Em Can<strong>do</strong>mblés da Bahia, Carneiro cita <strong>no</strong>mes de famosos sacer<strong>do</strong>tese sacer<strong>do</strong>tisas de poderosos terreiros da Bahia, com a intimidadee naturalidade de quem conviveu muito perto e em muitas circunstânciascom to<strong>do</strong>s eles. Bastante influencia<strong>do</strong> por Nina Rodrigues, absorveu<strong>do</strong> “mestre” o méto<strong>do</strong> genético de procurar a África na Bahia,mas criticou o exclusivismo sudanês deste que, em sua opinião, o teriaimpedi<strong>do</strong> de conhecer os <strong>negro</strong>s bantos, a capoeira, o batuque, umasérie de festas populares de origem banto e os can<strong>do</strong>mblés Congo/Angola.28 Obceca<strong>do</strong> pela preservação das raízes africanas na Bahia, defineo tronco genealógico forma<strong>do</strong> pelos terreiros Jeje-nagô/Ketu CasaBranca, Axé Opô Afonjá e Gantois como a inspiração institucional, física,ritual e mítica de to<strong>do</strong>s os can<strong>do</strong>mblés, inclusive os Congo/Angola.Neste senti<strong>do</strong>, observa Dantas que, em relação aos cultos afro-<strong>brasileiro</strong>se manifestações culturais populares, Édison Carneiro, tenha muda-262728Em relação aos termos ioruba<strong>no</strong>s “babalaô” e “ialorixá”, Carneiro, Can<strong>do</strong>mblés da Bahia (s/d),pp. 128;149, explica que o primeiro teria si<strong>do</strong> uma espécie de advinho, conselheiro e sacer<strong>do</strong>teantigo que fora <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé se dedicava ao culto <strong>do</strong> deus da advinhação Ifá (Nagô) ou Fá(JeJe), representa<strong>do</strong> pelo fruto <strong>do</strong> dendezeiro. O segun<strong>do</strong> ainda é termo com o qual se chama amulher cuja autoridade espiritual num terreiro de can<strong>do</strong>mblé só se curva a <strong>do</strong>s Orixás.Waldir Freitas Oliveira e Vival<strong>do</strong> da Costa Lima, Cartas de Édison Carneiro a Artur Ramos,São Paulo, Corrupio, 1987, p. 46.Carneiro, Ursa Maior, p.56.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 293
<strong>do</strong>, <strong>no</strong> decorrer <strong>do</strong> tempo, de uma postura de busca da origem e <strong>do</strong>culturalismo para uma perspectiva mais sociológicaPelo me<strong>no</strong>s enquanto residiu na Bahia (até 1940), sua obra eatuação, em relação aos cultos afro-<strong>brasileiro</strong>s, são muito marcadaspela influência de Nina Rodrigues e Artur Ramos. É dan<strong>do</strong>continuidade às preocupações destes autores que Édison Carneirotentará conseguir para os can<strong>do</strong>mblés não só legitimidade, mastambém legalização e, neste processo, faz-se um recorte em que seprivilegia a África. (...) a linha básica da argumentação para o pedi<strong>do</strong>de legalização <strong>do</strong> Can<strong>do</strong>mblé é o fato de ser ele religião, idéiaque vinha sen<strong>do</strong> trabalhada, desde Nina Rodrigues, restritivamenteem relação ao nagô, e que Édison Carneiro alarga para abranger asoutras formas religiosas trazidas da África. A busca pelo reconhecimentolegal era circunscrita, pelos limites da herança africana,sobretu<strong>do</strong> da tradição mais pura. Como a feitiçaria, o charlatanismoe a exploração que – segun<strong>do</strong> ele – campeavam entre os can<strong>do</strong>mblésde caboclo eram obstáculos ao reconhecimento legal <strong>do</strong> Can<strong>do</strong>mblécomo religião, era necessário fiscalizar e controlar a orto<strong>do</strong>xia<strong>do</strong>s cultos. 29Enfim, a obsessão por uma África idealizada, a recusa da magiae ênfase <strong>no</strong>s aspectos religiosos <strong>do</strong> Can<strong>do</strong>mblé, a defesa <strong>do</strong>s terreirosmais “tradicionais”, como suportes <strong>do</strong> “verdadeiro can<strong>do</strong>mblé”, a recusada reinterpretação da África e a desestruturação simbólica que osafro-<strong>brasileiro</strong>s não filia<strong>do</strong>s aos terreiros Jeje-nagô realizavam, são limites<strong>do</strong> trabalho de Édison Carneiro, critica<strong>do</strong>s por vários autores. 30 Alémdisso, Dantas observa que a perspectiva teórico-meto<strong>do</strong>lógica de umautor como Édison Carneiro contribuiu para a exotização <strong>do</strong>s cultos afro<strong>brasileiro</strong>se transformação <strong>do</strong> Can<strong>do</strong>mblé em símbolo de uma supostademocracia racial e cultural, deseja<strong>do</strong> pelos brancos porque <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>.2930Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco, p. 190-191.Fry, “Homossexualidade Masculina”; Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco; Birman, Fazer EstiloCrian<strong>do</strong> Gêneros; Santos, O Do<strong>no</strong> da Terra; José Jorge de Carvalho, “Violência e Caos naExperiência Religiosa”, Religião e Sociedade, 15/1, Rio de Janeiro, Campus, 1990, pp. 9-67;Clóvis Moura, Sociologia <strong>do</strong> Negro Brasileiro, São Paulo, Ática, 1988; entre outros.294 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
Ainda em relação a Édison Carneiro gostaria de enfatizar <strong>no</strong>vamenteum mesmo aspecto negligencia<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os autores cita<strong>do</strong>s,qual seja as implicações da condição racial <strong>do</strong> autor, num contexto emque tinha como interlocutores referenciais <strong>do</strong>is autores brancos, NinaRodrigues e Arthur Ramos, e um autor <strong>negro</strong>, Ma<strong>no</strong>el Queri<strong>no</strong>. 31 Talvezseja exigir demais que, <strong>no</strong> final <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 30, Édison Carneiro, <strong>negro</strong><strong>intelectual</strong>iza<strong>do</strong>, de classe média, problematizasse seu status de cor eclasse, por outro la<strong>do</strong>, é possível conjecturar que estas suas especificidadesinterferiram ou determinaram suas relações de campo e a construçãoteórica <strong>do</strong> seu objeto. Este aspecto me parece relevante, consideran<strong>do</strong>o fato de que, embora desconheça qualquer menção <strong>do</strong> próprioÉdison Carneiro a este fato, sua condição racial é, vez por outra, denunciadapor outros autores. 32 Ademais, nesta época, a sociologia <strong>do</strong> <strong>negro</strong><strong>no</strong> Brasil se consolidava como uma sociologia branca eQuan<strong>do</strong> escrevemos branca não queremos dizer que o autor é<strong>negro</strong>, branco, mulato, mas queremos expressar que há subjacenteum conjunto conceitual branco que é aplica<strong>do</strong> sobre a realidade<strong>do</strong> <strong>negro</strong> <strong>brasileiro</strong>, como se ele fosse apenas objeto de estu<strong>do</strong> enão sujeito dinâmico de um problema <strong>do</strong>s mais importantes parao reajustamento estrutural da sociedade brasileira. Como podemosver, o pensamento social <strong>brasileiro</strong>, a <strong>no</strong>ssa literatura, finalmenteo <strong>no</strong>sso ethos cultural, em quase to<strong>do</strong>s os seus níveis,está impregna<strong>do</strong> dessa visão alienada, muitas vezes paternalista,outras vezes pretensamente imparcial. 33Édison Carneiro, em várias oportunidades, põe <strong>no</strong> extremo daciência objetiva, inteligente e imparcial, Nina Rodrigues e, por extensão31Manuel Queri<strong>no</strong>, Costumes Africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1938.32Vival<strong>do</strong> da Costa Lima in Oliveira e Lima, Cartas de Édison Carneiro, p. 40, neste senti<strong>do</strong>,sugere uma co<strong>no</strong>tação curiosa quan<strong>do</strong> afirma que para Édison Carneiro “as religiões africanas”de Nina Rodrigues já eram “religiões negras” e que Édison Carneiro, “ele próprio um <strong>negro</strong> –embora um ‘<strong>negro</strong> <strong>do</strong>utor’ – viveu intensamente este tempo e participou (como <strong>negro</strong> ou comocientista?) da vida de muitas das comunidades religiosas da época”. Ruth Landes, guiada porÉdison Carneiro durante quase to<strong>do</strong> o tempo que esteve na Bahia, o define em A Cidade dasMulheres (1967) como um mulato aristocrata, que “encarava a gente <strong>do</strong> can<strong>do</strong>mblé como se ofizesse por cima de um abismo, espécimes, embora naturalmente sêres huma<strong>no</strong>s com o direitoinalienável de viver como quisessem” (Landes, A Cidade das Mulheres, p. 69).33Moura, Sociologia <strong>do</strong> Negro Brasileiro, p. 9.34Corrêa, As Ilusões da Liberdade, pp. 207-313.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 295
