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Orlando Senna - Universia Brasil

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<strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong>O Homem da Montanha


<strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong>O Homem da MontanhaHermes LealSão Paulo, 2008


GovernadorJosé SerraImprensa Oficial do Estado de São PauloDiretor-presidenteHubert AlquéresColeção AplausoCoordenador GeralRubens Ewald Filho


ApresentaçãoSegundo o catalão Gaudí, não se deve erguermonumentos aos artistas porque eles já o fizeramcom suas obras. De fato, muitos artistas sãoimortalizados e reverenciados diariamente pormeio de suas obras eternas.Mas como reconhecer o trabalho de artistas ge niaisde outrora, que para exercer seu ofício muniramsesimplesmente de suas próprias emoções, de seupróprio corpo? Como manter vivo o nome daquelesque se dedicaram à mais volátil das artes, escrevendo,dirigindo e interpretando obras-primas,que têm a efêmera duração de um ato?Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguemesquecidos, quando os registros de seu trabalhoou se perderam ou são muitas vezes inacessíveisao grande público.A Coleção Aplauso, de iniciativa da ImprensaOficial, pretende resgatar um pouco da memóriade figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveramparticipação na história recente do País, tantodentro quanto fora de cena.Ao contar suas histórias pessoais, esses artistasdão-nos a conhecer o meio em que vivia toda


uma classe que representa a consciência críticada sociedade. Suas histórias tratam do contextosocial no qual estavam inseridos e seu inevitávelreflexo na arte. Falam do seu engajamentopolítico em épocas adversas à livre expressão eas conseqüências disso em suas próprias vidas eno destino da nação.Paralelamente, as histórias de seus familiaresse en tre la çam, quase que invariavelmente, àsaga dos milhares de imigrantes do começo doséculo pas sado no <strong>Brasil</strong>, vindos das mais variadasorigens. En fim, o mosaico formado pelosdepoimentos com põe um quadro que reflete aidentidade e a imagem nacional, bem como oprocesso político e cultural pelo qual passou opaís nas últimas décadas.Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própriavoz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpreum dever de gratidão a esses grandes símbolosda cultura nacional. Publicar suas histórias e personagens,trazendo-os de volta à cena, tambémcumpre função social, pois garante a preservaçãode parte de uma memória artística genuinamentebrasileira, e constitui mais que justa homenagemàqueles que merecem ser aplaudidos de pé.José SerraGovernador do Estado de São Paulo


Coleção AplausoO que lembro, tenho.Guimarães RosaA Coleção Aplauso, concebida pela ImprensaOfi cial, visa a resgatar a memória da culturanacio nal, biografando atores, atrizes e diretoresque compõem a cena brasileira nas áreas decine ma, teatro e televisão. Foram selecionadosescri tores com largo currículo em jornalismo culturalpara esse trabalho em que a história cênicae audiovisual brasileira vem sendo re constituídade ma nei ra singular. Em entrevistas e encontrossuces sivos estreita-se o contato en tre biógrafos ebio gra fados. Arquivos de documentos e imagenssão pesquisados, e o universo que se recons tituia partir do cotidiano e do fazer dessas personalidadespermite reconstruir sua trajetória.A decisão sobre o depoimento de cada um na primeirapessoa mantém o aspecto de tradição oraldos relatos, tornando o texto coloquial, como seo biografado falasse diretamente ao leitor .Um aspecto importante da Coleção é que os resul -ta dos obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que tambémcaracterizam o artista e seu ofício. Bió grafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideo ló gicado artista, contex tua li zada na história brasileira , notempo e espaço da narrativa de cada biogra fado.


São inúmeros os artistas a apontar o importantepapel que tiveram os livros e a leitura em sua vida,deixando transparecer a firmeza do pensamentocrítico ou denunciando preconceitos seculares queatrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitosmostraram a importância para a sua formaçãoterem atuado tanto no teatro quanto no cinemae na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas– analisando-as com suas particularidades.Muitos títulos extrapolam os simples relatos bio -gráficos, explorando – quando o artista permite –seu universo íntimo e psicológico , reve lando suaautodeterminação e quase nunca a casua lidadepor ter se tornado artista – como se carregassedesde sempre, seus princípios, sua vocação, acomplexidade dos personagens que abrigou aolongo de sua carreira.São livros que, além de atrair o grande público,inte ressarão igualmente a nossos estudantes,pois na Coleção Aplauso foi discutido o processode criação que concerne ao teatro, ao cinema e àtelevisão. Desenvolveram-se te mas como a construçãodos personagens inter pretados, a análise,a história, a importância e a atua lidade de algunsdos perso nagens vividos pelos biografados. Foramexami nados o relacionamento dos artistas comseus pares e diretores, os processos e as possibilidadesde correção de erros no exercício do teatroe do cinema, a diferença entre esses veículos e aexpressão de suas linguagens.


Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleçãoe a opção por seu formato de bolso, a facili dadepara ler esses livros em qualquer parte, a clarezade suas fontes, a icono grafia farta e o regis trocronológico de cada biografado.Se algum fator específico conduziu ao sucessoda Coleção Aplauso – e merece ser destacado –,é o interesse do leitor brasileiro em conhecer opercurso cultural de seu país.À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunirum bom time de jornalistas, organizar com eficáciaa pesquisa documental e iconográfica econtar com a disposição e o empe nho dos artistas,diretores, dramaturgos e roteiris tas. Com aColeção em curso, configurada e com identidadeconsolidada, constatamos que os sorti légios queenvolvem palco, cenas, coxias, sets de fil magem,textos, imagens e pala vras conjugados, etodos esses seres especiais – que nesse universotransi tam, transmutam e vivem – também nostomaram e sensibilizaram.É esse material cultural e de reflexão que podeser agora compartilhado com os leitores de todoo <strong>Brasil</strong>.Hubert AlquéresDiretor-presidente daImprensa Oficial do Estado de São Paulo


IntroduçãoUma coisa é certa. <strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong> tem realmenteuma história fabulosa e oportuna que precisa sercontada. Sua biografia se mistura com a históriade seu tempo. Foi uma das cabeças pensantes naBahia dentro do movimento que gerou o CinemaNovo, o Cinema Marginal e a Tropicália. <strong>Orlando</strong>estava imerso nesse caldeirão produzindo teatro,cinema, jornalismo e música, junto com figurasque marcaram as artes para sempre, como CaetanoVeloso, Glauber Rocha, Jorge Amado, TomZé, Gilberto Gil, entre uma infinidade de amigos eparceiros. Uma turma que se conheceu na juventudee gerou uma efervescência sem precedentesna cultura brasileira nos últimos 40 anos.11Estamos diante de um incansável andarilhoe artesão de múltiplas ferramentas: cineasta,roteirista, diretor de teatro, jornalista quase avida inteira e educador, mas creio que é acimade tudo um escritor, um narrador de histórias.Prova disso é seu livro mais recente, o romanceUm Gosto de Eternidade (2006), que resgata paraa literatura o inconsciente mágico comum no homembrasileiro e nos nossos vizinhos da AméricaLatina, um relato de viagens como tem sido suavida. Histórias de um diretor de filmes marcantescomo Iracema, uma Transa Amazônica (1974) e


Gitirana (1975), polêmicos por mostrarem a realidadebrasileira em plena ditadura, ao narrar o<strong>Brasil</strong> profundo que a censura do regime tentavaimpedir que fosse vista. Polêmicos por ousareminventar linguagem, filmes onde inexistem fronteirasentre o documentário e a ficção.12Por causa de seus filmes sofreu perseguição dosmilitares e o peso da censura. Em Diamante Bruto(1977), que dirigiu sozinho (os dois primeirosforam co-dirigidos com Jorge Bodanzky) retornaa Lençóis para filmá-la, a cidade que é a geradorade todo o seu universo de descobertas domundo, o porto de partida para tudo que iriaacontecer ao longo do seu caminho. Lençóis éuma cidade marcada pelo garimpo e suas lendas,cravada no alto das montanhas de grandebeleza da Chapada Diamantina, na Bahia, onde<strong>Orlando</strong> teve uma vida moldada pelo pequenoe fabuloso universo que uma cidade do interiorpossui, maior que o resto do mundo. Numa regiãofria em meio ao calor do sertão, vivencioutodos os acontecimentos dos meados do séculoXX, do final da Segunda Guerra aos jogos daCopa do Mundo de 1950, o teatro amador coma mãe e o som dos atabaques dos terreiros decandomblé. Uma mistura que foi ganhando significadoà medida que ia crescendo e percebia asinfluências mágicas e materiais que o diamante


e as pedras preciosas da Chapada Diamantinaexercem nas pessoas.Este livro narra uma história épica. Inicia-se nomundo mágico de Lençóis, que ficou pequenaquando <strong>Orlando</strong> chegou à adolescência e precisavaestudar o colegial. Muda-se para Salvadoraos 12 anos e um dia encontra um garoto da suaidade, mas com uma postura diferente, falador eprovocador, durante uma reunião de estudantesgremistas. Era Glauber Rocha. Apresentaram-se,Glauber disse que era ator, ele disse que tambémera, participavam nos grupos teatrais de seus colégios,<strong>Orlando</strong> em um católico, Glauber em um protestante.Depois desse encontro não se separarammais e iniciaram uma das mais profícuas agitaçõesculturais que o País viveu no século passado.13A Bahia foi sacudida por várias convulsões culturaisno final dos anos 50 e nos anos 60. Eleesteve em todas. Na efervescência dos CPCs daUNE se engaja na política estudantil dirigindopeças de teatro e filmes politizados. Larga afaculdade de Direito, realiza documentários,ingressa no cinema profissional como assistentede Roberto Pires, faz o mitológico curso de cinemade Arne Sucksdorff. O golpe de 64 chegade surpresa e tudo muda de repente, conhece aclandestinidade. A interferência de Jorge Amadoconsegue apaziguar um pouco a vida do jovem


jornalista e cineasta. Jorge encontra uma soluçãosurpreendente para <strong>Orlando</strong> voltar à vida ativade jornalista (como vocês verão).14Assim é a vida descrita nessas páginas, veloz echeia de suspenses e surpresas. Da Bahia se deslocapara São Paulo, Rio e depois, como jornalistaou cineasta, por toda América Latina e África.Suas missões e sua curiosidade o transformamem um globe trotter, um cidadão do mundo. Nosanos 1990 segue outro rumo, dedica-se a escolasde cinema, participa ativamente da gestação daEscola Internacional de Cinema e Televisão de SanAntonio de los Baños, ao lado de Gabriel GarcíaMárquez e Fernando Birri, da qual será diretor,realizando uma gestão histórica. Seu prestígiointelectual cresce na América Latina, percorreo continente criando escolas, cursos, oficinas.Depois de dez anos vivendo em Cuba volta ao<strong>Brasil</strong> para organizar uma Escola <strong>Brasil</strong>eira deAudiovisual com Darcy Ribeiro, que morre antesde concretizarem o projeto. Funda e dirige, comMaurice Capovilla, o Instituto Dragão do Mardo Ceará, um projeto que encantou o <strong>Brasil</strong>. Derepente o vemos alçado à condição de SecretárioNacional do Audivisual do governo Lula, ladoa lado com o ministro da Cultura Gilberto Gil,onde comanda a abertura de uma nova era parao cinema e a televisão brasileiros.


A tentação é a de continuar escrevendo essetrailer, alimentada exatamente pela riqueza dahistória desse homem das imagens e das letras,que também já foi granjeiro e se sente todo otempo garimpeiro. Dá vontade de continuarcontando, mas essa é uma missão para ele, emprimeira pessoa. Minha tarefa foi a de atiçar abrasa, escutar, gravar e editar, com o mínimo deinterferência possível. Biografias geralmente sãoescritas de fora para dentro, expondo a vida dobiografado a partir de uma pesquisa externa,cruzando diferentes fontes. Mas a autobiografianos tira este peso, e nos dá outro, o de ser umbom ouvido e um insistente provocador. O resultadofoi um trabalho primoroso, que nasceu comhoras e horas de gravações de tudo que havia namemória de <strong>Orlando</strong>, continuou com um longotrabalho de ordenação de minha parte e porúltimo o acréscimo de um ou outro detalhe porparte dele. Não quis mexer muito, disse que iaficar faltando muita coisa de qualquer jeito. Ebrincou: e vai ficar faltando o mais interessante,que é o que ainda não vivi. Pois que viva e muito,e que seu santo preferido, Oxumaré, orixá dabeleza e das artes, ilumine seu caminho.15Hermes Leal


Chapada Diamantina, onde <strong>Orlando</strong> passou sua infância


Capítulo IGarimpeiroNasci no dia 25 de abril de 1940, em um lugarque na época se chamava Estiva, um distrito domunicípio de Lençóis, na Chapada Diamantina,no centro geográfico da Bahia. Na CordilheiraAzul, como também é conhecida, um doschakras do planeta, segundo os esotéricos. Umavila de garimpeiros de diamantes, uma comunidadepequena, uma praça comprida com umaigreja ao fundo, no alto da montanha, calorsufocante no verão e muito frio no inverno,ventos gelados, cortantes. Água por todo lado,lagoas, rios, cachoeiras, corredeiras. Um lugarcom histórias fortes sobre aventureiros, bandidos,santos, mulheres milagreiras, toda a gamade realidades e imaginações dos garimpos dediamantes. Não mudou muito desde então, estálá do mesmo jeito de sempre. Hoje se chamaAfrânio Peixoto, em homenagem ao cientistae escritor polígrafo, uma das grandes figurasde Lençóis. Cheguei aí porque duas pessoas sejuntaram, uma da família <strong>Senna</strong> e outra da famíliaSalles: minha mãe Semírames de AlmeidaSalles, nascida em 1914, e meu pai EsmeraldoCoelho <strong>Senna</strong>, nascido em 1911.17


Semírames, mãe de <strong>Orlando</strong>, aos 20 anos


A família Salles é de Macaúbas, na ChapadaVelha, extremo oeste da Chapada Diamantina,já descambando para o rio São Francisco. Meuavô Samuel Baptista de Salles casou-se com minhaavó Anatária de Almeida, filha de um dosbaronetes da região, o coronel Martiniano deAlmeida. A junção de Samuel e Anatária configurouo que se define genericamente como raçabrasileira, já que misturaram nos filhos genesportugueses, africanos e indígenas. A avó maternada minha avó Anatária era índia, na mitologiafamiliar essa ancestral foi pega a laço, no mato.Meu avô Samuel garimpou com escafandro norio Araguaia quando era moço, depois se afastoufisicamente da cata de diamantes mas semanteve política e culturalmente militante emdefesa dos garimpeiros. Só comprava e vendiaalgumas pedrinhas, quando farejava um bomnegócio, mas se dedicava ao seu cartório, eratabelião. E também ator amador, orador precisoe eloqüente e, referendando sua condição degarimpeiro cultural, presidente durante décadasda Sociedade União dos Mineiros, agremiaçãodos garimpeiros locais. Um tipo alegre, bemhumorado,hoje é nome de praça em Lençóis.19Samuel e Anatária mudaram-se da Chapada Velhapara Lençóis, a fim de assumirem o cartório,e tiveram dois filhos, minha mãe Semirames, por


toda a vida chamada Santa, e meu tio Nivaldo,que me iniciou nas modernidades do século XX,advogado, muito cedo foi Juiz de Direito, melembro o orgulho de meu avô — o mais jovemjuiz da história do <strong>Brasil</strong>. Ele tinha um pequenoprojetor de cinema e mostrava filmes para ossobrinhos, desenhos animados e paisagens devárias partes do mundo.20A família <strong>Senna</strong> veio da Itália, da Toscana, emalgum momento entre 1810 e 1820. Sua origemé uma pequena comunidade entre Pisa e Florençachamada Metato. Os <strong>Senna</strong> imigrantes,ao que tudo indica, saíram de Metato já como objetivo de buscar fortuna com pedras preciosas.Pouco tempo depois se estabeleceramna zona diamantífera de Minas Gerais, emGrão-Mogol. Por volta de 1840 se deslocarampara as serras do centro da Bahia, onde novasminas estavam sendo descobertas. Caçadoresde diamantes, seguiram as levas de garimpeiros,milhares deles afluindo de toda parte, queaportaram no novo Eldorado, um chapadãocheio de diamantes, a Chapada Diamantina. Nodecorrer desse século e meio que nos separamdaqueles tempos heróicos, parte da famíliase fixou no centro da Bahia e parte dela seespalhou pelo <strong>Brasil</strong>, alguns se aventurandopela Venezuela. Esse espalhar sempre teve a


Esmeraldo, pai de <strong>Orlando</strong>, aos 25 anos


ver com descobertas de novos garimpos, comnovas corridas do diamante que aconteceramem Goiás, Mato Grosso e outros pontos. Parasaber onde existem pessoas da família <strong>Senna</strong>basta pegar o mapa minerológico do <strong>Brasil</strong> eprocurar as zonas diamantíferas.22O garimpeiro de diamantes de uma maneirageral, mas particularmente o da Chapada Diamantina,tem uma conexão mística e ritualísticacom o seu objeto de desejo, de busca, de trabalho.Um dos nomes utilizados na região paradesignar o diamante é metal e é especialmenteinteressante, nessa conexão, que os <strong>Senna</strong> tenhamvindo de um lugar chamado Metato. Éuma cultura mágica. Para o garimpeiro, não éele que encontra o diamante, é a pedra que oencontra, que o escolhe, é uma junção do destinocom a sorte. O achado de um diamante tema ver com três letras d. O primeiro d é o dono,o dedo do dono, ou seja, do garimpeiro que jáfoi previamente escolhido pelo diamante paraser o seu dono, para que essa pedra se entreguea ele. O segundo d é o dado, o destino, ou seja,o que faz com que esse homem seja escolhidopor aquela pedra para ser seu dono. O terceirod é o próprio diamante, a matéria mais dura emais transparente da natureza, chamada pedrafeiticeira, pedra mestra.


A liturgia desse universo mítico é o Jarê, umcandomblé-de-caboclo que só existe na ChapadaDiamantina, fusão dos rituais nagôs com entidadesindígenas e catolicismo rural e diferenciadopelo culto direto à pedra, ao elemento mineral.O centro do culto é o diamante, mas ele se estendeà montanha como um todo e a todas asformas minerais. Durante minha infância foiconstante o som dos atabaques e dos ganzásdo jarê soando na noite de Lençóis, só não tãoconstante como o ruído do rio que passava cascateandono fundo da casa. Da casa de Lençóis,pois apenas nasci em Estiva, com poucos mesesfui transferido para a bela Lençóis, a 50 quilômetrosde distância. A decisão de Esmeraldo eSanta de deixarem Estiva teve a ver com segurança(em 1940 o bandido Riquizado promoviafartos tiroteios na vila) e com prosperidade, como plano de abrir um comércio, uma loja, a futuraCasa Esmeraldo.23Lençóis foi o segundo e mais efervescente centrode garimpagem descoberto na região. No iníciodo século XIX já havia garimpeiros na ChapadaVelha, sem muito alarde. Em 1840 aconteceua corrida para Lençóis, que cresceu em ritmoalucinante. Ninguém sabe exatamente o porquêdesse nome, há três versões a escolher. A primeiratem a ver com os lençóis de espuma que


se formam no sopé das numerosas cascatas. Asegunda faz referência às primeiras barracas dospioneiros, apenas quatro paus e um pano brancoesticado em cima, que vistas do alto pareciammilhares de lençóis estendidos. A terceira estárelacionada com os lençóis de diamantes, já queo diamante não se manifesta em veios, comoo ouro, e sim em lâminas planas, em lençóis.Até o início do século XX a cidade viveu umaprosperidade impressionante, com milhares deescravos, donos de minas bilionários, comérciodireto com a Europa. É a época da chamada aristocraciado diamante, com muito fausto, muitagastança e muita guerra também, disputas porLençóis, cidade para onde ele sempre retorna


serras e por poder político entre os Coronéis damontanha. A partir de 1920 as pedras escassearame aconteceu o êxodo, a cidade de 30 milhabitantes passou a ter quatro mil, um períodode decadência que só foi superado nos últimosanos do século, com o advento do turismo. Foino meio da fase de decadência, com Lençóisperdida lá na serrania, esquecida do mundo,embriagada pelo passado e buscando soluções,caminhos para o futuro, que vivi minha infância,um tempo de maravilhas.O Pai e a PolíticaMeu avô paterno chamava-se Jacinto, nome deflor mas também de uma pedra. O nome de meupai é o masculino de esmeralda. Outros nomesde pedra podem ser encontrados na família,Safira, Ônix. Jacinto <strong>Senna</strong> e Laura Coelho,meus avós paternos, tiveram quatorze filhos.Me desvio um pouco para recordar minhas duasavós, Anatária e Laura, pessoas completamentedistintas, a primeira em contínuo e constanteatrito e a segunda em eterna e alegre sintoniacom o mundo. Anatária era mal-humorada,insatisfeita, exigente e tentava controlar commão de ferro e inutilmente seu entorno. Lauraera aberta para a vida, otimista, esparzia energiapositiva por onde andava, levantava os ânimos,25


26organizava festas. Anatária não viajava porqueenjoava tanto a cavalo como em automóvel, ocheiro de gasolina lhe causava vômitos. Lauraviajava o tempo todo, circulando pelas muitascasas de seus filhos e parentes e cunhando frasesinesquecíveis. Uma delas: o ruim da viagemé chegar ao destino, as viagens não deviam terchegada. Vendo, convivendo e sendo alvo dessasduas atitudes, dessas duas qualidades de tratocom a vida, achei (e continuei achando até hoje)que se tratava de opções, de livre-arbítrio, queas pessoas podem escolher entre a amargura e oprazer, entre a mágoa e o perdão, entre a raivae a eterna busca da felicidade, uma busca que jáé quase a própria felicidade. Anatária e Laura.Escolhi ser Laura e trabalho nisso desde então.Pois, a bela Laura e o garimpeiro Jacinto tiveramquatorze filhos. Vivi meus primeiros anos eparte da adolescência no meio de uma quantidadeenorme de primos, primas, tios, tias, tiosemprestados, tias emprestadas. Uma família depeso naquela pequena cidade de quatro milhabitantes. Todos ligados de alguma maneira àmais preciosa de todas as pedras: garimpeiro ousócio de garimpo ou comprador/vendedor (capangueirona gíria dos garimpos), ou lapidário(a família teve grandes lapidários). O único filhode Jacinto e Laura que se afastou do garimpo de


diamantes de uma maneira prática, como opçãode vida, foi meu pai. Desde muito jovem se sentiunegociante e montou a Casa Esmeraldo, ummagazine. Outra paixão da vida foi a fazenda,a criação de gado. Foi o único dessa família quedesandou para fora do garimpo, mesmo assimnão completamente pois sempre teve pequenostrabalhos de faiscação em suas terras, nuncafechou a porta para os mistérios do diamante.E uma terceira paixão foi a política.Começou a carreira política na Era Vargas, duranteo Estado Novo. Era um dos jovens maisdinâmicos da sociedade de Lençóis, inteligente,empreendedor, as pessoas o convenceram a assumirresponsabilidade política. Acabara de secasar, bem jovem, mas foi nomeado interventor.Na época não havia prefeito, a autoridade municipalera um interventor nomeado por Vargas.Ele fez uma administração revolucionária paraa época, no sentido de administração urbana,abertura de ruas, infra-estrutura sanitária, duplicaçãodos equipamentos educacionais, luzelétrica nos distritos, construção de estradas,frentes de trabalho, estímulo a iniciativas agrícolas.Durante a Segunda Guerra liderou ummovimento de produção de mamona, para fabricaçãode óleo, e coleta de objetos de chumbo,para fabricação de balas, sua foto foi publicada27


28na revista Em Marcha como uma figura importanteno esforço de guerra dos Aliados. Depoisda guerra, na democratização pós-Vargas, foieleito prefeito com uma votação consagradorae a partir daí, durante muitos anos, foi um líderpolítico decisivo na região. Era do Partido SocialDemocrata-PSD, sempre aliado ao Partido Trabalhista<strong>Brasil</strong>eiro-PTB e em luta contra os conservadoresda União Democrática Nacional-UDN.Depois do golpe de 1964 saiu da região porquea situação ficou muito desconfortável para apolítica que praticava, popular, desenvolvimentista,juscelinista. Mudou-se para Salvador, mascontinuou tendo muita influência na políticada região até perto de sua morte, no final dadécada de 1970.Fui criado e educado por meu pai para ser político.Político profissional, partidário. Ele aceitouser prefeito da cidade por duas vezes, elegiadeputados, tinha prestígio estadual mas nuncaquis se candidatar ele mesmo a deputado federalou estadual. Dizia que não era preparado paraesses vôos, preparada era a minha mãe, que eraprofessora. Era um homem de pouco estudo formalmas de muitas luzes, um sábio autodidata,muito prático, muito conhecedor das psicologiasdas pessoas que o cercavam, mas não se achavacapaz de discursar em um parlamento. Tinha


esperança que um de seus dois filhos pudessegostar da política e o foco foi no primogênitoque sou eu. Além da minha falta de vocação,o golpe de 1964 acabou com esse sonho dele,entendeu que os tempos haviam mudado. Tinhauma percepção muito aguda da História. Ele medisse, no segundo ou terceiro dia depois do golpe,que os militares ficariam no poder durantemuito tempo, coisa para vinte anos ou mais. Nãodeu outra.A Mãe e o TeatroMinha mãe, Santa, era professora primária,diretora de escola e tinha um grupo de teatroamador. Tocava piano e também pintava, moçaculta, educada em internatos de freiras francesasem Uberlândia e Salvador. Lia muito, assinava revistasfrancesas e brasileiras. Desde a mais tenraidade estive presente nos ensaios de teatro, cantoe dança que ela dirigia na garagem de nossacasa ou no palco do Cine Rex. Minha memóriados ensaios e dos espetáculos é onírica, estáentre a lembrança e a imaginação. E se mistura,se confunde, com outra atuação de minha mãeque era a utilização da expectativa, do suspense,ao contar histórias na hora de dormir. Contavaas histórias até certo ponto e prometia terminarna noite seguinte se eu e meu irmão nos com-29


30portássemos bem. Na noite seguinte terminava ahistória, começava outra e interrompia (só muitodepois entendi que ela imitava a Sherazadede As Mil e uma Noites). Com uns seis anos deidade passei a atuar em algumas das peças queminha mãe montava. A lembrança desses palcosda infância é muito difusa, só me lembro commais nitidez de uma peça em que eu fazia Joel,um menino amigo de Jesus. Há um fato curiosonesse espetáculo, cujo nome não recordo. Minhamãe queria um ator com a imagem mais comumde Jesus: jovem, bonito, louro, cabelos longos.Não havia nenhum rapaz em Lençóis com todasessas características, principalmente quanto aoscabelos longos, nenhum homem tinha cabeloslongos naquela época. E não ficava bem Jesusde peruca. A solução foi dar o papel a uma moçacom cabelos longos e louros. O Jesus mulher,suave, tranqüilo, doce, foi um sucesso, repetiutrês ou quatro vezes.São lembranças paralelas às da Segunda Guerra.Flashes de cenas, conversas, notícias no rádioentre meus três e seis anos de idade. Dois momentospermanecem muito vivos. O primeiro éo de meu tio Nivaldo indo para a guerra. Alémde ter um pequeno projetor de cinema, Nivaldodesenhava, me explicava a guerra desenhando.Fazia uma caricatura assustadora de Hitler, duas


suásticas no lugar dos olhos, dentes pontiagudoscomo balas de canhão e pernas superarqueadas.As pernas arqueadas, dizia, era porque o horrívelHitler estava sempre montado em um cavalo,dormia em cima do cavalo, sempre pronto parafugir quando os soldados brasileiros se aproximavam.Eu tinha pesadelos com essa imagem deHitler, o monstro que queria destruir o <strong>Brasil</strong>. Nivaldofoi convocado e, fardado, saiu cavalgandoem direção à guerra, o povo aplaudindo, minhaavó Anatária aos prantos, meu avô tambémchorando e gritando à vitória, à vitória. Umaemoção sufocante é o que guardo na lembrança.Mas Nivaldo não chegou aos campos de batalha,a guerra acabou antes que embarcasse.31O segundo momento é o espetáculo que minhamãe montou para celebrar o fim da guerra e avitória, intitulado Guerra e Paz. Para mim e paraos meninos de Lençóis, e talvez também paramuita gente adulta, o <strong>Brasil</strong> ganhara a guerra.Não os Países Aliados, mas sim e só o <strong>Brasil</strong>, quefoi lá e ganhou como se fosse futebol. Havia umamarcha de carnaval que fazia alusão à tomadada Sicília e ao jingle de um produto de limpezamuito popular na época: pra mostrar que braçoé braço, eu conquistei Sicília, enfrentei bala deaço mas conquistei Sicília. O <strong>Brasil</strong> conquistou.Nesse clima de euforia minha mãe montou o


espetáculo em um palco armado na praça principal,bem embaixo do sobrado onde morávamos.Por algum motivo, acho que gripe, não me foipermitido descer até a praça e tive de assistirao espetáculo da janela do sobrado. E daí se viatudo e ao contrário: em primeiro plano as coxias,depois o palco e por último a platéia. Desseponto de vista invertido, mas privilegiado, via osatores se prepararem e em seguida atuarem eum fato me chocou profundamente: a atriz quefazia a Paz, e que dizia coisas bonitas e poéticasno palco, se transformava em um capeta quandoestava nas coxias, nos intervalos da sua atuação.Beliscava os outros atores, perturbava, fazia ma-Primeiro aniversário de <strong>Orlando</strong> (no centro), Lençóis, 1941


caquice e, para meu absoluto espanto, fumavacigarros. Já a Guerra, que tonitroava no palco,ameaçava, xingava, socava o ar, era um doce depessoa quando estava nas coxias, ficava quieta,imóvel, talvez rezando. A ficção e a realidadese mesclaram diante de meus olhos naqueleteatro tão absolutamente transparente e, parasempre, no meu espírito, no meu entendimentodo mundo.A FamíliaMinha família nuclear é formada por cinco pessoas,somos três filhos de Santa e Esmeraldo:eu, primogênito; em seguida, com a diferençade um ano, Ronaldo de Salles <strong>Senna</strong>, professoruniversitário, antropólogo, uma pessoa muitoconsiderada nas atividades acadêmicas da Bahia,produz um livro a cada dois anos; e Lêda Lúcia,que seguiu os passos da minha mãe como educadorae professora. Lêda Lúcia não é minha irmãde sangue, ela é minha prima, mas foi adotadamuito menininha e virou irmã integral, a melhordas irmãs e a melhor das filhas, porto seguroemocional de toda a família. Casou, enviuvou,é mãe de duas filhas e avó de duas netas, hojevive no sul da Bahia, envolvida com projetosculturais.33


Nos anos 1990 Ronaldo fez um trabalho importantepara Lençóis, implantando lá um campusavançado da Universidade Estadual de Feira deSantana. Trabalhou décadas em salas de aulae pesquisas, correu mundo e voltou para suaterra com uma universidade embaixo do braço.É casado com Célia, um filho, duas filhas, trêsnetos. Está lá feliz da vida, coordenando o campus,escrevendo seus livros e tomando banho decachoeira. Um projeto inteligente que eu talveztambém adote algum dia: voltar a viver em Lençóiscom uma coisa estimulante para fazer.34Meu pai morreu em 1978, com 67 anos deidade. No leito terminal, pediu aos filhos quededicássemos algum tempo e algum esforçoao progresso de Lençóis, ao nosso povo daserra. Estamos fazendo o possível. Minha mãese foi faz pouco tempo, em 2006, com 92 anosde idade. No aniversário dela em 2005, dos 91anos, fomos todos celebrar em Salvador, e emdeterminado momento ela disse a vida é curta.Mas logo se corrigiu — não, a vida é longa, masé muito rápida. Eu também começo a sentir isso,a velocidade acelerada do tempo, nestes meus68 anos de vida.


Shangri-láUma infância vivida prazerosamente nas ruas enos casarões coloniais de Lençóis, no Cine Rex,no campo de futebol, nos rios, nas grutas sombrias,nos poços azuis, brincando de mocinho ebandido na serra, descobrindo bichos e plantasengraçadas no mato, matando cobras, viajandoa cavalo com meu pai ou meu avô. Desde quandome entendo e até o início da adolescência otempo da família era dividido entre Lençóis e afazenda Lagoa do Piroca, um paraíso incrustadoem um ponto bem mais alto da montanha. Oitomeses em Lençóis, quatro meses na Lagoa. Fazendaantiga, uma igrejinha branca dominandoa pequena sede, um terreno amplo com umaárvore gigantesca no meio, com carros-de-boi ecavalos aos redor. Do lado direito a nossa casa emais outras seis ou sete dos moradores, do ladoesquerdo o curral, a desnatadeira (produção demanteiga e queijo), a tenda do ferreiro, a casade farinha e a moenda de cana girada por juntasde bois. Atrás dessas instalações, uma chácaracom centenas de árvores frutíferas. Ao fundoda igreja, a lagoa esverdeada, deslumbrante,que dá nome à fazenda e, mais adiante, um rioserpenteando com trechos encachoeirados epoços de profundidades variadas onde criançase adultos podiam nadar.35


36Uma fazenda com muitas atividades mas basicamentededicada à criação de gado, com pastos,vaqueiros, marcações a ferro e castração debois, partos de bezerros, as vacas e os garanhõeschegando no fim da tarde para pernoitar nocurral, o ritual de acordar bem cedo para assistirà ordenha e beber leite espumante diretamentedo ubre da vaca. A Lagoa estava sempre cheiade parentes, os primos e as primas, os colegas eamigos que convidávamos para passar temporadas,uma meninada buliçosa e, excitada peloesplendor e segredos da natureza, ousadamenteaventureira. Uma das aventuras mais radicais eracaçar pedra-de-raio na tempestade, tambémchamada fulgurito: ficávamos observando ondecaiam os raios, quando algum caía perto corríamose marcávamos o lugar, depois cavávamosem busca da pedra, dificílima de achar, nuncaachei mas outros meninos sim (a pedra-de-raioé um elemento sagrado no jarê). Muitas quedas,braços quebrados, escoriações. Uma vez caí deuma goiabeira, bati a nuca no chão e fiqueisem fala durante um bom tempo, mas mesmomudo impedi que a turma avisasse aos adultos;minha mãe só soube uma hora depois e foi umDeus nos acuda. De outra feita subi na torreda igrejinha e toquei o sino, com a intençãode causar o estouro de uma boiada que ia passando,como víamos nos filmes bangues-bang


das matinês do Cine Rex; o sino abrigava umacasa de marimbondos, que me atacaram sempiedade, a cara inchou, virou um balão. Umamiguinho nosso bebeu grande quantidade decaldo de cana na moenda, sob sol escaldante,o caldo fermentou no estômago e ele tevecoma alcoólica, para desespero dos adultos.Meu irmão Ronaldo incendiou os cabelos ao seaproximar de uma fogueira.Há um episódio arrepiante comigo. Em um diachuvoso, a terra molhada e escorregadia, estavafazendo alguma coisa na chácara, do ladoem que ela fazia limite com o curral dos bois.De repente um touro em disparada aparece apoucos metros, saindo dos pés de café que seespalhavam por toda a chácara, exatamente emminha direção. Atrás de mim o tronco de uma jaqueira,o touro ia me amassar contra a jaqueira.Tão assustado quanto eu, o boi travou as patas eveio deslizando contra mim, resvalando na lama.A cena deve ter durado um ou dois segundos,mas é absolutamente nítida em minha memóriae gerou alguns sonhos, pesadelos infantis. Otouro só conseguiu se estabilizar a um palmoda minha cabeça, olho no olho, e desviou comoum raio para a direita. Fiquei lá um tempo comas costas pegadas na árvore e meio sufocado,renascendo.37


38Mas nenhum acidente ou incidente atrapalhavaa esfuziante e inocente fruição da vida. Da qualfazia parte espiar as mulheres tomando banhonuas no rio. A curiosidade sexual começou muitocedo nesse ambiente de alta intimidade com anatureza e com as meninas, vendo a cada instanteos coitos dos animais, o boi em cima davaca, o cavalo rinchando em cima da égua, opato tremendo em cima da pata e depois caindode costas desmaiado. O início da minha iniciaçãoaconteceu na garagem da casa de Lençóis,antes de um dos ensaios de teatro. Vi as luzesacesas, entrei e lá estavam três moças mudandode roupa, vestindo os trajes da peça. Elasfecharam a porta e me mostraram suas partesíntimas, perguntaram se eu estava com o pintoduro, quiseram ver e parou por aí, havia o perigode chegar alguém. Um tempo depois, em umafesta na fazenda, aniversário de meu pai, a casacheia, altas horas da noite, me deu sono e fuipara a cama; um tempo depois fui despertadopor alguém me acariciando, era uma senhoraloura, casada, amiga da família; me abraçou,me beijou na boca, dirigiu minha mão até seusexo, brincou com o meu. Tudo em silêncio, euespantadíssimo mas superinteressado.A iniciação completa aconteceu um tempo depois,em Lençóis, quando eu já tinha onze anos


de idade, pelas mãos (e por todo o resto do corpo)de Nina Bocão. Lençóis, como possivelmenteoutras pequenas comunidades interioranasbrasileiras naqueles meados do século XX, tinhauma tradição de mulheres especialistas (ou especialmenteinteressadas) em iniciar os garotos.Geralmente eram prostitutas. Nina Bocão tinhasido prostituta mas teve uma filha e abandonoua profissão, passou a trabalhar com corte e vendade lenha e, apenas por prazer, sem qualquerganho, como iniciadora sexual. Ela me levoupara o mato, estendeu uma colcha-de-retalhosno chão e ensinou. Tivemos outros encontros,sempre no mato, para completar a iniciação,para chegar aos detalhes. Nina Bocão era pequenae rechonchuda, pele rosa acobreada, lábiosgrandes e estofados, musculatura de lenhadorae extremamente carinhosa. Anos depois soubedo seu fim, inexplicavelmente assassinada pelapolicia, durante a ditadura militar. Fiquei tristíssimo,chorei.39O episódio mais marcante da Lagoa do Piroca,na minha memória, é uma possessão. Um dia,amanhecendo, o pessoal ainda na faina daordenha no curral, começou o alvoroço: umajovem mulher, a saudável e risonha Petrina,moradora e trabalhadora da fazenda, estavadestruindo o interior da igrejinha, quebrando


40os santos, danificando o altar, virando os bancos.Algumas pessoas tentaram entrar na igrejae foram rechaçadas. Meu pai, respeitadíssimo,dono da fazenda, também não conseguiu entrar.As crianças foram impedidas de se aproximarmas acompanhávamos tudo de longe,ouvíamos os gritos de Petrina dentro da igreja.Estava endemoniada, como todos diziam. Doisvaqueiros invadiram a igreja e foram expulsos,jogados para fora. Mais vaqueiros entraram, emgrupo, e também foram lançados porta afora. Apossuída tinha uma força enorme, descomunal.Organizaram rezas diante da igreja, as mulheresdebulhando os rosários e cantando ladainhas, anotícia correu pelos arredores, juntou gente. Nomeio da tarde chegou um padre, que tentou entrarexibindo um grande crucifixo e rezando altoem latim e também foi expulso. Pouco depoisapareceu um sacerdote do jarê, o curador Isac,que, enfim, conseguiu entrar na igreja. Ficou ládentro um tempão, todo mundo em silêncio. Esaiu abraçado com Petrina, calma, de cabeça baixa.Entramos na igreja para ver o estrago, tudoquebrado, o rastro do diabo no meu paraíso.Muita comoção e muitas descobertas nessestempos da Lagoa do Piroca, mas a lembrançagenérica e recorrente é a de um lugar e umtempo de delícias, de exacerbado prazer senso-


ial. Os sentimentos guardados nessa lembrançasão de deleite, aconchego, conforto, placidez etambém, em perfeito equilíbrio com essa bemaventurança,o júbilo, o regozijo, a volúpia, umaqualidade infantil e animal de luxúria. A memóriadesse tempo e lugar de êxtase não é só minha,é de todos os que viveram aqueles dias e noitesda Lagoa encantada, os que éramos crianças etambém os adultos. Recentemente, em Lençóis,casualmente nos reunimos alguns sobreviventesdos tempos da Lagoa, e confirmamos mais umavez que a memória de todos, coletiva, é a desseêxtase perdido no passado, a nossa Shangri-lá.Cinema e Futebol41Nos meses em que ficávamos em Lençóis, contandoos dias para voltar à Lagoa, as aventuraspelas trilhas e águas da serra faziam parte dodia-a-dia. Fui Escoteiro de Montanha, haviauma organização escoteira comandada por umsargento do exército, a chamada era às cincoda manhã, no inverno era dureza, um gelo etudo coberto de névoa. Subíamos as encostascom nosso equipamento, cordas, faca, cantilde água, apito. Acampávamos, tínhamos aulaspráticas de botânica e treinamento de sobrevivênciana montanha, principalmente no que serefere às cobras, numerosas e variadas naquela


zona. Nessas caminhadas pelas serras de Lençóise principalmente na Lagoa usávamos todo otempo, pendurado no cinto ou no pescoço, umsaquinho contendo rosalgar e outras substânciasque afastavam as cobras.42Essa ligação direta e diária com a natureza eraum dos aspectos do meu viver infantil, estendendo-seaté o início da adolescência. Os outroseram o cinema, o futebol e a religião. Quandonasci o Cine Rex já funcionava em Lençóis, quefoi uma das primeiras cidades pequenas dointerior brasileiro a ter eletricidade (uma usinahidráulica local) e cinema. O Cine Rex era deum primo meu e tinha um camarote destinadoà família e convidados ilustres, o que me permitiaacesso fácil e também burlar a vigilância ever filmes impróprios para menores. O primeirofilme que vi foi o desenho animado Bambi, deWalt Disney, e o segundo foi um filme adulto, OÉbrio, com Vicente Celestino. Vi muito desenhoanimado, mas vi filmes não só impróprios paracrianças como também para mulheres, eram assessões só para homens. Pelo menos um dessesfilmes proibidos eu me lembro, intitulado MocidadeLouca, com mulheres nuas.O ponto de encontro mais importante da cidadeera a feira. O segundo era o cinema, refúgio denamoros permitidos e proibidos, ocasião para


encontros e conversas. Os filmes eram brasileiros(alguns dramas e muitas chanchadas), mexicanos(melodramas) e americanos (bangue-bangue).Um ou outro filme europeu. Tudo em preto-ebranco,só de vez em quando aparecia um colorido,um musical de Hollywood. Mas a relaçãocom o cinema e seu fascínio ia além do ato dever filmes: colecionávamos quadros, ou seja,fotogramas dos filmes exibidos, organizados emálbuns artesanais com quadradinhos vazados.Os quadros eram vendidos pelo projecionista doCine Rex e funcionavam como moeda, apostavam-sequadros nos jogos de bola-de-gude e outrasdisputas, uma cena de luta valia duas cenasde paisagem, uma cena de beijo valia três cenasde luta, cenas coloridas tinham mais valor.43A abertura mental proporcionada pelo Cine Rexresultou em um dos direcionamentos da minhavida, complementando e potencializando a experiênciaseminal do teatro amador de minhamãe: a beleza e a função da arte, a fronteira sutil,transparente, entre o material e o imaginário,entre real e irreal, o concreto e o intangível. Ofutebol proporcionou outra diretriz, referenciadaao comportamento social. Devo ter começadoa jogar bola muito cedo, mas a memória registraa partir dos dez anos de cidade, após a Copa doMundo de 1950, quando o ato de jogar passou a


44ter uma importância consciente, quando passeia ouvir partidas narradas no rádio, colecionarfigurinhas de jogadores, usar chuteira e ser torcedordo Bahia e do Vasco. Jogava todo dia, jámais taludo me fixei em um time organizado,com camisa e algo longinquamente parecidocom um técnico, um treinador, que era o médicoda comunidade. Jogávamos, todos os times, emformação absolutamente ofensiva, com dois zagueiros,três meios-de-campo e cinco atacantes,algo impensável no futebol atual. Adolescente,alcancei a glória de ser escalado para a seleçãode Lençóis, no meio do campo, e jogar contraos times das cidades vizinhas.Continuei jogando até os trinta e cinco anos deidade, peladeiro, introjetando cada vez mais oensinamento já pressentido nos primeiros anosde futebol em Lençóis: a possibilidade de amalgamar,de fundir, o individual e o coletivo. Essafusão é arterial em todos os esportes coletivosmas se revela especialmente necessária e pulmonarno futebol, onde todas as estratégias esoluções só podem prosperar se o indivíduo e ogrupo estiverem em perfeita sintonia, se a habilidadee a inteligência de cada jogador atuaremao mesmo tempo como transmissores e receptoresda energia grupal e vice-versa, quando o eue o todo são a mesma coisa. Essa foi a revelação


do futebol: a possibilidade de unidade dual esua aplicação prática na vida.O corriqueiro do futebol, do cinema e das aventurasna serra incluía de vez em quando o assombroso.Se meus olhos esbugalharam na Lagoa,na possessão de Petrina, também esbugalharamalgumas vezes em Lençóis, como no episódio dacadela hidrófoba que ensandeceu a comunidadedurante quatro dias. Estava acontecendo umaMissão Católica, com bispo e muitos padres, missas,casamentos coletivos, Te Deum, um acontecimento.De repente correu a notícia de que tinhaum cachorro doido atacando as pessoas. Não eraincomum o aparecimento de cães hidrófobos nacidade, vez ou outra alguém era mordido e tomavaa vacina anti-rábica e o animal era sacrificado. Masdesta vez a hidrofobia ganhou uma escala inédita.Muitas pessoas foram atacadas e seus depoimentoscausavam calafrios, falavam de um cachorropequeno mas terrível, com olhos vermelhos. Omais assustador é que informavam sobre ataquesem diferentes pontos da cidade na mesma hora.O cão raivoso mordia alguém no Alto da Estrelaàs dez horas da manhã e na mesma hora mordiaoutra pessoa na ponte do São José, a quilômetrosde distância, com testemunhas confiáveis.45No segundo dia da Missão, o tal cachorro invadiua igreja do Rosário superlotada, mordeu gente,


46avançou até o altar onde o bispo celebrava, sobuma saraivada de missais e de todo tipo de objetosescapou por uma porta lateral. Um pandemôniodentro da igreja, correria, gritaria, gentepisoteada. Um dos padres, em vez de acalmar osfiéis, gritou apoplético que se tratava do diabo,que o diabo havia se apossado do corpo docachorro. Foi uma loucura. Eu e outras criançasfomos encerrados em uma casa com nossas mães,todo mundo rezando diante de um altar, umdesses nichos que existem em casas antigas — eos homens pegaram suas armas e foram à caça.Lembro-me do som dos tiros, longe, de vez emquando uma série de disparos seguida de silêncio.A angústia só amainou quando mataram ocachorro doido, a tiros e pauladas. Tratava-se deuma cadela, morreu crivada por 28 balas, haviamordido 28 pessoas. Todas tomaram a vacinae foram salvas, com exceção de um homemque recusou o tratamento e, quando sentiu osprimeiros sintomas da raiva se fez amarrar, aspessoas iam vê-lo babando e sofrendo preso auma poltrona, na sala de sua casa, até morrer.Os NagôsTanto os <strong>Senna</strong> italianos como os Salles mestiçoseram católicos e a família praticava com regularidadeos ritos, íamos à missa, confessávamos


e comungávamos, rezávamos antes de dormir,tive aulas de catecismo e fiz primeira comunhão.Minha mãe nos fazia ler, a mim, a Ronaldo e aLêda Lúcia, vidas de santos e o Novo Testamento.Mas olhemos para fora da casa e da igreja:a cidadezinha encravada na serra, quatro milhabitantes, 80% da população composta pornegros, descendentes do grande contingentede escravos importado no século XIX pela aristocraciado diamante. Cercada por paredões degranito cobertos de vegetação, a cidade temuma acústica de catedral e até onde a memóriaalcança, e com certeza antes, no limbo dos primeirosdias de vida, escutava constantementeo som hipnótico do jarê. Na minha recordaçãoesgarçada, os atabaques, os contrapontos metálicose os cantos soavam todas as noites.47Era inevitável a aproximação, quando comeceia me mexer por conta própria fui espiar os terreiros.Levado por uma empregada da família,participei de muitas Festas de Erê, rituais paracrianças em louvor aos santos meninos Cosme,Damião, Doum, Crispim e Crispiniano. Adolescentee curioso, conversava muito com um paide-santo,um Curador segundo a denominaçãodo jarê, que era nosso vizinho, um sacerdote degrande prestígio na região chamado Pedro deLaura. Ele me ensinou muita coisa sobre o sincre-


48tismo do culto, sobre a epifania dos diamantese concedeu-me as primeiras informações sobreos orixás, sobre a cultura iorubá, ou nagô, o elementomais importante na composição tripartitedo jarê. Esse interesse, as visitas aos terreiros,as conversas com os Curadores também se manifestavaem outros meninos da turma e muitoespecialmente em meu irmão Ronaldo, que semeteu de cabeça no assunto e se transformouem seu maior especialista, autor de pesquisashorizontais e verticais e de livros sobre o complexouniverso dessa religião em que o diamante éo centro do universo e a Sorte é uma entidade,uma deusa.Para mim, o jarê foi a ponta do iceberg da culturaiorubá. Tempos depois, em Salvador, com 16anos de idade, conheci Deoscóredes Maximilianodos Santos, o Mestre Didi. Tudo ao acaso: tardeda noite, voltando de uma farra com amigos,já subindo no ônibus, na Praça da Sé, ouvi gargalhadasvindas de um bar. Não sei por quê,sem me explicar, senti-me fortemente atraídopor aquele bar exalando alegria e não subi noônibus, acenei para a turma e fui para o bar.Lá estava um grupo de negros conversando ebebendo e o centro das atenções era um senhorentre trinta e quarenta anos, elegante, terno


anco, voz grave e fala mansa, gestos largos.Não recordo o que estava falando, só a imageme a voz e a reverência discreta que o cercava.De repente ele se dirigiu a mim, perguntou oque um garoto de boa família estava fazendonaquele lugar, de madrugada. Tentei explicar,todo atrapalhado, riram, ele me convidou parasentar com seu grupo. Naquele momento euestava conhecendo o sumo sacerdote do candombléMestre Didi, Assobá e Alapini, ou seja,cuidador tanto do aspecto dos orixás (os deuses)como do aspecto dos eguns (os mortos, osancestrais). E também escultor e escritor, filhoda grande ialorixá Mãe Senhora, do centenárioterreiro Ilê Opó Afonjá.49Mestre Didi, querido amigo desde então e parasempre, me conduziu pelos caminhos de luz esombra da Roma Negra, como dizem de Salvadorda Bahia, revelando-me ou induzindo-mea descobrir os segredos, as invisibilidades dacultura de origem africana que ali se instalou.Foi o primeiro movimento de aprendizado, conhecero universo em que viceja o cambomblé.Depois fui levado aos terreiros, em paraleloa um ensinamento mais orgânico da filosofiaiorubá: a inter-relação dinâmica da existênciaindividualizada com a existência genérica, do


Com Mestre Didi e Conceição, Salvador, 1984


viver com a morte, do livre-arbítrio com as responsabilidadesespirituais e sociais. Começandolá atrás com Pedro de Laura e expandindo-se coma orientação de Mestre Didi, o entendimento ontológicoe existencial iorubá passou a fazer parteda minha visão do mundo, funcionando como umbalanceador, como um equilibrador com relaçãoà minha formação católica familiar. As coisas ficarammais claras na minha cabeça, adquiri maislucidez no trato com a sociedade e com as pessoas,mais atenção e mais cuidado com tudo que mecerca. Quando Mãe Senhora invocou o Ifá e meinformou que eu era filho de Iemanjá eu me sentipreparado para me jogar no mundo.Mas estou me adiantando, ainda estamos emLençóis, tenho onze anos de idade e Salvadorainda era um sonho, um sonho ameaçado.51SuspenseA infância chegou a uma encruzilhada e aoseu fim em 1951. Nós, garotos de onze, dozeanos, éramos fascinados com nossos conhecidosmais velhos, adolescentes, que estudavam emcolégios de Salvador e vinham passar férias emLençóis. Esses que estudavam na capital eramrecebidos com festa, tratados como príncipes,namoravam com todas as meninas, lançavam


52modas, traziam novidades, faziam corridas decarros, mandavam ver. E sempre rindo, brincando,arreliando, em constante demonstraçãode felicidade. Eram nossos heróis e queríamosser como eles, alcançar aquele estágio. Era umprivilégio das famílias mais abastadas mandaros filhos para fazer o segundo grau, o ginásiocomo se dizia, e os estudos posteriores na capital.Era um investimento caro, não eram muitosos jovens lençoenses que tinham acesso a essafelicidade, a esse salto para um outro estágio,para outra dimensão da vida como pensávamosos que ainda não tinham chegado lá e os quenunca chegariam. Eu tinha acesso, minha famíliapodia fazer o investimento, estava terminandoo primário e ansioso, sonhando com o dia dapartida para Salvador.Estou nesse impulso, inquieto e exultante, quandouma notícia devastadora põe todos os meusplanos, todos os meus desejos, todo o meu futuropor água abaixo, pelo ralo: iam inaugurarum colégio na cidade, o Ginásio Afrânio Peixoto,e todos os meninos e meninas da minha idadeestavam convidados a fazer o exame de admissãoe formar a primeira turma do ginásio. Eunão podia escapar da armadilha, meu pai eraprefeito e teria de dar o exemplo, seus filhosiriam estudar no colégio local. Chorei, berrei,


Estudante nos Maristas, Salvador, 1954


esperneei, infernizei a vida de meus pais masnão tinha jeito, eu não iria para a capital, jamaisseria um herói como os estudantes que vinhampassar férias, não faria a grande aventura quehavia planejado enquanto via filmes no Cine Rexe ouvia histórias de pessoas que haviam viajado,meu destino era ficar em Lençóis para sempre.A vida não tinha mais sentido. Fiquei arrasado,deprimido, com vontade de morrer.54Contra a vontade, freqüentei um curso preparatóriopara o exame de admissão, desinteressadopelos estudos, pouco importando se ia passar ounão no exame. Abandonei o futebol, devolvi acamisa do time, fiquei malcriado. Estava revoltadoe perdido, melhor nem ter nascido. E entãoo destino dá outra volta, uma reviravolta, e osol volta a brilhar no meu coração: o Ministérioda Educação não autoriza o funcionamento doGinásio Afrânio Peixoto, o ginásio fecha antesde começar. Exultei, celebrei, dancei na ruaenquanto toda a cidade lamentava o acontecido.E aí foi uma correria familiar, eu não podiaperder um ano de estudos, tinha de ir às pressaspara Salvador a tempo de alcançar o exame deadmissão dos colégios e, enfim, lá fui eu paraa capital, para o mundo. Não podia haver umgaroto mais feliz que eu.


