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O Teatro de José Saffioti Filho - Livraria Imprensa Oficial

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O <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> José <strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>


O <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> José <strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>O Estúpido Cupido Contra Miss CinelândiaA Rainha do RádioCoragem, Meu Bem, CoragemAs MalvadasJosé <strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>São Paulo, 2009


ApresentaçãoSegundo o catalão Gaudí, Não se <strong>de</strong>ve erguermonumentos aos artistas porque eles já o fizeramcom suas obras. De fato, muitos artistas sãoimortalizados e reverenciados diariamente pormeio <strong>de</strong> suas obras eternas.Mas como reconhecer o trabalho <strong>de</strong> artistasge niais <strong>de</strong> outrora, que para exercer seu ofíciomuniram-se simplesmente <strong>de</strong> suas próprias emoções,<strong>de</strong> seu próprio corpo? Como manter vivo onome daqueles que se <strong>de</strong>dicaram à mais volátildas artes, escrevendo, dirigindo e interpretandoobras-primas, que têm a efêmera duração<strong>de</strong> um ato?Mesmo artistas da TV pós-vi<strong>de</strong>oteipe seguemesquecidos, quando os registros <strong>de</strong> seu trabalhoou se per<strong>de</strong>ram ou são muitas vezes inacessíveisao gran<strong>de</strong> público.A Coleção Aplauso, <strong>de</strong> iniciativa da <strong>Imprensa</strong><strong>Oficial</strong>, preten<strong>de</strong> resgatar um pouco da memória<strong>de</strong> figuras do <strong>Teatro</strong>, TV e Cinema que tiveramparticipação na história recente do País, tanto<strong>de</strong>ntro quanto fora <strong>de</strong> cena.Ao contar suas histórias pessoais, esses artistasdão-nos a conhecer o meio em que vivia toda


uma classe que representa a consciência críticada socieda<strong>de</strong>. Suas histórias tratam do contextosocial no qual estavam inseridos e seu inevitávelreflexo na arte. Falam do seu engajamentopolítico em épocas adversas à livre expressão eas conseqüências disso em suas próprias vidas eno <strong>de</strong>stino da nação.Paralelamente, as histórias <strong>de</strong> seus familiaresse en tre la çam, quase que invariavelmente, àsaga dos milhares <strong>de</strong> imigrantes do começodo século pas sado no Brasil, vindos das mais variadasorigens. En fim, o mosaico formado pelos<strong>de</strong>poimentos com põe um quadro que reflete ai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a imagem nacional, bem como oprocesso político e cultural pelo qual passou opaís nas últimas décadas.Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própriavoz da socieda<strong>de</strong>, a Coleção Aplauso cumpreum <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> gratidão a esses gran<strong>de</strong>s símbolosda cultura nacional. Publicar suas históriase personagens, trazendo-os <strong>de</strong> volta à cena,também cumpre função social, pois garante apreservação <strong>de</strong> parte <strong>de</strong> uma memória artísticagenuinamente brasileira, e constitui mais quejusta homenagem àqueles que merecem seraplaudidos <strong>de</strong> pé.José SerraGovernador do Estado <strong>de</strong> São Paulo


Coleção AplausoO que lembro, tenho.Guimarães RosaA Coleção Aplauso, concebida pela <strong>Imprensa</strong>Ofi cial, visa resgatar a memória da culturanacio nal, biografando atores, atrizes e diretoresque compõem a cena brasileira nas áreas <strong>de</strong>cine ma, teatro e televisão. Foram selecionadosescritores com largo currículo em jornalismocultural para esse trabalho em que a história cênicae audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída<strong>de</strong> ma nei ra singular. Em entrevistas e encontrossucessivos estreita-se o contato en tre biógrafos ebio gra fados. Arquivos <strong>de</strong> documentos e imagenssão pesquisados, e o universo que se reconstituia partir do cotidiano e do fazer <strong>de</strong>ssaspersonalida<strong>de</strong>s permite reconstruir sua trajetória.A <strong>de</strong>cisão sobre o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> cada um na primeirapessoa mantém o aspecto <strong>de</strong> tradição oraldos relatos, tornando o texto coloquial, comoseo biografado falasse diretamente ao leitor .Um aspecto importante da Coleção é que os resul -ta dos obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que tambémcaracterizam o artista e seu ofício. Bió grafo e biografado se colocaram em reflexões que se esten<strong>de</strong>ram sobre a formação intelectual e i<strong>de</strong>o ló gicado artista, contex tua li zada na história brasileira.


São inúmeros os artistas a apontar o importantepapel que tiveram os livros e a leitura em suavida, <strong>de</strong>ixando transparecer a firmeza do pensamentocrítico ou <strong>de</strong>nunciando preconceitosseculares que atrasaram e continuam atrasandonosso país. Muitos mostraram a importância paraa sua formação terem atua do tanto no teatroquanto no cinema e na televisão, adquirindo,linguagens diferenciadas – analisando-as comsuas particularida<strong>de</strong>s.Muitos títulos exploram o universo íntimo epsicológico do artista, revelando as circunstânciasque o conduziram à arte, como se abrigasseem si mesmo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, a complexida<strong>de</strong>dos personagens.São livros que, além <strong>de</strong> atrair o gran<strong>de</strong> público,inte ressarão igualmente aos estudiosos das artescênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutidoo processo <strong>de</strong> criação que concerne ao teatro,ao cinema e à televisão. Foram abordadas aconstrução dos personagens, a análise, a história,a importância e a atua lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les.Também foram exami nados o relacionamento dosartistas com seus pares e diretores, os processos eas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> correção <strong>de</strong> erros no exercíciodo teatro e do cinema, a diferença entre essesveículos e a expressão <strong>de</strong> suas linguagens.Se algum fator específico conduziu ao sucessoda Coleção Aplauso – e merece ser <strong>de</strong>stacado –,


é o interesse do leitor brasileiro em conhecer opercurso cultural <strong>de</strong> seu país.À <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> e sua equipe coube reunir umbom time <strong>de</strong> jornalistas, organizar com eficáciaa pesquisa documental e iconográfica e contarcom a disposição e o empenho dos artistas,diretores, dramaturgos e roteiristas. Com aColeção em curso, configurada e com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>consolidada, constatamos que os sorti légiosque envolvem palco, cenas, coxias, sets <strong>de</strong> filmagem,textos, imagens e palavras conjugados, etodos esses seres especiais – que neste universotransi tam, transmutam e vivem – também nostomaram e sensibilizaram.É esse material cultural e <strong>de</strong> reflexão que po<strong>de</strong>ser agora compartilhado com os leitores <strong>de</strong>to do o Brasil.Hubert AlquéresDiretor-presi<strong>de</strong>nte<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado <strong>de</strong> São Paulo


Entre o Individual e o UniversalNeste momento oportuno para apresentar José<strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>, fulgura em mim, quase que <strong>de</strong>imediato, a imagem <strong>de</strong> sua vivacida<strong>de</strong>. Comocaracterística in<strong>de</strong>lével, ela diz muito não só arespeito <strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> ser e viver mas tambémacerca das atitu<strong>de</strong>s assumidas em seu trabalho,as quais, consequentemente, marcaram os seuscompanheiros e amigos durante os mais <strong>de</strong> 30anos em que esteve envolvido com os programase ativida<strong>de</strong>s culturais do Sesc São Paulo.Essa vivacida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser divisada, primeiro, comotraço distintivo <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> relacionamentocom o saber. Basta reputar à sua biografia, cujaformação como jornalista ocorreu cedo, seguidada <strong>de</strong> sociólogo e dramaturgo, a ponto <strong>de</strong> as trêsáreas aparecerem indissociáveis, tal é o resultadoalcançado nos veículos <strong>de</strong> comunicação pelosquais passou (atuando em periódicos, jornais, rádios),no seu itinerário como postulante <strong>de</strong> novasi<strong>de</strong>ias culturais, em variados projetos e eventos,e, sobretudo, no que transparece em seu amorpela dramaturgia – peças das quais quatro estãoaqui reunidas.11Nelas, como se notará, habita a energia <strong>de</strong> suasi<strong>de</strong>ias. Escritor entusiasmado – a ponto <strong>de</strong> a tessiturae a dinâmica do texto serem mais importantes


12que a preocupação com a própria encenação –,po<strong>de</strong>-se dizer que a força <strong>de</strong> suas histórias se <strong>de</strong>vea não respeitar a divisão entre literato e cientista,o que é uma virtu<strong>de</strong>, pois assim ele pô<strong>de</strong> mostraro mundo habitual em modalida<strong>de</strong>s eclipsadas,ou seja, como recorte <strong>de</strong> alguma situação específicaa partir da qual a iluminação crítica aparecepelas bordas (isso quando não se coloca explicitamente,do início ao fim). Antenado com o seutempo e comprometido com o real e a vida, ele<strong>de</strong>monstrou que na abordagem cultural é muitoimportante suplantar o contexto no qual se estáinfundido, <strong>de</strong> maneira a ver sempre adiante. Aíresidia outra parcela do seu encanto, como tambéma amplitu<strong>de</strong> do seu pensamento.Assim, além do teatro, conviviam em sua vida maisduas predileções distintas, embora conexas, noque diz respeito à produção artística: a música e ocinema. Era um gran<strong>de</strong> admirador da nossa MPB –aliás, nutria por Elis Regina um carinho todo especial,e, inclusive, obteve a grandiosa oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> entrevistá-la. Com mesma ênfase, propalava aimportância do cinema nacional e <strong>de</strong>tinha umaperspicácia avançada em perceber ou i<strong>de</strong>ntificarfilmes, diretores e atores cujo <strong>de</strong>staque, às vezesapenas embrionário, apontava inevitavelmentepara o reconhecimento futuro e sua consequenteentrada no seleto grupo dos “clássicos”.


A esse respeito, <strong>Saffioti</strong> nos <strong>de</strong>ixou uma diretrizprogramática. Antes <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrar o mérito daquestão, é bom lembrar que a dinâmica da culturanos mostra que quanto mais as novas i<strong>de</strong>ias sãocaracterizadas como excepcionais – justo por suarelevância – mais se <strong>de</strong>ve perceber que elas nãoemanam do nada. Vistas em geral na forma <strong>de</strong>lampejos intuitivos, mas em cuja resplan<strong>de</strong>cênciaparecem antecipar o <strong>de</strong>senlace da história, essasi<strong>de</strong>ias, na verda<strong>de</strong>, são elas mesmas históricas. Elecompreendia muito bem essa lógica e sabia quepequenos atos geram gran<strong>de</strong>s efeitos. Dedicadoque sempre foi ao cinema, <strong>Saffioti</strong> figura entre osresponsáveis – e que bela responsabilida<strong>de</strong> – poruma das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> nossa instituição que jáatinge 32 anos <strong>de</strong> existência. Em 1974, no <strong>Teatro</strong>Anchieta, hoje Sesc Consolação, por iniciativa suae <strong>de</strong> companheiros <strong>de</strong> trabalho, tomou forma oFestival Sesc dos Melhores Filmes (futuramentetransferido para o CineSesc), com a intenção <strong>de</strong>divulgar e permitir o acesso, para os colegas e<strong>de</strong>mais espectadores, às obras cinematográficas,aos diretores e atores importantes que corriam orisco <strong>de</strong> passar <strong>de</strong>spercebidos.13Em sequência a essa ativida<strong>de</strong>, <strong>Saffioti</strong> ajudou aformar o acervo <strong>de</strong> audiovisual do Sesc SP. Anos<strong>de</strong>pois, atuou na organização do Festival Sesc<strong>de</strong> <strong>Teatro</strong> da Terceira Ida<strong>de</strong>, no Sesc São Carlos,evento que revelou talentos, provocou emoções


e permitiu vislumbrar que os idosos estão maisligados à arte do que comumente se imagina.14Na área cultural, então, aparece a síntese <strong>de</strong> suaidiossincrasia: criativida<strong>de</strong>, proposição e dinamismo.Traços <strong>de</strong>finidores, também, <strong>de</strong> uma atuaçãoque escapa ao conformismo e que restaura noprazer e no lazer tudo aquilo que se entrecruzanos sentidos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os aspectos mais emocionaisaté os mais intelectuais. Dessa maneira, mostrouna prática que a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer o real, e<strong>de</strong> transformá-lo, configura-se, <strong>de</strong> um lado, comoo fundamento <strong>de</strong> toda <strong>de</strong>scoberta, e, <strong>de</strong> outro,como um compromisso em pensar a socieda<strong>de</strong> ea educação em seu <strong>de</strong>vir. Na relação plasmadaentre o universal e o individual, que José <strong>Saffioti</strong><strong>Filho</strong> tão bem construiu em termos culturais, omote para a sua vida e obra po<strong>de</strong> ser a afirmação<strong>de</strong> que no conhecimento o mais individual é, sim,o mais universal.Danilo Santos <strong>de</strong> MirandaDiretor Regional do Sesc São Paulo


IntroduçãoGeneroso e ProvocanteA generosida<strong>de</strong> e a provocação sempre andaramjuntas na conduta e na criação <strong>de</strong> José<strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>. Nascido em 10 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1947,esse paulista <strong>de</strong> São José do Rio Preto se feznotar em duas áreas: na da produção culturale na dramaturgia. Na primeira, um <strong>de</strong> seusfeitos mais marcantes <strong>de</strong>u-se a partir <strong>de</strong> 1979,quando ele passou a cuidar da programação docine Sesc, em São Paulo, enfatizando a votaçãodos críticos <strong>de</strong> cinema apontando os melhoresdo ano. Um evento que inclui um festival. Atéhoje, é uma tradição na capital do estado. Depois,já estabelecido em São Carlos, através doSESC local, logrou também muitas realizações.Acho importante salientar que, na proporçãoem que eu <strong>de</strong>ixei a capital, a zona do badalo,e que meu nome saiu da mídia, eu vim para ointerior do estado <strong>de</strong> São Paulo, para São Carlos,on<strong>de</strong> tive chances <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver uma política<strong>de</strong> teatro que teve excelente repercussão emtodo o interior. Pu<strong>de</strong> trazer gran<strong>de</strong>s nomes doteatro brasileiro. A começar por Beatriz Segallque inaugurou o teatro do SESC aqui. A partirdaí, houve uma ênfase em trabalhos <strong>de</strong> minha15


autoria com grupos alternativos. Principalmentecom pessoas da terceira ida<strong>de</strong> – cheguei a realizarum festival da terceira ida<strong>de</strong> – e com umgrupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficientes visuais, recorda orgulhoso.Com os idosos encenou Vestido <strong>de</strong> Noiva, <strong>de</strong>Nelson Rodrigues. Já com mais jovens, adaptou edirigiu, entre outros textos, o oratório Colombo,<strong>de</strong> Paul Clau<strong>de</strong>l. Além disso, promoveu na cida<strong>de</strong>palestras e apresentações <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>scomo Eva Wilma, Carlos Zara, Gianni Ratto,Denise Stocklos, Dulce Damasceno <strong>de</strong> Brito eRubens Ewald <strong>Filho</strong>.


Vestido <strong>de</strong> Noiva, com grupo teatral <strong>de</strong> idosos


<strong>Saffioti</strong> dirigindo Colombo


Cenas <strong>de</strong> As 5 Estações, com grupo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficientes visuais


Com Denise StocklosCom Gianni Ratto


Com Rubens Ewald <strong>Filho</strong> e Dulce Damasceno <strong>de</strong> Brito


22Na segunda área, <strong>Saffioti</strong> construiu a partir <strong>de</strong>1974 uma obra teatral das mais expressivas. Sãopeças <strong>de</strong>nsas e dinâmicas que trazem, como osfilmes <strong>de</strong> Billy Wil<strong>de</strong>r, uma abordagem realista esarcástica <strong>de</strong> situações extremas, uma visão queé fruto <strong>de</strong> sua profissão inicial: a <strong>de</strong> jornalista(curiosamente, a mesma <strong>de</strong> Wil<strong>de</strong>r). Ele ressaltaessa origem e influência: O que eu chamo <strong>de</strong> meuteatro é o conjunto <strong>de</strong> minhas peças, é principalmenteum teatro escrito por um jornalista. Nãopor alguém que estudou dramaturgia na escola.Muito cedo, tinha cerca <strong>de</strong> 20 anos, eu ingresseina criação da revista Veja, no número zero. Então,eu peguei uma educação jornalística muitoboa. A partir daí, sempre entendi o meu teatrocomo fonte <strong>de</strong> pesquisas que eu fazia <strong>de</strong> umarealida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um tempo datado. Eu me arrepioquando ouço diretores, atores brasileiros trataremcom certo <strong>de</strong>sdém o teatro datado. Comose fosse uma coisa superada e morta. Hoje, sevocê quiser fazer uma pesquisa sobre atentadosa bancas <strong>de</strong> jornais por gente da extrema direitavocê vai ver em Coragem, Meu Bem, Coragem,exatamente isso. Se você quiser ver o seqüestro<strong>de</strong> um veículo <strong>de</strong> comunicação, um ato terroristafeito por uma mulher subversiva em todosos sentidos, até na luta pelo feminismo quandomal se falava nisso, veja A Rainha do Rádio. Atéhoje, 30 anos <strong>de</strong>pois, o texto é procurado por


artistas do Brasil e do exterior. Não envelheceu.A não ser para esse grupo <strong>de</strong> artistas brasileirosque tem essa cisma contra o teatro datado. Chamodatado porque é o retrato que traz daquelaépoca, uma reportagem daquela época. O meutexto mais recente, Os Belo Chics, nada mais é doque tudo o que aconteceu há pouco no Brasil,especialmente no estado <strong>de</strong> São Paulo, com osataques urbanos, com a classe média trancada<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa em estado <strong>de</strong> pânico. Isso já previem 2005 com essa peça. Mas já na Roma Antigaessa violência acontecia. Agora, daqui a algumtempo, vão dizer que a minha peça é datada?Esse tipo <strong>de</strong> conotação, as vezes, me incomoda,porque sempre na<strong>de</strong>i na contramão.23<strong>Saffioti</strong> começou cedo no jornalismo. Estava com17 anos quando trabalhou como colunista e repórterno Bragança Jornal, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> BragançaPaulista. Mais tar<strong>de</strong>, passou por publicações daeditora Abril, da Bloch Editora, pela TV Cultura<strong>de</strong> São Paulo e pelo jornal Diário Popular, <strong>de</strong> SãoPaulo, on<strong>de</strong> exerceu intensamente a crítica cinematográfica.Sua primeira peça, Faça uma Festacom o seu Café da Manhã, escrita em 1974, permaneceuinédita. Uma montagem em Santos chegoua ser cogitada, mas foi proibida pela Censura. Essapeça fez surgir uma admiradora que se tornariaminha amiga para sempre: Myrian Muniz. Uma


Com Myriam Munizamiga e uma crítica feroz do meu trabalho, muitosolidária, muito estimulante, lembra o autor, em<strong>de</strong>poimento prestado em sua casa em São Carlos.Posteriormente, prosseguiu com a sua trajetóriapelo teatro, sem abrir mão <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> naárea cultural e ainda passando por outros camposda escrita. Foi um dos autores da telenovelaO Todo Po<strong>de</strong>roso, produzida pela Re<strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>irantesem 1979, do samba-enredo Elis Regina:O Som da Festa Eterna <strong>de</strong>sta Musa, no carnavalpaulista <strong>de</strong> 1984, e do livro infanto-juvenil OAbrigo das Asas, em 1991.


Quatro peçasNeste volume da Coleção Aplauso estão quatrodas cerca <strong>de</strong> 20 peças escritas por <strong>Saffioti</strong>. Todastêm em comum uma visão algo irônica sobre <strong>de</strong>terminadasrealida<strong>de</strong>s do Brasil, mas que encontramsimilarida<strong>de</strong> em outros países. A fantasia,o <strong>de</strong>lírio, também permeiam boa parte da açãoquase sempre intempestiva dos personagens.Em or<strong>de</strong>m cronológica, a primeira peça é O EstúpidoCupido contra Miss Cinelândia, <strong>de</strong> 1975. Trataseda primeira parte <strong>de</strong> Anabela no Mundo dasPlano geral da leitura <strong>de</strong> O Estúpido Cupido contra MissCinelândia no Auditório Augusta, em São Paulo, 1975


Maravilhas. Foi premiada em 1978 em um festivalnacional em Ribeirão Preto. Em São Paulo, realizeiuma leitura pública do texto em junho <strong>de</strong> 1975no Auditório Augusta, chamada Mais vale umaLeitura Badalada do que Uma Peça Engavetada,com a participação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s atores do teatrobrasileiro. Mas, <strong>de</strong>pois disso, uma produção daTV brasileira se apropriou da trama e dos personagensprincipais, lembra <strong>Saffioti</strong>. Nessa leituraestavam Nicette Bruno, Yara Amaral, ReginaDuarte, Ewerton <strong>de</strong> Castro e Sérgio Mamberti.Duarte, Yara Amaral, Nicette Bruno e Sérgio Mamberti naleitura <strong>de</strong> O Estúpido Cupido contra Miss Cinelândia, em 1975


A comédia é ambientada em cida<strong>de</strong> do interiorpaulista, em meados da década <strong>de</strong> 1950. O autorfaz um analítico registro do cotidiano <strong>de</strong> umafamília que ainda se movimenta sob a influência,pela mídia, da trágica morte <strong>de</strong> Getúlio Vargasem 1954 e das fofocas <strong>de</strong> Hollywood. O fascínioexercido então pelo cinema leva a jovem protagonista,Anabela, candidatar-se ao título <strong>de</strong> MissCinelândia. Com o apoio da mãe, viaja para oRio <strong>de</strong> Janeiro on<strong>de</strong> acontece esse concurso que,<strong>de</strong> fato, existiu, promovido pela extinta revistaCinelândia e pela Atlântida, a produtora doshoje clássicos filmes com Oscarito, Gran<strong>de</strong> Oteloe com o galã Cyll Farney, um dos personagensda trama.A segunda peça é A Rainha do Rádio. O monólogo,escrito em 1976, passa-se também em umacida<strong>de</strong> do interior e tem uma curiosa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>vingança e ira como mola propulsora. Em 1974,em plena ditadura militar que censurava osmeios <strong>de</strong> comunicação, uma mulher, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>,que tinha um programa <strong>de</strong> poesias na RádioEsperança, sem que ninguém perceba entra naemissora à meia-noite e a coloca no ar. Dessaforma explica aos ouvintes porque acha que foi<strong>de</strong>mitida. Nessa mágoa, entrega os podres <strong>de</strong>muita gente conhecida, faz uma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>scontruçãoda cida<strong>de</strong>, apontando a sua hipocrisia.


Cley<strong>de</strong> Yáconis em A Rainha do Rádio


A peça estreou em São Paulo em 1976, com atuação<strong>de</strong> Cley<strong>de</strong> Yaconis, sob a direção <strong>de</strong> AntonioAbujamra Nessa encenação, – lembra <strong>Saffioti</strong>– Abujamra foi obrigado a cortar praticamentetoda a parte política e valorizou a parte eróticasobre uma quarentona que se apaixonavapor um adolescente. A ênfase foi dada a esseenfoque amoroso. Então, tirou todo o caráterpolítico <strong>de</strong>ssa seqüestradora. Infelizmente, naversão para o cinema também aconteceu isso.Mas já não aconteceu em outras encenaçõesfora do eixo Rio-SP. Espero que isso nunca maisvenha a ocorrer não só com peças minhas, mastambém e outros autores. A adaptação cinematográfica<strong>de</strong>u-se em filme <strong>de</strong> 1981, produzido edirigido por Luiz Fernando Goulart, com atuações<strong>de</strong> Beyla Genauer como A<strong>de</strong>laí<strong>de</strong>, e PauloGuarnieri personificando Ricardo, o seu amorjovem. Beyla, que já tinha feito o monólogo emteatro do Rio <strong>de</strong> Janeiro sob a direção <strong>de</strong> DinaMoscovici, ganhou o prêmio <strong>de</strong> melhor atriz dofestival <strong>de</strong> Cinema <strong>de</strong> Brasília, enquanto Goulartvenceu como melhor roteiro. A Rainha do Rádioteve outras encenações, inclusive no exterior.Uma <strong>de</strong>las foi na Colômbia.O terceiro texto neste volume é o <strong>de</strong> Coragem,Meu Bem, Coragem. Em 1980 ganhou prêmio<strong>de</strong> leitura dramática no XIIº Concurso Nacional


Augustin Nuñez no espetáculo colombiano La Reina<strong>de</strong> la Radio


<strong>de</strong> Dramaturgia do Serviço Nacional <strong>de</strong> <strong>Teatro</strong>.É, talvez, a mais politizada das peças <strong>de</strong> <strong>Saffioti</strong>que tem como cenário o Brasil no final da década<strong>de</strong> 1970, em plena ditadura militar, quandoos atentados ainda são freqüentes. São apenasWanda Kosmo e André Loureiro em Coragem,Meu Bem, Coragem


Na intimida<strong>de</strong>, o encontro transforma-se numembate <strong>de</strong> idéias e conceitos i<strong>de</strong>ológicos em queambos avançam e recuam, num jogo <strong>de</strong> suspenseentre as fronteiras da vergonha, nos territóriostanto do sexo quanto da política, frisa <strong>Saffioti</strong>.Ele lembra ainda seu gran<strong>de</strong> sucesso <strong>de</strong> público,a partir da estréia em 1981. O espetáculo dirigidodois personagens: um jovem e uma mulher madura,bem mais velha. Ele é um terrorista que aencontra logo após cometer um atentado. Ela,casada, mãe <strong>de</strong> família, o leva à um motel parauma aventura sexual que se revela oportuna aorapaz, já que precisa escon<strong>de</strong>r-se até o horário dapartida <strong>de</strong> um avião que vai levá-lo ao Paraguai.


por João Albano tinha Wanda Kosmo e AndréLoureiro nos papéis principais. Posteriormente,entrou Ruthinéa <strong>de</strong> Moraes no lugar <strong>de</strong> Wanda.Com seu ousado erotismo para a época – não erafreqüente nos palcos, a exposição crua <strong>de</strong> umarelação erótica entre uma mulher madura e umrapaz – Coragem, Meu Bem, Coragem permaneceuem cartaz mais <strong>de</strong> três anos, através <strong>de</strong>encenações em várias cida<strong>de</strong>s do País.A quarta peça, As Malvadas, foi escrita em 1994,mas permanece inédita nos palcos. Passa-se nosbastidores <strong>de</strong> um teatro e tem duas personagensque, além <strong>de</strong> mãe e filha, são atrizes. Elas estão sepreparando para a última apresentação da peçaPalhaços, <strong>de</strong> Timochenco Wehbi. Enquanto esperamo terceiro sinal, para o início do espetáculo,discutem seus problemas pessoais e profissionais,bem como o iminente fechamento daquela sala nodia seguinte, já que foi vendida para uma igreja.Sattifoti não dissimula nos diálogos e no títulouma <strong>de</strong>liberada influência <strong>de</strong> A Malvada, ogran<strong>de</strong> e premiado filme do também mordazJoseph L. Mankiewicz, em que Bette Davis eAnne Baxter davam vida às relações <strong>de</strong> duasatrizes. Mas o ponto <strong>de</strong> partida foi outro, comolembrou o autor em conversa com a ColeçãoAplauso. Quando eu falei que escrevi em SãoPaulo um teatro na contramão, quis dizer queeu sempre estou fora <strong>de</strong> moda. Quando está na


moda comédia, quero escrever dramas. Quandoa tendência é monólogos, quero escrever pecascom oito atores. Nunca me preocupei muito emestar no mercado, na mídia, em estar em cartaz.O meu prazer sempre foi escrever teatro mesmo.E no caso <strong>de</strong> As Malvadas ... Eu tinha um gran<strong>de</strong>amigo, o Timochenco Wehbi, que era autor. Eue ele levávamos uma vida intensa, cultural e socialmente.Íamos a todas as estréias, eventos...Ele que me arrastava. Depois que Timochencomorreu, durante algum tempo an<strong>de</strong>i sonhandocom ele. No sonho, ele chegava e sentava na minhacama, ficava conversando comigo. A gentelembrava dos artistas que conhecíamos. Era tudomuito engraçado. As situações eram tão boasque, assim que acordava, escrevia o que tínhamosconversado, guardava em uma gaveta e iadormir <strong>de</strong> novo. Isso aconteceu durante váriassemanas. Mas eu não me lembrava no dia seguinte.Um dia, resolvei escrever uma peça sobre ofechamento <strong>de</strong> teatros que passaram a ser compradospor igrejas. Ai, fui fuçar nas minhas coisase abri uma gaveta cheia <strong>de</strong> anotações. Percebique ali tinha As Malvadas praticamente pronta.Ficou uma coisa espiritual, psicografada. Senteipara escrever a peça combinando a história <strong>de</strong>duas atrizes, mãe e filha, com o fechamento <strong>de</strong>um teatro que vai virar igreja evangélica e coma última apresentação <strong>de</strong> um espetáculo. Justamentea peça Palhaços, do Timochenco. É umapeça que, quando As Malvadas termina, tem35


início Palhaços. Termina assim. Ninguém tevecoragem <strong>de</strong> encenar essa peça – é por isso quefalo <strong>de</strong> estar na contramão – porque é muito<strong>de</strong>sbocada, muito sem vergonha, muito gozadorasobre os bastidores do teatro. Mas tambémmuito comovente, muito verda<strong>de</strong>ira.36Tanto nesse texto irreverente como nos outrostrês <strong>de</strong>ste volume, o autor se <strong>de</strong>bruça sobre osseres humanos com generosida<strong>de</strong>, estejam elesagindo <strong>de</strong> forma agressiva, amorosa ou passional.São provas inequívocas que José <strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>,além <strong>de</strong> jornalista e <strong>de</strong> estimulante produtorcultural <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s méritos, consolidou-se comoum dos mais notáveis dramaturgos do Brasilcontemporâneo. A Coleção Aplauso/<strong>Teatro</strong> Brasilestá feliz por colocar novamente em evidência,uma parte <strong>de</strong>ssa obra tão peculiar que ele criouem mais <strong>de</strong> 30 anos, ao longo <strong>de</strong> sua passagem,quase 59 anos <strong>de</strong> vida.Em abril <strong>de</strong> 2006, <strong>Saffioti</strong> ficou sabendo queos problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que o atormentavamhá mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos, agora eram irreversíveis.Imbuiu-se <strong>de</strong> serenida<strong>de</strong> para encarar os seus últimosdias. Mas a sua presença entre nós acabousendo menor do que se esperava. Em 5 <strong>de</strong> junho<strong>de</strong> 2006, ele morreu em São Carlos.Alfredo SternheimJunho <strong>de</strong> 2006


Regina Duarte, Yara Amaral, <strong>Saffioti</strong> e Nicette Brunona leitura <strong>de</strong> O Estúpido Cupido contra Miss Cinelândia,em 1975


O Estúpido Cupido Contra Miss Cinelândia


Regina Duarte, Yara Amaral e <strong>Saffioti</strong> na leitura <strong>de</strong>O Estúpido Cupido contra Miss Cinelândia, em 1975


O Estúpido Cupido Contra Miss CinelândiaComédia Ingênua dos Anos 50 – Ato ÚnicoÉpoca: 1954 (novembro/<strong>de</strong>zembro)Personagens:Anabela (a mocinha)Antônio (o mocinho)Ana (mãe da mocinha)Abel (pai da mocinha)Zezinho (irmão caçula da mocinha)Maria (a empregada doméstica)SpeakerRadiatriz 1Radiatriz 2ApresentadorZenai<strong>de</strong> Andréa (cronista <strong>de</strong> cinema)Cyll Farney (ator <strong>de</strong> cinema)Avany Maura (miss)Garota jovem <strong>de</strong> maillot41Cenário:Sala/copa <strong>de</strong> casa <strong>de</strong> família classe média nosanos 50Figurinos:Anabela usa uniforme <strong>de</strong> normalista, cabelorabo-<strong>de</strong>-cavalo, saia e blusa, vestido tomara-


que-caia, vestido <strong>de</strong> gala, conjunto <strong>de</strong> viagem.Zezinho usa blue jeans e camisa vermelha.Apresentador usa smoking. Zenai<strong>de</strong> Andréa usavestido <strong>de</strong> gala.Trilha sonora:42Sucessos musicais da época.01 – Tico-tico no Fubá (Liberace)03 – Neurastênico (Betinho e Seu Conjunto)09 – A<strong>de</strong>us, Cinco Letras que Choram (FranciscoAlves)12 – Canção do Rouxinol (Cauby Peixoto)14 – Calúnia (Dalva <strong>de</strong> Oliveira)17 – Stupid Cupid (Neil Sedaka)As outras são <strong>de</strong> livre escolha da produção.CEnASom: música 01. Cortinas fechadas, surge o Apresentador,<strong>de</strong> smoking, ar solene, sob um spot,diante <strong>de</strong> um microfone antigo.APRESENTADOR – Estamos aqui reunidos, noHotel Glória do Rio <strong>de</strong> Janeiro, para proce<strong>de</strong>rà primeira prova coletiva para a escolha das<strong>de</strong>z candidatas finalistas ao concurso <strong>de</strong> MissCinelândia 1954. Dentro <strong>de</strong> alguns instantesserá efetuado o <strong>de</strong>sfile, com cerca <strong>de</strong> 40 can-


didatas, já selecionadas entre as centenas <strong>de</strong>belas jovens <strong>de</strong> todo o País. Primeiro as concorrentesse apresentarão em trajes <strong>de</strong> passeio e,em seguida, em trajes <strong>de</strong> maillot. Estas provasservirão para a comissão julgadora selecionaras <strong>de</strong>z finalistas que, em seguida, passarão pelaprova mais convincente do concurso: os testescinematográficos na Atlântida, a produtora naqual virá a trabalhar, num filme, a concorrentevitoriosa. Convém salientar que as candidatascontracenarão, todas, sem exceção, com o gran<strong>de</strong>astro do cinema brasileiro Cyll Farney, em umsketch falado, sob a direção <strong>de</strong> Jorge Ileli. Nodia 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro teremos o grandioso baile<strong>de</strong> proclamação da vitória, no salão dourado doHotel Glória. Miss Cinelândia 1954 realizará, comdireito a acompanhante, uma viagem à Europa,nas asas da Panair, <strong>de</strong>vendo permanecer 15 diasem Paris e outros tantos em Roma. (Pausa) Antesda apresentação das candidatas, a nossa saudaçãoao ilustre corpo <strong>de</strong> jurados, que é formadopor Herbert Moses, da Associação Brasileira <strong>de</strong><strong>Imprensa</strong>; Rogério Marinho, que representa ojornal O Globo; o querido galã Cyll Farney; odiretor Carlos Manga; Luiz Severiano RibeiroJúnior, da Atlântida Cinematográfica; IbrahimSued, o jovem colunista social <strong>de</strong> O Globo; NelsonQuadros, da revista Manchete; HumbertoMauro, ilustre representante do Instituto Na-43


cional do Cinema Educativo; a escritora DinahSilveira <strong>de</strong> Queiroz; a querida jornalista Zenai<strong>de</strong>Andréa, da revista Cinelândia e, finalmente, aestrela Inalda <strong>de</strong> Carvalho, a nossa linda “MissCinelândia 1953”. A nossa saudação a todos comuma salva <strong>de</strong> palmas!Som44Aplausos bem-educados. Acor<strong>de</strong> orquestralretumbante, com a música 02, enquanto oApresentador se retira do palco, levando consigoo microfone e os fios, e o som da música vaise embaralhando com o som <strong>de</strong> vozes <strong>de</strong> umanovela, on<strong>de</strong> uma voz feminina indaga repetitivamente:“É isto a felicida<strong>de</strong>?” (Pausa) “É istoa felicida<strong>de</strong>?”CEnALevanta-se a cortina. Ana, a mãe, arruma acozinha, enquanto ouve pelo rádio a novelaTambém Há Lírios no Lodo. Cenas altamentedramáticas na novela. Ela interrompe vez poroutra seu serviço para melhor prestar atençãonuma ou noutra palavra. Abel, o marido, entrae sai do quarto, fingindo não prestar atençãona novela, mas está interessadíssimo. Conferenuma ca<strong>de</strong>rneta a conta mensal da quitanda.


Atrás do rádio antigo, duas mulheres, ao vivo,interpretam a novela.RADIATRIZ 1 – É isto a felicida<strong>de</strong>? (Voz embriagada<strong>de</strong> emoção) É isto a felicida<strong>de</strong>? Eu haviaimaginado outra coisa. Eu havia imaginado umsonho bom, um céu azul, um horizonte semfim. (Ana está emocionada) Quando ele me fala<strong>de</strong> amor eu acredito. Quando ele surge diante<strong>de</strong> mim, eu fico toda trêmula (Ana esbarra emAbel e se <strong>de</strong>sviam, incomodados) A sua presença<strong>de</strong>sperta <strong>de</strong>ntro do meu âmago a sensação <strong>de</strong>um <strong>de</strong>vaneio. (Ana suspira) Mas o que acontececomigo, meu Deus? (Soluça) Mas o que é que euestou dizendo, meu Deus???45RADIATRIZ 2 – Minha filha... (Ana e Abel ficaminteressadíssimos) A vida é uma madrasta. Otempo traz os cabelos brancos. O tempo provocarugas numa face antes jovial, cheia <strong>de</strong> esperanças.(Abel e Ana atentos, assentindo) O caminhoda vida é cheio <strong>de</strong> veredas e repleto <strong>de</strong> espinhos.(Radiatriz 1 chora) Não, minha filha! Não! Não!Não! Isto não é felicida<strong>de</strong>! Você ainda tem umalonga estrada pela frente. (Ana chora) E, nessaestrada, <strong>de</strong> repente, numa encruzilhada inesperada,você encontrará (Abel e Ana esbarramnovamente) o seu sonho dourado, o seu amor,o anjo da sua vida!