Arthur Ramos, um <strong>do</strong>s principais articula<strong>do</strong>res da “Escola de Nina Rodrigues”34 , e <strong>no</strong> extremo <strong>do</strong> empirismo, <strong>do</strong> erro e falta de inteligência,Manuel Queri<strong>no</strong>. Reivindica, deste mo<strong>do</strong>, para si, uma linhagem teóricaque passa pela incorporação de argumentos e estabelecimento da continuidadeda obra de Nina Rodrigues, além da cumplicidade com o médicoe pesquisa<strong>do</strong>r Arthur Ramos. Como fez Nina Rodrigues e ArthurRamos, Édison Carneiro apostou durante longo tempo na superioridade<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s sudaneses e na verdade da tradição <strong>do</strong> Can<strong>do</strong>mblé Jejenagôdas “tradicionais” casas citadas acima. Seus informantes principaise seu campo preferencial de observação, foram os nativos destascasas, em que ele e outros intelectuais da época, eram amigos e protegi<strong>do</strong>s.Casas que, necessitadas de proteção política e <strong>legitimação</strong> cultural,estiveram prontas a criar espaços institucionais para brancos, abasta<strong>do</strong>se personalidades influentes. 35Ao meu ver, é, portanto, o anseio pela filiação a uma ciência branca,objetiva, paternalista e pretensamente imparcial que explica “aextrema severidade, às vezes <strong>no</strong> limite mesmo da injustiça crítica” 36com que Édison Carneiro se refere ao “peque<strong>no</strong> funcionário público”,Ma<strong>no</strong>el Queri<strong>no</strong>, pesquisa<strong>do</strong>r orgânico <strong>do</strong>s cultos afro-<strong>brasileiro</strong>s, contemporâneo<strong>do</strong> “mestre e cientista” racista e evolucionista, NinaRodrigues, com o qual Édison Carneiro é tão complacente:Antes de tu<strong>do</strong>, Nina Rodrigues foi muito unilateral. Para ele, oproblema <strong>do</strong> <strong>negro</strong> na América Portuguesa se resumia <strong>no</strong> problema<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s nagôs e jejes, <strong>no</strong> problema <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s sudaneses.(...) Culpa de Nina Rodrigues? Talvez não. Foi o gover<strong>no</strong> provisórioda República que man<strong>do</strong>u queimar os arquivos daescravidão...Outro grande erro de Nina Rodrigues — que foi,aliás, como o acentua bem Artur Ramos, um erro <strong>do</strong> seu tempo,— foi a escola antropológica de Lombroso e Ferri, que endeusoua raça branca, reduzin<strong>do</strong> o problema da cultura a uma questão desimples pigmentação de pele e de medidas craniométricas. Estaescola reacionária (...) muito atrapalhou o curso claro e certo <strong>do</strong>raciocínio de Nina Rodrigues. (...) Nem mesmo Manuel Queri<strong>no</strong>,3536Dantas, Vovó Nagô e Papai Branco, p.202.Oliveira e Lima, Cartas de Édison, p. 97.296 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
que nasceu <strong>do</strong> ventre de uma negra, que tinha a cor a ajudá-lo,que viveu num ambiente fetichista toda a sua vida de peque<strong>no</strong>burocrata da Secretaria da Agricultura, nem mesmo ManuelQueri<strong>no</strong> põe a disposição <strong>do</strong>s estudiosos tão grande<strong>do</strong>cumentário, tanto material a estudar. (...) Nina Rodrigues, seestivesse vivo, estaria co<strong>no</strong>sco na trincheira, como um camarada,(...) ele era um <strong>do</strong>s <strong>no</strong>ssos. 37Pior <strong>do</strong> que Nina foi Manuel Queri<strong>no</strong>, que nem sabia dessasdivisões <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s da África. Ele foi <strong>no</strong>tician<strong>do</strong> o que via emtor<strong>no</strong> de si, com a falta de inteligência que sempre o caracterizou,sem indagar nada, mas tentan<strong>do</strong> explicações pueris para os casosobserva<strong>do</strong>s. De maneira que a gente, hoje, apenas pôde utilizaro material eter<strong>no</strong> por ele trazi<strong>do</strong> à et<strong>no</strong>grafia e à psicologiasocial <strong>do</strong> afro-<strong>brasileiro</strong>, reinterpretan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>, à luz <strong>do</strong>s <strong>no</strong>vosconhecimentos, atuais, sobre o continente africa<strong>no</strong>. 38Deste mo<strong>do</strong>, temos um Édison Carneiro, embranqueci<strong>do</strong>, querecusa a influência e o controle <strong>do</strong> místico sobre os estu<strong>do</strong>s de Queri<strong>no</strong>,e quiçá dele próprio, que <strong>intelectual</strong>mente subordina<strong>do</strong>, superdimensionao distanciamento, aparentemente crítico e científico, de Nina Rodriguessobre nativos vistos sempre como dissimula<strong>do</strong>s. 39 Insisto emproblematizar, desloca<strong>do</strong> <strong>no</strong> tempo e <strong>no</strong> espaço, o que <strong>no</strong> passa<strong>do</strong> talvezfosse impossível ao próprio Édison Carneiro fazê-lo, porque considerofundamental ratificar as contradições de tão importante <strong>intelectual</strong> <strong>negro</strong>,“comunista”, defensor de políticas públicas para os <strong>negro</strong>s, masnada crítico em relação a sua posição enuncia<strong>do</strong>ra afinada aos argumentosracistas e evolucionistas de Nina Rodrigues. Se Nina Rodrigues,salvaguarda<strong>do</strong> <strong>no</strong> saber científico, pretendeu determinar o atavismo inferior<strong>do</strong> <strong>negro</strong>, o da<strong>no</strong> moral, a degenerescência e a falta de integridade<strong>do</strong> mestiço, apesar de apelar para o embranquecimento como salvação,Édison Carneiro, alia<strong>do</strong> a Nina Rodrigues, escreve que os cultos <strong>negro</strong>s,“seja qual for o mo<strong>do</strong> em que se apresentam, são um mun<strong>do</strong>, to<strong>do</strong> umestilo de comportamento, uma subcultura, que pode ser vencida (grifo37Carneiro, Ursa Maior, pp. 55-56-57. Edita<strong>do</strong> por mim.38Carneiro, Religiões Negras, p.128.39Corrêa, As Ilusões da Liberdade; Landes, A Cidade das Mulheres.40Carneiro, Can<strong>do</strong>mblés da Bahia, p. 36.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 297