Capítulo IIMe Ajude a VerEm Salvador, interno no Colégio Marista, emergeuma forte fascinação: a literatura. O interesse pelasletras vinha de antes, garimpada por meu avôSamuel, minha mãe e minha professora AngelinaFelippi, mas no Marista, com uma grande bibliotecaà disposição, a curiosidade foi aguçada. Liadesordenadamente, fiquei impactado com Gog,de Giovanni Papini, e com Pequena Introduçãoà História da Estupidez Humana, não sei de queautor. Tanto me fascinavam as idéias contidasnesses livros (as de Papini bem delirantes), comoas histórias contadas por Machado de Assis e Joséde Alencar, leituras curriculares. E também, comgosto de rebeldia, os livros do Index, da lista detítulos proibidos pela Igreja, que procurávamosna Biblioteca Pública da cidade (podíamos sair dointernato para cuidar de assuntos importantes)ou conseguíamos com nossos colegas externos.55A curiosidade caótica foi pacientemente organizadapelo professor de português AgenorAlmeida — um grande mestre, modesto, pobre,que sabia captar os interesses, inibições etendências de cada aluno e, cuidadosamente,estimulá-los a agir de modo proveitoso para sua


56formação. Literatura brasileira, com ênfase nageração de 30, Jorge Amado, José Lins do Rêgo,José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz.Depois os grandes clássicos universais, depois osrussos, os franceses e a moderna literatura dosEstados Unidos, John dos Passos, Hemingway,Steinbeck, Fitzgerald, a que mais me estimuloua escrever. O professor Agenor foi um achado,para mim e para muita gente da minha geração,para os futuros escritores, poetas, advogados,jornalistas e cineastas da minha geração, que odigam Geraldo Sarno, Glauber Rocha, CláudioMelo, Humberto Mariotti, Gilberto Gil, o professorAristides Teixeira, o advogado João Carlosda Silva Telles, o ex-juiz Augusto Magalhães. Oprofessor Agenor me convenceu que o Latim eraa matéria mais importante para a minha formação,estudei latim como um diácono, cinco anosde declinações e de Catilinárias. Agenor tinharazão, o latim me facilitou muito a vida, umaferramenta utilíssima para meu ganha-pão, quese originaria basicamente do ato de escrever.Entro para o grupo de teatro do colégio, interpretopersonagens ultradramáticos com maquiagempesada, bigodes postiços, nomes franceses.As peças eram apresentadas aos sábados, às 7horas da noite, para os alunos e seus familiares.Nada de especialmente importante nessa


minha segunda experiência como ator, agoracom mais consciência do que estava fazendomas sem muito entusiasmo, sem muita atraçãopara o palco. Em um dos espetáculos, dei umacambalhota maior do que o espaço disponível,meu pé enganchou no elaborado cenário depano recortado, representando uma floresta, etudo veio abaixo. As árvores de pano pintadodesabaram em cima dos atores, uma trapalhada,a gente querendo se desvencilhar. O drama setransformou, em um segundo, em um pastelão.A platéia gargalhava, aplaudiu de pé. O interessepelo teatro só se fixou quando dirigi umespetáculo, Piastras Rubras (veja só o título!). Naverdade, co-dirigi com o Irmão Plácido, o chefedo grupo, que havia estudado teatro em Paris.A composição de um espetáculo, o equilíbrio ea inter-relação entre a abstração da palavra e aconcretude do grafismo cênico, me revelaramuma possibilidade de expressão pessoal.57Descobri o cineclube: um professor historiavasobre o filme, quando, onde, como, por quê, porquem foi feito; víamos o filme, o professor faziauma análise (artística, histórica, social, a depender,mas também e sempre moral) e promoviaseo debate. Acontecia às sextas-feiras à noitee chamava-se Cine Fórum. A programação eranaturalmente tendente aos valores religiosos


58católicos, a uma catequese elevada, mas semperder o foco na linguagem, no estudo da linguagem,que era oficialmente o objetivo dessasreuniões. Isso abria o leque para filmes como APaixão de Joana D’Arc de Carl Dreyer, The Kid deChaplin, Ladrões de Bicicleta de Vittorio de Sica.Me lembro dos filmes porque anotava. Menino,em Lençóis, anotava em um caderninho o nomedo filme e dos atores principais. A partir do CineFórum do Marista acrescentei a nacionalidade,o nome do diretor e observações. Foi aí queconheci Walter da Silveira, de vez em quandoele ia a esse foro apresentar um filme — doutorWalter, como todos o chamavam, advogado,crítico e ensaísta de cinema, fundador e mantenedordo Clube de Cinema da Bahia, que nosanos seguintes seria o centro nervoso da culturamoderna em Salvador.Ou seja, os filmes continuaram como uma presençaenorme na minha adolescência, inclusiveporque a maioria dos meus colegas também eravidrada no escurinho do cinema. Aos domingose feriados podíamos sair livremente, nos dias desemana só com autorização, na caderneta escolar,do diretor, o sisudo Irmão Cirilo, que tratavaa todos os alunos como meu santo. Saíamos enos enfurnávamos a tarde inteira em um dosimensos cinemas da Baixa dos Sapateiros, que


exibiam três longas-metragens nas matinês, alémde desenhos animados e cinejornais. Das duas datarde às sete da noite, para desespero das nossasnamoradinhas, meninas finas, que preferiamos cinemas chiques do centro da cidade, queexibiam apenas um filme por sessão. Cinema enamoradinha eram atividades complementaresnessa época, estavam diretamente relacionadas,uma se alimentava na outra — porque estávamosdescobrindo, elas e nós, os mistérios, asambivalências, as delícias e os entorces do amor,assuntos recorrentes no cinema que queríamosver juntos, o par, abraçadinhos; e porque o cinemaera um lugar onde o namoro podia alcançarintimidade, onde a pegação era possível.59Havia a praia aos domingos pela manhã, umanovidade para o menino montanhês. Conheci omar aos cinco ou seis anos de idade, quando fuia Salvador pela primeira vez com a família. Foiimpactante, quando cheguei diante do mar, napraia da Barra, fiquei extasiado por um tempo elogo meio tonto, escorreguei, deslizei por umaribanceira, bati a cara em um coqueiro (uma sensaçãode pequenez que só conscientizei muitotempo depois, ao ler um dos textos curtos douruguaio Eduardo Galeano, a história de ummenino que é levado pelo pai para ver o mare, diante da imensidão, aflito, pede — pai, me


60ajude a ver). Adolescente, a praia aos sábados edomingos era um território de prazeres sensoriaise também de aventura, de ter coragem decantar uma menina desconhecida, de beliscarou acariciar moças e senhoras casadas embaixod’água, de enfrentar turmas de valentões echamar pra briga (e sair correndo, arreliando).E nos dias de semana, todo dia das três às cincoda tarde, futebol nos três campos do colégio,torneios organizados com prêmios e medalhaspara os vencedores. Peladas disputadíssimas,com um nível altíssimo de adrenalina. Conto sóum episódio. Um garoto cavou um pênalti e foiimpedido de bater, outro bateu e perdeu e issolevou o time à derrota. Madrugada, no grandedormitório coletivo, sou despertado para acompanhar,eu e um monte de gente, uma cena insólitade sonambulismo: o tal garoto, dormindo,veste calção e camisa do time, calça as chuteiras,pega uma bola, desce três lances de escada atéo campo de futebol, põe a bola na marca dopênalti e, nesse momento, desperta, se assustae fica apalermado olhando para a gente, seuscolegas de pijama, sem entender.Vida de internato masculino nos anos 1950: cercade cem adolescentes, entre 12 e 18 anos de idade,divididos em três grupos, Maiores, Médios eMenores (cada grupo com seu dormitório, sua


sala de estudos, seu campo de futebol), gentede todas as regiões da Bahia, de outros Estadose de variadas extrações sociais. Entre os IrmãosMaristas havia espanhóis, italianos, franceses ealemães, além dos brasileiros. O Colégio MaristaNossa Senhora da Vitória, no bairro nobre doCanela, era prioritariamente destinado a jovensde classe média e alta classe média, o preço doensino era alto e o da hotelaria (hospedagem,alimentação, roupa lavada, etc.) mais alto ainda,nas nuvens como dizia meu pai. Esses eram amaioria, mas havia um bom contingente de garotospobres, bolsistas, e essa diversidade de origenssociais e regiões resultava em um cadinhocultural muito estimulante e revelador. A constância,às vezes nirvânica, às vezes sufocante dareligião, missas diárias, Apostolado da Oração,Filhos de Maria. A fartura de ofertas esportivas,culturais (cinema, teatro, biblioteca, laboratórioquímico) e existenciais (a sedução de Salvador, apraia, as namoradas). O fato psicologicamenteimportantíssimo de estar longe das famílias eda terra natal por primeira vez. A questão dahomossexualidade, histórias nunca comprovadasde Irmãos Maristas com alunos, rumores sobrealunos expulsos porque foram pegos. Os interessese idiossincrasias individuais, a formaçãode grupos, o surgimento natural e incontível delíderes, as oposições idealistas ou mesquinhas a61


essas lideranças. E tudo isso vivenciado por essesespíritos quase virgens de tudo em um ambientefechado, de grande intimidade masculina, comouma grande e estranha família sem mãe, umacolméia sem abelha-rainha.Saltando o Muro62As grandezas e as misérias humanas revelam-secom grande nitidez em um ambiente como esse,a literatura e o cinema já abordaram o assuntointernato masculino (e também feminino) inúmerasvezes, focando justamente a exacerbaçãode sentimentos e emoções que marca essascomunidades. Naquele meu internato aconteceuum fato chocante que tem a ver com essaexacerbação (e creio que o fato foi perturbadorem todos os outros internatos católicos daépoca). Entre os livros que éramos obrigados aler, curriculares, estavam os escritos de um talMarten (não tenho certeza quanto ao nome),um moralista. Eram livros moralistas que, alémde chatos, apresentavam conceitos e conselhossobre os quais nem todos nós estávamos deacordo, aconteciam discussões com os IrmãosMaristas. Inesquecível: o piauiense CláudioMelo, 14 anos de idade, enfrentando o IrmãoMarcelo, apelidado Já Morreu, no refeitório,diante de todos os alunos e Irmãos: Marten é


um hipócrita. Apesar da má vontade da maioriados alunos com a pregação de Marten, os Irmãoscontinuavam afirmando que o escritor moralistaera um exemplo a ser seguido. Até que, comoum rastilho de pólvora, se espalhou a notícia,uma bomba: Marten havia se suicidado. Era verdade,o Irmão Cirilo teve de confirmar diante detodos, constrangido. Naquele dia a relação dosIrmãos com os alunos mudou sensivelmente, nósganhamos mais respeito, nossas idéias passarama ser ouvidas com mais atenção.Mas foi outro suicídio que funcionou como divisorde águas naquela década da adolescência:o de Getúlio Vargas. Anos antes, em uma dasvisitas da família a Salvador, havia visto Vargasdesfilando em carro aberto pelas ruas, meu paime levantou, me colocou sobre os ombros eVargas passou a poucos metros, lentamente,de terno branco, acenando e sorrindo no bancode trás de um conversível. Uma imagem nítidana memória, incluindo um homem enorme depé sobre o estribo do carro, negro e vestido denegro e com chapéu negro, Gregório Fortunato.Naquele agosto de 1954 estávamos em umintervalo entre as aulas, no recreio, quandoalguém gritou voltem para as salas, GetúlioVargas morreu. O Irmão Cirilo fez um brevediscurso pelo serviço de alto-falantes instalado63


64nas salas, o <strong>Brasil</strong> estava passando por grave crisepolítica, os alunos externos iriam imediatamentepara suas casas e os internos não poderiamsair, todas as autorizações de saída canceladas.Eu me indignei, tinha de sair, queria ver o queestava acontecendo. Com dois colegas, saltei omuro dos fundos do colégio e fui para a PraçaMunicipal, lugar de maior concentração popular,ouvir os discursos. O grande líder havia morridopor nós, para salvar o <strong>Brasil</strong> das garras dosEstados Unidos e da UDN. Saiu da vida e entrouna História para nos redimir, para impedir quefôssemos escravizados. Uma multidão no centrode Salvador, gente chorando, desmaiando, gritando,oradores inflamados em cada esquina,Vargas será vingado pelo povo.Voltei ao colégio às nove horas da noite, achandoque ia ser expulso e encharcado de política.Se fosse expulso seria uma tragédia mas tinhavivido o segundo dia mais importante da minhavida (o primeiro tinha sido o dia da notícia deque o ginásio de Lençóis não ia funcionar) etinha planos para o futuro. Mas também podiadar tudo certo, saltaria o muro dos fundos emuma zona escura, evitaria os cachorros (não mordiam,mas faziam um estardalhaço), e sei lá comochegaria impune ao dormitório. Outros haviamconseguido. Saltei o muro e lá estava plantado


o Irmão Cirilo, rosário na mão, estava lhe esperando,meu santo. Não fui expulso, o castigofoi um mês sem futebol, de pé todas as tardesna varanda que dava para os campos, junto dosino. Só quem podia tocar o sino, usado apenasnas chamadas para as missas e demais atos religiosos,era o Irmão mais velho da comunidade,o italiano Marcelino. Mas eu estava embebidode política e de liberdade, a palavra mais gritadapelos oradores na Praça Municipal e, nahora mais improvável, no meio da tarde, comtrês partidas de futebol acontecendo no amploespaço do colégio, toquei o sino proibido. Melembro dos jogos parando, os jogadores confusosolhando em minha direção e eu lá, herói demim mesmo, badalando vigorosamente o sino.Foi grave, ia mesmo ser expulso, meu pai foichamado e parlamentou com Cirilo e mais umavez escapei, tendo pesado na decisão as minhasboas notas e o fato de ter sido eleito presidentedo grêmio dos alunos internos, o Centro LiterárioDesportivo Independente. Mas saiu caro: oresto do semestre longe do futebol. E do sinotambém, metido todas as tardes nas bancas, assalas de estudo.65Com uma boa compensação: as férias seguintes,em Lençóis, foram as mais gloriosas de todas.Porque, claro, eu era um estudante da capital


66e, como havia sonhado quando menino, viviaférias de príncipe em Lençóis. Minhas estripuliasno colégio tinham chegado aos ouvidos da pequenacomunidade e minha reputação cresceu,tanto na visão da moçada local como na dosoutros estudantes da capital, o que era muitoimportante. Namorei à beça. Tive outras fériasquase igualmente gloriosas três anos depois,em julho de 1957, quando introduzi o rock emLençóis: levei o disco seminal Bill Haley and HisComets e rudimentos dos passos da dança, quehavia visto no cinema, no filme Rock Aroundthe Clock, no <strong>Brasil</strong> Ao Balanço das Horas. EmSalvador o rock’in’roll já se anunciava como umafebre, as músicas de Haley já estavam tocandonas rádios, causando perplexidade, mas ninguémainda tinha o disco em Lençóis. Foi uma sensação.E logo depois tomamos conhecimento deElvis Presley, os quadris de Deus, e ficou claro quenão era só música acelerada, era uma aceleraçãoque tinha a ver com sexualidade, com política,um novo comportamento. Lençóis se assustoumuito com a novidade, um escândalo.Política EstudantilOs padres jesuítas e salesianos, os maristas, asfreiras sacramentinas e de outras ordens, proprietáriosdos colégios religiosos, estimulavam


Férias em Lençóis, 1957 (ano em que lançou o rock na cidade)


68os alunos e alunas a participar da política estudantilsecundarista. Os diretores dos colégiosprotestantes, pastores presbiterianos, tinham amesma atitude. A idéia deles, que já vinha sendoposta em prática desde uma geração antes danossa, era conformar um grupo político estudantilconservador, de peso, para fazer frenteaos estudantes de esquerda (majoritariamentedos colégios públicos) que estavam ocupandotodos os postos nas entidades de classe, nassecundaristas e nas universitárias. O embate eraaberta e frontalmente Direita versus Esquerda,os direitistas eram chamados teleguiados e osesquerdistas apelidados sputniks, referênciasà tecnologia espacial dos Estados Unidos e daUnião Soviética. As frentes de batalha eram osgrêmios dos colégios, a Associação Baiana deEstudantes Secundários-Abes e a União <strong>Brasil</strong>eirade Estudantes Secundários-Ubes.Os padres e as freiras diziam que éramos umageração especial, moças e rapazes inteligentese promissores, e nos jogaram na tropa de direitada política estudantil. Mas muitos de nós jáhaviam passado por experiências como as domoralista Marten e dos discursos no dia da mortede Vargas, aquele dia que incendiou minhacabeça. Muitos de nós estávamos ansiosos porum entendimento das coisas além do que nos


oferecia os colégios religiosos, queríamos ouviros estudantes dos colégios públicos. E ouvimos.Os líderes direitistas, estudantes mais velhos,eram uns brutamontes, acabavam as reuniões naporrada, seqüestravam urnas cheias de votos nafrente de todo mundo. Muitos de nós e nossasfamílias estávamos política e emocionalmenteligados ao ícone Vargas, ao Vargas eleito pelopovo em 1950 e que se deu em holocausto emnome de idéias progressistas. Vargas não era dedireita e ninguém era filho de padre. E deu-seo giro do parafuso da minha geração baiana: aesquerda era o caminho. O projeto dos religiososprofessores não deu certo, saiu pela culatra. Eunão era um teleguiado, controlado a distância,eu era um sputnik solto e livre no espaço.69Mas as lideranças políticas de direita da Bahia,atentas ao movimento estudantil, lutaram compersistência pela reconquista daquela geração,que se apresentava realmente muito promissora,muito forte, como previram os padres e asfreiras. Éramos assediados com promessas debolsas de estudo no Rio de Janeiro e São Paulo,com programas de visitas a países estrangeiros,nos davam muitos livros de presente. Há umepisódio emblemático com Glauber Rocha. Umlíder integralista convidou-o para um encontroem um pequeno auditório, alguém o levou até


70o centro da platéia e ele ficou sentado no escuro,esperando. De repente uma luz acende nopalco, um foco de baixo para cima iluminandoo tal militante integralista. A iluminação é impressionante,expressionista, o fundo musical éWagner (imagino A Cavalgada das Valquírias)e o homem discursa dramaticamente sobre osprincípios do Integralismo, Deus, Pátria e Família,sobre a reorganização da sociedade a partir devalores espirituais, a partir de valores eternos enão das mentiras perversas do socialismo e docapitalismo. Um show, que o único espectadorinterrompeu, chamou o cara de palhaço e foiembora (antes da virada Glauber tinha pertencidoa uma organização integralista, o Centrode Estudo, Pensamento e Ação-Cepa).De um lado os galinhas verdes da Ação Integralista,do outro o Partido Comunista, o Sigma e aFoice-e-Martelo. Ambas as organizações tinhamtentado derrubar Vargas e tomar o poder àforça, com as armas, os comunistas em 1935, osintegralistas em 1937. O Partido Comunista nosassediava com mais elegância e com estímulosmais interessantes, como a de dirigir nossaatenção para o jornalismo, nos avisar que, sequeríamos realmente nos expressar, tínhamosde usar a imprensa. Como foco dessa disputa deadultos, éramos forçados a pensar, a analisar,


a refletir, a resistir às tentações, a escolher e adefender nossas escolhas — e a nos conscientizarsobre os muitos patamares da política, desde aação juvenil-estudantil que praticávamos até asgrandes decisões que sacodem a humanidade,como a Revolução Soviética e a Segunda GuerraMundial.Conheci Glauber nessa época, aos 14 anos deidade, na militância da política secundarista.Cheguei atrasado a uma assembléia e ele estavadiscursando, descabelado e vestindo uma capade gabardine, como Humphrey Bogart. Estavadefendendo uma idéia completamente novapara mim e seguramente para todos os jovensque ali estavam: dizia que a política era incapazde construir um mundo novo, que o mundo sóseria transformado através da arte. Estávamosali, dizia, para mudar o mundo, para acabar comas injustiças e a miséria, a única missão digna deuma pessoa inteligente, e só a arte podia fazerisso. Gritou uma palavra de ordem, algo comotodo poder aos artistas, e saiu da sala, sem esperarréplicas ou aplausos. Impressionado comessa história do poder da arte, fui atrás dele,estabelecemos contato. Sou ator, ele disse. Eutambém, respondi. Estávamos nos referindo aonosso trabalho teatral nos colégios, eu no católicoMarista, ele no protestante Dois de Julho.71


72Empatia instantânea, ficamos amigos para sempre.Ele era um conspirador em tempo integral,logo me incluiu em seu grupo de ininterruptaconspiração, o conceito revolução passou a sero foco de nossas conversas, leituras e meditações.Arte e revolução. O grupo foi crescendo ecomeçamos a atuar em lances programados, oprimeiro foi nos espalharmos por diversos colégios.Sai do Marista e fui para o Antonio Vieira,dos jesuítas, e externo, morando em uma pensãode estudantes. Glauber foi para o Colégio daBahia, maior colégio público da cidade, territóriomais fértil para seu projeto de mudar o mundoatravés do teatro.O segundo lance foi ocupar as posições maisimportantes nos grêmios e na Abes, fazendocampanha nos colégios e disputando eleições.Para tanto nos aliamos aos comunistas, emboranão simpatizássemos com a rigidez do estilo devida e das práticas políticas deles, achávamosque eram atitudes conservadoras, quadradascomo se dizia na época. Nossa turma, garotose garotas oriundos dos colégios religiosos, freqüentavaa praia e à noite íamos aos clubes eaprontávamos, muitas vezes fomos retirados deboates, pela direção da casa ou pela polícia, porsermos menores de idade. Éramos, em uma palavra,indisciplinados. Estávamos interessados em


Marx mas também no rock, na Nouvelle Vagueque estava aparecendo, em Brigitte Bardot, emJames Dean, no carnaval, no futebol, na capoeira(fui aluno de Mestre Bimba). Mas não se tratavaapenas da diferença comportamental, esse erasó um aspecto das nossas discussões com os queridosamigos comunistas.O outro aspecto, político-ideológico, emergiufragorosamente quando a União Soviética invadiua Hungria. Foi em 1956, um ano de grandepolitização, com Juscelino Kubitschek iniciandoseu governo transformador, após vencer umatentativa de golpe civil, e a crise do comunismo,o Conflito Sino-Soviético, Kruschev denunciandoos crimes de Stalin, os chineses esculhambandoos soviéticos. Tudo isso repercutia fortementena política secundarista. E a União Soviéticainvade a Hungria, fotos enormes de tanquesnas primeiras páginas dos jornais, indignaçãointernacional, perplexidade nas esquerdas. Umda nossa turma, Paulo Gil Soares, publica umpoema contra os tanques, nós não apoiamosa invasão. E nesse momento, não sei vindo deonde, começamos a falar em uma terceira opção,alguma coisa como socialismo democrático comos artistas no poder, uma espécie embrionária eromântica do que seria a Terceira Via que hojese discute.73


Damas da Noite74Dessa minha turma poucos entraram para o PartidoComunista, mas todos mantivemos nos anosseguintes laços de aprendizado e de amizadecom grandes figuras baianas do Partidão, comoos nossos mestres de jornalismo. Esse mergulhoprecoce nas complexidades da política não eraobsessivo, não ocupava todo nosso tempo epensamento, tínhamos outras curiosidades, buscávamosoutras sensações. E outros mergulhos.Morando na pensão de Dona Bela, completamenteindependente da família, fui conhecera noite, uma dimensão da vida que o cinemae a literatura glamourizavam e que eu deviaconhecer. Passei a ir a boates, inferninhos, ouvirpianistas. O companheiro mais constante dessasaventuras se chamava Odilard, pouco mais velhoque eu, também da Chapada Diamantina, colegade pensão. Odilard era um boêmio de verdade eme revelou outra noite, diferente dos ambientessofisticados: o negócio noturno do sexo, aprostituição, os cassinos, a miséria abraçadacom o luxo. A emoção de estar experimentandoaquela vida de cinema incluía o visual faiscantedos cabarés Tabaris e Rumba Dancing, comsuas orquestras e cantores, iluminação feérica,dançarinas exóticas, sorteios. Mulheres de todosos tipos e tamanhos, perfumadas e com roupas


extravagantes, à disposição para dançar. A cadadança elas faziam um furo em um impresso, umacartolina, que o freguês apresentava na saídae pagava. Dança a preço fixo, mas as damas danoite caprichavam na sensualidade, colavam ocorpo, beijavam a orelha e depois pediam autorizaçãopara fazer dois ou três furos.Daí parti para expedições ao Pelourinho e àLadeira da Montanha, a barra pesada da noite,baixo meretrício, bêbados caídos na rua, brigas,as mulheres sentadas nas portas com as pernasabertas, expondo o sexo. Sempre em grupo,nenhum de nós se aventurava sozinho naquelesantros sombrios. Qualquer contato físico comaquela fauna perigosa, ameaçadora, era evitado,mesmo um apertar de mãos, era visível o riscode doenças sexuais e de outras, a ausência dehigiene era chocante. Mas conversávamos comprostitutas e cafetões. A gente só passava porali, parava um pouco em cada esquina, observava.Uma noite estávamos, eu e Odilard, emuma dessas aventuras arriscadas quando fomoscercados por policiais militares. Uma situaçãoinsólita e apavorante, os PMs fecharam o círculo,nos imobilizaram, e não diziam nada. O que é,o que foi, o que a gente fez? E eles nos olhandofixamente e mudos. Ser preso de madrugadano baixo meretrício, aos 16 anos de idade, meu75


pai não ia entender, minha mãe ia morrer dedesgosto. Até que a angústia foi interrompidapela aparição de um sargento, o comandanteda tropa, que desfez o cerco às gargalhadas.Era o sargento Domingos Alcântara, ou melhor,Mingo, meu amigo e vizinho em Lençóis, umtremendo gozador, fazendo uma das suas, sedivertindo.Jogralescas76Em 1957 o teatro de Glauber mudou um mundo:o mundo cultural de São Salvador da Bahia deTodos os Santos, a cidade de Rui Barbosa e CastroAlves. Foi como um terremoto, um tratamentode choque nas elites intelectual e política, umacasta enraizadamente acadêmica, amarrada àtradição e às formalidades, à erudição pela erudição,à vaidade da oratória rebuscada, gongórica.Esse castelo do século XIX ainda dominavaa engrenagem político-cultural da cidade, tinharesistido à Semana de Arte Moderna de 1922 eà ação de alguns modernizantes, o maior delesJorge Amado. Glauber, sua irmã Anecy e outrosestudantes artistas do Colégio da Bahia, entre 16e 18 anos de idade, fundam o grupo JogralescasTeatralização Poética: os poetas Fernando daRocha Perez e Paulo Gil Soares, o artista plásticoCalazans Neto, o futuro grande jornalista


João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, e outros. Oespetáculo Jogralescas estréia com casa cheia,houve um trabalho forte de convites, de atrairtodo mundo que era importante na cidade, aestudantada de esquerda deu uma força, euinclusive. O espetáculo era simplíssimo, limpo,límpido, direto, ascético, os atores com batas decores claras, descalços, construindo lentas e densascoreografias. Diziam, interpretavam poemasmodernos brasileiros e latino-americanos comum tom intimista, como se falassem no ouvidodos espectadores, a anos-luz do barroquismoao qual aquela platéia estava afeita. A composiçãoplástica perfeitamente integrada ao estilocool da interpretação e ao conteúdo da melhorpoesia do século XX, um teatro que ninguémnunca tinha visto, comovedoramente bonito eao mesmo tempo contestador e provocador.77Causou uma sacudida de tremor sísmico, muitoalém do que o pessoal do Grupo Jogralescas, ouqualquer um de nós, seus amigos, poderíamossupor, imaginar. O assunto da cidade, manchetesnos jornais, fartos comentários nas rádios, a antigacasta dividida entre o embevecimento coma coisa nova e a defesa de velhos cânones, polêmicaspúblicas na imprensa e nas universidades,é arte superior, é agressão à arte e à sociedade,é uma maravilha, é uma desgraça, Jorge Amado


dizendo que o espetáculo dos meninos era o iníciode uma nova era da arte moderna brasileira.O espetáculo foi apresentado para centenas deestudantes, em seguida estrearam o JogralescasII, todo mundo queria ver o fenômeno. Foi aeclosão do grande movimento artístico baianoque vicejou nos últimos anos 1950 e na décadaseguinte. O escândalo das Jogralescas gerourapidamente a Editora Macunaíma e as revistasÂngulos e Mapa, trincheiras de reflexão e proposiçãodaquela que passou à História justamentecomo a Geração Mapa. A cancela estava abertae aí foi o estouro da boiada.78Os Ecos da IlhaA Revolução Cubana é a estrela super brilhantedessa época. Acompanhávamos a evolução dosacontecimentos em Cuba desde 1957 e esseacompanhamento foi desenhando em nossosespíritos o modelo de revolução que poderiaaconchegar nossos ideais de mudar o mundoatravés da arte, um desejo que logo se estenderiapara através da cultura. Fazíamos manifestaçõesa favor dos guerrilheiros da SierraMaestra, jovens heróicos que estavam tentandoderrotar uma ditadura sanguinária. Eu mesentia participante do Movimiento 26 de Julio,eu me dizia participante desse movimento dos


estudantes cubanos, em sã consciência e sempudor, acreditando que não havia necessidadede pedir permissão, ou de me inscrever ouqualquer outra formalidade para pertencer aoMovimiento, bastaria ser e atuar.No dia 1º de janeiro de 1959 eu soube, pelorádio, da vitória dos barbudos de Fidel Castro,que tinha apenas 26 anos de idade. Fiquei emocionadíssimo.Havia feito uma tremenda farracom minha turma na noite anterior, no réveillon,estivemos no baile do Clube Fantoches da Euterpee amanhecemos o dia na praia do Unhão,bebendo, namorando e, justamente, falandosobre os guerrilheiros cubanos. Era o assuntoquente nos jornais e rádios, que não acreditavamna vitória dos guerrilheiros, havia boatossobre a morte de Fidel, diziam que seus discursostinham sido gravados antes de sua morte. E derepente o rádio berrando, triunfo da RevoluçãoCubana. Aquilo significava que era possível materializaros nossos ideais, os nossos planos, osda minha geração como um todo mas, de umamaneira mais aguda, os sonhos de liberdade etransformação social que eu pessoalmente estavaalimentando. Era um dia belíssimo, um solmaravilhoso, e os dias seguintes, adrenalínicos,foram ocupados por reuniões, assembléias, passeatase noites de intensa celebração.79


80Nas semanas seguintes as notícias indicavamuma agitação estonteante em Cuba, transformaçõesradicais, reforma agrária, alfabetizaçãoem massa. Não passou muito tempo para quefossem iniciadas relações diretas entre o movimentobaiano e os cubanos, alguns emissáriosde Havana foram a Salvador. Lembro-me daexpressão radiosa de Glauber informando-meque Cuba estava organizando uma grande empresaestatal de cinema, que centenas de filmesrevolucionários seriam realizados em toda aAmérica Latina, um cinema de guerrilha, o poderde fogo da arte, um cinema novo para o homemnovo, um nuevo cine. A relação se estreitou, algunsamigos visitaram a Ilha, voltavam falandomaravilhas. Geraldo Sarno foi estudar cinemano Icaic, o Instituto Cubano del Arte e IndustriaCinematográficos, a grande empresa estatal querapidamente se tornou realidade. Tudo estava seconcretizando, eu estava tonto, era como umaespécie de embriaguez.Tempo de DecisãoTão tonto que, em fins de 1959, com 19 anosde idade, ocorreu-me uma crise de identidade.Nunca ouvi falar em crise dos 20 anos, mas eutive. Também pudera! Aquelas revoluções todas!Havia uma pressão da família e de alguns de


meus amigos para que eu fizesse a faculdadede Direito. Das profissões tradicionais era a quemais me atraía, mas não me entusiasmava, eusonhava com jornalismo e também com teatro etambém com cinema. Apesar das revoluções quenos cercavam, meus amigos pareciam ter clarezaem seus planos pessoais, todos excitados com afutura vida universitária, muitos já se reconhecendoe começando a ser reconhecidos comoescritores ou poetas ou pintores ou cineastase eu sem me decidir, só agitando e lendo. Atémeu irmão Ronaldo, o caçula, tinha certeza queia estudar Letras e Antropologia. Eu não tinhaessa clareza. Fiz o exame vestibular para Direitoe não passei, para espanto de meus amigos e dafamília, pois tinha sido um bom aluno até então,sempre entre os dez melhores da classe. Nãopassei porque tive notas baixas em Francês, umamatéria com a qual nunca tivera problemas.81Fui para Lençóis, fiquei uns seis meses tomandobanho de rio, jogando futebol e lendo filosofia,primeiro uma História da Filosofia e depois oscomplicados meandros de Assim Falou Zaratustra,de Nietzsche. Minha aproximação com a filosofiaaconteceu no Curso Clássico, no colégio jesuíta,onde constava como matéria curricular. Com afilosofia no sentido da busca ou construção dosprincípios que possibilitam o saber, no sentido de


ordenação e relacionamento de conhecimentose ilações, enfim, a filosofia erudita, porque nosentido popular do divagar, do emendar pensamentos,do matutar eu já conhecia desde criança.Sempre escutei que garimpeiro filosofa muitoe é verdade, dias e dias sozinho na serra fazempensar. Lia e relia Nietzsche, encantado com adefesa do espírito dionisíaco, o entregar-se aosentimento, à ação e à emoção.82A preocupação de meus pais era crescente, seeu não quisesse estudar, se eu fosse tão burroa ponto de não fazer universidade, então tinhade trabalhar, o Banco do <strong>Brasil</strong> tinha uma vagaà minha espera. Funcionário de banco eu tinhacerteza que não queria ser, também não ficariaem Lençóis, apesar da boa vida. O Ginásio AfrânioPeixoto já estava funcionando e havia muitosestudantes das cidades vizinhas, muitas moças,eu tinha um jipe (que perderia se não voltassea estudar) e excesso de testosterona. Me engancheiem um namoro com uma menina chamadaToni, morena exuberante e desinibida. Umarelação orgiástica, sexo e álcool. Nós e um primomeu e sua namorada Teca, também avançadano tempo, ficávamos tardes inteiras na serra,tomando banho de cachoeira e transando. Os namoroseram públicos, mas o sexo era escondido,a virgindade feminina e o pudor ainda eram va-


lores determinantes, se descobrem teríamos decasar. Toni e Teca, figuras inesquecíveis, viviamcom antecipação a liberação sexual que só iriaacontecer anos depois, umas pioneiras.Enfim me decidi, escolhi tudo: faria os cursosde Direito e de Teatro e ganharia a vida comojornalista. Principalmente, faria a revolução. Nospreparativos para a volta a Salvador, a últimasurpresa de Toni: como a rapaziada sabia que euia embora e Toni era um monumento, formou-seuma lista de pretendentes; Toni pediu que eudecidisse com quem ela deveria namorar depoisda minha partida, eu escolhi meu amigo Carlitine os dois foram felizes por algum tempo. Pegueimeu jipe e desci mais uma vez a montanha emdireção a Salvador, em direção a um novo capítulo.As dúvidas haviam desaparecido, dissolvidasno fogo de Toni e em uma nova compreensãoda existência: eu não tinha de escolher muito,tinha de deixar espaço para o destino.83Revolução CulturalNa virada das décadas 1950/1960 aconteceuma conjunção, uma soma de acontecimentosraros, que produz uma energia cultural de altavoltagem em Salvador da Bahia, gerando ummovimento que se expandiria pelo País e teria


84repercussão mundial. Ao mesmo tempo queemerge a Geração Mapa, saindo da adolescênciae balançando vigorosamente a província, e aomesmo tempo que a Revolução Cubana iluminao mundo jovem, materializa-se o projeto daUniversidade Federal da Bahia, com um desenhoousado e modernizador. Edgar Santos, criadore reitor da UFBa, é um personagem-chave dessahistória: médico e professor, ministro da Educaçãoe Cultura nos últimos meses do segundogoverno Vargas, montou uma universidade deponta, com os cursos tradicionais revigorados,ciências exatas, humanidades e uma rede deescolas de arte. Para todas as áreas, mas especialmentepara essas escolas, importou grandesmestres brasileiros e de diversas partes do mundo:Escola de Dança com a bailarina e coreógrafapolonesa Yanka Rudska à frente; SemináriosLivres de Música com Ernst Widmer, WalterSmetak e o genial dodecafonista alemão Hans-Joachim Koellreutter; e a Escola de Teatro, comEros Martim Gonçalves na direção e uma constelaçãode professores e consultores, Gianni Ratto,Ana Edler, Alberto D’Aversa, Eugenio Kusnet,Domitila Amaral, Sérgio Cardoso. Revitalizou acentenária Escola de Belas Artes e integrou-a aesse complexo. Instalou institutos de estudos específicose internacionais, entre eles o instiganteCentro de Estudos Afro-Orientais, dirigido pelo


português Agostinho da Silva. Rapidamente, Salvadorda Bahia se transformou no centro culturalmais importante do País, atraindo intelectuais eartistas de toda a parte.Aí estava a italiana Lina Bo Bardi criando e desenvolvendoum projeto arquitetônico e gráficoconciliando a modernidade latino-européia commatrizes da cultura popular baiana e nordestina,construindo o Museu de Arte Moderna, o Museude Arte Popular do Solar do Unhão, ocasionandouma revolução nas artes gráficas e na cenografiateatral. Aí estava o francês Pierre Verger, fotógrafoextraordinário, revelando e promovendo averticalização das relações culturais Bahia-África.Aí estavam o gravador alemão-baiano HansenBahia e também o pintor argentino-baianoCarybé. Ganhamos, os jovens baianos, novose brilhantes mestres, inovadores, incendiários,mestres caídos do céu. Cruzaram nossos caminhos,nos deram aulas, conversaram e trocaramidéias conosco estrelas do pensamento do séculoXX como Sartre, Simone de Beauvoir, RogerBastide. Também apareciam para encontrosna Reitoria ou na Escola de Teatro pessoas tãodíspares como os astros do cinema internacionalElsa Martinelli e Tony Curtis (todo o tempo maquiado,causando estranheza) e Juanita Castrofalando mal de seu irmão Fidel e sendo vaiada.85


86A atmosfera incandescente gerada por essadinâmica universitária somada à ação escandalosamentetransgressora e inovadora da minhageração, que estava entrando na universidade,potencializou e popularizou um grupo de intelectuaise artistas, de grande talento, da geraçãoanterior, que acrescentou um brilho especial àaventura do espírito que a cidade estava vivendo— refiro-me ao geógrafo Milton Santos, aoantropólogo Vivaldo Costa Lima, ao historiadore crítico de arte Clarival do Prado Valladares,ao escultor Mário Cravo, aos pintores CarlosBastos, Genaro de Carvalho, Jenner Augusto,Sante Scaldaferri, Rubem Valentim, Raimundode Oliveira.O fogo da minha geração, atiçado na políticaestudantil secundarista, na consagração dasJogralescas e na Revolução Cubana, virou lavade vulcão ao se alimentar nessa universidade devanguarda. E vice-versa: a influência dos jovensestudantes intelectuais na afinação, na arte finaldos programas da jovem UFBa e na sua aplicaçãofoi essencial para que tudo acontecesse comoaconteceu, como uma torrente, que correria atéo final dos anos 1960. Com liderança de GlauberRocha, o movimento baiano viria a desaguar emuma nova leva de grandes escritores, poetas eartistas plásticos, no Cinema Novo, no Tropica-


lismo. Não vale a pena detalhar os lances dessemovimento, já razoavelmente documentadoem livros e filmes. É só para me localizar, paradizer que eu estava imerso nesse fogaréu. Semdeixar de mencionar o extraordinário Clube deCinema da Bahia, encabeçado por Walter daSilveira, onde vi todo o cinema que deveria servisto naquela altura da história do cinema.Ao voltar do hiato em Lençóis, me dei contada velocidade em que as coisas estavam acontecendoem Salvador. Só para falar nos amigosmais próximos: Luis Paulino dos Santos estavafilmando Rampa, Glauber estava montando OPátio, Roberto Pires havia feito um filme longo,em cinemascope, Redenção, e estava organizandouma empresa produtora; Calazans Neto,Emanoel Araújo, Sonia Castro, Juarez Paraísoinvadiam as exposições e galerias, conformandouma nova e poderosa geração de artistas plásticos;João Ubaldo Ribeiro despontava comocontista, uma nova onda de poetas fazia publicaçõesou declamações diárias, Florisvaldo Mattos,Jair Gramacho, Fernando da Rocha Perez. Umapessoa importantíssima nessa fervura: o artistagráfico Rogério Duarte, inteligência faiscante. Etudo sob as bênçãos de Jorge Amado, que adotoua rapaziada com amor de pai. Me dei contada velocidade das coisas e cumpri o que havia87


planejado: entrei para a faculdade de Direito,onde já estavam vários dos que acabo de mencionar,e para a Escola de Teatro. Direito pelamanhã, teatro à tarde e intensa vida noturna,incluindo noitadas freqüentes no Anjo Azul, umbar existencialista.Escola de Teatro88Fiz parte da segunda turma da Escola de Teatro,com colegas que se tornariam grandes atorese atrizes, Othon Bastos, Geraldo del Rey, HelenaIgnês, Sonia dos Humildes, Nilda Spencer,Mário Gusmão, Carlos Petrovich. Os processosde atuação dramática me entusiasmaram: Stanislavski,o Método de Lee Strasberg, o distanciamentocrítico de Brecht. Meu interesse maisagudo era a direção e me dediquei com afinco,os professores eram excelentes, incluindo osamericanos. A escola recebia recursos da FundaçãoRockefeller e tinha um convênio com oActor’s Studio de Nova York, o que nos permitiaum contato permanente com a grande escolade atuação norte-americana, intercambiandoprofessores, alunos e informações. Tive comoprofessor de iluminação o Robert Bonini, o caraque estava reinventando a iluminação teatralna Broadway. Tive como professor de atuaçãoe direção nada menos que Charles McGaw, um


dos grandes cabeças do movimento que estavatransformando o teatro americano. O grandestart desse movimento, Um Bonde ChamadoDesejo de Tennessee Williams, dirigido por EliaKazan, com Marlon Brando, ainda estava emcartaz em Nova York quando Charles McGawveio à Bahia para montar o mesmo espetáculocom os alunos da escola. Um sucesso espantoso,Othon Bastos como Stanley Kowalski, Sonia dosHumildes como Stella.O teatro clássico, o teatro contemporâneo (europeu,americano, japonês) e o teatro brasileirotinham o mesmo peso e recebiam a mesmaatenção no plano de estudos e exercícios. Osespetáculos montados pela escola, com altíssimaqualidade técnica, textos ousados, variedadede estilos e muita pulsação criativa (como tudoque acontecia naquele momento), encantarama população da cidade e os críticos do Rio e deSão Paulo. Os espetáculos eram apresentadosna sala da escola, no Museu de Arte Moderna,em praça pública e no enorme e semidestruídoTeatro Castro Alves, que incendiara antes de serinaugurado. Peças de Tchecov, Pirandello, PaulClaudel, Strindberg, Garcia Lorca, Yukio Mishima,o Calígula de Albert Camus, a Ópera dos TrêsTostões de Brecht. E os nossos, Gil Vicente, ArturAzevedo, Francisco Pereira da Silva, Maria Clara89


90Machado, Ariano Suassuna, João Cabral de MelloNeto. E também peças de alunos, como CachorroDorme na Cinza do Echio Reis. E também os primeirostextos de Boal, que foi lá com o Teatro deArena. Uma pulsação teatral acelerada, ao mesmotempo horizontal, conhecer tudo de melhorque existe, e vertical, a busca de uma linguagemmoderna e própria, baiana, brasileira. À frentede tudo, dirigindo a escola e alguns dos espetáculos,o pernambucano Eros Martim Gonçalves,com formação na Inglaterra, elegante e corajoso.Como o reitor Edgar Santos e o professor AgenorAlmeida, Martim Gonçalves, outro personagemchavedessa história, era médico.As escolas de arte funcionavam em rede, Teatro,Música e Dança no bairro do Canela, vizinhas,e Belas Artes no centro da cidade. A atividadeinterdisciplinar era intensa, os alunos das quatroescolas freqüentavam as quatro escolas. Essa interdisciplinaridadeé uma marca também do movimentocultural baiano dos anos 1960 como umtodo, poetas, pintores, dramaturgos, cineastas seenvolviam em projetos comuns o tempo todo, asdistintas expressões artísticas estavam articuladas,enredadas. E chegava muita gente de fora para vero que estava acontecendo, jovens de todo o <strong>Brasil</strong>,e até da Argentina, apareciam e eram seduzidospela agitação. Luis Carlos Maciel veio do Rio Grande


do Sul, Márcio Souza veio da Amazônia, VladimirCarvalho da Paraíba e não sei quantos mais. A Escolade Teatro era o centro nervoso do redemoinho,havia encontros com grandes nomes, Jean-LouisBarrault, Pierre Seghers. Aparecia também gente decinema para palestras e debates, John Schlesinger,figurinistas de Hollywood, muita gente.Um dia estavam conosco a superstar do cinemamexicano Silvia Pinal, chiquérrima, e seumarido, o produtor Gustavo Alatriste, atriz eprodutor de Buñuel. O México vivia os últimosmomentos da época de ouro de seu cinema, osmelodramas mexicanos sendo exibidos em todoo continente. Alatriste estava dizendo como osjovens baianos podiam produzir cinema, comofuncionava a economia cinematográfica, quantocustava um filme de longa-metragem. Glauber ointerrompeu e, mostrando os grandes brincos dediamantes de Silvia Pinal disse: pra você é fácil falar,sua mulher está com dois longas-metragenspendurados nas orelhas.91Passeando com SartreUma tarde Jorge Amado e Zélia Gattai trazemà escola Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoirpara uma conversa conosco. Frenesi, respiraçõessuspensas. Ali estava, ao nosso dispor, o maior


92filósofo do século XX. O casal, que estava voltandode uma visita a Cuba, era a encarnação doespírito revolucionário do século XX, da chamaque me guiava, que guiava toda aquela ondabaiana. Simone redefinindo e impulsionando opapel da mulher nas relações humanas, Sartreoperando uma reviravolta filosófica: a existênciaé anterior à essência, o absurdo da vida deve levara uma justificativa para a existência humana.Nada de buscar um sentido para a existência,mas sim construir esse sentido para a sua vida,viver autêntica e livremente um projeto pessoalde liberdade, rebelando-se contra as convençõessociais, o homem está condenado a ser livre. Oprimeiro filósofo não-acadêmico, militante, empermanente contato com o povo, com a realidadedo dia-a-dia. Um filósofo popular. Durantetodos os carnavais dos anos 1950 a marchinhaChiquita Bacana foi sucesso: Não usa vestido /Não usa calção / Inverno pra ela / É pleno verão/ Existencialista / Com toda razão / Só faz o quemanda / O seu coração. Minha geração era nãoapenas naturalmente existencialista, mas conscientementesartriana, a obra de Sartre já circulavaentre nós, lembro-me de concorridas leituraspúblicas de suas peças de teatro As Moscas e HuisClos e alguns mais avançados haviam lido O Sere o Nada. O ponto noturno mais importante daminha turma era o Anjo Azul, uma cave parisien-


se onde bebíamos absinto e ouvíamos JulietteGréco, um pequeno templo existencialista. Aconversa com Sartre e Simone durou até o fimda tarde, uma tarde iluminada. O tema foi aRevolução Cubana, os movimentos de libertaçãonacionais e a incidência desse cenário noexistencialismo sartriano. O filósofo discorreusobre o marxismo, seu ponto de incidência como humanismo existencialista (a transformaçãoda sociedade) e sua divergência (determinismohistórico). Ficamos incendiados.Alguns de nós acompanhamos os visitantes atéa porta da escola e aí Sartre se recusou a acompanharSimone, Zélia e Jorge Amado, disse quequeria andar de ônibus em Salvador. Os quatroestudantes que ali estávamos nos apresentamoscomo guias e minutos depois estávamos pajeandoo mestre no interior de um ônibus, emdireção ao centro da cidade. Um de nós, o poetaCarlos Falk, falava francês razoavelmente, Sartrearriscava frases em espanhol e a comunicação sefez fácil. Pegamos outro ônibus, fomos ao bairropopular do Curuzu. Ele se referiu muito à sensualidadedas pessoas, especialmente das moças.Ônibus cheios de fim de tarde, ele curtiu ficar seroçando no corpo das negras volumosas, curtiue comentou a intimidade corporal com pessoasdesconhecidas. Nós o deixamos na porta da casa93


94de Jorge Amado, ele agradeceu exageradamentenossa ajuda em seu mergulho na intimidadede Salvador. E aí acontece uma coisa engraçada.Horas depois, no Anjo Azul, eu celebrava a façanhaquando um atordoado Glauber perguntoupor que não fora nela incluído. Contei comoaconteceu, fomos levar o homem à porta, elequeria andar de ônibus — onde você estava?Eu fui ao banheiro, respondeu Glauber, e todomundo caiu na gargalhada. Glauber ficou muitochateado, aceitou a contragosto a armadilha queo destino lhe havia preparado e, durante muitotempo, me interrogou insistentemente sobre oque conversamos com Sartre durante o passeiode ônibus, achando que não tinha sido apenascomentários sobre as mulheres, como eu dizia.A Lira de Castro AlvesAs façanhas juvenis ainda tinham seu lugar, devez em quando o pessoal aprontava. Fazia parteda turma o Silvio Lamenha, jornalista cultíssimo,que fazia uma coluna social completamentediferenciada das que existiam e viriam a existir,misturando futilidades e filosofia. Era gordo,grandão, carinhoso, e durante um carnaval noscontou o sonho que tivera: estava fantasiadode Nero e levava a lira de Castro Alves, ou seja,uma lira de metal que existia no túmulo de


Castro Alves. Decidimos tornar o sonho de Silviorealidade e planejamos e executamos um assaltoao Cemitério do Campo Santo, em plena luzdo dia. Era um grupo, estavam Glauber, PauloGil Soares, Calazans Neto e outros que não melembro. Arrancamos a tal lira, fomos vistos porum guarda e saímos correndo, perseguido porapitos. Calazans, o Calá, pequeno e não muitoágil, foi alcançado e levou os guardas na conversa,disse que estava correndo porque viu todomundo correndo, pensou que era uma alma,um defunto saindo da cova. A lira foi entreguea Silvio e ele se fantasiou de Nero, foi se exibirno baile do Bahiano de Tênis. Misturou bebidacom lança-perfume, o que era comum na época,deve ter exagerado, e entrou em coma. Naenfermaria do clube, durante horas de coma, osmédicos não conseguiram tirar a lira dele. Ele erauma figura e tanto. Fui encarregado de devolvera lira, telefonei para o cemitério, disse que erado Bahiano de Tênis, havia encontrado uma lirae coisa e tal. Fui lá e devolvi sem problema.95Jornalismo como TrincheiraAo mesmo tempo, o jornalismo. Comecei em1960 como crítico de cinema no Estado daBahia, um dos dois jornais dos Diários Associadosde Assis Chateaubriand (o outro era o


96Diário de Notícias). Alguns de nós já estavamtrabalhando em jornais, inclusive o Glauber,que passou a considerar a ocupação total daimprensa baiana como objetivo prioritário dageração. Ele planejou e comandou a ocupação,utilizando-se da sedução que exercia sobreos poderosos da cidade, do fato de OdoricoTavares, o presidente dos Diários Associadosna Bahia, estar inteiramente encantado comele. Também seduziu a família Simões, donado tradicional jornal A Tarde. E os semanáriostambém. Estávamos já alocados em toda a imprensa,mas ainda tateantes, sem dominar astécnicas jornalísticas, quando os orixás interferemoutra vez, materializam outro milagre:João Falcão, um milionário de esquerda, fundaum diário, o Jornal da Bahia, e praticamentenos oferece de presente. No pacote estão osmelhores jornalistas veteranos da terra, nossosprofessores: Ariovaldo Matos, Inácio de Alencar,José Gorender. Aceito o convite e vou paramais essa escola com Glauber, João Ubaldo,Joca Teixeira Gomes, Paulo Gil, FlorisvaldoMatos, José Contreiras e outros, e tambémcom os jovens artistas plásticos, os gravadoresEmanoel Araújo e Sonia Castro. Primeiro passo,um treinamento intensivo de dois meses, o jornalfuncionando normalmente, a todo vapor,com hora de fechamento, imprimindo mas não


indo para a rua, tiragem interna. A prática e ateoria ao mesmo tempo. Os mestres ensinandoo que-onde-quem-quando-como-por que, leade sublead, copydesk, editoração, diagramação,a arte dos títulos, a reunião de pauta e a genteindo atrás da notícia na rua.Logo no início do treinamento Glauber foi paraa editoria de polícia e eu fui designado repórterpolicial. Glauber me passa uma pauta na Delegaciade Jogos e Costumes e lá vou eu caminhandoem direção à tal delegacia, vou cruzar a ladeirada Misericórdia, olho para um lado e outro e vejouma mulher na calçada tirando um revólver dabolsa. Ela começa a atirar para o outro lado darua, um homem é atingido, cai e começa umaconfusão, a mulher é imobilizada. O homem sangrandono chão, calado. A polícia chega depressae dispersa a pequena multidão que se formara.Corro para o jornal e digo eu vi um crime, vi commeus próprios olhos e o Ariovaldo Matos faz asperguntas básicas quem e por que. Eu sei o que,o onde, o quando e o como, mas não sei o queme por quê, um desastre. Ariovaldo manda umrepórter experiente cobrir o crime e me mostrara matéria e o Glauber diz ok, mas <strong>Orlando</strong> escreveum box com o título Testemunha Ocular.E assim foi feito e Glauber ficou me chamou avida inteira de Testemunha Ocular.97


98Com o Jornal da Bahia circulando, um diário belamentediagramado e com o melhor conteúdoque a província já conheceu, toda a imprensabaiana foi forçada a se modernizar. Alguns denós ficaram no Jornal da Bahia, outros se espalharampelos Diários Associados, A Tarde, asrádios e a televisão recém-instalada. Voltei paraos Associados, fui chefe de reportagem, editorinternacional, editor de segundo caderno. Ossegundos cadernos, as editorias de cultura e arte,eram uma das metas importantes do plano deocupação. Foi editando o segundo caderno doDiário de Notícias que conheci Caetano Veloso,recém-chegado do interior, ele se apresentoucomo crítico de cinema e eu o incluí em uma páginade críticas que saía aos domingos. Trabalheicomo jornalista diário, ganhando o pão, durantemais de vinte anos, até abandonar as redaçõesem 1982, na Rádio Jornal do <strong>Brasil</strong>, no Rio.Fazendo CinemaEm 1962 desisto da Faculdade de Direito. Erademais: estudando advocacia pela manhã e teatroà tarde (constantemente se estendendo pelanoite), trabalhando como jornalista e de olhono cinema. Deixei de freqüentar as aulas, masmantive a matrícula durante anos, garantindo odireito de participar em todos os atos da univer-


Com Regina Rosemburgo, Salvador, 1962


100sidade e na política estudantil, na UNE. De olhono cinema porque a atração era extremamenteforte. Além da liderança que o cinema estavaassumindo naquele torvelinho de expressõesartísticas em que se transformara a cidade, outroaspecto também pesava: eu tinha visto muita filmageme a parafernália tecnológica me atiçavaa curiosidade. Isso foi possível porque durante adécada de 1950 e os primeiros anos da décadade 1960 vários filmes estrangeiros foram feitosem Salvador. Eu e alguns de meus amigos maiscuriosos, como Glauber, Paulo Gil, Roberto Pires,Walter Webb, acompanhamos muitas dessasfilmagens. Segui de perto as filmagens da produçãoargentina Magdalena, do alemão Sob o Solda Bahia, de um italiano sobre cangaceiros como Franco Nero. Os franceses apareciam sempre,com suas gruas, trilhos, arcos voltaicos, geradores,câmeras enormes. De tanto peruar as filmagensda superprodução Le Saint Modique, fiz amizadecom os produtores Sacha Gordine e JacquesGibout e pude estar ainda mais perto do set emoutra de suas realizações, Le Tout Pour le Tout.Essas produções estrangeiras foram importantespara o boom do cinema baiano, que estava começandoa acontecer naquele momento, não sóporque despertou vocações em garotos curiososmas também porque deixou equipamentos na


Como assistente de direção de Tocaia no Asfalto, 1962


cidade, inclusive câmeras, e treinou técnicos,maquinistas e produtores que iriam atuar nosfilmes baianos. Ou seja, em Redenção, Bahia deTodos os Santos, A Grande Feira, Barravento,Tocaia no Asfalto, O Pagador de Promessas, Deuse o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldadecontra o Santo Guerreiro, Sol sobre a lama, OCaipora, Onde a Terra Acaba, O Grito da Terra emuitos mais, quando Salvador se tranformou emuma Hollywood tropical e de esquerda. Algunsatores e atrizes que brilharam na época de ourodo cinema baiano tinham participado dessasproduções estrangeiras.102Acompanhei bem de perto as filmagens de Barraventoe de O Pagador de Promessas e fiz umestágio em A Grande Feira de Roberto Pires. Apalavra estagiário não fazia parte do vocabuláriocinematográfico da época, mas foi isso — faleicom Roberto quando as filmagens estavamcomeçando, a equipe já completa, e ele meconvidou para acompanhar tudo e ajudá-lo comalguns diálogos. Eu escrevia muito nos jornais,tinha duas colunas, e ele achava que eu escreviabem, podia ser útil. Na verdade só fiz duas outrês sugestões e, emocionado, escrevi as falas deGeraldo del Rey e Helena Ignês em uma cena emque estão na praia. Um ano depois Roberto meconvidou para primeiro assistente de Tocaia no


Asfalto, com bom salário e nome nos créditos. De1960 a 1964 trabalhei com muita intensidade emcinema, nos sets de longas-metragens e tambémrealizando filmes curtos em 16 milímetros, semmuito tempo para o teatro mas sem largar ojornalismo. Deve ter sido a época em que menosdormi na minha vida, escrevendo artigos diários,com responsabilidades de editoria em um grandejornal e filmando.Hollywood se AssustaMeu compadre Roberto Pires era um inventor.Em A Grande Feira ele já inventava tecnologia,principalmente para as difíceis filmagens naFeira de Água de Meninos, um enorme mercadoa céu aberto com ruas muito estreitas e cheiasde gente e mercadorias. Mas em Tocaia noAsfalto ele se desborda. Um exemplo: em umadas primeiras cenas o personagem de AgildoRibeiro (Agildo jovem, fazendo um papel dramático)aponta um revólver para a cabeça dopersonagem de Roberto Ferreira; em primeiroplano o revólver, em segundo plano, a poucoscentímetros, o rosto de Ferreira; um tiro e apareceum furo na testa de Ferreira e em seguidao sangue jorra. Uma tomada frontal, nenhumcorte, nenhum tratamento em laboratório. Acena foi filmada como está na tela. Como foi103


feito? Simples: uma testa falsa cheia de sanguecom um orifício já cortado mas recolocado, presoa um barbante pelo lado interno e passandosob os cabelos, controlado lá atrás por alguém.Esse alguém era eu, o assistente. Tudo ensaiado,escuto o tiro e puxo o barbante. Um take só, nãofoi necessário repetir. Efeito especial gerado diretamentena câmera.104Ele construiu um plano inclinado de madeira comuns dez metros de altura, montou em cima trilhose carrinho e um sistema de cabos, roldanase ganchos que permitia o controle a distânciado deslocamento da câmera, do travelling. Oresultado está no filme: um grande plano geralda cidade, feito do alto, que vai se estreitandoà medida que o ponto de vista se aproxima dosolo, centralizando um caminhão que vem desdemuito longe até chegar ao detalhe, enquadrandoa placa do caminhão. Ficaria horas falandosobre os inventos de Bob Pires, principalmentese chegássemos até um de seus últimos filmes,Abrigo Nuclear, de 1982, do qual participeicomo roteirista: uma cidade subterrânea e comalta tecnologia, com elevadores até a superfícieonde um carro se desloca sem tocar no chão,tudo feito com lixo industrial, com carcaçasde televisão, garrafas plásticas, pneus velhos,tubos vazios de pasta de dentes e sei lá o que


mais. Mas todas essas habilidades são secundáriasse comparadas à façanha de seu primeirofilme longo, Redenção, de 1958, para o qualele construiu uma lente anamórfica, uma lentecinemascope, a Igluscope. O pai dele tinha umaloja de equipamentos médicos e ópticos, ondeaprendeu a fazer lentes. Fez também o sommagnético, cortando com precisão uma fita degravador sonoro, aqueles de rolo, e colando aestreitíssima fitinha magnética de som na fitade imagem, colando à mão.Um ano depois, quando Redenção foi apresentadono Rio e São Paulo, aparecem na Bahia doisFilmando Festa, seu primeiro documentário, Salvador, 1961


Com Conceição, Salvador, 1962emissários da Motion Pictures Association. Elesvêm conversar com Roberto, achando incrível afeitura dessa tecnologia nos confins da AméricaLatina. Examinaram a lente Igluscope e o sommagnético artesanal e foram embora. Poucosmeses depois as lentes anamórficas foram patenteadaspelas empresas da Motion Pictures.Eles patentearam o conceito anamorfótico,qualquer tipo de lente anamórfica. E tambémmudaram a tecnologia sonora do magnéticopara óptico. Fizeram uma mudança tecnológicaque resultou em muitos gastos para a indústria,mas fecharam de novo a tecnologia, impedindoque ela fosse reinventada ou utilizada em


uma garagem do <strong>Brasil</strong>. Acho que os inventosaplicados em Redenção mudaram a indústria docinema norte-americano. É um fato que nuncame saiu da cabeça, nem da de Roberto. Delírio?Talvez não. Por que aqueles caras foram lá, porque aquela visita, por que aquele interesse e porque acontece pouco tempo depois a mudançatecnológica?O Amor Dentro da CâmeraFilmei meu primeiro curta-metragem, Festa,em 1961, ficou pronto no ano seguinte. Pegueiuma câmera 16 milímetros, de corda, com meuamigo Denis Araújo, arranjei dinheiro com meupai para duas latas de negativo e para o laboratório,Roberto Pires ajudou na montagem e naprimeira e única cópia. Equipe de duas pessoas:eu e Denis. E meu jipe de guerra. Era um documentáriosobre um carnaval fora de época queacontece em Salvador, a Segunda-feira Gorda daRibeira. Comecei a filmar às dez horas da manhãe logo na primeira tomada aconteceu uma coisamágica. Tenho de contar a história.107Um ano antes tinha conhecido uma meninaque me impressionou até as raias da alma, umasertaneja morena chamada Conceição. Uns amigoscomuns nos apresentaram em um ônibus,


108conversamos durante uns dez minutos, a forteimpressão que causamos um no outro foi muitoevidente. Tentei encontrá-la e não consegui, osamigos não sabiam, alguém disse que ela tinhavoltado para o interior. Aquela beleza de criatura,aquele esplendor, havia desaparecido e eucom sua imagem na cabeça, seu sorriso, sua voz.Me achava meio bobo com essa história, comtanta agitação em volta, tantas garotas. Masnão a esquecia e estava perdendo a esperançade reencontrá-la. Começo a rodar meu primeirofilme, o olho no visor da câmera enquadrandoas pessoas que passam e de repente Conceiçãoentra em foco, sorrindo. Pensei que era umailusão óptica. Ela não continuou andando, ficouparada, sorrindo e olhando para a câmera, elatinha me visto, ficamos olho no olho atravésda câmera. E aí se revelou e se fixou essa nossarelação que dura até hoje.Televisão e ExércitoMeu segundo filme foi Imagem da Terra e doPovo, feito para a televisão, produção de Glauber,30 minutos, 16 milímetros. Um retrato deSalvador em 1962, de sua miscigenação étnica ecultural, tendo como roteiro um livro de OdoricoTavares, chefe dos Diários Associados e, portanto,da recém-inaugurada TV Itapoã. Eu estava


Com Conceição, no baile de formatura do CPOR,Salvador, 1961


110participando de uma oficina sobre linguagemtelevisiva, uma iniciativa da própria Itapoã paraformar seus quadros, e Glauber teve a idéia,convenceu Odorico e filmei profissionalmente,com uma equipe completa, ou seja, diretor, câmera,som, produtor e um assistente. Era umanovidade absoluta filmar para a televisão e maisnovidade ainda o fato de não haver copião,ou seja, as imagens em positivo para fazer amontagem. Para evitar os custos e a demora demandar fazer copião no Rio ou São Paulo, a TVItapoã revelava o filme e a montagem era feitadiretamente com o negativo. Errar um corte eraum desastre. O filme só ficava positivo ao serexibido na televisão.Com uma câmera 16 milímetros da TV Itapoãfilmei exercícios militares dos alunos do Centrode Preparação de Oficiais da Reserva, o CPOR,que também foram ao ar no mesmo processo,montadas no negativo. Porque também teveisso, além de tudo que eu fazia nessa época, fuiconvocado para o curso do CPOR, exclusivo parauniversitários. Um ano e meio, 1960/1961, massem grandes dificuldades, as aulas e treinamentosaconteciam apenas nos sábados, durante operíodo escolar, e mais assiduamente durante asférias. A registrar que o comandante do CPORera o general Sylvio Frota, que teria papel de


destaque depois, na ditadura militar, como umdos falcões que queriam perenizá-la. Ás vezesaconteciam discussões acaloradas de alunos comSylvio Frota, tendo como pano de fundo a RevoluçãoCubana e a situação política brasileira,conflituada pela renúncia de Jânio Quadros epela conspiração militar que tentou impedir aposse de Jango Goulart. O general ultraconservadoragüentava bem os embates com os alunos,tanto que, na minha lembrança, só deu voz deprisão a um de nós, o escritor Ciro de Mattos,por desrespeito, por haver utilizado a expressãogorila. Me saí bem, recebi a patente de Oficialde Intendência R2, ou seja, da reserva. Fui convidadopara seguir treinamento na Academia deAgulhas Negras e fazer carreira e não aceitei.111Havia coisas mais interessantes para fazer como,por exemplo, show de crítica cinematográfica.Minha atividade jornalística mais intensa era ade crítico cinematográfico, aquela crítica ousadae propositiva que se fazia na onda do CinemaNovo, como parte do Cinema Novo. Elegerammepresidente da Associação de Críticos Cinematográficosda Bahia-ACCB e inventei uma novamodalidade para o exercício da profissão. Oseventos aconteciam em bairros periféricos deSalvador e nas cidades do Recôncavo Baiano,para onde nos deslocávamos de barco.