RADIATRIZ 1 (Chorando) – Eu estou apaixonada!É ele o amor da minha vida!RADIATRIZ 2 – Não! Não! Não!... Não é ele ohomem da sua vida. (Abel e Ana assentem, concordando)Você <strong>de</strong>ve guardar no seu coração asua candura, a sua pureza, a sua ternura, para umverda<strong>de</strong>iro homem, o príncipe dos seus sonhos,que saberá abrir no seu peito uma janela <strong>de</strong> afeto,por on<strong>de</strong> transbordará tudo que há <strong>de</strong> melhorem você. (Acor<strong>de</strong>s musicais sentimentais) Agora,querida, pelo amor <strong>de</strong> Deus!... me <strong>de</strong>volva... me<strong>de</strong>volva esta pistola! (Abel e Ana aflitos)46RADIATRIZ 1 – Eu vou me matar! Eu queromorrer!RADIATRIZ 2 – Não, minha filha! Não cometaesta loucura! Vamos! Por favor! Não faça isso!RADIATRIZ 1 (Gritando e chorando) – Eu morro!Eu morro! Eu morro!CEnASom: Som, com eco, <strong>de</strong> um tiro <strong>de</strong> revólver. Osóculos <strong>de</strong> Abel quase caem. Um prato cai damão <strong>de</strong> Ana e se espatifa no chão. Zezinho, commáscara e/ou fantasia <strong>de</strong> Cavaleiro Negro, surge


<strong>de</strong> repente, assustando a todos, com um revólver<strong>de</strong> espoleta, dando tiros pela sala.RADIATRIZ 2 – Não! Não! Não! (Música clímax<strong>de</strong> final <strong>de</strong> novela)CEnARadiatriz 1 <strong>de</strong>saparece, ao som da música. Radiatriz2 permanece.ZEZINHO – Todo mundo mãos ao alto! Isto éum assalto!CEnA47Ana corre atrás <strong>de</strong>le com o pano <strong>de</strong> prato. Abelprocura aplicar-lhe um pontapé.ZEZINHO – O Cavaleiro Negro nunca dorme, em<strong>de</strong>fesa dos fracos e dos oprimidos! (Entra em seuquarto e fecha a porta)ABEL – Transviado! Você não passa <strong>de</strong> um transviado!ANA (Recolhendo os cacos do chão) – Esse meninonão tem coração, não tem juízo, não temeducação!


CEnASurge atrás do rádio o Speaker, que fica ao ladoda Mulher 2. Enquanto Ana limpa os estragos,Abel retorna à mesa para conferir suas contas.SPEAKER – O sabonete Lever, que <strong>de</strong>ixa vocêmais linda, acabou <strong>de</strong> apresentar (Música sobe e<strong>de</strong>sce) mais um capítulo da empolgante novela<strong>de</strong> Abigail Machado:RADIATRIZ 2 – Também Há Lírios no Lodo!!!(Música sobe e <strong>de</strong>sce)48SPEAKER – Também a linda Elizabeth Taylor,estrela do filme Rapsódia, revela às suas fãsbrasileiras o seu segredo <strong>de</strong> beleza. Ouçam oque ela diz:RADIATRIZ 2 – Eu também uso o sabonete Lever!Você viu como apareço linda no filme Rapsódia?Notou que <strong>de</strong>licioso frescor juvenil irradiam meurosto e minha cútis?CEnAAbel <strong>de</strong>sliga o rádio. Speaker e Radiatriz 2, bronqueados,se retiram.ZEZINHO (Entrando na sala) – Vocês não mecompreen<strong>de</strong>m! (Gritando) Vocês não me compreen<strong>de</strong>m!(Volta ao quarto, batendo a porta)


ABEL – Como foi mesmo que terminou?ANA – Você não viu? O prato quebrou.ABEL – E quem é que está falando do prato?ANA – Mas você está falando <strong>de</strong> quê?ABEL – Da novela, ora essa! Ela <strong>de</strong>u o tiro ou não<strong>de</strong>u? Morreu ou não morreu?ANA – Foi o Zezinho quem <strong>de</strong>u o tiro. Ela nãofoi. Eu tenho certeza.ABEL – Ela também atirou. Eu ouvi. Nesta hora<strong>de</strong>ve estar morta!49ANA –Além <strong>de</strong> cego, você é surdo.ABEL – Você é quem está enganada. Você nuncareconhece que está enganada. Ela <strong>de</strong>u o tiro.ANA – Além <strong>de</strong> surdo é burro. Em novela, quem éque não sabe disso?, a mocinha nunca morre.ABEL (Caindo em si) – Isso, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sconheço.Novela é coisa <strong>de</strong> mulher. Você é quem ficaprestando atenção nessas baboseiras. (Verificaa ca<strong>de</strong>rneta)Som: Música 03 do quarto <strong>de</strong> Zezinho.


ANA (Terminando <strong>de</strong> arrumar a cozinha) – Vocêprecisa ter uma conversa com o Zezinho. Essemenino não po<strong>de</strong> continuar assim!ABEL – O que não po<strong>de</strong> continuar assim é a contada quitanda.ANA – O que é que tem a conta da quitanda?ABEL – O que é que tem a conta da quitanda??Você nunca sabe mesmo! Você vai enchendo asacola e esvaziando as minhas economias.ANA – Com comida e médico não há economia.50ABEL – Acontece que por aqui não existe economiacom nada. Aluguel, conta <strong>de</strong> luz, empregada, aescola do Zezinho, a escola <strong>de</strong> Anabela... Vocês nãosossegam enquanto eu não tiver um enfarte.ANA – E então por que você não pára <strong>de</strong> fumar?Cigarro é luxo <strong>de</strong> rico. Cigarros Luís XV! Essa émarca <strong>de</strong> milionário! (Arrumando as coisas aquie ali) O que você quer? Que as crianças <strong>de</strong>ixem<strong>de</strong> comer? Deixem <strong>de</strong> freqüentar a escola?...Você sabe, por acaso, há quanto tempo eu nãocompro um vestido novo?ABEL – E por que você tem que ter empregada?Empregada sim que é um luxo! Ainda mais essa,


ABEL – Lambreta é coisa <strong>de</strong> transviado.ZEZINHO – O Onésimo tem uma lambreta.ABEL – E que nós temos com isso?ZEZINHO – O Onésimo é filho do Seu Roque.(Abel resmunga) E o Seu Roque está bem <strong>de</strong> vidae o Onésimo tem uma lambreta.ABEL – Azar do Roque. O filho <strong>de</strong>le ainda vai sematar com essa máquina do <strong>de</strong>mônio.52ZEZINHO (Simulando um tiro no ouvido) – Só meresta morrer. Meus pais não me compreen<strong>de</strong>m.ABEL – O que é isso que você está usando?ZEZINHO – Isso o quê?ABEL – Você tem coragem <strong>de</strong> sair com essa camisana rua?ZEZINHO – E o que é que tem essa camisa?ABEL – Camisa vermelha não é coisa <strong>de</strong> homem.ANA – A responsável sou eu. Eu é que <strong>de</strong>i odinheiro.


CEnAA porta é aberta e Antônio entra, eufórico.ANTôNIO – Boa noite para todos! (Alegre)CEnAAbel se levanta. Zezinho vai abrir a gela<strong>de</strong>irapara ver o que tem. Antônio dá um beijo naface <strong>de</strong> Ana e <strong>de</strong>pois abraça a sogra, falandoao mesmo tempo.ANTôNIO – Po<strong>de</strong>m ficar sentados que eu tenhoa maior surpresa do mundo para todos!53ZEZINHO – Já sei. Assaltou as Casas Pernambucanas.ABEL – Vai marcar a data do casamento.ANTôNIO – Nada disso. Nada disso.ABEL – Ganhou no jogo do bicho. (Volta a sentar-se,para ver as contas)ANTôNIO – Fechei negócio. Comprei meu carro.Afinal comprei o meu carro.ZEZINHO (Vasculhando a gela<strong>de</strong>ira) – A Crushacabou! Eu me mato!


ANA – Um automóvel?ANTôNIO – Sim senhora! Nada mais nada menosque um Simca Chambord!ABEL – Um Simca Chambord? Mas isso é carro<strong>de</strong> milionário!ZEZINHO – Quero ver! (Dispara rumo à porta.Antônio o agarra)ANTôNIO – Cor grená. Estofamento <strong>de</strong> plástico.Motor aron<strong>de</strong>.ZEZINHO – Quero ver! Eu preciso ver!!54ABEL – E o preço? Quanto foi que custou?ANTôNIO – Pneus brancos novos. Completamentenovos!ZEZINHO – Tenho que ver. Necessito ver.ABEL – E o pagamento? Foi à vista?ANTôNIO – 65 mil cruzeiros à vista. Tudo o que euconsegui economizar na minha vida até hoje.ZEZINHO – Ou eu vejo ou me mato!ANTôNIO (Soltando Zezinho) – Não adianta correr.Ainda não estou com ele. Vão entregar nofim do mês. Até chegar <strong>de</strong> São Paulo <strong>de</strong>mora.


ANA – E agora, ainda que mal pergunte, vocêvai se casar com que dinheiro?ANTôNIO – Dinheiro não é problema.ABEL – Foi promovido?ANTôNIO – Fui consi<strong>de</strong>rado o melhor funcionáriodas Casas Pernambucanas no interior <strong>de</strong> SãoPaulo. Vai sair a promoção em breve. (AbraçaAna) Aí eu e Anabela po<strong>de</strong>remos, imediatamente,nos casar. Um dia, a senhora vai ver, aindachego a gerente.ANA – Já vi tudo. O automóvel antes... E o casamento<strong>de</strong>pois.55ANTôNIO – A senhora, na realida<strong>de</strong>, ainda não viunada. Tempos melhores virão. Depois <strong>de</strong>ssa faseterrível que o nosso País enfrentou, agora que oGetúlio <strong>de</strong>ixou a vida para entrar na História, osbrasileiros têm um gran<strong>de</strong> futuro pela frente.ABEL – Cuidado com a política. Aqui em casanão se fala em três coisas: política, futebol ereligião.ZEZINHO – Vamos falar <strong>de</strong> coisas realmenteimportantes. E eu?? On<strong>de</strong> é que eu entro nessahistória?


ANTôNIO – E qual é a gran<strong>de</strong> preocupação domeu cunhadinho? (Abraçando Zezinho)ZEZINHO – Tire esse montão <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> cima<strong>de</strong> mim. Eu quero é saber da lambreta. Agoraque você comprou o Simca, o que é que você vaifazer com tua lambreta?ANTôNIO – Ven<strong>de</strong>r, é lógico!ZEZINHO – Lógico? Você chama isso <strong>de</strong> lógico?ABEL (Repreen<strong>de</strong>ndo) – Zezinho!56ZEZINHO – Lógico seria dar a lambreta pra mim,pro teu cunhado, como presente <strong>de</strong> casamento!ANTôNIO (Rindo, <strong>de</strong>bochando) – Dar a lambretapra você? Essa é boa. Você pensa que dinheirocai do céu?ABEL – Ele pensa! Você acertou na mosca! É issomesmo o que ele pensa!ANTôNIO (Para Ana) – Sogrinha, estou à disposiçãoda senhora para provar mais um <strong>de</strong> seus<strong>de</strong>liciosos cafezinhos.ZEZINHO (Colocando música 09 na vitrola) – Umdia eu ainda me mato.


ABEL – Vocês sabem quanto é que está custandoo quilo do café? (Vai abaixar o som da vitrola)ANTôNIO – Vivemos em um gran<strong>de</strong> País! SãoPaulo comemora o IV Centenário. O Corinthiansé campeão paulista. E eu comprei o meu SimcaChambord. Isso é felicida<strong>de</strong>!CEnAAntônio e Abel no sofá. Ana preparando o café.Anabela entra <strong>de</strong> repente, com uniforme <strong>de</strong>Curso Normal, joga os livros sobre a mesa, displicente,saudando todos com vários “oi”, maisconcentrada num exemplar da revista Cinelândia,lendo interessada uma notícia, enquantovai ao forno pegar seu prato feito. Acomoda-seà mesa, comendo e lendo. O noivo se aproximacom ar <strong>de</strong> quem tem surpresas a contar.57ANTôNIO – Ratinha... Adivinhe a gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>.ANABELA – Chegou tar<strong>de</strong>. Todo mundo na escolajá está sabendo. Quem ganhou o concurso <strong>de</strong>Rainha do Rádio foi a Isaurinha Garcia.ANTôNIO (Contrariado) – Não é disso que estoufalando. (Anabela continua a comer, <strong>de</strong>sinteressada)


ANABELA – Mamãe, a barra do meu vestidorasgou.ANTôNIO – A gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>, que vai fazervocê <strong>de</strong>smaiar, é que eu comprei um Simca.ANABELA (Suspen<strong>de</strong> a refeição, maravilhada)– Um carro? Você comprou o nosso carro?ANTôNIO – Nada mais nada menos que um ultrapossanteSimca Chambord.ANABELA (Pulando no pescoço do noivo)– On<strong>de</strong>? On<strong>de</strong> é que ele está?58ANTôNIO – Vai chegar no fim do mês. 65 milcruzeiros à vista. Estofamento <strong>de</strong> plástico, motoraron<strong>de</strong>, pneus brancos novinhos.ANABELA – Innn! (Interjeição <strong>de</strong> satisfação)Quando as meninas souberem! (Encantada) AMaria Lúcia, principalmente. Todo o Curso Normal,em peso, vai morrer <strong>de</strong> inveja!ANTôNIO – E eu já <strong>de</strong>cidi. Vamos casar imediatamentee viajar para Santos. Já pensou, ratinha?Lua-<strong>de</strong>-mel na praia?ABEL – Dizem que a Praia Gran<strong>de</strong> é uma beleza!ZEZINHO – Oba! Eu também vou!


CEnADurante os diálogos, Zezinho está sempre aumentandoo volume da vitrola e o pai abaixando.Zezinho também está sempre abrindo e fechandoa gela<strong>de</strong>ira, em busca <strong>de</strong> nada. Ana serve cafépara todos, menos para os filhos.ANA – Você vai é para o quarto <strong>de</strong> dormirmais cedo, isso sim. (Para Antônio) Ó o “café,filho”!ANABELA – Mas eu não quero me casar ainda.(Falando para si, distraída) Eu ainda sou moça.Tenho toda uma vida pela frente.59ANTôNIO – É justamente por você ser moça que<strong>de</strong>vemos casar. Casar muito tar<strong>de</strong> não dá certo.O senhor não concorda comigo, sogrinho?ABEL (Para Anabela) – Verda<strong>de</strong> seja dita. Suamãe se casou com apenas 16 anos.ANA – É... Belo exemplo. Basta ver o estado emque estou. Na minha opinião, Anabela tem todaa razão. Ela ainda precisa terminar o curso Normal.E ainda tem toda a vida pela frente.ABEL – Besteira. O importante para a mulhernão é o estudo, mas o casamento.


ANTôNIO (Para Anabela) – Seu pai sabe o que fala.ANA – Eles ainda nem têm casa montada. E oenxoval não está pronto.ABEL – O enxoval não é problema. E aqui em casatem espaço. Depois do casamento eles po<strong>de</strong>mmorar aqui.ZEZINHO (Para Antônio) – Se você quiser eu façonegócio. Eu te cedo o meu quarto e você me dáa lambreta.ANTôNIO – Moleque insistente! (Para Anabela)Ratinha, o que é que preocupa você?60ANABELA – Eu só tenho 18 anos!ANTôNIO (Carinhoso) – E é linda!ZEZINHO (Puxando o rabo-<strong>de</strong>-cavalo da irmã) – Etem um rabo-<strong>de</strong>-cavalo que é uma gracinha!ANABELA (Gritando) – Largue meu cabelo senãote mato. (Voz baixa, preocupada) Eu aindatenho toda a vida diante <strong>de</strong> mim. E se eu casareu fico feia.ABEL – Mas, minha filha, quem é que disse queo casamento <strong>de</strong>ixa a mulher feia?ANABELA (Chorosa) – Olha só a mamãe, em queestado ficou.


ABEL – Minha filha, também não exagere. Elatem toda a razão. E se eu estou neste estado é porsua culpa. Nem posso comprar um vestido novo!Não tenho tempo nem <strong>de</strong> colocar maquilagem,sou uma mulher que não tem costureira, que nãotem pedicura, que não tem nada nesta vida. (Ameaçachorar, mas é abraçada por Antônio)ANTôNIO – Coitadinha da minha sogrinha. Mas<strong>de</strong>pois do nosso casamento a senhora vai ficarmais folgada para se cuidar.ANA – É... Mas se vocês vierem morar aqui vaiaumentar o meu serviço.ABEL (Abraçando a mulher) – Isso não é assuntopara conversar agora. Já está na hora <strong>de</strong> ir dormir.Crianças, po<strong>de</strong>m namorar sozinhos hoje,para comemorar a compra do carro. (Puxa Anapara o quarto) Zezinho, fique na sala, fazendocompanhia para sua irmã.61ZEZINHO – Eu, sempre eu. Serei eu, por acaso, oguardião da minha irmã?CEnASom: Abel não respon<strong>de</strong> e sai com Ana. Zezinhovolta à vitrola e coloca a música 05. No sofá,


Antônio coloca um braço nos ombros <strong>de</strong> Anabela.A música ao fundo, volume baixo. Zezinhoouve, compenetrado, <strong>de</strong> vez em quando inspecionandoos dois. Anabela está com ar distante.Antônio dá beijinhos.ANTôNIO – E então? Como é que foi <strong>de</strong> aulahoje?62ANABELA – Tive latim. O<strong>de</strong>io latim. Por que éque eu tenho que saber latim? Por acaso, pra serartista <strong>de</strong> cinema, eu preciso saber latim? O queé que o latim tem a ver comigo? Papai, por acaso,apren<strong>de</strong>u latim? Mamãe, por acaso, apren<strong>de</strong>ulatim? E eu? Pra que é que vai me servir o latim?Lana Turner sabe latim? Marilyn Monroe sabelatim? Nenhuma estrela <strong>de</strong> cinema teve queapren<strong>de</strong>r latim. Você já pensou se a Inalda <strong>de</strong>Carvalho, pra ser eleita Miss Cinelândia, tivesseque falar latim?ANTôNIO – Chega! Chega pelo amor <strong>de</strong> Deus!Vamos falar do meu automóvel que é muitomais importante.ANABELA – Sábado vou estrear um vestido novo.Você vai cair <strong>de</strong> costas.ANTôNIO – Por quê?


ANABELA – Porque é tomara-que-caia. Mamãejá está acabando.ANTôNIO – Eu já disse que não quero que vocêuse vestido <strong>de</strong>cotado. Isto daqui não é capital.É interior. Todo mundo vai comentar.ANABELA – Ótimo. É justamente o que eu quero.Que todo mundo comente. Nasci para ser famosa,admirada e comentada. E eu não quero mecasar agora porque ainda tenho um caminho <strong>de</strong>glória pela frente.ANTôNIO – Você está maluca. E a sua mãe estámaluca também.63ANABELA – Ah, é? Vou contar pra mamãe o quevocê disse. Olhe, é bom que você saiba <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jáuma gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong>. Eu não pretendo enganarvocê. (Música 06, ao fundo) Escrevi uma cartapara o Rio <strong>de</strong> Janeiro me candidatando ao concurso<strong>de</strong> Miss Cinelândia. Se eu for classificada,vou ter <strong>de</strong> viajar para o Rio. E se eu ganhar oconcurso vou ser estrela <strong>de</strong> cinema e viajar paraa Europa. Portanto, eu não posso me casar comvocê. Principalmente agora, quando um novomundo se abre para mim.ANTôNIO – Você está maluca.


ANABELA – Então mamãe também está. Ela sabe<strong>de</strong> tudo e me apóia.ANTôNIO – As duas estão malucas.ANABELA – Vou contar pra ela.ANTôNIO – E o seu pai? Ele está sabendo <strong>de</strong>ssabrinca<strong>de</strong>ira?ANABELA – Papai é como todos os homens. Nãosabe e discorda.ANTôNIO – Eu vou contar pra ele.64ANABELA – Eu não quero que ele sofra, mastenho que seguir minha vocação e meu <strong>de</strong>stino.Vou lutar <strong>de</strong> todas as formas para alcançar osucesso que almejo.ANTôNIO – Você está falando como se já fossea vencedora.ANABELA – Eu serei a vencedora. Não é que euseja exibida, como algumas amigas que tenho,que são invejosas, que falam pelas minhas costas,que eu sei muito bem, porque tem gente que meconta. Elas pensam que eu não fico sabendo, masé que eu sei que sou diferente, que sou bonitae talentosa. Todo mundo me acha parecida coma Debbie Reynolds.


ANTôNIO – Você não se parece com a DebbieReynolds <strong>de</strong> jeito nenhum.ANABELA – E você, muito menos com o FrankSinatra. Nem com o Tony Curtis. E nem, pelomenos, com o Jerry Lewis.ANTôNIO (Carinhoso) – Ratinha!ANABELA – Eu não gosto que você me chame<strong>de</strong> Ratinha.ANTôNIO – Mas você é ou não é a minha Ratinha?(Ela amuada) Quem é que é a minhaRatinha? Quem é que é?ANABELA – Agora você me chama <strong>de</strong> Ratinha.Mas haverá um dia em que o Brasil inteiro mechamará <strong>de</strong> Miss Cinelândia!65ANTôNIO – Todos têm direito a sonhar. Eu tambémnão sonho em ser gerente das Pernambucanas?Eu respeito os teus sonhos. O meu é casarcom você. (Pausa) Quero que você me prometauma coisa.ANABELA – O quê?ANTôNIO – Você me ama?ANABELA – Você sabe que sim. Mas também amoo Frank Sinatra. Nunca te escondi isso.


ANTôNIO – Eu sei. Eu sei. É por isso que eu gosto<strong>de</strong> você. Pela sua honestida<strong>de</strong>.ANABELA – O que é que você quer que eu prometa?ANTôNIO – É o seguinte: vamos marcar a data docasamento. Se você for classificada no concursonós transferiremos a data. Se você não for classificada,aí nós nos casaremos imediatamente.ANABELA – Está bem. Se é assim que você quer...Só que, infelizmente para você, eu vou vencer.66ANTôNIO – Fica combinado que vamos nos casarna véspera do Natal.ANABELA – Mas eu vou vencer o concurso!ANTôNIO – Se isso acontecer, e eu espero queaconteça, nós nos casaremos no ano que vem.ANABELA – Não dá.ANTôNIO – Por que não dá?ANABELA – Porque terei inúmeros compromissos,nacionais e internacionais.ANTôNIO – Hum... Então fica combinado. Vésperado Natal.


ANABELA – Se você quer assim... Mas lembre-seque eu avisei.ANTôNIO (Abraça-a, com um beijo cinematográfico)– Minha Ratinha... Quem é o teu gatinho?ANABELA – Esse gatinho não vai comer estaratinha.ANTôNIO – Por enquanto... Por enquanto...ZEZINHO – Se você me <strong>de</strong>r a lambreta, eu facilito.CEnASom: Explo<strong>de</strong> a música 07. Iluminação <strong>de</strong> efeitofeérico. A música ce<strong>de</strong> lugar para o noticiário dorádio. Estamos na manhã do dia seguinte, commesa sendo posta para o café. Maria, a empregada,saracoteia <strong>de</strong> um lado para outro. Atrásdo rádio, o Speaker esbalda-se com as própriasnotícias.67SPEAKER – Chegou a Paris a atriz brasileira AgnesFontoura, que recentemente foi eleita a artistamais elegante do Brasil. Em cumprimento auma aposta, o cantor francês Georges Guetaryfoi recebê-la no Aeroporto <strong>de</strong> Orly, montado acavalo, com uma tocha na mão direita. Ah! Ah!


Ah! Esses franceses... (Lê) Na tosse, na bronquite eno resfriado, tome Rhum Creosatado – e veja o resultado!(Pausa) Uma notícia que nos chega agorado Vaticano. O Papa Pio XII nomeou o monsenhorGiovanni Montini para o arcebispado <strong>de</strong> Milão.Montini ocupava o posto <strong>de</strong> secretário <strong>de</strong> Estadoda Santa Sé. Enquanto isso, em Buenos Aires, continuaa crise entre Perón e a Igreja Católica.CEnAEntra Zezinho, bocejante. Senta-se à mesa. Mariaserve o leite.68SPEAKER – De Londres se informa...ZEZINHO (Interrompendo) – Cadê o meu Toddy?MARIA (Resmungando) – Cadê o meu Toddy?Cadê o meu Toddy? (Pega a lata e põe na mesa)SPEAKER (Pigarreando, para chamar a atenção)– De Londres se informa que Pequim não estaria,no momento, cogitando <strong>de</strong> invadir Formosa. Oprimeiro-ministro indiano, Nehru, teria obtidogarantias do próprio Chu-En-Lai. (Som da campainhada porta) O primeiro-ministro inglês,Sir Winston Churchill, recebeu 100 mil cartas etelegramas pelos seus oitenta anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.


CEnAZezinho abre a porta da rua. Recebe um telegrama.Assina um papel acusando o recebimento.O Speaker acompanha, interessado. Zezinho lêo telegrama.MARIA – O que é isso? É um telegrama?SPEAKER – A população <strong>de</strong> Campinas continuaintrigada com o caso <strong>de</strong> uma chuva <strong>de</strong> prata,que caiu recentemente <strong>de</strong> um disco voador quepor ali passava.ZEZINHO (Lendo) – Essa não! Agora é que a vacavai pro brejo.MARIA – Você não <strong>de</strong>via ler as coisas dos outros.Isso é coisa feia.69SPEAKER – Também foram vistos discos voadoresno céu <strong>de</strong> Porto Alegre.CEnAZezinho <strong>de</strong>ixa o telegrama sobre a mesa e recomeçaa comer.SPEAKER (Curioso) – O presi<strong>de</strong>nte Eisenhower<strong>de</strong>clarou, em Boston, que as perspectivas <strong>de</strong> pazsão hoje melhores do que antes.


ZEZINHO – Cadê o pessoal? (Speaker espera Mariarespon<strong>de</strong>r, mas ela ignora) Cadê o pessoal?(Berrando)MARIA – Não precisa gritar que eu não sousurda. Tua mãe foi na quitanda e teu pai já saiupro serviço.ZEZINHO – E a princesinha da casa? Ainda estána cama? (Recomeça a comer)70SPEAKER (Aborrecido, pigarreia) – E agora,anotem – eis o vosso purgante: Magnésia S.Pellegrino. A única que é efervescente. (Suspira,cansado) E agora a previsão do tempo. (Procuraum papel) On<strong>de</strong> é que está a previsão do tempo?(Procura, procura)MARIA – Agora eu quero silêncio que é a horada previsão do tempo.ZEZINHO – Po<strong>de</strong> ter certeza que o tempo vaiesquentar!SPEAKER – Antes da previsão, um lembrete.Neste Natal o melhor presente para ele ou elaé a caneta Parker 51, acompanhada por um luxuosotinteiro Parker Quink, a única tinta quecontém Solv-X.


CEnASurge Anabela, alegre, gritando “bom dia! bomdia para todos!” Speaker, apaixonado, ajeitao cabelo e também cumprimenta-a. Anabelasenta-se à mesa.SPEAKER – E agora, finalmente, as notícias reservadaspara as pessoas <strong>de</strong> fina sensibilida<strong>de</strong>.MARIA – E a previsão do tempo??SPEAKER (Especialmente para Anabela) – Asúltimas notícias e novida<strong>de</strong>s sobre o mundo dasartes! (Musiquinha)ANABELA – Ai, que bom! Parece que eu adivinho.Sempre chego na melhor parte.71SPEAKER – Em São Paulo a notícia mais importanteé a inauguração do novo <strong>Teatro</strong> MariaDella Costa, com a apresentação da peça O Cantoda Cotovia, que marca a estréia no Brasil dogran<strong>de</strong> diretor italiano Gianni Ratto. Por apenas44 cruzeiros, que é o preço do ingresso, vocêpo<strong>de</strong>rá ver a linda estrela Maria Della Costa noemocionante papel <strong>de</strong> Joana d’Arc.ANABELA – Um dia interpretarei Joana d’Arcmuito melhor que a Maria Della Costa!


SPEAKER (Apoiando) – Sem dúvida... Sem dúvida...Recomendamos também, no <strong>Teatro</strong> LeopoldoFróes, a comédia Sinhá Moça Chorou, dirigidapor Sérgio Cardoso, tendo no elenco os astrosLeonardo Villar, Nydia Licia e Carlos Zara.ANABELA (Notando o telegrama) – O que é issoaqui?MARIA – Chegou agorinha pelo correio.72SPEAKER – Mais uma sensacional apresentação<strong>de</strong> Elvira Pagã, a partir <strong>de</strong> hoje no <strong>Teatro</strong> ÍntimoNicette Bruno. Neste espetáculo você po<strong>de</strong>rá verum espetacular <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los e maillotes.ANABELA (Excitada) – Quem <strong>de</strong>u or<strong>de</strong>m paraabrir? (Lê, olhos arregalados) Fui classificada!(Começa a cantar e dançar, abraçando Zezinho,Maria e Speaker) Fui classificada!MARIA – Deixe ver! Deixe ver!CEnAZezinho indiferente. Speaker, vibrando, tambémquer ver.ANABELA – Eu sabia! Eu sabia! As meninas daescola vão <strong>de</strong>smaiar <strong>de</strong> inveja! Fui selecionada


para o concurso. Adivinhem todos quem será apróxima Miss Cinelândia!ANA (Entrando) – O que é que está acontecendopor aqui? (Coloca sacola <strong>de</strong> legumes sobrea mesa)ANABELA – Mamãe! Fui convocada. O telegramachegou! (Speaker aplau<strong>de</strong>)ANA (Olhando feio o Speaker) – Quem foi que<strong>de</strong>ixou esse rádio ligado? (Desliga. Speaker,protestando, <strong>de</strong>saparece) Eu sabia, minha filha.Eu sempre soube. Eu sempre confiei em você.(Abraços)ANABELA – Agora ninguém me segura. Sua filha,mamãe, rumo à fama e ao sucesso!73ANA (Emocionada. Lê telegrama. Mais abraços)– Eu sabia, minha filha, que você era a única dafamília com futuro.ZEZINHO – E o meu futuro é ser cafajeste.ANABELA – Mamãe, precisamos fazer um estudoda situação.ANA – Com o seu pai você não se preocupe.Deixa ele comigo. E o Antônio? Como é quevocê vai fazer?


ANABELA – Ele já concordou... Mais ou menos...Escuta. Nós duas temos que estar no Rio <strong>de</strong> Janeirono dia primeiro <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro. Já pensou?Eu estou entre as 40 candidatas finalistas!MARIA – E como vai ser? Vai ter <strong>de</strong>sfile e tudo?ANABELA – Primeiro vou ter que <strong>de</strong>sfilar em traje<strong>de</strong> passeio. E <strong>de</strong>pois com um maillot.ANA – O vestido já está pronto. O maillot compraremosno Rio.74ZEZINHO – Não tem nas Pernambucanas? É sópedir pro Antônio!ANABELA – Será que o papai vai ajudar? Vai dardinheiro?ANA – De qualquer jeito nós iremos. Não se preocupe,que eu tenho minhas economias. E se elenão concordar eu peço o <strong>de</strong>squite.ANABELA (Abraçando Ana) – Oh, mamãe, vocêé um anjo!ZEZINHO – “Puxa”! “Puxa” que dá resultado!ANABELA – Fique <strong>de</strong> boca calada que ninguémpediu a sua opinião.


MARIA – Esse menino é um capeta!ZEZINHO – Sou capeta, mas sou feliz, mais capetaé quem me diz.ANABELA – Vai ver se eu estou na esquina, vai.ANA – Zezinho, vê se não enche os picuás da tuairmã. Já fez os seus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> escola?ZEZINHO – Vocês prestam tanta atenção em mim,que ninguém percebeu ainda que estou <strong>de</strong> fériase já passei <strong>de</strong> ano. (Levanta-se) Só servem pra mechamar <strong>de</strong> cafajeste! O dia que eu me suicidarvocês vão ver! (Sai, batendo a porta)MARIA – Não liga pra ele. Ele só quer chamaratenção.75ANA (Eufórica) – Vamos provar o vestido! Já!(Retira-se. Anabela, que vai saindo também, ésegura por Maria)ANABELA – Que é que foi?MARIA – Eu preciso te contar uma coisa.ANABELA – Então fala. Fala logo!MARIA – Você não sabe da maior. Recebi umacarta. Uma carta, Anabela.


ANABELA – Uma carta? De quem?MARIA – Como é que eu sei? Não puseram assinatura.ANABELA – Anônima???MARIA (Pensa um pouco) – Não conheço ninguémcom esse nome. Mas <strong>de</strong>sconfio que seiquem escreveu.ANABELA – Quem foi? Fala, mulher. Fala <strong>de</strong>uma vez.76MARIA (Mostra a carta, tirando do bolso doavental) – Nem tenho coragem <strong>de</strong> falar. Leiavocê mesma.ANABELA (Lendo) – Meu doce-<strong>de</strong>-coco. Tenhote visto no footing da praça da igreja todo fim<strong>de</strong> semana. Também te vi sexta-feira na quermesseda praça. O teu vestido está curto porquepu<strong>de</strong> ver os teus joelhos, que são sedutores eme viraram a cabeça. (Pausa, chocada) Se vocême aceitar, eu topo fazer besteira com você,porque eu sei que você é solteira e já fez besteiracom o filho do sacristão. Não tenha medoda felicida<strong>de</strong>. Sou garoto, mas já sei dar prazer.Se você se interessar, use um lenço vermelho nopescoço no footing do fim <strong>de</strong> semana. Um beijo


no seu cangote. (Pausa) Sem assinatura. Mas quecafajeste! Que pouca-vergonha!MARIA (Indignada) – É ou não é? Sou uma <strong>de</strong>sgraçadamesmo. Empregada doméstica não égente. Todo mundo quer comer. Só porque agente é pobre, mo<strong>de</strong>sta e simples, os taradospensam que é só ir chegando e pegando.ANABELA – E você <strong>de</strong>sconfia quem escreveu?MARIA – Você está lembrada que você disse queia me dar aquele vestido vermelho que não usamais? Aquele – que está encostado no guardaroupa...ANABELA – Mas é claro que eu vou te dar. Hojemesmo. Agora me conte.77MARIA – Olhe aqui... (Tirando papel do bolso)Não é o mesmo papel?ANABELA – É... (Examinando) On<strong>de</strong> você achouisso?MARIA – Na bolsa <strong>de</strong> escola do Zezinho.ANABELA – Ca-fa-jes-te!!!MARIA – Cafajeste é pouco. Teu irmão tambémé um tarado. (Ana chama Anabela <strong>de</strong> longe.Maria sai <strong>de</strong> cena)


ANABELA – Po<strong>de</strong> ficar sossegada que eu voucontar tudo pra mamãe. Nós vamos colocar essemenino num reformatório.ANA (Entrando com o vestido nas mãos) – Nãoestá lindo? Não está <strong>de</strong>slumbrante?ANABELA (Agarrando o vestido) – Ai, está maravilhoso!Quero provar já, agora!CEnA78Anabela, esquecida da carta, tira a roupa, ficandosó <strong>de</strong> combinação. Começa a experimentar ovestido. Maria liga o rádio. O Speaker reaparece,excitadíssimo, falando sem <strong>de</strong>spregar os olhos<strong>de</strong> Anabela.SPEAKER – Qual a sua ida<strong>de</strong>? Qual o seu sexo?Não importa! Se você se sente fraca, abatida,sem apetite, sem energia, sem entusiasmo, useo Biotônico Fontoura, que já restaurou as forças<strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> brasileiros. Prefira o tamanhogigante, on<strong>de</strong> cada dose custa menos, e quevem acompanhado do folheto Jeca Tatuzinho,<strong>de</strong> Monteiro Lobato. Peça-o, ainda hoje, na farmácia<strong>de</strong> sua confiança.


CEnASom: Música 08. Anabela, vestida com o tomaraque-caia,faz evoluções pela sala. Speaker enxugao suor. Luz ambiente vai enfraquecendo, até<strong>de</strong>saparecer. A música continua, mesmo quandoa luz volta. Anabela, com o tomara-que-caia, estásentada no sofá com Abel. Ana e Maria (esta como tal vestido vermelho) estão na cozinha. Zezinho,numa ca<strong>de</strong>ira junto à mesa, toca sanfona.Antônio, em pé, braços cruzados, ar <strong>de</strong> irritação,olha em direção à rua, parado frente à janela. Amúsica <strong>de</strong>saparece <strong>de</strong> vez.ANTôNIO – O que é que a cida<strong>de</strong> vai falar <strong>de</strong>mim? Já imaginaram os comentários? Vou ficar<strong>de</strong>smoralizado. (Zezinho faz som <strong>de</strong> gozação)79ABEL – Zezinho, guarda essa harmônica. Agoranão é hora <strong>de</strong> estudar.ZEZINHO (Batendo o pé, irritado) – É sempre assim.Quando eu não estou estudando, reclama. Quandoeu resolvo estudar, reclama também. (Sai)ANA (Para Maria) – O que foi que aconteceu quea senhora ainda não foi embora? Que milagreé esse?MARIA (Inventando ativida<strong>de</strong>s na cozinha)– Nossa, dona Ana! Isso é jeito <strong>de</strong> me tratar?