meu) somente através de alterações profundas e substanciais das condiçõesobjetivas e subjetivas arcaicas de que são certamente o reflexo”.40 Ao contrário destes três primeiros autores, Thales de Azeve<strong>do</strong>não se concentra <strong>no</strong> estu<strong>do</strong> da religião. Como fez Édison Carneiro, Thalesde Azeve<strong>do</strong> não defende a inferioridade atávica <strong>do</strong> <strong>negro</strong>. Porém, assimila<strong>do</strong>como este último autor, Azeve<strong>do</strong> é me<strong>no</strong>s crítico <strong>do</strong> que poderiaser em seu trabalho de maior impacto, mais repercuti<strong>do</strong> e discuti<strong>do</strong>,sobre o qual farei, finalmente, algumas considerações. 41 A edição queconsultei é apresentada e prefaciada por Maria Azeve<strong>do</strong> Brandão, trazem anexo um outro trabalho de Thales de Azeve<strong>do</strong>, “Classes sociais egrupos de prestígio”, ausente da primeira edição patrocinada pela Unesco,em 1953.No Prefácio, Maria Brandão contextualiza a obra, uma solicitaçãoda Secretaria Geral da Organização das Nações Unidas, encaminhadapelo Departamento de Ciências Sociais da Unesco, que sob ostraumas <strong>do</strong> ódio racial e étnico vivi<strong>do</strong>s na Segunda Guerra, interessousepor uma análise da questão racial <strong>no</strong> Brasil, “país modelar <strong>no</strong> quedizia respeito a positiva convivência entre brancos e <strong>negro</strong>s”. No início,o projeto da Unesco contemplava apenas a Bahia, concorren<strong>do</strong> paraesta decisão, a tradição de estu<strong>do</strong>s sobre o <strong>negro</strong> na cidade de Salva<strong>do</strong>rdesde o final <strong>do</strong> século XIX, e a atração que este lugar e seu modelo derelações raciais “harmoniosas” exerceu sobre vários autores estrangeiros,<strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 30 e 40. 42 A partir de 1951, Alfred Metraux foi encarrega<strong>do</strong>de orientar pesquisas e publicações sobre o tema realizadas em SãoPaulo, Rio, Bahia e Recife. Na Bahia, Anísio Teixeira, então Secretáriode Educação e Saúde, coorde<strong>no</strong>u este projeto da Unesco, através deum convênio entre o Programa de Pesquisas Sociais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahiae a Columbia University (1949-53). Thales de Azeve<strong>do</strong>, amigo desde ainfância de Anísio Teixeira, foi o <strong>intelectual</strong> escolhi<strong>do</strong> para desenvolvere aplicar o projeto.4142Thales Azeve<strong>do</strong>, As elites de cor numa Cidade Brasileira. Um estu<strong>do</strong> de Ascensão Social &Classes sociais e grupos de prestígio, Salva<strong>do</strong>r, EdUfba/EGBA, 1996.Marcos Chor Maio, “O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais <strong>no</strong> Brasil <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 40 e 50”,Revista Brasileira de Ciências Sociais, V. 14, nº 41, São Paulo (Outubro de 1999), pp.141-158.298 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
Sobre As elites de cor numa cidade brasileira, Antônio SérgioGuimarães, cita<strong>do</strong> por Maria Brandão, afirma que “<strong>do</strong> ponto de vistateórico, o estu<strong>do</strong> pouco i<strong>no</strong>va em relação a Pierson, a quem, de fato,toma empresta<strong>do</strong> a tese de que o Brasil é uma sociedade multirracialde classes. Do ponto de vista et<strong>no</strong>gráfico, entretanto, o ensaio i<strong>no</strong>vamuito ao constatar e <strong>do</strong>cumentar a importância <strong>do</strong> status atribuí<strong>do</strong>, principalmentea origem familiar e a cor, sobre o status adquiri<strong>do</strong>, comoaquele proveniente da riqueza e da ocupação”. 43Concor<strong>do</strong> que a originalidade de As elites de cor contribuiu muitopara os estu<strong>do</strong>s das relações raciais <strong>no</strong> Brasil. Ao a<strong>no</strong>tar e definir categoriasnativas de cor — branco, preto, mulato, par<strong>do</strong>, more<strong>no</strong> e caboclo—, Thales de Azeve<strong>do</strong> explicita os imbricamentos entre classe, cor estatus já sugeri<strong>do</strong>s em Ruth Landes e até mesmo em Nina Rodrigues,quan<strong>do</strong> distingue o <strong>negro</strong> dig<strong>no</strong> de respeito, <strong>do</strong> <strong>negro</strong> como grupo racial.Enfatizan<strong>do</strong> estas categorias, institui <strong>no</strong>s estu<strong>do</strong>s das relações raciaisum <strong>no</strong>vo “background et<strong>no</strong>-racial” que revela o “gosto étnico” e racial<strong>do</strong>s seus nativos. Este “gosto étnico” e racial manifesta<strong>do</strong> sempre deforma ambígua, relacional, num contexto racializa<strong>do</strong>, <strong>no</strong> qual ainda éconstrange<strong>do</strong>r falar sobre discriminação racial e preconceito, vai conduzirThales de Azeve<strong>do</strong> a desenvolver, em “Classes sociais e grupos deprestígio”, a fundamental distinção entre “status atribuí<strong>do</strong>” e “statusadquiri<strong>do</strong>”.Porém, assim como Édison Carneiro, Thales de Azeve<strong>do</strong> não discutenem explicita o seu insiderism <strong>no</strong> campo de pesquisa, ou seja, atendência em se acreditar que as melhores ou as únicas interpretaçõespossíveis de um fenôme<strong>no</strong> sociocultural são aquelas <strong>do</strong>s nativos, <strong>do</strong>sinsiders. 44 Tanto é assim que da<strong>do</strong>s e depoimentos ambíguos, duranteto<strong>do</strong> o livro, são apenas descritos, as falas <strong>do</strong>s informantes se tornam aconfirmação de uma sociedade multirracial de classes, <strong>no</strong> qual o mun<strong>do</strong>branco tende à integridade racial e cultural e o <strong>negro</strong> é descontínuo econtraditório em tantas categorias de cor, atribuídas e adquiridas. Neste4344Azeve<strong>do</strong>, As elites de cor, p. 16.Livio Sansone, “O Olhar Forasteiro: Seduções e Ambigüidades das Relações Raciais <strong>no</strong> Brasil”,in Jeferson Bacelar e Carlos Caroso, Brasil: um país de <strong>negro</strong>s? (Rio de Janeiro/Salva<strong>do</strong>r, Pallas/CEAO, 1999), pp.15-33.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 299
senti<strong>do</strong>, escreve Thales de Azeve<strong>do</strong> queBrancos são, de mo<strong>do</strong> geral, os indivíduos de fenótipo caucasóide;as pessoas mais alvas, de olhos claros, de cabelos igualmenteclaros e fi<strong>no</strong>s são, muitas vezes, chamadas de brancos fi<strong>no</strong>s pornão apresentarem indícios de mistura com tipos de cor. Podemser chama<strong>do</strong>s de brancos também os ricos ou pessoas de statuseleva<strong>do</strong>, seja qual for o seu aspecto: quem ouvisse uma pessoahumilde qualquer, uma empregada <strong>do</strong>méstica ou um trabalha<strong>do</strong>rrural, branco ou preto, referir-se a “meu branco”, dificilmentepoderia convencer-se de que o termo estaria sen<strong>do</strong> aplica<strong>do</strong> aum mestiço bastante escuro. 45Enfim, é o <strong>negro</strong> protegi<strong>do</strong>, escolariza<strong>do</strong>, eco<strong>no</strong>micamente privilegia<strong>do</strong>,mas vigia<strong>do</strong> e embranqueci<strong>do</strong>, que se insere ou é inseri<strong>do</strong> <strong>no</strong>mun<strong>do</strong> branco que — sob o risco de enegrecer-se, como já afirmavaNina Rodrigues diante de tamanha presença física e cultural <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s— controla a eco<strong>no</strong>mia, a política, determina os valores <strong>do</strong> religioso, dacultura e <strong>do</strong> saber científico. Enquadrada, a discussão <strong>do</strong> autor em tor<strong>no</strong>da integração social das “pessoas de cor”, e da inexistência de conflitoracial, é tão ambígua quanto a fala de seus informantes. Ao mesmotempo em que promove este modelo de acomodação, aponta, originalmente,sutis fontes de conflitos estruturais que não explora. Em As elitesde cor, as relações interpessoais legitimam a idéia da harmonia e <strong>do</strong>mínimo de tensões raciais, ratificam as posições hierárquicas e desiguaisentre brancos e <strong>negro</strong>s. Mas, por outro la<strong>do</strong>, sugerem a constantesuspeita e ameaça de que o <strong>negro</strong> assimila<strong>do</strong>, por seu status adquiri<strong>do</strong>,pode reviver seus defeitos de temperamento, posturas corporais, caráterou mentalidade desequilibrada. 