112E também em Feira de Santana, onde estavamorando e filmando meu compadre Olney SãoPaulo. Um produtor organizava tudo, enchia-sea sala e a trupe da ACCB aparecia barulhenta:uns três críticos, duas atrizes, uma cantora. Emestilo jogral os críticos situavam o filme em seucontexto histórico e artístico, com a ajuda dasatrizes. Após a exibição o show continuava, acantora interpretava uma música do filme ouque tivesse alguma coisa a ver com ele, os críticose as atrizes assumiam personagens para discutira história: o que diria um bêbado sobre esse filme?e uma dona-de-casa? e um operário? qualseria a opinião de um padre? e a de um general?Era muito divertido, éramos convidados paravoltar às cidades, tínhamos uma agenda cheia.Caetano era muito assíduo nessas caravanas, umpersonagem perfeito para as performances jáque era crítico, cantava e tocava violão. MariaBethânia também participava, e a atriz GessyGesse, e a Conceição, agora estudando na Escolade Teatro que eu já havia deixado para trás. Essainvenção, crítica-show, tinha muito a ver com oespírito do Centro Popular de Cultura, o CPC,movimento cultural-político da UNE, cuja versãobaiana estava sendo organizada em 1962 e queme entusiasmava.


As Auroras de CopacabanaA essa altura, o jovem diplomata Arnaldo Carrilhojá entrara na História do Cinema <strong>Brasil</strong>eiroao enviar os primeiros filmes do Cinema Novo(Barravento, Porto das Caixas, Couro de Gato)para festivais europeus, lançando o movimentopara o mundo. Já quase findando 1962 Carrilhoentrou na minha vida: me deslocou para o Riode Janeiro, onde eu organizaria minha conexãocom o cinema e definiria uma relação amorosa.Cinéfilo apaixonado, ele inventou uma escola decinema compacta, com duração de nove meses,para uma só turma, às expensas do Itamaraty eda Unesco. Escolheu jovens cineastas ou pretendentesa cineastas nos Estados que estavam produzindocinema, Rio, São Paulo, Bahia, Minas,Pernambuco, e levou-os ao Rio para um cursointensivo com o documentarista sueco Arne Sucksdorff,celebridade internacional, autor de AGrande Aventura (Palma de Ouro em Cannes),Ritmo da cidade (Oscar), O Vento e o Rio (Festivalde Veneza).113Antes de viajar para o Rio recebi Arne e suamulher Ingrid (curiosamente Ingrid Bergman)em Salvador, no histórico Festival do Cinema<strong>Brasil</strong>eiro da Bahia, uma celebração do CinemaNovo que organizei, com patrocínio do jornal ATarde. Carrilho trouxe o casal sueco para o festi-


114val, para que Arne conhecesse as pessoas. Reuniquase todos os filmes Cinema Novo já produzidosaté aquela data e muita gente: Glauber, NelsonPereira dos Santos, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni,Joaquim Pedro de Andrade, Sérgio Ricardo,Miguel Torres, Alex Viany, Paulo Emilio Salles Gomes,produtores, atores, um montão de atrizes,Odete Lara comandando a massa. Arne e Ingridforam fortemente impactados pela efervescênciacultural baiana, pela negritude majoritária, pelaexorbitante sensualidade, pela festa dionisíacadesatada pelos mais de cem cinemanovistasque lá estavam, as comilanças, os passeios debarco, os beijos ardentes em público, a nudezem praias desertas. O casamento deles acabou,Ingrid voltou transtornada para a Suécia e Arneficou no <strong>Brasil</strong> pelo resto da vida, se casou comuma mulata, depois com uma índia.Eu tinha de ir para o Rio mas estava atormentadocom isso. O pivô do conflito era Conceição:ela estava noiva quando nos conhecemos e nosapaixonamos e a dificuldade era terminar o talnoivado, o rapaz não admitia, desesperado,ameaçando se matar. E os pais dela, recémchegadosdo interior, não entendiam o queestava acontecendo, a transformação por queestava passando a filha, a Escola de Teatro, asnoites fora de casa, e temiam a tragédia que o tal


noivo, amigo da família, prometia aos prantos.Um dramaço. A família da mãe dela, tambémda Chapada Diamantina, era totalmente contramim porque meu bisavô tinha sido inimigo dobisavô dela nos idos do século XIX. Uma loucura,com lances de Otelo e de Romeu e Julieta. Se meausentasse, pensava, minha amada seria tragadapela família e eu a perderia para sempre, eu meesvaziaria. Carrilho sentiu o drama e arranjouuma bolsa de estudos para Conceição, um cursode teatro no Rio.Esse tempo no Rio significou um enorme avançoem minha vida. A oficina de Arne Sucksdorff,a minha escola de cinema, foi um sucesso. OSuecão, como o chamávamos, era fotógrafo emontador de altíssima competência e revelouseum grande professor, além de nos apresentarequipamentos de última geração (câmeraÉclair, gravador Nagra, moviola Steenbeck), queficariam no <strong>Brasil</strong>, importados pelo Itamaraty.Também trabalhamos com roteiro, explorandoas diferenças e as confluências das dramaturgiase das linguagens da ficção e do documentário.O método do Suecão era direto, prático, mesmoquando o tema era dramaturgia — nosprimeiros exercícios ele exibia trechos de filmese nós escrevíamos o roteiro desses trechos, queeram comparados (as diferenças entre as várias115


116versões provocavam gargalhadas) e o processoseguia até se chegar a um consenso e só entãopassamos a escrever nossos roteiros. Todomundo escrevia a mão, é claro, mas o NelsonXavier, aluno vindo de Pernambuco, usavauma máquina de escrever, aquelas máquinasmecânicas barulhentas da época, e a gente alitentando se concentrar e ouvindo o toc-toc-tocimplacável de Nelson. Também o José Wilkertinha vindo de Pernambuco, ele e Nelson Xavierem missão do Movimento de Cultura Popular,o CPC pernambucano. Todo mundo com vinteanos ou pouco mais, me lembro de VladimirHerzog, Dib Lutfi, Eduardo Escorel, Luiz CarlosSaldanha, Arnaldo Jabor, Alberto Salvá. DaBahia vieram, além de mim, Raimundo Mendonçae Geraldo Portela. A oficina era mão namassa o tempo todo, filmando e editando. Comdireito a conversas compassadas e deliciosascom Humberto Mauro, que estava montandoseus curtas em uma sala ao lado do nosso salãode trabalho, no Instituto Nacional de CinemaEducativo, Praça da República.O aprendizado intensivo corria misturado comum intenso contato com os cineastas do Rio (LeonHirszman, Cacá Diegues, Gustavo Dahl, JoaquimPedro de Andrade, David Neves, Paulo César Saraceni,Luis Carlos Barreto, Zelito Viana, Alberto


Shatovski) e com o pessoal da Bossa Nova (NaraLeão, Carlinhos Lira), que eram uma turma só e estavamenvolvidos no CPC Rio. Os dias emendavamcom as noites e com as auroras de Copacabana.E no meio do redemoinho, o namoro solto, livree ardente, Conceição e eu. O tal noivo mandadoàs favas, as famílias escandalizadas mandadas àsfavas e o Rio, maravilhoso, como cenário e berçodo romance. Meu coração e minha cabeça ferviamjuntas, a sensação era que o presente e o futuro seconfundiam, era como se fossem a mesma coisa, omesmo tempo. Não fico para a segunda parte daoficina, gerada na própria oficina, que foi a produçãodo documentário Fábula de Copacabana,que Sucksdorff realizou com os alunos. Eu estavaansioso para voltar a Salvador, integrar-me aoCPC, fazer filmes e voltar aos braços de Conceição,que já havia regressado, a bolsa terminara. Comeback to Bahia.117Agito no CPCEstamos no governo Jango e isso significava ocoroamento das vitórias da minha geração, daminha turma. Não apenas porque a esquerdaestava no poder, também porque a juventudeestava no poder, nós os estudantes e os jovensartistas e intelectuais. O instrumento desse poderera o Centro Popular de Cultura da União


118Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE, fundadoem 1961 com o objetivo de, através da arte e dainformação, despertar a consciência política nopovo, como dizia o manifesto inicial. Era umavertente do governo transformador de Jango,com recursos do Estado e integrando umaampla frente antiimperialista com o ComandoGeral dos Trabalhadores-CGT, as Ligas Camponesas,a Frente de Mobilização Popular e outrasorganizações de massa. O CPC expandiu-serapidamente e teve de pluralizar-se para CPCs,com núcleos fortes no Rio, em São Paulo, emPernambuco e na Bahia. Todos os movimentosartísticos de esquerda afluíram para os CPCs,cujas ferramentas eram o teatro, a música, adança, as artes plásticas, a literatura e o cinema.Os objetivos eram divulgar e discutir as reformasde base em andamento (intervenções radicaisnas estruturas agrária, administrativa, bancária,fiscal, tributária e política) e entrelaçar, fundiras manifestações populares de cultura com oimpulso transformador dos estudantes e dosjovens artistas revolucionários. Já não pareciatão delirante aquela idéia que circulou entrenós na época da política secundarista: o mundosó será transformado através da arte.Toda a moçada baiana, todo aquele movimentovibrante e crescente confluiu para o CPC. Discu-


tíamos com os operários, principalmente os daPetrobras, e com as organizações camponesas detodo o Estado da Bahia, os projetos e os temasdas peças, shows, músicas que produzíamos emprofusão. Os espetáculos eram apresentados nagrande Concha Acústica do Teatro Castro Alvese nas cidades do interior, em caminhões transformadosem palcos. E nos sindicatos, nas fazendas,em praça pública. As platéias aumentavama cada dia. A estréia de Conceição como atriz,por exemplo, foi no espetáculo Arroz, Feijão eSimpatia, na Concha Acústica, diante de cincomil estudantes e operários. Havia intenso intercâmbiocom o CPC paulista, principalmente naárea de teatro (Vianinha, Boal, Guarnieri), como do Rio, na área de cinema (o pessoal de CincoVezes Favela) e com o de Pernambuco, maisvoltado ao enlaçamento com as manifestaçõesculturais populares. Na Bahia a música era forte,a irreverência de Tom Zé marcava os espetáculos,Capinan criou um impressionante Bumba-meuboi.Aconteceram polêmicas estéticas internas,e bem quentes: reação contra a influência doestilo do Teatro de Arena nos espetáculos CPC,Glauber Rocha (ou Cinema Novo) e CPC Bahiaversus CPC Rio sobre abordagens cinematográficas.Não vou me deter nisso, está tudo ou quasetudo historiado em vários livros.119


120O CPC era organizado em áreas de atuação eeu me engajei no teatro e no cinema. Na áreade teatro participava do grupo de escritores dosespetáculos de esquetes, uma das modalidadesmais utilizadas na Bahia. Escrevíamos pequenascenas cômicas sobre as atualidades: a política,o imperialismo, o custo de vida, a mais valia,os absurdos do capitalismo. O mais engraçadopossível. As cenas eram montadas rapidamente,produzíamos uns dez esquetes por semana. Nessegrupo estavam João Ubaldo Ribeiro, Glauber,Luis Carlos Maciel, Capinan e as reuniões de trabalhoeram muito divertidas, criávamos as cenascômicas rindo muito, chorando de rir. Uma tardeestávamos na casa do sogro rico de Luis CarlosMaciel, trabalhando às gargalhadas e tomandoo uísque do sogro e aparece a Conceição parapegar os textos, os atores estavam esperando. Elanos vê naquela esbórnia, e ainda sem os textosterminados, e nos dá o maior esporro, burgueses,filhinhos-de-papai irresponsáveis — comose pode fazer uma revolução popular bebendouísque em casa de milionário? Aceitamos a crítica,demonstramos culpa, prometemos trabalharsério e só beber cachaça. Ela não gostou da ironiae saiu batendo porta e voltamos a rir. Em compensaçãoescrevemos uma cena engraçadíssimapara ela, inspirada no episódio.


Com Conceição, 1963


122Em fins de 1963 o CPC produz o espetáculoRebelião em Novo Sol, uma montagem multimídia,dirigida pelo Chico de Assis, do texto deAugusto Boal Mutirão em Novo Sol. Não existiaa palavra multimídia, mas o conceito lá estava:uma arte cênica que misturava e fundia teatro,música, dança e cinema. Geraldo Sarno haviaregressado de seu curso de cinema em Cuba,trouxe documentários do cinema revolucionáriocubano e fomos encarregados, ele e eu, derealizar a parte cinematográfica do espetáculo.Fizemos um documentário sobre as Ligas Camponesasda Bahia, com ênfase no líder Filipão,um personagem fascinante, negro, muito alto,carismático. Há um momento em que Filipão levantasua espigarda de caçar passarinhos dianteda câmera, como um guerreiro, e desdenha daerudição política da equipe, diz que comunismonem menos comunismo, a revolução sou eu. Nosmetemos pelo sertão baiano com o fotógrafoWaldemar Lima, em uma experiência que estána raiz da obra cinedocumental que Geraldo iriadesenvolver nos anos seguintes e também na dosfilmes que realizei nos anos 1970.Além do documentário com meia hora de duração,que abria o espetáculo, também fizemoscenas documentais e ficcionais, soltas, para acomposição multimídia. Por exemplo: em de-


terminado momento, na tela de cinema sobreo palco, um pistoleiro dispara um tiro e um atorno palco, um camponês, é atingido. O contrasteentre a imagem gigante do pistoleiro na tela ea pequenez do camponês sozinho no palco eraforte. Quem fazia o pistoleiro lá na tela era eu,um detalhe que terá importância no desenrolardos fatos. Uma curiosidade técnica: como tínhamospouco tempo para entregar a encomendaao Chico de Assis (no CPC tudo era feito commuita rapidez) e aconselhados por Roberto Pires,filmamos em película reversível, que grava diretamenteem positivo (não passa pelo negativoe é uma cópia só). Sob a orientação de Robertorevelamos o filme lá mesmo em Salvador, outraproeza tecnológica na província. Depois, comcalma, poderíamos fazer um contratipo, umnegativo, para perenizar a obra. Rebelião emNovo Sol foi o espetáculo de maior público e demaior impacto nos dois anos e meio de existênciado CPC da Bahia. Glauber ficou tão tocadocom o documentário que abria o espetáculoque diria sobre ele, tempos depois, em seu livroRevolução do Cinema Novo: montado em estiloeisensteniano-vertoviano, o filme influenciariaa epicidade de Deus e o Diabo na Terra do Sol.Enquanto isso, em comício multitudinário noRio, Jango, ao lado da deslumbrante primeiradamaTeresa, soprava os ventos da revolução.123


Estávamos a ponto de mudar o <strong>Brasil</strong>, primeiropasso para mudar o mundo.Golpe124Eu estava no apartamento de meus pais em Salvador,que estavam dividindo o tempo entre Lençóise a capital para ficarem mais próximos dos filhosem tempos tão agitados. No dia 1º de abril de 1964meu pai me acordou cedo, fato inusitado, e disseestourou a revolução. Saltei da cama achandoque enfim chegara a hora, era a nossa revolução.Mas as notícias no rádio não eram tão alentadoras,alguns generais estavam fiéis a Jango masoutros avançavam com tropas contra o governo.Corri para o centro da cidade, para a redação dosemanário Folha da Bahia, onde trabalhava commeus antigos mestres Ariovaldo Matos e JoséGorender. No caminho comprei o jornal A Tardee, na primeira página, duas notas oficiais, do governadordo Estado e do general comandante daVI Região Militar, a da Bahia, garantindo fidelidadeao presidente. Na redação, decidimos lançarimediatamente um número extra conclamando apopulação a unir-se ao governador e ao exércitoda Bahia em defesa do presidente Jango.Estamos nessa quando alguém nos traz umasegunda tiragem d’A Tarde sem as notas oficiais


do governador e do general, com dois espaçosem branco no lugar delas, coisa que eu nuncatinha visto. Toca o telefone, Ariovaldo atendee alguém diz a ele que devemos sair imediatamenteda redação, que corremos perigo de vida.Pelo sim pelo não Ariovaldo ordena a retirada.A redação ficava no terceiro andar de um prédiona Praça da Sé e decido descer pela escada, jásaindo para a rua cruzo com soldados com uniformede combate, que entram embalados noprédio. Me afasto e fico observando os janelõesda nossa redação e o aviso telefônico misteriosoé confirmado: vejo os soldados entrando lá equebrando coisas, um deles tem um machado(depois soube que realmente quebraram tudoem pedacinhos). Voltei para casa atordoado edisse a meus pais que estava em marcha umaluta armada e que eu precisava da única armada família: o velho revólver de meu pai, aindado tempo da Lagoa. Eu estava mesmo atordoado,só voltei ao entendimento quando meu paidisse não é revolução nem há luta armada, é umgolpe militar e vi na TV Itapoã, preto-e-branco,que era isso mesmo.125Um período assustador, suspense contínuo.Amigos próximos são presos, a comunicaçãopor telefone fica difícil, ninguém atende, vouperdendo contato com todo mundo. Nesse mo-


126mento eu estava participando, entre os muitosafazeres, na Campanha Nacional de Alfabetizaçãoe na semana do golpe aparecia nas telas doscinemas da cidade, no cinejornal da Iglu Filmes,comandando um teste para monitores do MétodoPaulo Freire. Era um evento enorme, centenas decandidatos no estádio pequeno da Fonte Nova eeu dando entrevista. Na manhã do dia 3 de abriluma pessoa da equipe telefona: policiais foramà sede da Campanha de Alfabetização à minhaprocura. Pego uma muda de roupa, escova, pasta,sabonete, algum dinheiro e saio da casa de meuspais para a clandestinidade. Por coincidência, oumelhor por sorte (o argentino Ernesto Sábato eos garimpeiros de Lençóis dizem que coincidênciasnão existem), a família de Conceição mudoude casa exatamente no dia 1º de abril e fui paraesse novo endereço, que ninguém ainda sabia eque não foi passado para ninguém. Meu irmãoRonaldo também foi para lá. Conceição foi expulsada Escola de Teatro e, na noite em que issoaconteceu, recebeu a visita de uma vizinha quemal conhecia. A vizinha veio dizer que seu noivo,oficial da policia militar, sabe que o namoradodela, o <strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong>, está escondido nesta casa(ela frisava bem o nesta casa) mas que ficassedespreocupada porque o noivo não ia fazer aprisão. Ronaldo e eu ouvindo lá do quarto, melembro dos olhos esbugalhados dele.


Corremos para outro refúgio, a casa da mãe demeu amigo Walter Webb, produtor de cinema.Uma família italiana, com muita comida e muitovinho. A casa, antiga, tinha um espaço ocultoentre o telhado e o forro de madeira pesada,um esconderijo de verdade, bem planejado,difícil de ser descoberto. A idéia era que meuirmão e eu nos escondêssemos rapidamente ali sechegasse alguém suspeito. Fizemos treinamentopara subir rapidamente até o esconderijo e umavez tivemos de subir a sério porque bateramfortemente na porta e ouvimos alguém gritandopolícia. Foi uma brincadeira do irmão do WalterWebb, que era realmente policial, escrivão dapolícia. Minha foto aparecia na televisão, nalista de procurados por subversão, e começarama pressionar meus pais com telefonemasmisteriosos, durante a noite o telefone tocavaa cada meia hora. Um dia minha mãe atendeuo telefone e uma voz feminina fez várias perguntas,se o filho dela, <strong>Orlando</strong>, tinha um jipede tal cor, se era amigo de uma moça chamadaConceição — e disse que tinha uma má notícia,<strong>Orlando</strong> ultrapassara uma barreira policial, nasaída da cidade, e tinha sido metralhado. Minhamãe desmaiou, teve de ser atendida por médicos,teve de ser levada até meu esconderijo para mever com os próprios olhos. A angústia dela e demeu pai estava alimentada pela crença de que127


Com Tom Zé, Salvador, 1964


a Polícia Militar poderia me matar a qualquermomento.Vesti um paletó e fui direto ao quartel-generalda VI Região Militar, na Mouraria, me apresenteie pedi para falar com um coronel, um nome queWalter Webb tinha me fornecido. Fiquei esperandoumas duas horas na ante-sala até ser recebidopelo tal coronel. Ele examinou uns papéis,disse que eu era acusado de subversão da ordemnos processos referentes à Folha da Bahia, ao CPCe ao Partido Comunista. Eu não seria recolhido àprisão mas deveria me apresentar ali no quarteltodos os dias, incluindo sábados e domingos, àsseis horas da manhã, para interrogatório. Durantetrinta e seis dias seguidos me apresentei nohorário e encarei duelos verbais com um tenentee depois com um coronel, alguns interrogatórioseram sem pé nem cabeça, demonstrando a faltade informação dos golpistas com relação às minhasatividades. Chegava às seis da manhã, meliberavam depois da meia-noite e tinha de estarno outro dia às seis da manhã.129Em um dos interrogatórios o tenente exibiu naparede a cena de Rebelião em Novo Sol em queeu atirava com um rifle, como prova irrefutávelda minha atividade subversiva. Em seguida tiroudo projetor a cópia única do documentárioque eu fizera com Geraldo Sarno e começou a


130destruir o filme, partia a película e jogava ospedaços no lixo, o que nós estamos fazendo éjogar seus filmes e vocês todos no lixo da Históriae depois vamos jogar o lixo no incinerador. Eudisse que ele estava destruindo uma obra de artee isso era crime, que ele estava cometendo umcrime. O tenente ficou vermelho de raiva, desfezo rolo do filme, partiu-o em grandes pedaços ejogou tudo no lixo enquanto gritava que o criminosoera eu, que tinha tentado vender a Pátriaaos soviéticos, que recebia dinheiro de Moscoupara subverter a ordem e enganar o povo. Euinsisti: destruir livros, pinturas e filmes é crimecontra a humanidade e a inteligência. Ele ficoucalado um tempo, me fixando, controlando-se,e me mandou sair. Eu tinha perdido um pedaçode mim, doía muito, Rebelião em Novo Sol nãoexistia mais.


Capítulo IIIPré-TropicáliaOs interrogatórios no quartel da Mouraria foramsuspensos, eu tinha apenas de me apresentartodas as segundas-feiras pela manhã, para controle.Retomei minhas atividades nos DiáriosAssociados, seguindo a atitude generalizadada militância cultural baiana, que era voltara ocupar os espaços em que estávamos antesdo golpe e resistir à nascente ditadura militar.Neste momento me somo a um projeto queirá revolucionar a música brasileira. O novelocomeça em umas reuniões, às sextas-feiras, devarar a noite até o sol nascer, na casa da atrizMaria Muniz, onde a turma se encontrava paraconversar, cantar e tomar sopa. Era a Sopa daMaria. Aí estavam Gilberto Gil, meu colega noMarista, Caetano e sua irmã Maria Bethânia esua amiga Maria das Graças, Tom Zé e outrosmúsicos que, em pouco tempo, transformaramaquelas noitadas em concertos íntimos, apresentandosuas novas canções. Às vezes as músicasnasciam ali mesmo, parcerias eram formadas.Eram canções tão bonitas, tão inspiradas, quenos emocionávamos profundamente, inclusiveos seus autores.131


Com Tom Zé e Maria Bethânia, Salvador, 1964


Foi quando Roberto Santana, primo do Tom Zé,sugeriu a montagem de um show e me convidoupara ajudá-lo na produção. Ele dirigiu, eu meocupei da propaganda e tocamos juntos a produção.O show, Nós por Exemplo, foi apresentadono Teatro Vila Velha em 22 de agosto de 1964,palco vazio com alguns praticáveis baixos, os instrumentose nove músicos e cantores: Caetano,Gil, Tom Zé, Fernando Lona, Maria Bethânia,Gal Costa (então Maria das Graças), o violonistaerudito Alcivando Luz, o tecladista Perna Fróes, opercussionista Djalma Correia. Na primeira parte,Caymmi, Noel Rosa, Bossa Nova e uma jóia de Batatinha,um operário compositor, linotipista dojornal onde eu trabalhava, Sofrimento e Padecer(meu sofrimento ninguém vê, sou diplomado emmatéria de sofrer). Na segunda parte, as músicasnascidas nas madrugadas da casa de Maria,com ovações estrepitosas para Maria de Gil, SolNegro e É de Manhã de Caetano. Uma noite deromper corações, um sucesso além de qualquerprevisão, uma comoção na cidade. Repetia-se oimpacto, o fenômeno das Jogralescas do finaldos anos 1950.133Duas semanas depois outro show, com o mesmonome e novas músicas, o Vila Velha superlotadosem querer parar de aplaudir Moreninha de TomZé, Samba Moleque de Gil, Sim, Foi Você de


134Caetano — e uma multidão do lado de fora doteatro querendo entrar. Sempre sob o comandode Roberto Santana, o terceiro show, algunsdias depois, foi apresentado no Teatro CastroAlves, bem maior que o Vila Velha, mais de mile quinhentos lugares. Desta vez o nome era aindamais provocador, Nova Bossa Velha & VelhaBossa Nova, com arranjos e harmonias que jádelineavam a explosão artística que estava sendogestada. Seguiram-se alguns shows individuais(João Augusto dirigiu Mora na Filosofia comBethânia, eu dirigi Borandá com Gil e Terra deNinguém com Fernando Lona) e logo a turma sedispersou. Bethânia voou direto para o sucessode Carcará e três anos depois Caetano, Gil, TomZé e Gal, como todo mundo sabe, inventarama Tropicália.Jorge Amado CasamenteiroNo fim de 1964 a pressão da ditadura voltou ase manifestar, fui intimado para novos interrogatórios,proibido de sair da cidade e demitidodos Diários Associados. Ser preso a qualquermomento voltou a ser uma possibilidade angustiante,principalmente para minha família.Poderia ser preso, poderia desaparecer, muitagente estava desaparecida. Dormia nas casas deamigos e parentes, não pernoitava duas vezes


no mesmo lugar. Recebo um recado de JorgeAmado para ir à sua casa, leve a Conceição. Fomos.Ele ratificou que, apesar da aparência decalmaria, eu ainda corria perigo. As informaçõeseram importantíssimas naquela situação e Jorgetratava de ter acesso ao que podia. Algunsamigos nossos, mesmo presos, conseguiam informaro conteúdo de seus interrogatórios aosque neles tinham sido citados e Jorge souberaque estavam fazendo muitas perguntas a meurespeito. De repente ele perguntou: vocês doisquerem se casar? Conceição e eu nos olhamossurpreendidos. A gente não tinha pensado nisso,tínhamos vontade de morar juntos mas casar depapel passado, como sugeria Jorge, não estavanos planos. Vocês foram feitos um para o outroe vão ficar juntos de qualquer maneira, disse ele,e explicou seu plano: um casamento de arromba,com ele e Zélia como padrinhos, mil convidadose muita notícia nos jornais. Disse que eu tinha desair da semi-clandestinidade, uma situação queera um prato feito para desaparecerem comigo—se a gente fizer esse casamento você volta aser a pessoa pública que era antes, abre umacoluna no Jornal da Bahia, e aí fica mais difícilpara eles.135A relação de Jorge com os golpistas era umarota de colisão de evidência internacional e os


Casamento com Conceição, Salvador, 1965


generais não sabiam o que fazer com o grandeescritor, na época o brasileiro mais conhecido pelahumanidade — e como não sabiam o que fazer,não tocavam nele. E Jorge vinha nos oferecer essasua imunidade, nos acobertar com sua intocabilidade.Conceição chorou ao ouvir a proposta.E assim foi feito, Jorge e Zélia produziram afesta, distribuíram um convite chiquérrimo feitopelo Emanoel Araújo para todas as pessoasimportantes da cidade. Nos casamos na igrejadourada de São Francisco com uma multidãode convidados, Fernando Lona e coro cantandoem latim, os flashes dos fotógrafos espoucando,a TV Itapoã, os dois cinejornais da cidade (LeãoRosemberg e Iglu) filmando. Éramos um jovemjornalista e uma jovem atriz em início de carreirae, por artes de Jorge, a mídia nos tratavacomo celebridades. No dia do casamento Zéliaadoeceu e quem acompanhou o padrinho Jorge,como madrinha, foi a filha deles, Paloma, umamenininha (ainda hoje, mais de quarenta anosdepois, Paloma se lembra de sua atuação comomadrinha e guarda o vestido que usou naqueledia). O plano de São Jorge Amado começou afuncionar ali mesmo no casamento: o João Falcãome propôs voltar a trabalhar no Jornal da Bahia emeus companheiros da destruída Folha da Bahia,alguns saindo da prisão, reagrupados em um137


jornal voltado ao comércio, o IC ShoppingNews,me convidaram para ser editor-chefe.138No dia seguinte, começando a lua-de-mel emuma praia na ilha de Itaparica, somos surpreendidospela aparição da equipe da Iglu Filmes,o Braga Neto e o Oscar Santana, apontando acâmera em nossa direção, pedindo pra gente sebeijar. Que brincadeira é essa? Vocês ficarammalucos? E o Braga Neto: o Jorge pediu prafilmar a lua-de-mel também. A lua-de-mel, forado alcance da Iglu Filmes, se estendeu a Lençóis,fomos agradecer às divindades do jarê a graçada nossa união e nos energizar nas cachoeiras.Tínhamos de refazer as forças porque havíamossuperado o abalo de 64 e havia um caminho pelafrente a percorrer. Não era como antes, quandoeu tinha a sensação de que presente e futurohaviam se juntado em um só tempo: agora tínhamosde construir, outra vez, o futuro. A ditaduramilitar já não nos parecia o monstro assustadorde um ano atrás e ouvíamos cada vez mais, atéem Lençóis, a frase, ou a palavra-de-ordem, quese ajustou ao momento: a luta continua.Cultura Enfrenta DitaduraDe volta a Salvador, encontro muitos sinais deque, realmente, o bicho não era tão feio como


parecia. Estava em curso o período, 1964 a 1968,em que os setores progressistas da sociedadebrasileira entestaram abertamente a ditadura,em um movimento crescente que culminou nasgrandes passeatas de 1968 e foi barrado peloAI-5, o segundo golpe. A faísca da resistência seespalhou por todo o País, como se sabe. Na Bahiahavíamos tido baixas, alguns mortos, algunsexilados, muitas pessoas sumidas, mas a faíscareacendeu o incêndio que havia sido apagadopelos golpistas: uma nova onda de criatividadee vasta produção cultural é ainda maior que aanterior. Em 1965 é lançado Deus e o Diabo naTerra do Sol e as cabeças dos jovens artistas recomeçama ferver e com muitos graus acima dafervura que tinha acontecido nos anos anteriores.Minha vida volta a ser tão ou mais agitadacomo antes, dividindo o tempo entre jornalismo,cinema e teatro.139Em 1965 consigo patrocínio da nascente Superintendênciade Turismo da Prefeitura de Salvadorpara a produção de três documentários curtos sobrea cultura baiana e realizo, em cores e 35mm,Lenda Africana na Bahia (sobre o carnaval), Doisde Julho (sobre a guerra da independência) eBahia Bienal (sobre artes plásticas). Só voltariaa filmar três anos depois, já que estava muitomais envolvido com o teatro. Nesse mesmo ano


140participo na realização de Teatro de Cordel,uma idéia de João Augusto, o diretor do VilaVelha. O interesse pela literatura de cordel erauma herança do CPC, onde discutíamos a formacomo os cordeleiros e os cantadores, os violeiros,contavam suas histórias. Encontrávamos nesseestilo, onde a mesma pessoa relata o acontecidoe interpreta os personagens, em constantealternância narrador/ator, uma preciosa traduçãopopular do distanciamento crítico propostopor Bertolt Brecht. O desafio lançado por JoãoAugusto era concretizar esse estilo no palco,montando uma dezena de folhetos de cordelcom um elenco de vinte atores, um espetáculocom vários episódios que iam se emendando econformando um painel das várias vertentesdessa atividade poética: sertaneja e urbana, naturalistae delirante, homens e animais, comédiae tragédia, introspectiva e extrovertida, críticae laudatória.Éramos cinco diretores: João Augusto, OthonBastos, Haroldo Cardoso, Péricles Luís e eu, cadaum se ocupando de algumas histórias. Escolhi AHistória de Mariquinha e José de Sousa Leão, deJoão Ferreira de Lima, drama amoroso de perfilrealista, e Rosa de Milão, na linha cordeleira dasnarrativas medievais, onde personagens do passadodistante promovem reflexos e incidências


na atualidade. O primeiro passo foi a edição dostextos, uma interferência a mais mínima possívelpara que o fluxo da narrativa teatral se mantivesseconstantemente atrativo. Não acrescentamosnada, nenhuma palavra, apenas alguns cortes eremanejamento de algumas frases em prol doritmo do diálogo — e nos esbaldamos na encenação,deixando a imaginação cênica corrersolta. Um cenário esquálido, apenas praticáveis,biombos e objetos de cena, mas velozmentefuncional, e um figurino basicamente naturalistamas com inserções surpreendentes de detalhessurreais. Cada episódio era conduzido por umnarrador que, como os cordeleiros, incorporavapersonagens durante o relato, que interagiamcom os personagens dos outros atores. Esse códigoera constantemente quebrado, às vezes umdos personagens fixos tomava o papel do narrador,em um dos episódios todos os personagenseram narradores, em uma girândola aceleradade mudanças de personas. Alguma coisa entreo circo mambembe, Brecht e os trovadores derua, uma arte cênica híbrida e superengraçada.Era como um teatro amador com distanciamentocrítico, o público ria e gargalhava. Nessalinguagem, que inventamos como uma brincadeira,que divertia imensamente os atorese diretores durante os ensaios e a temporada,a iluminação tinha importância fundamental,141


era um elemento dinâmico (e também crítico etambém engraçado) da narrativa. Juntamos asexperiências de iluminação de Roberto Santananos shows Nós por Exemplo (os canhões de luzque seriam tão utilizados nos anos seguintes eaté hoje nos shows musicais) à sugestão de cortescinematográficos, uma novidade no teatro.142Teatro de Cordel foi o primeiro sucesso deverdade do teatro baiano, o primeiro passoconcreto para a profissionalização do teatroem Salvador. Antes os espetáculos, mesmo asgrandes produções da Escola de Teatro, eramapresentados em três ou quatro fins de semanae acabou-se. Teatro de Cordel ficou meses emcartaz, com o público se renovando e tambémcom um número grande de pessoas indo ver oespetáculo seguidas vezes, virou um ponto deencontro da moçada. Muita gente do Sul foi aSalvador ver o espetáculo, inclusive o AugustoBoal, que se inspirou no jogo cênico do narrador/intérpretepara criar o seu Sistema Coringa,usado na série Arena Conta (Tiradentes, Zumbi).Boal me convidou para uma visita ao Teatro deArena, em São Paulo, e fiquei por lá umas semanasobservando o trabalho deles, refletindosobre linguagem teatral.Voltei com muito pique desse contato com oTeatro de Arena e montei várias peças, já in-


seridas no novo cenário do teatro baiano, comcontratos, publicidade e temporadas longas. Comeceicom Brecht, Terror e Misérias do TerceiroReich, e segui com textos brasileiros: Romanceiroda Inconfidência de Cecília Meireles, O Fardãode Bráulio Pedroso (uma tournée por todo oNordeste), espetáculos de poesia e um clássico,A Mandrágora de Maquiavel. Queria montarShakespeare, queria explorar possibilidades cordeleirasno teatro-dentro-do-teatro de Hamlet,cheguei a planejar uma produção mas não deucerto, as pessoas com quem eu estava envolvidonessa atividade tinham outros planos para mim:a direção da Fundação Teatro Castro Alves, o teatrãooficial da Bahia. A questão é que se tratavade uma fundação para o desenvolvimento dasartes cênicas na Bahia e só funcionava como salade espetáculos destinada a produções importadas,do Rio e São Paulo e do exterior. Isso foi noinício de 1967 e fazia parte da luta contra a ditadura,surgiu uma oportunidade de ocuparmoso Castro Alves com a nomeação, pelo governoestadual, de um Conselho progressista para aFundação Teatro Castro Alves, presidido pelo juize compositor Carlos Coqueijo Costa. O Conselhoestava disposto a me dar carta-branca, minhamissão era deselitizar o Castro Alves, abrindo-opara os grupos locais que se multiplicavam.143


144Minha primeira medida como diretor do CastroAlves foi derrubar a obrigatoriedade de paletóe gravata para o público; a segunda foi reativara Concha Acústica, fechada desde os espetáculossubversivos do CPC, um anfiteatro com cinco mil equinhentos lugares; a terceira foi criar um espaçopara espetáculos pequenos que não condiziamcom o grande palco principal, a Sala do Coro,duzentos lugares, em uso até hoje; a quarta foiabrir várias salas de ensaio para os grupos locais.Com três palcos, a programação foi ampliada,abrangendo distintos tipos de espetáculos, tantolocais como de outras partes. A equipe eraexcelente, basta citar minha assessora e braçodireito Arlete Soares e o produtor e iluminadorRoberto Santana. Para celebrar a nova fase doteatro oficial da Bahia, dirigi uma superprodução,apresentada na sala grande: O Gonzaga, deCastro Alves. Entrada gratuita, com milhares deconvites espalhados por universidades, escolas,sindicatos, associações, distribuídos nas feiras enas portas de cinema. Casa cheia todo dia, públicovariado, heterogêneo, de todas as extraçõessociais. O Yan Michalski, do Jornal do <strong>Brasil</strong>, naépoca o crítico teatral mais badalado, encontrouconvergências entre a montagem de O Gonzaga eo trabalho do diretor e ator francês Jean Vilar, noque se referia à linguagem (divertir para depoisdiscutir, dizia Vilar) mas principalmente no que


se referia à proposta de teatro como um serviçopúblico. Jean Vilar refundou, no início dos anos1950, o Teatro Nacional Popular da França, o TNP,realizando grandes espetáculos ao ar livre paramultidões, em Paris e no interior do país. A idéiacentral é: ninguém deveria pagar para ver teatro.Eu sabia apenas de raspão sobre as atividades doTNP, mas a chamada de Michalski me conduziuaté os livros de Jean Vilar, De la Tradition Théatraleprincipalmente, e tirei bom proveito disso anosdepois, quando montei o Grupo Barra no Rio.O Gonzaga é a única peça de teatro de CastroAlves e só tinha sido montada uma vez, cemanos atrás, em 1867, ano em que foi escrita, ecom a presença do autor. O desinteresse pelapeça, apesar de seus atrativos (Gonzaga visto porCastro Alves, dois grandes poetas libertários), devia,ou deve-se, ao fato de ser considerada umaprosa literária em forma de diálogos e não umapeça teatral, de ser muito prolixa para o palco.Justamente por isso o trabalho de montagemfoi fascinante, desde a enxugada do texto com ocuidado de manter a essência e a poesia, passandopela ênfase nas relações com o momento deresistência que estávamos vivendo até o desenhocênico, com grandes espaços e grandes silêncios.E grandes atores: Harildo Deda, Sônia dos Humildes,Lorival Pariz, Antonio Pitanga.145


146Os bons atores e atrizes com quem trabalheinessa fase na Bahia e depois, em outros cantos,me transmitiram durante nossas convivênciascriativas 90% do que sei sobre o teatro, os outros10% preenchidos pelos livros, professorese alguma experiência própria. E saber sobre teatroé saber sobre a vida. Trabalhar com OthonBastos, Norma Bengell, José Wilker, Paulo CésarPereio, Sônia dos Humildes, Mário Gusmão,Stepan Nercessian, Camila Amado e outrosgrandes da arte de auto-transformação significousaltos qualitativos na minha vida. E comprazer redobrado na minha parceria de muitaspeças e filmes com Conceição <strong>Senna</strong>, que vem sedesdobrando em várias mulheres durante nossalonga convivência.Voltando à história, a deselitização do TeatroCastro Alves irritou a ditadura, abalada pela resistênciacultural em todo o País, pela reorganizaçãosindical e pelas passeatas que aconteciam emvárias cidades. No início de 1968 estavam acontecendochoques entre o exército (soldados oupolícia militar) e os estudantes, engrossados pormuita gente de outras atividades, trabalhadores,donas-de-casa. Estava acontecendo também emoutras cidades e era uma coisa louca, kafkiana:os choques, as batalhas campais, tinham horárioe local pré-determinados, eram no meio da tarde


e na rua Chile, no centro da cidade. Aconteciauma ou duas vezes por semana, os estudantesse articulavam e marchavam pela rua Chile gritandoabaixo a ditadura, eram barrados pelossoldados e reagiam com paus, pedras e coquetéisMolotov. Os soldados atiravam e todos corriamem todas as direções, causando um pandemônio.Muita gente ferida, alguns mortos.Um dia, no início da tarde, o Teatro Castro Alves écercado e ocupado pelo exército, um alto-falanteordena que todos permaneçam em seus locais detrabalho. Vou para minha sala e minutos depoisentra um colega meu do Marista, que não viadesde aqueles tempos de ginásio. Ele é o chefeda operação e entra furibundo, põe um revólverem cima da mesa e me acusa de ser um dos articuladoresdas manifestações na rua Chile, queinformações para as lideranças estudantis eramtransmitidas por telefones do teatro. Enquantome acusava de subversão e fazia ameaças, eume lembrava dele menino, no colégio, e de suahistória recorrente: ele cantava árias de óperasitalianas, tinha uma bela voz, e todo fim de anose despedia, dizia que não voltaria ao colégiopois recebera uma bolsa para estudar no Scalade Milão. Todo ano ele se despedia mas voltavadepois das férias, sempre com o Scala de Milãopostergado. Quando ele deu uma trégua nas147


acusações e ameaças, perguntei — e o Scala deMilão? O cara esbugalhou os olhos, ficou vermelho,pegou o revólver. Pensei que a situação iaficar feia mas ele levantou, sempre me fixandoos olhos, e saiu da sala.Ninguém foi preso no cerco ao Teatro CastroAlves, mas logo depois fui demitido, o contratorescindido sem explicação e sem indenização.Ao mesmo tempo, a Secretaria de Educação doEstado, sob a qual estava abrigado o Castro Alves,se via envolvida em corrupção, o Secretárioacusado de desvio de dinheiro. Como o CastroAlves era um foco de subversão, os acusadostentaram desviar a acusação para o Teatro, sehavia rombo era nas contas do Teatro, desvio dedinheiro para a subversão. Diante disso, ex-colegasda Faculdade de Direito, agora advogados,denunciaram a situação à Justiça do Trabalho eCom Glauber e Ariovaldo Matos, Salvador, 1967


ganhei a questão, não havia justificativa para orompimento do contrato, recebi indenização.O desvio do dinheiro também foi apurado e oSecretário de Educação foi preso. As bênçãos deJorge Amado Casamenteiro, Ogan de Oxóssi,continuavam atuando. Minha passagem peloCastro Alves me deu uma visão institucional doteatro baiano, de suas deficiências naquele momentode expansão, de suas fragilidades. Umadelas era a quase ausência de textos locais, osgrupos não trabalhavam com peças baianas.Achei que esse era um veio a ser explorado,produzi uma seleção de textos e montei quatrodeles, um atrás do outro, no Vila Velha e nasala da Escola de Teatro. A Escolha, de AriovaldoMatos: a visita de um homem em ascensãosocial adrenalínica e neurótica, desembestado,a um casal de baixa classe média acomodado navida. A Engrenagem, também de Ariovaldo Matos:três personagens assustados com o futuro,inseguros quanto ao devir de suas vidas. Sonhadora,de Otto Schipper, contrapondo realidadee desejo, com planos cênicos simultâneos desonho e mundo material. Companhia das Índias,de Nelson Araújo: alegoria política, um ditadordeposto e exilado articulando sua volta ao poder.Eu me esmerava na iluminação, desenhavae redesenhava a luz nas madrugadas depois149


dos ensaios, usando manequins nas marcas dosatores. Algumas cenas eram protagonizadas pelaluz, em alguns momentos a luz era o elementomais importante da narrativa (guardo um artigodo Glauber sobre A Escolha, centrado no grandeplano fixo da primeira cena, onde um casal fazamor com um fundo infinito, um ciclorama roxoavermelhado, dando a impressão que seus corpossão imprecisos, imateriais, quase se desfazendo).Os espetáculos foram bem-sucedidos, exaltadospela crítica e com excelentes bilheterias. Até acensura proibir Companhia das Índias.150O espetáculo estreou com sucesso e muita publicidade,era um musical falado em portunhol,com muita rumba, tango, samba, bolero, muitocolorido. Rumbeiras, índios, jogadores de futebol,vaqueiros, mariachis e toda uma faunahumana latino-americana compunham umcoro ao redor do ditador e sua corte, fazendoreferências a ditadores reais e à cumplicidadeda OEA, Organização dos Estados Americanos,com as ditaduras. Fiz a canção-tema em parceriacom João Ubaldo Ribeiro: que viva Trujillo, FulgencioBatista / Perez Jimenez y Onganía. / Porla democracia en Latinoamérica / viva LyndonJohnson y la OEA. O coro, horrorizado com oque vê e ouve na corte do ditador, se transformaem um grupo guerrilheiro transnacional,


continental, e metralha todo mundo, inclusivea platéia. Com dez dias em cartaz, o espetáculofoi proibido. Além do cismo psicológico queum fato como este provoca, a depressão, airritação, a angústia da falta de liberdade, nocaso da Companhia das Índias também pesou oaspecto financeiro, o prejuízo. Tive excelentesprodutores no teatro baiano, a começar porDomingos Leonelli, que bancou boa parte dosmeus espetáculos, mas A Companhia das Índiasfoi produzido por Conceição e por mim, comas economias resultantes do nosso intenso trabalhoteatral. Era um projeto ousado, elenconumeroso, produção cara, mas já tínhamosproduzido uma peça antes (A Mandrágora) etinha dado certo, tivemos lucro. A proibição doespetáculo no início da carreira foi um desastrefinanceiro para o casal, contraímos dívidas. E omais grave é que a proibição não foi apenas aoespetáculo, foi também a mim: todos os textosque enviei nos meses seguintes à censura, paraaprovação, foram desaprovados. Eu não podiamais montar peças de teatro.151Dramas em outra dimensão, tragédias familiares,somaram-se às nossas tristezas nessa época.Muitas mortes na família, todas elas repentinas,trágicas. Meu tio Nivaldo, aquele que tinha umprojetor de cinema quando eu era menino, e


que esteve sempre próximo, com sua elegânciae erudição, cometeu suicídio. Os três irmãoshomens de Conceição, todos jovens, tambémse foram em um período de dois anos: o caçulaassassinado no Rio, em Copacabana; o do meioem um acidente; o mais velho de câncer. Umsofrimento enorme.Cinema Marginal152Não podia fazer teatro mas podia fazer cinema.Uma nova onda estava se formando nocinema brasileiro, pouco depois batizada deUdigrúdi (de underground) ou Cinema Marginalsegundo a crítica. Sganzerla, MauriceCapovilla, Carlos Reichenbach e outros jovenscineastas em São Paulo, Júlio Bressane e NevilleD’Almeida no Rio começam a fazer filmes anárquicos,debochados, despojados. Embora filhosdo Cinema Novo, inventavam estética própria,filmes urbanos em preto-e-branco, com umaencenação enganosamente desleixada e tendentea focar os mais marginalizados da sociedade,os bandidos, os loucos, os lúmpens. Esseimpulso surgiu simultaneamente na Bahia coma realização em 1968 de Meteorango Kid, domeu primo André Luiz Oliveira, e de Caveiramy Friend de Álvaro Guimarães, amigo desdeo grupo de teatro do Marista. Alvinho Gui-


marães e eu fizemos um plano de produçãopara dois filmes, o Caveira my Friend, direçãodele, e outro logo em seguida, direção minha.Os produtores eram a família de Alvinho (nenhumanovidade, Meteorango Kid foi bancadopelo pai do André Luiz) e Braga Neto, figurahistórica do cinema baiano, ator do míticoRedenção, sócio da Iglu Filmes.Aquele ano, 1968, o mais importante do séculoXX, foi um ano mágico. Os jovens se levantaramem todo o Ocidente com muito ruído, para sefazer ouvir, e com ímpeto de mudar a História.O filósofo político Antonio Negri diz que a argamassa,o alicerce de 68 foi o desejo, tranformaro desejo em ação, uma forma nova de atuaçãopolítica. Ele se refere ao Maio de 68 francês,um dos grandes detonantes daquele ano maiorque os outros (tivemos a morte do estudanteEdson Luiz no <strong>Brasil</strong> em março, os mexicanostiveram o massacre de Tlatelolco em outubro).Cohn-Bendit, o líder do Maio Francês, tinha 23anos, Edson Luiz tinha 16. No Ocidente os jovensenfrentavam o poder capitalista, na Tchecoslováquiaos jovens lutavam contra o socialismo, naChina os exércitos jovens da Revolução Culturalde Mao radicalizavam em escala colossal — e,nascendo nesse fogo, nessa guerra, a suave revoluçãohippie, paz e amor.153


154Pois é, paz e amor. A proposta era que a juventude,e não a terceira idade, apontasse oscaminhos a serem percorridos pela humanidade,coincidindo com as outras correntes de 68, as queforam para o enfrentamento físico, pegaramem armas. Mas descoincidindo no que se referea esses caminhos, que seriam oxigenados pelaespiritualidade, pelo compromisso com a belezae com a natureza (flower power), pelo desenvolvimentodas capacidades extra-sensoriais e pelasrelações pacíficas entre as pessoas. Resgatou-seo mandamento único de Cristo, amar ao próximocomo a si mesmo, e a afirmação polêmica esurpreendente de Einstein, maior cientista doséculo: a imaginação é mais importante que oconhecimento. Cantávamos Imagine, de JohnLennon, com a convicção de que realmentepodíamos todos nos dar as mãos ao redor daTerra. Esse despertar massivo da juventude paraa espiritualidade aconteceu simultâneo e semprévia articulação em Paris, Londres, Nova York,Amsterdã e também em São Paulo, Rio, Salvadorda Bahia. Até em Lençóis. A nova idéia de revolução(revolucionar a si mesmo, revolucionar-setodos os dias de sua vida) estava distante tantode Marx como de Adam Smith e se traduzia namáxima mais importante do movimento — todopoder à imaginação.


Conceição, 1968


156Participei como co-roteirista, co-produtor e atorem Caveira my Friend, que foi filmado rapidamente,antes do fim daquele estonteante 1968estava rodado. Acompanhando o dia-a-dia dasfilmagens, vivi uma experiência renovadora naminha relação com a linguagem cinematográfica:um tipo de cinema solto, corrido, ondea câmera não determina o ponto de vista, oenquadramento. Ao contrário: é a encenação,a mise-en-scne, quem guia a câmera, mesmoporque a encenação, embora partindo de umaintenção, de uma diretriz, era improvisada. Umaforte experiência vivencial essa filmagem, nomomento em que o ideário hippie começava aser percebido na Bahia e no <strong>Brasil</strong>, no momentoem que as drogas estavam chegando para sefixar como componente nuclear da cultura doséculo XX. E o filme era exatamente sobre isso, oimpacto dessas transformações sobre um bandode assaltantes e um casal careta, um bancário esua namoradinha.Os Novos Baianos decidiram ser Novos Baianosdurante a realização de Caveira my Friend. Aídecidiram fazer o show O Desembarque dosBichos, no Teatro Vila Velha, que marcou a estréia,ou a tomada de posição, do grupo. Todosos componentes da banda que faria o <strong>Brasil</strong>


<strong>Orlando</strong> filmando 69 – A Construção da Morte,Salvador, 1969trepidar no início da década de 1970 participavamdo filme, como figurantes. Eram da turmado Alvinho Guimarães, eu conhecia há muito oMoraes Moreira e o Paulinho Boca de Cantor,Galvão era amigo de infância da Conceição, emJuazeiro da Bahia, onde conviviam com JoãoGilberto. Estavam todos no filme, inclusive umaamiga deles, a primeira hippie que apareceu naBahia, Bernardete Yang Sol. Um ano depois,quando estávamos finalizando o filme em SãoPaulo, os Novos Baianos já estavam atuando efizeram as músicas para o filme. A hippie BernadeteYang Sol trocou de codinome, adotando o


nome de uma das personagens do filme, BabyConsuelo, interpretado pela Conceição. A ligaçãodo filme com a filosofia, o comportamentoe a vanguarda musical dos Novos Baianos, deAcabou Chorare, é direta, é fio descapado comfio descapado.158Caveira my Friend foi para o laboratório em SãoPaulo e iniciei a pré-produção de A Construçãoda Morte, inspirado em um conto homônimo deAriovaldo Matos. O plano era montar os dois filmesno mesmo período, em São Paulo, para economizar.Soube do Ato Institucional Número 5no dia 14 de dezembro de 1968, no dia seguinteà sua decretação. Um sábado com muito sol. Melembro porque estava na praia com Conceição ealguns amigos e um jornaleiro passou anunciandofechado o Congresso, fechado o Congresso.Compramos o jornal e soubemos o que era o AI-5: poderes absolutos para o regime militar, umanova fase da ditadura, nenhuma intermediaçãoentre a sociedade e o Estado. Era evidente que aspasseatas, as peças de teatro, as manifestaçõespúblicas, enfim a resistência que vinha crescendoentre 1965 e 1968, estavam sufocadas. Maseu não conseguia descortinar, imaginar, o quepoderia vir em seguida, que outro tipo de reaçãoseria possível. A minha angústia inicial foiessa, de vácuo, de não saber, talvez nem de ter


Fotograma de 69 – A Construção da Mortepercebido que estava começando a escalada deproibições, repressões, torturas e assassinatosmais sombria da nossa História.69Foi um fim de ano difícil: cair fora? admitir ahipótese de resistência armada? eram possíveisoutras estratégias de resistência cultural? eu eos que me cercavam íamos sobreviver? Diante detantas inquietações, achei que o mais saudável,ou digno, o que realmente atenderia à minhaalma, era fazer o filme. Estava tudo organizado,contratado, filmagens marcadas para março e,


além disso, eu tinha uma nova situação para serfilmada: já não ia fazer um filme sobre 1968, iafazer um filme sobre 1969, o que é bem diferentecomo sabem todos que viveram aqueles tempos.Tanto que o título passou a ser 69-A Construçãoda Morte. Era meu primeiro filme longo. Doismeses e meio de filmagem, em piques de atétrinta horas de trabalho corrido, a equipe e oelenco radicalmente integrados nesse ritmo alucinante.No elenco estavam Sônia dos Humildes,Harildo Deda, Gessy Gesse, Conceição, muitagente, acho que todos os bons atores daquelaépoca na Bahia.160A história central é a que está no conto de AriovaldoMatos: um jornalista impede por acaso osuicídio de um homem, o homem explica queé pobre e está com câncer de pulmão, que émelhor morrer logo do que sofrer e causar sofrimentoà família, e o jornalista compra a mortedele, compra a exclusividade da notícia, ofereceuma grana para ele se suicidar outro dia, comhora marcada, saltando espetacularmente doElevador Lacerda. O homem aceita, convencidopela herança inesperada que vai deixar para afamília, e o acordo é cumprido até o fim. No filmeo tempo entre o acordo e seu cumprimento éalongado, a relação entre o jornalista e o suicidaé radicalizada e a metáfora com as perversidades


e perversões que estavam acontecendo naquelemomento era, além de planejada, inevitável.Aí utilizo por primeira vez a mescla de ficçãoe documentário que desenvolveria posteriormentecom Jorge Bodanzky: fiz um acerto coma editoria de polícia do Jornal da Bahia e nossaequipe ia com os repórteres na cobertura de crimes,perseguições a bandidos, prisões, bocas-defumo.Essas cenas documentais do baixo mundose justificavam porque tínhamos um personagemjornalista, era o mundo do personagem (feitopor um polonês, Ian Sobanski). E a redação dojornal justificava a utilização de fotos e imagensem movimento do que estava acontecendo nomundo, inclusive a viagem do homem à Lua.161As filmagens foram feitas discretamente, semchamar atenção, por temor à reação dos militares.Os negativos eram enviados diariamentepara o laboratório em São Paulo. Terminadas asfilmagens, fiquei uns meses em Salvador fazendoa desprodução e pagando dívidas, vendo todomundo cair fora em direção ao Sul ou ao exterior.Fui convocado para mais um interrogatóriono quartel da Mouraria, fazia tempo que issonão acontecia. Queriam saber sobre um filmeque eu estava fazendo, sabiam que eu tinhafilmado a polícia em ação. Eu disse que era umfilme sobre o jornalismo, como os jornalistas


162trabalham. Pediram para ver, eu disse que eraimpossível, o filme estava no laboratório, só emdois meses. Avisaram-me que não devia sair dacidade, que seria convocado para mais informações.Já estava passando da hora de sair dali epoucos dias depois pegamos um avião, Conceiçãoe eu, e desembarcamos em São Paulo, nosinstalamos em um hotel.