Quando eu saio mais cedo, a senhora reclama.Quando eu resolvo ficar mais um pouco, reclamatambém.ANTôNIO – Eu não mereço ser <strong>de</strong>smoralizado <strong>de</strong>ssejeito. (Som gozativo, ao longe, <strong>de</strong> harmônica)ABEL (Gritando) – Pára com essa sanfona!ZEZINHO (Voz off) – Um dia eu me mato!!MARIA – Vou fazer um cafezinho pra vocês.ABEL – Se você está querendo aumento <strong>de</strong> salário,po<strong>de</strong> ir tirando o cavalinho da chuva.80MARIA – Vou fazer <strong>de</strong> conta que não ouvi.ANABELA – Na escola não tem problema. Jáconversei com a diretora e ela disse pra eu nãome preocupar. Que isso é uma honra para nossacida<strong>de</strong> e que eu posso fazer os exames nasegunda época.ABEL – Isso não vai prejudicar os seus estudos?Você tem certeza?ANA – E quando ela vai ter outra oportunida<strong>de</strong>na vida como esta?ANABELA – Paizinho... Po<strong>de</strong> ficar sossegado. Osenhor sabe que sou a melhor aluna da classe.O senhor viu na minha ca<strong>de</strong>rneta.


ANA – Você quer que ela acabe como eu?Som: Música 09, vinda do quarto <strong>de</strong> Zezinho.ABEL (Gritando) – Abaixa essa vitrola! (Zezinhoobe<strong>de</strong>ce) Estamos bem arrumados! Minha filha,você pensou bem no que você quer fazer? Essevestido <strong>de</strong>cotado...ANABELA – Paizinho... Eu não sou mais criança.ANA – Ela já é uma moça.ANABELA – A mamãe vai ficar o tempo todocomigo.ABEL – Mas você não conhece nem São Paulo.E o Rio <strong>de</strong> Janeiro, então? Dizem que é muitomais perigoso.81ANABELA – Não vai ter perigo nenhum. Eu emamãe estaremos juntas.ABEL – Eu não posso ir junto. Eu tenho o meu serviço.O jeito é você ir acompanhada <strong>de</strong> sua mãe.ANTôNIO – Quer dizer que o senhor consente?ABEL – Antonio, você viu que não há perigo. Amãe <strong>de</strong>la vai junto.


ANTôNIO – E isso é motivo <strong>de</strong> tranqüilida<strong>de</strong>?ANA – O que é que você quer dizer com isso?ANTôNIO (Para Abel) – As duas são muito parecidas.ABEL – O que foi, mulher? Você não reconheceum elogio?ANA – Se é um elogio, agra<strong>de</strong>ço. Uma mãe temquer ser amiga da filha.82ANTôNIO – A senhora sabe o que é o Rio <strong>de</strong> Janeiro?Uma terra <strong>de</strong> <strong>de</strong>pravados. Gente peladanas praias. Mulher <strong>de</strong> calça comprida. Mulherfumando cigarro no meio da rua. E boates. Boatesque não acabam mais!ABEL – Isso não! Que uma coisa fique bem claro,que isso eu não admito... Que minha filha entre<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma boate.ANTôNIO – Um amigo meu esteve no Rio e viuuma boate por <strong>de</strong>ntro. O senhor sabe o queacontece <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma boate? Pois bem...Ninguém sabe, porque fica tudo escuro. Aspessoas conversam e dançam no escuro. É umaescuridão total. E só moças que não têm famíliaé que freqüentam boates.


ANABELA – Agora chega! O que é que você estápensando que eu sou? Eu nunca na minha vidaentrei e jamais irei entrar numa boate! Eu nãosou uma perdida! Eu e a mamãe vamos participar<strong>de</strong> um concurso <strong>de</strong> gente fina, bem-educada.E vamos ficar no Hotel Glória, on<strong>de</strong> ficam osartistas. Está enten<strong>de</strong>ndo?ANTôNIO – E o nosso casamento? E o nossonoivado?ANABELA – Em primeiro lugar a minha carreira.MARIA (Servindo) – Olha o cafezinho!CEnA83Zezinho sai do quarto, dá uma olhada na gela<strong>de</strong>irae dirige-se à porta.ANABELA – É assim que você me ama? (Fingeque chora) É assim que você me quer?ABEL (Para o filho) – Aon<strong>de</strong> é que o senhorpensa que vai?ZEZINHO – Vou sair com a gang. Uma gang on<strong>de</strong>todo mundo tem lambreta, menos eu.ABEL – E o que é que a distinta gang vai fazer?


ZEZINHO – Serenata. Vamos fazer uma serenata.(Olha Anabela e canta) “Boneca cobiçada, dasnoites <strong>de</strong> sereno, teu corpo não tem dono, teuslábios têm veneno!”CEnAAnabela avança em sua direção. Ele corre, abrea porta e sai.ANABELA – Cafajeste!MARIA – Eu é que sei!84ABEL – A senhora não se meta em assuntos dafamília.ANABELA – Po<strong>de</strong> ser que essa seja a única chanceem toda a minha vida!ZEZINHO (Voz off, cantando) – “Se queres queeu sofra... é gran<strong>de</strong> o teu engano!”ANTôNIO – Por mim, a situação está resolvida.(Para Anabela) Você só pensa em você, ser artistaé mais importante que ser a minha esposa. Masnão pense que eu vou ficar aqui te esperandosentado. É bom que você não se esqueça que eusou consi<strong>de</strong>rado um dos melhores partidos dacida<strong>de</strong>! (Vira as costas e sai, batendo a porta)


ABEL – Antônio!ANA – Antônio!MARIA (Corre à janela e grita) – Antônio! Tãochamando!ANABELA – Que me importa? Em primeirolugar a minha carreira. Em segundo lugar osmeus estudos. Em terceiro lugar... mais tar<strong>de</strong>eu resolvo.CEnASom: Música 10. Escurece. Cortina fechada. Apresentadorà frente, solene, sob um spot, diante<strong>de</strong> microfone antigo.85APRESENTADOR – Hoje, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, estamosvivendo uma noite <strong>de</strong> festa. Já temos conoscoo resultado do Júri elegendo 10 finalistas entreas 40 candidatas selecionadas, uma das quaisserá a Miss Cinelândia l954! (Acor<strong>de</strong>s triunfais)E, diante do suspense <strong>de</strong>ste maravilhoso públicoaqui presente, anunciamos, com muita honra,as 10 finalistas do concurso: (Acor<strong>de</strong>s) do RioGran<strong>de</strong> do Sul, Srta. Lygia; do Distrito Fe<strong>de</strong>ral,Srta. Jeanette, Srta. Gina, Srta. Sônia Maria, Srta.Avany Maura, Srta. Myriam Persia e Srta. Norma


Bengell. E, finalmente, <strong>de</strong> São Paulo, Srta. Yvone,Srta. Olga, e Srta. Anabela. (Spot sobre Anabela,feliz, rodopiando. Ana, muito elegante, corre aabraçá-la) Uma <strong>de</strong>las será Miss Cinelândia 1954,que viajará, com acompanhante, para a Europa,via Panair, com a assistência integral da organizaçãonacional <strong>de</strong> turismo Avipam.CEnA86Volta música 10. Escurece. Cortina aberta. Maria,atarefada na cozinha. Zezinho zanzando entrea gela<strong>de</strong>ira e o sofá. Abel lendo uma carta paraAntônio, que está sentado, sério. Música 11.ABEL (Lendo a carta) – O Rio <strong>de</strong> Janeiro tem feitiço.Aqui ninguém se sente infeliz, infeliz, infeliz,como costuma dizer o Jacinto <strong>de</strong> Thormes.ANTôNIO (Irritado) – O que ela quer dizer comisso?ABEL – É bem verda<strong>de</strong> que existem uns cheiros<strong>de</strong>sagradáveis, uns buracos imensos nas ruas eum tráfego <strong>de</strong> arrepiar cabelo <strong>de</strong> pintacuda. Etambéelm, meu querido esposo, um calor <strong>de</strong> 40graus e problema <strong>de</strong> falta d’água.


CEnAA partir <strong>de</strong>ste trecho é Ana quem fala.ANA – Já fomos conhecer o Corcovado. Sentitontura com tanta altura. Nunca passei tantomedo na minha vida como no bondinho do Pão<strong>de</strong> Açúcar. Dá pra ver o Rio <strong>de</strong> Janeiro inteirinholá <strong>de</strong> cima. Já estou com sauda<strong>de</strong>s do friozinhoque faz aí. Demos uma volta pela praia <strong>de</strong> Copacabana,mas juro que não entramos. Nunca vitanta gente na minha vida. As mulheres estãousando um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> maillot que, Deus melivre, é uma pouca-vergonha.87CEnADesfila pela sala uma mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> maillot, paraêxtase <strong>de</strong> Abel.ANA – Uma in<strong>de</strong>cência. On<strong>de</strong> é que esse mundovai parar? O pior é que todo mundo finge quenão está notando. Uma vergonha. (Sai a mo<strong>de</strong>lo)E, agora, uma notícia maravilhosa: Anabela fezo teste cinematográfico com o gran<strong>de</strong> ator CyllFarney e foi muitíssimo bem. Eu é que tremia, <strong>de</strong>nervosa. Mas ela estava muito à vonta<strong>de</strong>.ANTôNIO – À vonta<strong>de</strong>? À vonta<strong>de</strong> como?


ANABELA (Representando) – Meu amor! Meuamor! Meu amor!CYLL (Representando) – Meu amor! Meu amor!Meu amor!CEnAAbraçam-se e beijam-se.ANTôNIO (Pulando) – Isso já é <strong>de</strong>mais!88ANA – Já ouvi comentários que Anabela, aAvany Maura e uma tal <strong>de</strong> Norma Bengell sãoas mais cotadas para vencer o concurso e ganharo título. Mas eu acho a Avany feia e a Normasem nenhum talento ou chance. Aposto comoa Anabela vai ganhar. Já pensou, meu querido?Nós na Europa? Anabela capa <strong>de</strong> revista? (Suspiro)Tive a honra e o prazer <strong>de</strong> conversar como Cyll Farney, que é um rapaz muito distinto.(Cumprimentando Cyll) Cyll Farney, o senhor éum moço muito distinto.CYLL – Dona Ana, a sua filha tem a quem puxar.As duas são uma doçura.ABEL – Isso já é <strong>de</strong>mais!ANA – Eu sei. Eu sei. Mas o senhor não sabecomo é difícil, hoje em dia, educar uma moça


no interior. Com tantos perigos por aí! Anabela,conte pro Cyll Farney que você está fazendo oCurso Normal e escreve poesias.CYLL – Mas ela também é poetisa??ANA – Recite alguma coisa <strong>de</strong> sua autoria, minhafilha.ANABELA – Ah, mamãe! Assim a senhora me<strong>de</strong>ixa sem graça.CYLL – Encantado. Por favor! Estou encantado.ANABELA – Está bem. Já que você insiste, eurecito. (Super-representa)89“As rosas <strong>de</strong>sabrocham por <strong>de</strong>sesperoAssim como a noite cai <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgosto.Mas, ao seu lado, sonho e acredito,Na esperança que nasce no horizonte”.CEnAImediatamente Cyll a agarra e beijam-se. Osdois saem.ANTôNIO – Se alguém me contasse eu não iriaacreditar!


ANA – Agora tchau que eu tenho que me vestirpara sair. As meninas vão ser entrevistadas pelagran<strong>de</strong> jornalista Zenai<strong>de</strong> Andréa. Vai sair naCinelândia, com fotografia e tudo! Um beijo afetuoso<strong>de</strong> sua esposa. Sinceramente, Ana. (Sai)ANTôNIO (Amargo) – Pelo jeito nunca mais voltaremosa ver as duas.ABEL – Ora, Antônio! Você se preocupa <strong>de</strong>mais.ANTôNIO – É capaz das duas irem diretamentepara a Europa.90ABEL – Deixe disso, rapaz. Não fique imaginandocoisas. Você <strong>de</strong>via estar orgulhoso pelo sucessoque sua noiva está fazendo. E <strong>de</strong>pois, eu conheçoas mulheres. Tudo isso é fogo <strong>de</strong> palha. Tudoisso passa. E agora, com licença, que eu tenho<strong>de</strong> sair. Sinta-se como se estivesse em sua própriacasa. (Sai)CEnAAntônio fica triste, quieto. Zezinho confere seo pai saiu mesmo e aproveita para acen<strong>de</strong>r umcigarro e ler seus gibis. Maria confere se Abelsaiu mesmo e aproveita para ligar o rádio. Surgeo Speaker, <strong>de</strong>sconfiado. Confere se Abel saiumesmo, antes <strong>de</strong> ser abruptamente <strong>de</strong>sligado.


SPEAKER – Prefiram os guarda-chuvas com armaçãoFerrini. Mas, antes da compra, verifiquem amarca na vareta. (Pausa) O governador eleito <strong>de</strong>São Paulo, senhor Jânio da Silva Quadros, estávisitando Portugal. Entrevistado pelos jornalistas,o homem da vassoura recusou-se a respon<strong>de</strong>rse seria realmente candidato à Presidênciada República do Brasil. (Pausa) De Hollywoodchega a notícia que a atriz Marilyn Monroe foiinternada com urgência no Hospital Cedros doLíbano, aon<strong>de</strong> chegou acompanhada do esportistaJoe Di Maggio, para uma pequena intervençãocirúrgica. Os fãs po<strong>de</strong>m ficar tranqüilos.As agências internacionais informam que nãoé nada grave. (Pausa) Eu era do contra... Era...Mas acontece que passei a tomar Sal <strong>de</strong> FructaEno ao <strong>de</strong>itar e ao levantar. Hoje posso dar even<strong>de</strong>r bom humor. Não seja do contra! TomeSal <strong>de</strong> Fructa Eno.91MARIA – O senhor aceita um cafezinho?ANTôNIO – Não, obrigado. Já estou <strong>de</strong> saída. Sóestou esperando acabar o noticiário. (O Speakerfaz um gesto <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento)SPEAKER – Duas novas estréias cinematográficasem São Paulo. No Cine Ipiranga a comédia ASogra, com Procópio, Jayme Barcellos e a estrelinhaEva Wilma. No Cine Metro estréia Salve a


Campeã, com Esther Williams e Fernando Lamas,com uma cena <strong>de</strong> ballet aquático com a participaçãoda dupla Tom e Jerry. Já pensaram? AEsther nadando com o ratinho Jerry?ANTôNIO – Que sauda<strong>de</strong>s da minha ratinha!SPEAKER – E eu, então?92ZEZINHO (Desligando o rádio. O Speaker, furioso,<strong>de</strong>saparece) – Vou fazer com você um teste<strong>de</strong> inteligência. Antônio, diga lá. O porquinhoconvidou a porquinha para ir ao cinema. Conheceessa?ANTôNIO – Não. E não me interessa.ZEZINHO – Diante do amável convite do porquinho,a porquinha perguntou: “O filme é bom”?(Pausa) O que foi que o porquinho respon<strong>de</strong>u?(Diante da indiferença <strong>de</strong> Antônio) O porquinhorespon<strong>de</strong>u: “O filme é ótimo. Quem trabalha éo Fernando Lamas”.ANTôNIO – Muito engraçado. Estou morrendo<strong>de</strong> rir.ZEZINHO (Sentando-se ao lado <strong>de</strong>le) – E o carrão?Quando chega?


ANTôNIO – Fim do mês.ZEZINHO – E a lambreta? Firme?ANTôNIO – Vai bem, obrigado.ZEZINHO – Já encontrou comprador?ANTôNIO – Isso não vai ser problema. Tem muitagente querendo.ZEZINHO (Assentindo) – O dinheiro é tudo navida. Tudo se torna mais fácil quando há dinheirono bolso.ANTôNIO – Sabe que você tem razão? Você poracaso já pensou em trabalhar?93ZEZINHO – Muito. Confesso que penso muitoneste assunto. O que falta na minha vida é umamulher que me estimule a progredir. Parece quevocê está passando pela mesma crise, não é?ANTôNIO – Engraçadinho!ZEZINHO – Já posso até ver nos luminosos doscinemas o nome <strong>de</strong> minha querida e talentosairmã. Anabela, Cyll Farney e Gran<strong>de</strong> Otelo, nasensacional película Paixão nas Selvas, inteiramentefilmada na floresta amazônica. É, meuestimado cunhado e amigo, o mar não está pra


peixe. Acho bom você começar a procurar outramulher. Eu já comecei a me preparar para ser oirmão <strong>de</strong> uma estrela <strong>de</strong> cinema. Quem sabe eutambém seja contratado para fazer parceria coma A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Chiozzo? No íntimo também tenhominhas ambições.ANTôNIO – Ah? Desistiu da lambreta? Vai serator também?ZEZINHO – Convites, certamente, não faltarão.MARIA (Aproxima-se, furiosa) – É bom parar <strong>de</strong>incomodar o Seu Antônio. (Mostra uma carta)Hoje eu vou ter uma conversinha com teu pai.94ZEZINHO (Pulando) – Me dá isso aqui!CEnAMaria escon<strong>de</strong> a carta no seio, fugindo.ANTôNIO – O que é isso?MARIA – Ah! O senhor não sabe?ZEZINHO – Cale a boca, estou avisando!MARIA – O mocinho tem mania <strong>de</strong> ser anônimo.O senhor não sabia?ZEZINHO – Azar o teu. Estou avisando. Não queronem saber. Po<strong>de</strong> fazer o que você quiser. Mas


<strong>de</strong>pois você que agüente. A minha vingança seráterrível! (Sai <strong>de</strong> casa, furioso)ANTôNIO – Mas, afinal, do que se trata?MARIA (Colocando as coisas sobre a mesa) – Olheaqui esse papel, essa caneta. E agora leia essascartas.CEnAAntônio começa a examinar o material, a ler acarta. Maria se afasta em direção à cozinha.ANTôNIO – Mas que danado! Foi ele quem escreveuesta carta? Os papéis em branco, a caneta...Tudo combina.95MARIA – Já escreveu cinco. Já <strong>de</strong>corei quatro.Uma mais in<strong>de</strong>cente que a outra. Mas eu voucontar pro pai <strong>de</strong>le. Eu <strong>de</strong>scobri que é ele, tenhoas provas, e ele está morrendo <strong>de</strong> medo. (Liga orádio. Música 12)ANTôNIO – Mas que menino mais sem-vergonha!CEnAConforme vai ouvindo a música e a letra, a cara<strong>de</strong> Antônio começa a brilhar maquiavelicamen-


te <strong>de</strong> satisfação, como que tendo uma idéiaformidável.MARIA – Agora o senhor me dá licença que eutenho que lavar roupa. (Sai)CEnA96Antônio, à mesa, com a caneta e o papel docrime, começa a escrever. Confere a toda hora aletra <strong>de</strong> Zezinho, comentando <strong>de</strong>talhes, dando aenten<strong>de</strong>r que está imitando a caligrafia do outro.Levanta-se, conforme a música acaba, pegaum envelope, fecha com a língua, com a carta<strong>de</strong>ntro. Sua expressão é <strong>de</strong>moníaca. A músicatermina e a luz <strong>de</strong>saparece.Som: Música 13.CEnAAo som da música, Anabela <strong>de</strong>sfila com seu vestidofrente à cortina. Pantomima com muita agitação.Efeitos <strong>de</strong> luz. De repente o Apresentadoraparece e a segura por um braço. Mostra umacarta e aponta a saída para a rua, expulsando-ado concurso. Ana surge <strong>de</strong>sesperada e seguraa filha, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo-a. Anabela chora, <strong>de</strong>ses-


perada. Todos <strong>de</strong>saparecem. Anabela, sozinhasob um spot, trêmula, triste, ofegante, chorosa,ao som da música 14. Escurece. Surge em cena,sentada, solene e elegante, a cronista Zenai<strong>de</strong>Andréa. Música 15 <strong>de</strong> fundo musical.ZENAIDE – Foi realizado finalmente o grandiosobaile da programação da vitória, no salãodourado do Hotel Glória, com a presença dojúri e <strong>de</strong>mais personalida<strong>de</strong>s em evidência nosnossos meios artísticos e sociais. Era chegado omomento <strong>de</strong>finitivo do concurso que promovemos,em combinação com o jornal O Globoe a Rádio Globo: a eleição <strong>de</strong> Miss Cinelândial954. Enquanto o júri <strong>de</strong>liberava, fechado emuma sala, o público aplaudiu entusiasmado anossa querida Marta Rocha, a nossa maravilhosaMiss Brasil, que veio da Bahia para encantar omundo e que injustamente <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser eleitaMiss Universo, injustamente, por causa <strong>de</strong>duas polegadas a mais. Coube então a RubensAmaral, através dos microfones instalados norecinto, anunciar que a escolhida... A eleita...A nova Miss Cinelândia 1954... Havia sido aencantadora Avany Maura, representante donosso Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Avany recebeu a faixada própria Marta Rocha, sob uma avalanche<strong>de</strong> aplausos. (Avany Maura surge, <strong>de</strong>sfilando)Em entrevista exclusiva para Zenai<strong>de</strong> Andréa,97


98que sou eu, Avany contou que sempre foi umagarota um pouco instrospectiva, uma sonhadora,como se costuma dizer. Às vezes, ainda empequena, ficava horas e horas quietinha no seucanto, com muitas bonecas, <strong>de</strong> quem sempre secercou. Nada <strong>de</strong> diabruras, <strong>de</strong> escalar árvores noquintal, <strong>de</strong> roubar a pitangueira do vizinho...Se, por acaso, a voz <strong>de</strong> soprano-lírico <strong>de</strong> suamãe se erguia na atmosfera doméstica, Avanyparava sua brinca<strong>de</strong>ira tranqüila e vinha escutar,maravilhada, o trecho musical. E aqui ficamos nossos votos <strong>de</strong> muitas felicida<strong>de</strong>s e muitosucesso para a linda Avany Maura, a nossa MissCinelândia 1954! (Avany sai <strong>de</strong> cena, gloriosa,seguida por Zenai<strong>de</strong>)CEnASom: Música 16. Casa <strong>de</strong> Anabela. Malas feitas,já arrumadas, perto da porta. Surge Maria, como vestido tomara-que-caia, presente <strong>de</strong> Anabela.Liga o rádio. O Speaker aparece, ao mesmotempo que Abel, que <strong>de</strong>sliga o rádio. O Speaker,bronqueado, sai.ABEL – Você sabia que a energia elétrica estácustando o olho da cara?


ABEL – É bom nem tocar nesse assunto. Agoravocês só <strong>de</strong>vem pensar na lua-<strong>de</strong>-mel e na novavida que têm pela frente.ANTôNIO (Ressabiado) – E o Zezinho? Algumanotícia <strong>de</strong>le?ABEL – Hoje <strong>de</strong> manhã telefonei para o Internato.O diretor disse que ele está bem.ANABELA – Em vez <strong>de</strong> Internato <strong>de</strong>via ser Reformatório.100ANA – Filhinha, agora não adianta pensar maisnisso. Também não quero que você guar<strong>de</strong> rancordo seu irmão.ANABELA – Quem escreve carta anônima, falandocalúnias, <strong>de</strong>via é ir pra ca<strong>de</strong>ia. Mesmo sendoirmão da gente.MARIA – Eu bem que avisei! Eu bem que avisei!ANTôNIO – De qualquer forma, tudo já passou.Agora é vida nova. Bola pra frente, que atrásvem gente.ANA – Toda experiência vale a pena. E, apesar<strong>de</strong> tudo, foi uma boa experiência.ANTôNIO – Vamos <strong>de</strong>ixar a tristeza <strong>de</strong> lado. Apartir <strong>de</strong> hoje, minha Ratinha, só quero ver vocêfeliz, sempre sorrindo.


ABEL – E o carro? Está em or<strong>de</strong>m?ANTôNIO – O mecânico disse que nós po<strong>de</strong>mosviajar sem medo.ANABELA – Dizer que eu era mulher falada, <strong>de</strong>vida fácil... (Choramingando) Dizer que eu já fizaborto! Eu, que nem sei direito o que é isso!MARIA – Eu bem que avisei!ABEL – Seu irmão sempre teve minhoca na cabeça.ANABELA – E o cafajeste jurou <strong>de</strong> pés juntos quenão havia sido ele! Jurou até em nome <strong>de</strong> Deus!Falso testemunho!101MARIA – Quem jura em falso vai pro inferno.ABEL – Não adianta lembrar isso toda hora.Agora, no internato, seu irmão vai apren<strong>de</strong>r ater juízo. Eu conheço aqueles padres!ANA – Agora esqueça tudo. Pense só no seumaridinho e como vocês dois vão se divertir naPraia Gran<strong>de</strong>! Estou morrendo <strong>de</strong> inveja. Não étodo mundo que passa a lua-<strong>de</strong>-mel na praia.(Suspira) A minha foi <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa.ANABELA – Depois <strong>de</strong> conhecer o Rio... Que meinteressa Santos?


ANTôNIO – Ratinha... No Rio você estava sozinha.Em Santos você vai estar comigo.ABEL (Abraçando os dois) – Vocês serão muito felizes,como eu e sua mãe temos sido até hoje.ANA (Sem convicção) – Enfim... Se essa é a vonta<strong>de</strong><strong>de</strong> Deus... Até logo, querida. Boa viagem.(Abraços e cumprimentos entre todos) Passeie ese divirta bastante. O casamento não é tão ruim,você vai ver.ANABELA – Quando a gente chegar, a gentetelefona.102ABEL – Não precisa telefonar não, querida. Ointerurbano sai muito caro <strong>de</strong> Santos para cá.ANTôNIO – Sogrinha... Um beijo.CEnAAtores improvisam abraços, beijos, cumprimentos,a <strong>de</strong>spedida. Vão saindo em direção àporta.ANTôNIO – Ah, meu sogro! Estava esquecendo.(Esten<strong>de</strong> chaves)ABEL – O que é isso?


ANTôNIO – São as chaves da lambreta. Queroque o senhor entregue ao Zezinho, <strong>de</strong>pois queele sair do internato. É um presente meu.ABEL – Depois <strong>de</strong> tudo que ele fez... Você aindaé capaz disso?ANTôNIO – Não sou homem <strong>de</strong> guardar rancor.Da minha parte ele está perdoado.ANABELA – Da minha parte... Nunca!ABEL – Siga o exemplo do seu marido, Anabela.O Antônio tem bom coração. A gente perdoa naTerra e Deus perdoa no céu.103MARIA (Mãos na cintura, <strong>de</strong>bochada) – Gozado,né? Empregada doméstica e pingüim <strong>de</strong> gela<strong>de</strong>iraé a mesma coisa. Ninguém se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>.CEnATodos riem e Anabela abraça Maria, brincandoentre si. Antônio abre a porta. O Speaker, semser chamado, surge atrás do rádio.SPEAKER – Anabela, escreva, Anabela! Man<strong>de</strong>notícias. Eu estarei sempre aqui. (Sai do rádio,rumo à porta)


ABEL – Quem foi que ligou este rádio?MARIA – On<strong>de</strong> é que você pensa que vai? Voltajá pra caixinha!SPEAKER (Voltando ao rádio) – A<strong>de</strong>us, Anabela,a<strong>de</strong>us! Eu quero que você saiba que eu semprete amei, eu sempre te amei!CEnA104Anabela e Antônio acenam e saem, juntos comAna.ABEL (Para Maria) – Quer fazer o favor <strong>de</strong> <strong>de</strong>sligareste rádio imediatamente?SPEAKER (Querendo que Anabela volte, gritando,acenando) – Tenho notícias do Frank Sinatra!Notícias da Debbie Reynolds! Acabaram <strong>de</strong>chegar. Anaba! Anabela!ABEL (Para Maria) – Vai <strong>de</strong>sligar ou não vai?SPEAKER (Desafiando os dois, correndo pela sala)– Não <strong>de</strong>sliga! Não <strong>de</strong>sliga! Eu também sou dafamília. Eu também tenho direitos. Não <strong>de</strong>sliga!Não <strong>de</strong>sliga!


CEnACaos, corre-corre, sai ou não sai, <strong>de</strong>sliga ou não<strong>de</strong>sliga etc.Som: Explo<strong>de</strong> a música 17. Stupid Cupid indicaos novos tempos que estão chegando, menosingênuos, embalados pelo rock-and-roll.105


Cartaz <strong>de</strong> Elifas Andreato para A Rainha do Rádio,São Paulo, 1976


A Rainha do Rádio


Capa do programa <strong>de</strong> A Rainha do Rádio, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1977


A Rainha do RádioMonólogo em ato único.Uma cida<strong>de</strong> no interior do país, próxima àcapital.Brasil, 1974. Ditadura militar. Censura rígida dosmeios <strong>de</strong> comunicação.Estúdio da rádio “esperança do interior”.Um relógio <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>, funcionando a partir das12h, no início do espetáculo.A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> fontana está falando aos seus ouvintes.109“Monstruos. Oh, monstruos, razón <strong>de</strong> la pintura,sueños <strong>de</strong> la poesia! Precipicios extraños, secretasexpediciones hasta los fosos <strong>de</strong> la luz oscura.Arabescos. Revelaciones. Canta el color con otraortografia y la mano dispara una nueva escritura.La guerra: la española.? Cúal será la arrancada<strong>de</strong>l toro que lhe parten en la cruz una pica?Ban<strong>de</strong>rillas <strong>de</strong> fuego. Una ola, otra <strong>de</strong>sollada.Guernica. Dolor al rojo vivo. Y aquí el juego <strong>de</strong>larte comienza a ser un juego explosivo” (pausa)Quem escreveu foi Rafael Alberti.. (Pega umenvelope e abre)


110Vamos continuar com a liquidação da correspondência.Vejamos... Quem escreve é José AntônioNédicci, resi<strong>de</strong>nte à Rua Institucional, número 5.(LÊ) Estimada “senhôra” A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Fontana. Oautor do verso “Um copo vazio está cheio <strong>de</strong> ar”é J. G. <strong>de</strong> Araújo Jorge. (Amassa a carta e colocaano cinzeiro) Sinto muito, senhor José AntônioNédicci. O seu esforço não <strong>de</strong>u em nada. O autordo verso não é J. G. <strong>de</strong> Araújo Jorge. É, isto sim,o renomado compositor brasileiro Gilberto Gil,aquele que foi obrigado a passar férias forçadasem Londres. O senhor lamentavelmente erroue per<strong>de</strong>u uma ótima oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ganhargraciosamente o long-playing “Refazenda”,<strong>de</strong> autoria do próprio, que muitos consi<strong>de</strong>ramimpróprio. (Cantarola) “Enquanto o tempo nãotrouxer seu abacate, amanhecerá tomate e anoitecerámamão. Abacateiro, sabes a que estoume referindo...” (Outra carta) Vamos liquidarmais uma. Alo, Alo, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>. Um beijo na pontado nariz. Obrigada. Numa hora como essa,uma manifestação <strong>de</strong> afeto sempre faz bem.“Assisto diariamente e sistematicamente ao seuprograma”. Sistematicamente? Não sei se issoé bom. Ficar sempre no mesmo Sistema. De vezem quando é bom mudar, para não estacionar.“A respeito do concurso da semana passada,tenho a <strong>de</strong>clarar que – dois pontos – quemescreveu aqueles versos que dizem o seguinte:– Há quem tenha entranhas <strong>de</strong> posse. Há quem


tenha essência <strong>de</strong> dádiva... – foi a sua amiga ÉlidaFalcão. (Pausa) Assinado: Carlos Labarca. Labarcaou Lamarca? A letra não está muito legível. Não,não, senhor Carlos Labarca, resi<strong>de</strong>nte à AvenidaCosta e Silva, número 5, Bar do “Ai, ai”. (Amassae joga a carta) O autor <strong>de</strong>sses versos não éa Élida Falcão. Quem os escreveu foi um padrechamado D. Hél<strong>de</strong>r Câmara, que toca em outraparóquia. O D. Hél<strong>de</strong>r é fogo. Até o Vaticano oacha indigesto. Em compensação, quando veio aoBrasil, a Rainha Elizabeth passou pelo Recife e fezquestão <strong>de</strong> cumprimentá-lo pessoalmente, com aschamadas autorida<strong>de</strong>s à volta, torcendo o nariz.Não sei se vocês sabem, mas é proibido escrever onome <strong>de</strong> D. Hél<strong>de</strong>r nos jornais. Também é proibidofalar <strong>de</strong>le nas rádios. Só porque luta pelos fracos epelos perseguidos é consi<strong>de</strong>rado um comunista. Émole?... O senhor per<strong>de</strong>u uma ótima oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> ganhar graciosamente o livro “O <strong>de</strong>serto éfértil”, <strong>de</strong> autoria do vigário em questão.111E agora vou ler duas das minhas preferidas. (Pegalivro e <strong>de</strong>clama) “Todos os amantes beijaram-sena minh’alma. Todos os vadios dormiram ummomento em cima <strong>de</strong> mim. Todos os <strong>de</strong>sprezadosencostaram-se um momento ao meu ombro.Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhose os doentes. E houve um segredo que medisseram todos os assassinos”.


Quem escreveu foi Fernando Pessoa, poeta portuguêsjá falecido, muito popularizado no Brasilpela cantora Maria Bethania.“Vamos, não chores... A infância está perdida.A mocida<strong>de</strong> está perdida. Mas a vida não se per<strong>de</strong>u.O primeiro amor passou. O segundo amorpassou. O terceiro amor passou. Mas o coraçãocontinua”. (Fecha o livro e, com violência, jogaocontra a pare<strong>de</strong>. Pigarreia, mais calma) CarlosDrummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>.112Liquidação final <strong>de</strong> correspondência. (Lê carta)Quem escreve é Yolanda da Silva, resi<strong>de</strong>nte à RuaPorto Alegre, número 5. “Querida A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Fontana.A poesia que diz – Se levo fortemente atadosos meus braços, ouço os pássaros, sinto o perfumedas flores... Quem me po<strong>de</strong> impedir essa felicida<strong>de</strong>,que me faz menos só e a marcha menos triste? – éda autoria <strong>de</strong> J. G. <strong>de</strong> Araújo Jorge.Mais uma ouvinte burra. Como é triste mulherburra! O autor da poesia não é esse poeta xarope.Será que vocês, apesar do meu esforço,não conseguem ler coisa melhor? Não, Yolandaquerida. O autor da poesia é um vietnamita chamadoHo Chi Minh. Um poeta oriental. Mas eu<strong>de</strong>sculpo você. A poesia oriental é praticamente<strong>de</strong>sconhecida neste País. Ainda mais se o autor écomunista, lí<strong>de</strong>r do Vietnã do Norte, e que fica


escrevendo poesias enquanto as bombas norteamericanasexplo<strong>de</strong>m sobre sua cabeça. Você,pra variar, per<strong>de</strong>u uma ótima oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ganhar graciosamente o livro “Poemas do Cárcere”,do autor em questão.E agora, chega <strong>de</strong> correspondência! Acabou acorrespondência. Nunca mais me escrevam, porfavor. E, mesmo se escreverem, não vai adiantarnada. As cartas ficarão sem resposta. Não queromais saber <strong>de</strong> cartas, concursos e respostas.(Fuma) “Algumas palavras me inspiram sentimentos:crisântemo, mambembe e isosmia. Venhaalmoçar domingo comigo. Para não comer sozinha,cozinharei crisântemos ao forno para você.Sentimento: solidarieda<strong>de</strong> para com os famintos.Moro num prédio mambembe. Minha conversa émambembe. Mas você vai gostar <strong>de</strong> ouvir o últimodisco <strong>de</strong> Roberto Carlos. Sentimento: alegria peloencontro <strong>de</strong> um gosto comum. Quanto à isosmia,meu bem, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> exclusivamente <strong>de</strong> você. Nafalta <strong>de</strong> flores, perfumes e <strong>de</strong>sodorantes... Sentimento:prazer pela integração tátil. No fundo,eu sou muito sociável. Vejamos você”.113A autora é Élida Falcão. Título da poesia: “CirandinhaObjetivada”. Pela última vez leio umapoesia da Élida Falcão, poetisa <strong>de</strong>sta terra, nestemeu programa, nesta rádio que não é minha.


114“Cirandinha Objetivada”... Um título afetado,mas charmoso. A Élida Falcão é uma mulher incrível,uma intelectual digna do maior respeito.Só que santo <strong>de</strong> casa não faz milagre. Nuncaconseguiu editar um livro. Nesta terra ninguémdá valor pra ela. O máximo que po<strong>de</strong> ambicionar,no plano do reconhecimento, é virar nome <strong>de</strong>rua, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morta. A Élida é autora <strong>de</strong> poesiasinacreditáveis, que eu nunca pu<strong>de</strong> apresentar avocês porque o Emílio nunca <strong>de</strong>ixou. Toda vez,antes <strong>de</strong> ler uma poesia no meu programa, eutenho que mostrá-la para o Emílio. O Emílio,como o próprio nome sugere, é o gerente, otodo-po<strong>de</strong>roso da rádio, aquele que faz e <strong>de</strong>sfaz,que permite ou não permite. É careca, bigodudoe diz que consegue dar cinco numa noite.Problema <strong>de</strong>le... Comigo nunca <strong>de</strong>u e nunca vaidar... Tipo seboso, sempre transpirando... Bom...Aí eu levo o script do programa na gerência,o Emílio examina e diz: essa po<strong>de</strong>, aquela nãopo<strong>de</strong>, essa po<strong>de</strong>, aquela não po<strong>de</strong>, essa po<strong>de</strong>,aquela você <strong>de</strong>ixa comigo que eu vou levar pracasa. Nojento. Baixo nível. (PAUSA) Mas, nestePaís, não são essas as características que sãoexigidas para um cargo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r? Gente boa égerente? Gente boa tem po<strong>de</strong>r? Claro que não.E os Emílios estão por aí, aos montes, espalhadosnas gerências <strong>de</strong> todas as organizações... Argh!Dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vomitar.