46Tal como Édison Carneiro, que mesmo ao reconhecer os erros meto<strong>do</strong>lógicose o racismo de Nina Rodrigues, continuou ten<strong>do</strong>-o como “um<strong>do</strong>s <strong>no</strong>ssos”, um luta<strong>do</strong>r “contra a escravidão <strong>intelectual</strong> <strong>do</strong> <strong>negro</strong> naAmérica Portuguesa” 47 , Thales de Azeve<strong>do</strong> entrevê algo mais, porém se45Azeve<strong>do</strong>, As elites de cor, pp. 34-35.46Azeve<strong>do</strong>, As elites de cor, pp. 57-58.47Carneiro, Ursa Maior, pp. 56-57.48Donald Pierson, Brancos e Pretos na Bahia, São Paulo, Companhia Editora Nacional. 1967.300 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
acomoda <strong>no</strong> argumento de Donald Pierson 48 , sobre a assimilação eaculturação <strong>do</strong> <strong>negro</strong> ao mun<strong>do</strong> branco, e na idéia de que a Bahia é umasociedade multirracial de classes. De fato, naquele contexto, em que umautor branco, <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>, numa obra de repercussão internacional,já havia corrobora<strong>do</strong> a desigualdade racial, As elites de cor, contrarian<strong>do</strong>as <strong>no</strong>tas et<strong>no</strong>gráficas <strong>do</strong> seu autor, foi “uma mo<strong>no</strong>grafia engajada comuma certa política racial e com um programa anti-racista bem defini<strong>do</strong>,encampa<strong>do</strong> pela Unesco. Tratava-se de demonstrar a possibilidade empíricade convivência de raças e etnias diversas, com o mínimo de tensão econflito raciais”. 49 Este engajamento é curioso se lembramos que, em1953, Alfred Metraux, o coordena<strong>do</strong>r das pesquisas da Unesco <strong>no</strong> Brasil,solicitou de Thales de Azeve<strong>do</strong> a exclusão de <strong>do</strong>is outros artigos da ediçãoem francês de As elites de cor e, apenas três a<strong>no</strong>s depois, o autor publicou“Classes sociais e grupos de prestígio”, <strong>no</strong>s Arquivos da Universidadeda Bahia; Faculdade de Filosofia, permitin<strong>do</strong> a criação da controvérsiasobre se, de fato, teria si<strong>do</strong> este o segun<strong>do</strong> artigo excluí<strong>do</strong>. 50Como leva a crer Guimarães 51 , Thales de Azeve<strong>do</strong>, já em Aselites de cor, tinha consciência <strong>do</strong> forte ideário assimilacionista da épo-495051Antonio Sérgio Alfre<strong>do</strong> Guimarães, Racismo e Anti-racismo <strong>no</strong> Brasil, São Paulo, Ed. 34. 1999,p. 130.Na edição de 1996, sobre “Classes sociais e grupos de prestígio”, anexa<strong>do</strong> a As elites de cornuma Cidade Brasileira, Maria Azeve<strong>do</strong> Brandão escreveu a seguinte <strong>no</strong>ta: “Este ensaio foipublica<strong>do</strong> pela primeira vez em 1956, <strong>no</strong>s Arquivos da Universidade da Bahia; Faculdade deFilosofia, Salva<strong>do</strong>r, vol.5, p.81-91,1956, porém fora originalmente esboça<strong>do</strong> para integrar, juntamentecom Índios, brancos e pretos <strong>no</strong> Brasil Colonial, 1953, o trabalho que viria a ser Aselites de cor. No prefácio a Ensaios de Antropologia, Salva<strong>do</strong>r, Universidade da Bahia, 1959,que inclui esses <strong>do</strong>is textos, o autor informa que a exclusão <strong>do</strong>s mesmos de Les élites não teriaocorri<strong>do</strong> ‘...não houvesse deseja<strong>do</strong> Métraux o tipo de apresentação indica<strong>do</strong>..., (isto é) um livrosobre uma situação, a das relações raciais e a da ascensão social das pessoas de cor em umacidade brasileira, que servisse para mostrar a outros povos uma solução para o problema <strong>do</strong>convívio entre tipos étnicos diferentes’. Mas a importância deste ensaio não poderia dispensá-lodesta edição” (Azeve<strong>do</strong> Brandão, in Azeve<strong>do</strong>, As elites de cor, p.167). Para Guimarães, Racismoe Anti-racismo <strong>no</strong> Brasil, p. 130, se parece óbvio que Thales de Azeve<strong>do</strong> se refere a “Índios,brancos e pretos <strong>no</strong> Brasil colonial: as relações interraciais na cidade da Bahia” como um <strong>do</strong>sartigos excluí<strong>do</strong>s por sugestão de Metraux, de fato, é mais difícil aceitar que o outro fosse “Classessociais e grupos de prestígio”. Publica<strong>do</strong> apenas em 1956, traz cinco referências, <strong>do</strong> total de<strong>no</strong>ve, a obras publicadas depois de 1954. De qualquer mo<strong>do</strong>, Guimarães não descarta a possibilidade<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> artigo excluí<strong>do</strong> ter si<strong>do</strong> realmente “Classes sociais e grupos de prestígio”.Além disso, tanto Guimarães quanto Brandão parecem concordar que “Índios, brancos e pretos<strong>no</strong> Brasil colonial” já significava uma ênfase <strong>no</strong> preconceito e discriminação racial.Guimarães, Racismo e Anti-racismo, p. 131.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 301
ca, da expectativa que até mesmo intelectuais reforçassem a interpretaçãooficial e <strong>do</strong>gmática sobre o problema racial <strong>no</strong> Brasil. Minha questão,portanto, é que Thales de Azeve<strong>do</strong> não acreditava realmente que aBahia pudesse ser um exemplo para outras sociedades de como resolvero problema <strong>do</strong> convívio entre tipos étnicos/raciais diferentes. Permitiuque sua obra servisse a esse ideário porque não foi capaz de rompercom uma agenda política <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nacional, da opinião pública, <strong>do</strong>scentros <strong>acadêmico</strong>s hegemônicos e da Unesco.A crítica que Thales de Azeve<strong>do</strong> reprimiu em As elites de cor,desenvolveu sofisticadamente em “Classes sociais e grupos de prestígio”.Como afirma Antônio Sérgio Guimarães, neste caso(Thales rompe com) a tese piersoniana da democracia racial deum mo<strong>do</strong> que foi a um tempo simples e sóli<strong>do</strong>. A i<strong>no</strong>vação deThales consistiu justamente em teorizar a transição <strong>do</strong> Brasil colonialpara um Brasil moder<strong>no</strong> em termos da passagem de umasociedade de status para um sociedade de classes, indican<strong>do</strong>como a associação entre status e cor permanecia incólume nessatransição. Fiel ao texto weberia<strong>no</strong>, emprega a categoria de statuscomo categoria de estrutura social (com o mesmo estatuto declasse e casta), e não apenas como simples categoria de interaçãosocial. (...) ao empregá-la dessa maneira, Thales de Azeve<strong>do</strong> encontrouterre<strong>no</strong> teórico onde se poderia propriamente teorizar adureza, a rigidez e a importância das distinções de cor <strong>no</strong> Brasil.Só, portanto, a percepção <strong>do</strong> status como fenôme<strong>no</strong> de estruturapermite a formulação radical de que: (segun<strong>do</strong> Thales) da observaçãoda sociedade da Bahia parece que se pode induzir que ostatus resulta de uma combinação de fatores como nascimento etipo físico, que se deixam modificar, até certo ponto, pela fortuna,pela ocupação e pela educação. O status de nascimento e a corlimitam a distância social de mobilidade vertical, quaisquer quesejam os demais elementos condicionantes. Essa foi sem dúvidaa contribuição mais dura<strong>do</strong>ura <strong>do</strong> mestre baia<strong>no</strong> para os estu<strong>do</strong>sde relações raciais e para luta anti-racista <strong>no</strong> Brasil. 525253Guimarães, As elites de cor, p. 19.Thales Azeve<strong>do</strong>, Democracia Racial, Petrópolis, Vozes. 1975.302 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