Capítulo IVUm Produtor em PânicoNos reunimos com Alvinho Guimarães e montamosos dois filmes, Caveira my Friend e 69-AConstrução da Morte, no estúdio Odil Fonobrasil.A barra estava pesada em São Paulo. Vi uma cenadiante do estúdio, cito como exemplo do clima:um policial pediu documentos a dois rapazesque trabalhavam conosco, pegou os documentos,disse documento da Bahia não vale e osrasgou e sorriu vitorioso dizendo agora vocêsestão sem documentos. E indocumentado erapreso na hora. Muitos amigos nossos tambémtinham vindo para São Paulo, a maioria já naonda hippie, músicos, atores, atrizes. Um grupobarulhento e barbudo, os paulistas com quemconvivíamos nos apelidaram baihunos, soma debaiano com huno. Todo mundo sem dinheiro, sevirando. Consegui um co-produtor paulista para69-A Construção da Morte, o George Jonas, cujacontribuição mais importante era uma autorização,um permanente, para que minha equipe comesseem duas cadeias de restaurantes, Um DoisFeijão com Arroz e Restaurante do Papai. Incluína lista dos restaurantes a equipe de finalizaçãodo Caveira my Friend, cuja produção já estavacontando centavos, mas o pessoal do Alvinho163


Guimarães era numeroso, um bando de baihunos,incluindo Os Novos Baianos. O resultado éque muita gente almoçava e jantava conosco,eu apresentava o permanente, assinava e tudobem. Um dia o Jonas me chama e, com montesde notas dos restaurantes assinadas por mim namão, surpreso, diz —você comeu o filme.164As refeições foram controladas e terminamos69-A Construção da Morte. Era um retrato contrastado(e em preto-e-branco) daquele ano,daquela situação, confrontando seres humanossem ética, sem piedade, poderosos, e seres humanossob pressão determinados a mudar a vida,alguns a vida de todos, outros apenas a própria.Mostrei o filme aos produtores e à equipe, embanda dupla como se fazia na época (bandasde imagem e som separadas, ainda sujeitas acorreções). Quando terminou a projeção o produtorBraga Neto estava lívido, pálido, e fez umdiscurso nervoso e taxativo. Disse que ninguémmais, além das pessoas que ali estavam, deviaver o filme. Que era um absurdo, uma irresponsabilidademinha ter feito um filme comoaquele, se o filme chegasse ao conhecimentodos militares nós não seríamos presos, seríamosexecutados, assassinados. Citou algumas cenas,a que mais lhe apavorava era o diálogo de umcasal prevendo atos terroristas, imaginando o


que seria explodir o Elevador Lacerda na horado rush, com milhares de pessoas transitandonele. Havia muitas previsões no filme, tocava-seem várias possibilidades de reações sociais dianteda repressão ditatorial: o exílio, a guerrilha,as drogas. O outro produtor, George Jonas, foimenos enfático mas também achava o conteúdoperigoso. Argumentei que o filme poderia serexibido no estrangeiro, cópias clandestinas dealguns filmes brasileiros estavam chegando àEuropa, como era o caso de Manhã Cinzenta, demeu compadre Olney São Paulo. Para Braga Netoa exibição no exterior seria ainda mais grave,teríamos de nos exilar antes que isso acontecessee ele não estava a fim de exílio. Pedi calma,talvez pudéssemos pensar em alguma coisa, emarcamos reunião para o dia seguinte, lá mesmono estúdio Odil Fonobrasil.165Quando cheguei para a reunião soube que BragaNeto havia retirado do estúdio o materialdo filme, depois soube que também pegou osnegativos no laboratório. O filme desapareceu,e Braga também. Durante anos não tive notíciasdele até que um dia apareceu em minha casa noRio e contou que havia distribuído as latas dofilme por diversas pessoas, para escondê-las atéas coisas melhorarem, com a esperança que umdia o filme pudesse ser mostrado. Com o correr


do tempo, e possivelmente também por medo, aspessoas tinham se desfeito das latas, jogado nolixo. Uns quinze anos depois foram encontradosdois rolos de imagem e dois rolos de som, nãocorrespondentes, na Cinemateca do MAM, noRio. Estavam em péssimo estado, sem condiçõesde recuperação. Sobraram algumas fotos, o roteiroe a memória de quem participou.166Eu estava me transformando em autor de filmesdesaparecidos: Rebelião em Novo Sol, agora 69-AConstrução da Morte. Carma? Eu estava fadadoa não ser um cineasta? Fiquei muito impactadocom isso, com a rejeição violenta de algumaspessoas a esses filmes, por raiva ou por medo.Quando fiz o que, no meu entendimento, eraverdadeiramente cinema, um impulso de criaçãoe um discurso pessoal, um posicionamento pessoaldiante do mundo, que foi nesses dois filmes,fui punido severamente. Punição com dor, comperda irreparável. Fiquei muito atordoado comisso, meio perdidão em São Paulo, desanimado.Tanto que desisto de um projeto que estavaescrevendo, apesar do George Jonas mostrar-sedisposto a produzi-lo. Era uma alegoria, em umfuturo próximo o mundo radicalmente divididoem dois, no Norte os ricos, no Sul os pobres, umembate entre tecnologia e energias espirituais,intitulado Ofélia e suas Guirlandas Fantásticas.


Portas da PercepçãoMas a vida tinha de continuar e tinha de continuarali, em São Paulo, porque não tínhamos,Conceição e eu, para onde ir. Não queríamos sairdo País, embora nos sentíssemos tentados a issoquando recebíamos notícias de amigos que haviampartido para o exílio (para nós São Paulo jáera um exílio). E não podíamos voltar a Salvador,não era seguro e, além disso, todos os baianosnossos amigos que estavam em São Paulo, e nóstambém, considerávamos a aventura de Salvadorencerrada com o AI-5. Ficamos em São Pauloquase dois anos, fazendo teatro e iniciando-nos,Conceição e eu, na filosofia e na prática hippie.Passei a escrever ficção, contos fantásticos paraa revista Senhor, que anos depois reuni no livroMáquinas Eróticas (Editora Rocco, 1985). Contoslisérgicos. Já havia me aproximado das drogasem Salvador, as primeiras experiências com maconhatinham sido surpreendentes, iluminaçõesque ao mesmo tempo me atraíam e assustavam.Em São Paulo essa aproximação se fez maisconsciente e atenta, eu tinha lido As Portas daPercepção de Aldous Huxley, tomei conhecimentoda pregação e das idéias de Timothy Learysobre o LSD, escutava rock progressivo. Sofri umatransformação física definitiva, acabando como efeito sanfona que tinha sido minha história167


corporal: fui um garoto gordo, um adolescentemagro e, dos 20 aos 30 anos de idade, de novogordo, com 84 quilos; em 1970, em São Paulo,estabeleci nos 70 quilos, meu peso até hoje. Melembro de Zé Celso Martinez Correa assustadocom minha aparência, depois de uma destasmudanças: um dia nem seu próprio cachorro vailhe reconhecer.168Uma fase de espiritualização, de me voltar paradentro, repensar minhas atitudes, meus eloscom a vida. Mudei a alimentação, me despojeide apegos materiais, em certos momentosaté pretendi a santidade. Percebi o que Cristosignificava para mim: contrariando a versão dacristandade, percebi (e essa é minha percepçãoaté hoje) que a grandeza de Cristo, ou do mitode Cristo, está no fato de um homem, por suainteligência e bondade, atingir a dimensão divina.E não o contrário, não existe milagre nofato de um deus todo-poderoso descer à Terracorporificado em um ser humano, já que elepode tudo. O milagre, o inesperado, a maravilhaestá em um homem, com sua carga corporal,transformar-se em deus. Depois da desordempsicológica causada pelo desaparecimentodo filme, a paz interior resultante dessa novarelação com o sagrado me devolveu a alegriade viver.


Depois de um tempo em hotéis, dividimos umpequeno apartamento na rua Maria Antoniacom o compositor e cantor Fernando Lona esua banda Teorema. Vida comunitária e pobre,comíamos quase sempre massa, macarrão, e umadas diversões era inventar molhos para variaro paladar. No edifício, estreito e alto, viviamapenas músicos e as moças que trabalhavam noLa Licorne, uma casa noturna que ficava perto,na zona conhecida como Boca do Luxo (em contraposiçãoà Boca do Lixo, que terminou comodenominativo do movimento de cinema baratoe associado a exibidores que estava sendo feitona época em São Paulo). Até as duas horas datarde o edifício era absolutamente silencioso,todo mundo dormindo, até as crianças. A partirdaí era bem ruidoso, com gente afinando instrumentos,bandas ensaiando (inclusive a nossaTeorema). Boa parte das meninas do La Licornetinha marido, algumas com filhos pequenos, eeram discretíssimas.169Outro aspecto interessante dessa temporada naPaulicéia Desvairada (para nós, põe desvairadanisso) foi um pingue-pongue que acontecia devez em quando entre a escassez e a fartura. Reencontreiaí um amigo de infância, milionário,atuando no mercado internacional de patentes,e às vezes ele nos convidava para jantares ou fes-


170tas da alta burguesia (paulistas e estrangeiros),onde tirávamos a barriga da miséria. Depoisde dias de macarrão, vol-au-vent, coq-au-vine vinhos estupendos. Algumas vezes íamoscomo convidados, outras como integrantesda banda Teorema, que o amigo contratavaou incentivava os outros ricos a contratar.Esse meu querido amigo é sofisticado e absolutamentediscreto, não é mencionado nosjornais, seu círculo social é restrito, seu cartãode visitas tem apenas seu nome em suave relevo,difícil de ser percebido, sem telefone nemnada. Porisso não o nomeio, ele vai achar queé muita exposição. Vamos chamá-lo TB. Trabalheicom TB alguns meses, o que melhorousubstancialmente nossas finanças, em umaatividade interessantíssima: descobrir inventos,invenções, caçar inventores. Ele precisava depatentes brasileiras para negociar com outrospaíses e bons produtos estavam escassos. Lançamosuma campanha de anúncios dirigidos eapareceram os inventores. Meu trabalho eraexaminar os inventos, apresentar os melhoresa TB e montar um kit dos aprovados (um protótipoe apresentação em vários idiomas). Entrevisteivários tipos de loucos-beleza, dezenasde Professores Pardal, invenções engenhosasmas inúteis, outras já inventadas. Me lembrode uma discussão com um deles, eu dizia isso


é um cabide, foi inventado há muito tempo— e ele defendia sua obra na maior viagem,nem pode ser chamado de cabide, bicho, étridimensional, a roupa vai ficar com a formado corpo do dono, se for mulher levanta maisas hastes da frente, se o cara for corcunda levantaa haste de trás. Descobrimos um inventoque fez sucesso, TB deve ter ganho milhões: orepelente eletrônico, contra mosquitos.Tenho de registrar, nessa época, a provocanteexperiência que vivemos, Conceição e eu, aoparticipar de um espetáculo-interferência doLiving Theatre no Embu, em São Paulo, sob aregência de Judith Malina e Julian Beck. Foramdois dias de intensa e perfeita integração entreo pessoal de teatro que acompanhava o casal e apopulação do Embu, na época uma comunidadepequena e carente. O teatro integral, desprovidode textos e concepções cênicas pré-concebidos,de intenções pré concebidas, sem pre-conceitos,sem pre-juizos. Apenas o entregar-se, abrir aalma. A experiência transformou o Embu, osmoradores começaram a fazer coisas que nãofaziam antes, artistas de toda parte foram morarlá, hoje é conhecida como Embu das Artes.Logo depois da visita do Living ao Embu, Judithe Julian foram presos em Minas Gerais e expulsosdo país.171


172Formamos com alguns amigos, a maioria baianos,um grupo de amizade e de trabalho: FernandoLona e sua banda, as artistas plásticasSonia Castro e Lena Coelho Santos e seu maridoo fotógrafo Jorge Bodanzky, a psicanalista SilviaBloisi, o ator Lorival Pariz. Essas pessoas participaramna criação do espetáculo Os Anjos, umaalucinação cênica que montei no final de 1970,a partir de um texto de um político ligado aJânio Quadros, o Arruda Castanho, um senhorsimpático e delirante. Ele era bem relacionadocom o carrossel econômico de São Paulo, comagências de publicidade, e bancou a produção,que era bem cara, com muitos atores, banda demúsica, cenários de acrílico, engenharia cênicasofisticada (havia uma batalha aérea entre anjose demônios, todo mundo voando). Claro que setratava de uma operação antropomórfica, osdeuses à imagem e semelhança dos homens, oque será realmente essa tal de criatura humanano leque que vai do canibalismo aos vegetarianosradicais (que estavam em voga), doscamicases aos fisicultores, dos predadores aosbenfeitores.Também faziam parte da turma o cientista ecrítico de arte Mário Schenberg e sua mulherLourdes Cedran, papelista e artista plástica epapeleira. Schenberg, o gênio da mecânica


celeste, do eletromagnetismo, da gravitação,da evolução cósmica, também um humanista,humanitarista, ambientalista, preso e exiladoem 1948 (era deputado constituinte pelo PC),preso em 1964, foi o mestre de que eu precisavanaquela fase de transição, de novas descobertas,de estados alterados, experiências lisérgicas.Um dia Lourdes me levou a um pai-de-santo em1971 (fase hippie)


Cena do espetáculo Cordel (Conceição em primeiro plano)Rio, 1972uma periferia longínqua da cidade, um terreirode umbanda. Tudo que se referia à paranormalidadenos interessava. O pai-de-santo contoudetalhes da minha vida que só minha famíliapodia ter conhecimento, mas era apenas umapreparação, uma prova de credibilidade, para oprincipal. Ele descreveu alguns quase acidentesque haviam ocorrido em Os Anjos, uma haste deferro que baixou de repente, com vários atorespendurados, os atores pararam a poucos centímetrosdo chão; um fragmento de acrílico que sedesprendeu sem explicação e caiu perigosamenteperto de uma atriz. Confirmei boquiaberto,já que ele não tinha como saber, era altamente


improvável que tivesse visto o espetáculo, muitomenos que conhecesse alguém do elenco. E eledisse: você tem de tirar aquela cruz de cabeçapra baixo que está lá, ou tira ou muita gente vaisofrer. E tinha mesmo, havia um momento emque o espetáculo se transformava em simulacrode Missa Negra, com uma cruz virada ao contrário.Você está mexendo com coisa que não sabe,não entende, isso é muito perigoso.Tirei a cruz, não houve mais problemas. A adivinhaçãoe o diagnóstico do pai-de-santo renderamnoites inteiras de conversa com Schenberg,gordo, tranqüilo, concentrado, o senhor das harmonias.Ele ampliou, para o meu entendimento,o conceito de sacralização da natureza para bemalém da natureza terrena e física, na direção danatureza cósmica (matéria e antimatéria) e nadireção da natureza mágica, entre parêntesesporque não sei se é esta a palavra — a naturezadas relações paranormais, extra-sensoriais, entreseres humanos e entre os seres humanos e osanimais, vegetais e minerais. Até fiz um rock emparceria com o Fernando Lona, intitulado MeuCorpo é Mineral, dedicado aos meus ancestraisgarimpeiros. Mário Schenberg, um sábio paraquem Deus e Natureza eram exatamente a mesmacoisa. A natureza em todas as suas dimensões,com seus muitos universos paralelos.175


Com Conceição, Rio, 1972, na fase hippie


Voando para o RioConceição havia encontrado uma via de expansãopara sua religiosidade natural, nata,na exploração de vários caminhos esotéricos,estudava astrologia e astronomia, MadameBlavatski, os avatares, mantinha contatos coma Ordem Rosacruz. Ela querendo ser feiticeirae eu querendo ser santo, o que significava amesma coisa, uma viagem maravilhosa, maravilhada.Ao mesmo tempo a vida não dava trégua,the material life, com a polícia dando emcima, a gente tendo de se mudar várias vezes,a ditadura tentando fechar o cerco a todo tipode inteligência ativa e sem dar conta, a nossanecessidade de conseguir mais dinheiro para termais segurança. Tivemos de baixar a bola e trabalharmais, dar mais tempo à caretice, como euacho que a gente dizia na época. Dirigi showspara casas noturnas, com sambistas e mulatas(e com o ator Nonato Freire, também vindoda Bahia, que se juntou à turma) e tambémum musical cobrindo toda a história da músicabrasileira, Ofício de Cantar, com Fernando Lonae Maria Odete, muito populares por haveremvencido alguns dos Festivais da Canção da televisão,uma febre midiática da época.177Remontei o texto de Ariovaldo Matos A Escolha,com o título O Desembestado, com o jovem Perry


1972 (fase hippie)Salles como protagonista, e consegui emplacarum animador sucesso de público e crítica ao retomara experiência do teatro de cordel. O espetáculochamava-se Cordel e estreou no Museu deArte de São Paulo, na Avenida Paulista, com boarepercussão imediata na imprensa. A descoberta,ou a invenção, de uma linguagem tão solta ecomunicativa, no espetáculo da Bahia, em 1965,havia contaminado a todos que participaram daexperiência. João Augusto, que havia lançado asemente e nos agrupado lá no Teatro Vila Velha,continuou burilando essa vertente durante todaa sua vida, criando espetáculos fascinantes. Eu


continuei trabalhando interiormente as possibilidadescênicas do cordel desde aquele momento,lembre-se que eu falei sobre meu projeto cordeleiropara Hamlet, por exemplo. Li mais unsduzentos folhetos que não conhecia e monteio espetáculo com oito histórias, transitando douniverso tradicional sertanejo para a adoração aRoberto Carlos, a viagem à Lua, uma aventura nofundo do mar e retornando ao Nordeste, ondeLampião e Maria Bonita, mortos em Angicos,se indispõem com o Céu e com o Inferno, nãoficam por lá e voltam ao sertão, imortais. Tudocosturado pelos versos e pela postura debochadade Cuíca de Santo Amaro, famoso cordeleirourbano de Salvador, meu conhecido.179A boa performance em São Paulo resultou emum convite para o Rio, o Teatro Santa Rosa nosimportou para uma temporada de quatro meses.Bye bye São Paulo, Conceição e eu estávamosmesmo ansiosos para aportar no Rio, tínhamosnotícias do crescimento do movimento hippienas praias cariocas. Chegamos ao Rio no verãohistórico 1971-1972, alugamos um pequenoapartamento no mesmo edifício do Teatro SantaRosa, em Ipanema, e estreamos o Cordel com sucessoainda maior que em São Paulo, sustentadopor uma ovação crítica, melhor espetáculo doano, etc. Trabalhávamos à noite e passávamos


o dia todo na praia, no Píer de Ipanema, ondea filosofia hippie, a postura hippie se afinava:a salvação pessoal e coletiva só é possível coma prática consciente do amor a si mesmo e doamor ao próximo. O Píer de Ipanema era o centroirradiador mais importante do movimento,secundado por Arembepe, uma aldeia de pescadoresna Bahia.Carnaval e Janis Joplin180A ponte Rio-Salvador era percurso obrigatóriodos hippies. Cabeludo e colorido, voltei a Salvadorno Carnaval de 1972 e tomei um sustoquando vi o trio elétrico Caetanave. Em doisanos, o carnaval baiano que eu conhecia, compequenos trios elétricos percorrendo a cidade,muita gente mascarada dançando e aprontandonas ruas, tinha mudado, tinha se agigantado. ACaetanave foi o primeiro trio elétrico giganteque apareceu (não era mais trio, era uma orquestraeletrificada), dando início ao desenhodo que é hoje o carnaval baiano. Caetano, oinspirador, voltara do exílio em Londres doismeses antes. Esse carnaval foi como uma epifania,uma possessão, uma visita ao nirvana. Oencontro da Bahia, dionisíaca por natureza, como fluir livre da vida dos hippies produziu umacombustão de felicidade, paz e fé. Faça Amor,


Não Faça Guerra não era um slogan naquelestempos ditosos, era uma definição existencial,uma decisão de comportamento para todos osdias e para toda a vida.O hippismo atingiu seu auge no <strong>Brasil</strong> no verãode 1971-1972, quando o movimento perdiaforça na Europa e na América do Norte. Acontecede maneira muito forte mas ligeiramentedefasado, deslocado no tempo, o últimogrande suspiro do sonho descrito por JohnLennon em Imagine: nenhum paraíso, nenhuminferno, nenhuma religião, nenhuma propriedade,todas as pessoas vivendo a vida em paze compartilhando o mundo todo. A grandecontribuição dos hippies brasileiros à filosofiahippie foi radicalizar a rejeição ao dogma e aqualquer afirmação revestida de verdade absoluta— acrescentando o ou não depois de suaspróprias afirmações. A frase-chave dos hippiesdo hemisfério norte era por que não?, uma pergunta.A dos hippies brasileiros era afirmativae conflitante — ou não.181Entre 1972 e 1974 fiz algumas viagens à Bahia,viagens no sentido geográfico e no sentido esotéricoe lisérgico. Em uma delas fui a Arembepepara conhecer Janis Joplin, que estava por lá emcompanhia de dezenas de malucos-beleza, musaque era do movimento. Cheguei no fim da tarde


182e participei de correrias pela praia e banhos demar, todos nus e abraçados e se beijando. Depoisa noite inteira ao redor de uma fogueira enorme,cuja construção também foi uma festa. Jáaltas horas, uma atitude de Janis me surpreendeu,a mim e a muitos hippies que ali estavam:ela começou a beber cachaça. Bebeu muito.Para nós o álcool era uma coisa superada, umadroga que não servia ao autoconhecimento e àpercepção extra-sensorial, não tinha as propriedadesperceptivas da canabis e do LSD. Era umadroga careta. Foi um susto, ou não estávamosentendendo o nosso próprio caminho ou a Janis,uma estrela-guia, é que não tinha percebido averdadeira dimensão daquela aventura.Esse episódio aparentemente sem importânciafoi o primeiro a descortinar, para mim, a possibilidadede ramificações do movimento, derupturas internas, a suspeita de que o desbundeera passageiro, que um dia o sonho podia acabar.Um tempo depois, lá mesmo em Arembepe,um fato exponencialmente mais grave marcouo início do fim: alguns hippies deixaram de serpacíficos (ou seja, traíram o princípio básico domovimento) e um deles foi morto por um pescador.A fraqueza humana, a estupidez humana,o mau uso das drogas e a forte pressão dos poderesconservadores do mundo contra o sonho,


que estava sendo posto em prática por aquelageração, fizeram estragos incontornáveis. Em1974 o hippismo, como movimento planetário,deixou de existir, mas suas sementes continuaramflorescendo no espírito de muita gente. Nomeu continuam a florescer. Meu comportamentoe minha conexão com o mundo são pautadospelos sentimentos pacíficos e pela estetização davida que herdei daquela militância hippie — etambém, em igual medida, pela responsabilidadeabsolutamente pessoal de tudo que eu façoe que me acontece, que aprendi com os mestresiorubás da Bahia.Grupo Barra183No Rio, Conceição e eu organizamos uma trupede teatro itinerante, em sociedade com o atorNelson Mariani e a atriz Beatriz Lira: o GrupoBarra. Criamos espetáculos com 50 minutos deduração, adaptáveis para platéias adultas, adolescentese infantis. Íamos buscar essas platéiasnas escolas, universidades, igrejas, associaçõescomunitárias e nas praças públicas, evitando osteatros. Tínhamos uma excelente produtora,Sofia Mariani, a quem chamávamos Mama Sófia,que vendia espetáculos em todo o Estado doRio de Janeiro. A duração de 50 minutos tinhaa ver com o tempo das aulas das escolas, o que


Com Conceição, 1974


permitia apresentar os espetáculos durante ohorário escolar. A estratégia era preço baixo emuitos espetáculos. Sofia vendia os espetáculospelo preço que o freguês pudesse pagar, emtodo o Estado, e o grupo fazia as turnês, comtrês ou mais apresentações por dia, deslocandoseconstantemente. No início foi trabalhoso maslogo ficou fácil porque os espetáculos agradarammuito aos primeiros compradores, que encomendaramoutros e propagaram seu entusiasmo paraoutras escolas, prefeituras, igrejas e associações.Durante três anos percorremos doze vezes asperiferias da cidade do Rio e os municípios doEstado do Rio.Montamos cinco espetáculos, sempre com oelenco fixo (Conceição, Nelson Mariani e BeatrizLira) e com atores contratados para as diversaspeças (Bayard Tonelli, Toninho Vasconcelos,Nery Victor e outros, muita gente participou daexperiência). Eu cuidava dos textos e da direçãoe, às vezes, também atuava. Os temas eramescolhidos com um olho nos nossos interessesartísticos e com o outro na produção, visandoaos estímulos e aos acontecimentos públicos.O repertório começou a ser montado com ViaCrucis, a Humanidade de Cristo, destinado àépoca da Semana Santa: Cristo sendo torturadoe interrogado durante 50 minutos, acusado de185


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subversão e incitação das massas. Depois, paraa época natalina, Natal na Praça, que adapteido texto de Henri Ghéon, um bando de ciganosque tenta apresentar um Auto de Natal mas seesqueceu do texto e tem de se virar diante dopúblico. Na mesma perspectiva fizemos NatalOutra Vez, de Nelson Mariani, onde os ciganosse apresentavam ainda mais atrapalhados e engraçados.O País estava comemorando os 150anos da independência e criamos Onde o <strong>Brasil</strong>Começa, o jogo político palaciano no momentoem que Pedro I decide separar-se de Portugal. Efechamos o repertório com um espetáculo etéreoe filosófico sobre o vôo, o desejo humano de voare a conquista tecnológica do espaço, Céus NuncaDantes Navegados. Uma viagem no tempo, desdeo mito Minotauro-Dédalo-Ícaro até Armstrongpisando na Lua, passando por Santos Dumont.187Os textos que mandávamos para aprovação dacensura tinham caráter religioso ou histórico,cuidadosamente limpos de qualquer relação coma ditadura. Eram textos enganosos e os censoresraramente faziam a censura do espetáculo,como era comum. Dispensavam esse segundoestágio da censura (primeiro examinavam o textoe depois o ensaio geral) porque eram peçasreligiosas e nas poucas vezes que pediram paraver o ensaio geral foram enganados outra vez


188porque os atores apresentaram o texto falso.Essa era a característica do Grupo Barra, a deapresentar distintas versões do mesmo espetáculo,um camaleão: para praças, para espaçospequenos, para crianças, para adultos e, claro,para enganar a censura. A preparação dessasmontagens moduláveis, adaptáveis, era uma novidademuito estimulante para os atores e paramim, era um constante desafio na construçãodos personagens e na encenação, no grafismomutável do espetáculo. Nos valemos da experiênciacom o teatro de cordel, do dinamismocênico desse teatro, tanto que quase todo oelenco era oriundo do Cordel que fizemos noRio (onde também estava a Isolda Cresta). A estratégiafuncionou no que se refere à censura,mas não evitou problemas com alguns diretoresde escola e, principalmente, com a Igreja. Houvedenúncias de subversão e distorção de fatos históricoscontra Onde o <strong>Brasil</strong> Começa, a censurafoi ver o espetáculo, fomos avisados a tempo econseguimos nova autorização. Mas sabíamosque em qualquer momento podia acontecer umflagrante (censores vendo o espetáculo sem quesoubéssemos de sua presença) e isso acarretariapossivelmente o fim da trupe, a proibição doGrupo Barra. Tiramos a peça do repertório econtinuamos com as outras.


Quanto à Igreja, a questão foi com Via Crucis,a Humanidade de Cristo, com música de PinkFloyd e iluminação psicodélica alcançando todaa nave das igrejas, do teto ao chão (a luz eraum barato, equipamentos de última geraçãoe muito potentes, trazidos dos Estados Unidospelo nosso jovem iluminador Bill, que aportou noRio fugindo da Guerra do Vietnã e se juntou aoBarra). Tínhamos a adesão entusiástica do PadreÍtalo, da igreja de Copacabana, que recomendouo espetáculo a várias paróquias chefiadas porpadres progressistas. Pedíamos novas recomendaçõesa esses padres e elas nos abriam portasde outras igrejas, principalmente no interiordo Estado do Rio. Mas também aconteceramfortes reações por parte de outros padres, quenos tacharam de hereges e nos ameaçaram coma excomunhão. Fomos expulsos de algumasigrejas, fomos pivô de atritos entre sacerdotes.E também aconteceram, poucas vezes, reaçõesadversas de espectadores, o mais grave em umaigreja de Botafogo. O espetáculo era apresentadodentro das igrejas, o altar e os corredoresda nave transformados em palco. Essa igreja deBotafogo é enorme e estava completamentelotada. Durante a apresentação alguém fez umcomentário sobre a sexualidade daquele Cristo (éhomem ou mulher ou veado?) e foi duramentecontestado por pessoas que estavam perto. A189


discussão continuou depois da apresentação, noamplo átrio da igreja, e degenerou em uma brigaviolenta entre dois grupos, luta corporal.190A recepção majoritária aos espetáculos do Barraera muita boa, o público se encantava com aatmosfera ao mesmo tempo circense e onírica,com luzes de sonho, as crianças adoravam (porexemplo, em Natal na Praça os atores-ciganosfaziam mágicas de circo todo o tempo, objetosdesaparecendo e aparecendo, uma cigana tirandometros de pano da boca para poder dizersua fala e coisas assim). E era muito público, asapresentações pagas pelas prefeituras reuniampequenas multidões nas praças, milhares de estudantesnos pátios das escolas, igrejas cheias.Mas aquelas reações contrárias eivadas de violênciame faziam lembrar da destruição de meusfilmes e me punham em guarda contra o piorresultado dessas pressões, que é a autocensura.Era difícil entender que um teatro claramentefocado no entendimento entre as pessoas, naconvivência pacífica e na evolução espiritual etecnológica do ser humano pudesse causar ameaçasde excomunhão e de prisão — mas tinhade entender, pois se tratava da realidade, doCristo homem assassinado no passado, de JohnLennon assassinado no futuro e de tantos outrostristes exemplos na história humana. Diante de


tal quadro, o mais importante era superar omedo e não cair na armadilha da autocensura,da negação de si mesmo.Em 1974 os jornais do Rio registravam a grandeaudiência de nossos espetáculos e a ditaduratentou cooptar o Grupo Barra: a produtora foicontatada pelo Ministério da Educação e Cultura,que ofereceu uma dinheirama para que montássemosum espetáculo sobre os bandeirantes, aser apresentado em turnê por todo o País. Haviana proposta uma clara intenção de metaforizaras Entradas e Bandeiras com o governo ditatorial,com a expansão das redes de televisão,com a Transamazônica. Era muito dinheiro e aprodutora tentou nos convencer que podíamosutilizar a natureza mutável dos espetáculos Barrapara enganar a ditadura, para fazermos umespetáculo nosso e não o espetáculo encomendado.Não aceitamos esse plano, evidentementeinexeqüível, e o grupo foi desfeito. Tínhamos,Conceição e eu, uma opção irrecusável: o convitede Jorge Bodanzky para fazermos um filme(valham-nos coincidências, se é que existem)justamente sobre a Transamazônica.191Só voltaria a dirigir teatro nos anos 1980, trêsespetáculos: Xana, A Voz Humana, Ajaká. O primeirofoi um projeto lincado com o lançamentodo meu livro Xana (Editora Codecri, 1979), so-


192bre a Amazônia, uma colagem de cenas, com20 atores e, digamos, edição cinematográfica,com cortes constantes de uma cena para outra.Teve uma apresentação no Rio, no ParqueLage, com elenco carioca, e duas apresentaçõesem Salvador, no amplo Museu do Unhão, comelenco baiano. No elenco carioca estava NormaBengell e logo depois eu a dirigi no conhecidomonólogo A Voz Humana, de Jean Cocteau,apresentado no Teatro Guaíra, em Curitiba. Aspessoas me diziam que era impossível dirigir LaBengell, uma diva temperamental e inteligente,em um monólogo. Que a direção seria atropeladae, portanto, desnecessária. Minha amizadecom Norma já era antiga naquela época, vinhado início dos anos 1960 e, se eu sabia do seufamoso lado temperamental, também sabia dooutro lado, da sua docilidade e ternura. Fizemosum trabalho a dois, harmonioso e tranqüilo, sematropelos, com bom resultado.Ajaká foi uma experiência místico-teatral, ummusical recriando (ou ampliando) o mito deOgum na dimensão afro-baiana, no contextoda diáspora africana. Inventei o espetáculo comMestre Didi, sumo sacerdote do candomblé, ecom Juana Elbein dos Santos, autora do livroOs Nagô e a Morte, obra prioritariamente referencialsobre a religião dos orixás (e com quem


eu havia trabalhado antes, na concepção dodocumentário Iyá mi Agbá, direção dela, sobrea Grande Mãe ancestral dos iorubás). Durantetodo o tempo, desde a concepção até as apresentações,uma concentração mística profundae benfazeja envolvendo os dançarinos-atores,os músicos e os autores-diretores. Um elenconegro encabeçado pelo ator-dançarino MárioGusmão (ele mesmo, hoje, a caminho de setornar um mito na Bahia), pela dançarina ecantora Inaycira (filha de Mestre Didi, netada grande ialorixá Mãe Senhora do Iylê ApóAfonjá) e pela mestiça Conceição, já que setratava de um mito afro-baiano, com ênfaseem ambos os conceitos. Uma produção da Sociedadede Estudos da Cultura Negra do <strong>Brasil</strong>,a Secneb, criada por Mestre Didi e Juana, e daqual sempre participei. Foi apresentado emalguns terreiros nagôs no Rio de Janeiro e feztemporada no pátio da Fundação Cultural daBahia. Foi a experiência que mais me aproximoudo caráter sagrado do teatro, do antiqüíssimoenlace do teatro com a transcendência,com a natureza dos deuses.193Aí encerrei, não sei se para sempre, minha intimidadecom o teatro, o mergulho nas entranhasdo teatro que tinha começado lá na infância, nãopor falta de amor a esse mundo mágico do pal-


co e das gambiarras, a essa arte seminal, a maisancestral de todas, na verdade a que mais meatrai. Mas sim porque ela exige disponibilidadeabsoluta, é uma arte tão visceral e profunda quea única relação admissível com ela é a de entregatotal, de corpo e alma. E eu não tenho essa disponibilidade,essa virtude da dedicação absolutados verdadeiros artistas teatrais, porque soudispersivo e curioso com relação à diversidadedas linguagens artísticas e não artísticas. É aquelabrincadeira: se eu fosse pássaro seria beija-flor,se fosse inseto seria mosca de padaria, se fossemédico seria clínico geral.194Jornalista ViajanteNo Rio voltei ao jornalismo. Ainda vivendo aexperiência hippie, no início dos anos 1970, voutrabalhar na editoria internacional do Correioda Manhã, que estava vivendo seus momentosfinais. Em seguida vou para a Última Hora, ondefico por um bom tempo e começo um novo ciclo,a vida viageira de jornalista ambulante. Deeditor e comentarista de assuntos internacionaispassei a repórter internacional, deslocando-mede acordo com os acontecimentos. Depois voupara o Jornal do <strong>Brasil</strong> e faço muito trabalhofreelancer para agências de notícias. É umaatividade intensa, interrompida algumas vezes


para a realização de filmes, que se estende até1982. Meu primeiro território de cobertura foia convulsionada América Latina dos anos 1970e o segundo foi a África, com várias guerras delibertação nacional e formação de novos Estados.Cobri a volta e a morte de Perón, a ascensão eo assassinato de Allende, o governo do generalVelasco Alvarado no Peru, os golpes militares naArgentina, no Chile, no Uruguai. Investiguei epubliquei uma situação grave no Uruguai, envolvendoo presidente Bordaberry, pau-mandadodos militares: o lastro-ouro do país estava no fim,tinha desaparecido por má gestão e roubalheira,e o fato estava sendo escondido dos credoresinternacionais e das bolsas de valores. Mas essetipo de trabalho era raro, o meu enfoque erano impacto dos fortes acontecimentos políticosda época, em todo o continente, nas pessoas, napopulação. Era um entrelaçamento de reportageme crônica.195A opção pelo jornalismo internacional, pelo focona política global, foi uma estratégia pessoalpara que pudesse continuar fazendo jornalismosem muitos problemas com a ditadura brasileira.É claro que estabelecia pontes entre as situaçõesdos países vizinhos e o que estava acontecendono <strong>Brasil</strong>, necessárias em uma visão continental,mas eram sutilezas que a censura e a organização


196ditatorial não percebiam ou não davam importância,eram matérias na página internacional,notícias de fora. Apesar do meu enfoque preferencialser a periferia do fato, o impacto dofato nas pessoas não diretamente envolvidas, nasvítimas, muitas vezes fui envolvido diretamente,os tiros chegaram bem perto. Um bom exemploé o episódio conhecido como Massacre de Ezeiza,ocorrido no aeroporto de Buenos Aires no diado retorno de Perón à Argentina (20 de junhode 1973) depois de dezoito anos de exílio naEspanha. O peronismo tinha ganho as eleições,eleito Hector Cámpora presidente da República,e nesse dia se esperava a chegada de Perón paraque Cámpora passasse o governo para ele (o queaconteceu dias depois).No dia da chegada dele estavam reunidas entredois e três milhões de pessoas em uma áreaenorme em frente ao Aeroporto de Ezeiza, emBuenos Aires. Eu tinha de ir com o pessoal daagência UPI, me atrasei, houve um desencontro,tive de pegar um táxi e não consegui alcançar aárea destinada aos jornalistas, perto do palanqueonde Perón deveria falar. Quando chegueijá estava aquela multidão impressionante, deixeio táxi e continuei a pé. Enquanto cruzava comdificuldade aquele mar de gente em direçãoao palanque principal, abrindo caminho com a


carteira de jornalista, via lá longe movimentosna multidão, como um redemoinho no mar,redemoinhos de pessoas. Dava para ver longeporque o terreno é ondulado, com elevações.Achei estranhos aqueles movimentos no meiodo povaréu e, de repente, vejo perto de mim umcara, louro, altão, tirar de dentro de sua jaquetade couro um artefato. Era uma metralhadorapequena, uma metralleta. O cara começou aatirar para o alto.Aquele redemoinho de gente que eu via longecomeçou a acontecer onde eu estava. Gritaria,tiros, correria, uma loucura. Havia alguns carrosparados no meio da multidão, ilhados, e me metiembaixo de um deles, duas pessoas também semeteram aí. Durante um tempo interminável ficamosencolhidos ouvindo a gritaria, o ruído daspessoas se chocando contra o carro, que balançavaforte. A situação se acalmou e saí de baixo docarro, tentei continuar andando em direção aopalanque, que já estava perto, e novos tiros demetralhadora soaram, o pessoal que estava nopalanque também atirava, o palanque era o focodo tiroteio. Virou pandemônio, salve-se quempuder. A muito custo alcancei uma zona comárvores, um bosque, e fiquei deitado embaixode um arbusto com muita folhagem. Vi pessoasde carro caçando gente com metralhadoras,197


atirando em qualquer um que se movesse nessebosque. O que estava acontecendo era umadisputa entre facções peronistas pelos melhoreslugares no palanque e por maiores parcelas depoder junto a Perón. Em luta os Montoneros deesquerda e a direita sindical da Central Única deTrabalhadores. O confronto em Ezeiza resultouem 13 mortos e 365 feridos (dizem que foi mais,nunca houve uma investigação oficial). Perónnão desceu em Ezeiza, aterrissou em uma basemilitar. No outro dia, no <strong>Brasil</strong>, o jornal ÚltimaHora sai com uma manchete espetacular, repórterescapa da morte para contar o massacre.198Esse trabalho causava suspense e apreensãoem minha mulher e na minha família, a comunicaçãonão era tão fácil como hoje, não haviacomputadores nem celulares, às vezes eu sumia.Durante o bombardeio do La Moneda, o paláciopresidencial do Chile, eu não estava em Santiago,mas minha mulher achou que eu estava. Realmenteeu deveria estar em Santiago do Chile nodia da queda do Allende, mas o meu editor AriCarvalho me deslocou para Buenos Aires, apesarda minha insistência de que não deveria sair doChile, a situação estava se agravando em ritmogalopante com a reação da direita a declaraçõesde Carlos Altamirano, secretário-geral do PartidoSocialista, a crise estava chegando a uma


situação limite. Mas o editor estava decidido,você tem que ir pra Buenos Aires, sua base é lá.Quando cheguei a Buenos Aires estavam bombardeandoo La Moneda em Santiago e minhagente pensando que eu estava no meio daquelaconfusão toda.ÁfricaNa África o cenário não era de golpes e ditadurasmilitares e sim de guerras de independência eorganização política e social dos novos países independentes,incluindo nessa moldura conflitosinternos nesses países e interferência armada daÁfrica do Sul em Angola, Moçambique, Namíbiae outros países. Era uma colcha-de-retalhos deexércitos nacionais, guerrilheiros e bandos armados.Trabalhei na Tanzânia, Zimbábue, Botsuana,Moçambique e outras zonas de conflagração naregião subsaariana e também no norte árabe docontinente, principalmente em Marrocos e noSaara, onde os guerrilheiros tuaregues da FrentePolisário enfrentavam o exército marroquino eo plano do rei Hassan II de anexar o Saara Ocidental,ex-colônia espanhola.199Em 1975, aproveitando a agonia do regimefranquista na Espanha, o rei Hassan II marchoupacificamente Saara adentro com 350 mil mar-


200roquinos, tentando ocupar a colônia espanhola.Foi a impressionante Marcha Verde. Imediatamentea Espanha saiu fora do assunto, doandoo Saara Ocidental ao Marrocos. Mas o projetodos sarauis, os habitantes nômades do Saara, osbeduínos, era um Estado independente, a RepúblicaÁrabe Saraui Democrática, e enfrentaramo Marrocos com a sua Frente Polisário, formadapor guerreiros tuaregues. Em 1976 o desertoestava conflagrado e consegui, em Paris, um contatocom a Polisário. Eu queria ver a guerra pelolado dos sarauis, dos tuaregues. O contato mepassou o endereço de um hotel em Marrakesh,onde deveria esperar novo contato. Fui e fiqueimuitos dias nesse hotelzinho de árabes, longedos hotéis de turismo, sem nenhuma notícia.Já estava perdendo a esperança quando doispolisários batem na porta do meu quarto, entramsorridentes, pedem desculpa pela demorae, no meio da conversa, enrolam três cigarrosde haxixe, um para cada um. E assim me informeisobre as razões e os planos dos tuaregues,em uma viagem de haxixe, hábito milenar dosárabes, usado por Sherazade enquanto contavasuas histórias ao sultão durante 1.001 noites epor Saladino enquanto enfrentava os Cruzados.Levaram-me a umas tendas no deserto,não muito longe da cidade (Marrakesh estavasuperinfiltrada por agentes polisários, por isso


esses movimentos eram possíveis), para novoencontro com guerrilheiros tuaregues e de novoo haxixe correu solto. Fiz duas incursões às basesmóveis deles, móveis porque são nômades e semisturavam com as caravanas de comerciantes,com os acampamentos dos civis, dificultando osataques da aviação marroquina. Só não se misturavamcom os ciganos, outro povo andarilho doSaara. As caravanas e os acampamentos ciganose beduínos sempre estão perto uns dos outros,mas eles não se dão, não se falam. Os tuareguesme explicavam, não temos nada a ver, cigano éindiano, beduíno é berbere, fazendo alusão àsua condição de árabe-berbere, falante da línguaberbere. Mas voltemos a Marrakesh.201Aqueles longos dias de espera pelo contatopolisário foi o tempo para me apaixonar porMarrakesh, essa cidade delirante, entre o desertoescaldante e a cordilheira do Atlas com seuscumes nevados. Voltei outras vezes, com Conceição,fizemos amizades eternas, conhecemos acidade por dentro, seus costumes, freqüentamosa intimidade de algumas famílias, vivenciamos oRamadan (o mês sagrado muçulmano, abstençãototal durante o dia e muita comida, haxixe e sexoà noite). Aproveitamos nossas idas ao Marrocospara conhecer, sempre viajando de trem, todo onorte da África e nenhuma cidade se apresentou


a nós com o charme de Marrakesh, que tambémé um lugar especial, como terminamos descobrindo,para todos os árabes africanos. Quandosinto necessidade de alimentar o espírito vou aLençóis ou a Salvador da Bahia ou a Santiago deCuba ou a Marrakesh.Cabeças Cortadas202Mas a prioridade era Angola, principalmenteapós a independência em 1975, quando quatroforças se digladiavam pelo controle do país: oesquerdista Movimento Popular de Libertaçãode Angola-MPLA, apoiado por União Soviéticae Cuba, comandado pelo poeta Agostinho Neto,da nação kimbundu, que tomou Luanda e ocupouo governo; a racial União Nacional para aIndependência Total de Angola-Unita, tribalista,liderada pelo rei kuacha Jonas Savimbi, da naçãoovimbundu, com apoio dos Estados Unidos e daÁfrica do Sul e seu regime do apartheid; a racistaFrente Nacional de Libertação de Angola-FNLA,encabeçada por Holden Roberto, um homemestranho e carismático, e apoiada pela Repúblicado Congo; e o exército invasor da Áfricado Sul. Várias frentes de batalha, um inferno, oúnico lugar mais ou menos seguro era Luanda,a capital.


Um dia estava em Benguela, ao sul de Luanda,e a cidade foi atacada pelos sul-africanos. Todosos estrangeiros, que eram poucos, foram mandadospara a capital em um avião de passageiros,superlotado. Aí estava também Geraldo Sarnoexibindo filmes brasileiros (imagine, mostra decinema no meio da guerra!), que conseguiu oúltimo lugar nesse avião: o banheiro. Fiqueimais algumas horas, anotando as reações dapopulação em pânico, fazendo pequenas entrevistas.O som dos canhões estava cada vez maisperto e fui para o aeroporto, me apresentei aum oficial e ele ficou estarrecido porque euainda estava ali, além de estrangeiro, jornalista.Levaram-me para a torre de controle, onde umcoronel estava coordenando os preparativospara a defesa do aeroporto, antiaérea e terrestre.Não havia aviões no aeroporto, todos játinham decolado, e o coronel ficou nervoso coma situação. Alguns aviões soviéticos estavam vindodo sul com refugiados de guerra, passandopor cima de Benguela, e o coronel mandou umdeles descer para pegar um jornalista. O pilotonão obedeceu, desligou o rádio, o coronelficou furioso, xingou os russos. E o canhoneioterrestre cada vez mais perto e eu sabendo,pelo que ouvia na torre, que um ataque aéreopoderia ocorrer a qualquer instante. Até queo coronel conseguiu baixar um avião, pilotado203


204por angolanos, na base do grito e de ameaças.O avião nem parou para eu entrar, enquantotaxiava lentamente para fazer a volta e subirde novo, baixou a porta traseira (aquelas portasgrandes de aviões cargueiros e militares) e subicorrendo. Era um avião enorme, com bancos aolongo da fuselagem, e estava entupido de gentee de objetos domésticos, sacos, malas, alimentos,instrumentos de trabalho, perto de mimtinha uma grande gaiola com galinhas. Enormee lento, levou o dobro do tempo normal paraaterrissar em Luanda. Depois soube que nãohouve o esperado ataque aéreo e que o MPLA,com ajuda dos cubanos, havia detido o avançosul-africano, Benguela não foi ocupada.Para cobrir os conflitos das ex-colônias portuguesasera indispensável freqüentar Lisboa, ondeestava acontecendo o problema dos Retornados,milhares de portugueses e de filhos e netos deportugueses chegando a Portugal, fugindo ousendo expulsos das ex-colônias. A questão eracomida, moradia e emprego para toda essagente em um momento em que Portugal, justamentepor ter perdido as colônias e por terpassado pela Revolução dos Cravos, estava coma economia em frangalhos. Os portugueses nativosreagiam fortemente contra essa invasão,muitas vezes violentamente, vi muitas brigas nas


uas e em restaurantes populares. Boa parte dosRetornados era de gente nascida e criada nascolônias, não conhecia Portugal e tudo que tinhahavia ficado na África. Lisboa era pura tensão,todo mundo com os nervos à flor da pele. Alémdo mais, e isso é importante para um repórter,Lisboa era o centro nervoso dos espiões (aliás,uma antiga tradição da cidade, que teve o fluxode espionagem mais intenso da Segunda GuerraMundial, acobertada pela neutralidade de Portugal).Agentes secretos dos três movimentos delibertação de Angola, da Frelimo de Moçambique,da África do Sul, do Congo, da CIA, da KGBfreqüentavam todas as noites dois ou três baresdo Rocio, os mesmos bares. Um clube de espiõesque funcionava e se mexia no meio de barescheios também de outras pessoas, de gente dobairro, de jornalistas como eu.205A reportagem de maior repercussão que fiznessa época foi gerada em um desses bares doRocio de Lisboa. Aí tive uma longa conversa comum mercenário português, que se abriu comigoporque estava irritado com os Retornados e comLisboa, não é mais a minha cidade. Só no fim deseu desabafo me identifiquei como jornalista eele ficou me olhando um tempo e disse podeescrever, não me importo. Fui para o hotel eescrevi o que tinha ouvido, freneticamente, me


206esforçando para não esquecer nada, nenhumdetalhe. Era um ex-capitão, expulso do exércitoportuguês por crueldade, daquele exércitoportuguês colonialista e terrível pré-Revoluçãodos Cravos. Pois o cara tinha sido expulso porcrueldade de um dos exércitos mais cruéis domundo. Foi para a África do Sul e alistou-se comomercenário, voltando a guerrear em Angola eMoçambique. O título é Cortar Cabeças, umaProfissão como as Outras, publicada no Jornaldo <strong>Brasil</strong>. Apenas reproduzo, sem interferênciade qualquer natureza no texto, sem condenaçãoou crítica, o que aquele homem (que sentiaprazer em cortar cabeças de africanos mas muitomais em cortar cabeças de cubanos) me dissenaquela noite. Os sentimentos e as idéias daquelemercenário sangrento eram brutalmentechocantes e a reportagem foi muito comentadae difundida, o governo angolano mandou cópiaspara centenas de autoridades e comandantesmilitares do país. Em um encontro que tive com opresidente Agostinho Neto alguém o avisou queeu era o autor daquela matéria e ele disse quetinha sido a exposição mais clara e horripilanteda mente de um mercenário que já tinha visto.Amir Haddad trabalhou teatralmente esse textocom o grupo carioca Tá na Rua, como exercíciopara seus atores.


RetiradaEssa proximidade com a violência não me faziabem, às vezes me transtornava e eu chorava,muitas vezes me fazia perder o sono. Eu era umpacifista, um hippie, no meio da guerra. O sentimentode deslocamento, de estranho no ninho,de estar fora da minha praia era compensado,ou equilibrado, pelo realismo taurino que tambémme acompanha. Meu signo é Touro e meuascendente é Aquário, ou seja, pé no chão mascom a cabeça voando, nas estrelas. Minha naturezaaquariana desenvolveu uma repulsa, umanáusea (no sentido sartriano) em contato com abrutalidade da guerra. Minha natureza tauriname fazia pensar que a tal náusea era complexode superioridade, a soberba de querer ser santo,de me sentir acima das contingências da humanidade,da vida como ela é. Nessa corda bambafui tocando o barco, querendo saltar fora, masseduzido pela aventura, pela curiosidade, peloinestimável conhecimento e experiência que osconflitos ideológicos e políticos de alta violênciame proporcionavam no que se refere ao ser humano,ao homo sapiens, incluindo especialmentea mim mesmo. Esse nó psicofilosófico só desateino início dos anos 1980, quando me demiti dessetrabalho, abandonei os campos de batalha, osdeles e o meu, particular e interior.207


Preparando uma cena de Iracema, na Transamazônica, 1974


Capítulo VIracemaIntercalados nessa atividade de correspondentede guerra, fiz três filmes: em 1974 Iracema, em1975 Gitirana, ambos em co-direção com JorgeBodanzky, e em 1976/77 Diamante Bruto. Essesfilmes conformam uma trilogia, cujo eixo principalé a aproximação à realidade nua e crua apartir de ganchos ficcionais. Estava terminandoo trabalho com o Grupo Barra, início de 1974, eum dia me chega o Jorge com um projeto paraa TV alemã, um filme na Amazônia, e me chamapara fazermos juntos. Não havia uma idéia precisasobre o que íamos fazer. O que havia era otema da Amazônia em plena ditadura militar, ogrande interesse da Europa e dos Estados Unidossobre o tema e a confiança da TV alemã ZDF nacâmera de Jorge Bodanzky, um fotógrafo excepcional.Tínhamos de encontrar o filme e fomoscaçá-lo. Nos metemos em um fusca, nós dois emais o produtor alemão Wolf Gauer, e partimosde São Paulo em direção a Brasília, fizemos todaa Belém-Brasília, exploramos Belém do Pará e oAmazonas (os igarapés, a baía de Marajó) e nosmetemos pela Transamazônica, do rio Araguaiaaté a região de Marabá. Viagem longa, parandoem todo lugar, conversando muito, uma pes-209


quisa minuciosa. Estive todo o tempo com umpequeno gravador no bolso, gravei dezenas defitas, centenas de conversas (boa parte dessematerial está no meu livro Xana, que tambémnarra as filmagens de Iracema e outras viagensamazônicas).210Eu gravava as conversas, Jorge fotografava,aprendemos a ficar mais tempo nos lugarespara ganhar a confiança das pessoas, para conversarmelhor, mais relaxadamente. Parávamosnos pontos dos caminhoneiros, nas quitandasdos igarapés, nos bares onde se reuniam osmadeireiros, nos bordéis. Uma vivência bemvisceral, em alguns momentos perigosa, comuma polícia militar onipresente e altamentedesconfiada, com malfeitores suspeitando denossos equipamentos e nossas perguntas. Tambémhavia a questão sanitária, tomamos vacinase remédios contra febre amarela, usávamos repelentes.(Depois, durante as filmagens, quandochegávamos a um daqueles hotéis sujos,alguns repugnantes, Conceição despejava umagarrafa de álcool no banheiro e tocava fogo,para desinfetar; removia as coisas de plásticoe as toalhas e tocava fogo, um dia por pouconão tivemos um incêndio). A vida no asfalto daBelém-Brasília era muito agitada, gente de todoo País circulando, tentando se estabelecer nas


margens da estrada, a presença ostensiva dosmilitares. A exploração de Belém e do granderio nos deu uma visão aguda dessas duas realidadesentrelaçadas. Mas foi na Transamazônicaque nossas sensibilidades foram tocadas maisfundo. Não penetramos muito na estrada deterra com grandes trechos ainda em construção,não foram mais que uns 500 quilômetros,sempre com paradas prolongadas.Na medida em que nos aproximávamos deMarabá crescia o policiamento e a presença doexército, com muitas barreiras na estrada. Desistimosde prosseguir não apenas pelas barreiras,pela desconfiança que causávamos nos policiais(só depois soubemos o que estava acontecendona zona), mas também porque já tínhamos vistoo bastante, já tínhamos encontrado o caminhodo filme. Queimadas gigantescas, prostituiçãomiserável, a angústia dos nativos sendo expulsospara longe da estrada, contrabando de madeira,grandes corporações nacionais e multinacionaisse instalando e destruindo a floresta, trabalhoescravo. A obra que o governo ditatorial apresentavaao País e ao mundo como a jóia dacoroa do milagre econômico era uma mescla deprostíbulo e covil se estendendo por milhares dequilômetros, com alta deterioração ambiental ehumana e altíssimo índice de violência.211


212Embora Jorge já trouxesse de São Paulo algumasidéias, o impacto desse universo em convulsão foia semente real do filme e a decisão foi mostraro conflito que ali existia, diretamente, e reforçara informação com uma história emblemática,com uma história que contivesse a dimensãodesse conflito em uma relação humana, emuma relação emocionada. Foi aí que falamospor primeira vez, Jorge e eu, em cunha ficcional,em uma alavancagem da realidade no sentidode tornar mais explícita sua incidência no serhumano. Ou seja, ampliar ficcionalmente doisou três personagens, destacá-los do cenáriohumano ao qual pertencem, para que os espectadorespudessem se identificar com eles. Haviamuitas histórias possíveis, a estrada transtornavae transformava as existências dos nativos edos imigrantes. A estrada interferia na selva demaneira brutal, extirpando ou expulsando asformas de vida que existiam antes. Por exemplo:índios e animais não existem no trajeto daestrada, tanto que, embora pouca gente tenhanotado, não existem animais em Iracema. Nãohá animais no filme porque eles tinham fugidoda estrada, não encontramos nenhum para filmar,com exceção de bichos domésticos. Muitashistórias eram possíveis, mas a que mais se evidenciavaera a ligação entre os caminhoneirose as jovens prostitutas, personagens de grande


evidência naquele mundo tortuoso. Uma noite,em um dos muitos hotéis de péssima qualidadeque utilizávamos, nos últimos dias da pesquisa,as decisões básicas sobre o filme foram tomadas,incluindo o título. Jorge já pensava em Iracemacomo nome da personagem, devido ao grandenúmero de mulheres com esse nome em Belém,incluindo várias prostitutas, e a ilação com o romancede José de Alencar, no sentido da relaçãodo conquistador e da conquistada e vice-versa.Naquela noite também ficou decidido que onome da personagem seria o título do filme.Além desses motivos, me estimulava o fato deIracema ser um anagrama de América.Voltamos, o Jorge para São Paulo e eu para oRio, com a tarefa de escrever um roteiro, umroteiro possível na perspectiva que tínhamosescolhido, ou seja, de fato é a estrada que temde construir a história. O roteiro era necessáriopara desenhar os movimentos da nossa ficção,as interferências que se fariam necessárias para,digamos, emocionalizar o filme. Também necessáriopara a ZDF, para que os produtores alemãestivessem uma idéia do que íamos filmar. Ouseja, um roteiro aberto. Para alguém que nãoestivesse envolvido na operação dramática queestávamos trabalhando, a leitura desse roteiropassaria a impressão de um filme de ficção meio213


214descontínuo, uma seqüência de cenas e diálogose algumas indicações de locação. Para nós era umalinhavo, apontamentos sujeitos ao destino, aoacontecer diante da câmera. Coloquei ficção entreaspas, quando falei da feitura do roteiro, porqueo que fiz foi organizar dramaticamente (ou seja,em ritmo crescente) uma série de acontecimentose circunstâncias que havíamos vivido ou testemunhadodurante a viagem de pesquisa, ou quehavíamos escutado nas centenas de conversas eentrevistas. Os longos papos com caminhoneirose jovens prostitutas, as muitas horas em bares,bordéis, puteiros, tinham conformado os perfisdos personagens Iracema e Tião <strong>Brasil</strong> Grande,clones de muitas prostitutas com 13 ou 14 anos deidade e de muitos caminhoneiros entusiasmadoscom o tal milagre econômico, com a abertura deestradas. O resto teria de ser feito pelos atores,em uma linha de atuação de acordo com essaengenharia, com essa ficção entre aspas, comessa reprodução do real, e pelos não-atores, pelaspessoas que seriam elas mesmas.Voltamos a Belém algumas vezes, Jorge e eu,em afazeres de pré-produção mas principalmentepara encontrar uma pessoa que pudesseencarnar e particularizar Iracema, uma atriz ouuma não-atriz que se ajustasse à imagem quetínhamos daquele personagem visto tantas ve-


zes na estrada. Estivemos com algumas jovensatrizes e não calhava. Havia a possibilidade deutilizar uma prostituta real, fazê-la viver seupersonagem-ela-mesma como nos filmes de RobertFlaherty, mas não consideramos seriamenteessa hipótese, que apresentava riscos humanosconsideráveis. O tempo estava passando, iníciode filmagem se aproximando e não encontrávamosa menina. Encontramos em um programa deauditório de rádio, assim como uma revelação:Jorge e eu botamos os olhos em cima dela aomesmo tempo e soubemos que a busca haviaterminado. Ela estava gritando e aplaudindo nomeio de outras meninas, no fundo da arquibancada,no lugar mais alto. Era Edna Cereja, 14 anosde idade, mestiça de índio com negro, vivaz, inteligente,curiosa. Disse que nunca tinha visto umfilme. Televisão sim, às vezes, mas filme nunca.A aproximação com ela e a família, a explicaçãoda proposta, que íamos levar a menina para aTransamazônica por um mês, foi difícil mas sóno começo. Graças à vontade de Edna, a famíliaconcordou mas exigiu documentos em que nosresponsabilizávamos pela menor. A mãe, índiae severa, entregou sua filha a Conceição, comoem um ritual, exigindo a promessa de devolvê-lasã e salva. Uma família operária, mãe índia, paimulato, os irmãos mais velhos trabalhando naCoca-Cola, Edna estudando.215


216Quando dissemos a ela que seu personagem seriauma prostituta, ela reagiu forte, disse nunca vouser prostituta. No seu nível social muitas meninasse prostituíam e ela sabia do que se tratava, e porisso rechaçava com veemência tal possibilidade.Mas não demorou a admitir que poderia fazer opapel de uma delas, inclusive porque conhecerameninas, na escola e na vizinhança, que tinhamse perdido na vida. Ela não tinha visto filmes,mas, rudimentarmente, acho que, como qualquerpessoa, conhecia o teatro, as encenações que vianos programas de auditório e na TV, as palhaçadascomo ela dizia. E gostava de ser palhacenta.Um mês depois desses contatos voltamos a Belémpara as filmagens e ela nos disse alegrementeque tinha ido ao cinema, tinha visto dois filmes.E disse também que seu nome artístico não seriaEdna Cereja e sim Edna de Cássia, e assim ficou.Ela foi, ela é a alma do filme, como todos sabem,mas foi também a personificação da alegria, dapureza infantil e da inteligência faiscante duranteas filmagens. Inventou apelidos para todo mundo,inclusive para a câmera: como nunca tinha ganhotanto dinheiro na vida, ela se referia à câmeracomo a Generosa. Edna é uma pessoa maravilhosa,é professora como queria ser desde menina ejá é avó. De vez em quando a gente se encontra,ela continua com o mesmo bom humor, com amesma alegria de viver.