A Élida Falcão é autora <strong>de</strong> versos fortes. Umasubversiva, é o que ela é. Subversiva sim, pornográficanão. Corruptora <strong>de</strong> menores não.Um último exemplo. Prometo que é o último. Aúltima poesia da Élida Falcão.“O cerimonial do enterro começou. “Ne mequittes pas”, com Maísa. Conhaque, cigarro eorgulho ferido. A questão é saber agora... seressurjo melhor <strong>de</strong>ste amor. Para completar aelegíada, a cremação do número do telefone.Mas a coragem me falta... <strong>de</strong> chegar perto doca<strong>de</strong>rninho <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reços. Morto, serás umareminiscência metaliforme. E eu corro o riscoda dureza interior. Da mumificação do peito eda alma. E da prostituição maldita da vagina eda mão”.115A palavra não é exatamente vagina. É aquelaoutra, bem grosseira, que vocês estão pensando.Grosseira, mas natural. Todo mundo fala. Mas,por causa do Emílio, eu jamais po<strong>de</strong>ria falar.Troquem o verso na cabeça <strong>de</strong> vocês e vejamcomo fica muito mais bonito e mais forte. “E daprostituição maldita... da vagina... e da mão”.(Ri) Ah, meu Deus! Mundo mundo, vasto mundo!Há quanto tempo eu não me divertia assim,falando tudo o que eu quero, tudo o que eupenso, sem nenhuma censura. Prostituição damão vocês sabem o que é. (Ri) É masturbação.


Masturbação, vício solitário, prazer solitário,exercício que alivia nossas tensões, nossos tesões,nossos corações e aflições... Faz bem pra saú<strong>de</strong>e eu recomendo. É relaxante e revigorante. Eessa é minha opinião e ninguém tem nada comisso. Qual é o problema? É gostoso e eu gosto.Pronto. Pronto! Pronto!! E aproveito pra informarmais uma vez para um monte <strong>de</strong> cretinos ecretinas <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> que eu não sou ninfomaníaca,embora não tenha nada contra. Andaramespalhando essa fofoca por aí...116Bem, meus ouvintes, meus queridos ouvintes,como vocês já perceberam, está no ar o programa“Suspiros ao Meio-Dia”, uma visão femininado mundo das poesias, das artes e da intimida<strong>de</strong>.Quem vos fala, mais uma vez, é a sua A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>Fontana, uma mulher que não tem preconceitos,que não tem nada nesta vida, que um diajá foi professora e que hoje é só locutora, quenão tem ca<strong>de</strong>rneta <strong>de</strong> poupança, que ganha umsalário que é uma miséria, que mal dá pra viver,que não tem família, porque todos já morrerame estão no purgatório ou no inferno, que morasozinha, que tem um gato chamado Adalbertoe uma cachorra chamada Francisca. Aposto quea maioria dos meus ouvintes não sabia <strong>de</strong> tantasintimida<strong>de</strong>s a meu respeito. Nunca gostei <strong>de</strong>falar <strong>de</strong> mim. Nesse ponto sempre fui muito pro-


fissional. Nunca misturei vida particular com vidaprofissional, ao contrário do que tudo mundofaz aqui. E eu só fico olhando, que eu não souboba. Não, mentira. Eu sou boba sim.Nunca segui o conselho do Laing. Eles estão jogandoo jogo <strong>de</strong>les. Eles estão jogando <strong>de</strong> nãojogar um jogo. Se eu lhes mostrar que os vejo talqual eles estão, quebrarei as regras do seu jogoe receberei a sua punição. O que eu <strong>de</strong>vo, pois, éjogar o jogo <strong>de</strong> não ver o jogo que eles jogam.Há 25 anos que eu faço este programa. Bodas<strong>de</strong> prata, minha gente. Há 25 anos estou casadacom a Rádio Esperança do Interior, ZYK 7, ouzê-ípsilon-cacete, como todos dizem por aí. Hojequem manda sou eu! Hoje é o meu aniversário!Hoje eu sou uma mulher livre. Uma locutoralivre. Hoje eu posso falar <strong>de</strong> tudo. O programa<strong>de</strong> hoje é um novo marco na história radiofônica<strong>de</strong>ste País. Lá nos Estados Unidos, terra dosnossos patrões, o Orson Welles irradiou umainvasão <strong>de</strong> discos voadores. E eu, hoje, aqui,estou irradiando novas verda<strong>de</strong>s para vocês. Oque até agora era proibido, a partir <strong>de</strong> agoranão é mais. E vou corrigir tudo o que eu disseaté hoje. Po<strong>de</strong>m anotar!117Os tecidos da Casa da Amiza<strong>de</strong> são uma porcaria.Não comprem lá <strong>de</strong> jeito nenhum. Aquele italia-


118no do balcão é um mentiroso e um safado, querouba da freguesia e canta as empregadinhas,querendo comer todas. Quem não dá, ele põena rua. Ditador nojento e asqueroso. Os preçosda Drogaria Maluffi são escandalosamente caros.É melhor morrer do que comprar remédio naDrogaria Maluffi. Sua saú<strong>de</strong> fica uma fortuna.A família Maluffi veio das Arábias para roubarnosso povo, bajulando os po<strong>de</strong>rosos e as autorida<strong>de</strong>scom os seus quibes e as suas esfihas e assuas festinhas promíscuas. Abaixo o monopóliocomercial da família Maluffi! Não comprem noSupermercado Maluffi. Os preços são remarcados<strong>de</strong> hora em hora. O estoque é velho, épodre, é caro.Não ouçam a Rádio Esperança do Interior! Sim,minha gente, não ouçam! Esta rádio, como vocêssabem, também é da família Maluffi. Colocarcomercial aqui custa os olhos da cara. Os empregados,coitados, ganham salário <strong>de</strong> fome.Cambada <strong>de</strong> exploradores!E mais: atenção esportistas em geral e amantesdo futebol! Não assistam aos jogos do EsperançaFutebol Clube. O time é dominado pela famíliaMaluffi. O Nabi Maluffi, que vocês elegeram<strong>de</strong>putado, vive metido em maracutaias na Fe<strong>de</strong>ração,na Assembléia e lambe as botas dospo<strong>de</strong>rosos que dão as cartas neste País. Não com-


prem o jornal “Gazeta da Esperança”! Apesardo diretor do jornal ser o Padre Zequinha, que éum amor <strong>de</strong> pessoa, o jornal pertence à famíliaMaluffi. O noticiário é parcial e mentiroso, aten<strong>de</strong>ndosomente aos interesses da família, quedomina os meios <strong>de</strong> comunicação nesta cida<strong>de</strong>,que cai <strong>de</strong> pau nos políticos da oposição e só fazmédia com o Governo. Não acreditem em nada,em nenhuma notícia publicada, em nenhumanotícia aqui falada. Comprem somente jornaisda capital. Ouçam somente as rádios da capital.Abaixo o interior!!!(Som <strong>de</strong> telefone. A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> pára, surpreendida.O telefone toca novamente. Ela aten<strong>de</strong>)119ADELAIDE (Cínica) – Pois não? Rádio Esperançado Interior, às suas or<strong>de</strong>ns!VOZ OFF – A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>? Minha amiga? Como é quevocê vai?ADELAIDE (Desconfiada) – Quem é que estáfalando?VOZ OFF – É o seu amigo <strong>de</strong> todas as horas, quete quer muito bem.ADELAIDE – Padre Zequinha? Ah, Padre Zequinha!Me pregando trote? O senhor sabe que


eu acabei <strong>de</strong> falar o seu nome neste mesmoinstante?VOZ OFF – Sim, minha filha. Eu ouvi. Me avisaramdo seu programa. Acabei <strong>de</strong> ligar o rádio. Isto é:todos na cida<strong>de</strong> estão ouvindo.ADELAIDE – Que ótimo. Que notícia maravilhosa.Meu programa geralmente não dá ibope. Equase nunca um ouvinte me telefona.VOZ OFF – A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, eu preciso falar com você.ADELAIDE – Mas é claro! Po<strong>de</strong> falar, Zequinha.Além <strong>de</strong> padre, o senhor é amigo.120VOZ OFF – Não. Por telefone não dá. Eu gostaria<strong>de</strong> ir até aí, falar pessoalmente.ADELAIDE – Pessoalmente? Não. Hoje eu nãoestou aten<strong>de</strong>ndo ninguém pessoalmente. Hojeé um dia <strong>de</strong> festa. Minha festa particular. São25 anos, padre. 25 anos!VOZ OFF – Fico contente com isso. Meus parabéns,A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>.ADELAIDE – Po<strong>de</strong> ficar tranqüilo, padre. No meuprograma não vou dar sua ficha.VOZ OFF (Pausa) – A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, escute. É muitoimportante o que eu tenho pra te dizer.


ADELAIDE – Muito mais importante, padre, comtodo o respeito, é o que eu tenho para dizer.Afinal, o senhor tem um púlpito e uma platéiafixa para fazer os seus sermões. E eu, a únicacoisa que eu tenho, é um microfone. Olha, padre.Não fique com raiva <strong>de</strong> mim.VOZ OFF – Raiva <strong>de</strong> você? Não. Não fale assim.ADELAIDE (Cortando) – Deixa eu falar, padre.Hoje quem fala sou eu. Eu só queria, padre, queo senhor pusesse uma coisa em sua cabeça: omeu programa hoje é um programa verda<strong>de</strong>iro,sem mentiras, sem camuflações, sem pecado.Amanhã, se alguém falar <strong>de</strong> mim, o senhor po<strong>de</strong>garantir: A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> não estava bêbada. Estavaperfeitamente sóbria. A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> não estava louca.Estava perfeitamente lúcida.121VOZ OFF – A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, se você está sóbria e lúcida,quero que você preste atenção naquilo que euvou te dizer. E não me corte. Você tem que pararcom isso, agora, imediatamente. Você estácorrendo perigo. E eu estou indo aí...(A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> <strong>de</strong>sliga o telefone. Literalmente, arrancandoo fio. Jogando-o longe. Depois, calma,acomoda-se novamente frente ao microfone)Se há um homem que eu adoro nesta vida é oPadre Zequinha. Apesar daquela batina encardi-


da que ele não tira do corpo. Uma vez ele foi emcasa almoçar, a meu convite. Servi feijoada emlata, com uma farofa que eu fiz. Foi uma loucura.Tive que limpar a casa com aspirador. Haviafarofa pra todo lado. Quando ele faz sermão,tadinho, todo mundo senta à distância pra nãoficar respingado <strong>de</strong> cuspe. Ele só fala cuspindo,tadinho. O que é chato é que ele nunca maisvoltou em casa. Disse que teve disenteria. Só sefoi com a feijoada, que eu comprei no SupermercadoMaluffi. (Ri)122Sabem, pessoas? Eu não quero ser mais eu!Gostaria imensamente <strong>de</strong> ser rica em dinheiro epalavras. São minhas gran<strong>de</strong>s pobrezas. Nuncative dinheiro suficiente, nem palavras suficientes,para fazer e dizer tudo que quero. Mas não éassim que Deus faz e gosta? Primeiro a gentesofre. Depois morre e vai pro céu. Aqui é esteinferno. É uma tortura... outra tortura... torturasque não têm fim.Rádio Esperança do Interior. Suspiros ao Meio-Dia. São exatamente... (Olha o relógio) Meia-noitee uns quebrados! É isso aí, pessoas! Estamoshoje falando ao contrário. Quem é que não sabeque o horário do meu programa é ao meio-dia?Porém, hoje, excepcionalmente, muito mais queexcepcionalmente, estamos irradiando pela primeiravez à meia-noite. Isso é que é surpresa,


hem, pessoas? Um programa inédito, novo, <strong>de</strong>poesia, <strong>de</strong> arte e <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>. “O cerimonialdo enterro começou”. A Rádio Esperança doInterior já <strong>de</strong>via estar fechada e fora do ar. Masaqui estou eu, firme como um cipó, dando minhamensagem <strong>de</strong> carinho e afeto para vocês.Quero confessar para vocês que para mim issosignifica um <strong>de</strong>safio. Claro que é um <strong>de</strong>safio!Conseguir, sozinha, manter o entretenimento <strong>de</strong>vocês não é fácil, ainda mais neste horário, emque a maioria das pessoas está dormindo e outraparte assistindo televisão. Quem é que conseguemanter a pessoa interessada, quietinha, atenta,ouvindo rádio, hoje em dia? Se não bastasse acensura oficial, existem tantos ruídos na comunicação.Ruído é uma palavra da moda, usada porestudantes <strong>de</strong> comunicação, que pensam quesabem tudo mas não sabem nada. Por exemplo:se você está ouvindo rádio e alguém aperta acampainha, e você dispersa e vai aten<strong>de</strong>r, isso éruído. As mentiras que você ouve o tempo todoé ruído. A versão oficial dos fatos é um ruído. Osilêncio é um ruído. O medo é um ruído. Se vocêé uma mulher com mais <strong>de</strong> 40 anos, a sua vidaé um ruído permanente. Ainda mais se você ésolteira e sozinha, como eu. Se você é inteligente,tudo bem. As pessoas gostam da sua companhiaporque você sempre tem uma observaçãointeligente para fazer sobre qualquer assunto.123


124Se você é espirituosa, melhor ainda. As pessoassempre vão po<strong>de</strong>r rir à vonta<strong>de</strong> com as bobagensque você improvisa. A vida <strong>de</strong> uma mulher <strong>de</strong> 40anos, como se diz... uma balzaquiana... , numacida<strong>de</strong> do interior... não é fácil. Quais os lugaresque você po<strong>de</strong> freqüentar? Ou você fica sozinhaem casa, ouvindo ópera, ou fica ao telefonefofocando com a Élida Falcão, ou lendo “Memóriasdo Cárcere”, ou então você acaba indo,como sempre, ao único barzinho relativamente<strong>de</strong>cente da cida<strong>de</strong>, que é o Transa-Amazônica-Bar. Aí você escolhe uma mesinha, junto comoutras senhoritas da sua ida<strong>de</strong>, e fica bebendomartini. Se você tem alguma pretensão com relaçãoa alguma aventura amorosa, você tem queficar atenta, sem piscar, bem maquiada, comouma serpente em prontidão para dar o bote,na expectativa <strong>de</strong> um viajante em trânsito pelacida<strong>de</strong>, ou <strong>de</strong> um jogador <strong>de</strong> futebol carente <strong>de</strong>carinho e <strong>de</strong> afeto, solitário, com sauda<strong>de</strong>s dafamília que mora longe. Você só tem campo <strong>de</strong>relacionamento entre solteironas como você. Oscasais sempre rejeitam a companhia <strong>de</strong> pessoassolteiras. Ser solteira é ser marginalizada. Emcida<strong>de</strong> do interior, solteirona, bicha e artistasempre andam em grupo.A gente sente quando o tempo passa e quantopassa. Quando a gente vai ficando velha e feia,


quando, <strong>de</strong> repente, as pessoas vão olhandomenos para a gente. De repente você está numgrupo e você <strong>de</strong>saparece. Porque não olhammais para você.Ser solteirona, feia e burra, então, é a maior <strong>de</strong>sgraça<strong>de</strong>ssa vida. É o caso da Maria Pia Maluffi,diretora <strong>de</strong>sta rádio. Mas acontece que ela é rica.Acontece que ela po<strong>de</strong> fazer plástica. Viaja proExterior. Viaja pelo Brasil, pelas capitais, on<strong>de</strong>os homens cada vez mais estão trepando commulher velha, feia e burra a troco <strong>de</strong> dinheiro.E dinheiro é o que não falta pra ela. Pelo menosé o que todos comentam na cida<strong>de</strong>.Se alguém te dissesse que você tem poucas horas<strong>de</strong> vida, que daqui a alguns minutos você vaimorrer, que o câncer tá te comendo inteira por<strong>de</strong>ntro, <strong>de</strong> que atitu<strong>de</strong> extremada você seria capaz?Se te falam que você não tem escapatória,do que você seria capaz? (Pausa) Pois é, ouvintes.Este é o meu último programa!125(Barulho <strong>de</strong> pancadas ao longe, tipo arrombamento.Ela percebe)Num clima <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m e tranqüilida<strong>de</strong>, num horáriofora dos padrões <strong>de</strong> uma rádio do interior, euapresento para vocês o meu ÚLTIMO programa.Pela última vez... “Suspiros ao Meio-Dia”, mesmo


sendo meia-noite e uns quebrados. Indo ao arpela primeira vez neste horário, é também a suaúltima audição. Num clima <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m e tranqüilida<strong>de</strong>,como todo “programa nacional” que sepreze. “The last radio show”!Não, pessoas, eu não vou morrer não. Não sepreocupem. Esse câncer que eu citei é um exemplo,um tipo <strong>de</strong> doença que está corroendo atudo e a todos.126Pessoas, a<strong>de</strong>us! É tar<strong>de</strong>, eu já vou indo, eu precisoir embora. Até nunca mais! Vou mudar <strong>de</strong>cida<strong>de</strong>, porque esta já não me serve mais. Jácansei. Já levei porradas <strong>de</strong>mais.Mas eu não quero falar <strong>de</strong> tristezas. Aviso aosnavegantes: já paguei todas minhas dívidas,<strong>de</strong>spedi <strong>de</strong>centemente a tia Juscelina, minha fiele encantadora empregada há muitos e muitosanos, e o meu fusquinha, com todas as minhasmalas, está lá embaixo, na rua, pronto pra engatarnuma primeirona.A Élida Falcão, por uns dias, vai hospedar oAdalberto e a Francisca. Depois, quando eu meacomodar na minha casa nova, na capital, elesvoltarão para os meus braços. Élida! Quero, publicamente,dizer: muito obrigada!


Na realida<strong>de</strong>, este programa <strong>de</strong> aniversário nãofoi planejado. Na hora <strong>de</strong> ir embora eu disse paramim mesma: A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 25 anos frenteaos microfones da Rádio Esperança do Interior,falando para milhares ou centenas <strong>de</strong> ouvintes,sempre levando uma mensagem <strong>de</strong> carinho,afeto e otimismo, você seria capaz <strong>de</strong> ir emboraassim, <strong>de</strong> repente, sem se <strong>de</strong>spedir <strong>de</strong> ninguém?Aí eu mesma respondi: não, realmente eu nãoseria. Quem cala, consente. Aí resolvi e vim paracá. Sempre tive comigo as cópias <strong>de</strong> todas aschaves <strong>de</strong>sta prisão, para o caso <strong>de</strong> uma emergência,<strong>de</strong> uma necessida<strong>de</strong> qualquer. Aí usei aschaves. Aí fechei as portas. Aí coloquei a rádiono ar. E aqui estou eu. Pra dizer a<strong>de</strong>us. (Barulhoao longe. Ela acen<strong>de</strong> um cigarro) Chamem todosem casa. Acor<strong>de</strong>m os seus vizinhos. Que a cida<strong>de</strong>inteira ligue os rádios. Meu último programa,meu programa <strong>de</strong> aniversário, está no ar. Sim,senhoras e senhores, está no ar... (Espirra)127Não agüento mais o clima da região. Não agüentomais oito meses <strong>de</strong> frio e quatro <strong>de</strong> calor. Enjoei<strong>de</strong> tanta neblina, <strong>de</strong> tanto ar puro e forte, <strong>de</strong>tanta fruta madura, <strong>de</strong> tanta isosmia enjoativa.Não agüento mais este sol carrancudo e essascasas geladas. Chega <strong>de</strong> resfriado! Chega <strong>de</strong> reumatismo!Chega <strong>de</strong> levar escorregão nesses paralelepípedosúmidos. Chega <strong>de</strong> cumprimentar


tanta gente que eu sempre quis mandar à merda.Principalmente a família Maluffi, corruptos, exploradores!No verão eu fico com a bunda cheia<strong>de</strong> espinha. E, na cara, o nariz vermelho, comoum tomate. Esta cida<strong>de</strong> é uma árvore cheia <strong>de</strong>urubus, os <strong>de</strong> cima cagando nos <strong>de</strong> baixo. Chega<strong>de</strong> fofoca, <strong>de</strong> malda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição. Agora euresolvi ser anônima. Anônima, sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,na massa da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>.Chega <strong>de</strong> agüentar a Rádio Esperança do Interior!128Chega??? Chega uma pinóia! Eu não vou sairassim, com o rabo entre as pernas não, pessoas.Eu quero botar os pingos em todos os is. Depois<strong>de</strong> 25 anos, <strong>de</strong> luta, suor e encheção <strong>de</strong> saco,A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Fontana foi <strong>de</strong>mitida! Corte <strong>de</strong> pessoal<strong>de</strong>vido à reformulação da “política interna”.Vão todos pra puta que o pariu! Depois <strong>de</strong> 25anos, me chamam na gerência e falam: A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>,querida, o Instituto <strong>de</strong> Pesquisa Radiofônica, otal IPR, constatou em pesquisa junto ao públicoouvinte que os programas <strong>de</strong> poesia faliram. Osouvintes não querem mais poesia. A poesia morreu.Agora só interessa música pop, rock e noticiáriointernacional. O nacional, vocês sabem, éproibido. É por isso que estou me <strong>de</strong>spedindo,pessoas. Eu, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Fontana, fui <strong>de</strong>mitida.Ganhava um salário-miséria, não dava <strong>de</strong>spesaalguma, 25 anos ali, oh! (Gesticula) Cospem em


você. Pisam você. Você não vale nada. Chupamtudo o que você tem e, <strong>de</strong>pois, quando você estáseca, sem sangue, jogam você no lixo. E você quese vire. Porque isso é problema teu. Porque nãohá pieda<strong>de</strong>.Cambada <strong>de</strong> vampiros! On<strong>de</strong> é que está a maiorviolência, hem, pessoas? Em me jogarem na rua,do jeito que me jogaram, ou nos palavrões queestou vomitando agora? O que é que impressionamais você, amigo ouvinte? O que é quemais te incomoda, o que é que choca mais você?Bunda? Vagina? O palavrão que eu falo ou ainjustiça que eu sofro? (Pausa prolongada)Por uma questão <strong>de</strong> direitos autorais, e porquesou honesta, informo que essa última frase é<strong>de</strong> autoria da Élida Falcão. Faz parte <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>suas poesias.129Esperar lealda<strong>de</strong> do meu público? Não passomesmo <strong>de</strong> uma simplória. O amigo ouvinte nãopresta mesmo. Não vale nada. O amigo ouvinte<strong>de</strong>ve estar achando graça. Rindo, com sadismo.Pensando: “Quero que ela se foda!”Alguém quer me dar conselhos? Eu já recebi. OEmílio foi bonzinho. “Quem senta pra chorarnunca mais levanta. O maior remédio para curarmágoa é o trabalho”. E, pra encerrar a conver-


sa, me <strong>de</strong>u um cheque, com fundo <strong>de</strong> garantia,férias e décimo-terceiro. Uma gracinha. Corretíssimo!Junto com o cheque, a publicida<strong>de</strong> doBanco do Estado: “Só o trabalho po<strong>de</strong> produzirriquezas”. Trabalhei que nem burra a vida inteirae não produzi nenhuma porra <strong>de</strong> riqueza. Meupai é quem tinha razão: quem trabalha não temtempo <strong>de</strong> ganhar dinheiro. Morreu pobre, mascoberto <strong>de</strong> razão.Não sei se vocês sabem, mas a família Maluffitem um lema. Esse lema tá na rádio, no jornal,no supermercado e na fábrica: o impossível nósfazemos na hora e os milagres no dia seguinte.130Acontece que o impossível fica para o nossolado e quem se aproveita dos milagres são eles.Mas não são realmente uns gran<strong>de</strong>s filhos daputa??Mas eu sei muito bem qual é o motivo, ou umdos motivos. O motivo é a minha personalida<strong>de</strong>,o meu comportamento coerente e a inveja daspessoas. Se você é diferente, não tem escapatória.Sempre querem a tua pele. Fui várias vezesacusada <strong>de</strong> criar crise na rádio. De perturbaro ambiente <strong>de</strong> trabalho. Agora: criar crise porquê? Por reagir ao ser ofendida? Por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r osmeus direitos? Vou contar pra vocês uma históriaque é ridícula, mas bem ao nível das pessoas que


me ro<strong>de</strong>iam, e que serve perfeitamente comoexemplo. É a história do banheiro.Antigamente a rádio só possuía um banheiro.Ora, eu não podia usar banheiro que homemusa. E eu era a única mulher da rádio. O pessoalfazia questão <strong>de</strong> mijar pelas pare<strong>de</strong>s eno contorno do vaso. Pinto <strong>de</strong> homem só tempontaria numa coisa. Mas, na hora <strong>de</strong> mijar, éuma <strong>de</strong>sgraça. Homem só sabe mijar nas laterais.Um nojo! Um nojo! Como é que eu ia sentar novaso? Não ia, claro. Tinha que sair daqui <strong>de</strong>ntro,<strong>de</strong>scer a escada e ir fazer minhas necessida<strong>de</strong>sno banheiro da vizinha.Aí o Emílio falou pra mim: a senhora está querendoum vaso só para a senhora? Isso não temsentido. Por que a senhora pensa que é melhorque os outros?131O que não tem sentido – eu respondi – é euquerer me sentar, fazer minhas necessida<strong>de</strong>s,como uma pessoa civilizada, e sair com a bundamolhada com o mijo dos outros, me arriscandoaté a pegar uma gonorréia.Bom... Aí, né... Aí estourou a crise. Tanto fez,tanto se falou, tanto se xingou, que aí resolveramconstruir um banheiro feminino, aqui, atrásdo estúdio, com a <strong>de</strong>sculpa <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> repente,


a dona Maria Pia podia aparecer e querer usar.E, como a bunda <strong>de</strong>la é mais importante que aminha...Claro que a Maria Pia nunca usou. Ela nuncaapareceu por aqui!Aí ficou todo mundo na expectativa, esperando ahora da inauguração. E eu segurava, mas não ia.Tinha gente que chegava para mim e gozava:Como é? Quando vai inaugurar?132Resolvi ignorar. Quem é rainha não dá trelas àralé!Abri a porta e entrei. Fechei a porta e sentei.Quando eu olho pra frente, dou <strong>de</strong> cara comum cartaz, escrito com tinta vermelha: o peidoé o suspiro <strong>de</strong> um cu magoado.Ha, ha, ha! (Tom <strong>de</strong> protesto) Pornografia barata,com o intuito <strong>de</strong> me escandalizar, <strong>de</strong> meagredir, <strong>de</strong> me provocar. O que foi, então, queeu fiz? Armei o escândalo que eles queriam. Armeium escândalo nesta rádio que não tinha nempor on<strong>de</strong>... O Emílio falou: Não se melindre comisso. É brinca<strong>de</strong>ira do pessoal. Nós, brasileiros,temos muito senso <strong>de</strong> humor. Por que transformarisso num caso <strong>de</strong> segurança nacional? Em


todo caso, vou nomear uma sindicância para<strong>de</strong>scobrir quem foi.Claro que a sindicância não <strong>de</strong>u em nada. E a históriamorreu aí? Na semana seguinte, um novocapítulo. Sento no vaso, olho pra frente e dou<strong>de</strong> cara com nova pérola: o peido é um arrotoque não achou o caminho da boca. O pessoal émuito criativo. Não tive dúvidas. Armei outrobafafá. O Emílio me chamou na gerência: DonaA<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, ainda que mal me toque, a senhoraestá fazendo tempesta<strong>de</strong> em copo d’água. Quemsemeia vento colhe tempesta<strong>de</strong>.“Se o senhor está insinuando que aqui <strong>de</strong>ntroeu semeio vento, ou qualquer que seja a terminologiaque o senhor queira empregar, o senhoracabou <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar guerra. Vou escrever umacarta para o Maluffi pai, outra para o Maluffifilho, outra para a dona Maria Pia, <strong>de</strong>nunciandoo ambiente <strong>de</strong> <strong>de</strong>pravação aqui <strong>de</strong>ntro”.133Bom... Aí pra quê, né? Aí ganhei um inimigo.O Emílio passou a querer me ver morta. Todomundo me rotulou <strong>de</strong> subversiva. E essa política<strong>de</strong> colocar rótulos, num ambiente <strong>de</strong> trabalho, éuma forma <strong>de</strong> guerrilha, <strong>de</strong> menosprezo.Eu não escrevi porra <strong>de</strong> carta nenhuma, mascutuquei a onça com a vara curta. Na semana


seguinte, um novo capítulo. Sento no vaso,olho pra frente e dou <strong>de</strong> cara com a <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>irae criativa pérola: o arroto é um peido que nãoachou o caminho do cu.134Foi então que eu percebi. Foi então que eu entendi,finalmente, todo o processo. Estavam, calculadamente,pacientemente, montando uma armadilhapara mim, na expectativa <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> explosão,<strong>de</strong> uma reação <strong>de</strong> minha parte que fosse irreparável,que fosse imperdoável. Se eu reagisse à altura,eles teriam motivo para me <strong>de</strong>spedir na hora. Insubordinação,indisciplina, subversão, <strong>de</strong>srespeito àhierarquia, <strong>de</strong>safio à or<strong>de</strong>m, à segurança nacional,ou qualquer coisa assim. Aí eu <strong>de</strong>cidi!E fiquei quieta. Quieta no meu canto, semprotestar, sem abrir a boca. Mas, com ou sembanheiro, eu já havia cavado minha cova. Aspesquisas <strong>de</strong>cretaram a morte da poesia. Já quea tortura física e psicológica não havia surtidoefeito... a poesia estava morta. As botinas dagrossura pisaram na poesia. E aí encontraramjustificativa para me <strong>de</strong>spedir.Mas o verda<strong>de</strong>iro motivo da <strong>de</strong>missão, ninguémme engana, essa <strong>de</strong>sculpa eu não engulo, overda<strong>de</strong>iro motivo não é esse. Não é pesquisa<strong>de</strong> audiência, não é subversão, não é a falênciada poesia.


O verda<strong>de</strong>iro motivo – é bom que vocês saibam– e eu já não tenho mais nenhum motivo parater medo – o verda<strong>de</strong>iro motivo é o Vladimir. Ea cida<strong>de</strong> inteira sabe, todos ficam cochichandoquando eu passo, as mulheres me olham comódio, os homens com malícia, os adolescentescom <strong>de</strong>sejo...Só pra vocês começarem a enten<strong>de</strong>r: o Vladimiré filho da Dinorah. A Dinorah foi minha amiga<strong>de</strong> infância e coleguinha nos meus tempos <strong>de</strong>ban<strong>de</strong>irante. Depois afrescalhou-se, virou acara, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> me cumprimentar, entrou nohigh-society e virou madame. Faz parte, todosos anos, da lista das 10 senhoras mais elegantesda cida<strong>de</strong>. (Ri)135O marido da Dinorah é o Dr. Cyro, que é médico,ginecologista, um senhor muito distinto, diretordo Lions Clube. Ele é leão, ela é domadora. (Tom<strong>de</strong> <strong>de</strong>boche)O Vlado, que é o Vladimir, é filho único do casal.A namorada do Vladimir, que eu quero se foda,é aquela nojentinha, a Sandrinha, aquela que sóanda <strong>de</strong> nariz empinado, filha do Maluffi <strong>Filho</strong>,que tem casa <strong>de</strong> praia em Angra.E agora, pra resumir a história, me respondam:E quem é a <strong>de</strong>pravada??? E quem é a corruptora<strong>de</strong> menores?? E quem é que tem que ser expulsa


da rádio?? E quem é que tem que ser expulsada cida<strong>de</strong>?Se fosse um velhote transando uma garotinha,todo mundo acharia muito natural e saudável.O garanhão comendo a gazela.Mas neste caso ninguém perdoa. Ninguémadmite que possa existir amor e que possa sersaudável o relacionamento entre uma mulherquarentona e um garoto <strong>de</strong> 16 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.136A socieda<strong>de</strong> subestima a garotada <strong>de</strong> 16 anos.Pensam que são anjos, puros, inocentes, <strong>de</strong>sinformados,corruptíveis? (Ri, com <strong>de</strong>sprezo)Hipócritas! Todos vocês! Hipócritas! (Acalma-see suspira)A gente se conheceu na piscina. O Vladimir é umhomem, mais alto que eu, um metro e oitentae pouco, campeão <strong>de</strong> natação, físico <strong>de</strong> Apolo.16 anos!Queria, porque queria, me ensinar a mergulhar,a boiar, a fazer pesca submarina na piscina, coisas<strong>de</strong>sse tipo.Dia <strong>de</strong> chuva. Piscina vazia. Só nós dois na escadinha.


Ele contava: um, dois, três, já!E nós <strong>de</strong>scíamos ao fundo, tipo brincando, disputandopara ver quem conseguia ficar maistempo embaixo d’água sem respirar.Lá embaixo, ele me puxava pelas costas, meabraçava por trás, eu escapava, não queria, nãoqueria mesmo, juro por Deus, empurrava “ele”e subia.Ele vinha atrás, com cara <strong>de</strong> santo, como se nãotivesse acontecido nada, com aquela boca linda,os <strong>de</strong>ntes perfeitos, brancos, aquele sorriso queaté hoje me tira o fôlego, fingindo que tudo eramuito natural, que eu não <strong>de</strong>veria ficar nervosa.“A água está fria, né? Vamos <strong>de</strong> novo?”137E eu ia.Quem não iria? Quem teria condições <strong>de</strong> dizernão? Não, não vou. E por que eu não iria? Agente não vai mesmo morrer um dia? Por queter medo <strong>de</strong> ser feliz, mesmo que essa felicida<strong>de</strong>seja proibida, con<strong>de</strong>nada, amaldiçoada?Adianta morrer e não ter vivido, por medo, porcovardia?Acho que foi minha admiração por ele e a malíciaque começava a nascer em mim, a tentação


e a excitação pelas coisas erradas, acho quetudo isso, e mais alguma coisa que não sei, seilá, fizeram com que eu concordasse com suasbrinca<strong>de</strong>iras...Estou teorizando <strong>de</strong>mais. Pra resumir: foi tesãomesmo!138Ah! Aí... lá embaixo – voltando à piscina – eleabaixava o calção... e eu sentia alguma coisaincrivelmente gran<strong>de</strong>, incrivelmente <strong>de</strong>sproporcional– para os meus padrões, porque não soutão vivida assim como muitos pensam – aquelacoisa encostando em mim, queimando minhapele como fogo.Eu ficava dura, imóvel, curiosa, excitada, morrendo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, com medo <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>r,em estado catatônico.Gente, que paixão! Entrei numa fase <strong>de</strong> insônia.Já não conseguia dormir mais. Fiquei com olheiras.Olheiras enormes. Cada dia mais fascinada,cada dia mais resolvida a me soltar, a concordar,a consentir.(Barulhos ao longe, <strong>de</strong> arrombamento)Todo mundo sabe que eu tenho em casa uma coleçãocompleta <strong>de</strong> discos <strong>de</strong> ópera, que compreipelo correio, com fascículos. Já emprestei vários


discos para o padre Zequinha, que também é umgran<strong>de</strong> admirador <strong>de</strong> ópera.Uma noite... sem que eu esperasse, adivinhemsó quem é que aparece em casa!O Vladimir... querendo ouvir os meus discos<strong>de</strong> ópera. Disse que não conhecia, que queriaconhecer, que ópera era muito importante, poron<strong>de</strong> ele <strong>de</strong>veria começar, qual ópera que <strong>de</strong>veriaouvir primeiro.Se a minha consciência doía, meu <strong>de</strong>sejo tornousemaior que o medo.Com aquele jeitinho encantador <strong>de</strong> adolescente,com toda a espontaneida<strong>de</strong> que é própria daida<strong>de</strong>, ele virava pra mim, no meio da “Traviata”!,e perguntava, com aquela cara mais lindado mundo: “Como é? Tá a fim <strong>de</strong> levar ferro?”139Gente, que baixaria!Ai, que baixaria mais excitante! Mas que cara<strong>de</strong> pau! Existe maior atrevimento? Isso é que éhonestida<strong>de</strong>! A espontaneida<strong>de</strong> típica <strong>de</strong> umadolescente.Eu já havia perdido minhas forças há muitotempo. Já não resistia mais. Deixava ele fazercomigo o que queria. E ele fazia.


Seu linguajar era uma beleza: “Como é? Quer quemolha ou vai a seco?”(Ri) Eu morria <strong>de</strong> rir e o chamava<strong>de</strong> estúpido, grosseiro e outros palavrões. Eele nem aí. Ria também... e mandava ver.Pois é, pessoas.A felicida<strong>de</strong> estava na minha mão. O único problemaé que a felicida<strong>de</strong> tinha 16 anos. E eu...um pouquinho mais <strong>de</strong> quarenta. E não po<strong>de</strong>.Porque não po<strong>de</strong>. Porque não po<strong>de</strong>. Porquenão po<strong>de</strong>. Porque não po<strong>de</strong>. Porque não po<strong>de</strong>.(Barulho ao longe)140Porque as crianças são inocentes. Os adultosé que são os <strong>de</strong>pravados, os corruptores. Ascrianças não. As crianças são frágeis, inocentes,submissas, impressionáveis, manipuláveis. Nós,adultos, somos os monstros, aqueles que vãopara o inferno, aqueles que vão para a ca<strong>de</strong>ia,pra ca<strong>de</strong>ira elétrica, pra tortura permanente.Hipocrisia... hipocrisia...Já perdi até a conta <strong>de</strong> quanto dinheiro ele pediuemprestado para mim. Não que precisasse. Maso pai regulava a mesada. A mãe, uma perua, nãosolta um tostão. E dinheiro, pra mim, não temnenhuma importância. Mulher na minha ida<strong>de</strong>tem que ser generosa, tem que ter a mão aberta,tem que dar muitos presentes.