Mais tarde, em outro trabalho 53 , Thales de Azeve<strong>do</strong> afirma que<strong>no</strong> Brasil não faltam evidências de que a interação entre brancos e <strong>negro</strong>ssão excepcionalmente tranqüilas, de que o preconceito, a discriminação,as preterições por motivo de “raça” são repeli<strong>do</strong>s como antagônicosaos valores abertamente aceitos e de que a democracia racial,para as elites e o senso comum, mais <strong>do</strong> que a expressão de uma realidadehistórica, seria uma virtude própria, inata, exclusiva e espontânea<strong>do</strong> povo <strong>brasileiro</strong>. Observa, entretanto, que é preciso ver até onde issoé inteiramente verdadeiro, até onde na “prática a teoria é outra” e taldiscussão se torna “um tema proibi<strong>do</strong>, ao me<strong>no</strong>s eticamente veda<strong>do</strong> àanálise porque nada importa, nada realmente significa ou, ainda porquedesperta a atenção para um fenôme<strong>no</strong> que não deve ser ressalta<strong>do</strong> pornegar a evidência ou poder excitar supostas vítimas”. 54Para Guimarães, Thales de Azeve<strong>do</strong> acompanhou, como poucos,as mudanças <strong>do</strong> científico ao politicamente correto: “Oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> berçomais <strong>no</strong>bre <strong>do</strong> racismo científico <strong>brasileiro</strong>, aju<strong>do</strong>u, com seus primeirostrabalhos, a feri-lo de morte, estabelecen<strong>do</strong> o <strong>no</strong>vo consenso culturalistade negação das raças, de afirmação das cores e de louvação <strong>do</strong>s ideaisde democracia racial. Não durou muito, todavia, para passar a militarcontra a ideologização desse <strong>no</strong>vo consenso, desmascaran<strong>do</strong> as racionalizaçõese revelan<strong>do</strong> as discriminações e preconceitos raciais e decor”. 55 Deste mo<strong>do</strong>, submeti<strong>do</strong> as pressões sociais de seu tempo, mascomprometi<strong>do</strong> com “uma sociologia branca sobre o <strong>negro</strong>”, realmentecontribuiu dura<strong>do</strong>uramente para os estu<strong>do</strong>s das relações raciais <strong>no</strong> Brasil,porém, <strong>no</strong> que diz respeito à luta anti-racista, antes que dura<strong>do</strong>ura,sua contribuição foi politicamente compromete<strong>do</strong>ra. Ao publicar As eli-5455Azeve<strong>do</strong>, Democracia Racial, p. 5.Guimarães, Racismo e Anti-racismo, p. 145.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 303
tes de cor isoladamente, em francês e pela Unesco, Thales de Azeve<strong>do</strong>perdeu a chance de desmitificar para o mun<strong>do</strong>, num momento estratégico,um tema proibi<strong>do</strong> <strong>no</strong> Brasil. Perdeu a chance de vincular, eticamente,pensamento científico e ação política para o benefício de vítimas <strong>do</strong>crime de racismo, que não são supostas, mas reais.Construin<strong>do</strong> uma experiência negra<strong>no</strong> <strong>meio</strong> <strong>acadêmico</strong> <strong>brasileiro</strong>Então, converto o ‘branco’ <strong>brasileiro</strong>, sôfrego de identificação como padrão estético europeu, num caso de patologia social. Então,passo a considerar o preto <strong>brasileiro</strong>, ávi<strong>do</strong> de embranquecer seembaraçan<strong>do</strong> com a sua própria pele, também como ser psicologicamentedividi<strong>do</strong>. Então descobre-se-me a legitimidade de elaboraruma estética social de que seja um ingrediente positivo a cornegra. Então, afigura-se-me possível uma sociologia científica dasrelações étnicas. Então, compreen<strong>do</strong> que a solução <strong>do</strong> que, nasociologia brasileira se chama o ‘problema <strong>do</strong> <strong>negro</strong>’, seria umasociedade em que to<strong>do</strong>s fossem brancos. Então, capacito-me paranegar validade a esta solução.Guerreiro RamosNo Brasil, 102 a<strong>no</strong>s após a Abolição da Escravidão, da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Dieese(Departamento Intersindical de Estatísticas e Estu<strong>do</strong>s Socioeconômicos)comprovam que mais de 60% da população é formada por <strong>negro</strong>s querecebem os me<strong>no</strong>res salários, têm mais baixo nível de escolaridade, ocupamos postos de trabalho mais precários, convivem mais com o desemprego,têm me<strong>no</strong>r estabilidade em suas vagas e estão mais distantes <strong>do</strong>scargos de chefia, independentemente <strong>do</strong> nível de escolaridade e atributopessoal considera<strong>do</strong>. 56 No que diz respeito às relações entre professorese alu<strong>no</strong>s <strong>negro</strong>s nas salas de aula, as conclusões da dissertação de5657Fátima Prates, “Salário de <strong>negro</strong> é me<strong>no</strong>r, diz pesquisa”, Folha de São Paulo, Cader<strong>no</strong> 2 Dinheiro,São Paulo, (20 de outubro de 1999), p. 04.Eliane <strong>do</strong>s Santos Cavalleiro, “Discursos e práticas racistas na educação infantil: a produção dasubmissão social e <strong>do</strong> fracasso escolar”, in Educação, racismo e anti-racismo (Salva<strong>do</strong>r, NovosToques/Programa A Cor da Bahia/Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdadede Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, 2000), pp.193-219.304 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
mestra<strong>do</strong> Do silêncio <strong>do</strong> lar ao silêncio escolar: racismo, preconceitoe discriminação na educação infantil, defendida na FE/USP,pela professora Eliane Cavalleiro, são estarrece<strong>do</strong>ras. A autora constatou,em uma pré-escola municipal, num bairro de classe média de SãoPaulo, que professoras tratam com e<strong>no</strong>rme diferença alu<strong>no</strong>s <strong>negro</strong>s.São mais impacientes, me<strong>no</strong>s carinhosas, chegam a humilhar as criançasnegras com expressões impensáveis para quem é responsável poreducar. 57 Na Bahia, a “região mais negra <strong>do</strong> país”, o quadro é maisgrave. Cerca de 80% da população é formada por <strong>negro</strong>s. Se 73,2%<strong>do</strong>s jovens brancos, entre 15 e 17 a<strong>no</strong>s, só estudam, este índice cai para53,2%, entre os jovens <strong>negro</strong>s. Se, por um la<strong>do</strong>, tem aumenta<strong>do</strong> a proporçãode estudantes universitários <strong>negro</strong>s, estes ingressam <strong>no</strong>s cursosde me<strong>no</strong>r prestígio. 