A escolha de Paulo César Pereio foi natural,acho que a palavra é essa, natural. Com ele poderíamoster um caminhoneiro gaúcho senhorde si, cheio de malandragem, com muito escárnioe ironia. A ironia era fundamental para aduplicidade brechtiana que estava prevista eque Pereio elevou a uma dimensão magistral.Tião <strong>Brasil</strong> Grande é realmente um adepto daditadura ou está fingindo que é para se darbem? Quanto de Tião <strong>Brasil</strong> Grande e quantode Pereio, militante contra a ditadura, estãonaquele personagem? E quem se escondeatrás de quem? Pereio entendeu e adotou aproposta das dualidades (ator-personagem,personagem-repórter, Tião adepto-Tião fingidor)com rapidez e aprofundou-a quando a pôsem prática na filmagem. A primeira semana emBelém foi dedicada a esses entendimentos comEdna e Pereio. E também com a Conceição que,além de interpretar uma prostituta nordestina(elas são um bom contingente na estrada), seocupava do figurino, ou seja, de cuidar paraque as roupas e os modos dos poucos atoresnão destoasse em nada dos verdadeiros caminhoneirose das verdadeiras prostitutas.E preparamos mais quatro atores de Belém,de teatro, para pequenas intervenções. Seguindoa ordem da história que queríamoscontar, a aventura da filmagem começou no217


io, prosseguiu em Belém e se aprofundou naTrasamazônica.218A equipe básica, alojada em uma kombi, era desete pessoas: o técnico de som Achim Tappen, oprodutor Gauer, o assistente Chico Mou Carneiro,Conceição, Edna, Jorge e eu. Na fase em quePereio estava filmando a equipe road movie somavanove pessoas: os mencionados e mais ele eo camioneiro Lúcio e seu caminhão. Equipamentomínimo e leve, uma câmera Éclair, um Nagra,uma caixa de luz e mais de um mês filmandosem parar. As cenas puramente documentais, asinterferências dos atores na realidade e as cenasenvolvendo apenas atores, as três modalidadesque trabalhávamos, se sucediam ao sabor dascircunstâncias, do que íamos encontrando naestrada, ou que íamos reencontrando, porquemarcamos alguns lugares na viagem de pesquisae voltamos a eles. A última seqüência do filme,por exemplo. Aquela casa perdida no meio daestrada a gente tinha conhecido na viagem depesquisa, foi o puteiro mais devasso, miserávele sujo que conhecemos naquela viagem.Queríamos fazer a cena final ali, com aquelasmulheres imundas, e quando reencontramos acasa ela estava vazia, abandonada. Mas a cenafoi feita ali, buscamos mulheres igualmentemiseráveis em outro puteiro das redondezas,


expliquei o que queríamos delas, elas pediramcachaça e criaram aquela atmosfera que estáno filme. Elas achavam que Iracema era umadelas, nunca souberam que se tratava de umaatriz. Esse artifício foi usado amplamente, ospersonagens reais não se darem conta queTião era um ator e Iracema uma atriz: eles serelacionavam, eles conversavam, era com umcamioneiro e com uma jovem prostituta, coma câmera visível ou não. Nas cenas de violênciaIracema-Edna apanha de verdade, quando éagredida por um policial e depois por um outrohomem. Essas situações às vezes chegavam a umponto perigoso e tínhamos de interferir. Masna maioria das vezes, onde a violência explícitanão estava presente, tudo corria bem. Dou umexemplo: a cena em que uma mulher tentaconvencer Iracema a trabalhar com costura,a deixar a vida da estrada. Localizamos essasenhora trabalhando em uma casa afastada eeu disse a Edna converse com aquela mulher epeça um emprego. Ela foi lá e Jorge e Achima seguiram com câmera e gravador, a mulherestranhou aquilo e eu expliquei, disse queestávamos fotografando as moças da estrada,que não se importasse com a gente. E ela nãose importou mesmo, deixamos de existir, elaconversou livremente com aquela jovem prostituta.Com variações e muitas surpresas, as inter-219


ferências se davam dessa forma, eu soprava noouvido da Edna e do Pereio uma possibilidadede ação ou um tema e eles iam em frente. Empouco tempo Pereio já estava jogando sozinhoe dispensava minha ajuda, eu dizia esses caraspodem falar sobre os grileiros e ele enturrava,já percebi, não sou burro.220A equipe funcionava como um feixe, articuladíssima.Havia dois níveis de trabalho: as atribuiçõesde cada um e o faz-tudo de todo mundo quandoera necessário, e quase sempre era necessárionaquela selva. Achim gravava o som. Chico Mouse ocupava do equipamento, da kombi e dasnecessidades imediatas de produção. Conceiçãocuidava da continuidade, do figurino, damaquiagem e de Edna; sua ação foi importantíssimanão apenas nessas funções mas tambémna relação com as prostitutas de Belém e daestrada, na confiança que conseguia adquirir dasmulheres ao lhes dedicar carinho e compreensão(lembro-me de um episódio que a fez chorardurante um bom tempo: um bando de jovensprostitutas correndo atrás de nossa kombi, apósum dia de filmagem nesse lugar, e gritando meleva, Conceição, me leva, Conceição). Jorge seocupava da câmera, auxiliado por Gauer; euarticulava as cenas e estimulava os atores. Alémde nossas atribuições na área da criação, Jorge


A famosa Kombi, nas filmagens de Iracemae eu nos ocupávamos da produção, escolha delocações, figurantes, carros, avião.A coesão da equipe era fruto da própria naturezado trabalho e também da ameaça constante, latente,que nos cercava. Fomos presos duas vezes.A primeira por um tenente PM que nos acusoude usar drogas e que na verdade estava tentandodescobrir qual nossa verdadeira intenção ou talvezconfiscar as latas de filmes, já que o havíamos


222filmado jogando roleta em praça pública. Fomosliberados por um agente federal sob condição denos apresentarmos em sua delegacia em Belém,no prazo de tantos dias. Não nos apresentamos.A segunda vez ficamos detidos um dia inteiro nasede de uma fazenda, enquanto o fazendeirocercado de capangas checava nossos documentosatravés de um radioamador. Uma manhã fomosexpulsos de um bordel, quando filmávamos odespertar das prostitutas, por um homem armadocom um revólver. Tentei conversar com ele, dandocobertura para a equipe se ocultar em um quartoe ele me apontou o revólver bem de perto, caifora, cai fora, acho que nunca vou esquecer aquelaarma apontada para minha cabeça, a mão docara tremendo. Ele queria dar uma surra em umamulher mas sem testemunhas, e deu, bateu forteem uma linda menina muito branca, inteiramentenua, que quanto mais apanhava mais o desafiava.Jorge tentou filmar de dentro do quarto e nãodeu, a coisa engrossou ainda mais e caímos fora,entramos na kombi e Chico Mou acelerou. Logonos demos conta que a Conceição não estava nakombi, tinha ficado no bordel. Voltamos pararesgatá-la, ela estava escondida em um quarto,protegida pelas mulheres.Quando chegamos a Marabá entendemos que,além da violência civil e policial que grassava


em toda a estrada, entramos em uma zona deguerrilha, e portanto altamente militarizada. Éincrível que a gente não soubesse nada sobrea Guerrilha do Araguaia até aquele momento,quando o conflito já estava praticamente terminado.Só então entendemos as barreiras doexército que nos impediu de alcançar Marabámeses atrás, durante a viagem de pesquisa. Naverdade eu havia escutado rumores, no Rio,sobre movimentos de guerrilha no norte, masisso saiu de meu foco de atenção, havia muitosrumores. Quando chegamos à zona de conflito,os guerrilheiros estavam mortos ou presos, masa tensão ainda era muito forte, os habitantes deMarabá nos falava sobre os bombardeios combolas de fogo, sobre a presença de guerrilheirosna cidade, sobre a brutalidade dos militares. Umtenente monitorou todos os nossos movimentosna cidade, depois de nos interrogar e ser informadoque estávamos fazendo um filme para aVolkswagen. Essa atmosfera nos seguiu todo otempo e nos juntou, como eu disse, em um feixe,um feixe de solidariedade.223Sabíamos que estávamos fazendo um cinema ousado,que estávamos inventando um filme de altadenúncia social no meio de uma ditadura feroz(a era Médici) e que isso traria conseqüências. Enos encantava a todos o jeito como se filmava, a


224velocidade das filmagens, a armação das cenas, oenlace de depoimentos reais com improvisaçõesdos atores, era divertido e estimulante. Desdeos primeiros dias de filmagem sentimos estar vivendouma experiência existencial desgarradora,cada um de nós, que nossas existências estavamsendo marcadas para sempre. Mas não fazíamosidéia que o filme mudaria as vidas de todos nóstambém de outra maneira, lançando-nos a patamaresprofissionais bem mais altos, abrindocaminhos para todos, transformando a vida deEdna. O grande sucesso do filme provocou esseoutro aspecto da experiência radical de Iracema,ao mesmo tempo uma descida ao inferno e umailuminação.GitiranaIracema estreou na ZDF em fevereiro de 1975e causou um grande alvoroço, a crítica alemã(e logo depois a francesa e a de toda a Europa)ovacionou o filme, saudando a utilização daquelalinguagem nova, inesperada, ambígua,no tratamento de graves questões humanas,sociais e ambientais. Logo ganharia o principalprêmio da TV alemã, o Adolf Grimme, e tambémo prêmio Georges Sadoul da França e iniciariauma carreira européia apoteótica, na televisãoe no cinema. Diante disso, a ZDF encomendou


outro filme à Stop Film, empresa de Jorge e deGauer. E imediatamente, o mais rápido possível.Me reuni com Jorge no Rio, propus abordarmoso Nordeste e um viés mais cultural, relacionadocom a literatura de cordel. Jorge propôs tomarcomo base a peça de teatro Cordel, que eu haviamontado em São Paulo e Rio. Mas aquilo erateatro e evoluímos para a idéia de um filme decordel, cinema de cordel. Com a ZDF nos calcanhares,escrevi um roteiro em duas semanas.Recorri à memória das centenas de cordéis quehavia lido, das pesquisas para os espetáculos deteatro, do meu conhecimento da região e organizeiuma saga onde o desfile de várias históriase situações cordeleiras era possível: uma pessoarecebe do Padre Cícero a missão de encontraro Reino de Miramar, o país da justiça e da felicidade,que está em algum lugar ou em algumtempo do Nordeste. Era outro road movie, destavez transitando pela realidade e pelo imaginário.Em Iracema a imitação da realidade (a tal ficçãoentre aspas) se funde com o real. Em Gitirana afantasia se funde com o real. É uma sucessão detransformações: um garoto fica órfão e recebea tal missão do Padre Cícero, que o transformaem mulher achando que assim facilitaria a difíciltarefa, essa mulher vai se desbodrando emvárias outras, enfrentando o Diabo, a Morte,o Dinheiro e outros obstáculos, sem conseguir225


Com Conceição, 1975


encontrar Miramar, no final volta a ser homem,um operário, para ver se consegue e continuaprocurando.A mesma equipe, ainda mais reduzida: Achimno som, Gauer e Chico Mou na produção e naassistência, Jorge na câmera e eu articulando eestimulando os atores e as situações. A personagemde atração, cumprindo as funções quetinham sido de Edna e Pereio em Iracema, coubea Conceição, que provocava a manifestação daspessoas na pele de vários personagens famososdo cordel, a erotizada Marieta Purribão, arebelde Filha do Coronel, a guerrilheira MariaBonita. As filmagens aconteceram entre Juazeiroda Bahia e Juazeiro do Norte, no Ceará, incluindodramaticamente na história aberta do filmemanifestações de cultura popular (Cavalhada,Bumba-meu-boi), reuniões políticas reais, o cinismoexplícito de políticos da ditadura e o imensocanteiro de obras da represa de Sobradinho, commilhares de operários.227Apesar da mesma estratégia utilizada no filmeanterior, Gitirana é bem diferente de Iracema,inclusive porque essa estratégia funcionava demaneira distinta na secura nordestina, produziarespostas mais cuidadosas, mais metafóricas, ea presença da ficção era maior. Utilizamos unspoucos atores amadores de Juazeiro da Bahia


e um experiente ator baiano, Ari Barata, queinterpreta a Morte. O trilho de fantasia sobreo qual o filme se movimenta não desfocoua realidade da qual nasce essa fantasia, nãodesfocou a pobreza do agreste sertanejo e aspolíticas predatórias. Pelo contrário, frisou essarealidade, potencializou essa realidade, tantoque o filme foi proibido no <strong>Brasil</strong> por excitar asmassas contra as autoridades constituídas, oualgo no gênero, considerado como um peça dealta subversão.228Apesar de alguns admiradores ilustres, comoPaulo Emilio Salles Gomes e Glauber Rocha, e doentusiasmo de artistas e intelectuais nordestinosque o viram, e de ter sido apresentado em Cannese exibido na TV, a recepção a Gitirana ficoulonge do impacto causado por Iracema. Algunseuropeus acharam o filme muito intelectualizado,difícil de ser entendido, e muito exótico, muitoárabe. Jorge não ficou plenamente satisfeitocom o filme, mas eu fiquei, até hoje quando ovejo me emociona a sua secura, a sua aspereza,o seu delírio, camponeses e operários atuando,fazendo imitações de si mesmo, brincando coma imaginação enquanto o pau come ao redor, ea esplêndida performance de Conceição.Esses dois filmes, apesar das descrições queacabo de fazer não darem essa pista, foram


Cena de Gitirana, com Conceição <strong>Senna</strong>, 1975feitos praticamente às escondidas, em silêncio,com coberturas falsas (era um filme paraa Volkswagen ou uma reportagem para a TVou qualquer outra coisa), com as latas de negativoseguindo para a Alemanha na maiorrapidez e discrição possível e toda uma artimanhapara eludir a ditadura, para escapar darepressão. Filmamos sob as barbas dos militares,enganando-os, driblando, fazendo as coisasparecerem outras. Às vezes minha carteira dejornalista servia de disfarce, outras vezes umdocumento da ZDF, podíamos ser do INCRA ouda Globo, um constante exercício de camaleões.


230A ditadura só percebeu depois, com o sucesso deIracema na Europa. Quando filmamos Gitiranaos primeiros ecos desse sucesso já tinham chegadoao <strong>Brasil</strong> e tivemos de nos disfarçar aindamais. A ferocidade de Médici era crescente, acada dia mais assustadora. Durante a filmagemvimos no jornal a notícia do assassinato deVladimir Herzog em um cárcere de São Paulo.Me lembro do grito angustiado de Jorge com ojornal na mão, mataram Vlado. Vlado era amigopróximo de Jorge e meu amigo desde os temposde nossa convivência no curso de Sucksdorff, noinício dos anos 1960. Ficamos arrasados e maisagudamente conscientes de que poderíamos serinterrompidos a qualquer momento. A morte deVlado apressou as filmagens, filmávamos comouns alucinados, dia e noite, para terminar oquanto antes possível e cair fora.Glória e CensuraIracema se transformou em um escândalo políticointernacional e em uma referência na lutapelo fim da censura no <strong>Brasil</strong>. O êxito na Europafoi muito ruidoso, o filme ganhou muitosprêmios internacionais e foi proibido no <strong>Brasil</strong>.Não apenas proibido: também foi expatriado.O governo ditatorial declarou que o filme nãoera brasileiro, inclusive com argumentos técni-


cos estapafúrdios: não era brasileiro porque foirevelado e montado fora do País. O governo seesforçou, através do Itamaraty, para dizer aomundo que aquele filme não tinha sido feitopor brasileiros, que era uma coisa de fora, umaprovocação estrangeira. A posição do governobrasileiro provocou reações em toda a parte eoxigenou ainda mais o burburinho, na Europa eno <strong>Brasil</strong>, todo mundo queria ver o filme, pivô deuma polêmica. No <strong>Brasil</strong>, Jorge e depois outraspessoas e organizações fizeram exibições clandestinasem São Paulo, Rio, Belo Horizonte, PortoAlegre e outras cidades. O filme era exibido emvários lugares para pequenos grupos, ver Iracemaera uma emoção estética mas também umato político, um ato contra a ditadura. Fizemosvárias exibições em minha casa, no Rio.231Para mim e para Jorge o risco de prisão eraconsiderável, apesar da suposta blindagem quea fama internacional do filme nos proporcionava.No festival de Cannes de 1976 Iracema foiapresentado na Semana da Crítica e Gitirana naQuinzena dos Realizadores, um fato incomum,dois filmes dos mesmos realizadores em Cannes.Nas muitas entrevistas, Jorge e eu (e tambémConceição, que era reconhecida na Croisetteaos gritos de Gitirraná, Gitirraná) tivemos deexplicar aos jornalistas que não éramos exila-


232dos e que por favor não dissessem isso em suasreportagens, pois nossa intenção era voltar ao<strong>Brasil</strong>. E voltamos, e saímos e voltamos outrasvezes ao País sem qualquer problema. O castigoera mesmo a não exibição do filme no <strong>Brasil</strong>.Dos filmes, porque Gitirana foi aceito como filmebrasileiro mas terminantemente proibido. Eisso começou a doer, em mim doía. Sabíamos,desde suas concepções, que os filmes não seriamexibidos no <strong>Brasil</strong> enquanto durasse a ditadura,que o máximo possível eram mesmo as exibiçõesclandestinas, como terminou acontecendo. Masa explosão de Iracema confundiu minha percepçãosobre isso, o desejo de que o filme fosse vistono <strong>Brasil</strong>, por muita gente, despontou forte. Eraabsurdo um filme tão radicalmente brasileiropoder ser visto por todo o mundo menos pelosbrasileiros. Era uma coisa esquizofrênica, e olhaque não sou do time dos esquizofrênicos, sou paranóicode carteirinha. Essa situação esdrúxula sóterminou em 1980, com a abertura política, coma liberação de todos os filmes proibidos. Nessemesmo ano Iracema foi apresentado no festivalde Brasília e levou quase todos os prêmios, emuma homenagem-resgate de um filme realizadoseis anos atrás, e foi lançado comercialmente.Gitirana foi o último filme a ser liberado, a seranistiado, e foi distribuído para circuitos alternativospela Dina Filmes.


Com Conceição, Festival de Cannes, 1976


Granjeiro234Logo após a realização de Gitirana e no meio doalvoroço causado por Iracema, me mudei paraLençóis com Conceição e dois casais amigos, aartista plástica Sonia Castro e seu marido João,a psicanalista Silvia Bloisi e seu marido Flávio.Baianas casadas com paulistas, uma gente linda,ainda imbuída da filosofia hippie, eles cansadosda metrópole São Paulo e nós, Conceição e eu,nos dando um tempo para pensar um novo filme.Eu já tinha metido na cabeça que deveriafazer um filme em Lençóis, fazer um terceirofilme na linha em que vínhamos trabalhando,imitações da vida misturadas com a vida mesma,mas em uma circunstância diferente dos doisanteriores — centrar em um lugar, em um miniuniverso,uma lupa em uma aldeia, em vez deabarcar grandes espaços, Amazônia, Nordeste.Câmera em um só lugar em vez de road moviescomo tinham sido os outros. Propus essa idéiaa Jorge, que chegou a se interessar, mas nossaestimulante colaboração chegava ao fim devidoa desentendimentos envolvendo o produtoralemão, cujo pivô era o produtor alemão Gauer,sócio e colaborador de Jorge. Desfeita essa possibilidade,a idéia continuou germinando demaneira nebulosa, que filme fazer, como fazer.Foi nessa situação que me somei a outra idéia,


em doida, que era a de nos mudarmos paraLençóis com nossos amigos e viver da terra. Asduas idéias casavam.No início vivemos em comunidade, na casa quetinha sido de meu avô Samuel, depois cada umarrumou seu canto. Silvia e Flávio, que antestrabalhava com roupas, resgataram uma fazendinhaque ela tinha recebido como herança ecomeçaram a trabalhar com lavoura. Sonia eJoão, que era o único de nós a entender de terra,seu pai era fazendeiro no interior paulista,compraram um sítio perto da cidade e plantaramhortaliças, verduras e legumes. Conceição e eumontamos uma granja de frangos, que a comunidadeprecisava e sugeria. Compramos livrossobre o assunto, fizemos contatos em Salvador.Meu pai se associou ao projeto entrando com oterreno e decidi construir eu mesmo o galpãoda granja. Me meti a arquiteto. Mais pesquisa,mais livros do tipo Como Construir uma Granja,Arquitetura das Granjas Modernas. Desenheiuma moderníssima, paguei um engenheiro parafazer os cálculos e construímos a granja com muitaeconomia, com um planejamento minuciosoe criativo. Nosso capital não era grande coisa,mas deu para construir e para equipar e paracomprar a primeira ninhada em Salvador. Aícomeçou o trabalho de granjeiro, a sensação de235


ser granjeiro: dirigindo uma camionete carregadacom caixas de pintos. E aí também começouum drama sentimental: Conceição se encantoucom as centenas de pintinhos dourados e macios,criaturinhas lindas de Deus, se acarinhou,bloqueando o fato de que se tratava de animaisde corte, para serem abatidos.236Um tempo feliz em Lençóis, há quase vinte anosnão curtia a cidade, tinha feito poucas e rápidasvisitas por motivos familiares. Voltei a jogar futebolquase diariamente, andar na serra, nadar.A cidade estava encolhendo, muita gente indoembora, a produção de diamantes baixíssima, ehavia tentativas por parte de algumas pessoasde criar novas fontes de trabalho para os garimpeiros,novos veios econômicos: café e outrasagriculturas, criação de gado. Nessa perspectiva,nossas iniciativas (a granja e as produções denossos amigos) eram bem-vindas e contaramcom a simpatia da comunidade. Nos associamosa um senhor de Feira de Santana que tinha umcarro-frigorífico e que dizia entender do negócioe que passou a gerenciar a empresa. O planoera simples: como a granja operaria apenascom o carro-frigorífico, sem um frigorífico fixo,os abates seriam coordenados com os compradores,a cada encomenda se faria o abate e aentrega imediata. Tracei um raio de ação de 50


quilômetros, alcançando várias comunidadesalém de Lençóis, que nos indicaram os dias queas entregas deviam ser feitas, geralmente coincidentescom os dias de feira de cada uma delas.Fizemos alguns testes, o carro-frigorífico levoualguns lotes às comunidades vizinhas, os frangoschegavam congelados, nos conformes.Quando estava próxima a data em que a granjairia começar a funcionar, a fornecer frangosregularmente aos compradores, dois acontecimentosderrubaram o projeto, ambos ligadosao nosso gerente. Primeiro descobriu-se queele estava tuberculoso, tivemos de afastá-lo dosfrangos e fazer exame médico em duas mil aves.Não havia contaminação. Contratamos outrapessoa para operar o carro-frigorífico e veio osegundo golpe: o tal carro pifou. O sistema derefrigeração começou a apresentar defeitos sérios,pondo em risco a saúde dos consumidores.Os frangos tinham de chegar congelados aodestino, segundo regras específicas da SaúdePública e o nosso carro-frigorífico não congelava.Tentamos alugar outro carro-frigorífico, não haviamuitos à disposição e eram caros para o nossopericlitante capital inicial. E o tempo passando eos frangos crescendo além do período previsto,entupindo a granja e comendo cada vez mais.Decidimos fazer o abate geral, duzentos frangos237


por dia, e distribuir para a população. Aí aconteceuo drama sentimental da Conceição, quetinha acompanhado a evolução de seus lindospintinhos dourados de penugem macia, dia a dia,até vê-los adultos e prontos para serem sacrificados.Causava sofrimento, ela não agüentavaisso. Nem eu. Não era nossa praia, não sabíamoslidar com aquilo. A granja foi fechada, o grandegalpão que construí ficou com meu pai e existiupor muitos anos, servindo a outros fins, até cederlugar para um hotel.238Enquanto vivia como granjeiro me aproximeiao máximo das pessoas da cidade, resgatando aintimidade dos meus tempos de criança e adolescente.A idéia de filmar ali tinha evoluído parao propósito de um filme arraigadamente comunitário,que fosse orientado pela comunidadedesde seu nascedouro. Comecei conversandocom os garimpeiros, primeiro um a um, depoisem grupos, depois com suas famílias e por fimem reuniões na Sociedade União dos Mineiros.E também com a elite e com a classe média,pouco numerosa naquela época em Lençóis, porrazões históricas e porque estava abandonandoa cidade. E também, e muito, com os estudantes.Conceição fez um belo trabalho, estimulandoe arregimentando os jovens para falar sobrecinema, aproximando-se de um grupo de teatro


amador que estava tentando existir. Depois demuito discutir a situação social e econômica dacidade em decadência, começamos a construir ofilme. Partimos de uma pergunta para a comunidade,uma reflexão: que filme devemos fazeraqui? que filme interessa a vocês?Diamante BrutoEra uma comunidade de quatro mil habitantes,praticamente todo mundo se conhecia e nãofoi difícil envolver as pessoas nesse exercício coletivode pensar, o assunto era comentado nasruas, no colégio. Uma maioria de opiniões, umquase consenso, recaía sobre uma tradução cinematográficado romance Bugrinha, de AfrânioPeixoto, um lençoense, glória local. A históriaacontece em fins do século XIX, um jovem rico ebranco volta a Lençóis depois de longa temporadade estudos em algum lugar, e reencontra umamenina com quem convivera na infância, pobree mestiça, agora uma mulher, desenrolando-seuma trágica história de amor. As pessoas, alémda natural atração pelo chamado romance deLençóis, viam na história a possibilidade de umasíntese das relações sociais que se desenvolveramno local durante um século e meio, a proximidadeda classe alta com a classe trabalhadora (osescravos e os garimpeiros livres) sem uma classe239


média numerosa no meio, funcionando comoamortecedor. Essa história, concordaram todos,seria contada nos dias atuais, transplantada paraaquela Lençóis decadente e, como diziam meusconterrâneos, sem futuro, vivendo do passado.Essa compreensão dos habitantes de que iríamoscontar essencialmente essa história mas nãoíamos reproduzir fielmente o romance, de queiríamos contá-la à nossa maneira e espelhandoa atualidade, ficou clara quando os estudantessugeriram uma moça negra para fazer o papelde Bugrinha. Não uma morena, como está noromance. O argumento era que a populaçãoCena de Diamante Bruto, com Gilda e José Wilker, 1977


da cidade tinha (acho que ainda tem) 80% deafro-descendentes. Lembro-me de um professordizendo que Afrânio Peixoto tinha adoçado apílula ao definir a personagem como morena,que o conflito que o escritor propunha era maisverossímil entre um branco e uma negra, tantono passado como no presente. Os estudantesdiscutiram muito quem deveria ser a Bugrinhae votaram, elegeram uma menina negra lindae viçosa, agitada, que despertava atenção pelasua personalidade, seu jeito ousado de ser.Chamava-se Gilda e, embora eu deixasse corrersolta a iniciativa dos estudantes, também era aminha escolhida. Não sei o que teria acontecidose a eleição não coincidisse com minha opção,mas isso teria sido impossível porque Gilda seimpunha com muita força na comunidade, seucarisma mantinha seus colegas estudantes comohipnotizados.241Quando a coisa engrenou na comunidade, escrevium roteiro com o título Diamante Bruto econsegui o apoio da Embrafilme, da Pilar Filmes(de meus compadres Maria Augusta e OlneySão Paulo) e dos queridos amigos paulistas Raquele Inácio Gerber. José Wilker topou fazero homem poderoso que regressa à terra natal,na nossa versão transformado em uma estrelada televisão chamado José. As aproximações


Cena do filme Diamante Bruto, com Gilda e José Wilker,1977ator-personagem foram tão ajustadas como nosfilmes anteriores: Wilker como uma estrela deTV, Gilda como uma nativa envolvida com osritos do jarê (exatamente como ela) e, completandoo triângulo, Conceição como uma forasteiraganhando a vida na terra dos diamantes(exatamente como estava acontecendo). Alémde Wilker e Conceição apenas mais um atorprofissional, o Wilson Melo, e todos os outrospersonagens, extras, figurantes, depoentes eragente da comunidade. Uma equipe mínima, éclaro: o fotógrafo João Carlos Horta, o assistentede câmera Jaime Schwartz, o técnico de


som Antonio César, a continuísta Sueli Seixas eo produtor de campo João Neiva. Conceição seocupou da assistência de direção e figurinos e,como desta vez estávamos estacionados em umsó lugar, pudemos montar a sede da produçãolá mesmo, comandada pela Maria Augusta SãoPaulo. A equipe cresceu em Lençóis, quando ostécnicos incorporaram a ela jovens nativos comoassistentes e ajudantes.As filmagens duraram um mês e meio. Toda acomunidade de alguma maneira envolvida, oudiretamente na produção ou atuando ou dandoinformações preciosas ou ajudando em qualquercoisa — ou simplesmente dando apoio moral,seguindo de perto o que estava acontecendo,criando uma atmosfera positiva, uma energiaestimulante. A esse processo de criação, inéditopara mim, somava-se o fato de estar filmandona minha terra, com minha gente, com meusfamiliares, com meus garimpeiros. Uma emoçãomuito particular, muito quente, uma volta aoútero mas com uma câmera na mão. A relaçãoda população com o filme, uma novidade absolutapara ela, produziu todo tipo de reações nacomunidade: ciúmes, maledicências, desavençasfamiliares e também muita solidariedade e impulsospara criar coisas, para inventar. O filmemexeu muito com aquelas quatro mil pessoas, a243


Conceição <strong>Senna</strong> e José Wilker em Diamante Bruto, 1977cidade saiu da letargia, se agitou. Filmávamos ahistória do milionário e famoso José com a pobree anônima Bugrinha, as interferências dos personagensficcionais na realidade e as cenas reaisno mesmo estilo, com o mesmo tratamento e nomesmo pique, às vezes fazíamos cenas de amorcom os dois pela manhã e entrevistas ou conversascom garimpeiros à tarde. Completando uma coisaque eu disse lá atrás e que tem a ver com a trilogiada qual estou falando: em Iracema a imitaçãoda realidade se funde com o real, em Gitirana afantasia se funde com o real, em Diamante Brutoo melodrama se funde com o real.


Diferentemente dos filmes anteriores, quando aspessoas, os transeuntes, que nos viam trabalhandosabiam que se tratava de uma filmagem (emgeral para a TV) e que estávamos registrando osacontecimentos, ou seja, fazendo um documentário,nas filmagens em Lençóis acontecerammomentos de mescla absoluta, de confusão,entre realidade e ficção. Às vezes uma cenaera interrompida ou mudava de rumo porquealguém entrava nela, entrava na conversa paraperguntar ou informar tendo como referênciaa vida da cidade. Me lembro de uma cena nomercado em que um personagem encarnado porum nativo convida Wilker para almoçar lá emcasa e aparece um feirante rindo, dizendo queo Grimaldo (o ator) não podia convidar ninguémpara almoçar em sua casa pois ele não tinha casa,estava morando em uma pensão. Em outra cena,nesse mesmo mercado, Gilda está atuando, procurandoaflita outra personagem, gritando Rita,Rita, e seu tio pensa que se trata da irmã de carnee osso da Gilda, coincidentemente de nome Rita,e se assusta, quer saber o que está acontecendo.Coisas assim, toda a comunidade em um estadofronteiriço entre a vida e a imaginação.245O melodrama se funde com a realidade dos garimposde diamantes da Bahia em um momentode crise, cujos elementos são uma economia em


246franca decadência, pobreza, êxodo e cultura mágica.Os garimpeiros expõem sua visão de mundo,a dureza de seu trabalho e os encantamentosque os cercam por fora e por dentro. A magiado diamante, os mistérios da pedra feiticeira,os êxtases provocados por ela, a sacralidade damontanha e toda uma gama de relações extraordináriascentralizadas e animadas pelo jarê. O filmetrata da decadência da cidade, do fim de umtipo de vida, do fim de um sonho. Terminamosas filmagens, fui para o Rio montar o filme comRoberto Pires, fizemos a finalização em NovaYork e voltei com uma cópia para Lençóis, paraexibir o filme para a comunidade. Minha pressaera movida pelo receio de que também DiamanteBruto fosse proibido, como já estavam Iracema eGitirana, era meu quarto longa-metragem e eucontinuava inédito no <strong>Brasil</strong>. A população compareceuem peso à exibição no mercado municipal,havia uma curiosidade enorme. Começoua projeção e uns vinte minutos depois parou, oprojetor pifou, caso sem jeito, tinha de mandarvir outro de Salvador. Para grande decepção detodo mundo. Uma nova projeção foi marcadapara a noite seguinte.Acontece que a projeção do filme havia paradoexatamente depois de um fazendeiro, umboiadeiro, esculhambar os garimpeiros, dizer


que garimpeiro é preguiçoso. Uma hora depois,estou em casa lamentando a estréia fracassadae aparece um grupo de garimpeiros, muitochateados com o que o fazendeiro dissera nofilme, esses forasteiros vêm pra nossa terra, nãoconhecem nosso trabalho e ainda ofendem agente. Estavam decididos a dar umas pancadasno fazendeiro, um corretivo, e tinham vindome informar sobre essa decisão. Eu disse quenão precisavam fazer isso, que eles respondiamessa ofensa no próprio filme, e muito bem respondida,que esperassem a exibição completano dia seguinte. E foi o que aconteceu, elesficaram satisfeitos com a resposta que dão natela. Essa estréia, a que valeu, foi uma bombacultural. Havia ainda mais gente do que no diaanterior, as primeiras cenas exibidas antes doprojetor pifar funcionaram como um trailerpoderoso. A comunidade ficou profundamenteimpactada ao ver-se na tela, impactada com aexposição de seus problemas, de sua religião, desua intimidade comunitária. Estava começandoaí uma segunda fase da história desse filme,algo que ninguém esperava, que não tinha sidoprevisto nem sonhado: Diamante Bruto motivouaquela gente, estimulou a população, ocasionoureuniões e decisões, as pessoas começaram atrabalhar em soluções para a lastimável situaçãoda cidade. Passou a ser uma referência para a247


auto-estima e também, para usar uma palavramuito lençoense, um relicário de imagens, jáque praticamente toda a população aparecia nofilme. Nesses trinta anos o filme foi visto e revistocentenas de vezes em Lençóis e a cada ano setorna mais precioso na medida em que aumentao número de mortos na tela, de pessoas que jámorreram e permanecem vivas no cinema. Muitagente vai assistir ao filme quantas vezes ele sejaexibido na cidade para ver seus entes queridosque já se foram e que ganharam a imortalidadede luz do cinema.248A relação dessa comunidade com esse filmevai além dos aspectos psicoculturais, já queela acredita que Diamante Bruto foi a igniçãopara uma nova economia, a do turismo, quecomeçou a se desenvolver no início dos anos1980 e deu nova vida a Lençóis. O documentárioBrilhante, realizado pela Conceição elançado em 2006, conta essa história e os seussurpreendentes desdobramentos, para o bem epara o mal. Um filme pode mudar uma pessoa?Pode. Um filme pode mudar uma comunidade?Não é normal que isso aconteça, mas pode, adepender das circunstâncias. E devendo levarem conta que qualquer mudança provoca conseqüênciasinesperadas e às vezes indesejadas,além das conseqüências esperadas. Essa cone-


xão do cinema com Lençóis se desenvolveu atravésde outras pessoas, de jovens cineastas queacamparam por lá nos anos 1980, organizaramum cineclube, incensaram a mitologia local deDiamante Bruto, fizeram filmes — Moisés Augusto,Jorge Felippi, José Araripe, Póla Ribeiroque fez A Lenda do Pai Inácio, e outros. Jovensnativos se envolveram com o cinema e hoje sãoprofissionais, como a produtora Solange Lima.Brilhante trata exatamente das várias facetasdessa relação, tanto que foi anunciado peladistribuidora como um caso de amor entre umacidade e um filme.Angola249Em 1977 e 1978 minha relação com Angolapassou da esfera jornalística para a do cinema.Logo após assumir o governo, o presidentepoetaAgostinho Neto iniciou um movimentoaudiovisual muito dinâmico, com muita genteenvolvida, muita gente filmando, uma televisãocom muitas unidades de gravação, muitos correspondentesde guerra. O escritor Luandino Vieiraestava à frente do recém-criado Instituto Angolanode Cinema e da Televisão Angolana e meconvidou para escrever um roteiro, uma versãocinematográfica do romance Mayombe, que ocomandante guerrilheiro Pepetela tinha escrito


250durante a ação, enquanto guerreava. Era umprojeto angolano-moçambicano: um romanceangolano e o diretor seria o moçambicano RuyGuerra. Fiquei uns meses em Luanda trabalhandocom Pepetela, que me levou a conhecer deperto, com lente de aumento, essa cidade fundadapelos portugueses em 1576 como base deexportação de escravos para as Américas. Nessaépoca havia uma grande escassez de alimentose a economia era delirante, nas feiras um quilode carne tinha o mesmo valor de um jeans oude uma TV preto-e-branco. Era a kandonga, ogrande mercado informal, feiras ao ar livre ondese misturavam as dez línguas africanas do paíse o português bem-humorado dos angolanos(onde existem verbos como desconseguir, deschegar,descomer, ou desir no sentido de nãoir). Havia um fenômeno que o governo não conseguiaentender, ou seja, desentendia: as notasde dinheiro desapareciam, o governo imprimiamais dinheiro e não adiantava, desaparecia. Atéque descobriram o mistério: as quitandeiras, asmulheres que dominavam a kandonga, guardavamas notas (geralmente em potes ou grandesgarrafas de vidro), não as devolviam à circulaçãonem depositavam em banco. Cada feirante eraseu próprio banco, a acumulação de dinheiroera uma obsessão.


Procedimentos como esse compunham o quadrode uma situação culturalmente dramática:devido ao acirramento da guerra interna pósindependência,milhares de pessoas do interiorfugiram ou foram transferidas para Luanda, agrande maioria vindo diretamente das tribos,de aldeias primitivas e perdidas no tempo, paraedifícios de apartamentos na beira do mar. Osgrandes e belos edifícios abandonados peloscolonos ricos portugueses e agora propriedadedo governo revolucionário socialista. O choquecultural era tremendo. Basta contar um episódioque presenciei. Um desses edifícios foi inteiramenteocupado por famílias de uma triboe tempos depois teve de ser desocupado paraconsertos de grande porte, inclusive estruturais.O que tinha acontecido: os moradores tinhamarrancado todos os tacos de madeira dos assoalhospara fazer fogueiras e quando os tacosacabaram usaram os móveis, e usaram o poçodo elevador como lixeira, jogando ali todos osdejetos domésticos e humanos. Quando o governose deu conta, o elevador estava amassadono andar térreo, soterrado por toneladas delixo úmido, com água correndo por todo lado,infiltrando-se pelas paredes. E não havia prédiosde apartamentos para todos os refugiados, oque resultou nos musseques, as grandes favelasde Luanda.251


252Pepetela e Luandino Vieira, amigos queridos,me iniciaram na complexidade da diversidadeétnica e cultural do país, da convivência sob asmesmas leis de etnias com costumes e hábitosdiferentes: kimbundu, ovimbundu, bakongo,umbundu, bosquímanos, mumuílas, kuanhamas,nianekas e outras. De diversas religiões, todaselas animistas, na verdade uma composição entreanimismo e teísmo (a idéia de um Deus maiorpode ser percebida na entidade Kalunga, quetem outros nomes). A veneração a ancestrais, aseres humanos que aperfeiçoaram a natureza,como Féti, o primeiro de todos, o Adão do mundocongo, e como a rainha kimbundu Nzinga,que guerreou contra os invasores portuguesesem 1600. Com seus feiticeiros respeitadíssimos,os Kimbandas. Essa iniciação era necessária paraque eu pudesse ajudá-los no treinamento dejovens cineastas, porque o trabalho no roteirode Mayombe se estendeu para uma atividade deformação e produção, onde já estavam trabalhandooutros estrangeiros, outros cooperantes(aí começou minha amizade com a grande montadorafrancesa Jacqueline Meppiel, anos depoisfomos juntos para a Escola de Cuba). O filme nãovingou, por desentendimentos entre Angola eMoçambique, mas o contato e o intercâmbiode idéias com o nascente cinema angolano merenovou, foi uma salutar oxigenação na minha


elação com o cinema. Vale acrescentar que eramos primeiros anos da nova Angola, com o podernas mãos de poetas e militares, como uma propagaçãoda figura do líder Agostinho Neto, umpoeta-soldado ou vice-versa. Os artistas tinhamo mesmo peso dos militares nas decisões de Estado.Esse equilíbrio de forças entre intelectuaise generais, entre imaginação e ação, não duroumuito, foi se desfazendo até deixar de existircom a morte de Neto em 1979, já que a guerrafalava cada vez mais alto: os artistas foram afastados,os militares assumiram o comando. Masenquanto durou foi uma experiência políticaextraordinária, um platonismo africano, aquelacoisa do filósofo-rei que Platão propõe no seulivro A República.253Os angolanos faziam filmes poéticos, filmessobre seus mitos, mas basicamente se tratavade um cinema de guerra, principalmente noque se refere à televisão. Luandino Vieira estavainstalando a Televisão Popular de Angola,TPA, e me convidou a participar desse trabalho,ajudando-o a desenhar a emissora e treinandojovens roteiristas e cameramen — que naquelanova cultura em formação podiam ser chamadosde cinegrafistas, cameristas ou camarógrafos.Um trabalho difícil fazer uma televisão naquelascircunstâncias, um país em conflito agudo,


mas foi feito. Hoje se chama Televisão Públicade Angola.254Alguns daqueles jovens com quem convivi, comquem estive conversando longamente sobredocumentários e movimentos de câmera, morreramem ação, filmando combates. Vou contarum episódio exemplar dessa minha aventura.Um dia estava na sede da televisão, em umareunião, quando eclodiu um movimento, umatentativa de golpe de estado, que passou à históriacomo Fraccionismo. Os golpistas puseramtanques na rua, houve uma forte convulsão popular,o número de mortos do dia da tentativade golpe e da repressão que se seguiu foi de30 mil (segundo o governo) a 80 mil (segundoorganizações não governamentais). Estávamosna sede da televisão e imediatamente foram enviadasvárias equipes de gravação para cobrir osacontecimentos, eram equipes de duas pessoas,câmera e som, e mais o motorista. A última equipea sair (composta por Fininho, um negro muitoalto e magro, e por um marroquino atarracado,ambos muito bem-humorados, engraçados) deude cara com um tanque que vinha em direçãoao prédio da TV.Eu vi toda a cena da janela do primeiro andardo prédio — o tanque avançou até bem pertocom o canhão apontado para nós. Fininho e seu


companheiro, já fora do prédio, ficaram a poucosmetros do tanque. Fininho levanta a câmera ecomeça a filmar. O tanque, ostensivamente,movimenta o canhão em direção aos dois cinegrafistas,aponta para eles, mas Fininho continuafilmando e o marroquino levanta o microfone.Aquela expectativa angustiante e, de repente,abre-se a portinhola do tanque e aparece ummilitar. Ele chama os dois para dentro do tanque,diz que eles vão filmar de lá de dentro. Os doissobem no tanque e passam a filmar a partir dessenovo ponto de vista. Soubemos (e vimos) depoisque o tanque percorre várias ruas sem entrar emcombate, apenas dispara duas ou três vezes, e osgarotos filmando, inclusive entrevistando os golpistas.Ficaram uma hora no tanque filmando acidade convulsionada, gravando as informaçõese as ordens que chegavam pelo rádio. Quando orádio diz que tanques e tropas leais ao governoavançam para o lugar onde estão, os dois garotosda TV são expulsos do tanque fraccionista, correme se protegem atrás dos tanques do governoe passam a filmar daí, da rua. Ou seja, filmam dosdois pontos de vista, dos dois lados do combatee nos trazem esse material precioso, exultantes,rindo às gargalhadas. É só um exemplo, outrassituações surreais aconteceram naquela durarealidade, naquele cinema perigoso.255


Roteiros256Onde começou o roteirista? Não sei, meu primeirointeresse de expressão artística foi escrever,desde menino, depois foi o teatro, só depoisveio o cinema. Escrevi os roteiros de Iracema,Gitirana e Diamante Bruto, mas eram roteirosnão convencionais, abertos, experimentais. Aípelos meados dos anos 1970 Hector Babencoe Geraldo Sarno tratam de me convencer quedevo me dedicar ao roteiro, já que eu era umcara que filmava e escrevia, referindo-se aomeu trabalho jornalístico. Com Hector escrevi ORei da Noite, seu primeiro filme, de 1976. Umaexperiência intensa, na medida da intensidadede Hector. Ele tinha uma história na cabeça,com uma saída e uma chegada muito boas e omiolo por ser construído. E foi isso que fizemosem muitas horas de trabalho em minha casa, noRio: fomos arquitetando a história de Tertuliano,apelidado Tezinho, da infância até a velhice.Um homem comum, anônimo, de boa família,classe média, funcionário público, católico, masque é capaz de manipular pessoas e matar. Boaparte da história é a vida noturna de Tezinho,de prostitutas e cafetões, e eu me inspirava nasnoites de Salvador e Hector nas noites de BuenosAires. Localizamos a história em uma épocaindefinida da primeira metade do século XX, em


uma São Paulo influenciada por Buenos Aires,com tangos tocando nos bordéis. E mergulhamosno melodrama, sem medo. Inventamos doisfinais: um happy-end surrealista, impensável, eum unhappy-end, uma ilusão passageira, umamiragem de reencontro com o amor perdidopara agudizar a solidão trágica do personagem.Creio que os dois finais foram usados, um atrásdo outro, em algumas sessões monitoradas peloHector, mas a versão comercial traz apenas o finalhappy-end, com direito a coração cor-de-rosaemoldurando o casal. Quem viu o filme sabe queestou falando em happy-end com ironia e atécinismo, aquilo não é final feliz coisa nenhuma.Hector fez um primeiro filme marcante, encharcadode emoções primitivas, as tais emoçõesbaratas, esses destemperos tão humanos, tãoprofundos, com composições excelentes de PauloJosé, Marília Pera e Vic Militello. Foi o primeiropasso de Hector em sua pungente filmografiasobre os desajustados, os deserdados da sorte,os marginais.257Em seguida escrevi Coronel Delmiro Gouveiacom Geraldo Sarno, outro universo, outra vezo Nordeste, e outra metodologia. Depois denosso trabalho conjunto no CPC da Bahia, maisde uma década atrás, Geraldo tinha realizadoum trabalho excepcional como documentarista,


258articulando com Thomas Farkas a histórica caravanade jovens cineastas que filmaram o sertãonos anos 1960 e realizando clássicos como Viramundoe Casa de Farinha. Tinha feito um filmede ficção para crianças, indicado também paraadultos, O Picapau Amarelo, com os personagensrurais de Monteiro Lobato contracenando comos urbanos e tecnológicos Batman e CapitãoAmérica, e com cowboys e o Capitão Gancho,uma salada bem-humorada com ingredientes doimaginário literário-cinematográfico infantil danossa geração. O que tínhamos, ao nos dispor aorganizar um filme sobre o empresário DelmiroGouveia: um ou dois livros sobre sua vida, operíodo histórico brasileiro e mundial onde suahistória se inseria e depoimentos gravados porGeraldo nos anos 1960 com pessoas que haviamconvivido com Delmiro. Precisávamos nos embebermais do personagem e fomos pesquisarno sertão onde Delmiro havia atuado, o agrestede Sergipe e Alagoas, a cachoeira de PauloAfonso. A forma de contar a história nasceunessa viagem. A diversidade de opiniões sobreo personagem, tanto entre os que o haviamconhecido como entre os que guardavam umamemória coletiva e regional dos fatos, nos levoua contar a saga do empresário brasileiro assassinadopelos ingleses a partir de distintos pontosde vista. O primeiro capítulo é narrado por sua


mulher, o segundo por um coronel sertanejo, oterceiro por seu sócio e o quarto por um de seusoperários. A intenção era que as diversas visõesexpressassem a complexidade de Delmiro, umnegociante sagaz, ousado, inovador, mulherengo,radicalmente nacionalista, autoritário ecapaz de desenvolver um sentimento socialista,de que sua fábrica era mais dos operários do quedele. Trabalhamos com o binômio economiavalorespessoais, jogando com a dramaticidadedas finanças internacionais e com as expectativasque elas geram nas pessoas, com a interferênciadireta dos grandes negócios no comportamentoindividual. Um elenco de peso: Rubens de Falco,Jofre Soares, Isabel Ribeiro, José Dumont, NildoParente, Sura Berdichevski. O filme, lançado em1977, repercutiu favoravelmente, ocasionou reflexõese debates importantes, foi aplaudido ediscutido em dezenas de festivais pelo mundo.Durante anos Geraldo e eu fomos convidados aseminários de empresas e federações de indústriaspara debater o filme com seus executivos.259Trabalhar com Geraldo é um exercício de escavaçãomental. Todos os caminhos são pensadose analisados, todas as possibilidades dramáticasde uma situação são exploradas convergindosempre para a síntese, para esse princípio básicodo cinema, a arte sintética por excelência.


Em geral os cineastas e roteiristas com quemtrabalhei formulam seu relato a partir de seqüências,de várias cenas encadeadas. Geraldosempre está buscando uma cena, um take, quediga o máximo, que substitua toda uma seqüência.Essas colaborações com Hector Babenco eGeraldo Sarno, em projetos tão absolutamentediferentes e com metodologias também diferentes,aumentaram consideravelmente minha seduçãopela dramaturgia, pelo prazer de construirhistórias, pelo xadrez que a pessoa joga consigomesma quando está inventando uma história,organizando a desorganização da vida.260Foi nesse impulso que me interessei tambémpelos roteiros para documentários, pelo roteirofeito antes das filmagens, possível paradocumentários mais clássicos (e aberto às manifestaçõesdo acaso e da inspiração do diretor),e pelo roteiro armado depois das filmagens,sobre o material filmado. Logo depois de CoronelDelmiro Gouveia trabalhei com MestreDidi e Juana Elbein dos Santos na concepção dodocumentário-ensaio Iyá mi Agbá, direção deJuana, lançado em 1979, um tema da culturaiorubá sobre o qual já falei. Esse aspecto da minhaatividade de roteirista teve e tem mais a vercom uma reflexão dramatúrgica sobre um temaou um material bruto da realidade do que com


a roteirização propriamente dita, com a préordenaçãode documentários. Nos últimos vinteanos me dediquei bastante a essa vertente dotrabalho de roteirista, a enfrentar o desafio deorganizar a realidade sem traí-la, de expor umaverdade pessoal (porque é isso que faz o documentarista)sem maquiar a verdade que a câmeraregistra. É o que Santiago Alvarez batizou comoInformaturgia, a dramaturgia da informação.Nos anos 1990 trabalhei com Octávio Bezerraem documentários para a BBC de Londres, umdeles teve bastante repercussão, Debt Life, ouA Dívida da Vida, sobre a incidência perversada dívida externa, dos pagamentos dos juros dadívida externa nas décadas de 1970 e 1980, sobrea qualidade de vida das crianças e dos índios brasileiros,os grupos mais desprotegidos em nossasociedade. Foi a partir desse documentário que aEuropa tomou conhecimento dos suicídios rituaisdos guaranis-caiovás, que estavam se enforcandoem árvores sagradas ou ingerindo agrotóxicosem protesto contra o avanço da agroindústriasobre suas reservas. Dou um exemplo do trabalhodo roteirista em Debt Life: Octávio filmoulongamente uma imensa esteira de toros de madeiradescendo em um rio da Amazônia e queriamostrar apenas um momento audiovisualmenterazoável dessa cena, alguns segundos; eu o convenci,e também ao pessoal da BBC, que a cena261


deveria ficar inteira, longa e lenta e angustiantee com a música acentuando esse sentimento. Odrama ambiental é mais nítido, incomoda maisao espectador, em uma cena com essa densidadegráfica e musical, com esse tom grave, do quecom uma série de imagens espetaculares de árvorescaindo ou floresta queimando.262Ainda no início dos anos 1990 produzi e fiz o roteirode Sabor a Mi, direção de Wolney Oliveira.Uma produção envolvendo vários países e a EscolaInternacional de Cinema e Televisão de SanAntonio de los Baños, conhecida como Escola deCinema de Cuba, sobre a qual vou falar depois. Ésobre o bolero, o único gênero musical comum atodos os países da América Latina, embora tenhanascido em Cuba e se desenvolvido no México. Háum momento no documentário em que pessoasda Argentina, Cuba, Colômbia, Paraguai e Méxicojuram que o bolero Vereda Tropical é de seu país.A decisão dramatúrgica mais importante nessetrabalho foi a de nos deixar levar pelo espírito romântico,às vezes trágico, às vezes brega, do bolero.Não fazer apenas um filme sobre o bolero mas umfilme-bolero, o que exigia a inclusão de algumascenas ficcionais. Algumas letras de boleros deveriamser visualizadas, traduzidas audiovisualmente,para que o estilo bolero impregnasse a linguagem,a gramática do filme. Isso foi muito divertido.


Além desses trabalhos explícitos, fiz e ainda façomuita assessoria para documentários, principalmenteem países da América Latina, trabalheitambém para a produtora francesa de documentáriosFilmes du Village, e também para a Televisãodos Trabalhadores, a TVT, produtora daCentral Única de Trabalhadores-CUT. E assessoriainformal para meus velhos amigos documentaristasbrasileiros, principalmente Geraldo Sarno,Octávio Bezerra e Silvio Tendler. O centro dessaminha colaboração formal ou informal é semprea estrutura do filme, o esqueleto, como o pensamentodeve ser organizado visando à maiorclareza e dramaticidade possíveis, de que maneiraa história deve ser contada, qual a melhorabordagem para os propósitos do cineasta.263Mas voltemos à ficção. Ainda no apagar dasluzes dos anos 1970 escrevi o roteiro de AbrigoNuclear, filme de Roberto Pires, lançado em1981, a Conceição e a Norma Bengell no elenco.Em um futuro indeterminado, o que resta dahumanidade vive em uma cidade subterrâneaporque a superfície do planeta está contaminadapor radioatividade, provocada pelos resíduos dasusinas e demais instalações nucleares.Contaminação provocada não por uma guerraatômica nem nada parecido, mas pela utilizaçãopacífica da energia nuclear. Ninguém sabe disso


264na cidade subterrânea, onde se acredita que asuperfície é o inferno, território de demôniosvetado aos seres humanos desde sempre, ummito mantido pela elite ditatorial. Mas a memóriagenética e acesso a informações privilegiadaslevam um grupo a iniciar um movimento revolucionáriopara a volta do ser humano à superfíciedo planeta, mesmo que o processo dure milharesde anos. Durante muito tempo fui leitor voraz deficção científica e espectador fiel de filmes do gênero,tinha escrito contos fantásticos e de ficçãocientífica em São Paulo (alguns deles reunidos nolivro Máquinas Eróticas) e curti muito inventaressa história a partir do nada, as tais históriasoriginais para o cinema, como tinha sido O Reida Noite. A produção do filme do Roberto foimuito atribulada, as filmagens duraram quasetrês anos, com intervalos de meses entre uma eoutra, e essas condições o levaram a fazer adaptaçõesno roteiro. Resultou em um filme muitointeressante, principalmente no que se refere àengenhosidade da cenografia, mas aquém doque prometia, ou do que desejávamos.A criação de histórias originais me dá um prazerextra nesse labor de roteirista, a invenção desdea semente até a forma final. Metade dos roteirosque escrevi foi a partir de alguma informaçãopré-existente, seja um romance, uma peça de


Com Roberto Pires na filmagem de Abrigo Nuclear,Salvador, 1980teatro, folhetos de cordel, uma história real, umainvestigação e esse tipo de trabalho tem o seuprazer criador, os neurônios se agitam muito. Oprazer extra das histórias originais é assumir porinteiro o papel de Deus, criar um mundo do nada,materializar criaturas que nunca existiram antes.Como O Rei da Noite, Abrigo Nuclear e tambémCaveira my Friend nos anos 1960, O Lado Certoda Vida Errada e Iremos a Beirute nos anos 1990.Em Iremos a Beirute, do Marcus Moura, proveium pouco de um dos meus persistentes desejos,que é fazer filmes sobre futebol. No interior doCeará, anos 1970, todo um time adolescente de


Com Chico Buarque, Rio, 1993futebol-de-salão está apaixonado pela filha dodono do time (menos o irmão dela, também jogador),que promete fazer uma escolha depoisde um jogo importante. No meio do tal jogo,com o time perdendo, o pai e dono do time,que havia apostado o que não tinha, morre docoração e a partida é interrompida. Trinta anosdepois, a filha do dono do time remonta o jogointerrompido, com todos os jogadores e a partirdo momento em que foi interrompido e, maisuma vez, promete se decidir depois do jogo. Adifícil decisão tem seu motivo no incesto, na suapreferência irreprimível pelo irmão.