Cara <strong>de</strong> menino. Jeito <strong>de</strong> menino. Conversa <strong>de</strong>menino. Mas que homem! Ele tem um peito...Ah, que peito! Aquilo não é um peito! É umaplanície! Lisa, infinita, sem pêlos. O espaço eratanto, que eu nunca sabia por on<strong>de</strong> começar. E,no meio do peito, duas tetas, duas tetinhas, duasrosáceas, vermelhas, salientes, suplicantes.Ah! Os adolescentes... e o perigo que representam!Depois... o tempo foi passando. Começamos a<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser alegres. Eu penso, remôo e pergunto:qual foi o momento, exatamente o momento,em que começamos a atrofiar nossa capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> alegria? Qual foi exatamente o momento emque começamos a nos sentir culpados?141Num ponto eu sou diferente das minhas amigas.Eu não dou crédito aos meus sentidos. Para mimnunca existiu amor à primeira vista e a expectativado prazer imediato. Eu nunca valorizei aquantida<strong>de</strong>, a insinuação e o apetite. Se eu voua um restaurante, eu nunca consulto o cardápio.Sei, <strong>de</strong> antemão, exatamente o que quero.As meninas, no Transa-Amazônica-Bar, ficamsonhando, discutindo e perguntando: por quenão amo? por que não amo? E aí concluem:porque não houve ebulição. Não havendoebulição não há amor. E ficam falando para as


pare<strong>de</strong>s, monologando uma com as outras, quenão houve amor porque não houve sintonia. E ànoite, aposto, sozinhas com o travesseiro, rezampara dormir, e o sono não vem, e elas ficandopensando em amor, em sintonia, em prazer, emorgasmo, em felicida<strong>de</strong>, em respeito... e o sononão vem, e elas ficando se remexendo <strong>de</strong> umlado para o outro, e o sono não vem, elas olhamo relógio, elas pensam no tempo... tem hora queelas pensam na vida e pensam na morte... e ficampensando na morte. E o silêncio... as horas quenão passam...142Todo dia, <strong>de</strong> manhãzinha, minha mãe batia naporta para me acordar. (Faz toc-toc na mesa)A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, acorda, diabo! (Toc-toc) Um minuto<strong>de</strong>pois quem batia era meu pai. (Toc-toc) Acorda,vagabunda! Tá na hora da escola! (Toc-toc)Não bata a porta da gela<strong>de</strong>ira! Não sabe fechara gela<strong>de</strong>ira com cuidado? Essa menina tá malcriada!Você não dá educação pra essa menina!(Toc-toc) A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, tão batendo na porta! Váaten<strong>de</strong>r! (Toc-toc) A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, saia do banheiro!Tá dormindo aí <strong>de</strong>ntro? (Toc-toc) O que essamenina tanto faz no banheiro? (Toc-toc) Precisaacabar com essa mania <strong>de</strong> ficar lendo romancena privada! (Toc-toc) Morreu aí <strong>de</strong>ntro? (Toc-toc)Por que tem que se trancar <strong>de</strong>ntro do quarto?Que segredos você tem pra escon<strong>de</strong>r aí <strong>de</strong>ntro?


(Toc-toc) Saia, diabo! Saia já! (Toc-toc ao longe,mais forte, diferente, misturando-se com o toctocque ela faz à mesa) A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, pare <strong>de</strong> sonharacordada e vá bater o apagador lá fora! (Toc-toc)Mamãe, <strong>de</strong>ixa eu entrar? (Pausa) Que é que vocêquer, menina? (Pausa) Deixa eu entrar? (Pausa)O que é que você quer? Seu pai está dormindo.Vá já pra cama! Essa menina não dá sossego!(Toc-toc) A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, foi você quem fez isso? Fui,fui eu! Você viu como ela enfrenta? Essa meninanão tem medo <strong>de</strong> nada. Essa menina precisaapren<strong>de</strong>r a ter medo, a respeitar os outros. Venhapra cá, já! Levante a saia! (Imita cintadas)Tome ! Tome! Tome! E agora – já <strong>de</strong> castigo!!!Vê se apren<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sgraçada! Uma menina quetem <strong>de</strong> tudo! Uma menina que não presta pranada! (Toc-toc)143É proibido isso! É proibido aquilo! É proibidoisso! É proibido aquilo!Estou enojada <strong>de</strong> tanta repressão!Chega! Chega <strong>de</strong> repressão!Elas não enten<strong>de</strong>m nada <strong>de</strong> amor! E eu nãoentendo também. Não estou querendo dizercom isso que eu entenda. Mas acontece que elasacreditam no amor, um negócio assim aparecendo<strong>de</strong> repente. Não aceitam o fato <strong>de</strong> que amor


e sintonia <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> planejamento. Porquebotaram na cabeça que amor não se planeja.Que é surpresa.Colocamos nossa felicida<strong>de</strong> ao sabor dos ventose dos tempos. Mas algumas coisas são planejadas!Vou passar o reveillon no mar e vou pagaro aluguel da casa. Mas não vou amar você porquenão houve sintonia. Porque meu cabelonão arrepia.144Como se o reveillon não tivesse data marcada.Como se a passagem não fosse reservada. Comose o pagamento do aluguel da casa não vencesse<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um prazo.Élida Falcão! Acredite em mim! Amor é meta...Amor não é meio...Po<strong>de</strong>mos morrer sem amor. Mas temos um consolo:o aluguel será pago no dia certo. E temos umgran<strong>de</strong> orgulho: passaremos o reveillon no mar.Se vocês querem saber, eu sou aquele tipo <strong>de</strong>pessoa que, quando procura um <strong>de</strong>terminadodisco numa pilha <strong>de</strong> 200, o disco está justamenteno 200º lugar. Se eu busco um garfo na gaveta,é certeza que o que vem é uma colher. Nuncaobtenho, na hora certa, aquilo que eu quero.


Mas eu vejo isso com bom humor.Sem bom humor, a gente enlouquece.Um dia eu vou segurar exatamente aquilo queeu quero. Você esten<strong>de</strong> a mão e segura o sonho.E o sonho é sólido, é real, é uma coisa viva. E aía solidão acaba.Vocês acham graça? Pois eu acho triste.Apesar que eu sou uma mulher que nunca tiveproblemas <strong>de</strong> solidão. A minha imaginaçãonunca me <strong>de</strong>ixa sozinha. Tô sempre pensando,imaginando, voando, passeando pra lá e pracá, pra cima e pra baixo. Viajando sempre paratrás, para o passado. Lembrando coisas. Ouvindomúsicas. Existe coisa mais gostosa que isso nomundo? Chegar em casa, morta <strong>de</strong> cansaço, <strong>de</strong>sapertartudo, cair no sofá, a luz meio apagada,um martini geladinho, um cigarro gostoso, umamúsica que é um tapete voador. Aquela tranqüilida<strong>de</strong>,aquela quietu<strong>de</strong>, aquele relaxamento...Faz com que a gente se sinta revigorada. Comvida. Com força. Livre... Aquela liberda<strong>de</strong> quevocê só consegue no teu refúgio.145A Élida tem mania <strong>de</strong> falar: no nosso tempo...Que “nosso tempo” porra nenhuma! No nossotempo não. O meu tempo é agora! Eu sou uma


mulher cheia <strong>de</strong> vida! (PAUSA) Eu sou uma mulhercheia da vida!(Barulho <strong>de</strong> invasão. De arrombamento. Vozesao longe. A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> coloca mais obstáculos frenteà porta)146Queridos ouvintes, o programa continua. Nãohá nenhum perigo. Eu estou sozinha aqui <strong>de</strong>ntro.Está tudo bem fechado. Esta noite a rádio éminha. Esta noite a rádio me pertence! Olha aí!A chance <strong>de</strong> um novo rótulo: A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Fontana,a terrorista! A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Fontana, a seqüestradorada rádio!Se quiserem entrar, vão ter que arrombar a portada rua. Já <strong>de</strong>vem ter arrombado. Mas agora vãoter que passar por essa porta!(Tira da bolsa um pequeno embrulho. Desembrulha-o.É um revólver) Todos vão ter que ouvir atéo fim. Hoje não há censura! Hoje quem mandasou eu!O amor compensa tudo. A aflição, o medo, ainsegurança, a estabilida<strong>de</strong>. Se vocês queremsaber, eu sinto uma tranqüilida<strong>de</strong> absoluta... eabsurda. Um <strong>de</strong>sprezo saudável. Uma corageme uma força que nunca tive.


A Rádio Esperança do Interior está apresentandoa última audição <strong>de</strong> “Suspiros ao Meio-Dia”. Eusó lamento ter que ir embora.Depois <strong>de</strong> moça fiquei sabendo que, quandocriança, eu tinha o costume <strong>de</strong> fugir e <strong>de</strong> meescon<strong>de</strong>r. Subia em cima do guarda-roupa e,<strong>de</strong>itada, ficava horas esperando que alguémsentisse minha falta. Ou então era sadismo, vonta<strong>de</strong><strong>de</strong> vingança, <strong>de</strong> ver a aflição dos outros meprocurando... Já tinha senso <strong>de</strong> humor.“Não se po<strong>de</strong> dizer que ela seja uma boa alunapara as matérias em geral, mas para as <strong>de</strong>scriçõese narrações tem uma imaginação muito fértil”.A Margarida, minha amiga, filha <strong>de</strong> gente rica,mostrava sua coleção <strong>de</strong> bonecas, gozandominha cara <strong>de</strong> inveja. Eu nunca tive bonecas emuito menos bonitas como aquelas. E <strong>de</strong>pois agente ia jogar pingue-pongue, eu olhando, commedo <strong>de</strong> entrar no jogo e não saber, com medo<strong>de</strong> não acertar a bola e per<strong>de</strong>r, com medo querissem <strong>de</strong> mim.147A Tia Eulália, que Deus a tenha, beijava minhaprima com afeto, dizendo que ela valia ouro. Eeu estudava e me <strong>de</strong>sdobrava, querendo provaraos outros que eu era melhor. Ia passar o dia nacasa <strong>de</strong>la e ficava estudando, só pra provocar


minha tia. “Assim que eu gosto, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>. Enquantoas outras brincam <strong>de</strong> céu-e-inferno vocêfica estudando”.148As colegas <strong>de</strong> escola não eram amigas. Eramconcorrentes que precisavam ser vencidas, <strong>de</strong>rrotadas.Isso é que me dava energia! (RI) Ah,Fellini, eu concordo com você. Confesso que,da mesma forma que você, eu também tenhonecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> oposição. Sempre tive. Preciso<strong>de</strong> alguém que me irrite. Preciso discordar <strong>de</strong>alguém, preciso da guerra, do sofrimento, dador. É <strong>de</strong>sse alimento podre que tiro a energianecessária para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o que faço, para ser oque sou, para ser o que resta <strong>de</strong> mim.Sempre fui a melhor aluna da classe. Só <strong>de</strong> raiva.Minha tia perguntava: o que você vai ser quandocrescer? Eu respondia: quero ser artista. Meu paise metia: vai ser artista coisa nenhuma. Artista,neste País, morre <strong>de</strong> fome.E eu, arredia, preferia brincar sozinha, com osbrinquedos que eu mesma inventava, brinquedossem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, que ninguém entendia, quesó eu compreendia, que ninguém enxergava,que ninguém podia criticar. “O que é que vocêestá fazendo, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>? Essa menina é rebel<strong>de</strong>.Não ouve conselhos <strong>de</strong> ninguém”.


Quando a cinta <strong>de</strong>scia, meu pai falava: isso é pravocê apren<strong>de</strong>r a fazer as coisas com atenção. Issoé pra você não ficar com a cabeça no mundo dalua. Isso é pra você prestar atenção quando osoutros falam!O Tigre foi uma das gran<strong>de</strong>s paixões da minhavida. Cachorro policial. Alguma coisa viva queeu podia amar, abraçar e esbanjar ternura. Queme compreendia e não cobrava nada. Que nãofalava, não me julgava, não me con<strong>de</strong>nava.Quando eu chegava da escola, corria para oquintal, ele latia e pulava. Comia a comida comos olhos para cima, me olhando com amor, comgratidão. Dormia no meu colo, enquanto euprocurava pulgas.149Uma tar<strong>de</strong>, cheguei da escola e ele não estava...Tigre! Tigre!...“Vai ver que você esqueceu o portão aberto eele fugiu”...Eu saí na rua, gritando e chorando, me sentindoculpada. Sempre me sentindo culpada.Só voltei à noite, os olhos vermelhos, o coraçãodoendo, uma dor insuportável.


“Vai ver que a carrocinha pegou”.“Nessa hora já virou sabão”.E <strong>de</strong>pois, lá em casa, e mesmo na escola, o pessoalcomentava: a A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> é muito introvertida.Eu fingia que não ouvia, envergonhada, semcompreen<strong>de</strong>r a palavra, mas adivinhando que<strong>de</strong>via ser alguma coisa muito feia, muito grave,que eu <strong>de</strong>veria disfarçar, que eu <strong>de</strong>veriaescon<strong>de</strong>r, que eu <strong>de</strong>veria guardar como umsegredo, para que ninguém mais percebesse...e soubesse...150Eu sei o que vai me acontecer. Eu sei o que vãofazer comigo. (Acaricia o revólver) Agora chega<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> mim. É hora <strong>de</strong> lavar a roupa suja.Vocês, malditos opressores, vão ver o que é bompra tosse.A Edna Guimarães, das Filhas <strong>de</strong> Maria, roubouo meu namorado, o Arthur, do Banco do Brasil.Nunca pensei que ela pu<strong>de</strong>sse agir assim. Encontravaa gente na rua e nem levantava os olhos,pra cumprimentar. Mas levantar a saia, bem queela soube.A Maria Pia Maluffi troca <strong>de</strong> chofer todo mês. Eos motoristas são contratados na capital, pra quenão haja fofoca. Só é contratado como chofer


aquele que passa no exame. E o exame ela fazna horizontal, no quarto <strong>de</strong>la.O Dr. Cyro é muito moralista, gosta <strong>de</strong> ajudar osoutros, fazer carida<strong>de</strong>, campanhas beneficentes,ouro para o bem do Brasil, marcha por Deus, pelafamília e pela proprieda<strong>de</strong>! Tem uma mulher nazona que tem um filho <strong>de</strong>le. A cida<strong>de</strong> inteirasabe, viu, Dinorah? Só você é quem não sabe.Vladimir, querido!, você tem um irmãozinho!Em compensação, Dr. Cyro, a Dinorah, quandovai fazer compras na capital, o Dr. Henrique,do Rotary Clube, também vai, no mesmo dia ehorário, só que em outro carro, pra disfarçar. Éo congraçamento do Lions com o Rotary!151O Dr. Henrique é muito bonzinho. Me <strong>de</strong>u umaplaquinha intitulada “A Prova Quádrupla doRotary”, sobre o que nós pensamos, dizemos efazemos. São quatro perguntas: é a verda<strong>de</strong>? éjusto para todos os interessados? criará boa vonta<strong>de</strong>e melhores amiza<strong>de</strong>s? será benéfico paratodos os interessados?... Pendurei a plaquinhano banheiro da rádio. O banheiro masculino.O Juvenal Macedo, aquele prepotente da CaixaEconômica Fe<strong>de</strong>ral, é impotente. O pau <strong>de</strong>le nãolevanta nem com alavanca. A Cristina quem mecontou.


O Lourival Vista, aquele prepotente do Instituto<strong>de</strong> Educação, é veado. Usa aliança, é casadocom aquela coitada da Guiomar, tem até umafilhinha... Só que é veado. Não que eu tenhanada contra os veados. Adoro veado. Não tenhonenhum preconceito contra os veados. A não serque seja um veado do tipo do Lourival, veadoenrustido, hipócrita, machista, mentiroso, rancorosoe revoltado. Esse sim é que é um veadomaldito, um veado perigoso.152Em compensação, o cronista social da Gazetada Esperança, o muito popular e afrescalhadoDodô, que todo mundo pensa que é veado, não éveado! Muito pelo contrário! É amante daquelaidiota da Gracinda, que é casada com o AlfeuMorato, aquele que, dizem, representa em nossacida<strong>de</strong> o Comando <strong>de</strong> Caça aos Comunistas.Estou esquecendo alguém? (Barulho perto) Ah,é claro, o Maluffi <strong>Filho</strong>, que tem fama <strong>de</strong> retardadomental. Mas isso é para inglês ver. Deretardado ele não tem nada. Aplicou um golpena praça muitos anos atrás e aplicou todo odinheiro na Suíça. Foi o pai, o velho Maluffi,quem teve que abafar tudo. O <strong>de</strong>legado, o juize o padre não abriram a boca. Todos são amigos.Todos são cúmplices. Esse é o tipo <strong>de</strong> genteque governa nossa cida<strong>de</strong>. Fora as sujeiras quea gente não sabe.


E o nosso querido prefeito, o Gabriel Alves? Éo representante em nossa cida<strong>de</strong> da TFP, amigoíntimo do Dr. Plínio. Fumou muita maconha najuventu<strong>de</strong>. Agora não fuma mais. Agora preferecocaína. Tem uma linda coleção <strong>de</strong> filmespornográficos em super 8 e l6 mm. E é taradopor lolitas virgens. (Barulho próximo. Ela colocanova barreira frente à porta) O Paschoal, o professor<strong>de</strong> filosofia, aquele que tem um <strong>de</strong>feitona perna, também é tarado. Somos todos unstarados! O Paschoal leva as alunas em casa etenta faturar todas em troca do que vai cair nasabatina. (Examina o revólver) Eu disse alunas?Os alunos também! Essa quem me contou foi oVladimir. Ele tentou pegar no pau no Vladimir.Que me importa? Que faça bom proveito.153A Jussara é lésbica! Coitada da Jussara! Já tentoucortar o pulso várias vezes. Deixem a Jussara empaz! Ela tem direito <strong>de</strong> ser lésbica! Que direitotem essa cambada <strong>de</strong> hipócritas em perseguira Jussara? Deixem a Jussara em paz! (Acariciao revólver)Que é que foi? Não posso falar? Estou proibida<strong>de</strong> falar? Só posso falar aquilo que a cida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ouvir? Aquilo que é permitido? Sou obrigada apedir antes licença para a Censura?Eu tenho muito mais coisas para falar! (Aflita)Que mais? Eu preciso me lembrar! (As vozes


estão do outro lado da porta) Eu vim aqui, naRádio Esperança do Interior, eu vim aqui paradizer a<strong>de</strong>us, porque eu estou partindo, porqueeu vou embora, porque eu sou uma mulhervelha, que não tem mais sentido, que não temfamília, que não tem proprieda<strong>de</strong>, que não tempo<strong>de</strong>r, que não tem mercado <strong>de</strong> trabalho, quenão po<strong>de</strong> ler poesia, que não po<strong>de</strong> amar, quenão po<strong>de</strong> abrir a boca pra reclamar, que nãopo<strong>de</strong> fazer nenhum gesto, que não po<strong>de</strong> existir,que não po<strong>de</strong>, que não po<strong>de</strong>, que não po<strong>de</strong>,que não po<strong>de</strong>!!!154(Coloca o cano do revólver <strong>de</strong>ntro da boca. Fazque vai atirar. Depois, calma e vagarosamente,começa a mastigá-lo. Depois cospe, jogando-olonge)Chocolate me faz mal...Eu adoro chocolate.Nem chocolate eu posso comer! (Faz cara <strong>de</strong>choro, mas ri. Ri <strong>de</strong> tudo. Ri <strong>de</strong> si mesma)Ah, gente! Apesar <strong>de</strong> tudo, eu gosto da vida.Eu me divirto.Quando eu me <strong>de</strong>spedi do Vladimir, eu disse:por favor, eu queria te pedir que, por favor, você


não me procurasse mais. E eu também não vouprocurar mais você. Você me machuca muito. Euacho que machuco você também. E eu digo issocom o maior carinho e o maior respeito por você.Está bem assim, Vladimir? Está bem assim?Ele me olhou chocado, com cara <strong>de</strong> surpresa, erespon<strong>de</strong>u: O.K. O.K.Aí eu disse: no futuro, quem sabe?, nós seremosbons amigos.E ele disse: O.K. O.K.E foi assim, muito educadamente, que tudoterminou.155(Grita para os invasores) Parem com isso! Chegacom esse barulho! Parem <strong>de</strong> me torturar! Essaporta não precisam arrombar! Essa porta eumesma abro! (Para o microfone) Senhores ouvintes!Meus amigos! Muito obrigada pela atençãodispensada! O programa acabou. Chega ao fim aúltima audição do programa “Suspiros ao Meio-Dia”. Boa noite, Brasil!!! (Desliga tudo)(Dirige-se à porta. Tira as barreiras que colocou.Há silêncio do outro lado. Gira a chave. Ajeita ocabelo e a roupa. Arma no rosto um vasto sorriso.Abre a porta)


Coragem, Meu Bem, Coragem


Cartaz <strong>de</strong> Coragem, Meu Bem, Coragem


Coragem, Meu Bem, CoragemAto únicoPersonagens:1. ELA (mulher madura)2. ELE (homem jovem)Cenário:Um quarto no “motel américa” (i<strong>de</strong>ntificado nosa<strong>de</strong>reços – toalhas, por exemplo – e reflexo doluminoso lá fora)Brasil – fim da década <strong>de</strong> 70159Noticiário da época, através <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o, antes doespetáculo, em diferentes pontos do teatro.Tempos sombrios da ditadura militar. O governoernesto geisel promete a distensão ‘lenta, graduale contínua’. Há pressões radicais, <strong>de</strong>ntrodo próprio governo, para o endurecimento doregime. Há a ameaça do ministro do exército,sylvio frota, possível comandante <strong>de</strong> um golpe<strong>de</strong>ntro do golpe. Há violência e tortura <strong>de</strong> presospolíticos. Quem não concorda com o regime érotulado como ‘esquerda’. O po<strong>de</strong>r estabelecidoé rotulado como ‘direita’. Cresce o chamado ter-


orismo da direita. Explo<strong>de</strong>m bombas em jornaisdo rio, belo horizonte, curitiba e são paulo. Háuma escalada <strong>de</strong> atentados que inclui, até, aexplosão <strong>de</strong> bancas <strong>de</strong> jornais.CENA – O casal entra no quarto do motel, quejá está ocupado por ele (sinais <strong>de</strong> uso). Ele fechaa porta à chave e abre, rápido, o jornal queacabou <strong>de</strong> trazer, lendo ansioso as notícias. Elaabre a janela. O ruído da rua inva<strong>de</strong> o ambiente.Examina a paisagem lá fora. Torna a fechá-la ecomeça a examinar o quarto, largando a bolsanum canto qualquer.160ELE (Lendo) – Uma operação perfeitamente coor<strong>de</strong>nada.Rápida, precisa e ousada – nas palavrasdo secretário <strong>de</strong> Segurança Pública.ELA – Que horas são?ELE (Lendo) – O grupo ocupou a se<strong>de</strong> do jornal,seqüestrou seus funcionários e explodiuquatro bombas em suas oficinas, inutilizandoas rotativas.ELA (Tira seu relógio da bolsa) – Não costumoandar com o relógio <strong>de</strong> pulso. Hoje em dia agente não po<strong>de</strong> arriscar. (Preocupada, distante,confere as horas) Seis horas da tar<strong>de</strong>.


ELE (Lendo) – Os terroristas estavam bem armados,inclusive com algemas <strong>de</strong> plástico <strong>de</strong>scartáveis,que são usadas nos Estados Unidos,e <strong>de</strong>ixaram panfletos explicando sua missão <strong>de</strong>luta “contra a ditadura fascista”.ELA (Aborrecida e <strong>de</strong>sinteressada) – Você vailer jornal?ELE (Risada) – Aspas! Eles colocaram entre aspas!ELA (Pensando alto) – Peguei um gran<strong>de</strong> congestionamento.É isso que eu vou falar. Fiqueipresa no trânsito durante horas...ELE (Fechando o jornal) – O que foi que vocêdisse?161ELA – É a <strong>de</strong>sculpa que vou dar em casa. Se o meumarido perguntar... (Sorri) Ainda é cedo.ELE – O consenso dos editoriais é que o atentadoteve como objetivo ferir a imagem do presi<strong>de</strong>nteda República!ELA (Desinteressada) – O atentado político <strong>de</strong>ontem?ELE (Jogando o jornal fora) – É o que diz o jornal.ELA – Será que esse telefone dá linha?


ELE (Faz um gesto <strong>de</strong> carinho nela e sorri) – Desculpe.Você quer que eu peça alguma bebida?ELA – Não, obrigada. Eu não bebo.ELE – Tudo bem. Eu também não.ELA – Eu precisava avisar meu analista.ELE – Você quer que eu peça uma linha?ELA – Deixe. Amanhã eu telefono e arranjo uma<strong>de</strong>sculpa qualquer. Minha consulta seria às 6horas. Mas eu já faltei outras vezes e...162ELE – Se você quiser ligar...ELA – Não, não. Depois eu conto a verda<strong>de</strong> praele. (Procura <strong>de</strong>scontrair-se) Digo que ia indo paraa consulta e no meio do caminho <strong>de</strong>i carona a um<strong>de</strong>sconhecido e fui com ele para um motel. Umatroca <strong>de</strong> terapia. Ele vai enten<strong>de</strong>r. (Tira a aliança eguarda na bolsa) Nunca tinha entrado antes nummotel. (Ele dá uma risadinha, não acreditando)Juro por Deus! (Os dois riem. Ela indica o jornal)Se você quiser ler mais, tudo bem...ELE (Dá <strong>de</strong> ombros) – Já li todos os jornais do dia.ELA – Essa mala é sua?


ELE – É.ELA – Você está hospedado aqui? Num motel?ELE – Só estou fazendo hora. Você quer ir antesao banheiro?ELA – Não, obrigada. Não pensei que as pessoasse hospedassem em motéis. Eles não são...como se diz?... <strong>de</strong> alta rotativida<strong>de</strong>?... <strong>de</strong> curtapermanência?ELE – Só estou fazendo hora... até a madrugada.(Acen<strong>de</strong> um cigarro) Fuma?ELA (Aceita) – Obrigada. (Acen<strong>de</strong>m e tragam)163ELE – Estou com viagem marcada para o Paraguai.Vou com alguns amigos hoje <strong>de</strong> madrugada,num jatinho particular.ELA – E aí resolveu arrumar uma mulher para sedistrair um pouco... De preferência uma mulhermais madura, menos exigente. E eu fui a felizarda.(Sorri, amarga) Nós <strong>de</strong>víamos nos apresentar.Eu ainda não sei o seu nome.ELE – E isso tem importância?ELA – Não. De fato não tem. (Embaraçada) Oque você vai fazer no Paraguai?


ELE – Você é do gênero “mulher curiosa”?... Quequer saber <strong>de</strong> tudo?164ELA (Protesta) – Não, não, por favor, apague.Esqueça minha pergunta. Você tem razão. Semperguntas. Não há motivo para estragar uma...aventura. Acho que esta palavra serve. Depoiscada um vai pro seu lado e pronto. Ninguémincomodou ninguém, ninguém perturbou ninguém,ninguém invadiu ninguém. E aí <strong>de</strong>poiseu irei ao meu analista e contarei que fui a ummotel com um <strong>de</strong>sconhecido e passamos juntosmomentos maravilhosos sem que nenhum dosdois invadisse a intimida<strong>de</strong> do outro. Isso épossível?ELE – Vamos tirar a roupa?ELA – Já?ELE – Você prefere no escuro ou com a luz acesa?ELA – Eu não estou com pressa. Po<strong>de</strong>ríamos conversarmais um pouco. Você está com pressa?ELE – Não. Ainda é cedo. Tudo bem.ELA – Sabe? É um bloqueio que eu tenho. Nãoposso simplesmente chegar, tirar a roupa e abriras pernas. Você me enten<strong>de</strong>, não é?


ELE – Claro. Da minha parte tudo bem.ELA – Fica uma coisa muito maquinal, vulgar,carnal...ELE (Concorda) É. Fica sim.ELA – Você <strong>de</strong>ve estar me achando ridícula.ELE – Não, absolutamente.ELA – Eu tenho um monte <strong>de</strong> bloqueios. Se nãoos tivesse não iria ao analista. (Riem) Existemcertos medos que eu preciso vencer. Mas nãotem sido fácil, sabe?ELE – Mas você está tentando.165ELA – Estou tentando. Aos pouquinhos. (Pausa)Estou passando, ou saindo, não sei, <strong>de</strong> uma fase<strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão. Você acredita que eu sou mãe <strong>de</strong>dois filhos?ELE (Fingindo interesse) Dois?ELA – Estou casada há 20 anos. E não tem sidofácil. Há algum tempo que venho protelandouma <strong>de</strong>cisão que não encontro coragem paratomar. Eu e meu marido... Sabe? Não há praticamentemais nada entre nós. Continuamos juntossó para manter as aparências. E também existem


as crianças. Não é justo. Eu não posso pensar sóem mim. No fundo a culpada sou eu. Meu maridogosta <strong>de</strong> mim, ele me procura, me apóia, mas...Sabe? Eu é que... É difícil explicar.ELE – Já sei. Você quer o divórcio e ele nãoquer.166ELA – Não é bem isso. Nós nem tocamos nesseassunto. Ainda não chegamos nessa fase. Oproblema, inclusive, é este. Eu não sei se <strong>de</strong>vo.Não sei se realmente isso seria o melhor paraele, para as crianças... Eu não quero ser egoísta,enten<strong>de</strong>?ELE – É um problema muito sério. (Compreensivo)Mas é um problema comum. Acontececom todo mundo, a toda hora, com milhões <strong>de</strong>casais.ELA – Claro! Eu sei. Mas não existe mais amor,enten<strong>de</strong>? É isso que me choca. Acho uma tremenda<strong>de</strong>sonestida<strong>de</strong> viver uma situação falsa,hipócrita.ELE – Sei como é que é. E aí você vai ao analistae <strong>de</strong>sabafa. E aí você dá caronas a homens <strong>de</strong>sconhecidosna rua e extravasa suas tensões, suasnecessida<strong>de</strong>s, seus <strong>de</strong>sejos...


ELA (Ofendida) – Não sou uma mulher vulgar.Você está enganado se está pensando assim.ELE – Não tive intenção <strong>de</strong> ofen<strong>de</strong>r. Mas não éverda<strong>de</strong>?ELA – Não costumo fazer isso. É a primeira vezque acontece. Nunca pisei antes num quarto <strong>de</strong>motel. Além disso eu não te ofereci nenhumacarona. Foi você quem pediu.ELE – Você ficou me olhando com ar convidativo.Com cara <strong>de</strong> convite.ELA – Você é um homem atraente. Sabe disso.ELE – Você acha?167ELA – Eu olhei pra você da mesma forma que todasas mulheres olham para homens atraentes.ELE – Você me olhou com <strong>de</strong>sejo. Talvez inconscientemente.Você passou a língua nos lábios. Eeles ficaram úmidos.ELA – Eu... Fazia calor...ELE – Por que você não confessa <strong>de</strong> vez que ficoucom tesão? Puxa vida! Você é uma mulher complicada.Deve ter a mania <strong>de</strong> complicar tudo. Não<strong>de</strong>ve ser fácil viver com você... Pro seu marido


<strong>de</strong>ve ser uma barra. (Impaciente) O analista nãote disse isso?ELA – Se o meu casamento é complicado vocênão tem nenhuma autorida<strong>de</strong> para dizer. Nãoé da sua conta. Claro! Você é jovem mas já temseus juízos formados! Um produto típico <strong>de</strong> nossaterra. O jovem machista já parte da premissa quese o casamento vai mal a mulher é a culpada.ELE (Zombando) – Meu Deus! Só me faltava isso!Não me diga que você é uma feminista, comteorias prontas e discursos engatilhados!168ELA – Po<strong>de</strong> rotular como quiser. Já disse quenão estou preocupada com seus juízos. (Acen<strong>de</strong>um cigarro, nervosa) Não vim aqui pra você meanalisar.ELE – Você é quem quis conversar.ELA – Viemos aqui com a mesma intenção. Vamosnos usar mutuamente. Vamos nos comer. E<strong>de</strong>pois vamos nos <strong>de</strong>scartar. A diferença é quevocês, homens, estão mais acostumados com isso.Manipulam mulheres como peças <strong>de</strong>scartáveis.ELE – Meu Deus! Eu sabia que não ia escapar.Agora você vai me fazer um discurso feminista!Que mania vocês...


ELA (Interrompendo) – Mulheres conscientes o<strong>de</strong>sagradam?ELE – Não me interrompa. Não concluí meupensamento.ELA – Conclua!ELE – Que mania vocês, senhoras casadas, têm <strong>de</strong>complicar e teorizar uma simples trepada!ELA – Mas eu não sou uma simples trepada! Nãosou uma mulher qualquer, enten<strong>de</strong>u bem?ELE – Você está irritada.ELA (Irritada) – Eu não estou irritada.169ELE – Então façamos a sua vonta<strong>de</strong>. Já falamos <strong>de</strong>análise, casamento, divórcio e feminismo. Sobreo que você quer conversar agora? Política?ELA – Pelo que me consta só tratamos <strong>de</strong> políticaaté agora!ELE – Que tipo <strong>de</strong> mulher você é? (Provocativo)I<strong>de</strong>ologicamente?ELA – Sou liberal. (Ele ri) Não é você quem gosta<strong>de</strong> rótulos? Fique na sua que eu fico na minha.(Ela ri também) Qual é sua preferência? Você


prefere “comer” – perceba que estou usandoum verbo típico do seu vocabulário machista– “comer” mulheres inteligentes ou burras?ELE – Ah, já estou enten<strong>de</strong>ndo... Você é realmentedo tipo intelectual. É daquelas que sóatinge o orgasmo com a fricção das idéias. (Ri)Conheço o território.170ELA – E você é daqueles que, antes <strong>de</strong> “comer”,aplica testes culturais. (Os dois riem, se <strong>de</strong>scontraindo)Conheci um cara assim. Ficávamos horasdiscutindo questões sobre o po<strong>de</strong>r, a pressão dosdominadores sobre os dominados, e coisas assim.Ele era um cara revoltado com nossa realida<strong>de</strong>política, social. E você? Também é revoltado?ELE (Ironia) – Digamos que eu seja alguém...posicionado.ELA – Posicionado como?ELE – Não economicamente... como a senhoraaparenta ser.ELA – Não foi isso que eu quis dizer. Eu já haviapercebido.ELE – Percebido o quê?


ELA – Você é boa-pinta. Mas não se veste bem.ELE – Ah, sei. Você tem razão. Eu não me vistobem.ELA – E não tem carro.ELE – Este é um dado fundamental!ELA – E elementar. Se tivesse carro não estariaa pé na rua.ELE – Você é brilhante.ELA – E sensível.ELE – E superficial.171ELA – Danço conforme a música.ELE – Música? É só girar aquele botão ali.ELA – Eu não gosto do Julio Iglesias. Ouvi dizerque só tocam músicas do Julio Iglesias.ELE – Então <strong>de</strong>ixe como está. Assim está ótimo.(Aborrecido e irônico) Estamos nos divertindomuito.ELA – Se eu escuto música não consigo me concentrar.Falando nisso, você é daqueles que gos-


tam que a mulher fique quieta e mansa, sendopassivamente possuída, ou que fique rolando,esperneando e gemendo?ELE – O que é que você prefere?ELA – Prefiro que seja diferente... <strong>de</strong> quandoestou com meu marido.ELE – Diferente como?ELA – Gostaria <strong>de</strong> gemer, <strong>de</strong> gritar, <strong>de</strong> usarpalavrões. Transar uma trepada que fosse realmente...vulgar. Baixo nível mesmo! (Ri)172ELE – Entendo. Você quer botar pra fora a putaque tem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> você.ELA – Sim. Você tem razão. Quero me sentirafinada com meu parceiro. Em harmonia. (Gesto<strong>de</strong> juramento) E prometo que não vou ficarconstrangida!ELE (Ironia) – Que surpresa! Uma senhora comovocê! Quem diria?? Seu marido <strong>de</strong>ve ser umamerda na cama. Logo que eu te vi percebi quevocê era uma mulher malcomida.ELA – Sim... É isso. Bem ou mal, eu tenho sido comida.Estou enjoada <strong>de</strong> ser simplesmente comida!