58Sou alu<strong>no</strong> regular <strong>do</strong> PPGAS (Programa de Pós-graduação emAntropologia e Sociologia) da UnB, considera<strong>do</strong> de excelência, pelaCAPES. Entretanto, neste programa tenho vivencia<strong>do</strong> experiências queexatamente não me inscrevem pelo meu mérito <strong>intelectual</strong>, mas, comosujeito constituí<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>, através da experiência histórica discursivada minha condição racial. Pensar sobre esta experiência na UnB,portanto, é tentar historicizar a identidade daquilo ou daqueles que aproduziram, é ordenar e interpretar os <strong>do</strong>mínios e ações sociais que merevelaram como <strong>negro</strong> inferior, suspeito, estrangeiro, fora de lugar,desestabiliza<strong>do</strong>r. 59Porém, como pode um <strong>intelectual</strong> <strong>negro</strong> articular o confronto naacademia sem confundir sua fala com o discurso militante? Como podeincorporar em sua fala a ousadia, a criatividade, a acuidade que muitasvezes os movimentos <strong>negro</strong>s organiza<strong>do</strong>s demonstram ter, uma vez quesua subalternidade a categorias de gênero, de raça, étnicas e de pertencimento,requer <strong>do</strong> antropólogo <strong>negro</strong>, <strong>no</strong> campo, a categorização ante-585960Estes da<strong>do</strong>s estão disponíveis <strong>no</strong> site <strong>do</strong> Programa A Cor da Bahia, da UFBA. A propósito vertambém, Delcele Mascarenhas Queiroz, “Desigualdades raciais <strong>no</strong> ensi<strong>no</strong> superior: a cor daUFBA” in Educação, racismo e anti-racismo (Salva<strong>do</strong>r, Novos Toques/Programa A Cor daBahia/Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e CiênciasHumanas da UFBA, 2000), pp. 11-44.Scott, “Experience”.Sansone, “O Olhar Forasteiro”.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 305
cipada de si mesmo? Ele provém de um contexto sociocultural, defendeuma agenda político-cultural, observa os seus nativos, informa<strong>do</strong> porum background et<strong>no</strong>-racial. Sua consciência étnica lançada tantas vezesde fora para dentro, visibiliza, tanto quanto pode obscurecer, a realidade<strong>do</strong> seu campo de pesquisa e enunciação. 60O mito da democracia racial, que como mito funda<strong>do</strong>r da sociedadebrasileira não é verdade nem mentira, seduz também o <strong>intelectual</strong><strong>negro</strong> em sua vontade de comungar valores, construir solidariedade social,fazer ciência e se legitimar. 61 Entretanto, as verdades tácitas e ossilêncios desse mito, são um sintoma de sua fragilidade e risco de reversãoda realidade <strong>intelectual</strong> e empírica que inventa. Vivemos numa democraciaracial em que, segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> instituto de pesquisas Datafolha,89% <strong>do</strong>s <strong>brasileiro</strong>s concordam que a sociedade é racista, mas apenas10% se vêem como tal, e, “par<strong>do</strong>s” e “pretos”, experimentam a discriminaçãoe desigualdade racial. Lamentavelmente, da<strong>do</strong>s estatísticos dadécada de 1990 ainda são congruentes com as observações empíricasde Thales de Azeve<strong>do</strong>, da década de 50. O mito da democracia racial,ao tempo em que promete a anulação da cor/raça, <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> biológico ecultural, “dissimula a discriminação racial <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> sociológico. Comodiscriminar alguém que não existe? (...). Aqui se manifesta outra característica<strong>do</strong> mito da democracia racial brasileira: a invisibilidade da ‘massa<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>-mestiços’. Essa invisibilidade nega a existência <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s, oque em última instância retira deles a humanidade e radicaliza a discriminaçãocontra os mesmos, porque é da essência <strong>do</strong> racismo adesumanização <strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong> racialmente”. 62Mas, se o racismo desumaniza o oprimi<strong>do</strong> racialmente, por outrola<strong>do</strong>, o humaniza parcialmente, ao reconhecer sua dignidade circunstancial,ambígua, ao vê-lo como sujeito suspeito, inferior ao seu senhor,sempre fora de lugar. Lembro de uma passagem de A Cidade das mulheresquan<strong>do</strong> Ruth Landes alerta Édison Carneiro a evitar o sul <strong>do</strong>s61Jessé Souza, “Multiculturalismo, Racismo e Democracia. Por que Comparar Brasil e Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s”, in Jessé Souza (org.), Multiculturalismo e Racismo (Brasília, Ed. Paralelo XV, 1997),pp.23-35.62Dijaci Oliveira, Ricar<strong>do</strong> B. Lima e Sales A. <strong>do</strong>s Santos, “A cor <strong>do</strong> me<strong>do</strong>: o me<strong>do</strong> da cor”, inDijaci Oliveira, Ricar<strong>do</strong> B. Lima e Sales A. <strong>do</strong>s Santos (orgs.). A cor <strong>do</strong> me<strong>do</strong> (Brasília/Goiânia,Editora da UnB/Editora da UFG, 1998), pp. 37-60.63Landes, A Cidade das Mulheres, p. 18.306 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s por causa de sua cor. Segun<strong>do</strong> Landes, o rosto de ÉdisonCarneiro se contorceu como se ela o tivesse chicotea<strong>do</strong> sobre os olhos.“Agoniada”, Ruth Landes pensou que um america<strong>no</strong> — branco, acrescento— não devia fazer tais coisas a um mulato aristocrata, erudito.63 Para mim, a contorção <strong>do</strong> rosto de Édison é o receio <strong>do</strong> <strong>intelectual</strong>fora de lugar de transformar uma “cicatriz (contorção) psicológica” emautovitimização. E por que evitamos a discussão sobre a “cicatriz psicológica”da identidade negra?Um <strong>intelectual</strong> deve evitar a vitimização, sob o risco de não sairde si mesmo e fragilizar sua argumentação científica. Para o <strong>intelectual</strong><strong>negro</strong>, evitar, o que é de fato um risco, torna-se muitas vezes esquecerque pertence a um segmento social que nunca foi alcança<strong>do</strong> por políticaspúblicas que atendessem e reparassem a histórica discriminaçãoque esse grupo racial sofre <strong>no</strong> Brasil. Esquecer que este segmento,expressivo na constituição <strong>do</strong> país, parece acreditar que só tem a perdercom o enfrentamento político e científico da questão racial, uma vez quea evocação da harmonia racial, <strong>do</strong> mínimo de tensão, o desprezo àproblematização coletiva de uma situação dramática, é uma solução queatende tanto aos interesses pessoais e imediatos <strong>do</strong>s brancos, racistas enão racistas, beneficia<strong>do</strong>s por uma determinada ordem racial, política,social e econômica que naturaliza, ou racializa, seus poderes e privilégios,quanto <strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s, convenci<strong>do</strong>s de que o melhor é a busca por satisfaçãoindividual ou da pequena coletividade que pertence.No PPGAS da Universidade de Brasília, <strong>no</strong> a<strong>no</strong> de 1998, eu era oúnico <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong> <strong>negro</strong> e, segun<strong>do</strong> informações extra-oficiais, o primeiroem toda a história <strong>do</strong> curso de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> e o primeiro também a ser reprova<strong>do</strong>numa disciplina obrigatória. Decidi ir para a UnB, apostan<strong>do</strong> napositividade <strong>do</strong> deslocamento espacial, temporal e de hierarquia social 64 ,<strong>no</strong> enriquecimento <strong>intelectual</strong> e huma<strong>no</strong> que um programa ti<strong>do</strong> como deexcelência, instala<strong>do</strong> numa cidade atípica e inóspita, poderia me oferecer.Negro, homossexual, baia<strong>no</strong>, egresso de outra área disciplinar, num<strong>meio</strong> conserva<strong>do</strong>r, tornei-me potencial vítima e agente desestabiliza<strong>do</strong>rde uma estrutura social cujo curso regular das <strong>no</strong>rmas, desconhecia.64Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 307