Em meados dos anos 1980, quando eu já estavadividindo meu tempo entre <strong>Brasil</strong> e Cuba, oRuy Guerra me convoca para fazer o roteiro deÓpera do Malandro, com ele e Chico Buarque,autor do musical que fazia grande sucesso noteatro. Uma equipe estimulante para a criaçãode um filme musical: um cineasta buscando arenovação da linguagem, um músico e um dramaturgo.O xis do problema é que não tínhamosreferência de um filme musical brasileiro.O conceito era o dos musicais de teatro e dofilmusical europeu e americano: as canções eas danças como parte integrante da trama, doenredo, e, portanto, empurrando a história paraa frente, dando continuidade ao encadeamentoCom Ruy Guerra, Fortaleza, 1998


268de causa-efeito das histórias. Nossas referênciaseram os musicais americanos e a intenção eraum musical brasileiro. Tínhamos a grande escolada chanchada, que não eram filmes musicais nosentido da integração dramática das canções, dacontinuidade da trama, mas sim histórias ilustradasou interrompidas por números musicais.Tínhamos de inventar alguma coisa que fossediferente dessas referências. Como estávamospartindo de uma peça teatral, de uma história jácontada, nossa missão era traduzir essa históriapara o cinema, transcodificar a história. Por issotivemos de reorganizá-la e encontrar o tempocinematográfico das falas, dos diálogos, mas otrabalho foi principalmente de caráter formal,plástico. Ruy queria ter o filme desenhado minuciosamente,momentos como o plano-seqüênciainicial (começa na tela de um cinema ao ar livree termina em detalhes de um casal na cama, emum quarto), os enquadramentos zenitais da cenaentre as duas mulheres (Cláudia Ohana e ElbaRamalho), a cena dos espelhos com o delegado(Nei Latorraca) e o malandro (Edson Celulari)foram trabalhadas no roteiro.Foi a feitura de roteiro mais longa em que estiveenvolvido, mais de um ano. Em muitos momentoseu ficava como fiel da balança entre estescriadores geniais que são o Chico Buarque e o


Ruy Guerra, parceiros em tantas canções maravilhosase grandes amigos, que muitas vezesdiscordavam sobre uma música ou uma cena,discutiam, polemizavam, o Chico desapareciapor uma semana. A depender dos humoresnos reuníamos na casa do Ruy ou na casa doChico, no Rio. As discordâncias entre o autorda história e o diretor do filme necessitavamdo tal fiel da balança, de aprofundar a reflexãodramatúrgica, de imaginar terceiras soluções e,por extensão, acalmar os ânimos. Na hora dedecidir os créditos do filme o Chico disse comodeveria ser: o nome do <strong>Orlando</strong> fica no meio.Ópera do Malandro foi exitoso e continua sendo,é um filme muito considerado também forado <strong>Brasil</strong>, uma referência do cinema brasileiroaté hoje e me sinto muito recompensado em terparticipado de sua criação.269Ciência, Ipanema, Ilé AiyéDirigi alguns documentários curtos no início dadécada de 1980. Cultivar é sobre técnicas agrícolasinventadas no <strong>Brasil</strong>, incluindo um capítulocom a engenheira agrônoma Joana Dobereiner,que adaptou geneticamente o rhizobium, bactériafixadora de nitrogênio que vive na terra,às condições de solos e leguminosas brasileiros.Essa bactéria fixa o nitrogênio do ar e passa


270para a planta, tornando desnecessário o adubonitrogenado, um gravíssimo poluente que contaminao lençol freático. Um dos resultados daoperação científica de Joana foi possibilitar acultura da soja nos cerrados e na faixa tropical,sem qualquer dano ambiental, e transformaro <strong>Brasil</strong> no segundo maior produtor mundial egrande exportador de soja, um item importantena nossa economia. A comunidade científicabrasileira indicou Joana ao prêmio Nobel, elanão ganhou, mas a sua contribuição à agriculturatropical, à diminuição da fome no planeta, éinestimável. Joana me concedeu o privilégio desua amizade e sua sabedoria, me dando muitoânimo naqueles primeiros anos 1980, emocionalmentedifíceis, quando se estava gestando umamudança em minha vida, mais uma. Me refiro aisso porque me lembrei de Mário Schenberg, láatrás em São Paulo. Os ensinamentos de meusamigos cientistas (Joana, Schenberg, EduardoLeser, Mécia Oliveira e outros, umas duas dezenasdeles), a troca de idéias, a reflexão conjuntacom essas mentes tão diferentes da minha foramsempre um saudável e substancioso alimentopara meu espírito.Fiz um documentário para a TVE, Água Ipanema,sobre o bairro onde moro desde o réveillonde 1971. É um retrato da Ipanema do início dos


anos 1980, com sua face cosmopolita e chique,de criadora e exportadora de modas, e sua faceprovinciana, com os velhos jogando baralho napraça, botecos vendendo fiado, sapateiros, ferreiros,consertadores de brinquedos e outras profissõesantigas com suas clientelas. A montagemé bastante clipada, o andamento é aceleradomas com suspiros, com momentos de desaceleraçãoque permitem sentir os dois ritmos deIpanema, o frenético e o tranqüilo. Esse pequenodocumentário me surpreendeu muito tempodepois, nos anos 1990, quando alguns cineastasimportantes me disseram que Água Ipanemaos tinha impressionado e influenciado quandoeram jovens, quando sonhavam em fazer cinema,e acho que foi exatamente pela adequação doritmo ao tema. Fiz também um documentário naBahia, Ilé Aiyé Angola, mostrando a preparaçãopara o desfile no carnaval de 1984 do grupo afroIlé Aiyé: o concurso de músicas, as fantasias, osensaios, a apresentação nas ruas e a religiosidadenagô que perpassa toda essa atividade. Essefilme me levou a vários encontros e semináriosantropológicos, principalmente com americanose caribenhos, por uma curiosidade despertadadesde o título, duas palavras iorubás junto comuma palavra congo, um grupo iorubá festejandooutra cultura. O que me dava oportunidades detentar explicar a fusão cultural de Salvador da271


Bahia em suas várias escalas, envolvendo as diferentesetnias africanas e destas com os índios eos europeus e os muçulmanos. Como se a Bahiapudesse ser explicada!Noite Profunda272No início da década de 1980 começou a redemocratizaçãodo <strong>Brasil</strong>, anistia, abertura política,fundação do Partido dos Trabalhadores, campanhadas Diretas Já. O tempo sombrio da ditadurachegava lentamente ao fim. Eu convivia com doissentimentos: celebrava o fato, me orgulhavade ser brasileiro, de pertencer a uma sociedadeque tivera a coragem e a inteligência de viraro jogo, de encerrar uma ditadura militar; e meinquietava com a caretice cultural que estavase desenhando diante da minha percepção eda percepção de muita gente. Não via possibilidade,por exemplo, de realizar os filmes que eugostaria de realizar, alguns inclusive já escritos,projetados, com a Embrafilme daquela épocasob a presidência de um homem da ditaduraquando a abertura estava sendo feita. AquelaEmbrafilme não produziria, como tinha feitoantes, uma experiência como Diamante Brutoe o que eu planejava ia além disso. Um dia fuiexpor um desses projetos a esse presidente e eleme disse —o que você precisa é de um producer,


sem um producer você não tem vez aqui. Ele nãodisse produtor, ele disse producer. Cinema demercado também foram palavras muito usadasnaquela reunião. A maior produção de cinemada época, em ritmo quase industrial, era a pornografiapaulista da Boca do Lixo (a pornochachandados anos 1970 tinha dado lugar a umsexo explícito vulgar e malfeito, com milhõesde espectadores).Não havia no horizonte nenhum sinal de queo fim da ditadura ia gerar uma nova explosãocultural, como as que tinham acontecido antes edurante a dita cuja. E eu estava acostumado, oumal acostumado, eu e minha geração, a impactoscomo Jogralescas, Bossa Nova, Cinema Novo,CPC, O Bandido da Luz Vermelha, Tropicália, ORei da Vela e Roda Vida de Zé Celso. E quandouma nova sacudida cultural deveria acontecer,não acontece, é uma pasmaceira. Eu estava metransformando em um profissional de cinema,em um roteirista e diretor à disposição do mercado,fazendo institucionais, trabalhando naGlobotec. E esse caminho não me entusiasmava,me dava o sustento mas não me alimentava espiritualmente.Entre o prazer de haver sobrevividoe superado a ditadura e a insatisfação artística,eu sentia a necessidade de mudar de rumo, debuscar revoluções em outros caminhos, em ou-273


tros lugares, mudar de vida. Era um época, umaatmosfera, muito yuppie para meu gosto.274Esse desconforto foi enormemente agravadocom a morte de Glauber em agosto de 1981.Durante a sua permanência no <strong>Brasil</strong> de 1976 a1980 ele ficou a maior parte do tempo no Rio evoltamos a ser tão próximos como éramos nostempos da Bahia, ajudei-o a organizar seu livroO Século do Cinema, ele escreveu Revoluçãodo Cinema Novo em minha casa e também boaparte de Riverão Sussuarana. Foram quatro anosde intensa criatividade de Glauber, os livros,Di Glauber, Jorjamado no Cinema, A Idade daTerra, o impactante programa de TV Abertura,a política, e de intensidade emocional com onascimento de três filhos e a digestão tormentosada polêmica que decidira travar com ocinema brasileiro, com a direita e com a esquerda.E também de tragédias pessoais, a morteda irmã Anecy e do pai. Quando ele foi para aEuropa levando A Idade da Terra continuamosem comunicação, segui de perto o episódio deseu encontro com o presidente Figueiredo, emPortugal, e nos estressamos juntos, por telefone,com a miopia política dos intelectuais deesquerda, que o criticavam duramente por terse vendido aos militares e idiotices semelhantes,sem perceberem a grandeza do ato político


dele, a sagração do cessar-fogo com o compromissode não-retaliação futura entre militarese combatentes de esquerda. Esse compromissodiferenciou os processos de democratização noCone Sul, no <strong>Brasil</strong> foi muito menos traumáticodo que na Argentina e no Chile.A força telúrica de Glauber poderia reverter apasmaceira cinematográfica, sua proposta deum cinema latino-americano sempre novo, emconstante mutação, propositivo, disposto a enfrentara hegemonia comercial de Hollywoodcom a arte e a imaginação poderia ser acionadapelos países redemocratizados se ele continuasseno rompante em que estava naquele momento.E de repente a doença grave, transportado dePortugal para o <strong>Brasil</strong> em maca, vou recebê-lo noaeroporto do Galeão com sua mãe Lúcia (minhaquerida tia Lúcia) e com Norma Bengell com aesperança de que os médicos brasileiros iamcuidar do caso, tudo sairia bem. Ele morre horasdepois e acontece aquela noite incrível, transcendental,do velório no Parque Lage, a noite maisprofunda da cultura brasileira do século XX, amais sofrida e reveladora, e em seguida o funeralonde todas as correntes de pensamento e políticas,de todos os matizes, disputam a herançado herói. Ele deixa de ser o louco, o traidor, odesorientado e passa a herói, passa a ser o Pro-275


feta. Mas já era tarde, as forças reacionárias àsinovações, as forças da acomodação e as leis domercado haviam assassinado o profeta.276Nos sentimos sós no <strong>Brasil</strong>, a Conceição e eu,apesar dos muitos amigos. A vontade de memovimentar tendia para a América Latina, umterritório que já conhecia como jornalista e queme atraía, queria conhecer melhor, queria mergulharmais fundo. Coronel Delmiro Gouveiaganhou o maior prêmio do primeiro FestivalInternacional de Cinema Latino-americano deHavava, em 1979, e os cubanos estavam meconvidando para fazer parte do júri e participarde seminários. Fui e, sem qualquer plano, semqualquer intenção, mais uma vez nas mãos dodestino, vou me ligando cada vez mais a Cuba,ao povo cubano, e essa atração resultou emlongas estadas na ilha, que somadas alcançamdez anos.


Com Glauber, Rio, 1979


1979


Capítulo VICubaEstivemos morando e trabalhando em Cuba,com intervalos, com algumas temporadas no<strong>Brasil</strong>, de 1985 a 1995. Isso significa que vivemoslá o melhor período desse quase meio século deRevolução Cubana, que foi a segunda metadeda década 1980, e a pior fase, que foi a primeirametade da década 1990. Em 1985, embora a ajudada União Soviética tivesse sido reduzida porGorbatchov, como pressão para que o PartidoComunista cubano adotasse a perestroika, elaainda era grande, com muito petróleo entrandona ilha. Além disso Cuba havia desenvolvido umaforte relação comercial com os países do lesteeuropeu e com alguns países capitalistas e estavaexportando muito açúcar. Um período muito festivo,muito entusiasmado. Diante da convulsãopolítica que estava se desenvolvendo na UniãoSoviética e das gigantescas manifestações estudantisantigoverno que estavam ocorrendo naChina, Cuba se apresentava como uma terceiravia do socialismo real, inclusive dando destaquetropical à definição dessa via, que se apresentacomo martiano-marxista. Colados a Marx estãoos conceitos de José Martí, o líder da guerra deindependência contra a Espanha e formulador279


280da política antiimperialista que Fidel e Che Guevararesgataram cinco décadas depois. O poeta,pensador político e ativista Martí (também herói,morreu em combate) criou o Partido RevolucionárioCubano em fins do século XIX e defendeuo estabelecimento de uma linha de contençãopara impedir o avanço do imperialismo dosEstados Unidos sobre a América Latina. Essalinha de contenção seria o Caribe, com paísesindependentes da influência norte-americana eespraiando sua independência em direção ao suldo continente. Uma fase muito adrenalínica, aidéia de um socialismo americano, desvinculadoda União Soviética e da China. Nesse período ointernacionalismo cultural de Cuba se expandiu,o Festival de Havana se transformou no centronervoso da idéia de integração do cinema latinoamericano,foram sediadas no país instituiçõesinternacionais como a Fundação do Novo CinemaLatino-americano e a Escola de San Antoniode los Baños. Foi nessa fase que participei dacriação dessa escola e realizei Brascuba comSantiago Alvarez.A fase ruim vem logo em seguida, com a dissoluçãoda União Soviética em 1991, o fim daAlemanha Oriental e, aproveitando-se do momento,um grande arrocho no bloqueio econômicomantido pelos Estados Unidos desde os


anos 1960. Cuba vinha rompendo o bloqueio,negociando com países capitalistas, atravésdo Panamá, mas também já não contava comessa ponte após a invasão do Panamá pelosEstados Unidos em 1989. Cuba não tinha comoexportar ou importar, todas as necessidades dopaís tinham de ser satisfeitas com o que o paísproduzisse e Cuba produzia basicamente açúcare tabaco, a pecuária não era desenvolvida, nãohavia petróleo para tocar a indústria. O turismo,que sempre existiu em Cuba, foi drasticamenteprejudicado pelo arrocho do bloqueio econômico.Uma crise terrível, racionamento severo,uma economia de guerra batizada oficialmentecomo Período Especial em Tempo de Paz. Faltavatudo e a comida era escassa, as pessoas emagreceram,a falta de ingestão de algumas vitaminasocasionou doenças. Nessa fase eu fui diretor daEscola de San Antonio de los Baños e Conceiçãoproduziu e apresentou um programa detelevisão de grande audiência. A situação só foisuperada a partir de 1995 com mudanças radicaisna economia, fortes estímulos a investimentosestrangeiros, abertura para negócios privados,boa parte da produção agrícola comercializadadiretamente entre produtor e consumidor, sema intermediação do Estado, e outras medidasreferenciadas à convivência de um regime socialistacom aspectos da economia de mercado.281


Todos os setores foram abertos a investimentosestrangeiros, com exceção de saúde, educaçãoe segurança pública.282Vivi um episódio interessante durante a invasãodo Panamá. Em dezembro de 1989 estávamosem Havana, Conceição e eu, com passagemcomprada para o Rio, via Panamá, exatamentepara o dia em que aconteceu a invasão. O vôofoi suspenso, não havia outros vôos e tivemos deesperar uns quatro dias para que o aeroportodo Panamá fosse reaberto. Sabendo que íamospernoitar no Panamá, uma autoridade cubanada cultura e do Partido Comunista me pediupara fazer contato com o escritor e cineastapanamenho Pedro Rivera, que também era (econtinua sendo) meu amigo. Rivera estaria emperigo. A missão era encontrar Rivera e transmitirum recado, que saísse imediatamente doPanamá, cruzasse a fronteira com Costa Rica e láseria recebido por amigos que o encaminhariampara onde desejasse. Chegamos ao Panamá e, nocaminho entre o aeroporto e o hotel, com umdesvio pedido por mim ao taxista, passamos poruma região elevada de onde se descortinava obairro de Chorrillos, destruído pelo bombardeionorte-americano. Uma devastação chocante,não havia nada em pé, não havia nada inteironaquele grande espaço, era um bairro popular


enorme transformado em destroços, com cheirode putrefação, de morte.No hotel, por telefone e usando meus contatosna cidade, onde havia realizado oficinas de roteiroe assessorias cinematográficas, localizei umamigo de Rivera, que me pediu para ficar ondeestava, no te muevas, e esperar. Eu me sentiaum espião, um James Bond. No início da noite,logo que escureceu, Rivera e seu amigo apareceramno hotel. Rivera estava com um bigodão,acho que postiço, óculos escuros e uma bengala,me disse que estava disfarçado de cego. Dissetambém que não ia sair do Panamá, que suasituação não era grave. Grave era a situação desua mulher, que tinha sido presa e libertada eestava sob suspeita e vigilância porque tinhamencontrado armas no departamento que eladirigia na universidade. Ela é que tinha de serretirada do Panamá e com urgência. Chegueiao <strong>Brasil</strong>, telefonei para Cuba, passei o recadoe missão cumprida.283Uma das características de Cuba (e para quemvive lá muito tempo isso é marcante) é a contínuaatmosfera de que algo grande e gravepode acontecer a qualquer momento nas tensasrelações com os Estados Unidos, a atmosfera daGuerra Fria continua entre os dois países. Umdos primeiros trotes de calouros na Escola de San


284Antonio de los Baños foi a encenação, pelos veteranos,de um ataque norte-americano a Cuba,meia-noite, com efeitos sonoros. Alguns calourosdemoraram em entender, ou duvidaram, oususpeitaram da brincadeira, mas nenhum funcionáriocubano teve qualquer dúvida, todosacreditaram que estavam sendo invadidos e agiramsegundo os treinamentos, encaminharam osestudantes aos abrigos e quando iam se articularcom os Comitês de Defesa Revolucionária foraminterrompidos, os alunos explicaram que era sóum trote. Naquela época a possibilidade real deuma invasão à ilha (como no Panamá, como emGranada) estava presente na cabeça dos cubanose isso contagiava os estrangeiros que viviam lá.Durante um tempo em que morei em uma casana praia me surpreendi algumas vezes pegandoo binóculo para observar barcos suspeitos.Por outro lado, a quantidade de piadas e gozaçõesque nasceram desse trote, entre os funcionárioscubanos, foi bastante para divertir a escoladurante semanas. Essa é outra característicadeles, o humor sem trégua, piadas sobre tudo esobre todos, com ênfase na política (Fidel, Raul,Che, socialismo, socialismo e capitalismo, os EstadosUnidos) e no drama da divisão da populaçãoentre a ilha (dez milhões de pessoas) e os EstadosUnidos (entre um e dois milhões). O vai-e-vem de


cubanos entre Havana e Miami é um surrealismonesse quadro de tanta tensão. Me refiro ao vai-evemlegal, de exilados que visitam seus parentesna ilha, de cubanos da ilha que visitam parentesem Miami, e não ao problema dos balseiros, dosque tentam cruzar os 288 quilômetros de marentre as duas cidades em embarcações improvisadasporque não conseguem o dificílimo vistodos Estados Unidos. Nos anos 1980 e 1990 essetráfego era feito aos domingos, um vôo Miami-Havana-Miami. Era o Cuban Monday, o DomingoCubano, porque o aeroporto de Miami ficavacheio de gente, de cubanos exilados, esperandoo avião para saudar os que vinham da ilha, coma intenção de influenciá-los para ficar, para nãovoltar a Cuba. Era uma gritaria, bienvenidos a latierra de la libertad.285Um dia peguei esse vôo em companhia de SantiagoAlvarez, o grande documentarista cubano,uma figura muito conhecida. Na verdade Miamiera uma escala, estávamos indo para Porto Rico.Desembarcamos, fomos andando pelo corredor,ouvindo aquele alvoroço vindo de algumlugar, e de repente demos de cara, de cima deuma escadaria, com um salão cheio de cubanosexilados, exaltados, uma rumba tocando. Logoalguém gritou é Santiago Alvarez, ele escolheua liberdade, e a multidão aplaude, grita o nome


286dele, bem-vindo. Santiago reage imediatamente:dá bananas vigorosas para a multidão e xingaalto, gusanos de mierda. Gusano, que significaverme, era um xingamento aos exilados, ou aLa Comunidad, como se chamam, já em desuso,nenhum cubano chamava mais os exilados devermes, como nos anos 1970, porque os exiladossão seus parentes, pode-se dizer que todafamília cubana tem pelo menos um parente emMiami ou em algum lugar do mundo. Foi comoum acordo tácito da cubania, a comunidade deMiami e a comunidade da ilha são adversáriaspolíticas mas ninguém é verme. E Santiagojogou a palavra junto com as bananas, vermesde merda. A gritaria se esvaiu, a multidão foiquase ao silêncio e começou um zunzum demurmúrios, alguns movimentos de pessoas eSantiago continuando o enfrentamento. Chegaa mulher dele, a Lázara, que tinha se atrasado naverificação de passaportes, e puxamos Santiagopara trás, voltamos para o corredor, dissemos aum policial que não podíamos sair pelo salão,os ânimos políticos estavam exaltados e coisa etal, e ele nos tirou dali por outra porta.Mas eu estava falando sobre o humor dos cubanos.Uma situação como essa no aeroporto deMiami deve ter inspirado dezenas de piadas, trocadilhose outras graças. Entre as tantas seduções


de Cuba, sua esfuziante cultura afro-espanhola,suas praias e montanhas paradisíacas, a hospitalidadeenorme, a criatividade surpreendentediante dos grandes problemas que enfrenta, asensualidade explícita e assumidíssima em todasas idades, acho que a que mais me amarrouàquela ilha foi o humor de seus habitantes.Não há regras nem limites, tudo no mundo épara ser gozado, tudo que existe é fonte de riso.Aliás, a cidade do interior à qual sou mais ligadoem Cuba, que é San Antonio de los Baños, aolado da escola de cinema, é apelidada Cidadedo Humor porque tradicionalmente promovefestivais, mostras, encontros relacionados aoprazer do riso.287Família CubanaEm fins de 1984 Santiago Alvarez e eu armamos oprojeto de um documentário longo envolvendo<strong>Brasil</strong> e Cuba. Santiago, um criador de linguagemcom seus documentários clipados, seu grafismoexuberante, o uso dramático de palavras na telae tantas invenções, tantas intervenções formaispara explicitar um conteúdo político-militante,passou a ser uma referência e uma influênciaimportantes para os jovens cineastas latino-americanosa partir da segunda metade da décadade 1960. A primeira vez que vi Now, o filme mais


288conhecido de Santiago, quando ainda estavana Bahia, foi um choque elétrico, um estímulocriativo dos mais fortes. Aquele clipe político, oprimeiro clipe da história, Lena Horne cantandouma versão política da canção hebraica HavaNaguila e, no ritmo da canção, imagens devastadorasda violência racial nos Estados Unidos,aquilo foi um abalo, me revigorou. O ensaiocinematográfico LBJ também me impressionoumuito, com máquinas caça-níqueis alinhavandoo jogo com as letras do título, ao mesmo tempoLuther King, Bob Kennedy e John Kennedy, líderesassassinados, e o presidente Lyndon BaynesJohnson, acusado no filme de envolvimento comos três crimes. Ou seja, Santiago é um dos meusmestres e me senti no sétimo céu quando ele medisse que sempre quis fazer um filme no <strong>Brasil</strong>,que o momento tinha chegado, mas que ele sóo faria se eu topasse co-dirigir.A partir de então e durante todo o tempo emque estivemos em Cuba, a família de Santiagopassou a ser nossa família cubana. Nosso portoseguro, nosso colo, naquela Havana trepidantedos anos 1980 e naquela Havana angustiada dosanos 1990. Sua mulher Lázara, uma negra bonitonae despachada, suas cunhadas, sua sograMaría Regla, gente de candomblé, de santería,me ensinaram o caminho das pedras para que


eu me relacionasse adequadamente com asraízes religiosas africanas da ilha, com a baianidadede Cuba. O desejo de Santiago de fazerum filme no <strong>Brasil</strong> evoluiu rapidamente paraum filme sobre os dois países, sobre as semelhançasculturais evidentes, as afro-latinidadesquase gêmeas, de <strong>Brasil</strong> e Cuba emolduradaspor marcantes diferenças geográfica, geopolítica,econômica, idiomática e de regime degoverno. E sem relações diplomáticas um como outro. Santiago filmaria no <strong>Brasil</strong>, eu filmariaem Cuba buscando imagens e situações capazesde esclarecer nosso mote: como dois povos comessas características podem ser tão parecidos,qual a razão disso. Abordagens sem roteiro,a ordenação viria depois. Decidimos por umprocedimento vertoviano, pela proposta dodocumentarista russo Dziga Vertov, nos anos1920, de filmar tudo que acontecesse diante dacâmera, sem planejamento e sem preconceito,só planejar e interferir na montagem. Claro quenosso projeto não era tão radical, não era filmartudo, mas o conceito era esse, deixar correr. Otítulo seria Brascuba, para brincar um poucocom Machado de Assis (Memórias Póstumas deBrás Cubas), como já havia brincado com Joséde Alencar (Iracema). A idéia agradou a AlfredoGuevara, o histórico criador e na época presidentedo Instituto Cubano del Arte e Industria289


Cinematográficos, o Icaic, principalmente ofator olhar estrangeiro. O produtor Nei Sroulevich,com quem eu já tinha trabalhado emoutros filmes, se encarregou da parte brasileirae a co-produção foi acordada. Cabia a mim aprimeira etapa, as filmagens em Cuba.Pé na EstradaMeu plano de filmagem cobria toda a ilha e tivede enfrentar a surpresa dos cubanos ao montaruma equipe reduzida para a tarefa, apenassete pessoas: produtor, fotógrafo, assistentede câmera, som, a Conceição como assistentede direção, eu e o motorista. O fotógrafo eraIvan Nápoles, histórico parceiro de Santiagoem documentários e ensaios em várias partesdo mundo. Nos anos 1960 o Icaic havia organizadoa produção cinematográfica cubanasegundo o molde das produções industriais dosEstados Unidos, com toneladas de equipamentose equipes enormes, muitos técnicos, muitosespecialistas. Além desse modelo, havia o fatode que se tratava de uma empresa estatal commilhares de funcionários que deviam ser utilizados.Mas minhas condições foram aceitas e aviagem ampliada, Alfredo Guevara pediu-meque filmasse além das necessidades de nossoprojeto, produzisse conteúdo para estoque e291


para a televisão. Ele estava interessado, comojá disse, no olhar estrangeiro.292Nos metemos em um ônibus e, durante maisde um mês, esquadrinhamos Cuba. Filmamosem 35mm mas sem limitações, dispúnhamosde uma grande quantidade de negativo e dolaboratório do Icaic. Uma coisa é mergulhar emuma cultura com os olhos, os ouvidos, o paladare os outros sentidos, o que é uma experiênciamaravilhosa, mas outra coisa, ainda mais maravilhosa,é mergulhar com todos os sentidose com uma câmera, com o sétimo sentido docinema. Viajamos em ziguezague do Cabo deSan Antonio à Punta de Maisí, como dizem eles(como no <strong>Brasil</strong> dizemos do Oiapoque ao Chuí),vagarosamente, ficando dias nas cidades e emlugares do campo e do litoral. Ficamos umasemana em Santiago de Cuba, no oriente dopaís, uma espécie de capital do Caribe, populaçãocom mais de 80% de negros e mulatose uma cultura poderosa, desorientadora paraqualquer estrangeiro e até mesmo para os caribenhos.Tudo é música, movimento, requebro,humor e sensualidade exacerbada, e tambémmistério com as várias seitas afro-caribenhasque convivem por lá, desde a santería iorubáaté os paleros de cemitério, influência vududos haitianos, que são numerosos na cidade


(enquanto muitos cubanos trocam Cuba pelosEstados Unidos, muitos haitianos trocam o Haitipor Santiago de Cuba). Aqui desembarcouColombo, daqui partiu Martí para expulsar osespanhóis e Fidel para expulsar os americanos,aqui nasceu a rumba, o bolero, o guaguancó etudo mais dizem os santiagueiros.Eu já conhecia Santiago de Cuba, estivera antespor alguns dias e tinha me impressionado, decara, com sua força, com seu mito (os mitos sãofeitos com história, imaginação e atmosfera),com sua semelhança com a minha Salvador daBahia. Nessa segunda visita, filmando tudo queme impressionava na cidade, das organizaçõessociais às rumbas e aos paleros, me identifiqueiprofundamente com Santiago de Cuba, depoisvoltei muitas vezes, ficou sendo uma daquelascidades preferenciais do meu espírito, para orepouso ou a agitação dele, como Salvadorda Bahia, Marrakesh e a mater Lençóis. Comexceção de algumas piadas, nunca entrei nadisputa Havana-Santiago de Cuba (tipo Rio-SãoPaulo), mas meus amigos cubanos sabem quesou santiaguero, que sou oriental.293E fomos parando nas plantações, nas roças, nospueblos, nas cidades, conhecendo, conversando,entrando nas casas, nas cozinhas, tomandocafé e rum, dançando, cantando e filmando.


294Guantánamo, Sierra Maestra, Holguín, Camaguey,Sancti-Spiritus, Las Villas, Trinidad,Santa Clara, Batabanó, Cienfuegos, Matanzas,Varadero, Pinar del Río. Por terra e por mar,em contato com camponeses, pescadores, estudantes,funcionários do governo, artistas,intelectuais. Falavam sobre suas vidas, sobre aRevolução, sobre o grande problema daquelemomento que era a dificuldade de moradia esobre a questão de La Comunidad, dos exilados,de sair ou não sair de Cuba (ainda estava muitopresente nos sentimentos das pessoas o episódiodos marielitos: em 1980 Fidel embarcou noporto de Mariel, em direção a Miami, 125 milpessoas que queriam sair de Cuba, entre elastodos os criminosos condenados, assassinos,ladrões, doleiros e também ativistas contrarevolucionáriose, segundo os americanos, osenfermos mentais incuráveis). Filmava o queinteressava especificamente ao projeto Brascubae muita coisa mais, como estava previsto:personagens interessantes, situações socialistas,artes populares, danças, usinas de açúcar, casamentose festas de quinze anos. Os casamentose as festas de debutantes são espetacularesem Cuba, rituais com roupas de gala, desfileem carrões americanos conversíveis dos anos1950 pelas ruas, fotografias e filmagem emlugares elegantes (hotéis, cabarés, o Capitólio,


o Palácio da Revolução) e baile com orquestra.Durante anos eu vi na TV, em documentáriose cinejornais do Icaic, o aproveitamento dessematerial extra.Foi uma viagem entrañable, como se diz em espanhol,uma palavra sem tradução exata e que tema ver com afeto, carinho, calor humano. Além deentrar na intimidade de um povo, de filmar essaintimidade, havia também, na minha consciência,o fato de ser o país que é, ou seja, diferenciado,o tempo todo sob a atenção do mundo, temaconstante e tensionante nas discussões entre aspotências, nas decisões dos foros internacionais.Durante todo o século XX essa pequena ilha doCaribe foi manchete na mídia planetária, na mídiade todos os outros países, sem interrupção.Essa ilha pobre, subdesenvolvida, um pedaço doTerceiro Mundo que não deveria ter nenhumaimportância e que brilhou durante todo o séculocomo uma estrela política e cultural, interferindotodo o tempo no equilíbrio ou desequilíbrio dasforças, dos poderes do mundo. Às vezes na conversacom a equipe tocava nesse tema, a posiçãoespecial de Cuba e dos cubanos na cultura políticado século XX, e eles se mostravam modestos, nãodavam grande importância ao fato, diziam nóssomos muito criticados e perseguidos, mas tambémtemos muitos amigos no mundo todo.295


BrascubaSantiago filmou no <strong>Brasil</strong> em 1986, Rio, SãoPaulo, Brasília, Bahia, Nordeste, Amazônia. Eletinha feito a produção executiva de minhas filmagensem Cuba e eu assumi esse papel nas suasfilmagens no <strong>Brasil</strong>, inclusive acompanhando-ona maioria das locações. Mesmo formato de produção,equipe pequena e de grande mobilidade.Equipe brasileira, Conceição continuou comoassistente de direção e o fotógrafo foi o cubanoDervis Baby Espinoza, outro parceiro históricode Santiago. Voltamos a Havana e montamos ofilme nos primeiros meses de 1987.Com Ivan Nápoles filmando Brascuba, Havana, 1986


Durante nosso trabalho aconteceu o reatamentode relações diplomáticas entre <strong>Brasil</strong> e Cuba,rompidas desde 1964 e o assunto entrou no filme— antes de 1964 <strong>Brasil</strong> e Cuba tinham relaçõesmuito estreitas, o primeiro lugar que Fidel visitouao tomar Havana foi a embaixada brasileira, quefuncionara como um hospital clandestino paraguerrilheiros durante o conflito, e logo depoisestaria visitando o <strong>Brasil</strong> com Che Guevara, querecebeu medalha do presidente Jânio Quadros.Muitas amizades e algumas famílias cubanobrasileirasse formaram nessa época e, com aruptura das relações, foram separadas, causandodramas e busca incessante de contatos. A respostaao mote-pergunta do filme (como dois paísestão diferentes podem ter povos tão parecidos?)é esclarecida a partir da cultura africana, não àpresença genérica de escravos africanos na formaçãobásica cultural dos dois países, mas sim aofato de que os africanos que vieram para Cuba e<strong>Brasil</strong> eram das mesmas famílias. Os traficantesde escravos destinavam a maioria de suas cargasa três portos de recepção importantes na América:Havana, Salvador da Bahia e Rio de Janeiro.Em obediência a contratos com os grandes compradores,os traficantes separavam as famíliasescravizadas no momento da destinação: o paipara Cuba, a mãe para o <strong>Brasil</strong>, o irmão para Havana,a irmã para Salvador. Tratavam de separar297


Cena do filme Brascuba, 1986também, até onde era possível, as tribos. Isso erafeito para evitar coesões étnicas e familiares e apossibilidade de motins, de fugas organizadas,de quilombos (palenques em Cuba). Ou seja,somos parecidos porque a formidável dose deafricanidade de nossas culturas se origina dasmesmas famílias.O filme não teve exibição comercial no <strong>Brasil</strong>, foivisto apenas em festivais. Mas em Cuba foi umsucesso inesperado, muito além das previsões doIcaic. Cinco meses em cartaz, com filas enormes,em Havana e em todo o país. No terceiro mêsfoi exibido na televisão, no horário nobre de


domingo, e pensamos que já não havia mais públicodisponível para os cinemas. Ledo engano, aaudiência nos cinemas foi revigorada, ficou maisdois meses. Lembro-me do espanto de CamiloVives, responsável pela produção no Icaic, eraa primeira vez (e creio que isso não se repetiu)que um documentário fazia uma carreira comessa dimensão, superando de longe a bilheteriade filmes de ficção.Nuevo CineO movimento Cinema Novo, como se sabe, nãoaconteceu apenas no <strong>Brasil</strong>, foi um fenômenocontinental envolvendo cineastas da Argentina,Bolívia, Cuba, Chile, batizado em espanhol comoNuevo Cine. No andar da carruagem desse movimentofoi organizado o Comitê de Cineastas deAmérica Latina, com representantes de todos ospaíses. O Comitê, sem sede, nômade, reunindo-senos festivais de cinema ao redor do mundo, atuavapoliticamente no sentido da permanência de umaidentidade audiovisual do continente e da proteçãodo mercado consumidor frente ao avanço dahegemonia de Hollywood. Eu não fazia parte doComitê (os representantes do <strong>Brasil</strong> eram NelsonPereira dos Santos, Geraldo Sarno, Silvio Tendlere Cosme Alves Neto), mas estava muito próximoa ele, às vezes fazia pontes, estabelecia contatos299


300entre os representantes de distintos países devidoà minha intensa circulação pelo continente. Tambémporque muitos deles eram meus amigos: oboliviano Jorge Sanjinés, o chileno Miguel Littin,o peruano Alberto Chicho Durant, o argentinoFernando Birri, os mexicanos Paul Leduc e JorgeSanchez, o cubano Alfredo Guevara, o panamenhoPedro Rivera, o venezuelano Edmundo Aray,o uruguaio Walter Achugar, a porto-riquenhaAna Maria García, os brasileiros já mencionados. Oponto de referência e de encontros políticos maisdensos do Comitê era Havana, principalmentedurante os quinze dias dos festivais de cinema,sempre na primeira quinzena de dezembro. Essascircunstâncias (minha proximidade com o Comitêe o fato de estar morando em Cuba) me levarama participar da Escola Internacional de Cinema eTelevisão de San Antonio de los Baños desde suagestação. A idéia de uma escola desenhada peloscineastas do Nuevo Cine, pela geração dos anos1960, era um dos sonhos do pessoal do Comitê,alimentado especialmente por Fernando Birri,que assumiu a liderança da construção do projeto,reacendendo a chama da seminal Escola de SantaFé, que criou e amamentou nos anos 1950 em suacidade natal na Argentina.Gabriel García Márquez, o Gabo, que tambémcirculava nessa turma, se entusiasmou com a


idéia e começou o esforço para materializá-la. Oprimeiro passo foi anteceder a criação da escolacom a montagem de uma instituição internacionalque pudesse dar respaldo a ela — e nasceua Fundação do Novo Cinema Latino-americano,com Gabo na presidência e um conselho formadopelos integrantes do Comitê de Cineastas deAmérica Latina. Depois o conselho foi ampliado,entrando outros cineastas, inclusive eu. Isso foino final de 1985 e resultado de negociaçõesque Gabo e o Comitê fizeram com Fidel Castro.Antes se pensou em sediar a escola na Colômbiaou na Venezuela ou até no <strong>Brasil</strong>, mas essespaíses não ofereciam as condições necessárias.Cuba ofereceu: um prédio a 40 quilômetros deHavana, que poderia ser adaptado, com umagrande área verde ao redor, e também umapoio financeiro substancial para a montagemda escola e sua manutenção nos primeiros anos.Seria uma instituição internacional, mantidapor vários países e sediada em Cuba. Na verdadeduas instituições: a Fundação e a Escola.Estive em algumas dessas reuniões com Fidele dois acontecimentos desse episódio devemser mencionados. O primeiro é que, diante decerto desconforto de Fidel por estar aportandosozinho os recursos iniciais de uma instituiçãointernacional, Gabo materializou sua primeiracontribuição: mais de um milhão de dólares,301


302todo o dinheiro que havia recebido pelo PrêmioNobel de Literatura. Essa magnanimidadeincentivou a Fidel e a todo mundo que estavaenvolvido no projeto e todos nós, ou quasetodos, fomos caçar dinheiro em nossos paísese em todo lugar (tarefa a que me dedico atéhoje). O outro acontecimento foi o discurso deFidel no encerramento do festival de 1985. Elevinha das reuniões com os cineastas e já com adecisão da escola tomada, com todo gás, e faloudurante mais de três horas sobre o veneno emque o cinema se transforma quando se tornahegemônico, quando um povo ou um país impingesua cultura a todos os outros, utilizandode todos os meios (econômico, diplomático,tecnológico, militar) para isso.Durante todo o ano de 1986 trabalhou-se nareforma do prédio doado, ao lado de San Antoniode los Baños, uma antiga escola primáriarural, e na construção de outras dependências,e também na escolha e compra dos equipamentos.À frente disso estava o Julio García-Espinosa, então presidente do Icaic. Paralelamente,uma equipe de dez ou doze pessoastrabalhava intensamente no desenho docentee filosófico dessa escola cujo raio de ação logoultrapassou a idéia continental, abarcandoAmérica Latina e Caribe, África e Ásia. Eu fazia


parte dessa equipe de formulação e tinha deme desdobrar, tinha pouco tempo para dormir,virava noites, porque na mesma época estavafazendo Brascuba. Magro e com olheiras masfeliz, na minha praia, gozando o prazer deinventar, de fazer coisas inéditas. Havia encontrosplenários, digamos, mas minhas reuniõesmais constantes eram com Birri e com o grupoencarregado da cinedramaturgia e do roteiro.Com Birri sempre me encontrava no Hotel Capri,em geral em fins de tarde, para conversarsobre o conceito geral da escola e sua aplicaçãoprática, sobre como materializar uma escola decinema da qual gostaríamos de ter sido alunos,uma escola pensada a partir do ponto de vistado estudante, do aprendiz, e não do ponto devista do professor. No grupo da dramaturgiatrabalhava com Gabo e com os cubanos JulioGarcía-Espinosa, Ambrosio Fornet e Jorge Fraga,tratando de entender os processos que levam asraízes e os suportes universais da dramaturgia,a dramaturgia natural a todo ser humano, a seramificar por diferentes caminhos nas distintasculturas, tema fundamental em uma escola queia juntar latino-americanos, asiáticos, africanose europeus. E também, praticamente, formularuma programação de aulas teóricas, exercíciospráticos e sessões de reflexão.303


Vento Forte304Me lembro de um episódio assustador nesseperíodo. Foi uma reunião de trabalho na casade Ambrosio Fornet, ele, o mexicano VicenteLeñero e eu. Era um apartamento de coberturaem um edifício muito alto, mais de vinte andares,no Malecón, ou seja, diante do mar. Estávamosapenas os três e fomos ao terraço apreciar a paisagem,só por um instante porque Vicente tinhamedo de altura e estava ventando. Nisso a portado terraço fechou, com o vento, e não podia seraberta pelo lado do terraço. Só abria pelo ladode dentro da casa e não havia ninguém lá. Eraapenas o início do drama, o vento começou asoprar forte, em pouco tempo era uma ventania,a insegurança no topo daquele edifício estreitoera absoluta. A impressão era que o edifícioestava balançando e que a qualquer momentopodíamos ser lançados fora. Tem de se conheceros ventos de Havana em um vigésimo-quintoandar para imaginar a situação. Estávamos nazona e na época dos ciclones e, embora nãohouvesse nenhuma notícia disso, nenhum alertacomo era comum, considerávamos seriamentea possibilidade de que estava começando umfuracão inesperado, pegando a cidade de surpresa— e se isso fosse verdade não tínhamosqualquer chance de escapar vivos. Enquanto o


vento permitiu, Ambrosio e eu tentamos chamara atenção das pessoas que passavam lá embaixona rua e de um prédio vizinho, mas a boa distânciae ninguém nos ouvia nem via, o ventoespalhava nossos gritos. O próprio vento faziamuito ruído, assoviava. Agravando a situação, emuito, a acrofobia de Vicente Leñero chegou aum ponto exponencial, como era de se esperarem tal situação. Ele ficou todo o tempo deitadode bruços no chão, aterrorizado, querendo seagarrar no cimento, a caminho do estado dechoque. O vento forte durou menos de meiahora, mas pareceu muito mais, e foi diminuindo,fomos nos acalmando, logo a mulher de Ambrosiochegou em casa e nos resgatou. Vicenteentrou para o interior do apartamento andandode quatro, não teve forças para se levantar enquantoestava no terraço.305AntiescolásticaO número mágico da Escola de San Antonio delos Baños é o três. Desde os primeiros momentosde sua concepção Birri se referia a ela comoEscola de Três Mundos e não apenas devido aoseu raio de ação em três continentes, América,África e Ásia. Também três formatos: ficção, documentário,ensaio. Três meios: cinema, vídeo,televisão. Três níveis de estudo: prático, teóri-


306co, reflexivo. Três intenções docentes: ensinar,provocar, libertar. E seu lastro filosófico, suapedra filosofal (no sentido da transformação),é a antiescolástica. Esse é seu conceito básico, ofundamento, a grande sacada: pensar e agir semqualquer compromisso com dogmatismos, comverdades absolutas. O conceito não é a não-escolástica,é a antiescolástica, é com o prefixo anti,que indica ação contrária, oposição, combate.Uma atitude (pensamento e ação) antiescolásticanão apenas no sentido mais superficial da nossapercepção da escolástica medieval — tradicionalista,formalista, repetitiva. Também em seusentido mais profundo, enraizado em Aristótelese suporte do sistema da filosofia cristã desenhadopor Tomás de Aquino e ainda tão presentenas nossas culturas ocidentais.Para Aristóteles, o primado da vida é a experiência,as idéias só se realizam nas coisas. NaEscola de San Antonio de los Baños o primadoé a invenção, que vai além da experiência. Como aval de Gabriel García Márquez e de AlbertEinstein. Mas a questão central é o dogma,tanto na forma de ensinar consagrada por Aristóteles(o peripatetismo, o mestre falando e osaprendizes seguindo ele), como na imobilidadedos princípios exigida por Tomás de Aquino. Oque formulamos naquele brainstorm de 1986


em Havana, no impulso das idéias generosas ebrilhantes de Birri, foi uma escola onde a práticaantecede a teoria, onde se aprende fazendo,onde o trato mestre-aprendiz é de troca de experiênciasmateriais e emocionais, onde nadaé tido como definitivo e tudo, absolutamentetudo, é passível de novas interpretações, novasleituras. Não uma escola peripatética, um liceu,mas um espaço de confraternização de saberes,sentimentos e revelações. Uma escola-fazenda(inclusive fisicamente, cercada por um grandelaranjal), uma escola-laboratório, uma escolaestufa,uma escola-útero.A escola foi inaugurada em dezembro de 1986,Birri como diretor, e logo ficou muito claro queo grande desafio era a aplicação da antiescolástica,realizar no cotidiano daquela comunidadeinternacional, com pessoas oriundas de trintapaíses, princípios aos quais não estavam acostumados,procedimentos que não faziam partede sua cultura educacional. Foi estabelecidoo co-governo comunitário, um conselho degestão docente e administrativa composto porestudantes, trabalhadores, professores e direçãoda escola. Os estudantes se surpreendiam comesses procedimentos, com a possibilidade de interferiremno plano de estudos, de escolheremprofessores, de exercerem prerrogativas, ou307


direitos na nossa acepção, que nunca tinhamexercido. Mas logo entenderam as novas regrasdo jogo e assumiram, pouco a pouco, superandodúvidas e surpresas, a relação antiescolástica. Oproblema eram os professores e os funcionários,assustados com a liberdade que os estudantespouco a pouco entendiam e assumiam.308Imagine que, no primeiro ano da escola, a administraçãoexigiu farda, um uniforme para os alunos.Todos os alunos e professores recebiam ummacacão de mescla azul, roupa para trabalho, ealguns dirigentes interpretaram isso como fardaescolar e perpetraram a tolice — estudante temde ser fardado. Os estudantes acharam graça,gozaram, a idéia era um absurdo dentro da propostada escola. Menciono isso para que se tenhauma idéia do arco de dificuldades, que ia desdeuma tolice como essa a conflitos e desajustesmais profundos de muitos cineastas e professorescom a direção da escola e com os alunos. Desajustesinclusive em nível psicológico, como o casode um grande maquiador europeu que entrouem profunda depressão diante de críticas dosestudantes à sua metodologia, à sua maneira depassar conhecimentos. Achou que seu trabalhoartístico estava sendo rejeitado, se trancou noquarto, uma crise profunda, queria morrer, suamulher ficou desesperada, nunca tinha visto o


marido naquele estado. Os estudantes foram aoseu apartamento e conversaram com ele, não eranada daquilo, todos admiravam seu trabalho,eram seus fãs, ele estava ali exatamente por isso,o problema era o relacionamento peripatético,as verdades absolutas. Conversaram muito eo grande artista entendeu, aceitou, gostou,deixou de ser professor e passou a liderar umaequipe e se deu muito bem em San Antonio delos Baños.Consciência e RebeldiaDurante quase todo o ano de 1987 minha presençafísica na escola não foi muito intensa, euestava envolvido com a edição e o lançamentode Brascuba, fiz um documentário com o PieroMancini para a TV Bandeirantes (Cuba Libre),fazia uma coluna semanal para jornais brasileiros,tive de vir ao <strong>Brasil</strong>. Visitava a escola paraconversas com Birri e com os estudantes, participandono esforço de implantação da novamentalidade educacional. Nesses encontros comos estudantes, cada vez mais entusiasmados coma liberdade de ação e, como era de se esperar,cometendo exageros e já querendo mais (temosde ocupar a direção, temos de tomar o controletotal da escola agora, pregavam), encontrei oconselho, a sugestão, que podia dar a eles e309


que desenvolvi durante os anos seguintes nessae em outras escolas, o binômio antiescolásticoConsciência e Rebeldia. As duas atitudes juntas,uníssonas, retroalimentadoras. Rebelar-se continuamente,viver o dia-a-dia revolucionariamente,mas saber por que está se rebelando, sabera razão e as conseqüências da insubordinação.Foram muitas as conversas, as polêmicas e asiluminações tratando dessa dualidade complementarcom os jovens cineastas ou candidatosa cineastas de todo o mundo.310Me integrei plenamente a partir de setembroou outubro, já com a segunda turma de estudantesentrando. Comecei fazendo oficinasinternacionais de roteiro, em seguida fui morarna escola como professor full time e no anoseguinte me vi envolvido no primeiro choquecoletivo ocasionado pela nova metodologia. Foio que ficou na história da escola como a Crisede Outubro de 1988: os alunos não estavamde acordo com as ações do Diretor Docente eda Diretora de Produção, um casal de mexicanos,acusados exatamente de procedimentosescolásticos. Os estudantes escolheram umanova direção docente, composta por três professores,eu inclusive. O triunvirato funcionoudurante algum tempo, mas havia discrepâncias,inclusive no entendimento e na aplicação da


antiescolástica, na dimensão prática desse conceitoque Birri, Gabo, Julio García-Espinosa e euestávamos tentando implantar. Uma reuniãoplenária com direção, professores, alunos etrabalhadores (essas reuniões eram e continuamsendo habituais na escola) decidiu desfazer otriunvirato e confiar a mim a Direção Docente.É nesse período que grandes nomes do cinemacomeçam a entender o que está acontecendoem San Antonio de los Baños e adotam a escola,passam a ser professores, abrindo uma listapoderosa: Francis Ford Coppola, George Lucas,Robert Redford, Costa-Gravas, Jean-ClaudeCarrière, Ettore Scola, Istvan Szabo, StevenSpielberg, Gillo Pontecorvo, Fernando Solanas,Ruy Guerra, Walter Salles, Emir Kusturica,Agnès Varda, Margarette von Trotta, EduardoGaleano, Alejandro Iñárritu, o indiano MrinalSen, o prêmio Nobel nigeriano Wole Soyinka, oscubanos Tomás Titón Gutiérrez Alea e SantiagoAlvarez, e também grandes fotógrafos, técnicosde som, dramaturgos, músicos, atores e atrizesde todos os continentes. No seu segundo anode funcionamento aquela fazenda com tecnologiaaudiovisual já era, além de um centro detreinamento intelectual e prático, um espaço dedebates, de reflexão e de contatos de trabalhopara cineastas e teleastas de todo o mundo.311


312Em meados de 1990 Birri decide afastar-se dadireção da escola, em busca de um refresco noduro embate intelectual, emocional e práticode implantação dos procedimentos antiaristotélicos.Os estudantes indicam meu nome, comapoio de Birri e de Gabo, e o Conselho Superiorda Fundação do Novo Cinema Latino-americanoaprova. Assumo a direção em julho de 1990 ecumpro quatro anos nessa função, até 1994. Ouseja, no pior período econômico da RevoluçãoCubana. A crise afetou a colaboração de Cubaaos custos da escola e tive de aprofundar arelação com outros países, principalmente europeus,em busca de recursos, e também tomarmedidas internas — a mais importante delasampliar significativamente a horta da escola, quepassou a ter papel importante como fonte dealimentação para os habitantes da escola (cercade 200 pessoas), as famílias dos funcionários etrabalhadores e também para alguns cineastascubanos com dificuldades para conseguir alimentaçãode qualidade. As duas engenheirasagrônomas que fizeram o trabalho, uma negracubana extremamente expansiva e colorida euma chinesa absolutamente discreta, quase invisível,disputavam profissionalmente, as duas seesforçavam para evidenciar suas eficiências e issotambém foi um elemento importante, resultouem aumento de produtividade.


Hortaliças e TelevisãoEssa horta foi um presente pessoal de FidelCastro à escola e ele se interessava muito pelosseus resultados, quando soube da ampliação seinteressou mais ainda. Tive alguns encontroscom ele para tratar da pauta de sempre, ouseja, as relações do Estado cubano com nossasduas instituições internacionais, a escola e afundação, naquele período com o agravante dasituação econômica do país. O primeiro assuntoera sempre a horta. Um dia, em uma reunião social,ele me perguntou pela horta, conversamossobre o assunto e eu disse que uma das pessoasresponsáveis pela nova dimensão da horta eraa Conceição, que estava presente. O que eraverdade, ela desempenhou um papel importantena complicada Operación Semillas, que eraconseguir boas sementes de legumes, hortaliças,verduras naquela situação difícil, ela conseguiuaté importar sementes (façanha celebrada ruidosamentepela agrônoma cubana, rompemosel bloqueo). Ele pegou Conceição pelo braço edurante mais de uma hora falou sobre agriculturade subsistência, sobre novas técnicas, logohavia um enorme círculo ao redor deles.313Ele já conhecia Conceição, dizia que era seu fã, suadmirador, porque ela apresentava e produziaum programa de grande audiência na televisão


314cubana em um momento em que a televisão estavasufocada pela crise econômica, sem divisaspara comprar ou produzir imagens do exterior. Oprograma, Ventana al Sur, ou seja, Janela para oSul, apresentava sempre uma entrevista da Conceiçãocom um artista da América Latina e umnúmero musical ou um clipe. Muitos brasileirosparticiparam, Chico Buarque, Caetano, Gil, GalCosta, Beth Carvalho, Ney Matogrosso, AlceuValença, Ruy Guerra, Tizuka Yamasaki. E umaquantidade enorme de atores, cujas entrevistaseram mostradas enquanto estavam no ar em algumatelenovela lá em Cuba, onde a populaçãoé fanática pelas telenovelas brasileiras. Todo oprograma era muito sedutor, mas seu grandegancho eram as entrevistas com os atores e suapopularidade era realmente impressionante.A mágica de fazer um programa com gravaçõesem vários países quando a televisão não tinharecursos para isso se devia a uma rede de colaboraçãomontada a partir da Escola de San Antoniode los Baños, a essa altura já se conformara agrande família da escola, espalhada por todo omundo e intercambiando favores, as gravaçõesem Buenos Aires eram feitas por argentinos daescola, no Chile por chilenos da escola e assimpor diante, como uma colaboração a Cuba. No<strong>Brasil</strong> havia uma equipe mais ou menos fixa


comandada por nosso amigo Bayard Tonelli,que não cobrava nada, e a edição era feita poralunos da escola, como mais um exercício prático.As passagens aéreas da Conceição ela mesmabancava. O conteúdo do programa encantavaos cubanos, mas a admiração de Fidel tinha aver com a produção internacional sem custospara a televisão de seu país, materializada comdoações. Quando ele soube que la beneméritaConceição, além de fazer Ventana al Sur, tambémtinha responsabilidades com a horta, passoua se informar sobre a horta com ela, de vez emquando o Carlos Laje, presidente do Conselhode Ministros, telefonava para ela ou apareciana escola em nome del Comandante para sabercomo iam as coisas, como estava o sistema deirrigação, quantas pessoas eram atendidas pelahorta. Conceição ficava constrangida, afinal ahorta era da escola, os dirigentes da escola éque tinham de dar essas informações, mas nãotinha como escapar e tratou de aprender maissobre o assunto.315ConflitoNo momento mesmo em que assumi a direçãoda escola, na mesma semana, eclodiu uma criseforte entre intelectuais e artistas cubanos e ogoverno e me vi envolvido nela.