ELE – Coitadinha!ELA – Vou te confessar uma coisa. Eu tenho umpéssimo <strong>de</strong>feito.ELE – Não me conte. Vamos ver se eu adivinho.ELA (Divertida) – Adivinhe!ELE – Sua boceta é horizontal.ELA (Rindo) – Que horror! Não é isso não. Depoisvocê confirma. Tente outra vez. E não seja grosseiro!Seria a mesma coisa se eu te perguntassese teu pau é torto, se fica mais inclinado pradireita ou pra esquerda.173ELE – Por <strong>de</strong>ntro da calça eu o guardo à direita.(Riem) Já sei! Você é vermelha.ELA – Vermelha? Como?ELE – Comunista.ELA – Comunista? Eu? (Caçoa) E por quê?ELE – Intuição. Somente intuição.ELA – Não é nada disso. Eu ia dizer que eu tenhoo <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> teorizar... <strong>de</strong> teorizar tudo. Mas,pelo visto, você também tem esse <strong>de</strong>feito. Pro-


vavelmente vai querer agora divagar sobre todasas conotações políticas <strong>de</strong> um adultério.ELE (Ironia) – Estou diante <strong>de</strong> uma mulher comcerto grau cultural.ELA (Zomba) – Maravilha! Estou passando no teste!Se você quiser discutir política, tudo bem. Vai verque existem dois tipos <strong>de</strong> motéis e eu não sabia.Nuns as pessoas trepam. Noutros discutem política.(Ela ri, mas ele não acha graça) Agora é minha vez<strong>de</strong> adivinhar. Deixe-me ver. Aposto que você fazparte do Comando <strong>de</strong> Caça aos Comunistas.174ELE – Não toque nesse assunto que você meexcita.ELA – CCC! Claro! É isso!ELE – Você está me <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> pau duro.ELA – Então eu acertei na mosca! (Insegura, avoz <strong>de</strong>safina)ELE – Vou te confessar uma coisa. Só pra te <strong>de</strong>ixaralegre.ELA – O quê?ELE – Já incendiei algumas bancas <strong>de</strong> jornais,que vendiam jornais comunistas e revistas pornográficas.


ELA (Levemente perturbada) – Um brincalhão.Você é um piadista. É isso. Um gozador. (Pausa)É por isso que você vai ao Paraguai. É com aditadura dos caudilhos que você costuma reabastecer-se<strong>de</strong> humor? (Ela começa realmente afica perturbada com o silêncio e o olhar cínico<strong>de</strong>le) Provavelmente existe alguma relação entrevocê e o atentado terrorista <strong>de</strong> ontem. Daí suaansieda<strong>de</strong> em ler os jornais. E agora você estáaqui, escondido neste motel. (Ela não consegueparar <strong>de</strong> raciocinar e falar, ficando cada vez maisnervosa) E vai fugir para o Paraguai, para escapardas investigações. E eu adivinhei. (Riso rouco)Adivinhei tudo. Você é um terrorista <strong>de</strong> extremadireita. Um assassino. (Finge estar brincando) Eeu o capturei. E agora você é meu prisioneiro!(Ela ri, sem graça. Está <strong>de</strong>sorientada. Fica estática,tentando discretamente enxugar as mãos,que transpiram)175ELE (Muito calmo, acen<strong>de</strong> um cigarro e passeiapelo quarto. Parece estar em transe, teleguiado,repetindo uma lição) – Você sabia que existemagentes subversivos que são orientados e subvencionadospelo comunismo internacional?Que nosso país está invadido por agitadores queestão atentando abertamente contra a segurançanacional? Que a intenção dos vermelhosé provocar a explosão da América Latina? Que


a China quer subverter todo o Terceiro Mundo?(Pausa) Naturalmente você ignora tudo isso.Chama isso <strong>de</strong> fantasias. A senhora dona-<strong>de</strong>-casasó quer mesmo é trepar. (Ela, nervosa, procuraqualquer coisa na bolsa. Não consegue encontrar.Desiste) A extrema esquerda usa até os tóxicospara alcançar seus objetivos. Você, que temfilhos, <strong>de</strong>via se preocupar com isso. Você sabiaque os comunistas utilizam os tóxicos para minara força moral da nossa juventu<strong>de</strong>? Contaminam,penetram, <strong>de</strong>stroem e subvertem os jovens paradisseminar o comunismo.176ELA (Tentando <strong>de</strong>sconversar) – Nós ficamos conversando,conversando, e as horas vão passando.Talvez fosse melhor irmos embora. A gente seencontra outro dia. Eu te dou meu nome e meutelefone particular e...ELE – Eu não quero seu telefone.ELA – Pois estamos conversados. Não darei meutelefone.ELE – Não costumo transar duas vezes com amesma mulher.ELA – É justo. Eu compreendo. É natural. É umaforma <strong>de</strong>... preservar a individualida<strong>de</strong>, a in<strong>de</strong>pendência.Eu sei como é. Tenho uma amiga que


pensa assim. Nós <strong>de</strong>veríamos ter ido tomar umchope num bar. Aqui está muito abafado.ELE – Você quer que eu ligue o ar-condicionado?ELA – Não, obrigada. Assim está ótimo. Po<strong>de</strong><strong>de</strong>ixar.ELE – O que houve? Por que você ficou repentinamentenervosa?ELA – Imagine você que... ultimamente eu andotão <strong>de</strong>sligada! Esqueci que havia marcado outroscompromissos. Hoje à noite temos convidadospara o jantar.ELE – Relaxe. Vamos! Não precisa ficar assustada.177ELA – Eu não estou assustada. Por que <strong>de</strong>veriaestar? Apenas estou preocupada com meuscompromissos.ELE – Mas eu não quero te <strong>de</strong>cepcionar. Vocêveio aqui pra trepar. E nós iremos trepar.ELA – Bobagem. Não estou com tanta carênciasexual assim. Po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar para outro dia.Quando você voltar <strong>de</strong> viagem. (Examina seurelógio) Já é tar<strong>de</strong>. Meu marido <strong>de</strong>ve estarpreocupado. (Agoniada) Eu acho melhor irmosembora. Imediatamente.


ELE – Você está com medo <strong>de</strong> mim.ELA – Que é isso? Que besteira! É que eu já estouatrasadíssima!ELE (Calmo) – Daqui você não sai. (Ela treme)Daqui você não sai sem trepar. (Sorri, amigo)Não acho justo que você vá embora com essetipo <strong>de</strong> frustração. Você veio aqui para trepar.E nós vamos trepar. Esta noite vou fazer vocêgozar como nunca.178ELA – Eu... Na minha opinião... Eu realmente...Penso que o sexo não é tudo na vida... (Longosilêncio. Ela tenta fazer graça) Que besteira queeu disse!ELE (Sorri) – Quero ver você sair daqui satisfeita.(Começa a se <strong>de</strong>spir)ELA – Pelo amor <strong>de</strong> Deus, longe <strong>de</strong> mim, não sepreocupe com isso! Eu já estou muito satisfeita.Tivemos uma conversa ótima. Acho importantíssimoconhecer o lado humano das pessoas.Foi ótimo para mim ter <strong>de</strong>sabafado. Eu estavamesmo precisando <strong>de</strong>sabafar meus problemascom alguém <strong>de</strong>sconhecido. Não tem sido fácil abarra do meu casamento. Eu preciso tomar uma<strong>de</strong>cisão. Eu preciso criar coragem e dizer praele que tudo acabou. (Treme) O divórcio será amelhor solução para nós dois.


ELE – Eu vou satisfazê-la. Vou fazer você gemer,gritar, do jeito que você gosta. (Encosta-se nela,nu, sensual)ELA (Tensa) – Gritar como? E os vizinhos? (Sorri,<strong>de</strong>sorientada) Os outros casais, nos outros quartos?Eles po<strong>de</strong>m reclamar.ELE – É tudo à prova <strong>de</strong> som. Po<strong>de</strong> gritar à vonta<strong>de</strong>.Ninguém irá se incomodar. Experimentepara ver. Dê um grito, vamos!ELA – Por favor... Hoje não.ELE (Divertindo-se) – Dê um grito, vamos! Sópra testar!179ELA – Que bobagem!ELE – Grite bem alto: eu sou comunista!ELA – Que besteira! Largue <strong>de</strong> bobagem.ELE – Isso me <strong>de</strong>ixa tremendamente excitado.(Sensual) É uma fraqueza que eu tenho.ELA – Eu não sou comunista. Meu Deus, era sóo que me faltava!ELE – E qual a diferença? Você não é mulher? Oimportante é que... na hora em que eu estiver


trepando... te comendo... você enten<strong>de</strong>?... eusó consigo gozar com a mulher gritando coisasassim...ELA – Coisas assim como??180ELE – Eu sou comunista!... me fo<strong>de</strong>!... eu sou comunista!...enfia... enfia tudo... me arrebenta!...me arrebenta inteirinha por <strong>de</strong>ntro. E aí, quandoeu atingir o orgasmo, e quando eu estiver gozando,<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> você, eu quero que você gemacomo uma louca, como se eu estivesse te matando...E aí você grita bem alto: “Eu sou comunista!Eu sou comunista! Perdão! Perdão!”ELA (Num salto, pegando a bolsa) – Agora chega.Eu vou sair daqui imediatamente.ELE (Agarrando-a) – Você só vai sair daqui quandoeu autorizar.ELA (Geme) – Meu Deus!ELE – Você já escutou o som <strong>de</strong> bombas explodindo?(Força-a a sentar-se na cama) Você é minhacúmplice, minha parceira, minha mulher, meugozo... Você não gosta?ELA – Não. Não gosto. Pra ser sincera não gosto.Não gosto mesmo.


ELE – Se você se comportar direitinho... se tudocorrer bem... Depois... cada um vai embora epronto. O assunto morre. A brinca<strong>de</strong>ira termina.A gente esquece.ELA – Eu prometo esquecer tudo isso, imediatamente,a partir <strong>de</strong> agora. Juro que não comentareinada com ninguém. Você sabe que eunão po<strong>de</strong>ria mesmo fazer isso, mesmo que euquisesse. Meu marido iria saber... e meus filhostambém... que eu vim com um <strong>de</strong>sconhecidopara um motel. Seria uma traição.ELE – Você inventa uma <strong>de</strong>sculpa. É só dizer quefoi seqüestrada.ELA – Mas o escândalo seria o mesmo. Quem éque quer se envolver com um escândalo? Vocêconhece os jornais... como são. Você está certo.Alguns merecem mesmo explodir. Vamos esquecertudo e ficar bons amigos.181ELE – Tá fechado. (Esten<strong>de</strong> a mão, num trato)Fechado?ELA – Fechado.ELE – Quer tirar a roupa agora?ELA (Confusa) – Eu... Bem... Vocês, homens, sãotodos iguais. Uns machistas. Conversam, con-


versam, conversam e, no fim, sempre querem amesma coisa. Assim não dá! Temos que chegar,em primeiro lugar, a uma conclusão.ELE – Sobre...?ELA – Aquela nossa conversa não ficou muito clara.ELE – Sobre o quê?182ELA – Sobre a realida<strong>de</strong> política do nosso país.Tenho certeza que você está pensando que souburra, que não entendo nada <strong>de</strong> política, essascoisas... (Solta um riso como um soluço) Pois euentendo perfeitamente do assunto. Tambémtenho posicionamentos bem <strong>de</strong>finidos.ELE – De esquerda?ELA – Qual posição você prefere?ELE – Você escolhe a posição. O inimigo está emtoda a parte.ELA – É o que eu penso.ELE – Ninguém tem o direito <strong>de</strong> tumultuar oaperfeiçoamento <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> nossa pátria.ELA – Mas é lógico!!!


ELE – O Exército é uma instituição inatacável.ELA – Todas as instituições!ELE – Temos que calar a boca <strong>de</strong>ssa laia, <strong>de</strong> umaforma ou outra. Temos que limpar este país!Temos que ferrar essa gente.ELA (Embarcando, mas seguindo ao contrário)– Esses malditos têm que ir pra ca<strong>de</strong>ia! A corrupçãonunca esteve tão gran<strong>de</strong>. Os corruptoscontinuam aí, donos do po<strong>de</strong>r, mandando e<strong>de</strong>smandando, explorando a nação e o povo,fazendo e <strong>de</strong>sfazendo com toda a impunida<strong>de</strong>e sem nenhum castigo. O sistema judiciário é oque tem <strong>de</strong> mais podre. Temos que implodir osistema judiciário!183ELE – O quê? Como é? Fale mais <strong>de</strong>vagar. Achoque não estou enten<strong>de</strong>ndo.ELA – Claro que você está enten<strong>de</strong>ndo. Vocênão concorda que o presi<strong>de</strong>nte, os senadores,os <strong>de</strong>putados, os juízes, são todos nossos empregados?As autorida<strong>de</strong>s em geral! Os policiais,os militares! Todos eles são nossos empregados,péssimos empregados, por sinal. Nós, o povo,pagamos os impostos e sustentamos a todos.Não po<strong>de</strong>mos abaixar a cabeça. Temos nossosdireitos. Temos a Constituição. Temos que exigir


espeito. Temos todo o direito <strong>de</strong> protestar, <strong>de</strong>exigir, <strong>de</strong> cobrar! Você acha que <strong>de</strong>vemos ficarpassivos neste estado policial?ELE (Furioso) – Mas que merda é essa que vocêestá falando? (Saco<strong>de</strong>-a) Que conversa é essa?Que papo é esse?ELA – Hem? O que foi? (Engole em seco) Eu dissealguma coisa errada?ELE – Você prestou bem atenção no que falou?ELA (Assustada) – Política! Falávamos <strong>de</strong> política!184ELE (Grita) – Mas que política? Que política?ELA – Do Terceiro Mundo. Da América Latina. DoHemisfério Sul. Eu estou analisando a podridãoque existe no Hemisfério Sul.ELE – Hemisfério Sul??ELA – Isso. Abaixo do Equador. (Ele está boquiaberto)O Hemisfério Sul está aí, explorado,miserável, faminto, pronto pra pegar fogo.Para manter a moral alta é necessária a guerra.Seria ótimo para nosso país se estourasse umaguerra na América Latina. Esqueceríamos todasas injustiças e nos concentraríamos na guerra!


A Argentina contra o Chile, sem que o Vaticanose intrometa! E a Bolívia? É um absurdo que aBolívia, injustamente, não tenha uma saída parao mar! É necessário uma passagem para o Pacífico,nem que tenhamos que empurrar o Chileprum lado e o Peru para o outro. Você não vê?A guerra é necessária! Há enormes interessesem jogo. Temos que firmar a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> nossopaís na América Latina. (Ri, nervosa) Tenho ounão tenho razão?ELE (Grave, inquieto) – Você é louca.ELA – É uma solução boa e simples. Basta acen<strong>de</strong>ro primeiro estopim. Isso é bom para distraira atenção do povo para a impunida<strong>de</strong> dos corruptos,para os índices da inflação, para a altado custo <strong>de</strong> vida. Não vê?185ELE (Dando um murro na pare<strong>de</strong>) – Louca. Maluca.Você é uma comunista débil mental!ELA (Embalada, acen<strong>de</strong>ndo um cigarro) – Não mediga que você não é a favor do aperfeiçoamento<strong>de</strong>mocrático.ELE (De repente, <strong>de</strong>sconfiado) – Quem é você?(Pausa) Quem é você?ELA (Andando firme <strong>de</strong> um lado para outro)– Não disperse. Preste atenção. Acompanhe meu


aciocínio. Existe uma or<strong>de</strong>m estabelecida. Correto?(Traga) Muito bem... esta or<strong>de</strong>m é mantida,digamos... com certa harmonia... em função <strong>de</strong>uma perspectiva positiva, <strong>de</strong> uma esperança nofuturo, <strong>de</strong> uma promessa. E qual é a promessa?Qual é a perspectiva?ELE – Quem é você???186ELA – O Estado I<strong>de</strong>al. O Estado I<strong>de</strong>al, segundo ai<strong>de</strong>ologia imposta pelo governo, pelo sistema,como queira. (Ele está atônito) É este o climaque existe em nosso país. Clima <strong>de</strong> perspectiva<strong>de</strong> um Estado I<strong>de</strong>al. Todos os meios se justificampara o alcance <strong>de</strong>ssa meta: a censura, a violência,o clima <strong>de</strong> intimidação... Está acompanhando?E o sistema – não gosto <strong>de</strong>sta palavra, mas vamoslá – começa a acionar os mecanismos quejulga favoráveis para a implantação <strong>de</strong>ssa novaor<strong>de</strong>m. Correto? (Não o <strong>de</strong>ixa respon<strong>de</strong>r) Mas,ao mesmo tempo, esses mecanismos se tornamin<strong>de</strong>sejáveis, <strong>de</strong>ntro do mesmo sistema, porquetranstornam a or<strong>de</strong>m vigente, se transformandoem um novo po<strong>de</strong>r, em po<strong>de</strong>r paralelo ao po<strong>de</strong>restabelecido. Enten<strong>de</strong>u?ELE (Grita) – Porra! Porra! Porra!ELA – Concordo plenamente! É aí que entram emcena os grupos terroristas que representam...


ELE (Aperta o pinto, num gesto <strong>de</strong> insulto) – Olhaaqui pra você, ó!!ELA – Está mole. É este o estado i<strong>de</strong>al do seupau. Mole!ELE – Hem? Não mu<strong>de</strong> <strong>de</strong> assunto. Você é maluca.Você é uma subversiva, uma comunistaporra-louca e chupadora. Uma gran<strong>de</strong> biscate.Uma gran<strong>de</strong> putona.ELA – Adoro o fato <strong>de</strong> você ser jovem, loiro e<strong>de</strong> olhos azuis.ELE – Eu não sou loiro! Nem tenho olhos azuis.ELA – Se você estivesse <strong>de</strong> uniforme, então, seriaum nazista perfeito. Sabia? Você po<strong>de</strong> se imaginarcom botas, <strong>de</strong>spertando tesão em mim?187ELE – Uma simpatizante do movimento subversivointernacional, disfarçada em esposa infiele admirável dona-<strong>de</strong>-casa, arrotadora <strong>de</strong> princípiosfeministas e tarada por uniformes e botas.Ora, ora! Você sabe que me enganou direitinho?Pensei que tinha embarcado numa e acabei embarcandonoutra. Gran<strong>de</strong> putona!ELA – Empatamos. Aconteceu comigo a mesmacoisa. Você sabe quantos centímetros tem o


pau do meu marido? Isso aqui, ó. (Gesticula,mostrando um tamanho insignificante) Quandote vi atravessando a rua, com esse puta físico <strong>de</strong>atleta, naquele movimento <strong>de</strong> coxa contra coxa,homem objeto <strong>de</strong> calças justas e idéias curtas,pensei que iria provar um cacete que me cutucassetoda e qualquer i<strong>de</strong>ologia no mais fundo domeu útero. Ali estava eu, <strong>de</strong> repente disposta a<strong>de</strong>scobrir, numa única chance, na companhia <strong>de</strong>um <strong>de</strong>sconhecido, todas as alegrias sexuais queuma cama <strong>de</strong> motel po<strong>de</strong>ria proporcionar.ELE – Caiu do cavalo.188ELA – Caí do cavalo.ELE – Quem é você? Você não po<strong>de</strong> ter surgidodo nada. Você estava me seguindo... a mando <strong>de</strong>alguém... é isso? Você já sabia quem eu era?ELA – Sobre o que você quer que eu fale agora?Sobre as minhas carências sexuais?ELE – Novamente mudando <strong>de</strong> assunto. Eu conheçoessa tática.ELA – Nunca comi um homem em pé. Você acreditanisso? Que, em toda a minha vida, eu nuncafodi um macho em pé? Sabe há quanto tempoque eu não tenho um orgasmo? (Enfrenta-o,


encurralando-o) O casamento é uma convençãoque estraga o machão latino-americano. Depoisque casa, a barriga cresce e o pau abaixa. (Ri, <strong>de</strong>bochada)Faz muito tempo que não faço um 69.Também gostaria <strong>de</strong> provar o coito anal. Nuncacomi um homem por trás. Qual é a sensação quea gente sente?ELE – E eu é que sei? Corta essa.ELA – Uma vez , na cama, eu virei <strong>de</strong> costas parao meu marido, pensando que pu<strong>de</strong>sse estimularo seu lado in<strong>de</strong>cente... (Ri) E ele dormiu. Vocêacredita? Ele dormiu! (Fuma) Imagino que <strong>de</strong>vaser ótimo uma relação <strong>de</strong> igual para igual. Umacama <strong>de</strong> equilíbrio, o sexo em harmonia, semdominação <strong>de</strong> nenhuma das partes, sem jogo<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. (Ela começa a tirar a roupa)189ELE – Você é louca. É louca mesmo.ELA (Debocha) – Esta noite EU vou te comer!(Riso baixo e rouco) Agora que já vasculhamosas fronteiras da vergonha, vamos pesquisar, umno outro, as fronteiras do tesão.CENA – Ele realmente está perturbado. Ela ficaapenas <strong>de</strong> calcinha e sutiã. Aproxima-se <strong>de</strong>le,sensual, e começa a acariciá-lo. Ele está estático.Depois ela o puxa para a cama, fazendo-o


<strong>de</strong>itar-se. Ela monta sobre ele, dominadora,cavalgando-o, ofegante. Começam a agitar-sefreneticamente. É uma tentativa longa, interminável,angustiante, inútil. Pouco <strong>de</strong>pois ela pára.Percebe que ele não se excitou. Ela <strong>de</strong>siste. Levanta-se,abandonando-o. Ele continua imóvel,olhando para o teto. Ela acen<strong>de</strong> um cigarro esenta-se ao lado <strong>de</strong>le. Observa-o em silêncio.ELE (Frágil) – Assim eu não consigo.ELA – Assim como?190ELE – Com você por cima. (Pausa) Assim não dá.Não me excito. Não curto esta <strong>de</strong> mulher ficarem cima e eu por baixo.ELA – Como é que você quer?ELE – Só consigo se você... antes... me chupar.ELA – Te chupar? Você quer que eu chupe você?Quer que eu chupe o teu pau?ELE – Quero. Vem! Vem!ELA – Enquanto eu chupo o teu pau, você faz oquê? Você me chupa também?ELE – Não. Isso eu não faço. Isso eu não posso.


ELA – Não po<strong>de</strong>?ELE – Não curto essa <strong>de</strong> chupar mulher. Não fazminha cabeça. Aí é que eu perco o tesão <strong>de</strong> vez.Nunca consegui... já tentei... mas não consigo...me dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vomitar.ELA – Vomitar? Te dá vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> vomitar?ELE – Me chupe... por favor... me chupe...ELA – Eu não entendo. Por que é que tenho <strong>de</strong>te chupar e você não?ELE (Tom confessional) – Eu... sabe?... eu só consigoassim. É o único jeito <strong>de</strong>le levantar. Eu nãosei por quê. A vida inteira foi assim. (Acomodase,sentado, ao lado <strong>de</strong>la) É por isso que eu medou melhor com as putas. (Faz um carinho nela,que rejeita) As putas não teorizam. Não per<strong>de</strong>mtempo. Não ficam falando o tempo todo. É penaque você não seja uma verda<strong>de</strong>ira puta. Senãoestaríamos agora transando adoidados. Ficolouco com a língua <strong>de</strong> uma mulher. Gosto queela engula tudo, que me chupe em volta, queme chupe tudo, até as bolas do saco.191ELA – Hum... Sei... E a posição? Tem alguma preferida?Prefere ficar <strong>de</strong>itado e eu... agachada...em cima?


ELE – Não. Prefiro <strong>de</strong> pé. Eu <strong>de</strong> pé. E você naminha frente, ajoelhada, engolindo tudo.ELA – Hum... Sei... A fêmea, submissa, chupandoo pau do macho. De joelhos, como a AméricaLatina, chupando o pau do Tio Sam. Por maisque eu queira fazer sexo, você sempre volta àpolítica.ELE – Isso me excita. Me <strong>de</strong>ixa louco. Você vaiver. Meu pau sobe na hora.192ELA – Outro dia conheci um cara, um puta machão,que trepa com uma gran<strong>de</strong> amiga minha.Sabe o que ele pe<strong>de</strong> pra ela fazer, bem na hora<strong>de</strong> gozar?ELE – O quê? (Sorri, simpático) Fala. Adoro sacanagem.ELA – Ele pe<strong>de</strong> que ela enfie o <strong>de</strong>do no cu <strong>de</strong>le.(Pausa) Que ela o penetre. (Ri) Tem machão quesó goza assim. Você já experimentou?ELE (Ofendido) – Não estou achando graça. Nãoestou achando nenhuma graça.ELA – E eu, por acaso, estou? Olhe bem pra minhacara. Por acaso tenho cara <strong>de</strong> chupadora?


ELE (Conciliador) – E qual é o problema? Vamos!Tente! Você vai gostar. Eu sou um cara limpinho.É uma tremenda vantagem que o homem levasobre a mulher. A limpeza do pau, enten<strong>de</strong>? Asecreção do pênis é muito menor que a da vagina.Você po<strong>de</strong> chupar sem medo!ELA (Levanta-se e afasta-se) – Eu imagino... quequando você nasceu... a vagina da sua mãe <strong>de</strong>viaestar bem suja.ELE (Calmo, seguindo-a) – Você está querendoapanhar. Claro! Como é que eu não pensei nissoantes? Você é <strong>de</strong>ssas mulheres que gostam <strong>de</strong>apanhar. É por isso que você está me provocando.Você quer que eu reaja. (Agarra-a, com força)Você está pedindo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo, para levaruma surra. (Dá-lhe uma chave <strong>de</strong> braço. Ela geme<strong>de</strong> dor. Ele começa a torturá-la)193ELA – Pare... por favor... pare...ELE – Você está suando. (Cheira) O seu suor fe<strong>de</strong>.(Dá-lhe tapas)ELA (Gemendo, balbuciante) – É assim? Usando aviolência... que você imagina... conseguir... tudoque é incapaz <strong>de</strong> conseguir?ELE – Não é a lei natural das coisas... que os maisfortes... usem sua força... para corrigir os erradose salvar os suicidas?


ELA – Você pensa que usando sua força e seupo<strong>de</strong>r... você vai conseguir me dobrar... me convencer...daquilo que você quer? A dificulda<strong>de</strong><strong>de</strong> ereção... é sua. Não minha! (Ele dá-lhe umempurrão, jogando-a longe. Ela se encolhe)ELE (O carrasco examina a vítima) – Você é umafanática. É esse fanatismo, essa obstinação cega,essa teimosia... que enlouquece. Não se po<strong>de</strong>ter paciência com gente fanática como você.Agressões, insultos, cobranças, revanchismos...(Longo silêncio) Se esten<strong>de</strong>mos a mão, vocês noscospem no rosto. (Grita) Como é possível trepar<strong>de</strong>sse jeito?194ELA (Levantando a cabeça) – São <strong>de</strong>sculpas.Desculpas que você usa para justificar suaimpotência. É usando da violência... me batendo...usando da força que você tem... quevocê tenta justificar, na sua cabeça, pra vocêmesmo, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me aterrorizar, <strong>de</strong>me <strong>de</strong>ixar com medo... como único meio... <strong>de</strong>me possuir. (Com ódio) Você tem força prame jogar no chão. Mas não tem po<strong>de</strong>r... prame convencer... a chupar teu pau. (Começa alevantar-se, cambaleando) Porque eu tenhonojo, enten<strong>de</strong>? Porque não há força que mefaça chupar teu pau, ajoelhada ou na horizontal,ou <strong>de</strong> qualquer jeito. Enten<strong>de</strong>u? Minharepugnância é maior que qualquer medo.


ELE (Calmo) – Se é impossível entrarmos numacordo... quem se fo<strong>de</strong> é você. Não seria maisfácil pra nós dois se você fosse boazinha, cordata,pacífica? (Andam em círculos, como animaisnuma jaula) Se você pu<strong>de</strong>sse se enxergar agoranum espelho! Se você pu<strong>de</strong>sse ver o ar <strong>de</strong> petulânciaque tem no rosto! (Risinho sádico) Quemtraça as regras sou eu, enten<strong>de</strong>u bem? Sempre.Posso até <strong>de</strong>ixar você brincar, <strong>de</strong> vez em quando,na ilusão <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> influir ... Mas quando euresolvo... eu acabo com a brinca<strong>de</strong>ira na hora!ELA – Se você fosse tão valente, tão forte comoruge, não estaria aqui, escondido, prontopra fugir pro Paraguai... e agindo sempre àsescondidas.195ELE – Há manobras que você ignora. São <strong>de</strong>cisõesorganizacionais acima <strong>de</strong> sua compreensão.ELA – Não seria mais honesto você confessar quetem medo <strong>de</strong> ser preso, e virar bo<strong>de</strong> expiatório?Que tem medo da Justiça?ELE (Deboche) – Ahhh! Eu faço a justiça! (Pausa)Você é a prova mais clara, mais evi<strong>de</strong>nte, que oterrorismo continua vivo, canceroso, pronto paradar o bote. É uma praga impossível <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>struída.É por isso que <strong>de</strong>vemos estar em eternaprontidão. Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scansar. Nunca.


ELA – Quem te <strong>de</strong>u o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir quem sãoos culpados e quem são os inocentes? Quem sãoos certos e quem são os errados?ELE (Corre até sua mala. Tira um revólver. Aponta-ono nariz <strong>de</strong>la) – Aqui está meu po<strong>de</strong>r!196CENA – Ela fica enrijecida, imóvel, assustada. Háum breve momento <strong>de</strong> silêncio. Ela sua frio, olhosarregalados, na expectativa do disparo. E entãoele sorri, recolhe a arma e recoloca-a na mala.Ela olha para o chão, sem coragem <strong>de</strong> levantaros olhos e cansada <strong>de</strong> continuar enfrentando-o.Gostaria <strong>de</strong> ir embora, mas não sabe como.ELA (Balbuciante) – Uma vez eu tentei chuparo pau do meu namorado, muitos anos atrás, nomeu tempo <strong>de</strong> adolescente. (Engole em seco)Foi horrível.ELE (Senta-se na cama, irritado) – Eu pensei quevocê pu<strong>de</strong>sse ser uma companhia agradável...ELA – Submissa...ELE – Mas você é o tipo da mulher que tira todoe qualquer tesão.ELA (Conciliatória, sentando-se ao lado <strong>de</strong>le)– Eu sinto muito... Eu <strong>de</strong>veria ser uma mulher


azoável, que tornasse mais agradável sua últimanoite em nosso país. Você tem família aqui?ELE (Resmungo, <strong>de</strong> má vonta<strong>de</strong>) – Não. Só nointerior. Meu irmão e minha cunhada.ELA – E seus pais? Já faleceram?ELE – Já.ELA – E você vive sozinho aqui?ELE – Vivo.ELA – Você não tem mulher?ELE – Que papo é esse?197ELA – É mais fácil um casal organizar a vida. Deveser difícil viver sozinho numa cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>.ELE – A família não é a única organização.ELA – Claro. Você tem razão. Como é que é asua organização?ELE – Que organização?ELA – O seu grupo...ELE – Que grupo?


ELA – Você não age sozinho. Está com um jatinhodisponível e hora marcada para a viagem. Já entendique você faz parte <strong>de</strong> uma organização.ELE – Não sei do que você está falando.ELA – Sabe... Gostaria que você me explicasseexatamente isso tudo. Eu nunca entendi. O quevocês preten<strong>de</strong>m conseguir?ELE – Você não lê os jornais? A imprensa explicatudo. Ela não diz que os atentados têm o objetivo<strong>de</strong> provocar o endurecimento do regime? Umretrocesso contra uma possível abertura?198ELA (Suspira fundo) – Ah! Você viu como somoscapazes <strong>de</strong> manter um diálogo calmo e<strong>de</strong>scontraído?ELE – Um cara da oposição disse que os responsáveispelo terror estão <strong>de</strong>ntro do próprio governo.Será? O que é que você me diz?ELA – Talvez seja melhor não nos aprofundarmos.Se conseguirmos manter nosso diálogo nasuperfície evitaremos choques <strong>de</strong> idéias e po<strong>de</strong>remoscoexistir em paz. (Suspira) Não é melhore mais <strong>de</strong>mocrático?ELE – O seu problema é que você só <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> daimprensa para informar-se. Você não percebe


que há um tipo <strong>de</strong> jornalismo que procura propositadamentetransformar os exilados políticosem heróis e silenciam quanto aos <strong>de</strong>fensores daor<strong>de</strong>m, ignorando os verda<strong>de</strong>iros heróis da Pátria,que foram friamente assassinados durante os seqüestrose os movimentos <strong>de</strong> subversão? Depoisda generosida<strong>de</strong> do governo em conce<strong>de</strong>r umaanistia ampla, a maioria dos anistiados não <strong>de</strong>monstrounem arrependimento nem gratidão.ELA – Na minha opinião, quem erra <strong>de</strong>ve pagar.Os torturadores, por exemplo. Se na pior épocada ditadura houve tortura, não po<strong>de</strong>mos admitirhoje que esses torturadores não sejam julgados.A impunida<strong>de</strong> estimula sempre, sempre. A suaorganização, por exemplo. A impunida<strong>de</strong> estimulaa continuida<strong>de</strong> das ações terroristas.199ELE – Não sei <strong>de</strong> que organização você está falando.O único terrorismo que existe no Brasil éo <strong>de</strong> esquerda.ELA – O terrorismo <strong>de</strong> esquerda não existe mais.Está <strong>de</strong>smantelado.ELE – É o que vocês dizem. Ingenuida<strong>de</strong>!ELA – Quando não existem mais terroristas <strong>de</strong>esquerda, é necessário que se invente a ação<strong>de</strong> extremistas <strong>de</strong> direita. Caso contrário, como


justificar mais e mais po<strong>de</strong>r para as forças <strong>de</strong>repressão?ELE – Só existem terroristas <strong>de</strong> esquerda. Queprovas você tem que existem terroristas <strong>de</strong> direita?ELA – Ah! Então não existem?ELE – Quantas pessoas até hoje foram presascomo terroristas <strong>de</strong> extrema direita?ELA – Dois? Um? Nenhum?200ELE – Não se conseguiu provar nada.ELA – Nunca se consegue provar nada.ELE – Todos eram inocentes.ELA – Sempre que o atentado é <strong>de</strong> direita “eles”dizem que não ficou claro o caráter político docrime. (Ri) Hipocrisia!ELE – Lidamos com fatos, não com hipóteses. (Elepega a mão <strong>de</strong>la e coloca-a em seu pênis, numsinal para que ela o masturbe)ELA (Masturbando-o) – É realmente um pessoalmuito bem organizado. Seguros <strong>de</strong> si. Seguros daimpunida<strong>de</strong>. E o resto do seu grupo? Por on<strong>de</strong>


anda a turma? Todos espalhados pelos motéisda cida<strong>de</strong>?ELE (A mão entre as coxas <strong>de</strong>la) – Você quersaber muitas coisas. E quem sabe muitas coisasnão escapa vivo para contar.ELA – É uma ameaça? (Masturba-o com maisforça) É isso? Você preten<strong>de</strong> me matar?ELE (Gemendo) – Há fronteiras... <strong>de</strong> traição?...<strong>de</strong> heroísmo?...ELA – Você preten<strong>de</strong> me matar como?ELE – On<strong>de</strong> começa uma coisa e termina a outra?201ELA – De gozo? Preten<strong>de</strong> me matar <strong>de</strong> gozo?ELE (Suspira, com prazer) – Você teria coragem<strong>de</strong> me <strong>de</strong>nunciar?ELA – Eu po<strong>de</strong>ria...ELE – Qual seria a acusação? (Geme e ri) E comque provas? Como é que você faria para quealguém acreditasse em você?ELA – Quem sabe? (Sorri) Meu marido po<strong>de</strong>riaser um político da oposição. (Ele ri) Ou então ummilitar. Um general importante.


ELE – Até que você não é <strong>de</strong> se jogar fora...ELA – Talvez um jornalista famoso, <strong>de</strong> um jornalimportante, que apóia o governo.ELE – E que tal... um car<strong>de</strong>al da igreja progressista?O presi<strong>de</strong>nte da Comissão Justiça e Paz?ELA – A organização é dona <strong>de</strong>ste motel? Seráque este motel é um aparelho que serve <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>rijoe até <strong>de</strong> sumidouro?202ELE – Por que você não verifica? Experimentechamar alguém da portaria. Levante o telefonee pergunte.ELA (Levantando-se e escapando <strong>de</strong>le) – É umaboa idéia. (Sarcasmo) Já que seu pau não sobemesmo... (Dirige-se ao fone e tira-o do gancho,colocando-o no ouvido. Num salto ele vai atéa mala, pega o revólver e encosta-o no ouvido<strong>de</strong>la) Alô?... (Assustada) É da portaria? (Treme)Por favor... (Pausa) Podia me informar... quehoras são? (Pausa) Obrigada. (Desliga o fone)ELE (Ameaçador) – Você não estava me levando asério, não é? E agora? Está acreditando agora?ELA (Suspira e tenta relaxar) – Eu pensei que estaseria uma gran<strong>de</strong> noite. Que eu iria me divertir


como nunca. Quando tudo começou até que euachei engraçado. As coisas começam assim, nãoé? Sem que a gente perceba...ELE (Cutucando-a com a arma) – Infelizmentecertos métodos são necessários... em nome <strong>de</strong>uma boa causa. E a hora é <strong>de</strong> luta, meu bem. Ahora é <strong>de</strong> guerra, meu bem. Os inimigos estão emtoda parte, em todos os lugares, meu bem... emqualquer motel. Temos que limpar os comunistasda Igreja, do governo, do teatro, do cinema, dasfábricas, das escolas. Nossa missão é promover alimpeza geral. Amanhã nós seremos os heróis.A História nos dará razão. Você vai ver. (Sorri.Retira a arma. Dá-lhe um beijo afetuoso)203ELA (Sussurra) – E como vocês preten<strong>de</strong>m conseguirtudo isso? Explodindo bombas?ELE (Guardando a arma na mala) – Mas nós nãoexistimos, meu bem. Que provas você tem <strong>de</strong> quenós existimos? Essas violências, eu te garanto,são <strong>de</strong> marginais comuns, <strong>de</strong> agentes cubanos,<strong>de</strong> traficantes <strong>de</strong> drogas... Quem somos nós?Quem é que sabe? Po<strong>de</strong>mos estar ligados a umaassociação religiosa que <strong>de</strong>fenda a família e aproprieda<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>mos ser algum grupo <strong>de</strong>sejosodo retorno ao monarquismo. Já pensou, quebeleza? Um rei com coroa e tudo? Qual a versãoque você prefere, meu bem? (Abraça-a por trás)


Ah, existe mais uma... Po<strong>de</strong>mos ser um gruposustentado pelas multinacionais, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndointeresses econômicos escusos. (Torna a beijá-la,com afeto e pieda<strong>de</strong>) Não é mesmo uma brutaconfusão? (Espreguiça-se) A única coisa certa, aúnica coisa verda<strong>de</strong>ira, é que nós <strong>de</strong>sejamos oseu bem.ELA (Riso nervoso) – O meu bem?204ELE – O seu bem. O bem dos seus filhos. E dosfilhos dos seus filhos. Somos a favor da família,eu já disse. Não fosse a família, que seria da nossapátria? Você tem o <strong>de</strong>ver, a missão, <strong>de</strong> continuarcom o seu marido. Não importa quantos chifrescresçam na cabeça <strong>de</strong>le.ELA (Grita) – Ninguém tem o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidiro que é bom para mim.ELE – Ora, que burrinha! Você sabe muito bemque você não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> porra nenhuma. Há muitose muitos anos que você não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> nem escolhenada. (Sorri) E nem saberia escolher, coitadinha.Está mal informada. Está <strong>de</strong>sorientada. Nãotem competência para escolher e <strong>de</strong>cidir nada,pobrezinha. Deixe isso conosco, meu bem. Nóssabemos o que é bom para você. Relaxe.ELA (Levantando-se) – Meu cigarro acabou.