Minha reprovação gerou uma crise que transcendeu a sala de aula, oDepartamento de Antropologia e a UnB.Meu “drama” começou <strong>no</strong> primeiro semestre letivo de 1998 quan<strong>do</strong>,recém-aprova<strong>do</strong> <strong>no</strong> PPGAS da UnB, cursei uma disciplina chamada“Organização Social e Parentesco”, ministrada pelo professor Dr. KlaasWoortmann. Trabalhei arduamente neste curso. No final <strong>do</strong> semestre,entretanto, fui sumariamente reprova<strong>do</strong>. Encaminhei pedi<strong>do</strong>s para a revisãode menção final, a três instâncias administrativas da UnB, todaselas indeferiram meu recurso. Finalmente, em 19 de maio de 2000, umaquarta instância, o CEPE-Conselho de Ensi<strong>no</strong> Pesquisa e Extensão —discutiu, pela segunda vez, o processo e reconheceu (22 votos a favor x 4contra) que fui injustamente reprova<strong>do</strong> e me concedeu o crédito devi<strong>do</strong>.É fato que o professor Klaas Woortmann ditou sua disciplina comseriedade professoral. Mas é fato também que neste primeiro semestreletivo fui aprova<strong>do</strong> nas demais disciplinas que cursei com menções SS,equivalente a 10 (dez) numa escala de 0(zero) a 10 (dez). Ainda assim,fui reprova<strong>do</strong> em Organização Social e Parentesco sem ter recebi<strong>do</strong>nenhuma indicação prévia de que meu rendimento durante o curso fosseinsatisfatório. Um outro alu<strong>no</strong> reprova<strong>do</strong> não realizou to<strong>do</strong>s os trabalhosparciais durante o semestre, se ausentou de muitas aulas e já tinhauma reprovação em uma disciplina que cursou em semestre anterior.Como se pode constatar foi muito estranho o comportamento <strong>do</strong> professore obviamente excessivo o rigor que utilizou para julgar um trabalhoresulta<strong>do</strong> de um semestre letivo inteiro de árduo trabalho. Quais motivoso levaram a se comportar assim?O professor Klaas Woortmann não aceitou negociar uma soluçãopara o caso, como por exemplo, melhorar ou refazer o trabalho. Aocontrário, na conversa que tive com ele em sua sala, bastante agressivo,disse-me, na presença de vários colegas, que era “uma nulidade”, quemeu trabalho “era muito ruim mesmo”. Além disso, ao questioná-lo, <strong>no</strong>primeiro pedi<strong>do</strong> de revisão, por que não deu a devida atenção aos meustrabalhos parciais afirmou por escrito que: ”sobre trabalhos medíocresnão há o que comentar”. Por que o professor, numa atitude antiética eantipedagógica, me negou como alu<strong>no</strong> e interlocutor, independentementeda qualidade <strong>do</strong>s meus trabalhos? O professor demonstrou, to<strong>do</strong> o308 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
tempo, sua incoerência e iníqua avaliação. Por exemplo, a uma alunatambém prejudicada com baixa menção, afirmou que só não a reprovoucom MI (<strong>do</strong>is) porque seus outros trabalhos, apresenta<strong>do</strong>s durante ocurso, possuíam nível satisfatório. Ao mesmo tempo, afirmou que apenaso trabalho final definia a menção <strong>do</strong> curso. Esta mesma aluna impetrourecurso em primeira instância e obteve uma média mais alta. Por queum tratamento diferencia<strong>do</strong> para uma outra aluna cujo trabalho o professorconsiderou também, a princípio, de nível MI?Ao iniciar o processo <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> de revisão, a então Coordena<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> PPGAS pediu ao então Diretor <strong>do</strong> Instituto de CiênciasSociais (ICS), responsável pela constituição da comissão que julgaria osegun<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>, que garantisse a isenção <strong>do</strong> processo, <strong>no</strong>mean<strong>do</strong> professoresde departamentos diferentes e distantes <strong>do</strong> professor questiona<strong>do</strong>.Ao contrário disso, o Diretor <strong>do</strong> ICS constituiu uma comissão detrês professores <strong>do</strong> PPGAS, bastante próximos ao professor KlaasWoortmann. Com um deles, inclusive, o referi<strong>do</strong> professor dividia sala.Além disso, o Diretor <strong>do</strong> ICS pré-julgou o parecer da comissão, afirman<strong>do</strong>,em conversa que tive com ele, que considerava “muito difícil,quase impossível que a comissão <strong>no</strong>meada revertesse o quadro”. Porque tanto desinteresse pela isenção e lisura <strong>no</strong> processo? Por que umevidente interesse em proteger o professor e me prejudicar? A comissão<strong>no</strong>meada pelo Diretor <strong>do</strong> ICS produziu um parecer lastimável, burocráticoe compromete<strong>do</strong>r de sua isenção: não considerou o contexto dadisciplina, não avaliou ou fez quaisquer comentários aos procedimentosantiéticos e antipedagógicos <strong>do</strong> professor Klaas Woortmann. Que espéciede futuros pesquisa<strong>do</strong>res e professores este programa pretende formar?Por que tanto descaso à subjetividade de alu<strong>no</strong>s?Desde quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> este processo estourou, boa parte <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>se uma grande maioria <strong>do</strong>s professores <strong>do</strong> Departamento de Antropologia,foi omissa ou se manifestou <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> de proteger a si mesmos e àcorporação a que pertencem. Estes professores perderam a chance de65A propósito, mais uma vez Guimarães, Racismo e Anti-racismo, p.123 observa que na configuração<strong>do</strong> racismo ao mo<strong>do</strong> <strong>brasileiro</strong>, “baia<strong>no</strong>”, é mais um epíteto que evidencia a naturalizaçãoda hierarquia social entre brancos e <strong>negro</strong>s.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 309
discutir méto<strong>do</strong>s de avaliação, de estabelecer alguma coerência entre odebate antropológico de sala de aula, <strong>no</strong> que diz respeito à dignidade, aoreconhecimento da capacidade <strong>intelectual</strong> e dialógica de sujeitos marginais,de admitir o fato de que o professor também pode errar; desprezaramuma carta de solidariedade assinada por um grupo de alu<strong>no</strong>s <strong>do</strong>PPGAS, encaminhada à chefia <strong>do</strong> departamento, assim como os protestose a indignação de colegas e figuras emergentes <strong>do</strong> <strong>meio</strong> <strong>acadêmico</strong><strong>brasileiro</strong>; desconsideraram a fala perversa <strong>do</strong> então Coordena<strong>do</strong>r<strong>do</strong> PPGAS, que afirmou que eu “só podia ser baia<strong>no</strong> 65 , que estava crian<strong>do</strong>muito problema, que tinha mesmo é que ser expulso, pois ninguémestava pedin<strong>do</strong> para que ficasse <strong>no</strong> PPGAS”; ratificaram o imaginárionacional sobre a questão racial <strong>no</strong> Brasil, ao transformarem uma suspeitade racismo, em questão inimaginável, i<strong>no</strong>minável, tabu.No departamento, os <strong>do</strong>is únicos professores que se manifestaramabertamente contra a corrente e me defenderam, pagaram um altopreço pelo gesto. Um deles, antiga Coordena<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> PPGAS, foi