316Desde meados da década de 1980 vinha se desenvolvendouma tendência muito interessanteno cinema cubano, conhecida como comédiacrítica: filmes alegóricos sobre o cotidiano dopaís, engraçados, gozando as deficiências e astrapalhadas do socialismo. Acho que isso começouem 1983 com Hasta Cierto Punto, filme deTomás Titón Gutiérrez Alea — que, aliás, emplacouo maior sucesso dessa tendência em 1995com Guantanamera, co-direção de Juan CarlosTabío, a saga surreal de um defunto, dentrode seu caixão, cruzando Cuba de uma ponta aoutra. O cara morre no oriente da ilha e tem deser enterrado no ocidente e em cada divisa deprovíncia ou de qualquer jurisdição aparece umproblema diferente, às vezes só pode passar omorto, outras só pode passar o caixão em umaespiral de burocracia. Em Cuba esses filmesfaziam (e fazem) muito sucesso, filmes comoPlaff de Juan Carlos Tabío, La Inútil Muerte demi Socio Manolo de García-Espinosa, AdorablesMentiras de Gerardo Chijona. Em 1990 um dessesfilmes ficou pronto e irritou profundamente ogrupo mais conservador do Comitê Central doPartido Comunista, a linha dura. Era Alicia enel Pueblo de Maravillas, de Daniel Díaz Torres.Sátira engenhosa inspirada em Lewis Carroll,uma sucessão de situações ilógicas, de disparates,dentro da realidade cubana, fazendo parte


dela, surtos de irrealidade dentro do real, docotidiano, e essas situações ampliadas, cinemado absurdo.A linha dura achou que o filme ia além da gozaçãocom os hábitos e costumes do povo, comas organizações sociais e o governo, atacandodiretamente o Estado Socialista, enfraquecendoo país diante do inimigo, dos Estados Unidos,ou seja, crime grave, traição à pátria, contrarevolução.Para piorar o enredo, uma cópia dofilme já tinha sido enviado para o exterior, para ofestival de Berlim. O filme tinha de ser proibido.A ala mais progressista do Comitê não se irritaratanto com Alicia e ponderou que a censura seriaum desastre para a imagem do país, todo mundoia criticar, ia cair de pau. Organizou-se umacomissão de dezoito cineastas e escritores, queproduziu um documento discrepando totalmenteda linha dura do Comitê Central. Na comissãoestavam os cineastas mais importantes do país,Tomás Titón Gutiérrez Alea, Santiago Álvarez,Humberto Solás, Juan Carlos Tabío, FernandoPérez, Pastor Vega, Juan Padrón. Fidel decidiuque a comissão dos cineastas discutiria o assuntodiretamente com o Comitê Central, cara a cara, eassim foi feito. E aí o bicho pegou, a crise evoluiu,García-Espinosa foi destituido da presidênciado Icaic, o posto foi reassumido pelo histórico317


Alfredo Guevara. Da linha dura caiu um poderosodirigente político, Carlos Aldana, apelidadoEl Jabao (O Sarará), que tentou sufocar o Icaic,rebaixá-lo a um departamento da televisão, doInstituto de Radio y Televisión. Um terremotopolítico-cinematográfico.318Como diretor de uma instituição internacionaleu não devia me meter na confusão, mas aconteceque o diretor de Alicia, Daniel Díaz Torres,e o porta-voz da comissão dos cineastas e escritores,Ambrosio Fornet, dois focos da polêmica,estavam trabalhando direto na escola, tinhamapartamentos lá. Todos os integrantes da comissãotinham fortes relações com a escola masDaniel e Ambrosio estavam no foco e hospedadoslá. Eu não devia me meter oficialmente, mastambém não podia deixar de opinar, quandoera solicitado, e naturalmente defendia a liberdadede expressão. A Rádio Martí, uma emissoraanticastrista de Miami que transmite para ailha, começou a dizer que havia um levante daintelectualidade cubana e da escola internacionalde San Antonio de los Baños contra Fidele aquela onda. O jornal Juventud Rebelde, deHavana, publicou insinuações de que eu estariaabrigando contra-revolucionários na escola. Atensão foi muito forte, de repente estava emperigo o Icaic, ameaçado de ser diluído na tele-


visão, e a escola, uma instituição internacionalque estaria imiscuindo-se em assuntos internosdo país.A crise terminou mais ou menos bem para Alicia,que teve sua exibição autorizada mas comrestrições, só quatro dias em cada cinema, eterminou bem para o Icaic, que não se transformouem um departamento da televisão eviu seu prestígio político aumentar. E a escolaseguiu seu caminho. Não resisto à tentação decontar mais um episódio relacionado a Alicia:a linha dura do Comitê Central, derrotada noembate, organizou um número grande de militantesdo partido e ordenou que fossem vero filme, ocupassem boa parte dos cinemas e,aí estava a estratégia, não rissem. Sendo umacomédia desbragada, louca, feita para arrancargargalhadas dos cubanos, a tarefa se tornavabem difícil. Faz lembrar a cena de Chaplin emUm Rei em Nova York, ele faz uma operaçãoplástica e não pode rir senão desmancha a carae vai ver um show muito engraçado — o esforçodele para não rir é um dos grandes momentoscômicos do cinema. Mas essa era a tarefa, nãorir em um filme engraçado, uma situação quecaberia como uma luva em Alicia, a comédia deabsurdos que estavam vendo.319


San Tranquilino320Vencida a primeira etapa de implantação doprojeto, na heróica gestão de Birri, minha missãoera avançar na qualificação dos procedimentosantiescolásticos, no sentido de tirar dessa relaçãolibertária todo o leite possível, de deixar aflorartoda a criatividade que essa atitude pode provocar.Um tempo carregado de desafios e degrandes compensações intelectuais e afetivas,essas duas categorias se confundindo, quatroanos que deveriam estar em destaque em umabiografia minha, em um boxe. Uma escola decinema é uma escola de arte, onde o aprendizadoda técnica, de como misturar tintas outrocar lentes, é importante mas não tanto comodespertar ou aguçar a consciência ontológica dosaprendizes, seu autoconhecimento como entehumano, ao mesmo tempo individual e coletivo,único e infinito. E nessa operação despertar ouaguçar a sensibilidade e as habilidades artísticas.Mais de uma centena de pessoas dedicando-se otempo todo ao exercício de criação do aprendizado,discutindo coletivamente cada passo dasproduções, dos roteiros, dos filmes, exercitandoao mesmo tempo a autocrítica e a experimentação.Aprendi muito, avancei distâncias, avanceihorizontes na minha compreensão da vida, dahumanidade, da arte, naqueles anos de pensa-


mento e ação caudalosos e incandescentes, umencontro fecundante de gerações.Um mergulho muito interessante nessa épocada escola foi sobre o conceito de Verdade, quecomeçou com a questão da isenção e da interferênciana realidade nos documentários. Oprofessor não tem a verdade, nem os livros têma verdade, pode ter parte da verdade, pode seruma intuição para a verdade, mas não A Verdade.Todos os grandes filósofos dizem que averdade é uma convenção cultural, quando setrata das verdades coletivas. E quanto às verdadesindividuais e simples, tipo isso é vermelho,estão sujeitas a ruídos de todo tipo, físicos,emocionais, de ponto de vista, de iluminação,de velocidade e das interferências das verdadescoletivas, das tais convenções. Quando você dizisso é vermelho a um daltônico isso não é verdadepara ele. Duas testemunhas do mesmo fatonão narram o acontecido da mesma forma, asverdades não são exatamente iguais. Ninguémvê ou entende um filme exatamente da mesmamaneira que qualquer outra pessoa. Então AVerdade, a única, a que vale porque é a única, éa de cada um, é a minha, é a sua. Cristo pensoumuito, quem lê o Novo Testamento nota isso,antes de dizer eu sou a verdade. Aliás sempreassocio essa frase de Cristo com o cinema, serve321


como uma definição do cinema — eu sou a luz,a verdade e a vida.322A atmosfera da escola, a humanidade da escola,também é única, não há paralelos nemcomparações, como qualquer pessoa que tenhapassado por lá sabe e diz. O ritmo interno eexterno intenso da criação e do aprendizado, adiversidade cultural e étnica, a igualdade de responsabilidadesde mestres e aprendizes formamum pacote irresistível. As ações de aprender,ensinar e inventar não se restringem ao cinema,englobam quase tudo que se faz na escola, quasetudo que as pessoas fazem. O teatro invisível,por exemplo. Já me referi a isso quando falei dostrotes, das brincadeiras com os calouros, ondenão havia nenhuma violência física como nasuniversidades brasileiras, ninguém tocava emninguém. Todos os trotes, durante os primeirosoito anos, foram exercícios de teatro invisível,essa forma radical de teatro em que uma partedas pessoas envolvidas não sabe que se trata deteatro e reage em outro código, no código darealidade. Contei um desses trotes e agora contooutro, na época em que eu era o diretor. Os novosalunos que chegaram em setembro de 1990encontraram uma escola que mais parecia umacasa de loucos devido às muitas divisões entre osestudantes — disputas inflamadas entre cristãos


e muçulmanos, asiáticos e africanos, cinema-artee cinema-de-consumo, comunistas e capitalistas,inventaram até uma disputa mortal entre Birrie eu e nossos seguidores fanáticos, os birristas eos sennistas. E outras maluquices, havia o grupodas garotas drogadas caindo pelos cantos, gaysexageradamente espalhafatosos, um fino intelectualindiano fazendo pregações eruditas emdefesa do cinema pornô, a pornografia é a maisbela forma de arte, a única que retrata a nossaalma verdadeira. Os grupos às vezes se engalfinhavamem algum lugar que ninguém via, dentrodo laranjal, e os feridos passavam em macasem direção à enfermaria. Tudo com maquiagem,efeitos sonoros e, só assim podia dar certo, com acumplicidade do médico, dos trabalhadores, dosprofessores e do diretor da escola. As reações dossessenta calouros eram as mais diversas, algunsqueriam aderir a algum grupo, outros queriamimpor ordem na bagunça, outros se recolheramna defensiva, outros exigiam providências dadireção e as discussões à noite, no restaurante,eram altamente reveladoras do caráter de cadaum, dos calouros que não sabiam que estavamparticipando de uma encenação e dos veteranos,a partir de como compunham seus personagens.Durou quase uma semana, só terminou no diada recepção aos novos alunos em uma reuniãoplenária da escola, quando informei sobre o te-323


atro invisível. A experiência produziu reflexõesprofundas entre os alunos, análises, exegeses,debates, confissões, revelações.324Um laboratório de criatividade, conhecido naintimidade da grande família que aí se formoue continua crescendo como San Tranquilino,porque antes da escola o que existia aí era umachácara, a Finca San Tranquilino. A experiênciahumana da Escola de San Antonio de los Bañosé difícil de ser contada, é um sentimento muitoindividual, de cada um, muito intraduzível, mastodos que viveram essa experiência foram profundamentetocados, influenciados. Uns poucosde maneira negativa, os poucos que não entenderamou se amedrontaram, e a grande maioriacomo uma iluminação, como um marco divisorem suas vidas, como fator de transformaçãopessoal. Essa magia não se perdeu nos anos posteriores,apesar da escola ter passado por etapasdiferentes do entusiasmo dos primeiros tempos,apesar da desativação do co-governo, apesar deter enfrentado um movimento conservador quequeria transformá-la em uma escola de cinemacomo as outras. O que marca essa fase, de 1995a 2002, é o fato de que as pessoas que dirigirama escola nesse período eram muito competentes,mas não estavam umbilicalmente ligados a ela,não tinham vivido na escola antes de assumirem


a direção, não sabiam que a antiescolástica nateoria é uma coisa e na prática é outra, cadainício de gestão era um susto.Em 2002 o Conselho da Fundação do Novo CinemaLatino-americano e as organizações deex-alunos se juntaram para resgatar aspectos dafilosofia fundacional que estavam se perdendoe reorganizar a escola, adequar a escola para oséculo XXI. É o que estamos chamando de refundação,um processo que em 2007 materializouum passo fundamental, que foi a troca decomando, os ex-alunos assumindo os destinos daescola. Em 2002 foi eleito diretor o cubano JulioGarcía-Espinosa, que participou do projeto desdesua concepção, para concretizar essa passagemde mando e ampliar a escola, com a construçãode novos edifícios, modernização tecnológica,ampliação do curso regular, aumento do númerode oficinas e da quantidade de alunos. Em dezembrode 2006 foi eleita diretora a ex-alunaTanya Valette, da República Dominicana, queem seu discurso de apresentação, na festa dos20 anos da escola, dirigiu-se aos ex-alunos e disseagora é com a gente.325Continuo dedicando boa parte de meu tempo aosonho materializado de San Tranquilino, comomembro do Conselho Superior e do Conselho deDireção da Fundação. O projeto da Escola de San


Antonio de los Baños é de cem anos, previsãode um século de funcionamento, e festejamosos primeiros 20 anos vendo que a planta vicejou,tem flores e frutos, mas, principalmente, com osolhos nos próximos 20 anos, na fase de mutaçãoda Sétima Arte para a Oitava Arte, do cinemaque conhecemos para o cinema que já começamosa imaginar, interativo, portátil e capaz degerar realidades virtuais.Édipo Colombiano326Durante essa época de atividade mais intensa naescola, que me exigia alta dedicação, tambémparticipei na criação de alguns filmes, todos elesrelacionados com a Fundação do Novo CinemaLatino-americano (nossa fundação desenvolvevários programas além da escola, inclusive estímuloa co-produções ibero-americanas, como aconhecida série Amores Difíceis). Além de Sabora Mi, participei de uma produção multinacionallatino-americana, uma celebração dos cem anosde cinema no continente, Enredando Sombras.São curtas-metragens de cineastas de vários paísessobre o cinema e me coube o tema CinemaNovo. Usei um depoimento inédito de Glauber,que ele havia gravado em minha casa em 1979,e imagens emblemáticas de filmes para refletirsobre a Estétika da Fome e a Estétika do Sonho,


os manifestos básicos do movimento. E participeiem outra produção multinacional ibero-americana,trabalhando no roteiro de Edipo Alcalde(título internacional Oedipus Major, ou seja,Édipo Prefeito), com Gabriel García Márqueze a colombiana Stela Malagón, que tinha sidoaluna dele e minha na escola de San Antonio delos Baños. Durante todos esses anos na escola aminha relação com Gabo ampliou-se para umaamizade que faz muito bem ao meu espírito,que está sempre abrindo novas perspectivas deentendimento de nossa identidade, ou de nossasidentidades latino-americanas. Nossa áreade interesse na escola, a cinedramaturgia, noslevou a compartilhar muitos projetos e a umaconvivência constante, com episódios interessantes,como o desaparecimento dele no Rio deJaneiro, acho que em 1991.327O Centro Cultural Banco do <strong>Brasil</strong> o estava pressionandopara que aceitasse um convite parauma palestra e ele não queria vir porque estavaescrevendo Doze Contos Peregrinos, muito concentradonisso. Mas acertou que seria só umavisita ao Centro Cultural, um encontro informalcom os participantes de uma mostra de cinemalatino-americano que estava acontecendo, e veioporque o pagamento era bom e seria destinadoà Escola de San Antonio de los Baños (quando


328tomei posse como diretor da escola ele disse quenão ia mais fazer doações pessoais, eu tinha deme virar com os europeus, mas aceitou minha sugestãode cobrar caro por entrevistas e palestrase visitas e repassar esse dinheiro para a escola).Ao chegar, no aeroporto, se assustou com aagenda de muitas atividades e homenagens, seucompromisso era só uma visita e um papo. Aochegar ao hotel houve um incidente: ele haviatelefonado para três amigos, Moacyr Scliar, EricNepomuceno e eu, marcando encontro no hotel,queria conversar. Mas os organizadores da visitainterferiram quando ele estava nos cumprimentandoe meteram ele e a Mercedes, sua mulher,no elevador, como se fossem estrelas do rocksendo protegidas dos fãs. Uma situação meiovexatória, depois nos avisaram que não seríamosrecebidos. Estupefatos, fomos embora.Duas horas depois toca o telefone em minhacasa, é a Mercedes: eles haviam trocado de hotel,ninguém deveria saber onde estavam, principalmenteo pessoal do Centro Cultural, Gabo sóapareceria na hora da visita, marcada para doisdias depois. O pessoal do Centro Cultural Bancodo <strong>Brasil</strong> e a mídia quase enlouquecem, GarcíaMárquez tinha sumido sem deixar pistas. O EricNepumoceno, o Nei Sroulevich e eu fizemos aretaguarda da operação, agüentamos a pressão


dos telefonemas, bico calado. Na hora marcadaele apareceu na sede do Centro Cultural, passouquase toda a tarde conversando com o pessoalda mostra de cinema, centenas de autógrafos,se divertiu, todo mundo adorou, e sumiu denovo, dispensou as passagens e o atendimentodo Centro Cultural e submergiu no Rio. Estendeua visita, ficou um tempo escondido em um hotelde Ipanema e todos os dias ia escrever na minhacasa, trazia um disquete, metia no computadore trabalhava horas. Estava mesmo concentradono seu livro de contos e fiquei muito surpresocom o seu, digamos, processo de criação. Elenão escrevia um conto e depois outro, escreviatodos ao mesmo tempo. Tinha doze arquivosseparados, os Doce Cuentos Peregrinos, e saltavade um para o outro olimpicamente.329Mas eu estava falando de Oedipus Major. Comotodos os contadores de história, Gabo é fascinadopelo Édipo Rei de Sófocles, um relato circular,alguém que está investigando um crime descobreque o criminoso é ele mesmo, uma idéia quejá serviu a dezenas de histórias depois que Sófoclesa inventou. Uns produtores queriam filmarum de seus livros e ele fez uma contraproposta,escreveria um roteiro, uma versão sul-americanae atual do Édipo Rei, que foi aceita com entusiasmo.E ele nos convocou, a Stela e a mim, para


330compartilhar a criação do roteiro. Na verdadeé ele que assina o roteiro, por exigência dosprodutores, e nós três assinamos o argumento,mas tudo foi feito a seis mãos, ou a três cabeças,uns quatro meses de trabalho. O nosso Édipo éuma autoridade federal encarregada de pacificaruma região onde se confrontam o exército,a guerrilha e milícias paramilitares, ou seja, ointerior da Colômbia, embora não se mencioneo nome de países, é algum lugar na Américado Sul. O filme estreou em 1996, co-produçãoespanhol-mexicano-cubana, direção do colombianoJorge Alí Triana e elenco internacional, ocubano Jorge Perugorría como Édipo, a espanholaAngela Molina como Jocasta, o espanholFernando Rabal como Tirésias e outros atoresde distintas nacionalidades. Apesar de grandesucesso na Colômbia, o filme causou estranhezae bilheterias escassas nos outros países de línguaespanhola onde foi exibido, exatamente devidoà variedade de sotaques. Teve uma boa carreirana televisão, principalmente na Europa.Compartilhar a criação de histórias com Gabo éuma experiência fascinante. Sempre que possovou peruar suas vibrantes oficinas de roteiro naEscola de San Antonio de los Baños e curtir assoluções inventivas que ele apresenta, o encadeamentosurpreendente de situações, os giros


inesperados, os seus famosos inícios de história.Na composição do roteiro de Oedipus Majoresse seu arsenal de narrador se manifestava acada instante, para proveito prático, para serincorporado à narrativa, ou apenas para azeitara criatividade, o raciocínio dramático, incluindotiradas de humor. Vou dar um exemplo, um sóporque senão ficaria falando disso o dia todo. Acerta altura da arrumação da história, a fase queos roteiristas chamam de escaleta, estávamos aStela e eu sem chegar a uma conclusão sobrequem informava a Creonte, irmão de Jocastae chefe de milícias, o que se passava na casade Édipo. Creonte tinha de contar com essasinformações privilegiadas, de cocheira, paraque a história corresse bem. Não queríamosusar um empregado doméstico, solução muitofácil, e a instalação de microfones na casada autoridade federal não estava ao alcancede Creonte. Quem? Como? O Gabo aparece eexplicamos o problema, ele pensa um pouco, orosto se ilumina em um sorriso matreiro e diz —o cavalo. Em uma cena anterior Creonte tinhapresenteado um belo cavalo a Édipo. Eu acheiuma maravilha, a Stela se assustou (vamos meterrealismo mágico na guerra?) mas logo caiu nagargalhada. O cavalo ganhou um papel alémda coadjuvância de ser apenas um presente,criamos um nexo misterioso de Creonte com o331


animal, de sussurros e afagos, e uma relação tumultuadade Édipo com o cavalo, hospedado nopátio de sua casa, ouvindo tudo e relinchando.A cena mais bonita do filme, para meus olhos,é quando o cavalo sai da casa de Édipo e correem disparada e em câmera-lenta para a fazendade Creonte. Apenas um toque de magia, umapincelada chamuscante, no realismo brutal dedisputa de poder, assassinatos políticos, incestoe enfrentamentos bélicos.Educador332Educador é uma palavra forte, densa. Não mesinto um educador, me sinto um provocador.Nos anos 1970 fui a uma astróloga, a Marta PiresFerreira, no Rio, e durante a leitura do meu mapaastral ela perguntou se eu tinha alguma coisaa ver com escolas, eu disse que não. Disse queminha mãe era professora, mas ela disse que nãoservia: o negócio é com você, você é professor?Não e creio que essa atividade não tem muitoa ver comigo, respondi. E ela: me desculpe, masestá na progressão da sua vida, ou você vai serdiretor de escola ou dono de escola ou metidoprofundamente em educação. Naquela épocahippie realmente não havia nenhuma perspectivacom relação a isso e achei que a Martaestava equivocada. Não estava, mas me vejo


mesmo, nas escolas com as quais me relacionei,como alguém que estimula os mais jovens, queos provoca, os desafia a romper suas barreiraspsicológicas e emocionais, suas falsas fronteiras.Os melhores mestres que tive agiram assim comigo,me desafiavam o tempo todo, criaram umadisputa minha comigo mesmo e foi isso que meempurrou na vida. Refiro-me a meus mestresAgenor Almeida, Hélio Rocha, Martim Gonçalves,Ariovaldo Matos e Arne Sucksdorff.Minha longa temporada de domicílio cubanotermina em fins de 1994 e no ano seguintetrabalho em dois projetos de escolas, um noMéxico, que deu certo, e outro no <strong>Brasil</strong>, quenão deu certo. Enquanto fui diretor da Escolade San Antonio de los Baños e durante mais umtempo também respondia pela vice-presidênciadocente da Federação das Escolas de Imagem eSom da América Latina-Feisal, e minha atividademais importante nesse cargo era conheceros programas e a organização das principaisescolas de cinema e televisão do mundo, com opropósito de classificar e estimular procedimentoscomuns entre elas, facilitando o intercâmbiode estudantes, professores e metodologias. Essetrabalho era apoiado também pela federaçãomundial Centre de Liaisons des Écoles de Cinémaet Télévision-Cilect, e me permitiu conhecer de333


334perto esse universo, visitar dezenas de escolas. Inclusiveo Centro de Capacitação Cinematográficado México, o CCC, que despertou minha atençãoporque funciona em conexão com os EstúdiosChurubusco, a grande instalação construída durantea época de ouro do cinema mexicano, anos1940 e 1950. A escola fica praticamente dentrodo complexo de estúdios. Me interessei peloCCC e o CCC se interessou por minhas propostasdocentes e fui contratado para montar umcurso permanente de dramaturgia audiovisuale roteiro, com duração de dois anos e turmasde vinte estudantes. Durante quatro anos dediqueios meses de abril e setembro a esse curso,monitorando-o a distância no resto do tempo.A partir de 2000 o curso já estava engrenado,já tinha adquirido personalidade, e me afasteiporque estava muito ocupado no <strong>Brasil</strong>. A áreade dramaturgia audiovisual e roteiro do CCCcontinua e com bons resultados.Antes mesmo de terminar minha gestão emSan Antonio de los Baños, Darcy Ribeiro vinhame seduzindo com a idéia de montar uma escolano <strong>Brasil</strong> com características semelhantesà da escola internacional de Cuba. Ele estavaorganizando a Universidade Estadual do NorteFluminense, hoje Universidade Darcy Ribeiro, epretendia instalar uma escola de cinema e TV de


ponta. Me entusiasmei muito com a idéia, nãoapenas pela possibilidade que se apresentava defazer uma escola com essa dimensão no <strong>Brasil</strong>,mas também por estar trabalhando com Darcy,amigo de velha data e uma das pessoas maisbrilhantes e inquietas que conheci. Tive com eleuma experiência semelhante à que vivi com GarcíaMárquez, aquilo de compartilhar a criaçãode uma história com pessoas que são vulcões decriatividade, criadores acelerados. No final dosanos 1980 Geraldo Sarno pretendeu realizar umfilme a partir de O Mulo, o denso romance deDarcy, e partimos para um roteiro a três cabeças,Geraldo, Darcy e eu. Trabalhamos longamenteem seu apartamento em Copacabana, mais longamentedo que se esperava porque aconteceuum acúmulo enorme de informações dramatúrgicas,porque Darcy não parava de inventar, desugerir, de nos encantar com suas idéias inéditas.Além de contribuir majoritariamente para essaavalanche, ele nos induzia a também enchercada vez mais o balaio do roteiro, nos levava aparoxismos de invenção.335Meses e meses de delicioso exercício de imaginaçãoe chegou a hora de cair na real, quer dizer,a hora da produção, tínhamos de ter o roteiropronto em tantas semanas, e Geraldo tomou asdecisões pertinentes: todas as ramificações da


336história tinham sido exploradas, dezenas de personagenstinham desaparecido, outras dezenastinham nascido, a cabeça do protagonista, doMulo, onde tudo acontece, tinha sido garimpadaaté as profundezas e agora tínhamos de comporum roteiro com 120 páginas, a base para umfilme de hora e meia de duração. Esse aprisionamentofoi demais para Darcy, a elaboraçãodo roteiro perdera a graça para ele, não possome sujeitar a esse sofrimento, vocês terminam.Terminamos, ele aprovou, mas o filme não foifeito (assim é a vida de roteirista de cinema, escrevemuitos roteiros e só alguns são filmados,a minha média é três roteiros sem filmar paracada roteiro na tela). Esse trabalho de roteirocom Darcy foi muito divertido, tocado pelo humorexuberante dele e também por situaçõescausadas pela engraçada disparidade entre aseriedade quase sisuda de Geraldo quando emprocesso de criação e a irreverência destabanadade Darcy. Um dia Darcy defendeu a inclusãoda imagem de um ânus chorando, como estáno livro, e Geraldo reagiu: isso é muito bonitoescrito ou descrito por você, mas na tela perigavirar pornografia. E Darcy, exaltado: não existepornografia, tudo no corpo humano é belo esagrado, o que existe é porno-olho, é pornocabeça.E não é que é mesmo?


Ele deu sugestões precisas e inovadoras para oprojeto metodológico da Escola <strong>Brasil</strong>eira deCinema e Televisão (assim se chamaria), trabalhamosjuntos na aplicação dos princípios e daspráticas antiescolásticos às condições da escolaque estávamos criando, um re-desenho de SanAntonio de los Baños que, sem perder a essênciado modelo, pudesse funcionar no <strong>Brasil</strong> esob o guarda-chuva de uma universidade. Umatarefa complexa, difícil, mas possível, o projetoficou redondo e iniciamos a implantação comuma equipe reduzida e valente: Irene Ferraz,Patrícia Martin e Alfredo Calviño, que haviamtrabalhado comigo em San Antonio de losBaños, e Geraldo Sarno, encarregado de criarum Seminário Permanente de Dramaturgia eComunicação, com abrangência internacionale divulgação de conteúdo teórico em livros, revistas,internet e cine-ensaios. Em menos de umano o projeto restaurou o Solar dos Jesuítas, nasproximidades de Campos, interior do Estado doRio de Janeiro, um monumento arquitetônico ehistórico que estava em ruínas, para ser a sededa escola. Um antigo e enorme convento, comvários prédios (adaptados para apartamentos,estúdios, salas de aula e infra-estrutura adequadaà prática de cinema, TV, computação einternet que estava começando), cercado poramplo terreno arborizado. No mesmo período,337


338paralelamente, tomamos as providências paraa aquisição do equipamento de última geração,incluindo um estúdio digital, e para a concessãoe instalação de um canal de TV UHF, com alcancepara a região norte do Estado do Rio. Esse canalde TV acoplado à escola, administrado pelosalunos, com conteúdo produzido pelos alunos,seria um avanço considerável no universo dasescolas de cinema e TV, em nível mundial, e erao ponto forte do projeto: nunca nenhuma escolatinha tentado algo parecido, o compartilhamentoda formação de cineastas e teleastas com apopulação, com o público, com o consumidor.A idéia era um canal comunitário e interativo,público e experimental — e ainda hoje eu sonhoem realizar esse sonho, acoplar uma escola a umcanal de televisão.E também realizamos um intenso trabalho derelacionar, de criar laços profundos entre oprojeto e a Universidade e entre o projeto e aregião, o seu entorno, principalmente a cidadede Campos, a poucos minutos de distância dasede, onde fizemos um programa chamado EscolaVirtual, com exibições, seminários e cursos.Participaram dessa agitação regional muitoscineastas, entre eles Nelson Pereira dos Santos,Carlos Diegues, Maurice Capovilla, Zelito Viana,Helvécio Ratton, Mário Carneiro, Antonio Carlos


Fontoura, Tetê Moraes, Marcos Altberg e atrizescomo Ítala Nandi e Bete Mendes, de José CarlosAvellar historiando o cinema a André Parente introduzindoas novas tecnologias audiovisuais. Foio ano da Imagem e Som dessa região, 1995, comuma inusitada e nunca repetida movimentaçãocultural em Campos, o imenso Cine Goitacá semprelotado, a juventude excitadíssima. Algunscurtas-metragens foram realizados pelos jovensda cidade. Uma intervenção audiovisual.Tudo pronto para a instalação da Escola <strong>Brasil</strong>eirade Cinema e Televisão, com data marcada parainauguração, com muito dinheiro já aplicado(a restauração do Solar dos Jesuítas abrindo alista), o projeto estancou. Os recursos, acertadose sacramentados por Darcy Ribeiro, vinham daUniversidade Estadual do Norte Fluminense, daPetrobras e de uma verba especial do governodo Estado do Rio. A Universidade e a Petrobrascumpriram seus compromissos e se dispunham acontinuar cumprindo-os, mas o governador doRio, Marcelo Alencar, voltou atrás, apesar dosacertos e acordos firmados com Darcy, que sesentiu traído. Os recursos que viriam do governoeram fundamentais para dar o arranque inicialda escola, indispensáveis, e não foi possível recomporo orçamento com a adesão de outrasfontes. E também estava acontecendo um mo-339


vimento surdo e sorrateiro, movido por invejae cobiça por poder acadêmico, nos intestinosda nascente Universidade contra a liderança deDarcy Ribeiro, o inventor e implantador da ditacuja. Parou tudo, a inauguração foi transferidasine die, a situação foi se agravando e a históriase encerrou definitivamente com a morte deDarcy, no início de 1997.Dragão do Mar340Ainda quando estava em Cuba fiz viagens ao<strong>Brasil</strong> para participar de um programa de capacitaçãoem Fortaleza, oficinas promovidas pelaCasa Amarela da Universidade Federal do Cearáe pela Secretaria de Cultura do Estado. ChamavaseLuz Câmera Imaginação e minha presença noprograma devia-se a Wolney Oliveira, diretor daCasa Amarela, meu aluno em San Antonio de losBaños e com quem eu tinha feito Sabor a Mi. Etambém aos outros ex-alunos cearenses, JaneMalaquias, Marcus Moura, Amaury Cândido. Essaminha atividade em Fortaleza se expandiu paraa discussão de um projeto maior, mais consistente,com o secretário de Cultura, o antropólogoe jornalista Paulo Linhares. Ele me estimulou amontar uma base para a instalação de um póloaudiovisual no Ceará. Eu propus uma atividadede formação, reflexão e produção de dramatur-


gia como primeira providência em um projetotão ousado, onde também já se delineava umalinha de fomento público à produção de filmes.Desenhei um Centro de Dramaturgia, um conjuntode áreas de formação integradas, articuladas,com muita prática, com muita produção:o Colégio de Dramaturgia, o Colégio de DireçãoTeatral e o Colégio de Realização Cinema/TV. OCentro de Dramaturgia começou a ser montado,mas Paulo Linhares insistia no pólo e eu resistiaem me comprometer com alguma coisa alémdesse centro, já que estava enfronhado na construçãoda Escola <strong>Brasil</strong>eira de Cinema e Televisãocom Darcy Ribeiro. Quando esse lindo projeto sedesfez eu não tinha mais por que não aceitar aproposta cearense, cujos contornos já esboçadosme atraiam. E lá vou eu com mala e cuia para osverdes mares bravios do Nordeste.341Maurice Capovila, essa grande figura do cinemabrasileiro, também ligado ao Luz Câmera Imaginaçãoe a San Antonio de los Baños, juntou-se amim na direção do projeto e conformamos umaequipe com alto poder de ação e mobilidadecom os cearenses Paulo Linhares, Bete Jaguaribee Wolney Oliveira. Completamos o desenho einstalamos o complexo de formação e produçãoDragão do Mar, o nome em homenagem aojangadeiro herói que impediu o desembarque


342de escravos no Ceará, no século XIX. Na cabeçado complexo o Instituto Dragão do Mar deArte e Indústria Audiovisual, com dois níveisde formação: capacitação básica para os ofíciosnecessários à produção cênica e audiovisual(costureiras, camareiras, maquinistas, eletricistas,carpinteiros, pintores, cenotécnicos, contraregras,foquistas, assistentes de produção, etc.)em todo o Estado, chegando a alcançar oito milalunos; e treinamento especializado, com cursosde dois anos, nos Colégios de Dramaturgia,Direção Teatral, Realização Cinema/TV, Dança,Design e Produção. Em paralelo um programade produção, um pólo nacional de realizaçãode filmes e conteúdos para televisão, apoiadopor uma film commission, o Birô de Cinema eVídeo do Ceará. Uma terceira ação focada navisibilidade regional dos conteúdos culturais,com a construção do Centro Cultural Dragão doMar (espaço para exposições, eventos, concertos,um planetário, dois cinemas, dois teatros, anfiteatros,etc.) e com fomento para a instalaçãode uma rede de cinemas, em articulação com asprefeituras municipais. Uma quarta ação focadaem serviços e infra-estrutura de produção, com aatração de empresas especializadas e construçãode estúdios, de um laboratório cinematográficoe centro de tecnologia digital. Por fim, o enganchede toda essa atividade com a televisão, com a


inclusão da TV Educativa do Ceará no complexoDragão do Mar.Esse sistema tão ramificado (e articulado) respondiaa necessidades e carências locais, já queFortaleza não contava com infra-estrutura físicae formacional necessárias para a montagem deum pólo de produção audiovisual. Em 1996 a primeirafase do projeto foi implantada e começoua todo vapor: o Instituto e o pólo de produção.Nesse mesmo ano os primeiros resultados práticosdo movimento integrado formação-produçãobateram nos palcos, nas telas e nas ruas de Fortalezae de algumas cidades do interior, causandoimpacto cultural e midiático. Essa velocidade eraconseqüência do sistema vasos-comunicantes doInstituto: pessoas escrevendo peças de teatro eroteiros de cinema no borbulhante Colégio deDramaturgia; essas peças sendo montadas pelosencenadores e atores e bailarinos dos Colégiosde Direção Teatral e de Dança; os roteiros sendofilmados pelo pessoal do Colégio de RealizaçãoCinema/TV; cenários, figurinos, adereços, plantasbaixase toda essa vertente saindo do Colégio deDesign e dos cursos básicos; os projetos se materializandonos exercícios práticos do Colégio deProdução. Um choque cultural de alta voltagemna cidade, com um primeiro impacto focado noteatro: os espetáculos se multiplicavam e cada343


344vez com mais qualidade e mais público, commuitos textos novos, do pessoal da Dramaturgia,mas também com experiências sobre textos deoutras latitudes, como as marcantes encenaçõesde A Ciranda (Der Reigen) de Arthur Schnitzler,duas versões distintas comandadas por AntonioMercado e seus aprendizes, e de Os Iks, de ColinTurnbull, Jean-Claude Carrière e Peter Brook,montagem de Celso Nunes e seus alunos. Mercadoe Celso Nunes foram mestres importantesnessa empreitada, fazendo parte de um grupode ponta do teatro brasileiro que se deslocoupara Fortaleza: Zé Celso Martinez Correia, PlinioMarcos, Gianfrancesco Guarnieri, José Wilker,Amir Hadad, Bárbara Heliodora, Chico de Assis,os excelentes professores Clóvis Levi, RenatoIcarahy, Renato Scripiliti, Eduardo Vendramini,B. de Paiva, Iacov Hillel, Carlos Colabone, e doteatro extrafronteiras como Santiago García,do grupo La Candelaria de Colômbia, e MariaKaradja, a superespecialista russa em emissãovocal. Um timaço. A Escola Internacional Itinerantede Teatro, patrocinada por México, Venezuela,Argentina e Cuba, juntou-se às atividadesdo Dragão do Mar com encontros de grupos eoficinas internacionais.O Colégio de Dramaturgia era ao mesmo tempoum espaço de formação e de reflexão, com


foco especial na cinedramaturgia, e com ritmointenso. João Ubaldo Ribeiro, Nelson Pereira dosSantos, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Doc Comparato,Leopoldo Serran, Lauro César Muniz, AnaMaria Moretzsohn, Renata Pallottini, HeloisaSeixas, David Tygel, Luis Carlos Maciel e outroscineastas, dramaturgos e escritores brasileirosdavam aulas e promoviam debates. Os alunostambém estiveram em contato com roteiristasestrangeiros, como Larry Gross, de Hollywood,e Licchi Diego, de Cuba, com o iluminador belgaJean-Marie Vervish, com o mexicano GustavoMontiel, renomado professor e desenhista deprodução. Na progressão antiescolástica do Instituto,logo os alunos passaram a participar dosplanos docentes e a uma atuação propositiva,criativa, cujo exemplo maior foi o cineclube Cineme-se,com uma programação artisticamenteestimulante, provocativa. E muitos filmes sendorodados. Uma agitação que incidia em todo ouniverso cultural da cidade, influenciando-o,fazendo-o se mexer, causando reações de adesãoentusiástica e rejeição nervosa.345Os recursos provinham de várias fontes mas basicamentedo Estado do Ceará, investindo na produção,do Ministério da Cultura, com fomentodirigido às atividades de teatro, e do Ministériodo Trabalho dando sustentação às atividades


346nas demais áreas, através do Fundo de Amparoao Trabalhador e do Sistema Nacional de Empregos.A grande novidade, no que se refere arecursos, era esse investimento do Ministério doTrabalho em um projeto cultural, uma respostaao conceito que movia o Dragão do Mar, queera o de implantação de uma indústria cultural.Muitas atividades eram realizadas em colaboraçãocom a Universidade Federal do Ceará ecom a Fundação de Teleducação do Ceará, etambém com instituições internacionais comoa Escola Internacional de Cinema e Televisãode San Antonio de los Baños, o Centro de CapacitaçãoCinematográfica do México e o BanffCentre for the Arts do Canadá. Essas relaçõesproporcionaram a realização de laboratóriosde dramaturgia e seminários internacionais,um deles muito marcante sobre o trabalho doroteirista em projetos interativos e de realidadevirtual. Foi o seminário Novos Paradigmas Narrativos/Dramaturgiae Interatividade, montadopela argentina-venezuelana-cubana-brasileiraPatrícia Martin, minha querida colaboradorade muitos e muitos anos (e também comadre).Uma prospecção sobre a construção de históriasa serem consumidas e manipuladas por espectadoresativos, interferentes, participantes. O meuponto de partida para sugerir essa prospecçãofoi o conto de Borges El Jardín de Senderos que


se Bifurcan, onde se propõe uma estrutura parauma história que vai se irradiando para todos oslados, infinita, que toda a vida de um escritortrabalhando diariamente resultaria apenas noinício do relato. Ao se inventar uma história, acada passo o inventor se defronta com váriaspossibilidades, muitas portas por onde continuarseu relato, mas só abre uma, e assim por diante.Borges propõe que, a cada passo, o inventorde histórias abra todas as portas. Para refletire propor equações sobre essa dramaturgia deabismo, que já se esboça nos videogames e logoserá uma necessidade da indústria e da altatecnologia audiovisuais, baixaram em Fortalezaroteiristas, cineastas, animadores, web designers,inventores de jogos eletrônicos, especialistas eminteligência artificial de vários países.347Era um coquetel fervente essa soma dos cursosbásicos por todo o Estado mais os Colégios deformação em Fortaleza mais o programa deprodução audiovisual. A produção de filmes sedesenvolvia em duas ações articuladas: facilidadespara a realização de projetos de qualquerparte do País e do mundo, condicionados a algumtipo de relação com o Ceará e à utilizaçãode produtoras e mão-de-obra local; e fomentoà produção cearense. No primeiro caso foramrealizados filmes como A Ostra e o Vento de


Walter Lima Jr., Bocage, o Triunfo do Amorde Djalma Limongi, produções de Luis CarlosBarreto e Renato Aragão (grandes produtoresnacionais de origem cearense), uma telenovelada Globo e até um filme americano de lutasmarciais, com a capoeira reinando. No segundocaso alinham-se filmes dos cearenses RosembergCariry (Corisco & Dadá), José Araújo (O Sertãodas Memórias), Marcus Moura (Iremos a Beirute),Wolney Oliveira (Milagre em Juazeiro), FlorindaBolkan (Eu não Conhecia Tururu) e outros, quasetodos primeiros filmes.348CrimeEm 1999 o Instituto era uma máquina azeitada,com alunos de várias partes do <strong>Brasil</strong>, e oprograma de produção resultara na realizaçãode quatorze filmes longos, uma média de maisde três filmes por ano. E a produção de curtasmetragensestava acelerada. Também o movimentoteatral alcançara uma nova dimensão dequalidade e popularidade, com a apresentaçãode treze espetáculos de alto nível, média de umespetáculo novo a cada mês. O Centro CulturalDragão do Mar foi inaugurado e provocou arestauração da área arruinada ao seu redor, nocentro da cidade, que se encheu de bares, restaurantes,galerias de arte, ateliers. Estávamos


avançando, já em vias de concretização, para asegunda fase do projeto: a instalação de infra-estruturafísica e de serviços, o circuito de exibiçãoe o coroamento do complexo que era a inclusãoda TV Educativa. A essa altura o Dragão do Marera uma política cultural de referência nacionale internacional, merecendo a cumplicidade e abendição dos dramaturgos, atores e cineastasde todo o <strong>Brasil</strong>. E aí, justamente quando tudoestava dando certo e um novo salto de qualidadee industrialização estava em processo, o Dragãofoi implodido.O autor do crime cultural foi o governador TassoJereissati. Crime cultural e crime econômico, jáque se tratava de um projeto de implantaçãoindustrial, para gerar empregos e renda paraa população, e que estava dando certo, queera uma referência de acerto. A história queestá por trás da implosão do Dragão do Mar épsicopolítica, freudiana, já que esse governadorvinha bancando o projeto (obviamente, senãonão seria possível) e recebendo bons dividendospolíticos por causa dele. A idéia de instalar umaindústria audiovisual no Ceará nascera no governoanterior, um sonho compartilhado pelogovernador Ciro Gomes e seu Secretário de CulturaPaulo Linhares. O governo Ciro Gomes nãoconseguiu andar com a idéia, mas Linhares foi349


350mantido como secretário por Jereissati, que secomprometeu a concretizar o pólo audiovisual.Aí vem a história: Linhares foi eleito deputadoestadual (o Dragão do Mar lhe dera muitapopularidade) e começou a atuar de maneiraindependente na Câmara, inclusive presidindouma investigação de desvio de verbas públicaspor alguns prefeitos. A investigação ia em cimade aliados do governador, o governador tentouimpedir, Linhares foi em frente e o governadordecidiu dar-lhe um golpe fatal: destruir o Dragãodo Mar, sustentação política do deputado rebelde.E destruiu. Choveram centenas de mensagensde artistas e intelectuais do <strong>Brasil</strong> e de outrospaíses dirigidas ao governador, pedindo que talcrime não fosse cometido, todas as estrelas dopensamento brasileiro participaram da campanhae tudo inútil.Capovila e eu fomos descontratados e mandadosembora, com a imprensa aliada ao governadorno nosso encalço, na base de forasteiros, nãoprecisamos de vocês, o Ceará para os cearenses.Foi uma comoção brutal, os alunos do Institutorealizaram manifestações durante dias, nasúltimas eram centenas de jovens com nariz-depalhaço,aquela bola vermelha no nariz e muitoolho vermelho de choro e frustração por sesentirem enganados e traídos. Eu me encarapaço


muito, consigo controlar sentimentos de perdae desengano quando se trata de política porquesei que é jogo bruto, é terreno de guerreirosmaus e bons, é tema de Maquiavel mas tambémde Sun Tzu no seu A Arte da Guerra. Mas fuime despedir do pessoal do Colégio de DireçãoTeatral, que estava preparando um espetáculode cordel, com grande elenco e estréia marcada,e agora suspenso. Estavam todos com as roupase as maquiagens de seus personagens e haviatanto sofrimento ali, tal atmosfera de ruptura,de privação, de naufrágio, que chorei com eles,não dissemos nada, ficamos ali chorando juntos,abraçados. A ruptura foi especialmente cruelporque seus efeitos se fizeram sentir no campopolítico-social-econômico e também no âmbitodas emoções pessoais, das almas sensíveis deartistas em formação, das mentes abertas decentenas de jovens que se lançavam em umaaventura do espírito.351Depois desse primeiro momento de comoção eestarrecimento, de não entender como um ato tãoabsurdo pôde ser perpetrado, entendi, e entendemostodos os envolvidos no Dragão do Mar, que oesforço não tinha sido em vão, muita coisa ficou, aconexão da cidade com a cultura mudou, muitosdaqueles jovens encontraram seus caminhos navida a partir daquelas chamas do Dragão.


A Grande Família352O fracasso do projeto com Darcy Ribeiro, em1996, e a implosão do Dragão do Mar em 1999me deixaram com um pé atrás no que se referea iniciativas desse tipo no <strong>Brasil</strong>, esvaiu-se a minhaesperança de que o Estado brasileiro tivessesensibilidade e inteligência para tratar adequadamentea questão audiovisual, já que seus representantesnão tinham nem uma nem outra.Surgiram alguns convites, algumas propostaspara montar escolas ou programas de formaçãoe me esquivei de todas, tipo gato escaldado.Preferi dedicar-me mais a San Antonio de losBaños, que não pode ser alcançada por decisõesde políticos obtusos, que depende do amor demilhares de pessoas. O efeito San Antonio delos Baños vai bem além de sua função de escolareferencial e de sua ação integradora na AméricaLatina: os que por lá passaram e os que continuampassando conformaram uma comunidadesinergizada, com ramificações em quase todos ospaíses do mundo, uma grande família antenada.Uma família nuclear de umas seiscentas pessoasformada por alunos, ex-alunos, professores etrabalhadores do Curso Regular, por gente queresidiu muito tempo em San Tranquilino. Essenúcleo está apoiado em um círculo de umasduas mil pessoas, que tiveram contatos menos


duradouros com a escola mas também forammordidas pelo, sei lá, pelo bichinho afetivo deSan Tranquilino, foram infectadas por aquelabactéria amorosa e invisível que vive lá. Essecarrossel de amizades e cumplicidades adoça avida de todos nós e facilita muita coisa, viagens,pesquisas, encomendas, contratos, co-produções.Quase todos os cem filmes longas-metragens járealizados por ex-alunos da escola têm outrosex-alunos na equipe.Dentro dessa comunidade existem algumasdezenas de ex-alunos meus que mantêm umcontato diferenciado comigo, afetos e comportamentosfiliais, alguns nos chamam, a Conceiçãoe a mim, de mãe e pai. Alguns estudantes daescola mexicana e do Dragão do Mar entrarampara essa turma mais próxima, mas a maioriaé de San Antonio de los Baños. Todo santo diasomos contatados por algum ou alguns deles,e-mails, telefonemas, para trocar idéias sobretrabalho e vida pessoal e nos visitam muito,aparecem no Rio, em Lençóis, em Brasília, ondeestivermos. Cuidamos deles e eles cuidam dagente. Imagine como foi e é surpreendente eradiosa e divertida essa relação para Conceiçãoe para mim, que não tivemos filhos! Agoratambém já temos netos, que são os filhos deles,as fotos dos bebês chegam pela internet já com353


demarcação de parentesco: para os queridosavós ou o primeiro sorriso da netinha de vocês.Claro que não é uma relação de pai para filho evice-versa, é como se fosse esse tipo de relaçãomas sem as dificuldades psicológicas e culturaisdas famílias biológicas, o que torna tudo muitointeressante, sincero, desresponsabilizado. Essafilharada deliciosamente bastarda que o destinoinventou para nós é uma benção para nossasvidas. Sem falar dos onze sobrinhos e sobrinhas(são doze, mas uma está desaparecida) que sãouns amores e a quem dediquei meu romance UmGosto de Eternidade (A Girafa Editora, 2006).354Esses nossos filhos inventados às vezes causamsituações engraçadas. Outro dia estava na Cidadedo México, em um restaurante pequeno nobairro de Coyoacan, com uns amigos, inclusiveum casal de brasileiros que tinha trabalhadocomigo em Fortaleza. De repente entra no restauranteum negão rastafari, grandão, as trançasbatendo na cintura. Era Basílio, um cubano,ele passou na rua, me viu e entrou. Entra e nosabraçamos e nos beijamos, ele me chamando depai e reclamando, eu estava no México e nãotinha telefonado. Marcamos um encontro e elefoi embora e aí me dei conta do espanto na caradas pessoas que estavam comigo na mesa e deoutros fregueses do restaurante.


Eu, branco, tamanho médio, pai daquele negroretinto e grande. Alguém perguntou timidamente— é seu filho? — e eu disse que sim e mudeide assunto. Mudei, mas o assunto ficou pairandosobre a mesa, carregado de interrogações, aténos separarmos. Situações como essa, engraçadaspara nós e embaraçosas para os outros, tambémvivi em uma viagem de trabalho por países daEuropa com Alba Amoo, uma princesa ashanti deGana com 1,90 m de altura e esguia, longilínea,que se apresentava como minha filha. E tambémhá indianos, vietnamitas e índios andinos, o quedemanda explicações a quem testemunha nossosencontros-de-família, explicações que nunca sãodadas senão perde a graça.355


Capítulo VIITV dos TrabalhadoresDepois dos acontecimentos do Dragão do Marme aquietei no Rio durante um bom tempo,umas férias para arquitetar um plano, que eradeixar para trás esses projetos grandes com quetinha me metido e voltar a escrever e filmar, esó. E passar mais tempo em Lençóis. Comeceia reorganizar o ganha-pão, em 2001 retomeiminha antiga atividade de workshops de cinedramaturgiae assessorias de roteiro, juntandotodos os compromissos em três meses seguidos,e trabalhei em Madri, México, La Paz eBelo Horizonte.357A idéia era fazer esse trabalho em giros anuaisde três meses e ficar com o resto do ano à minhadisposição. Inclusive para voltar a outra atividade,a de roteirista, já que Paul Leduc estavame convocando para trabalhar com ele em umensaio sobre Tom Zé e no projeto O Cobrador,tinha um sedutor convite de Indranil Chakravartypara co-escrever um filme indiano, e Antonio Pitangame contratou para roteirizar a história dolevante de escravos islâmicos da Bahia, no séculoXIX, os Malês. No início de 2002 a Conceição pôsem marcha a produção de seu filme Brilhante e


estávamos nessa, felizes da vida, com projetosandando, e o destino interfere de novo, mudao rumo.358Em fins de março de 2002 a vice-governadoraBenedita da Silva assumiu o governo do Estadodo Rio de Janeiro para um mandato de novemeses, para completar o tempo do governadorque se afastara do cargo para candidatar-se aoutra coisa. Éramos amigos de velha data, desdequando ela se casou com meu amigo histórico,de adolescência, Antonio Pitanga, e logo depoisda posse os dois me telefonaram, sondando-mesobre a possibilidade de assumir a Subsecretariado Audiovisual do Estado. O que propunhamera o fortalecimento desse órgão, incrustadona Secretaria de Cultura, em um nível que refletisseinstitucionalmente a condição do Riode Janeiro como a maior cidade produtora deaudiovisual da América Latina. Me surpreendi,achei a proposta interessante porque vinhado Partido dos Trabalhadores e eu tinha umagrande confiança de que Lula ia, enfim, ganharas eleições presidenciais naquele ano e queriaapoiá-lo de maneira mais substantiva — como,por exemplo, ajudar o governo PT de Beneditada Silva dar certo e ter visibilidade. Mas mesurpreendi mais do que me entusiasmei e peditempo para pensar. Eu não era e não sou do PT,


nunca fui de qualquer partido (com exceção deuma filiação honorária com que fui contemplado,sem que me perguntassem, pelo pequenoPartido Ecológico Venezuelano, nos anos 1970).Mas me alegrei muito com a fundação do PT, meentusiasmei com a organização de um partidodos trabalhadores no <strong>Brasil</strong> da pós-ditadura, soba liderança de um operário que, desde o início,desde as grandes greves do ABC, mostrou umainteligência política fora do comum e um carismade arrasar corações.Conheci Lula no início da década de 1990 em umambiente audiovisual, em uma ilha de ediçãoda Televisão dos Trabalhadores-TVT, uma produtorada Central Única de Trabalhadores-CUT,em São Paulo, que sonhava e se preparava parater a concessão de um canal. Fui parar na TVTestimulado pelo petista Leopoldo Nunes, meualuno nas primeiras oficinas internacionais deSan Antonio de los Baños, e trabalhamos comos operários-cineastas no sentido de qualificálosmelhor para a realização de reportagens edocumentários e também, em outro momento,na utilização da ficção para os propósitos sociais,laborais e corporativos que os norteavam.Lembro-me de um exercício muito interessanteque fizemos, uma série de quatro programasdirigida pelo Leopoldo, também estavam nessa359


360a Renata Villas-Boas e o Gilberto Carvalho. Omesmo tema, Poder Popular, com distintos tratamentosdramatúrgicos: um ensaio documentalsem a utilização da voz humana, sem a emissãode palavras; um documentário de montagem,com material de arquivo; uma ficção (com LetíciaSabatella e Ângelo Antonio); e uma espécie demaking of sobre o processo de criação da sériecomo fio condutor para a abordagem do poderpopular naquele momento, naquele início da décadade 1990. Lula tinha ajudado pessoalmentea produção de documentários sobre as greves doABC (de vez em quando ele me lembra isso, eufui produtor de cinema) e apoiado decisivamentea criação da TVT e um dia me encontro comele lá, vendo um material, e nossa conversa foi,naturalmente, sobre cinema e televisão.Palácio das LaranjeirasA Benedita, o Pitanga e o ator Antonio Grassi,Secretário de Cultura do novo governo, queriamminha decisão imediatamente. Fiquei na dúvida,ia me meter de novo em um torvelinho, semtempo para meus projetos pessoais e minhaspreguiças. O pessoal da área cultural do PT, opessoal do PT do Rio e as entidades de classe doRio insistiram para que aceitasse e prometeramapoio e sustentação política. Também meus ami-


gos cineastas do Rio argumentavam a favor, eupoderia pôr em prática uma política de estímuloà produção e à distribuição, uma coisa que nuncatinha sido feita pelo Estado (uma política públicacinematográfica estava sendo desenvolvida pelaPrefeitura da cidade do Rio, com a distribuidoraRiofilme, e o Estado totalmente ausente do assunto).Grassi apostava na possibilidade de uma açãoaudiovisual marcante no pouco tempo de gestãoe apostava também na reeleição da governadoraBenedita e na eleição de Lula, e argumentou queminha missão era plantar um desenho de políticapública audiovisual que frutificasse nos próximosgovernos do PT. Aceitei. Afinal, seriam só novemeses, o tempo de uma gestação.361Aquilo era uma coisa inteiramente nova paramim, nunca tinha participado diretamente deum governo. Tinha realizado alguns projetosde governo, mas como contratado autônomo,para uma ação específica, nunca tinha entradona máquina do poder institucional. E nunca tinhapensado nisso. Lembro-me exatamente domomento em que decidi aceitar: Conceição e eufomos visitar a governadora e o primeiro-damo equando vi Benedita e Pitanga, negros e oriundosda faixa mais carente da população, ocupandoo Palácio das Laranjeiras, minha crença de que oPaís tem jeito foi tonificada, foi eletrificada. Ali


362me decidi. Assumi, fiz reuniões com as entidadesdo setor e apresentei um programa de trabalhoenxuto e urgente: fomento à produção atravésde editais, apoio à exibição de filmes fluminenses(fomento a lançamentos, ingresso a um real emconvênio com a Riofilme, programa de exibiçãogratuita nas praças de todo o Estado e exibiçãode filmes nos canais de televisão estaduais, municipais,universitários e comunitários); instalaçãode uma film commission; e formulação de umapolítica audiovisual para o Rio de Janeiro, a serimplantada em cinco anos. Também programeia elevação da Subsecretaria do Audiovisual parauma Secretaria, a primeira que seria montada no<strong>Brasil</strong>. Logo ficamos sabendo, o Grassi e eu, queo plano não seria executado: o ex-governadortinha deixado as finanças do Estado em ruínas,cofres vazios e muitas dívidas a curto prazo (depropósito, para dificultar a vida de Benedita) e,em conseqüência dessa situação, todas as açõesdo governo foram suspensas, com exceção dabusca de recursos para fazer frente a pagamentosessenciais e ao combate à violência. Nem aSecretaria da Cultura nem outra qualquer podiaassumir compromissos e não havia qualquer luzno fim do túnel. Nem um tostão, nada.Me deu um desânimo — como poderia governarsem dinheiro? As fontes extra-orçamen-


tárias que poderiam nos acudir, como leis deincentivo, empresas estatais, governo federal,não estavam interessadas nisso, eram os últimosmeses dos governos estaduais e do federal,ano de eleição. O único ponto factível doprograma era a elaboração, no papel, de umapolítica pública audiovisual para o Rio de Janeiro.Comecei a trabalhar nisso, muitas reuniõescom os sindicatos e as associações de classe,com os produtores, com distribuidores e exibidores,a maioria deles concentrada no Rio. Fuime dando conta que uma política audiovisualpara o Rio, para uma unidade da federação,só teria sucesso se estivesse acoplada a umapolítica nacional. Uma unidade da federaçãodificilmente, quase impossivelmente, poderiaerguer sozinha um programa de industrializaçãocinematográfica sem parcerias substantivascom a União e submetida a uma legislaçãofederal sobre o tema defasada e protetora doproduto importado.363Pedi ao PT que me indicasse um grupo depetistas ligados ao cinema e à televisão paratrocarmos idéias, uma assessoria que se fazianecessária naquele momento. Nos reunimosvárias vezes, no grupo estavam Paulo Thiago,Marisa Leão, Leopoldo Nunes, Antonio Pitanga,Hugo Carvana e o pessoal da área de cultura


364do partido, Hamilton Pereira, Sérgio Mamberti,Nilson Rodrigues e o próprio secretário AntonioGrassi. Expus a minha teoria, disse que nãovaleria a pena trabalhar apenas com o Rio, quetínhamos de pensar em uma política para Lula,que avançava para a vitória, a onda vermelha jávarrendo o <strong>Brasil</strong>. Boa parte das pessoas daquelegrupo tinha acabado de redigir o programade governo para a cultura, o documento AImaginação a Serviço do <strong>Brasil</strong>, onde o audiovisualrecebia um tratamento muito genérico etímido, no capítulo Cultura e Comunicação. Aliestavam também os candidatos mais prováveisao Ministério da Cultura, falava-se abertamenteque o ministro seria o poeta Hamilton Pereiraou o ator Mamberti ou o ator Grassi. Propus afeitura de um programa de governo específico ediferenciado para o audiovisual, houve algumaresistência, alguns achavam que não haveriatempo, que era melhor fazer isso com calma,depois do governo empossado. Mas a idéia foiaprovada, o programa deveria estar prontoantes da posse, e me encarregaram de organizaro documento. Minha proposta foi fazer umseminário intensivo com todos os segmentosdo setor e, com eles, construir uma arquiteturaprogramática, factível e desenvolvimentista. OPT concordou em patrocinar o seminário.


Política PúblicaO tempo realmente era curto. Estava marcadopara o dia 21 de outubro, uma semana antesda votação decisiva do segundo turno, umencontro de Lula com intelectuais, artistas etrabalhadores da cultura no Canecão, no Rio,onde seria anunciado o programa de governopara a cultura, e não podíamos perder aoportunidade de chamar a atenção para aimportância diferenciada do audiovisual, parasinalizar que estava a caminho uma proposta depolítica pública para a atividade. Conversei comNelson Pereira dos Santos sobre essa urgênciae decidimos fazer, nós dois, um texto curto eincisivo, uma síntese articulada, organizada, dopensamento convergente da maioria dos segmentosdo setor sobre princípios e práticas quedeveriam ser adotados pelo Estado brasileiro.Esse pensamento estava expresso nas conclusõesdo 3º e do 4º Congresso <strong>Brasil</strong>eiro de Cinema,encabeçados por Gustavo Dahl, realizados em2000 e 2001, conclusões aprovadas por mais demeia centena de entidades. Nelson leu o textonaquele flamejante encontro do Canecão eaconteceu o que os trabalhadores audiovisuaisqueriam: o tema ganhou evidência e urgênciae os preparativos para o Seminário Nacional doAudiovisual foram acelerados em todo o País.365


366Esse texto, o Documento Nelson Pereira dosSantos/<strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong>, teve ampla divulgação nosetor, foi referendado pelo Congresso <strong>Brasil</strong>eirode Cinema e serviu de guia para o seminário queaconteceu logo depois. O documento enfatizavaalguns princípios: as indústrias culturais não podemestar sujeitas às mesmas regras comerciaisaplicadas aos demais produtos industrializadosporque agregam valores que não estão atreladosaos aspectos econômicos, às leis do mercado, massim e fundamentalmente ao respeito à liberdadede circulação da cultura; os produtos da indústriaaudiovisual possuem um valor distinto dasdemais mercadorias comercializadas no mercadointernacional: o valor da riqueza imaterial, daidentidade nacional, da cidadania e da soberania;as maiores atividades econômicas do séculoXXI estarão relacionadas às indústrias culturaise à comunicação e isto significa que o país quenão desenvolver e não fomentar sua expressãocultural estará condenado a um papel secundáriona economia global; garantia do direitode todo cidadão, brasileiro ou estrangeiro, teracesso à pluralidade audiovisual que existe nomundo; o conceito e a prática da diversidadecultural é o corolário do princípio da liberdadede expressão, sem a qual não podemos exercerplenamente o exercício da cidadania.


E sugeria ações para um programa de governo:elevar a atividade audiovisual à categoria detema estratégico nacional; instalar plenamentea Agência Nacional de Cinema-Ancine; ampliarsignificativamente a participação do Ministérioda Cultura no fomento à atividade; garantiro acesso da produção audiovisual brasileiraindependente (cinema e TV) à programaçãodas emissoras de televisão; instituir a produçãotelevisiva regional; reformular a legislação; desenvolveruma política externa sólida, incluindoações de aproximação com países de processos eprincípios similares visando à internacionalizaçãoda produção brasileira e reforçando a defesa dosinteresses comuns.367Lula foi eleito no dia 27 de outubro e o SeminárioNacional do Audiovisual aconteceu nosdias 3 e 4 de dezembro, na Biblioteca PúblicaNacional, no Rio de Janeiro, sob os auspícios daEquipe de Transição do PT. Compareceram cercade 150 pessoas de todo o País, representantesde todas as entidades do setor e convidados deáreas relacionadas com a atividade, como ciênciae tecnologia, diplomacia, educação, exportaçãoe importação. Foram dois dias e duas noites detrabalho intenso, a partir da massa crítica construídano Congresso <strong>Brasil</strong>eiro de Cinema, noGrupo Executivo da Indústria Audiovisual-Gedic


368(do governo anterior, de onde saiu a Ancine) e naprecisão da pauta e dos expositores, estabelecidanas muitas reuniões que tive com as liderançassetoriais durante todo o mês de novembro. Asexposições, debates e conclusões desenvolveramseem cinco mesas, em cinco blocos temáticos:Televisão, Ancine, Cinema Cultural, Legislação,Política Externa. Tudo o que foi dito foi gravadoe digitalizado e nos dias seguintes uma equipeentrou em ação para apurar o material (apurarno sentido garimpeiro, buscar a essência) e organizaro documento final, uma trabalheira, comobem se lembram Cláudio MacDowell, NelsonHoineff, Vera Zaverucha, Jom Tob Azulay e osoutros que participaram dessa equipe. A redaçãofinal ficou sob minha responsabilidade, comocoordenador do seminário. O documento foi entregueà Coordenação do Programa de Governoe à Equipe de Transição e levado em mãos paraLula, uns dias antes da posse, por Antonio Grassie Márcio Meira.Esse relatório do seminário apresenta cada umdos cinco temas com dois itens, uma exposiçãoda situação e propostas, e uma lista de providênciasa serem tomadas nos primeiros cem dias degoverno. Os pontos abordados no DocumentoNelson Pereira dos Santos/<strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong> foramreferendados, outros aspectos vieram à tona e


o espectro do pensamento convergente ficouclaro, bem definido: política pública abrangente(todos os segmentos e aspectos audiovisuais),marco regulatório adequado ao novo cenárionacional e mundial da atividade, ampliação daAncine para uma Agência Nacional do Cinema edo Audiovisual-Ancinav, planejamento estratégicoindustrial, enlace cinema-televisão, criaçãode uma rede pública de TV de alta qualidade(lastreada em cerca de mil canais culturais, educativos,estatais, legislativos, universitários e comunitáriosexistentes no País), descentralizaçãoe democratização dos recursos e ações federais,resgate e acessibilidade do patrimônio audiovisual.Ali estava delineada uma política públicanecessariamente avançada para o audiovisualbrasileiro, um programa que só poderia ser implementadopor um governo corajoso.369A Dança do PoderConsiderei a minha tarefa cumprida, o governode Benedita no Rio de Janeiro acabou e relaxeipor uns dias. Só por uns dias, pois fui convocadopara uma reunião com o pessoal da área culturaldo PT e da equipe de transição, Hamilton Pereira,Antonio Grassi, Sérgio Mamberti e outros, ondefui convidado para assumir a Secretaria do Audiovisualdo Ministério da Cultura.