CENA – Ele procura seu maço. Oferece um cigarroa ela. Acen<strong>de</strong>-o. Ela traga, com ansieda<strong>de</strong>, encarando-o.Andam em círculos, ambos em posição<strong>de</strong> ataque.ELA – Quanto tempo isso vai durar? Existe umlimite <strong>de</strong> tolerância para tudo.ELE – Você não se preocupa nunca em trair seumarido, seus filhos, sua família? Gostaria queseus filhos soubessem que a mãe é uma puta?ELA – Eu po<strong>de</strong>ria ir embora agora.ELE – Po<strong>de</strong>ria...205ELA – Ninguém me perguntaria nada. Todospensam que eu fui ao analista.ELE – A secretária do analista po<strong>de</strong> ter telefonado...perguntando o que aconteceu... por quevocê não compareceu...ELA – O pneu do carro furou. Fui ao cinema.ELE – Seu marido po<strong>de</strong> ter avisado a polícia. Já<strong>de</strong>vem estar procurando por você. Seus convidadospara o jantar <strong>de</strong>vem estar famintos.ELA – Há mil mentiras para contar.


ELE – Ou então você po<strong>de</strong>ria ir direto à polícia. Diriaque foi seqüestrada. Diria que foi ameaçada.ELA – O que eu iria ganhar com isso?ELE – Eu iria preso.ELA – E daí?ELE – Você diria: é um terrorista. Foi ele quemcolocou as bombas ontem.ELA – Que provas eu tenho? De que bombasvocê fala?206ELE – Inventaria. Diria um montão <strong>de</strong> mentiras.Coisas que eu não disse.ELA – Seria minha palavra contra a sua.ELE – Você ganharia publicida<strong>de</strong>. Viraria heroínada mídia. Teria seu retrato na primeira páginados jornais. Seria entrevistada pela televisão.Ficaria famosa.ELA – E o escândalo? Compensaria? Compensariaa ironia <strong>de</strong> todos? Como iria explicar o motel?Alguém iria acreditar que nós não trepamos?ELE – E a satisfação que você sentiria em se fazer<strong>de</strong> vítima, <strong>de</strong> heroína, <strong>de</strong>struindo a estabilida<strong>de</strong>


e felicida<strong>de</strong> do seu lar, arriscando-se a per<strong>de</strong>ro amor e respeito dos seus filhos, assumindo avergonha, mas, ao mesmo tempo, o orgulho <strong>de</strong>ter sido fiel e coerente com suas malditas convicçõespolíticas? Destruiu tudo... mas cumpriu seu<strong>de</strong>ver para com o partido. Denunciou o inimigo.Quem seria capaz <strong>de</strong> não amar você?ELA – E como eu po<strong>de</strong>ria encarar meus filhos?ELE – Teria sido tudo uma farsa. Você foi seqüestradae <strong>de</strong>pois se sujeitou aos meus caprichossacrificando-se em nome da paz social.ELA – Você po<strong>de</strong>ria dizer que eu sempre fui suaamante. E até sua cúmplice. E eu sairia per<strong>de</strong>ndo...sem escapatória.207ELE – Você po<strong>de</strong>ria dizer que eu te ameacei <strong>de</strong>morte. Que você corria risco <strong>de</strong> vida.ELA – Você po<strong>de</strong>ria me matar e fugir. Agora. E aídiriam que eu vim com um marginal qualquer aum motel e que fui assassinada por traficantes <strong>de</strong>cocaína. Haveria algum escândalo e <strong>de</strong>pois tudocairia no esquecimento. E você escaparia... ileso.ELE – Mas, em vez <strong>de</strong> matá-la, eu po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixálaescapar. Viva. Pessoas fanáticas como você nãotêm medo <strong>de</strong> escândalo. São capazes <strong>de</strong> tudo...


ELA – Davi contra Golias? Eu??ELE – Um gesto suicida... para o bem da Humanida<strong>de</strong>!ELA – Se eu <strong>de</strong>nunciá-lo estarei <strong>de</strong>nunciandoa mim mesma. Tenho muito mais coisas parapreservar do que você imagina.ELE – O que po<strong>de</strong> acontecer se teu marido<strong>de</strong>scobrir que você o traiu? O divórcio? E nãoé justamente isso o que você quer? O que maispo<strong>de</strong>ria acontecer?208ELA – E se você for preso? O que vai acontecercom você? Vão <strong>de</strong>scobrir alguma prova? Comoserá o teu interrogatório? Irão, por acaso, torturá-lopara arrancar informações? Quanto tempovocê vai ficar preso até que alguém telefone eor<strong>de</strong>ne que o libertem?ELE – Sou um pobre coitado. Não conheço ninguém.Ninguém me conhece. Sou um simples ehonesto bancário <strong>de</strong>sempregado.ELA – E o avião para o Paraguai?ELE – Não sei do que você está falando. Queavião é esse?


ELA – E o atentado <strong>de</strong> ontem?ELE – Nada sei sobre isso. O que foi que aconteceuontem?ELA – O que po<strong>de</strong>rá estar acontecendo agora,lá fora? Todas as estradas estarão fechadas? Osaeroportos vigiados? (Gesticula que não) Existerealmente a preocupação em capturar você?ELE – Mas quem é que me procura? Alguém seatreverá a contrariar o general? (Pega o jornale lê) O general disse que não houve atentadoterrorista, mas sim uma revolta dos própriosfuncionários do jornal. (Joga o jornal fora e a encara)Os salários estavam atrasados! Os própriosempregados explodiram as bombas. (Pausa) Alguémse atreverá a pren<strong>de</strong>r qualquer suspeitoe contrariar as <strong>de</strong>clarações do general?209ELA – Quer dizer que você afirma que existerelação entre o terrorismo e as Forças Armadas?É isso que você quer dizer?ELE – É você quem está fazendo essa relação.É você quem está afirmando esse absurdo. Sãotípicas conclusões <strong>de</strong> uma subversiva, <strong>de</strong> umacomunista disposta a jogar a opinião públicacontra as Forças Armadas!


ELA – Eu jamais po<strong>de</strong>ria afirmar uma coisa <strong>de</strong>ssas.Não sou contra as Forças Armadas. (Fuma)Há um dado que você ignora.ELE – Ah, é...?ELA – Sou filha <strong>de</strong> militar.ELE – Filha <strong>de</strong> militar? (Curioso) Quem?ELA – Meu pai é um general. Da ativa.210ELE (Incrédulo) – Ah... um general? Quem sabe euconheço? Ou será que não se trata do seu papai?Quem sabe... seu maridinho seja um general?ELA (Ri) – Não, meu marido não. Pra falar a verda<strong>de</strong>...o meu amante.ELE – O seu amante é um general??ELA – Meu marido é um intelectual. Um homemfamoso. Um best-seller. Forte candidato à Aca<strong>de</strong>miaBrasileira <strong>de</strong> Letras. (Ambos riem) Seunome sempre é cogitado para o ministério daEducação, da Cultura, essas coisas...ELE – Fantástico. Quer dizer que... qualquer queseja minha <strong>de</strong>cisão... haverá gran<strong>de</strong> repercussão.Você está muito bem cercada. Uma enormerepercussão!


ELA (Pausa) – Por algum momento... e mesmoagora, você realmente pensou em me matar?ELE – Me aju<strong>de</strong> na resposta. Você acha que eu<strong>de</strong>vo te matar?CENA – Ela vai até ele, vagarosamente. Abraçaoe beija-o nos lábios. Ele não correspon<strong>de</strong>. Elaaperta-o com força e beija-o com fúria. Um longobeijo. Mas ele insiste em não participar. Ela entãose afasta. Tira o sutiã. Tira a calcinha. Deita-sena cama. Ela gira um botão na pare<strong>de</strong> e a luz<strong>de</strong>cresce, <strong>de</strong>ixando o ambiente na penumbra.Ele a tudo observa. Ela espreguiça-se na cama,oferecendo-se. Ele aproxima-se e, nu, <strong>de</strong>ita-seao lado <strong>de</strong>la. Olhos nos olhos, um esperandoa iniciativa do outro. Outro botão acionado.Música romântica.211ELA (Voz carinhosa) – Você não gosta <strong>de</strong> música?ELE (Desliga o botão e a música) – Dispersa.(Sorri) Não foi você mesma quem disse? (Elaesten<strong>de</strong> os braços. Abraçam-se e beijam-se longamente)Você merece morrer. (Sorri) Eu <strong>de</strong>veriate matar.ELA (Sem medo) – Por quê?ELE – Por que você me traiu?


ELA – Te traí? Como?ELE – Você confessou que tem um amante. Entãonão é a primeira vez que você trai seu marido. Eagora está me traindo também. Me seduzindoe me traindo.212ELA (Encostando-se nos travesseiros, enquantoele acomoda-se <strong>de</strong> frente, sentado, com aspernas entre as <strong>de</strong>la) – O meu amante... O quevocê quer saber do meu amante? (Risada) Vocêacreditou mesmo naquela história <strong>de</strong> que euestava indo ao analista? Eu não tenho nenhumanalista. Você acha que, por acaso, eu preciso<strong>de</strong> terapia?ELE – Você ia encontrar-se com seu amante...ELA – Ia.ELE – E aí você me encontrou. Uma dupla traição.ELA – Eu estava procurando uma <strong>de</strong>sculpa paranão ir. Por isso eu parei o carro. E estou aqui.ELE – Fugindo?ELA – Alguma coisa me dizia que no encontro<strong>de</strong>sta noite ele iria terminar tudo. Iria me dispensar.Ia me dar o fora.


ELE – Não acredito. Até que você não é mulher<strong>de</strong> se jogar fora.ELA (Ri com prazer) – Foi a primeira mentiraagradável que você me disse esta noite. No fundovocê não tem malícia. No fundo você é umingênuo. Não sei como pu<strong>de</strong> chegar a sentir...medo... <strong>de</strong> você.ELE – Medo <strong>de</strong> mim por quê? Estou ficandoapaixonado por você.ELA – Não fique. Eu sou muito possessiva. Ninguémconsegue me amar durante muito tempo.ELE – Menininha levada!213ELA – Eu agora estou iniciando um novo aprendizadono meu relacionamento com os homens.Estou apren<strong>de</strong>ndo a ir para a cama sem envolvimentoemocional. Estou resolvida a apren<strong>de</strong>r...Começando com você.ELE – Até que... em outras circunstâncias... nóspo<strong>de</strong>ríamos ter um caso. Talvez até <strong>de</strong>sse certo.ELA (Ri) – Você não presta mesmo. (Beijam-se) Evocê...? Hem? E você?ELE – O que é que tem?


ELA – Não tem nenhuma mulher?ELE – Não.ELA – Nunca esteve apaixonado?ELE – Já.ELA – E por que não <strong>de</strong>u certo?ELE – Ela morreu.ELA – Ah...214ELE – Foi assassinada.ELA – Eu... sinto muito... Sinceramente...(Arrepia-se)ELE – Você está com frio?ELA – Não.ELE – Você está arrepiada. Eu não queria impressionarvocê.ELA – Eu não estou impressionada.ELE (Acariciando-a) – Ela... Já faz tempo que elamorreu...


ELA – Se você não quiser falar sobre isso...ELE – Eu não quero falar sobre isso.ELA (Acariciando os cabelos <strong>de</strong>le) – Você temuma pequena cicatriz na testa. Eu não havianotado antes. Fica escondida.ELE (Acariciando as coxas <strong>de</strong>la) – Você tem umaverruga... (Sorri) Bem no meio das coxas.ELA – Você não sente falta <strong>de</strong> amor?ELE – Não me preocupo com isso.ELA – Tem outras preocupações.215ELE (Ri) – É. Tenho.ELA – Meter-se nisso em que você se meteu... éuma forma <strong>de</strong> vingança... <strong>de</strong> represália... pelamorte <strong>de</strong>la?ELE – Eu não disse que ela me amava.ELA – Ela não o amava?ELE – Ela mentia o tempo todo. Me enganava.Me traía.ELA – E então você a matou...


ELE (Ri) – Boba! Claro que não. Eu nunca mateininguém.ELA – Nunca?ELE – Eu estudava engenharia. Tinha participaçãopolítica na universida<strong>de</strong>.ELA – No Diretório?ELE – Mais ou menos.ELA – Mais ou menos como?ELE – Eu ganhava algum por fora.216ELA – Dedo-duro?ELE – Dê o nome que você quiser.ELA – Dava a ficha dos colegas?ELE – Mas eu nunca pensei que ela... estivessedo outro lado. Marcava bobeira o tempo todo...Idiota que eu era. E ela representava o tempotodo, me investigando... para o inimigo. Até queum dia eu <strong>de</strong>scobri. (Pausa longa, triste)ELA – E aí? Me conte! O que foi que você fez?ELE – Ela foi presa. (Pausa) Mas eu fiz um tratocom eles. Ninguém <strong>de</strong>veria fazer nenhum mal a


ela. (Pausa) Mas ela foi burra. (Voz rouca) Tentoufugir. Tentou fugir do interrogatório. Não tevecoragem <strong>de</strong> enfrentar a barra. (Pausa) Preferiu sematar. Jogou-se da janela. Morreu na queda.ELA (Após longo silêncio) – Mas você havia ditoque ela foi assassinada!ELE (Como que <strong>de</strong>spertando) – Eu disse? (Pausa)Você enten<strong>de</strong>u mal. Foi ela quem se matou. Oinquérito comprovou que foi suicídio. Foi horrível!Ela morreu em meus braços.ELA – Você estava lá? Então você estava lá!ELE – Eu? Eu não disse isso. (Pausa) Você enten<strong>de</strong>umal. Eu estava contando um filme que viontem à noite. Fiquei até tar<strong>de</strong> assistindo televisão.Você gosta <strong>de</strong> filmes antigos? (Ela faz quesim) Eu curto muito. (Pausa) Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais paraesquecer. O nome era este. (Sorri) An affair toremember. Uma história <strong>de</strong> amor, como aquelas<strong>de</strong> antigamente. Você não gosta?217ELA – Eu adoro.ELE – Eu também. (Pausa) Você conhece a DeborahKerr? (Ela faz que sim) Ela e o Cary Grantse conheceram num navio. E <strong>de</strong>pois ele a levoupara conhecer a avó <strong>de</strong>le. (Triste) Ela vivia sozi-


218nha... na maior solidão. Teve uma hora que euquase chorei. A avó começou a tocar uma músicano piano... enquanto ao longe se ouvia o apitodo navio, que ia partir... (Ele começa a cantarbaixinho, com voz rouca, <strong>de</strong>vagar, emocionado)Our love affair – is a wondrous thing – thatwe’ll rejoice – in remembering. (Ela começa adar-lhe beijinhos carinhosos e maternais) Ourlove was born – with our first embrace – and apage was torn out – of mine and space. Our loveaffair... (Ele interrompe a canção. Será que estáchorando? Ela o abraça e o envolve com muitocarinho. Ficam mergulhados, estáticos, um nooutro, comovidos)ELA (Afastando-o, <strong>de</strong>licadamente) – Quero temostrar uma coisa. (Pega a bolsa, acomoda-senovamente entre as pernas <strong>de</strong>le, abre a bolsa etira uma fotografia, sorri<strong>de</strong>nte) Meus filhos!ELE (Examinando a foto) – Seus filhos?ELA – Não são lindos?ELE – São parecidos com você.ELA – Você é a primeira pessoa que diz isso.CENA – Guarda a foto. Beijam-se com carinho. Osbeijos vão aumentando <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, pouco a


pouco. Ela fica excitada e geme baixinho, passiva,cordata, imóvel, abandonando-se, <strong>de</strong>ixandoque ele fique sobre ela, comandando. E ele tenta,tenta, ele tenta, tenta, mas não consegue. Eentão ele sai <strong>de</strong> cima <strong>de</strong>la, em <strong>de</strong>sespero, aflito,mor<strong>de</strong>ndo o punho fechado.ELA – Não, por favor! Venha. Vamos <strong>de</strong> novo.Por favor. Fale. Explique do jeito que você quer.Eu grito, eu gemo alto, do jeito que você quiser.Trepe em cima <strong>de</strong> mim. Por favor. Eu sou comunista,meu amor. Eu falo o que você quiser.(Geme) Eu sou comunista!ELE (Jogando-se para trás, <strong>de</strong>itado. Ela gira efica sobre ele) Me chupe.219ELA – Não. Chupar não. Eu já disse que não.ELE – Tente. Só uma vez. (Súplice) Por favor.Aí eu vou conseguir. Eu prometo. Eu prometoque aí eu fico louco, vou fazer tudo o que vocêquiser, você vai adorar, vou te matar <strong>de</strong> prazer,vou te dar prazer como você nunca sentiu emtoda sua vida.CENA – Ela tenta. Abaixa a cabeça e beija o peito<strong>de</strong>le, começando a <strong>de</strong>scer, vagarosamente.Mas a repulsa é maior. Ela pula da cama, semconseguir.


220ELA – Um cigarro. Preciso <strong>de</strong> um cigarro. (Procurafreneticamente, enquanto ele fica <strong>de</strong>itado.Encontra. Começa a fumar) A Deborah Kerr nãomorre. (Nervosa) Eu vi o filme. Ela não morrenos braços <strong>de</strong>le. O filme termina em “happyend”. A avó sim... A avó morre. Mas ela morresozinha. (Ele senta-se na cama e veste a cueca.Ela veste a calcinha. Estão tensos, aborrecidos,incomodados) Realmente eu não consigo. Pormais que eu tente eu não consigo. É uma questão<strong>de</strong> submissão, enten<strong>de</strong>? É uma questão <strong>de</strong>postura. Você não me chupa. Então eu não techupo. Você quer que eu fique por baixo, ajoelhada,submissa. Eu não fico. Eu não aceito.Minha cabeça não aceita.ELE (Triste) – Queria te dar prazer. Te fazer feliz.E não consigo. (Ficam pensativos. Breve momento<strong>de</strong> silêncio)ELA (Calma) – Tenho uma novida<strong>de</strong> pra você.(Sorri) Eu não sou comunista. Não sou comunista,não sou esquerdista, não sou merda <strong>de</strong> “ista”nenhuma. Inclusive nem tenho saco para agüentarpapo <strong>de</strong> gente <strong>de</strong> esquerda. Esse blá-blá-blá<strong>de</strong> esquerda e direita já era. Acho intolerávelqualquer tipo <strong>de</strong> radicalismo... no po<strong>de</strong>r. Soucontra qualquer ditadura, enten<strong>de</strong>? (Fuma) Éque, diante <strong>de</strong>ssa situação, parece que somosobrigados a nos comportar como simpatizantes


da esquerda... parece que nos forçam a isso,como única maneira <strong>de</strong> discordar... <strong>de</strong> protestar...É isso, sabe? Deu pra me enten<strong>de</strong>r?ELE (Acen<strong>de</strong> um cigarro e sorri) – Tenho umanovida<strong>de</strong> pra você. (Pausa) Eu também queroque todos se fodam. Eu quero mais é me mandar,viver minha vida. Estou cansado <strong>de</strong> cumpriror<strong>de</strong>ns, sem saber exatamente até on<strong>de</strong> tudo issovai me levar. Já não acredito mais... (Coloca osbraços sobre os ombros <strong>de</strong>la) Estamos perdidos.(Sorri) Acho que não fomos bem doutrinados...Ou então... Todos os caminhos que aí estão...são caminhos errados...ELA (Brinca) – Que país é este? (Traga) Que motelé este? (Ri) Até que ponto dissemos verda<strong>de</strong>s ementiras um ao outro?221ELE – Se pelo menos eu tivesse trazido uma revistinha<strong>de</strong> sacanagem! Às vezes olhando... euconsigo...ELA – Acho que nós discutimos <strong>de</strong>mais.ELE – Pois então não vamos mais discutir! (Levanta-se.Ela levanta-se também. Abraçam-secom força. O beijo <strong>de</strong>le é com raiva, pela suaimpotência) Acho que está na hora <strong>de</strong> tomarum banho...


ELA – Um banho faz bem.ELE – Nunca vou me perdoar... Por ter fracassado.ELA (Acaricia-o) – Eu prometo que vou te esperar.Você promete que...ELE – Eu volto já. Acredite.ELA – Você jura?222ELE – Eu juro. Eu prometo que te encontro, nemque seja no fim do terceiro mundo. (Beijam-se,com amor) Você está suando. (Separam-se, cúmplices,<strong>de</strong>sarmados)ELA – Você também. É o calor.ELE – Ligue o ar-condicionado.ELA – Não gosto <strong>de</strong> ar-condicionado. Prefiroabrir a janela.CENA – Separam-se num sorriso. Ela vai abrira janela. Enquanto isso, rápido, sem que elaperceba, ele tira a chave da porta e escon<strong>de</strong>-aconsigo. O barulho do trânsito vem lá <strong>de</strong> fora.Ele recolhe peças <strong>de</strong> roupa para vestir.ELA – Agora refrescou. Assim é melhor.


ELE – Vamos tomar um banho. Juntos.ELA – Não, obrigada. Eu não quero.ELE – Você vai se sentir melhor.ELA (Acen<strong>de</strong> um cigarro) – Vá você, sozinho.Vai.ELE – Você tem vergonha? (Ri) De tomar banhocomigo?ELA – Claro que não. (Pausa) Mas eu não queromolhar meu cabelo. (Vai até ele e beija-o) Prefiroficar assim, lambuzada. (Passa a língua no peito<strong>de</strong>le) Depois que você for embora... eu queroguardar comigo o seu cheiro, o seu gosto, o seusuor... (Lambe-o) O seu sal...223ELE (Ri) – Você promete não ser possessiva?ELA – Não. Não prometo nada. (Abraça-o)CENA – Ele ri, abraça-a e gira com ela nos braços,feliz. Beijam-se com paixão. Ele dirige-se ao banheiro.Antes <strong>de</strong> entrar aponta a janela.ELE – Cuidado!ELA – Cuidado com quê?


ELE – Não vá se <strong>de</strong>bruçar e cair. É muito alto.ELA – Não se preocupe. Não pretendo fugir <strong>de</strong>você. E nem vou <strong>de</strong>ixar você fugir <strong>de</strong> mim.ELE – É melhor fechar. Senão você pega umresfriado.224CENA – Ele entra no banheiro e sai <strong>de</strong> cena. Aporta é fechada. Ela ouve o barulho da água. Eleassobia e cantarola An affair to remember. Elaestá paralisada. Lá fora, bem distante, o som dasirene da polícia. Isso parece acordá-la. Rápida e<strong>de</strong>sesperada, ela começa a vestir-se, colocandoa blusa, a saia, os sapatos.... Os sapatos! On<strong>de</strong>estão os sapatos?? Pega a bolsa e corre para aporta. A porta está trancada! A chave! On<strong>de</strong>está a chave? Desesperada, começa a procurara chave em todos os cantos. Desiste. Corre paraa janela, examina a altura e <strong>de</strong>siste. Está nervosa,apavorada. Resolve examinar as coisas <strong>de</strong>le,abrindo a mala. Um revólver! Ela encontra orevólver, mas não sabe o que fazer com a arma.Lembra-se do telefone.ELA – Alô? (Ofegante) Alô? Quem... É da portaria?VOZ DELA EM OFF – Cúmplices! E se todos foremcúmplices? Ele vai me matar. Meu Deus! Eu sei


que ele vai me matar! (O telefone quase cai <strong>de</strong>suas mãos)ELA (Arrepio <strong>de</strong> medo e <strong>de</strong>sespero) – Portaria?Eu... As horas... Por favor. Po<strong>de</strong>ria me dizer ashoras? (Aparentando calma) Escute. Por favor.Será que você po<strong>de</strong>ria me arrumar uma linha?Sim. Uma ligação para fora. (Pausa) Obrigada.(Ele continua no chuveiro. Ela consegue ouviloperfeitamente. Conseguiu a linha. Nervosa,disca um número e erra. Disca outra vez) Alô?Alô? (Geme, chora, ri) Sou eu. Escute. Não, nãofaça perguntas. Eu não tenho tempo. Preciso <strong>de</strong>socorro. Já. Agora. Imediatamente. Fique quieto.Preste atenção. Eu não posso <strong>de</strong>morar muito.Não, não é brinca<strong>de</strong>ira. (Grita) Pare com isso!Venha correndo. (Presta atenção nele) Correndo.Voando. Chame a polícia. Eu estou em perigo.Venha logo. Estou num motel. Anote. O nomedo motel é América. Isso! Motel América. Essemesmo. É urgente! Corra! (Quase chorando) Eleestá no banheiro agora. Eu sei que ele vai mematar. É um assassino. Man<strong>de</strong> a polícia, urgente.Não, não tenho tempo! Pelo amor <strong>de</strong> Deus!225CENA – Assustada, <strong>de</strong>sliga o telefone. Prestaatenção, <strong>de</strong>sconfiada. O barulho da água dochuveiro parou. Ele está em silêncio, sem cantar.Ela pega o revólver com as duas mãos e sentasena cama, segurando a arma, apontando-a


para a porta do banheiro, esperando-o sair. Asmãos tremem. A arma treme. E então ela... ela<strong>de</strong>siste. Começa a procurar algum lugar on<strong>de</strong>possa escon<strong>de</strong>r a arma. Ele volta a assobiar e elaassusta-se. Finalmente <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>-se por um lugar.Escon<strong>de</strong> a arma ali. Tenta controlar-se. Assumeuma postura <strong>de</strong> autocontrole.ELA – Você não escapa. Eu vou te pren<strong>de</strong>r. Vou tesegurar aqui, até eles chegarem. (Olha a janela)Mas, por favor, venham rápido, rápido!226ELE (Sai do banheiro, <strong>de</strong>scontraído e sorri<strong>de</strong>nte.Está vestido, com os cabelos molhados, enxugando-oscom a toalha) Você já se vestiu??ELA (Aparentando tranqüilida<strong>de</strong>) – Já. Já mevesti.ELE – O que você vai dizer em casa?ELA – O quê? Que foi que você disse?ELE – Eu estava pensando... o seu amante... eunão vou permitir que você continue com ele. Souum homem ciumento.ELA – Não se preocupe. Está tudo terminado.ELE – E o seu marido?


ELA (Fumando) – Estou cansada <strong>de</strong> ser covar<strong>de</strong>.(Suspira fundo) Já estou cansada em não assumirnada. De não enfrentar nada!ELE – Você vai abandoná-lo? (Sorri) Decidiu?ELA – Decidi. Alguém precisa ter coragem para daro primeiro passo. É hora <strong>de</strong> terminar com tudo.ELE (Já vestido e pronto) – Você seria capaz <strong>de</strong>fugir comigo? Agora??ELA – Agora?? Não. Agora não. Tem que ser uma<strong>de</strong>cisão pensada. Não exagere.CENA – Riem. Ele começa a arrumar suas coisas.Recolhe roupas, objetos e outros, pronto parafechar a mala. Ela dirige-se ao espelho, abre abolsa e começa a se maquiar.227ELA – E você? Você seria capaz <strong>de</strong> se entregar?ELE – Me entregar?ELA – Em vez <strong>de</strong> partir... Você po<strong>de</strong>ria ficar. Seentregar. Eu ficaria ao seu lado. O tempo todo.Eu tentaria ajudar... Tenho algumas amiza<strong>de</strong>sinfluentes... você sabe.ELE – Agora eu não posso. Você sabe que existemcompromissos que não po<strong>de</strong>m ser rompidos.


Seria a mesma coisa que traição. (Pausa) Eles me“apagam”... Compreen<strong>de</strong>?ELA – Compreendo. (Pausa) É horrível... É horrível.ELE (Examinando seu relógio) – É melhor vocêse apressar.ELA (Calma) – Por que essa pressa agora?ELE – Tive uma idéia enquanto tomava banho.Alterei meus planos. Preciso que você me dêuma carona até um lugar. Urgente. Tenho quechegar lá no máximo em meia-hora...228ELA – Mas... e o avião? Por que essa pressa repentina?ELE – Eu já <strong>de</strong>cidi. Você vai comigo.ELA – Eu... Você quer que eu vá com você? Mas...pra on<strong>de</strong>?ELE (Sorri) – Não se preocupe. Não vou te fazernenhum mal. É só uma carona. Uma mudança<strong>de</strong> planos. Depois você estará livre. E po<strong>de</strong>rá irembora. (Ele fecha a mala. Não percebeu a ausênciado revólver. Coloca a chave <strong>de</strong> volta naporta <strong>de</strong> entrada)ELA – Mas por que você fez isso?


ELE – Isso o quê?ELA – Por que você fechou a porta à chave? Nãoconfia em mim? Pensou que eu fosse fugir?ELE – Deixe <strong>de</strong> besteira. Rápido, vamos! Arrumesuas coisas e vamos dar no pé. Correndo! (Aflito)Essa maquiagem vai <strong>de</strong>morar muito?ELA – Você não quer que eu saia <strong>de</strong> qualquerjeito, quer?ELE – Pare com isso. Você está ótima.ELA (Aparentando calma) – Você, quando quer,sabe ser gentil.229ELE – Por favor! Rápido! (Aflito, grita) Vamosembora, porra!!ELA (Levanta-se e arruma-se, <strong>de</strong>vagar) – Dizemque toda pessoa que tenta matar o presi<strong>de</strong>nte...o presi<strong>de</strong>nte dos Estados Unidos... não é necessariamenteuma pessoa doente. Com algum<strong>de</strong>sequilíbrio mental, enten<strong>de</strong>?ELE – Mas por que esse papo agora? Eu estoucom pressa!ELA – É uma necessida<strong>de</strong>... é uma vonta<strong>de</strong> maluca...<strong>de</strong> ser famoso... pelo menos por um dia.


Dizem que é uma vonta<strong>de</strong>... <strong>de</strong> entrar para aHistória. Interferir na História, enten<strong>de</strong>?ELE – Claro. Interferir na História. Tudo bem.(Impaciente) Está pronta? Po<strong>de</strong>mos ir??ELA – Talvez a História completa nunca venha aser contada. (Mudando <strong>de</strong> tom) Você seria capaz<strong>de</strong> matar o presi<strong>de</strong>nte?230ELE (Ri, nervoso) – Não com o meu revólver.Teria que ser uma arma mais sofisticada. (Brevesilêncio. Encaram-se, <strong>de</strong>sconfiados. Ele está pensativo.E então lembra-se da arma) Meu revólver!On<strong>de</strong> está o meu revólver?CENA – Ele corre até a mala. Começa a abri-la,procurando. Ela hesita por um segundo e <strong>de</strong>pois,num salto, corre até ele, agarra-o, puxa-o,abraçando-o, beijando-o.ELA – Esqueça isso agora! (Grita) Por favor! Mecoma! Me coma! Não me abandone agora!ELE (Surpreso) Mas o que é? O que foi??ELA – Eu... Eu acho que eu... eu te amo. De verda<strong>de</strong>.(Beija-o apaixonadamente. Abraça-o com força.Após a surpresa, ele se abandona. Ela o agarra <strong>de</strong>todas as formas, como que querendo aprisioná-lo)


Não! Eu não vou <strong>de</strong>ixar você ir embora, assim...pra que <strong>de</strong>pois você se esqueça <strong>de</strong> mim!ELE – Mas eu preciso, meu bem! Eu preciso!ELA – Não. Ainda não. Eu quero te dar um presente<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida.ELE (Impaciente e divertido) – Um presente?Justo agora? Mas que presente??ELA – Para que você nunca se esqueça <strong>de</strong> mim.Para que você se lembre <strong>de</strong> mim para sempre.CENA – Lentamente, vagarosamente, ela começaa se ajoelhar, frente a ele, <strong>de</strong>scendo sua bocapela roupa <strong>de</strong>le, pelo peito <strong>de</strong>le, até, finalmente,chegar ao sexo <strong>de</strong>le. Ela segura os braços <strong>de</strong>lecom as mãos. As pernas <strong>de</strong>le estão abertas. Elalambe o sexo <strong>de</strong>le, sobre a calça.231ELE (Gemendo) – É isso que você quer? É esse omeu presente? (Geme e ri <strong>de</strong> prazer)CENA – Ele balança os quadris, com volúpia. Ela,ajoelhada, abre e abaixa as calças <strong>de</strong>le. Puxa ocorpo <strong>de</strong>le para ela.ELE (Carinhoso, gemendo <strong>de</strong> prazer) – Meu bem!Criou coragem?? Criou coragem, meu bem???


232CENA – E ela, ajoelhada, submissa, com a cabeçamergulhada entre as coxas <strong>de</strong>le, vencendo arepugnância pela felação, segura-o, pren<strong>de</strong>-o.Con<strong>de</strong>nam-se. O som da sirene da polícia explo<strong>de</strong>enlouquecedor no ambiente, que mergulhanuma súbita escuridão.


As Malvadas


As MalvadasAto únicoPersonagens:1. Geraldine Leão. Nome artístico <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong>Jesus Menezes, viúva <strong>de</strong> Francesco Leone (nascidona itália, fotógrafo cinematográfico da VeraCruz), falecido em 1954. Atriz veterana, média<strong>de</strong> 60 anos, iniciou sua carreira na década <strong>de</strong> 50.2. Kika Leão. Nome artístico <strong>de</strong> Francisca Leão,filha <strong>de</strong> Geraldine e Francesco. Média <strong>de</strong> 40anos. Atriz e dramaturga, ainda em busca dosucesso.235Cenários:Camarim e bastidores <strong>de</strong> um teatro <strong>de</strong> segundacategoria. Acomodações para duas atrizes,cada uma com seu espaço e espelho. Fotos dopassado <strong>de</strong> Geraldine. Um pôster <strong>de</strong> Elis Reginano espaço <strong>de</strong> Kika (foram amigas). Há umgran<strong>de</strong> cartaz promocional, anunciando a peçaque estão encenando: Palhaços, <strong>de</strong> TimochencoWehbi, com <strong>de</strong>staque para o nome <strong>de</strong> GeraldineLeão. As fotos po<strong>de</strong>m ter movimento, num planoimaginário, não necessariamente realista, comefeitos <strong>de</strong> luz. Em plano menor, os nomes <strong>de</strong>


Kika Leão e do diretor <strong>de</strong>sta peça. Há um cenáriocomplementar que surge na cena final, paraPalhaços, mostrando o camarim <strong>de</strong> um velho epequeno circo, com um banquinho, um espelho,uma mesa, uma lona.Citações <strong>de</strong> trechos dos seguintes textos:1. Palhaços. Timochenco Wehbi. Brasil.2. Vestido <strong>de</strong> noiva. Nelson rodrigues. Brasil.3. The Prime of Miss Jean Brodie. Muriel spark.Inglaterra.2364. All About Eve. Mary Orr/joseph l. Mankiewicz.Eua.5. A Streetcar Named Desire. Tennessee Williams.EUA.Trilha sonora:1. O compositor me disse. De Gilberto Gil. ComElis Regina.2. Non, je ne regrette rien. De Michel Vaucaire eCharles Dumont. Com Edith Piaf.3. I clown. De Nino Rota. Com New Japan PhilarmonicOrchestra.