destituí<strong>do</strong>de maneira, <strong>no</strong> mínimo, confusa, da coordenação, num momentoestratégico. Juntos, estes <strong>do</strong>is professores, estiveram temporariamentesob voto de censura para que não manifestassem suas divergênciaséticas e políticas em relação ao grupo hegemônico <strong>do</strong> departamento,nem comentassem o meu caso fora e dentro da UnB.Acredito que se pode ver neste “drama social”, forte indício decrime de racismo. Entretanto, como prová-lo? Quais da<strong>do</strong>s, palavras,idéias, representações ou categorias podem sustentar esta suspeita? Oque posso realmente falar sobre isso? Ao contrário, recebi fortes pressõespara que me calasse, inclusive de professores <strong>do</strong> PPGAS. Confessoque nunca me senti tão bloquea<strong>do</strong> ou repercutin<strong>do</strong> o aban<strong>do</strong><strong>no</strong> históricoao qual o segmento social a que pertenço foi relega<strong>do</strong>. Deusesafro-baia<strong>no</strong>s, se existem, nenhum amparo objetivo puderam me assegurar.Também a nenhuma voz negra coletiva, institucionalizada, legitima-66No que diz respeito ao apoio de vozes negras institucionalizadas é preciso <strong>no</strong>tar que, <strong>no</strong> início <strong>do</strong>processo, fiz contatos em Brasília que, pouco a pouco, se mostraram inconsistentes e se dispersaram.Muito próximo à decisão <strong>do</strong> CEPE da UnB, que me concedeu o crédito devi<strong>do</strong>, a organizaçãonão-governamental ENZP-Escritório Nacional Zumbi <strong>do</strong>s Palmares - aproximou-se <strong>do</strong> caso,conversou com meu advoga<strong>do</strong>, teve acesso aos <strong>do</strong>cumentos produzi<strong>do</strong>s, mas não interferiu <strong>no</strong>caso, preferin<strong>do</strong> observar o andamento <strong>do</strong> processo.310 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312
da pude recorrer em meu favor. 66 Qual é de fato a minha auto<strong>no</strong>mia,para representar esta experiência, se estou aprenden<strong>do</strong> a falar sobreraça e racismo <strong>no</strong> Brasil, justamente com aqueles sobre os quais levantouma suspeita? Esta é uma condição de subalternidade que me silencia.Tenho experimenta<strong>do</strong> a inferiorização, o isolamento, a comprovação dequão perversa é qualquer tentativa de inserção social de um <strong>negro</strong> <strong>no</strong><strong>meio</strong> <strong>acadêmico</strong> <strong>brasileiro</strong>. Estou comprovan<strong>do</strong> também que a<strong>legitimação</strong> de Pelé, da mulata ou a minha própria, assim como a deoutros jovens intelectuais afro-<strong>brasileiro</strong>s, tende a ser <strong>no</strong> mínimo tortuosa.E é <strong>no</strong> <strong>meio</strong> <strong>acadêmico</strong>, onde a presença negra não é nada “natural”ou ainda não foi naturalizada como a presença branca, que o sujeito<strong>negro</strong> se debate mais violentamente contra a negação da inferioridadeatávica, a assimilação embranquece<strong>do</strong>ra ou o estabelecimento <strong>do</strong> confronto<strong>intelectual</strong>.Assim é que, ao contrário de outros contra-discursos importantes,como o femini<strong>no</strong> e o homossexual, <strong>no</strong> <strong>meio</strong> <strong>acadêmico</strong> <strong>brasileiro</strong>, o contra-discurso<strong>do</strong>s <strong>negro</strong>s não gera o mesmo circuito de adesão e solidariedade,uma vez que incide diretamente sobre a questão da nacionalidade 67e a ordenação <strong>do</strong> poder. No meu caso, a cor da pele, mais “natural” que ogênero ou a sexualidade, gerou uma certa expectativa em tor<strong>no</strong> da minha<strong>intelectual</strong>idade, forman<strong>do</strong> um vazio de senti<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s e para mimmesmo que acreditei na universalidade <strong>do</strong> conhecimento. Meu deslocamentonão foi apenas espacial, temporal e de hierarquia social, mas foitambém <strong>intelectual</strong> e político. Instaurou na UnB uma identidade negraque não é mais confortável <strong>do</strong> que aquela de Pelé ou da mulata. Fui confundi<strong>do</strong>,mais de uma vez, com africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong>s corre<strong>do</strong>res da universidade.Estranhei o olhar inquisi<strong>do</strong>r, a cumplicidade incômoda que um ou outrofuncionário de serviços gerais procurou estabelecer comigo. Sou um exemplode como a origem étnica e racial bloqueia a interlocução, determinarelações substantivas e tende a naturalizar posições, identidades que deveriamser relacionais: “Assim é o racismo <strong>brasileiro</strong>: sem cara. Travesti<strong>do</strong>em roupas ilustradas, universalistas, tratan<strong>do</strong>-se a si mesmo como anti-6768Fernan<strong>do</strong> Rosa Ribeiro, “Ideologia nacional, antropologia e ‘questão racial’”, Estu<strong>do</strong>s Afro-Asiáticos, 31, Rio de Janeiro, CEAA (outubro de 1997), pp. 79-89.Guimarães, Racismo e Anti-racismo, p. 57.Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312 311
acismo, e negan<strong>do</strong>, como anti-nacional, a presença integral <strong>do</strong> afro-<strong>brasileiro</strong>ou <strong>do</strong> índio-<strong>brasileiro</strong>. Para este racismo, o racismo é aquele quesepara, não o que nega a humanidade de outrem; desse mo<strong>do</strong>, racismo,para ele, é o racismo <strong>do</strong> vizinho (o racismo america<strong>no</strong>)”. 68Acredito que à suposta inferioridade <strong>intelectual</strong> que me foi atribuídapor um professor <strong>do</strong>utor, de um Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social, classifica<strong>do</strong> como de excelência, esteve amalgamadaa uma disputa por verdades científicas sobre a diferença não civilizada,incompreensível, impensável, imponderável, representada emmeu corpo, em meu texto ainda amadurecen<strong>do</strong>. Para o outro branco,senhor de si, intocável em sua experiência e prestígio <strong>acadêmico</strong>, erapreciso me deter com seu desprezo, com seu conhecimento científiconão questiona<strong>do</strong>. Submisso, eu deveria, primeiro, ter apreendi<strong>do</strong> e assimila<strong>do</strong>o que este outro enunciou sobre a minha diferença que nunca foiaceita, muito me<strong>no</strong>s considerada discutível, mas neutralizável. Ao contrário,ciente da minha subalternidade, me apoian<strong>do</strong> neste outro, quisapontar falsidades ou equívocos, trair idéias alheias sobre esta diferençaque certamente são compartilhadas pelo meu adversário. Assim, antesque tocasse na questão, to<strong>do</strong>s pareceram esquecer minha condição racial,minha posição surpreendentemente superior, uma vez que estounum mun<strong>do</strong> onde o <strong>negro</strong> é escassez, depois frisaram-na explícita eimplicitamente, sem “demérito desta mesma condição”, agora inferior,diante de um atesta<strong>do</strong> de fracasso.Acredito, então, que se o <strong>intelectual</strong> <strong>negro</strong>, um subalter<strong>no</strong>, nãoconsegue fugir de um sistema simbólico <strong>do</strong>minante, não pode esquecerque sua fala não é mais acadêmica <strong>do</strong> que política. Uma vez imersonum sistema simbólico onde não tem plena auto<strong>no</strong>mia para representara si mesmo, deve buscar não apenas sua constituição como cientistasuperior, mas o compromisso e a afirmação de verdades que nuncadeixam de ser parciais.312 Afro-Ásia, 25-26 (2001), 281-312