370O argumento é que eu tinha coordenado a elaboraçãodo programa de governo para a área eestava apto para concretizá-lo, tinha o apoio doPT e do setor. Era um convite beirando a oficialidade,já que, era o que se pensava, um dessestrês citados seria o Ministro da Cultura de Lula.Pedi tempo para conversar com o setor e o apoioera real, recebi manifestações nesse sentido doCongresso <strong>Brasil</strong>eiro de Cinema, de muitas entidadesem separado e de meus colegas cineastas.Na verdade não era um apoio, o assunto me foiapresentado pelas entidades como uma exigência,tinha de ser eu, havia um consenso e meunome era o preferido do PT, era uma confluênciaque o cinema brasileiro não podia desaproveitar.Aí começou aquela história da demora de Lulaem escolher seu Ministro da Cultura, apareceramrumores que o ministro não seria do PT, os candidatospetistas ao cargo começaram a se mexer,o assunto ficou nebuloso e decidi me afastar doâmbito nervoso onde esses acontecimentos estavamreverberando. Fiz uma viagem a Havana parauma reunião importante da Fundação do NovoCinema Latino-americano e alguns compromissosno festival de cinema e, quando voltei, a situaçãoera outra, Lula tinha escolhido Gilberto Gil.Quando soube que o ministro seria o Gil, acheique aquela história da Secretaria do Audiovi-


sual não ia acontecer, era uma coisa do PT, esinceramente me senti aliviado, realmente tinhacumprido meu compromisso e estava bom assim,ainda alimentava o plano de ir curtir e escreverem Lençóis. Mas começa a chover telefonema. Ospetistas têm uma reunião com Gil e me informamque apresentaram meu nome para o Audiovisuale isso era certo. O Luis Carlos Barreto liga paradizer que o setor continua indicando o meunome, e agora mais ainda, com Gil é muito melhor.Todo mundo telefona, é uma oportunidadehistórica, você não pode se negar a isso e coisa etal. E eu digo para mim mesmo: está bem, é umaaventura interessante, é fazer uma coisa queainda não foi feita, é o tipo de empreitada queme seduz, Lençóis pode esperar. Todo mundotelefona menos o meu amigo Gil, o que começaa ficar estranho, e ainda mais quando jornalistascomeçam a me procurar, eu digo que não recebiconvite e eles se surpreendem: mas o Gil disseque é você. O Carlos Diegues telefona, estiveracom Gil, ele quer saber se você aceita. Uns diasnessa situação kafkiana, toureando jornalista, e,enfim, o Gil telefona, rindo, meti você em umasituação engraçada, desculpe, é que tinha deresolver umas coisas antes.371No outro dia me reuni com ele durante umasduas horas, em Brasília. Apresentei o documen-


372to do Seminário Nacional do Audiovisual comoplano de ação, ele já tinha lido e aprovado, e aconversa girou em como pôr em prática aquelaquantidade de providências, quais as estratégiasa serem adotadas, quais as sustentações políticaspara ações públicas tão inéditas, que dificuldadesencontraríamos no caminho. Ele deixou bemclaro que estava ali para mudar radicalmente aqualidade da relação do Estado com a Cultura,nas dimensões do simbólico, do econômico e dacidadania, e para dotar o ministério de capacidadeoperacional no que se refere às indústriasculturais. E disse que eu devia entrar em açãoimediatamente porque o tempo voa. No fim dareunião ele pegou um jornal, mostrou e disse:estou vendo aqui que você é cota do PT, é cotado setor e de não sei mais quem. Se lhe perguntaremdiga a pura verdade, que você é cota deGilberto Gil.Fazendo o Novo NovamenteSou filho de Iemanjá, cuja característica mais notávelé cuidar de filho dos outros, seu nome significaisso em iorubá. Mas tenho uma admiraçãoespecial por Ogum, orixá abridor de caminhos,descortinador de paisagens virgens, enfrentadorde surpresas e armadilhas, o desafiador. O queme move é o desafio, o que me empurrou para acondição de servidor público incidental foi mais


uma aposta comigo mesmo de que seria possívelimplementar uma política inovadora e impelidapara o futuro para o audiovisual brasileiro, conscienteda enorme importância desse tema, dessaatividade, para a saúde mental e emocional dapopulação e para sua economia, para seu bolso.E o desafio era mesmo grande, com o Ministérioda Cultura sem lastro para segurar o projeto(quase um ano de reconstrução do ministério,reconstrução conceitual e operacional), com adefasagem brasileira no que se refere à legislaçãoaudiovisual, com um mercado audiovisualaltamente concentrado, eivado de distorções. Oprimeiro movimento, claro, foi conformar umaequipe capaz de enfrentar a pedreira e penseiimediatamente nos jovens que tinha conhecidonas escolas de cinema, em ex-alunos meus, osmais capazes deles para a tarefa.373O primeiro a ser captado, na verdade já estavaporque vínhamos batalhando juntos desde ogoverno da Benedita no Rio, foi Leopoldo Nunes,na época presidente da Associação <strong>Brasil</strong>eira deDocumentaristas-ABD, um dos organizadoresdos Congressos <strong>Brasil</strong>eiros de Cinema com GustavoDahl, uma revelação de liderança, oriundo daEscola de Comunicações e Artes-ECA da Universidadede São Paulo e de San Antonio de los Baños.Em seguida aportou Manoel Rangel, também


374ECA e com uma passagem pelo Dragão do Mar.Os dois me ajudaram a selecionar mais gente damesma estirpe, que foi chegando pouco a pouconão apenas para a Secretaria do Audiovisualmas também para a assessoria do ministro e daSecretaria Executiva do Ministério. Nesse movimentoconfluíram para o governo jovens de altorendimento como Paulo Alcoforado (Dragão doMar), Alfredo Manevy (ECA e Dragão do Mar),Mário Borgneth (San Antonio de los Baños) eMário Diamante e Sérgio Sá Leitão e MauricioHirata e outros. Uma turma da pesada, vocaçõespolíticas e de gestão pública com formação etreinamento audiovisual. Me cerquei de gentealtamente capaz e que conhecia, importei doCeará a Bete Jaguaribe, uma das molas-mestrasdo Dragão do Mar. Foram esses preciosos recursoshumanos que me possibilitaram materializarboa parte do complexo programa de governoque transportei do Seminário Nacional do Audiovisualpara a responsabilidade do Estado. Essagente e a cobertura e cumplicidade a toda provade Gil e do seu secretário executivo, o combativoJuca Ferreira. E, claro, a atenção especial deLula para o assunto. Aprendi em muitos anosde observação e de outros tantos militando napolítica cultural latino-americana a verdademuito simples de que a questão audioviosualde todo e qualquer país, mas principalmente a


dos países emergentes, só se encaminhará parasoluções favoráveis às sociedades nacionais seessa for a vontade do máximo poder políticodo país. Vontade, coragem e cacife, já que sãograndes e poderosos os interesses econômicosinternacionais (econômicos e psicosociais) queenvolvem a questão.E tocamos o barco e a partir daí a história é pública:a relação do Estado com o audiovisual mudouradicalmente, a atividade ganhou importânciaestratégica, o tratamento abrangente foi adotado,projetos de caráter industrializante e decaráter cultural de grande alcance estão sendodesenvolvidos, a confluência dessas duas naturezasda atividade deixou de ser um problema epassou a gerar energia criativa e mercadológica,os primeiros movimentos substantivos de aproximaçãocinema-TV foram feitos, a produção e apresença no mercado interno de filmes nacionaiscresceram mais de 100%, a Ancine foi plenamenteinstalada, os recursos e as ações federaisforam descentralizados e democratizados, umapolítica de resgate e acessibilidade do patrimônioaudiovisual foi posta em prática, a políticaexterna foi substancialmente reformatada nosentido de maior visibilidade artística e comercialdos produtos audiovisuais brasileiros, uma TVpública nacional está sendo instalada.375


376A idéia é criar condições para que, em um prazonão muito longo, 60% de todo o conteúdoaudiovisual comercializado no <strong>Brasil</strong> seja brasileiroe os outros 40% sejam compartilhados pormuitos países, em favor da diversidade cultural.Um movimento ascendente que inclui, evidentemente,a mão-dupla da diversidade cultural:uma presença substantiva dos nossos conteúdosnos outros países, não só telenovelas mas tambémoutros filões televisivos, filmes, animações,videogames. Não só por necessidade simbólicocultural-econômicada nossa sociedade, que essavem de muito tempo, mas pela oportunidadeaberta pelas novas tecnologias da comunicação,pela possibilidade que os países emergentes têmde usar essa nova era tecnológica a nosso favor.Essa estratégia é possível e a oportunidade éesse tempo agora de implantação das novastecnologias, esse rito de passagem que estamosvivendo. Tipo é agora ou nunca, it’s now or never,ou perderemos a batalha midiática por maisum século ou sei lá. É essa batalha, por maioresparcelas de poder planetário e pela qualidadede vida em cada país, que já está sendo travadae se estenderá possivelmente por muitas décadas.É nesse cenário, consciente de suas dimensõeshistóricas, que o governo Lula trabalha aquestão audiovisual, ponta-de-lança da Era doConhecimento em que estamos entrando, a era


da informação e da sedução hipermassificada,em que o saber, o simbólico e o entretenimentotornam-se os principais ativos da economia. Oponto crítico e crucial dessa questão, como todossabem, é o monopólio, é o cinema hegemônicode Hollywood, é o audiovisual da superpotênciaocupando entre 80% e 90% de nossas telas,mentes e corações. É o mais penetrante e devastadortipo de colonização porque o conquistadopassa a amar o conquistador, quer ser como ele,se despreza.O <strong>Brasil</strong>, além de estar invadido pelo audiovisualhegemônico dos Estados Unidos, como quasetodo mundo (as exceções são Índia, China, Cuba ealguns países islâmicos), tem a particularidade deum monopólio interno, que é a Rede Globo. Naverdade um semimonopólio, já que divide ao meioa audiência nacional com as outras redes, mas compoder político e comportamento de monopólio.Alguns patriotas maniqueístas acham que o monopólioexterno é ruim e o interno é bom, porque ébrasileiro, mas é açambarcamento do mesmo jeito.Os outros pontos críticos são resultantes dessa situaçãode duplo açambarcamento, como a questãoda legislação sobre a atividade, escandalosamentedefasada, do tempo do onça como se diz na minhaterra. Sem um marco regulatório adequadoaos novos tempos, a política pública que pusemos377


em marcha e que está em curso jamais alcançaráplenamente suas metas. Pode avançar em direçãoa elas, como se avançou no primeiro governo Lula,mas não colocará o <strong>Brasil</strong> entre os maiores produtorese exportadores audiovisuais, apesar da nossapotencialidade cultural e técnica para isso. Por issolançamos a proposta de uma agência reguladorado audiovisual, correspondendo à demanda deampliação da Ancine, da agência de cinema, paraum escopo abrangente. A proposta que ficou conhecidacomo Ancinav (ou seja, Agência Nacionaldo Cinema e do Audiovisual).378A intenção era discutir ampla e minuciosamenteuma minuta dessa proposta com o governo, como setor e com a sociedade e chegar a um nívelde entendimento, de pacto, para dotar o País deuma legislação adequada, moderna. A discussãoaconteceu em parte, foi desvirtuada pela forçadas duas hegemonias, a idéia foi demonizadapelo poder midiático delas, aquela polêmica nacionalque todos nos lembramos muito bem. Ospoderes hegemônicos se nutrem da fragilidadedas leis e do não exercício dos poderes do Estado(planejar, regulamentar, fiscalizar e administrar),e por isso reagiram com todas suas forças à idéiade um marco regulatório audiovisual no <strong>Brasil</strong>,esse mercadão. Algumas pessoas, inclusive dogoverno, acham que a Operação Ancinav foiprecipitada, careceu de preparação política e de


usca antecipada de consensos no setor e que porisso teria fracassado. Não penso assim, e muitagente também não (contesto, protesto e detestocomo dizia o velho garimpeiro Pocino, meu amigo).A escandalosa polêmica da Ancinav reveloua dimensão e a gravidade da questão audiovisualpara a sociedade brasileira, que as ignorava porqueisso sempre tinha sido assunto de gabinete,de portas fechadas, de decisões dos grupos maispoderosos da atividade impostas a governos ignorantes.A questão foi posta a nu diante da Naçãoe do governo, que se assustou muito. O resultadoprático foi Lula nomear um Grupo de TrabalhoInterministerial para elaborar um anteprojeto deuma Lei de Comunicação Eletrônica de Massas,sobre a organização e exploração dos serviços decomunicação social eletrônica, que forçosamenteserá acionada em algum momento, principalmentepor causa da TV digital, que está em processode implantação. Sem regras claras, estáveis eadequadas às novas tecnologias, a instalação e odesenvolvimento da TV digital no <strong>Brasil</strong> pode serum desastre de grandes proporções, uma terrade ninguém, uma disputa feroz e predatória poraudiência, por conteúdo e por concessões. Ou seja,o tema está em processo.379Sabíamos, o Gil, o Juca, minha turma e eu, quequatro anos não eram bastante para o tamanho


380do nosso programa de governo para o audiovisual,inclusive porque o objetivo é alçá-lo a um programade Estado, ou seja, com princípios imunesà troca de governos. E também que a virtude dapaciência é parte importante do jogo, tão importantecomo o raciocínio e a agilidade. A questãoregulatória, por exemplo, exige muita paciência.Mas paciência sem nunca deixar de avançar, mesmofazendo dança de índio, dois passos para tráse três para a frente (Glauber gostava muito dessadança, um dia fez com que Geraldo Sarno e eudançássemos dois pra trás-três pra frente, com ele,diante de seu psicanalista Eduardo Mascarenhas;ele queria que dançássemos nus, mas Geraldo nãotopou e foi com roupa mesmo).Foi para completar ou plantar algumas açõesfundamentais do projeto, deixar alicerces, quecontinuei por mais um tempo à frente da políticaaudiovisual do governo, nesse segundomandato de Lula — e pela mesma classe demotivo Gilberto Gil continuou por mais umtempo como ministro, para solidificar a inédita,histórica e revolucionária dimensão que ele imprimiuà relação do Estado com a Cultura (lá noColégio Marista, naquela Bahia que hoje temmais textura de sonho do que de memória, oprofessor Agenor de Almeida não cansava dedizer que aquele menino Gil tinha muito futuro,vai fazer História). Também como uma ação


complementar, ao me afastar da Secretaria doAudiovisual, trabalhei oito meses como diretorgeralda Empresa <strong>Brasil</strong> de Comunicação, EBC,operadora da TV <strong>Brasil</strong> e de uma rede públicade emissoras de TV e rádio, resultado da políticaaudiovisual do MinC.Essa passagem por Brasília está encerrada eestou satisfeito com o trabalho feito e esperoque a opinião pública concorde comigo e estareiagradecido a Oxumaré, deus da belezae da arte. Um dos aspectos importantes dotrabalho político dessa passagem, eu acho emuita gente também, é a ascensão de umanova geração ao centro de decisões da políticaaudiovisual, o que não acontecia há 40 anos. Atroca de guarda, como definiu Gustavo Dahl nodia da posse de Leopoldo Nunes como diretore Manoel Rangel como presidente da Ancine.Já era hora. A rapaziada talentosa que entroucom Gil e comigo no Ministério da Cultura,chamados na intimidade ministerial de os tenentes,estão assumindo as rédeas e, como osconheço bem, digo sem temor que o assuntoficará em boas mãos.381Romances na MadrugadaLancei um romance, Um Gosto de Eternidade,enquanto era Secretário do Audiovisual. Meus


382amigos se surpreenderam. Como você tem tempoe cabeça para escrever um livro de 500 páginascom a trabalheira no governo? O tempo mental,o espaço interior, é muito amplo e pode atuarem várias direções, o problema foi o tempo físico.Escrevi nas madrugadas e nos domingos e feriados,justamente porque precisava diversificar minhaatenção, minha concentração. O que se chamavaantigamente higiene mental, sem qualquer ofensaao serviço público. A participação no governo metrouxe vários impedimentos, como Secretário doAudiovisual não podia fazer roteiros ou filmare ainda bem que podia escrever. Impedimentosque se estendenderam a outras pessoas, como aConceição, que iniciou a produção de seu filme Brilhanteem fins de 2001, em 2002 fui para o governodo Rio e depois para o governo federal e ela nãopodia fazer o que todo cineasta brasileiro faz, queé usar dinheiro público para produzir seus filmes.Dizem até que podia, mas achamos que não devia.Com o filme já iniciado o jeito foi tocar com recursospróprios, todas as economias dela foram parao espaço, e só terminou porque a Riofilme ficoucom a distribuição e fez um adiantamento. Aindabem que o filme deu certo. O Cineclube <strong>Orlando</strong><strong>Senna</strong>, de Lençóis, ganhou um concurso públicofederal, foi um dos 100 escolhidos em um editaldo programa Pontos de Difusão Digital, e tive deconsultar a Comissão de Ética, os documentos docineclube foram checados. Tudo bem, tudo certo,


não faço parte do cineclube, não sou da diretoria,o nome é apenas uma homenagem a um cineastada terra, e não participei na comissão de seleçãodo edital. Mas quase que o cineclube é prejudicadoporque tem meu nome lá.Mas voltando ao assunto, escrever esse livro foimuito saudável para meu equilíbrio mental eemocional, inclusive me deu tranqüilidade paraenfrentar as tensões e a vibração da vida oficial.Recentemente escrevi outro, espero que sejapublicado em 2009. Um Gosto de Eternidade éuma história que se apóia no espaço para existir,na geografia da América Latina, nas andanças deum homem e de uma mulher apaixonados, umromance-de-estrada. O que acabo de escrever éum romance que se sustenta no tempo: tudo aconteceem um só lugar, com o tempo passando sobreele. É o século XX cavalgando sobre Lençóis.383Vetores HumanosInteligência e felicidade têm a mesma textura, amesma consistência temporal. Não são contínuas,ininterruptas, ninguém é feliz ou inteligenteo tempo todo. São intermitentes, são momentos,elas vêm e somem, fulguram e apagam durantea vida toda, tanto na vida dos que têm muitafelicidade ou muita inteligência como na vidados que têm pouco de uma ou de outra. Tive a


ventura de conviver com algumas das maioresinteligências do século XX e testemunhei ummontão de burrices desses luminares. Todomundo sabe, e muita gente se espanta comisso, dos surtos de extrema alegria de pessoasabsolutamente deserdadas de tudo.384Minha relação consciente com esses dois vetoreshumanos fundamentais vem de muito cedo, desdeas conversas com os velhos garimpeiros e as leiturasvorazes da adolescência. E também a partirda diferença, dos perfis opostos das minhas duasavós. Não dou muita atenção à inteligência, cuidomuito pouco dela, nunca fiz exercícios para treinálaou desenvolvê-la, essas coisas. Acho que minhacuriosidade persistente e insaciável dá conta dessetreinamento, sem que minha vontade se envolvanisso. Com a felicidade é diferente: é um exercíciodiário no sentido de provocar suas manifestações,seus momentos de esplendor vital, de estar sempreatento para o instante em que ela vai me escolher,não perder a chance, como o garimpeiro semprepreparado para a hora mágica do Achado.Sorte no AmorFui criado no mato, minha infância foi aquelemundo de grande beleza natural das serras,selvagem, nadando em rio, cavalgando em umpônei pelos vales, e onde os costumes sociais ain-


da estavam passando do século XIX para o séculoXX. Como todo menino lá da montanha, desdecedo tive muita proximidade com o erotismo danatureza, principalmente o da natureza animal(digo principalmente porque a vegetal e a mineraltambém se faziam sentir). Antes de qualquermanifestação consciente de desejo erótico, osexo dos animais me impressionava, era o acontecimentomais interessante e perturbador. Noinício da adolescência, espiar mulheres nuas nosrios era programa preferencial, perdendo apenaspara espiar gente transando no mato, como era eainda é costume por lá. Às vezes era combinado,os rapazes levavam prostitutas para o mato enos avisava. Aos 12 anos eu também já transava,a oferta na fazenda Lagoa e em Lençóis não erapequena. E a coisa andou um tempo nesse tom,a excitação carnal no centro da vida.385Quando tinha dez anos de idade aconteceu umelipse, uma interrupção nessa carnalidade, a minhamemória desse episódio tem a atmosfera de umconto de fadas. Fui tomado por um sentimentodiferente e avassalador, desconhecido: me encanteicom uma menina da minha idade, fiquei concentradonela, obcecado, sonhando com ela todanoite. Não foi um namoro, nunca nos tocamos,apenas nos falamos timidamente uma ou duas vezes,uma beatitude platônica, pura espiritualidade.Sua imagem é indelével na minha lembrança, mo-


ena, cabelos negros, levemente estrábica, quieta,misteriosa. Chamava-se Nilza, era de fora, estavapassando uns dias na casa de uma das atrizes dogrupo de teatro da minha mãe, que a levava paraos ensaios. Um dia a menina sumiu, nunca maissoube dela. Vivendo e sentindo, fui aprendendoa relação mágica dessas duas vibrações naturais,que se manifestam independentes, uma ou outra,mas que se divinizam quando se revelam interdependentes,confundidas, atordoantes.386Um atordoamento definitivo aconteceu comigomais de uma década depois dessas descobertasinfanto-juvenís: Conceição, outra menina dointerior, do sertão. Uma resplandecência, umarevelação das dimensões abismais, galáticas,infinitas do vero amore, a grandeza do amorprofundo. Uma explosão no âmago do ser, umbig-bang na alma. Nos encontramos, nos grudamos,nos desencontramos, quase enlouquecemosprocurando um pelo outro, nos reencontramose nada mais podia nos impedir de seguir juntosvida afora. A gente soube desde o primeiro olharque era para sempre, não podia deixar de ser,não tinha jeito.Conceição é nômade desde quando nasceu, seupai era construtor de açudes e estradas no sertão,trabalhava para o Departamento Nacionalde Obras Contra as Secas, e a família se mudou


inúmeras vezes, percorrendo todo o agreste daBahia. Comigo continuou nômade, topou todasas viagens, físicas e espirituais, e vivemos juntosas aventuras mais loucas, de striptease em rodagigantede parque público (fizemos sim, nostempos doidos) a missões de guerra na África. Éa pessoa mais linda da humanidade e a minhasorte grande, meu bambúrrio (lembre-se que nareligião da Chapada Diamantina, no jarê, a Sorteé uma entidade e nós, montanheses, a cultuamos).Se eu não tivesse a Conceição ao lado, edentro de mim, não teria conseguido fazer aquiloque eu fiz e que vou fazer no futuro, não teriasido quem sou. Esse amor é minha plenitude, éo milagre que aconteceu na minha vida.O presidente Lula e os ministros Gilberto Gil e FranklinMartins, e <strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong> lançam a TV <strong>Brasil</strong>


Cronologia<strong>Orlando</strong> de Salles <strong>Senna</strong><strong>Orlando</strong> de Salles <strong>Senna</strong>(Afrânio Peixoto, Bahia - 25/04/1940) filho de EsmeraldoCoelho <strong>Senna</strong> e Semírames de AlmeidaSalles <strong>Senna</strong>Formação universitária:Escola de Teatro/Universidade Federal da Bahia(1959/62)Faculdade de Direito/Universidade Federal daBahia (1960/1964 – incompleto)Título:Doutor por Notório Saber outorgado pela UniversidadeEstadual do Norte Fluminense em13/10/1994389Formação cinematográfica:Curso Arne Sucksdorff (bolsa Unesco/Itamaraty)– Rio,1962/631. Cinema2.1 Direção e Roteiro1998• Cinema Novo (documentário, 10’, episódio dolonga-metragem Enredando Sombras)


1987• Brascuba (doc, 100’, co-direção Santiago Alvarez)1984• Ilé Aiyé Angola (doc, 15’)1982• Cultivar (doc, 30’)1977• Diamante Bruto (ficção, 90’)3901975• Gitirana (fic, 90’, co-direção Jorge Bodanzky)1974• Iracema (fic, 90’, co-direção Jorge Bodanzky)1967• Bahia Bienal (doc, 10’)1966• Dois de Julho (doc, 10’)1965• Lenda Africana (doc, 10’)1963• Rebelião em Novo Sol (doc, 20’, co-direçãoGeraldo Sarno)


1962• Imagem da Terra e do Povo (doc, 30’)1961• Festa (doc, 10’)1.2. Argumento1996• Edipo Alcalde / Oedipus Major (fic, 90’, comGabriel García Márquez e Stela Malagón, direçãoJorge Alí Triana)1.3. Roteiro1998• Iremos a Beirute (fic, 90’, com Marcus Mourae Marcos Sá, direção Marcus Moura)3911996• O Lado Certo da Vida Errada (fic, 90’, comUberto Molo, direção Octávio Bezerra)1993• A Dívida da Vida/Life Debt (doc, versão cine,80’, com Octávio Bezerra, direção Octávio Bezerra)1992• Sabor a Mi (doc, 30’, com Wolney Oliveira,direção Wolney Oliveira)


1986• Ópera do Malandro (fic, 100’, com Chico Buarquee Ruy Guerra, direção Ruy Guerra)1981• Abrigo Nuclear (fic, 90’, com Roberto Pires,direção Roberto Pires)1979• Iyá mi Agbá (doc, 40’, com Juana Elbein e MestreDidi, direção Juana Elbein)3921977• Coronel Delmiro Gouveia (fic, 90’, com GeraldoSarno, direção Geraldo Sarno)1976• O Rei da Noite (fic, 90’, direção Hector Babenco)1968• Caveira my Friend (fic, 90’, com Álvaro Guimarães,direção Álvaro Guimarães)1.4. Produção1992• Sabor a Mi1977• Diamante Bruto


1968• Caveira my Friend1965• Festas Populares (doc, 15’, direção Rex Schindler)1961• Festa1.5. Prêmios mais importantes1993• A Dívida da VidaMargarida de Prata / <strong>Brasil</strong>Glauber Rocha (melhor filme), Jornada CineBahia• OCIC, Festival Havana 1993• Coral Documentário, Festival Havana• Golden Panda 92 – Wildscreen Festival –Inglaterra• Gold Apple 92 – National Film and Video Festival– Inglaterra• Bema 92 – British Environment and MediaAwards – Inglaterra• Sabor a MiMenção Especial do Júri, Festival Porto Rico393


1992Prêmio Especial do Júri, Festival Havana• Ópera do Malandro1986Prêmio Especial do Júri, Festival Havana• Ilé Ayié AngolaCoral Documentário, Festival Havana1985Sol de Prata (melhor documentário), Rio Cine• Coronel Delmiro Gouveia3941979Air FranceGolfinho de Ouro 1979 (Est.do Rio de Janeiro)Coral (melhor filme), Festival Havana1978Melhor Roteiro, Festival Brasília• Diamante BrutoInterpretação (atriz), Festival Gramado• Iracema1980Melhor Filme, Edição, Interpretação (atrizes),Festival Brasília


1976Melhor Filme, Festival Figueira da Fox, PortugalPrix Jeune Cinéma, Cannes1975Melhor Filme, Festival Pesaro, ItáliaEncomio Taormina 1975, ItaliaGrimme Preis 1975, AlemanhaPrix Georges Sadoul 1975, França2. Televisão2.1. Direção e Roteiro3951982• Água Ipanema, série Cinema Rio, TV Educativa,<strong>Brasil</strong>1980/81• Programas Educativos para Globotec, <strong>Brasil</strong>1978/79• Reportagens para ARD, Alemanha1974/75• Reportagens para ZDF, Alemanha


2.2. Roteiro1993• A Dívida da Vida/Life Debt (doc, versão tv, 40’,direção Octávio Bezerra)1987• Cuba Libre (doc, 56’, direção Piero Mancini,Rede Bandeirantes)1986• Carne de Sol (minissérie, direção Dilma Loes,Rede Bandeirantes)3961975• Programas Culturais para TV Educativa, <strong>Brasil</strong>1963• Educação para o Desenvolvimento (série, TVTupi, <strong>Brasil</strong>)3. Teatro3.1. Texto e Direção1981• Ajaká (co-autoria Juana Elbein, DeóscoredesMaximiliano dos Santos) – Rio/Bahia1980• Xana – Rio/Bahia


1972• Céus Nunca Dantes Navegados – Rio• Onde o <strong>Brasil</strong> Começa – Rio1972/73• Via Crucis, a Humanidade de Cristo – Rio1970• Oficio de Cantar / Fernando Lona, Maria Odete(musical) – São Paulo1966• Terra de Ninguém / Fernando Lona (musical)– Bahia1965• Borandá / Gilberto Gil (musical) – Bahia3973.2. Texto1973• Inconfidentes (direção Jofre Soares) – São Paulo3.3. Direção1982• A Voz Humana, de Jean Cocteau – Curitiba1973• Natal Outra Vez, de Nelson Mariani – Rio


1972• Natal na Praça, de Henri Ghéon – Rio• Cordel, vários autores – São Paulo 1971 / Rio1970• Os Anjos, de Arruda Castanho – São Paulo1969• Sonhadora, de Otto Schipper – Bahia• Companhia das Índias, de Nelson Araújo –Bahia3981968• A Engrenagem, de Ariovaldo Matos – Bahia1968/70• O Desembestado, de Ariovaldo Matos – Bahia/ São Paulo1968• A Mandrágora, de Maquiavel – Bahia• Jovem Poesia, vários autores – Bahia• O Gonzaga, de Castro Alves – Bahia1967• O Fardão, de Bráulio Pedroso – Bahia / tournéevários Estados


• Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles– Bahia• Terror e Misérias do Terceiro Reich, de BertoltBrecht – Bahia1965• Teatro de Cordel, vários autores (co-direçãoJoão Augusto, Othon Bastos, Péricles Luís, HaroldoCardoso) – Bahia3.4. Produção1965• Nova Bossa Velha & Velha Bossa Nova / CaetanoVeloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia,Tom Zé (musical, co-produção e direção RobertoSantana) – Bahia399• Nós por Exemplo / Caetano Veloso, Gilberto Gil,Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé (musical, coproduçãoe direção Roberto Santana) – Bahia1962• Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues (direçãoÁlvaro Guimarães) – Bahia4. Livros1962• Um Gosto de Eternidade – A Girafa Editora


1995• Así de Simple (co-autoria Robert Redford,George Lucas, Stvan Szabo e outros) – EditorialVoluntad, Colômbia1991• Ajaká (co-autoria Juana Elbein, Mestre Didi) –Editora Secneb1985• Máquinas Eróticas – Editora Rocco4001984• Ares Nunca Dantes Navegados – Editora <strong>Brasil</strong>iense1979• Coronel Delmiro Gouveia (co-autoria GeraldoSarno) – Editora Codecri• Xana – Editora Codecri1983• Roteyros do Terceiro Mundo, de Glauber Rocha(editoração) – Editora Alhambra5. Jornalismo1986/87• Correio Braziliense / Tribuna da Bahia – colunasemanal


1982/1983• Correio Braziliense – artigos e reportagensespeciais1982• Rádio Jornal do <strong>Brasil</strong> – editor e comentaristainternacional• Folha de S. Paulo – crítico televisão1982/83• APIA-Agencia Periodistica de Información Alternativa– correspondente <strong>Brasil</strong>1976/77• Jornal do <strong>Brasil</strong> – artigos e reportagens especiais,1980/81 – repórter internacional4011972• Última Hora, Rio – editor cultura, 1975 – repórterinternacional, 1973/75 – editor e comentaristainternacional• Correio da Manhã – redator e crítico teatro1965 a 1969• Jornal da Bahia – crítico cinema1966/67• IC Shopping News, semanário, Bahia – editorchefe


1965• Equipe, semanário, Bahia – editor-chefe1963/64• Folha da Bahia, semanário – redator1962• Diário de Notícias, Bahia – editor cultura,1963/64 – chefe de reportagem1961• Visão, revista semanal – correspondente sucursalNordeste4021960/64• Estado da Bahia – crítico cinema e teatro /sub-editor1959• Jornal da Bahia – repórter• Trabalhos publicados nas revistas Ângulos /Revista da Bahia / Porto de Todos os Santos /Pasquim / Crítica / Revista Vozes / Senhor / Transe/ Cadernos do Terceiro Mundo / Singular &Plural / Filme e Cultura / Mérien / Revolución yCultura / Trafic6. Seminários mais importantes (até 2001)2001• La Escritura el en Cine de Ficción – Casa deAmérica, Madri


• Memória, Acervo e Produção Audiovisual –Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte• Seminario Distribución y Exhibición en AméricaLatina – Festival Internacional de Cine para laInfancia y la Juventud, Mar del Plata2000• Audiovisual y Educación hacia el Siglo XXI –Amerigramas, Mar del Plata• Fórum Internacional do Direitos do Homem eDiversidade Humana – Soc. de Estudos da CulturaNegra do <strong>Brasil</strong> / Universidade Federal daBahia, Salvador1998• A Estética do Sagrado – Soc. de Estudos daCultura Negra do <strong>Brasil</strong> / Universidade Federalda Bahia, Salvador• Produção Cinematográfica na América Latina –Centro de Capacitación Cinematográfica, México/ Filmes Amaranta, México4031996• Audiovisual e Latinidade (curador/mediador)– Mostra Latino-americana do Rio de Janeiro /Centro Cultural Banco do <strong>Brasil</strong>• O Escritor e o Cinema como Lugar de Criação– VI Cine Ceará – Fortaleza


1995• Um Olhar, Uma Luz (Cem Anos de Cinema)– Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia –Vitória da Conquista• Encuentro Iberoamericano por los 100 Años delCine – Federación Latinoamericana de Facultadesde Comunicación Social/Universidad de Lima• Coloquio de Cine (Cien Años de Cine) – UniversidadNacional Mayor de San Marcos, Lima4041993• El Guión en las Escuelas de Cine y Televisión -Federación de Escuelas de la Imagen y el Sonidode América Latina/Centre Calasanç – Barcelona• Conferencia Internacional de Estudos de Cinema– Days of Independent Film – Augsbourg,Alemanha1992• La Producción Audiovisual – Federación deEscuelas de la Imagen y el Sonido de AméricaLatina/Escuela Internacional de Cine y Tv – SanAntonio de los Baños, Cuba• Simpósio Internacional de Estudos sobre JorgeAmado – Universidade Federal da Bahia – Salvador


1990• La Dramaturgia Cinematográfica en AméricaLatina – Unesco/Fundación del Nuevo CineLatinoamericano – San Antonio de los Baños,Cuba• Cine y Literatura: el Oficio de Narrar – Universidadde Puerto Rico – San Juan de Puerto Rico• Vídeo Escola – Fundação Roberto Marinho –Rio• Dramaturgia de la Televisión – Instituto Cubanode Radio y Televisión – Havana1989• Proyectos Cinematográficos – Sundance Institute/Fundacióndel Nuevo Cine Latinoamericano– San Antonio de los Baños, Cuba4051986• Importância do Roteiro para Cinema e Tv (EUA,Europa, América Latina) – Festival Internacionalde Cinema do Rio de Janeiro (FestRio)1984• Cinema e Amazônia – Universidade Federal doPará – Belém do Pará1982• Luz & Ação (cinema e televisão) – UniversidadeSuam – Rio


• Educação, Identidade e Pluricultura Nacional– Sociedade de Estudos da Cultura Negra do<strong>Brasil</strong> – Salvador, Bahia1977/78• Cinema <strong>Brasil</strong>eiro – Universidades Federais deAlagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Paranáe Goiás – Maceió, Salvador, Fortaleza, Vitória,Curitiba e Goiânia7. DocênciaProfessor de Dramaturgia e Roteiro da EscuelaInternacional de Cine y Tv, Cuba4061996/2000• Professor de Dramaturgia do Centro de CapacitaciónCinematográfica, México1996/99• Diretor do Centro de Estudos de Dramaturgiado Instituto Dragão do Mar de Arte e IndústriaAudiovisual do Ceará1991/94• Diretor-Geral da Escuela Internacional de Ciney Tv, Cuba1988/89• Diretor Docente da Escuela Internacional deCine y Tv, Cuba


1987• Fundador da Escuela Internacional de Cine yTv, Cuba2000/2006• Dramatic-Oficinas <strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong> de DramaturgiaAudiovisual – Lençóis, Bahia2001• Escuela Andina de Cinematografia/FundaciónUkamau – La Paz1996• Laboratório Sundance de Roteiros – SundanceInstitute/Interunion/Riofilme – Búzios1995• Screenwriters Lab – Sundance Institute / InstitutoMexicano de Cinematografía – Cidade doMéxico4071993/94• Oficina Técnica de Roteiro/Projeto Luz CâmeraImaginação (Casa Amarela Eusélio Oliveira) –Universidade Federal do Ceará/Sec. de Culturado Governo do Ceará – Fortaleza1993• Curso de Roteiro para Cinema e Televisão –Universidade Federal da Bahia/Jornada Latino-Americana de Cinema da Bahia – Salvador


1992• Taller de Guión – Instituto para América Latina/Crocevia – Lima• La Ficción en el Documental – Instituto paraAmérica Latina/Crocevia – Lima1991• Oficina Técnica de Roteiro – Tempo Glauber– Rio4081990• Oficina Técnica de Roteiro – Olac – Rio• Oficina de Roteiro para Jornalistas de Tv (organizadopelos participantes) – Rio• Curso Básico de Vídeo – Secretaria Municipalde Cultura de São Paulo1989• I Screenwriters Lab – Sundance Institute/Fundacióndel Nuevo Cine Latinoamericano – EscuelaInternacional de Cine y TV, San Antonio de losBaños, Cuba• Taller de Guión – Asociación de Cineastas delPeru – Lima• Taller Técnica de Guión – Centro de EstudiosAvanzados de Puerto Rico y Caribe – San Juande Porto Rico


1988• El Guión en la Ficción y el Documental – Universidadde Panamá/TV Canal Once – Cidade dePanamá• Taller Experimental de Guión – Escuela Internacionalde Cine y Tv – San Antonio de losBaños, Cuba1982• Oficina de Guião (roteiro) – Instituto Angolanode Cinema – Luanda1981• Curso de Linguagem Audiovisual – Olac – Rio1978• Curso de Argumento e Roteiro – FundaçãoCultural da Bahia – Salvador4091971• Cursos de Cinema do Conselho de Cultura doEstado de São Paulo1968• Cursos de Cinema Idort – Salvador, Bahia1966• Curso de Cinema (Extensão) – Faculdade deSociologia da Bahia


8. Outras atividades410• Membro do Conselho Superior e do ConselhoDiretor da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano,com sedes em Havana, Cidade do Méxicoe Mérida, Venezuela• Secretário do Audiovisual do Ministério daCultura do <strong>Brasil</strong>• Subsecretário de Audiovisual do Estado do Riode Janeiro (2002)• Representante da Casa del Caribe (Santiago deCuba) no <strong>Brasil</strong> – 1988/94• Membro da Diretoria da Associação de RoteiristasProfissionais de Cinema do Estado do Riode Janeiro – 1988/90• Conselheiro da Associação <strong>Brasil</strong>eira de Documentaristas(ABD-Rio) – 1988/90• Presidente da Comissão do Concurso de ProjetosCinematográficos Unicef – Lima, 1988• Diretor Executivo da Fundação Teatro CastroAlves – Salvador, Bahia, 1967/68• Assessor do Plano de Alfabetização MEC-PauloFreire – 1963/64• Secretário Geral do Festival de Cinema <strong>Brasil</strong>eiroda Bahia – 1962• Presidente da Associação de Críticos Cinematográficosda Bahia – 1961/62• Membro do Júri:Festival Internacional de Cine, Mar del Plata, 2001


• Festival de Brasília, 2001• Festival de Cinema de Curitiba, 1998• Festival de Cinema de Gramado, 1997• Festival Nacional de Cinema e Vídeo do Ceará,Fortaleza, 1995• Festival Naturama, Segovia, Espanha, 1993• Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano,Havana, 1988/1985/1984• Festival de Cinema de Brasília, 1986• Rio Cine Festival, 1986• Jornada Latino-Americana de Cinema da Bahia,1985Filmografia(ordem cronológica)4111961Festa (Roteiro, Direção, Produção)Documentário, 10 minutos, 16mm, p/b1962Imagem da Terra e do Povo (Roteiro, Direção)Documentário, 30 minutos, 16mm, p/bProdução Glauber Rocha/TV Itapoan1963Rebelião em Novo Sol (Roteiro, Direção)Co-direção Geraldo SarnoDocumentário/Ficção, 30 minutos, 16mm, p/bProdução Centro Popular de Cultura da Bahia


1965Festas Populares (Produção)Documentário, 15 minutos, 35mm, corProdução O.S./Departamento de Turismo daBahia. Direção Rex SchindlerLenda Africana (Roteiro, Direção, Produção)Documentário, 10 minutos, 35mm, cor, 1965Produção O.S./Departamento de Turismo daBahia4121966Dois de Julho (Roteiro, Direção, Produção)Documentário, 10 minutos, 35mm, corProdução O.S./Departamento de Turismo daBahia1967Bahia Bienal (Roteiro, Direção, Produção)Documentário, 10 minutos, 35mm, corProdução O.S./Departamento de Turismo daBahia1968Caveira my Friend (Roteiro, Produção)Co-roteirista: Álvaro GuimarãesFicção, 90 minutos, 35mm, p/bDireção Álvaro Guimarães. Elenco: Sonia Dias,Conceição <strong>Senna</strong>, Nonato Freire, Gessy Gesse,Caveirinha


1974Iracema (Roteiro, Direção)Co-direção Jorge BodanzkyFicção, 90 minutos, 16mm ampliado para 35mm,corCo-produção <strong>Brasil</strong> / Alemanha. Produção StopFilm / ZDFElenco: Edna de Cássia, Paulo César Pereio, Conceição<strong>Senna</strong>, Rose RodriguesPrêmios:1980Melhor Filme, Edição, Interpretação (atrizes),Festival Brasília1976Melhor Filme, Festival Figueira da Fox, PortugalPrix Jeune Cinéma, Cannes4131975Melhor Filme, Festival Pesaro, Itália,Encomio Taormina, ItáliaGrimme Preis, AlemanhaPrix Georges Sadoul, França1975Gitirana (Argumento, Roteiro, Direção)Co-direção Jorge Bodanzky


Ficção, 90 minutos, 16mm, corCo-produção <strong>Brasil</strong> / Alemanha. Produção StopFilm / ZDFElenco: Conceição <strong>Senna</strong> e atores populares daBahiaSelecionado p/ Quinzena dos Realizadores, Cannes19761976O Rei da Noite (Roteiro)Ficção, 90 minutos, 35mm, corProdução e Direção Hector BabencoElenco: Paulo José, Marília Pera, Vic Militello4141977Coronel Delmiro Gouveia (Argumento, Roteiro)Co-roteirista: Geraldo SarnoFicção, 90 minutos, 35mm, corProdução: Saruê Filmes/Embrafilme. DireçãoGeraldo SarnoElenco: Rubens de Falco, Isabel Ribeiro, SuraBerditchevsky, José Dumont, Conceição <strong>Senna</strong>Prêmios:1979Air FranceGolfinho de Ouro (Estado do Rio de Janeiro)Coral (melhor filme), Festival Havana


1978Melhor Roteiro, Festival Brasília1977Diamante Bruto (Roteiro, Direção, Produção)Ficção, 90 minutos, 35mm, corProdução O.S. / Pilar Filmes / EmbrafilmeElenco: José Wilker, Gilda, Conceição <strong>Senna</strong>,Wilson Melo1978Prêmio de Interpretação (atriz), Festival Gramado1979Iyá mi Agbá (Roteiro)Co-roteiristas: Juana Elbein, Deoscóredes Maximilianodos SantosDocumentário, 40 minutos, 16mm, corProdução Sociedade de Estudos Negros do <strong>Brasil</strong>-Secneb. Direção Juana Elbein dos Santos4151981Abrigo Nuclear (Roteiro)Co-roteirista: Roberto PiresFicção, 90 minutos, 35mm, corProdução Embrafilme. Direção Roberto PiresElenco: Conceição <strong>Senna</strong>, Norma Benguell, SassoAlano


1982Cultivar (Roteiro, Direção)Documentário, 30 minutos, 35mm, corProdução Nei Sroulevich/Embrapa1982Água Ipanema (Roteiro, Direção)Documentário, 10 minutos, VídeoProdução TV Educativa Rio1984Ilé Aiyé Angola (Roteiro, Direção)Documentário, 15 minutos, 16mm, corProdução Geraldo Sarno/Saruê Filmes416Prêmios:1986Coral Documentário, Festival Havana1985Sol de Prata (melhor documentário), Rio Cine1986Ópera do Malandro (Roteiro)Co-roteiristas: Chico Buarque de Holanda, RuyGuerraFicção, 100 minutos, 35mm, corCo-produção <strong>Brasil</strong>/França. Produção D. Karmintz.Direção Ruy Guerra


Elenco: Edson Celulari, Cláudia Ohana, Elba Ramalho,Nei Latorraca• Prêmio Especial do Júri, Festival HavanaCarne de Sol (Roteiro)Minissérie tv, 4 capítulos, VídeoProdução Rede Bandeirantes. Direção DilmaLoesElenco: Carlos Vereza, Dira Paes, Angela Leal,Jonas Bloch1987Cuba Libre (Roteiro)Documentário, 56 minutos, VídeoProdução Rede Bandeirantes. Direção PieroMancini417Brascuba (Roteiro, Direção)Co-roteirista e co-direção Santiago AlvarezDocumentário, 100 minutos, 35mm, corCo-produção <strong>Brasil</strong>/Cuba. Produção Nei Sroulevich/Embrafime/Icaic1992Sabor a Mi (Roteiro, Produção)Co-roteirista Wolney OliveiraDocumentário, 30 minutos, 16mm, corCo-produção <strong>Brasil</strong>/Cuba/México/ArgentinaProdução O.S./Memorial da América Latina/Cen-


tro de Capacitación Cinematográfica. DireçãoWolney OliveiraPrêmios:1993Menção Especial do Júri, Festival Porto Rico1992Prêmio Especial do Júri, Festival Havana4181993A Dívida da Vida / Life Debt (Roteiro)Co-roteirista: Octávio BezerraDocumentário, versão cine 80 minutos, versãotv 40 minutos, 35mm, corProdução BBC Londres. Direção Octávio BezerraPrêmios:1993Margarida de Prata / <strong>Brasil</strong>Glauber Rocha (melhor filme), Jornada CinemaBahiaOcic, Festival HavanaCoral Documentário, Festival HavanaPanda de Ouro 92 (“Oscar Verde”)- WildscreenFestival – Inglaterra


Bema 92 – British Environment and Media Awards– Inglaterra1996O Lado Certo da Vida Errada (Roteiro)Co-roteiristas: Gugu Olimecha, Uberto MoloFicção, 90 minutos, 35mm, cor,Produção e Direção Octávio Bezerra. Elenco:Francisco Milani, Xuxa Lopes, Wilson Grey, Kátiad’AngeloEdipo Alcalde / Oedipus Major (Argumento)Co-argumentistas: Gabriel García Márquez, StelaMalagónFicção, 90 minutos, 35mm, corCo-produção México/Colômbia/Espanha. ProduçãoJorge Sanchez/AmarantaDireção Jorge Ali Triana. Elenco: Jorge Perugorría,Angela Molina, Francisco Rabal4191997Iremos a Beirute (Roteiro)Co-roteiristas: Marcus Moura, Marcus SáFicção, 90 minutos, 35mm, corProdução Marcus Moura/Luz Produções CinematográficasDireção Marcus MouraElenco: Giovana Gold, Ilya São Paulo, GuilhermeKaran, Conceição <strong>Senna</strong>


1998Cinema Novo (Roteiro, Direção, Produção)Documentário, 10 minutos, 35mm, cor e p/bIntegrante do longa-metragem Enredando Sombras(Entanglig Shadows), co-produção <strong>Brasil</strong>-Colômbia-Cuba-México-Porto Rico-Peru-Venezuelaauspiciada pela Fundación del Nuevo CineLatinoamericano. São onze curtas-metragens dedistintos países latino-americanos sobre o seucinema, celebrando os cem anos desde o iníciodesta atividade no continente.Referências Bibliográficas420• O Homem com a Câmera, Carlos Alberto Mattos,Coleção Aplauso, Fundação Padre Anchieta,São Paulo, 2006• Enciclopédia do Cinema <strong>Brasil</strong>eiro, Fernão Ramose Luiz Felipe MirandaEditora Senac, São Paulo, 2000• Mediating Two Worlds / Cinematic Encountersin the Americas, John King/Ana López/ ManuelAlvaradoBritish Film Institute, London, 1993• Dicionário de Cineastas <strong>Brasil</strong>eiros, Luiz F.A.MirandaArt Editora Ltda, São Paulo, 1990• The Social Documentary in Latin America, JulianneBurtonUniversity of Pittsburgh Press, 1989


• Le Cinema Brésilien, Paulo Antonio ParanaguáCentre Georges Pompidou, Paris, 1987• Cinema Dilacerado, José Carlos AvelarEditora Alhambra, Rio, 1986• Brazilian Cinema, Randal Johnson e RobertStamAssociated University Presses Inc, New York,1982• Revolução do Cinema Novo, Glauber RochaEditora Alhambra, Rio, 1981• Les Cinémas d’Amerique Latine, Guy Hunebellee Alonso Gumucio-DagronLherminier, Paris, 1981• A História do Cinema Vista da Província, Walterda SilveiraFundação Cultural do Estado da Bahia, 1978421


ÍndiceApresentação – José Serra 5Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7Introdução – Hermes Leal 11Garimpeiro 17Me Ajude a Ver 55Pré-Tropicália 131Um Produtor em Pânico 163Iracema 209Cuba 279TV dos Trabalhadores 357Cronologia 389


Crédito das FotografiasPaula Gaitán 277A presente obra conta com diversas fotos, parte de autoria identificadae, desta forma, devidamente creditada. Contudo, a despeitodos enormes esforços de pesquisa empreendidos, outra parte dasfotografias ora disponibilizadas não é de autoria conhecida de seusorganizadores, fazendo parte do acervo pessoal do biografado. Qualquerinformação neste sentido será bem-vinda, por meio de contatocom a editora desta obra (livros@imprensaoficial.com.br/ Grande SãoPaulo SAC 11 5013 5108 | 5109 / Demais localidades 0800 0123 401),para que a autoria das fotografias porventura identificadas seja devidamentecreditada.


Coleção AplausoSérie Cinema <strong>Brasil</strong>Alain Fresnot – Um Cineasta sem AlmaAlain FresnotO Ano em Que Meus Pais Saíram de FériasRoteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylerte Cao HamburgerAnselmo Duarte – O Homem da Palma de OuroLuiz Carlos MertenAry Fernandes – Sua Fascinante HistóriaAntônio Leão da Silva NetoBatismo de SangueRoteiro de Helvécio Ratton e Dani PatarraBens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e CarlosReichenbachBraz Chediak – Fragmentos de uma vidaSérgio Rodrigo ReisCabra-CegaRoteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e RicardoKauffmanO Caçador de DiamantesRoteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo BarroCarlos Coimbra – Um Homem RaroLuiz Carlos MertenCarlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de ViverMarcelo LyraA CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner de AssisCasa de MeninasRomance original e roteiro de Inácio Araújo


O Caso dos Irmãos NavesRoteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio PersonO Céu de SuelyRoteiro de Mauricio Zacharias, Karim Aïnouz e Felipe BragançaChega de SaudadeRoteiro de Luiz BolognesiCidade dos HomensRoteiro de Paulo Morelli e Elena SoárezComo Fazer um Filme de AmorRoteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José RobertoToreroCríticas de Edmar Pereira – Razão e SensibilidadeOrg. Luiz Carlos MertenCríticas de Jairo Ferreira – Críticas de Invenção: OsAnos do São Paulo ShimbunOrg. Alessandro GamoCríticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – AnalisandoCinema: Críticas de LGOrg. Aurora Miranda LeãoCríticas de Rubem Biáfora – A Coragem de SerOrg. Carlos M. Motta e José Júlio SpiewakDe PassagemRoteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo EliasDesmundoRoteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina AnzuateguiDjalma Limongi Batista – Livre PensadorMarcel NadaleDogma Feijoada: O Cinema Negro <strong>Brasil</strong>eiroJeferson DeDois CórregosRoteiro de Carlos Reichenbach


A Dona da HistóriaRoteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel FilhoOs 12 TrabalhosRoteiro de Claudio Yosida e Ricardo EliasEstômagoRoteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da NatividadeFernando Meirelles – Biografia PrematuraMaria do Rosário CaetanoFim da LinhaRoteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboardde Fabio Moon e Gabriel BáFome de Bola – Cinema e Futebol no <strong>Brasil</strong>Luiz Zanin OricchioGuilherme de Almeida Prado – Um Cineasta CinéfiloLuiz Zanin OricchioHelvécio Ratton – O Cinema Além das MontanhasPablo VillaçaO Homem que Virou SucoRoteiro de João Batista de Andrade, organização de ArianeAbdallah e Newton CannitoJoão Batista de Andrade – Alguma Solidão e MuitasHistóriasMaria do Rosário CaetanoJorge Bodanzky – O Homem com a CâmeraCarlos Alberto MattosJosé Carlos Burle – Drama na ChanchadaMáximo BarroLiberdade de Imprensa – O Cinema de IntervençãoRenata Fortes e João Batista de AndradeLuiz Carlos Lacerda – Prazer & CinemaAlfredo Sternheim


Maurice Capovilla – A Imagem CríticaCarlos Alberto MattosNão por AcasoRoteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski eEugênio PuppoNarradores de JavéRoteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de AbreuOnde Andará Dulce VeigaRoteiro de Guilherme de Almeida PradoPedro Jorge de Castro – O Calor da TelaRogério MenezesQuanto Vale ou É por QuiloRoteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio BianchiRicardo Pinto e Silva – Rir ou ChorarRodrigo CapellaRodolfo Nanni – Um Realizador PersistenteNeusa BarbosaO Signo da CidadeRoteiro de Bruna LombardiUgo Giorgetti – O Sonho IntactoRosane PavamViva-VozRoteiro de Márcio AlemãoZuzu AngelRoteiro de Marcos Bernstein e Sergio RezendeSérie CrônicasCrônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeçasMaria Lúcia DahlSérie CinemaBastidores – Um Outro Lado do CinemaElaine Guerini


Série Ciência & TecnologiaCinema Digital – Um Novo Começo?Luiz Gonzaga Assis de LucaSérie DançaRodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – DançaUniversalSérgio Rodrigo ReisSérie Teatro <strong>Brasil</strong>Alcides Nogueira – Alma de CetimTuna DwekAntenor Pimenta – Circo e PoesiaDanielle PimentaCia de Teatro Os Satyros – Um Palco VisceralAlberto GuzikCríticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como OficioOrg. Carmelinda GuimarãesCríticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas eUma PaixãoOrg. José Simões de Almeida JúniorJoão Bethencourt – O Locatário da ComédiaRodrigo MuratLeilah Assumpção – A Consciência da MulherEliana PaceLuís Alberto de Abreu – Até a Última SílabaAdélia NicoleteMaurice Vaneau – Artista MúltiploLeila CorrêaRenata Palottini – Cumprimenta e Pede PassagemRita Ribeiro GuimarãesTeatro <strong>Brasil</strong>eiro de Comédia – Eu Vivi o TBCNydia Licia


O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce– Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso –Pólvora e PoesiaAlcides NogueiraO Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatroveloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantosde Maldoror – De Profundis – A Herança do TeatroIvam CabralO Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e DonaCoisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista VilmaNoemi MarinhoTeatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o ArNeyde VenezianoO Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor– A Terra PrometidaSamir YazbekTeresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadasem CenaAriane PortoSérie PerfilAracy Balabanian – Nunca Fui AnjoTania CarvalhoAry Fontoura – Entre Rios e JaneirosRogério MenezesBete Mendes – O Cão e a RosaRogério MenezesBetty Faria – Rebelde por NaturezaTania CarvalhoCarla Camurati – Luz NaturalCarlos Alberto MattosCleyde Yaconis – Dama Discreta


Vilmar LedesmaDavid Cardoso – Persistência e PaixãoAlfredo SternheimDenise Del Vecchio – Memórias da LuaTuna DwekEmiliano Queiroz – Na Sobremesa da VidaMaria LeticiaEtty Fraser – Virada Pra LuaVilmar LedesmaGianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no ArSérgio RoveriGlauco Mirko Laurelli – Um Artesão do CinemaMaria Angela de JesusIlka Soares – A Bela da TelaWagner de AssisIrene Ravache – Caçadora de EmoçõesTania CarvalhoIrene Stefania – Arte e PsicoterapiaGermano PereiraJohn Herbert – Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa BarbosaJosé Dumont – Do Cordel às TelasKlecius HenriqueLeonardo Villar – Garra e PaixãoNydia LiciaLília Cabral – Descobrindo Lília CabralAnalu RibeiroMarcos Caruso – Um ObstinadoEliana RochaMaria Adelaide Amaral – A Emoção LibertáriaTuna Dwek


Marisa Prado – A Estrela, o MistérioLuiz Carlos LisboaMiriam Mehler – Sensibilidade e PaixãoVilmar LedesmaNicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em FamíliaElaine GuerriniNiza de Castro Tank – Niza, Apesar das OutrasSara LopesPaulo Betti – Na Carreira de um SonhadorTeté RibeiroPaulo José – Memórias SubstantivasTania CarvalhoPedro Paulo Rangel – O Samba e o FadoTania CarvalhoReginaldo Faria – O Solo de Um InquietoWagner de AssisRenata Fronzi – Chorar de RirWagner de AssisRenato Borghi – Borghi em RevistaÉlcio Nogueira SeixasRenato Consorte – Contestador por ÍndoleEliana PaceRolando Boldrin – Palco <strong>Brasil</strong>Ieda de AbreuRosamaria Murtinho – Simples MagiaTania CarvalhoRubens de Falco – Um Internacional Ator <strong>Brasil</strong>eiroNydia LiciaRuth de Souza – Estrela NegraMaria Ângela de JesusSérgio Hingst – Um Ator de CinemaMáximo Barro


Sérgio Viotti – O Cavalheiro das ArtesNilu LebertSilvio de Abreu – Um Homem de SorteVilmar LedesmaSonia Maria Dorce – A Queridinha do meu BairroSonia Maria Dorce ArmoniaSonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana?Maria Thereza VargasSuely Franco – A Alegria de RepresentarAlfredo SternheimTatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte OutraSérgio RoveriTony Ramos – No Tempo da DelicadezaTania CarvalhoVera Holtz – O Gosto da VeraAnalu RibeiroWalderez de Barros – Voz e SilênciosRogério MenezesZezé Motta – Muito PrazerRodrigo MuratEspecialAgildo Ribeiro – O Capitão do RisoWagner de AssisBeatriz Segall – Além das AparênciasNilu LebertCarlos Zara – Paixão em Quatro AtosTania CarvalhoCinema da Boca – Dicionário de DiretoresAlfredo SternheimDina Sfat – Retratos de uma GuerreiraAntonio Gilberto


Eva Todor – O Teatro de Minha VidaMaria Angela de JesusEva Wilma – Arte e VidaEdla van SteenGloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda doMaior Sucesso da Televisão <strong>Brasil</strong>eiraÁlvaro MoyaLembranças de HollywoodDulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo SternheimMaria Della Costa – Seu Teatro, Sua VidaWarde MarxNey Latorraca – Uma CelebraçãoTania CarvalhoRaul Cortez – Sem Medo de se ExporNydia LiciaRede Manchete – Aconteceu, Virou HistóriaElmo FrancfortSérgio Cardoso – Imagens de Sua ArteNydia LiciaTV Tupi – Uma Linda História de AmorVida AlvesVictor Berbara – O Homem das Mil FacesTania CarvalhoFormato: 12 x 18 cmTipologia: FrutigerPapel miolo: Offset LD 90 g/m 2Papel capa: Triplex 250 g/m 2Número de páginas: 438Editoração, CTP, impressão e acabamento:Imprensa Oficial do Estado de São Paulo


Coleção Aplauso Série Cinema <strong>Brasil</strong>Coordenador GeralCoordenador Operacionale Pesquisa IconográficaProjeto GráficoEditor AssistenteAssistenteEditoraçãoTratamento de ImagensRubens Ewald FilhoMarcelo PestanaCarlos CirneFelipe GoulartEdson Silvério LemosFátima ConsalesJosé Carlos da Silva


© 2008Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São PauloLeal, Hermes<strong>Orlando</strong> <strong>Senna</strong>: o homem da montanha / Hermes Leal –São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.438p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema <strong>Brasil</strong> /Coordenador geral Rubens Ewald Filho)ISBN 978-85-7060-655-61. Cinema – Diretores e produtores – <strong>Brasil</strong> - Biografia2. Cinema – <strong>Brasil</strong> – História 3. <strong>Senna</strong>, <strong>Orlando</strong>, 1940 –Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série.CDD 791.437 098 1Índices para catálogo sistemático:1. Cineastas brasileiros : Apreciação crítica 791.437 098 1Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional(Lei nº 10.994, de 14/12/2004)Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921 Mooca03103-902 São Paulo SPwww.imprensaoficial.com.br/livrarialivros@imprensaoficial.com.brGrande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109Demais localidades 0800 0123 401


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