4. Jean. De Don Costa e Rod Mckuen. Com RodMckuen.Observações:1. Muitos fatos, situações e personagens sãofictícios.2. Comentários das personagens sobre fatos verda<strong>de</strong>irose personalida<strong>de</strong>s reais, vivas ou mortas,são <strong>de</strong> inteira responsabilida<strong>de</strong> do autor.3. A reprodução <strong>de</strong> trechos <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> outros autoresestá <strong>de</strong>ntro das normas da legalida<strong>de</strong>.4. Não indico no texto o momento em que asatrizes começam a se vestir e maquiar para aencenação <strong>de</strong> Palhaços (Kika como visitantee Geraldine como o Palhaço careta). A direçãoresolve. Só sei que ambas <strong>de</strong>verão estarprontas ao som da terceira campainha.237CENA – Kika Leão entra em cena trazendo duasmalas. Primeiro hesita, in<strong>de</strong>cisa. Depois, <strong>de</strong>cidida,guarda as malas em local não visível. Examina,com certo carinho, suas coisas e o pôster <strong>de</strong>Elis. Tira o casaco, pega uma fita cassete e coloca.Acomoda-se. Concentra-se. Relaxamento ao somda música O compositor me disse. Viaja no some na mensagem. Imediatamente ao término da


música, entra em cena Geraldine. Desgostosa, vaiaté o toca-fitas e <strong>de</strong>sliga-o. Kika, concentrada,ignora. Geraldine coloca sua música preferida:Non, je ne regrette rien. Tira a roupa pesada,serve-se <strong>de</strong> conhaque, gargareja, engole. Acen<strong>de</strong>um cigarro. Bebe, fuma, olha com certo <strong>de</strong>sdéma filha, imita Piaf às vezes, <strong>de</strong>sconcentra-se, examinao ambiente com nojo. Vez por outra viajano som, talvez lembrando-se <strong>de</strong> bons momentosno passado. Vaidosa, examina-se ao espelho.Quando a música termina, Kika toma a iniciativa<strong>de</strong> <strong>de</strong>sligar o som. Geraldine a examina, comcerto interesse.238GERALDINE – On<strong>de</strong> foi que minha menina andouo dia inteiro?KIKA – Resolvendo coisas.GERALDINE – Pensei que fôssemos almoçar juntas.KIKA – Saí ao meio-dia. A senhora ainda dormia.GERALDINE – Ah... Tive insônia à noite. Vocêsabe como tenho andado ansiosa nos últimosdias. Deo gratias que a temporada termina hoje.Amanhã vai ser um dia <strong>de</strong> cão. (Pausa) Não gosto<strong>de</strong> ponte aérea. Tenho medo <strong>de</strong> avião. Tenhomedo do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Mas eu vou me adaptar.Noblesse oblige.


KIKA – A senhora não <strong>de</strong>via fumar tanto.GERALDINE – Vai reclamar <strong>de</strong> novo do cheiro docigarro? A área <strong>de</strong> não fumantes é ali. (Indica)KIKA – Não <strong>de</strong>via beber antes do espetáculo.GERALDINE – É uma exceção. É comemoração.Afinal é a última noite. Amanhã o cenário vaiprum lado e nós vamos pra outro. (Bate na ma<strong>de</strong>ira)Como é que está a casa?KIKA – Sete ingressos vendidos.GERALDINE – Com sete não represento. A produçãosabe que exijo um quorum <strong>de</strong> vinte espectadores.239KIKA – Ontem fizemos com menos.GERALDINE – A Mariângela estava na platéia.O bandido do Clóvis Garcia prometeu que viriae não veio.KIKA – O que adianta a presença <strong>de</strong>les agora?Por que não vieram no início da temporada?GERALDINE – Telefonei pro Abreu, convidandopra hoje.KIKA – O Sílvio <strong>de</strong> Abreu?


GERALDINE – Não. O Abreu da Guerra Santa. Elefoi amigo do Timochenco. Deveria ter um pouco<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração.KIKA – A imprensa simplesmente nos esnobou.Nenhuma crítica publicada, nem a favor, nemcontra.240GERALDINE – Não importa que o teatro esteja vazio.Pensando bem... Quero sentir a platéia na escuridão.Quando estou <strong>de</strong> bom astral tenho ataques <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>.Não importa que sejam sete. Vou mostrardo que sou capaz. Se apenas sete vieram me ver,não vou <strong>de</strong>cepcioná-los. (Pausa) An<strong>de</strong>i analisandoo silêncio da imprensa e cheguei a uma conclusão.Fizeram isso por respeito. Não vamos nos fazer <strong>de</strong>cegas. Você sabe tanto quanto eu que a produçãofoi mo<strong>de</strong>sta. Quando aceitei fazer este trabalho nãosabia que o produtor era pão-duro e mau-caráter.Nem que o teatro seria <strong>de</strong> quinta categoria.KIKA (Justificando) – O aluguel da casa é umafortuna.GERALDINE – Se a crítica não veio foi por respeitoà minha pessoa. Quiseram me poupar doconstrangimento.KIKA – O jornal <strong>de</strong> hoje falou que este é o últimoespetáculo.


GERALDINE – Meu não.KIKA – Estou falando do teatro, do fechamentoda sala.GERALDINE – Après moi, le déluge.KIKA – É um absurdo fechar um teatro e transformá-lona Igreja Universal do Reino <strong>de</strong> Deus.GERALDINE – Mudam os atores. Mas continuaa ser teatro.KIKA – Palhaços!GERALDINE (Desdém) – Isso... Palhaços! Eu aviseique não ia dar certo. (Enumera) Autor brasileiro.Drama. Proposta démodée. Bem que eu não queria.Só aceitei por tua causa, pra te dar uma força.241KIKA – O texto é lindo. O espetáculo é digno.GERALDINE – Sejamos honestas. O que se salvaé a minha interpretação. Produto brasileiro nãopresta. Autores brasileiros – que se salvam – temoscinco ou seis, se muito.KIKA – A senhora me <strong>de</strong>sculpe, mas eu discordo.GERALDINE – Não peça <strong>de</strong>sculpas. Você faz issoo tempo todo.


KIKA – Com todo o respeito aos dramaturgosestrangeiros, e aos medalhões brasileiros quesó viram <strong>de</strong>uses com décadas <strong>de</strong> atraso, nós estamosencenando, com muita honra, um autorbrasileiro. Não importa que ele nunca tenha sidoencenado em Londres ou Nova Iorque. O fracassonão me envergonha. Eu acho, mamãe, que asenhora também <strong>de</strong>veria se sentir orgulhosa.GERALDINE – Orgulhosa com quê? Por emprestarmeu prestígio a uma montagem que, neste exatomomento, aposto, <strong>de</strong>ve estar sendo encenadapor um grupo amador em Osasco?242KIKA – Essa xenofilia não combina com seu generosida<strong>de</strong>.GERALDINE – Autor brasileiro não dá sorte. E,no caso do Timó, esta não foi a primeira vez. Eu<strong>de</strong>via ter estreado A Dama <strong>de</strong> Copas em 1973,no teatro da Ruth. O Timó gostava <strong>de</strong> mim,reconheço, mas o Odavlas Petti queria porquequeria a Yolanda Cardoso. Eu e a Yolanda temosestilos completamente diferentes. Ela sabe servulgar, ser grossa. Eu não. Minha interpretaçãoé sempre sutil, com nuances...KIKA – E como podia ser a escolhida? De sutil apersonagem não tinha nada.


GERALDINE – Talvez você tenha razão. A verda<strong>de</strong>é que eu nunca consegui realmente ser grossa.Minha educação foi francesa. O seu pai era italiano.Tive uma formação européia. Você sabepor que eu não fiz Hair?KIKA – Por culpa do Paulo Herculano.GERALDINE – Essa é outra história. Cheguei atéa fumar maconha pra me entrosar com o elenco.Mas nem com baseado na cabeça conseguia servulgar. Pedi <strong>de</strong>sculpas ao Adhemar Guerra, queDeus o tenha, e caí fora. (Fuma) Esse silêncio naplatéia... O público <strong>de</strong>ve estar no foyer. Afinal,quais as coisas que você andou resolvendo atar<strong>de</strong> inteira?243KIKA (Desconversando) – Nada. Nada <strong>de</strong> especial.Depois eu comento.GERALDINE – Está com segredinhos com sua mãe?KIKA – Depois a gente conversa. Antes <strong>de</strong> entrarem cena a senhora sempre fica muito excitada.GERALDINE (Bebe) – Excitada já estou. Ponteaérea. Avião. Será que o público do Rio <strong>de</strong>Janeiro ainda se lembra <strong>de</strong> mim? Ora, que bobagem!Claro que se lembra. Se o Gabriel Vilelame escolheu para o papel, <strong>de</strong>ve ter sido pelas


inúmeras recomendações. (Lembrando) Foi umfuror a minha Blanche du Bois. Dei uma ótimainterview pro Pasquim. Também saí na “Fatos eFotos”. Esse convite não po<strong>de</strong>ria ter vindo emmelhor hora. Vou fazer uma rentrée apoteótica.(Pausa) Nos primeiros dias pretendo ficar numflat, se a produção pagar. Gosto <strong>de</strong> manterminha privacida<strong>de</strong>. Mas é quase certeza que oZara e a Vivinha vão querer me hospedar. E aBeyla Genauer? Sei que tenho seu telefone emalgum lugar. (Triste) Se a Yara Amaral não tivessemorrido... Nós fomos tão amigas!244KIKA – Não disse? A senhora se excita facilmente.E <strong>de</strong>pois fica <strong>de</strong>primida com a mesma rapi<strong>de</strong>z.É esse mo<strong>de</strong>rador <strong>de</strong> apetite que a senhoratoma. (Repreen<strong>de</strong>, <strong>de</strong>licada) E ainda misturacom álcool!GERALDINE – Alea jacta est! A partir <strong>de</strong> amanhãcomeça uma nova fase na carreira <strong>de</strong> GeraldineLeão. The prime of Miss Jean Brodie! Que ótimaidéia do Gabriel! Um tour <strong>de</strong> force que não vou<strong>de</strong>sperdiçar. Texto forte, autora inglesa. Querover se <strong>de</strong>sta vez a crítica não vai aplaudir! Ensaiecomigo aquele trecho.KIKA – De novo, mamãe? Vamos entrar em cenadaqui a pouco.


GERALDINE – Estou no pique. Não corte meubarato. Dá a <strong>de</strong>ixa, vai.KIKA – Ah, mamãe! Por favor! Agora não!GERALDINE (Firme) – A <strong>de</strong>ixa! Vamos!KIKA (A contragosto) – “Você é perigosa. Ascrianças não <strong>de</strong>veriam ser expostas à sua influência”.GERALDINE – Como po<strong>de</strong> pensar uma coisa<strong>de</strong>ssas? Como po<strong>de</strong> pensar que po<strong>de</strong>ria prejudicá-las?KIKA – Você me prejudicou.245GERALDINE – Você me assassinou.KIKA – “Por que tem sempre que ser melodramática?É mesmo uma mulher ridícula! (Pausa)O que fará agora?GERALDINE (Confusa) – “Não sei. Mas não seesqueça que sou uma <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> WillieBrodie. Foi um homem <strong>de</strong> posses... Um fabricante<strong>de</strong> móveis e projetista <strong>de</strong> forcas... e membrodo Conselho da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Edimburgo. (Altiva)Teve duas amantes que lhe <strong>de</strong>ram cinco filhos.Gostava <strong>de</strong> jogar dados e <strong>de</strong> galos <strong>de</strong> briga.


Foi preso por ter roubado o <strong>de</strong>partamento<strong>de</strong> impostos. Não que precisasse <strong>de</strong> dinheiro.Roubou pela emoção. Morreu feliz numa forca<strong>de</strong>senhada por ele em 1788. (Orgulho) Assim éminha família!”KIKA – Sabia que se levantaria como uma fênix.Não preciso me preocupar com você.GERALDINE – Imagino que este seja o seu dom.Matar sem preocupação. Você é que é perigosa.246KIKA (Desanimada) – Se nada <strong>de</strong>r certo na minhavida, vou me mudar para o interior. Vou mudar<strong>de</strong> valores.GERALDINE (Surpresa) – Isso não está no texto!KIKA – Quero ter uma casinha, um quintal, umahorta. Quero ter um animal que me ame. Umacachorrinha, uma ca<strong>de</strong>linha que obe<strong>de</strong>ça aosmeus comandos. Alguém que <strong>de</strong>penda <strong>de</strong> mim.Ca<strong>de</strong>linha, sente! Dá a patinha! Agora <strong>de</strong>ite! Vábuscar a bolinha! Finja que está morta!GERALDINE (Levanta os braços) – Já entendi! Jáentendi tudo! Cá estou eu, feliz, alegre, andandopra frente, construindo meu futuro, e vocênaquele eterno jogo <strong>de</strong> auto-pieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> medo,insegurança, carência afetiva, o diabo a quatro.


KIKA – Desculpe, mamãe. Não foi essa minhaintenção.GERALDINE – Mas é o que você sempre faz...Quando as coisas vão bem para mim. (Pausa)Muito bem! Já que não posso falar <strong>de</strong> mim,falemos <strong>de</strong> você.KIKA – Não, não. Continue, por favor. Já pedi<strong>de</strong>sculpas.GERALDINE (Autoritária) – Kika... Mo<strong>de</strong>rato!Estou ce<strong>de</strong>ndo a você o direito da palavra. (Ar<strong>de</strong> interrogação)KIKA (Insegura) – O que a senhora quer queeu fale?247GERALDINE – As Malvadas.KIKA – O que tem As Malvadas?GERALDINE – Pelo que me consta, e segundo assuas informações, a produção está confirmada.Minha tranqüilida<strong>de</strong> tem sido esta. Eu vou proRio e não preciso me preocupar. Você continuaem São Paulo e vai se virar sozinha.KIKA – Fique tranqüila. Eu sei me virar sozinha.GERALDINE – Sei que o Celso Nunes recusou adireção. Mas o Soffredini aceitou. O Soffredini


sempre foi seu amigo. E há meses que você temse reunido com o Paulo Autran. Você me disseque o Paulo Autran adorou o texto.KIKA – Tive que reescrever o texto várias vezes.248GERALDINE – Isso não é motivo para aborrecimento.Já aconteceu com o Arthur Miller, jáaconteceu com o Tennessee Williams, com todobom dramaturgo que se preze. E você tambémtem que consi<strong>de</strong>rar que esse é o primeiro textoque você escreve. Seu problema sempre foi <strong>de</strong>insegurança. Formou-se em jornalismo, teve umabriguinha com o Mino Carta, e pronto! Abandonoua profissão. Aí resolveu ser atriz. Você pensaque uma atriz se faz <strong>de</strong> um dia para o outro?KIKA – Eu não sou mais jovem. E nem bonita.GERALDINE – Bonita você nunca foi. Mas tem umcerto talento, que ainda po<strong>de</strong> ser lapidado.KIKA (Com respeitosa ironia) – A senhora acreditanisso?GERALDINE – De repente <strong>de</strong>siste <strong>de</strong> ser atriz.Resolve ser autora. Uma dramaturga brasileira!Leilah, Consuelo, A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong>, e agora Kika Leão!Muito bem. Que assim seja. Last but not least.(Bebe) Vamos falar do seu texto.


KIKA – Eu não quero falar do meu texto.GERALDINE – Vamos começar pelo título: AsMalvadas. O título é razoável. Tem um certoapelo comercial. (Para si) É muito difícil escolhero título <strong>de</strong> uma peça. Po<strong>de</strong>m pensar que é umaadaptação, ou releitura, daquela personagemadmirável que é Eve Harrington. (Divaga) Eufaria maravilhosamente a personagem <strong>de</strong> MargôChanning. Apertem seus cinturões! Vai seruma noite bem agitada! A Dulce Damasceno<strong>de</strong> Brito, que é muito minha amiga... Você selembra <strong>de</strong>la?KIKA – A amiga <strong>de</strong> Carmen Miranda?249GERALDINE – Correspon<strong>de</strong>nte do “Cruzeiro”em Hollywood. Teve um affaire com GregoryPeck e conheceu a Bette Davis pessoalmente. Naopinião da Dulce eu faria a Margô com muitomais energia e sensibilida<strong>de</strong>.KIKA – A senhora sabe que As Malvadas não temnada a ver com a Bette Davis.GERALDINE (Interpretando Margô) – Estranhaa carreira <strong>de</strong> uma mulher. Jogamos coisas forapara subir mais rápido. E precisamos <strong>de</strong>las aovoltarmos a ser mulheres. É uma carreira que todasas fêmeas têm em comum: ser mulher. Cedo


ou tar<strong>de</strong> temos <strong>de</strong> trabalhar nela... Não importaquantas outras carreiras tivemos ou quisemos.Em última análise, nada é bom – a menos quena mesa ou na cama ele esteja conosco. Semisso, você não é mulher. Po<strong>de</strong> ser uma pessoamuito importante ou uma celebrida<strong>de</strong>. (Pausa)Mas não é uma mulher. (Pausa) Desce a cortina.(Pausa) Fim.KIKA – A senhora acredita realmente... que eutenho um certo talento... mesmo ainda nãolapidado?GERALDINE – Hem? O que foi que você disse?250KIKA – Falávamos do meu talento... como atriz.GERALDINE – Você não tem carisma. É este oseu problema. Você é certinha <strong>de</strong>mais, linear,respeitosa. Em Palhaços, por exemplo. A suaperformance é tímida, apagada. Uma atriz nãopo<strong>de</strong> ter pudor. Seja over, se preciso. Exagere.Use cacos. O público é impressionável, bemdisposto. Conquiste-o através dos recursos maiselementares. Você nem sabe falar palavrão!Não se po<strong>de</strong> dizer mer<strong>de</strong> com naturalida<strong>de</strong>.Fale mer<strong>de</strong> com ênfase. Aí o público ri. Aí vocêconquista o público. O público <strong>de</strong> hoje nãopaga ingresso para pensar. O que é catarse? Opúblico quer <strong>de</strong>safogar seu cansaço, seu medo,


seu stress. Isso significa saú<strong>de</strong>. Saú<strong>de</strong> do público.Saú<strong>de</strong> do teatro.KIKA – A senhora acha que tudo isso é possível...apenas falando mer<strong>de</strong>?GERALDINE – Não esta mer<strong>de</strong>, com essa naturalida<strong>de</strong>.(Grita) Mer<strong>de</strong>!!!KIKA – Eu não gosto quando a senhora falamer<strong>de</strong>.GERALDINE – Qual a diferença entre a mer<strong>de</strong>que eu falo e a porra da Dercy?KIKA (Sem querer ofen<strong>de</strong>r) – Na sua boca... Opalavrão fica forçado, amargo, salgado.251GERALDINE (Ofendida) – Questão <strong>de</strong> paladar!Você nunca gostou <strong>de</strong> jiló, ou quiabo... ou almeirão.Como po<strong>de</strong>ria gostar <strong>de</strong> mer<strong>de</strong>? Alémdisso você puxou seu pai, que sofria <strong>de</strong> pressãoalta. Tudo que é salgado te faz mal.KIKA – Você diagnosticou a atriz. E a dramaturga?Minha proposta não é o <strong>de</strong>boche. É areflexão.GERALDINE – Pois então bata na ma<strong>de</strong>ira. Sevocê mete reflexão no meio, não dá certo no


Brasil. Isso só funciona no Exterior. (Pausa) Po<strong>de</strong>ser até que dê certo. Com uma gran<strong>de</strong> atriz ouum gran<strong>de</strong> ator encabeçando o elenco. (Pausa.Tom maternal) Ora, minha criança, não estoucom isso querendo dizer que As Malvadas sejaum texto ruim. Não é. Não é mesmo. Tenho lidocoisas bem piores. Pra que ser pessimista?KIKA – Eu? Pessimista?252GERALDINE – É a sua eterna insegurança! Mas,meu bem, se eu, que sou sua mãe, não te abroos olhos...? Em quem mais você po<strong>de</strong>ria confiar?(Pausa. Estimulante) Você <strong>de</strong>veria insistirna carreira <strong>de</strong> atriz. Não <strong>de</strong>sistir tão facilmente.Não se esqueça que você ganhou o prêmio <strong>de</strong>melhor atriz naquele festival <strong>de</strong> teatro amador.Você pensa que eu não fiquei feliz? Que eu nãofiquei orgulhosa? E <strong>de</strong>pois, quando fomos jantarno Roperto, quem é que estava lá?? A MaríliaPera! Quando soube, ela fez um brin<strong>de</strong> pra você.E eu ali, ao seu lado, <strong>de</strong> coadjuvante, mãe coruja,comendo pizza, toda orgulhosa!KIKA (Sorrindo, saudosa) – Aquela noite foi realmentemaravilhosa. Eu me senti uma estrela.Você notou como o Nelson Motta me olhava?GERALDINE – É o jeito <strong>de</strong>le. Uma espécie <strong>de</strong>...olhar gentil.


KIKA – Ainda hoje... Quando penso nisso... Tenhocerteza absoluta que naquela noite ele queriame seduzir.GERALDINE – Com a Marília Pera ao lado? Nãoconfunda gentileza com sedução. Provavelmentevocê ainda estava incorporando a Alaí<strong>de</strong>, noplano da alucinação.KIKA – Eu ainda me lembro! (Encantada) Dá a<strong>de</strong>ixa.GERALDINE – Deixa? Que <strong>de</strong>ixa?KIKA – Você sabe! Ensaiamos juntas!GERALDINE – Mas agora? Vamos entrar em cenadaqui a pouco.253KIKA – A Madame Clessi! Vai! Dá a <strong>de</strong>ixa.GERALDINE (A contragosto) – O olhar daquelehomem <strong>de</strong>spe a gente! Não. Errei o tom. Vou fazer<strong>de</strong> novo. (Choramingando) O olhar daquelehomem <strong>de</strong>spe a gente!KIKA – Mas eu estou confundindo tudo outravez, minha Nossa Senhora! Alfredo Germont é<strong>de</strong> uma ópera! La Traviata! Foi La Traviata! O paido rapaz veio pedir satisfações à mocinha. Como


ando com a cabeça, Clessi! (Pausa) Você está vendo,Clessi? Outra vez! Penso que estou contandoo seu caso, contando o que li nos jornais daqueletempo sobre o crime, e quando acabo, misturotudo! Misturo Traviata, E o vento levou, com oseu assassínio. Incrível! (Pausa) Não é?”GERALDINE (Crítica) – Você pulou um pedaço. Emisturou as falas.KIKA – Quem mais a senhora conhece que ganhouo prêmio <strong>de</strong> melhor atriz com o Vestido<strong>de</strong> Noiva?254GERALDINE – Não sei. A Maria Della Costa?? Nãosei. Não me lembro. Eu nunca gostei do NelsonRodrigues.KIKA – Você e Pedro são capazes <strong>de</strong> tudo! Euposso acordar morta e todo mundo pensar quefoi suicídio!GERALDINE – Ah! Eu sabia que tinha uma coisapra te contar e não me lembrava. Agora, falandoem suicídio e <strong>de</strong> Madame Clessi, me lembrei queconversei por telefone com a Maria Lúcia – vocêsabe quem é – aquela paranormal do Ipiranga – eela comentou comigo que esse negócio <strong>de</strong> vocêfazer relaxamento... e concentração... ouvindomúsica da Elis Regina, po<strong>de</strong> ser perigoso, e dáum tremendo azar. (Bate na ma<strong>de</strong>ira)


Som da campainha. Primeira chamada para oespetáculo.KIKA – E por acaso a Edith Piaf te dá sorte?GERALDINE – Como foi que a Elis Regina morreu?Foi suicídio, não foi?KIKA – A Elis era muito bem-resolvida. Foi umaci<strong>de</strong>nte.GERALDINE – Não interessa. Pra mim, overdose”ésuicídio. A Maria Lúcia disse que essa música dáazar. Atrai fluidos negativos. (Bate na ma<strong>de</strong>irae olha o pôster, rejeitando)KIKA (Ironia) – A Bibi Ferreira, sim! Essa tevesorte com a Piaf!255GERALDINE – Ah! Eu conheci a Piaf pessoalmente,na minha lua-<strong>de</strong>-mel em Paris.KIKA – A Elis foi uma das raras e verda<strong>de</strong>irasamigas que tive. Freqüentei a casa <strong>de</strong>la, lá noBrooklin. Quando fui ver o show do Canecão elame recebeu <strong>de</strong> braços abertos.GERALDINE – Aquele show horroroso... comcoreografia da Marika Gidali?KIKA – Isso. Aquele show horroroso, com direçãohorrorosa do Adhemar Guerra, que Deus o tenha...


GERALDINE (Despeitada) – Sempre achei que aMarika, como coreógrafa, <strong>de</strong>ixa a <strong>de</strong>sejar.KIKA – ...o mesmo Adhemar Guerra horrorosoque, na montagem <strong>de</strong> Lulu, esnobou a senhorae preferiu a Irina Grecco.GERALDINE – Requiescat in pace. Por isso mesmoque <strong>de</strong>u no que <strong>de</strong>u. Foi um dos maiores fracassosdo meu querido Adhemar.KIKA – Meu querido Adhemar! Isso é cinismo,mamãe.256GERALDINE – Meu querido, meu querido. Por quenão? Eu e o Adhemar sempre fomos gran<strong>de</strong>s amigos.Eu o perdoei. Nunca fui <strong>de</strong> guardar rancor.Não sou mulher que olha para trás. Eu só olhopara a frente. (Pausa) Meu Deus! Mas que coisahorrorosa! Não se po<strong>de</strong> nem falar na Elis Reginaque você põe todas suas garras pra fora!KIKA – Esquece. Desculpe. Não quero que a senhorafique nervosa.GERALDINE (Pensativa) – Às vezes eu penso querealmente não te conheço. (Acen<strong>de</strong> um cigarro)Resolvi! Vou ficar na casa da Vivinha. Ela é umamulher inteligente. Quando fez a Blanche, inspirou-seem mim.


KIKA – A Eva Wilma é uma pessoa muito ocupada.GERALDINE – Sempre foi uma pessoa bondosa.KIKA – Eu sei disso. Mas vocês nunca foramíntimas.GERALDINE (Dá <strong>de</strong> ombros) – Eu sempre <strong>de</strong>pendida bonda<strong>de</strong> dos estranhos. (Pausa) Tenho esperançaque o Gilberto Braga me veja. E me coloquena Globo, mesmo que seja <strong>de</strong> coadjuvante,<strong>de</strong> dona <strong>de</strong> pensão. Em toda novela tem umapensão. (Outro tom) Você promete que vai metelefonar todo dia? Espero, sinceramente, quevocê seja uma dramaturga <strong>de</strong> sucesso. Não gostaria<strong>de</strong> ver minha filha, por aí, ven<strong>de</strong>ndo livros,<strong>de</strong> braço dado com o Plínio Marcos.257KIKA – Quem sabe? Po<strong>de</strong> ser que eu tambémfaça televisão...GERALDINE – É uma ótima idéia. Você se saiumuito bem aquela vez no... (Tentando lembraro nome)... Passa ou Repassa.KIKA – Você acha pouco? Fiquei famosa poruma semana. Me reconheceram num supermercado!


GERALDINE (Chocada) – Te reconheceram nosupermercado? (Pausa) Você nunca comentouisso. O que é que eu sei da sua vida? Você nuncame conta nada. Tem mania <strong>de</strong> guardar segredos.Des<strong>de</strong> criança você é assim. Sempre foi une enfantterrible. Nunca gostei <strong>de</strong> crianças. E você foia pior criança que eu já vi. Teu pai te estragava.Você po<strong>de</strong> se orgulhar <strong>de</strong> ter batido todos osrecor<strong>de</strong>s em matéria <strong>de</strong> mimo e enjoamento.KIKA (Delicada) – O papai gostava <strong>de</strong> mim.258GERALDINE – Seu pai não sabia o que queria.Eu, sim. Eu sempre gostei <strong>de</strong> você. Mas do meujeito. Eu nunca gostei <strong>de</strong> você do jeito que vocêgostaria que eu gostasse.KIKA – Nunca fiz esse tipo <strong>de</strong> cobrança.GERALDINE – As pessoas se frustram porque nãosabem lidar com a afetivida<strong>de</strong>. Há diferentesmaneiras <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar afeto. Queremos quetodos gostam da gente do jeito que nós gostaríamosque os outros gostassem.KIKA (Delicada) – A senhora é repetitiva.GERALDINE – Uma <strong>de</strong> suas fragilida<strong>de</strong>s maisflagrantes é a <strong>de</strong> não saber ouvir. Como alguémque nada observa, e que não sabe ouvir, tem apretensão <strong>de</strong> querer escrever?


KIKA – Fragilida<strong>de</strong>s... A senhora sempre teve talentopara i<strong>de</strong>ntificar as fragilida<strong>de</strong>s dos outros.GERALDINE – Não precisa ser agressiva. Você émuito suscetível. Devia ser mais <strong>de</strong>sarmada. Umdiálogo entre mãe e filha tem que ser francoe verda<strong>de</strong>iro. Sem hipocrisias. E agora ligue ointerfone e pergunte quantos ingressos foramvendidos. E se já chegou algum convidado.KIKA – O interfone está quebrado.GERALDINE – Isso parece um <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> lixo.Antigamente o camarim vivia cheio. Fãs pedindoautógrafos. Tinha que pôr minha entourage prafora. Não <strong>de</strong>sgrudavam <strong>de</strong> mim!259KIKA (Pensativa) – Gostaria <strong>de</strong> ter conhecidomelhor o papai.GERALDINE – Tinha talento. Mas era irresponsável.Vivia num dolce far niente. Po<strong>de</strong>ria ter seguidouma ótima carreira no cinema europeu.KIKA – Francesco Leone! Eu me lembro comoera bonito!GERALDINE – Po<strong>de</strong>ria ter sido fotógrafo <strong>de</strong>Fellini, Antonioni, Visconti, Pasolini... mas eraingênuo. Caiu na conversa do Cavalcanti e veio


trabalhar na Vera Cruz. Foi muito amigo do UgoLombardi. Pergunte pra Bruna. Como fotógrafoera primus inter pares.KIKA – Em vez <strong>de</strong> Francisca Leão, vocês <strong>de</strong>veriamter me batizado como Francesca Leone.GERALDINE – Como nome artístico, Kika Leãonão chega a ser ruim.KIKA – No programa do Gugu ele me chamou<strong>de</strong> Nara Leão! (Ri)260GERALDINE (Ri) – Também já me perguntaramse eu era mãe da Danusa.KIKA – Nunca entendi direito a razão do seunome artístico.GERALDINE – E o que você acha que eu iria conseguircom o nome <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Jesus Menezes??Um papel no Pagador <strong>de</strong> Promessas?? (Pausa) Táexplicado! Foi por isso que o Anselmo preferiua Glória! (Riem)KIKA – Mas Geraldine? Por que Geraldine?GERALDINE – Nos anos 50 era um nome original.Depois virou esculhambação. (Desprezo) GeraldinePage... Geraldine Chaplin... Gerald Thomas...


(Aponta o cartaz <strong>de</strong> Palhaços) O seu amigo TimochencoWehbi ainda teve o <strong>de</strong>splante <strong>de</strong> escreveruma peça chamada Adiós, Geralda.KIKA – Esta peça não é <strong>de</strong>le.GERALDINE – E eu lá sei? Eram todos da mesmapanela. Eu nunca soube i<strong>de</strong>ntificar peças e autoresbrasileiros. Fora esta, no meu curriculum,você só encontra a Roda Viva. Eu e a NormaBengell apanhamos juntas. E eu jurei a mimmesma que nunca mais me meteria com políticabrasileira. O Chico Buarque, a Ruth Escobar e oZé Celso... esses!... não me pegam mais!KIKA (Com ironia) – Azar do teatro brasileiro.261GERALDINE – Dediquei minha vida ao teatrobrasileiro. Comecei na commedia <strong>de</strong>ll’arte. AEva Todor fez parte da minha troupe. Já monteiBrecht e Piran<strong>de</strong>llo. Já fiz <strong>de</strong> tudo. Medéia me<strong>de</strong>u uma indicação para melhor atriz. Você sabiaque o Aparício e o Jorge Takla tiveram a ousadia<strong>de</strong> escalar a Consuelo Leandro na montagem<strong>de</strong> Chuva? Foi um escândalo na época. Toda aclasse comentou a injustiça, que o papel <strong>de</strong>veriater sido meu. (Assoa o nariz)KIKA – E Harold e Mau<strong>de</strong>?


GERALDINE – Foi outra sacanagem. Tudo porculpa da Nathalia Timberg. Eu telefonei praHenriette Morineau e soltei os cachorros. Só que– coitada! – não era culpa <strong>de</strong>la. Mas não possome queixar. Nunca me faltaram propostas. OWalter Hugo Khouri me queria em Noite Vazia.Mas <strong>de</strong> cinema eu não gosto. Sinto falta da respiraçãodo público. Televisão é a mesma coisa.Não me atrai. Só <strong>de</strong> imaginar aquele magrelame dirigindo... com aquele terninho safári, medá um branco total. Você sabe por que eu nãofiz Hair?KIKA – Por culpa do Paulo Herculano.262GERALDINE – Eu não sou cantora. Se eu fossecantora teria feito carreira na Rádio Nacional.Além do mais, não concor<strong>de</strong>i em ficar pelada,apenas pour épater le bourgeois.KIKA – Eu não teria pudor em ficar nua.GERALDINE – Claro que não! (Desprezo) Fezcurso no “Macunaíma”! Aluna da Myriam Muniz!Tinha mais é que ficar pirada. O importantepara uma atriz é ter classe. Classe e charme. Seeu não tivesse classe, o meu charme teria <strong>de</strong>struídomuitos casamentos. Por causa <strong>de</strong> quem, em1959, a Nicette Bruno e o Paulo Goulart quasese <strong>de</strong>squitaram?


KIKA (Vendo o lenço em que a mãe assoou onariz) Este lenço <strong>de</strong> papel... está manchado <strong>de</strong>sangue.GERALDINE (Desconversando) – Não é nada. Euassôo o nariz com muita força.KIKA (Apreensiva) – Não sabia que saía sangue.Som da campainha. Segunda chamada para oespetáculo.GERALDINE – Deo Gratias! Parece que estououvindo vozes. Vamos ter público! (Maquia-se)Consi<strong>de</strong>remos que você <strong>de</strong>slanche como dramaturga.Você vai precisar <strong>de</strong> um manager. Tímidacomo é, não saberá negociar. Nunca soube lidarcom dinheiro. Não tem savoir-faire. Parece queé necessário se registrar nessa tal <strong>de</strong> SBAT. Vocêjá sabe o que é SBAT?263KIKA – Socieda<strong>de</strong> Brasileira dos Autores Teatrais.GERALDINE – Grand mer<strong>de</strong>. Confira sempre osbor<strong>de</strong>rôs.KIKA – Po<strong>de</strong> ficar sossegada. Isso aprendi com asenhora. Que não <strong>de</strong>vemos confiar em ninguémGERALDINE – Outra coisa: cuidado com grupoamador. Grupo amador não dá dinheiro.


KIKA – E eles vão se interessar por mim? Grupoamador só quer montar medalhão.GERALDINE – Exatamente. É bom ser realista.Nelson Rodrigues ganha festival. Kika Leão?Never. Já me convidaram pra ser jurada em Blumenau,Londrina, Sertãozinho... com os cachêsque pagam? (Gesto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo)KIKA – Era nossa idéia viajar com Palhaços. Lembra-se?O bom <strong>de</strong> fazer temporada no interioré que o pessoal paparica a gente. Pena que nãoencontramos nenhuma sala disponível!264GERALDINE – Eu avisei que não ia dar certo. Sóartista <strong>de</strong> TV é quem consegue.KIKA – Quem sabe, um dia, As Malvadas tenhamelhor sorte...GERALDINE – Você tem um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio pelafrente. Para ser respeitada, não basta saberescrever. Um autor só po<strong>de</strong> saber que é bomquando vê sua peça encenada. Um texto no papel,frio, não é nada. O autor só existe quandoseu trabalho está no palco.KIKA – É o que todos dizem. Mas será verda<strong>de</strong>iro?O Van Gogh, enquanto vivo, não ven<strong>de</strong>unenhum quadro.


GERALDINE – E isso serve <strong>de</strong> consolo? Você <strong>de</strong>sanimana primeira dificulda<strong>de</strong>! Não vá cortaras orelhas! Aceite meu conselho. Escreva teatroque seja barato.KIKA – O que a senhora sugere? Que eu escrevamonólogos?GERALDINE – E por que não? É barato e dá dinheiro.O Ciambroni com a Donana e a Fernandacom a Dona Doida – você vai ver – os dois vãovirar o século. Por que você não escreve ummonólogo para sua mãe? (Pausa) Custa tentar?(Outro tom) Outra coisa: evite citações datadas.Isso é ruim. Texto datado não sobrevive. Envelhecerápido. Seja simples. Não tenha medo dasimplicida<strong>de</strong>.265KIKA – A senhora está sintonizada com o Tolstói.Quem fala <strong>de</strong> sua al<strong>de</strong>ia, retrata o mundo.GERALDINE – Isso! Meus parabéns! Make itgood. Make it big. Give it class. Com simplicida<strong>de</strong>,claro!KIKA – Sou obrigada a reconhecer que a senhoraconhece a matéria.GERALDINE – Lembre-se que no Brasil a maioriados atores não sabe ler textos. Exagere nas


ubricas. É melhor pecar por excesso. Assim opessoal enten<strong>de</strong>. Você é muito econômica nasrubricas.KIKA (Desanimada) – Se esse fosse o principalproblema! A questão é que estamos passandopor uma fase <strong>de</strong> covardia. Diretores e atorescovar<strong>de</strong>s. Hoje ninguém quer arriscar em autornacional. Qual foi a última gran<strong>de</strong> peça <strong>de</strong> umautor brasileiro... com uma gran<strong>de</strong> produção?266GERALDINE – E, hoje em dia, existem gran<strong>de</strong>sprodutores? Não há dinheiro. Já que você nãogosta <strong>de</strong> monólogo, aceite outro conselho: nãopasse <strong>de</strong> dois personagens. Por exemplo: mãe efilha, como nós.KIKA – Peça com mãe e filha? Isso é lugar-comum.GERALDINE – É mais fácil arrumar produção.KIKA – Não é original.GERALDINE – Mas dá dinheiro. Não importaque seja déjà vu. A Irene Ravache e a ReginaBraga ganharam a maior nota com esse tipo <strong>de</strong>enredo.KIKA (Divagando) – Gostaria <strong>de</strong> escrever umtexto político...


GERALDINE – Vai falar <strong>de</strong> quem? Do Getúlio?Você não conheceu o Getúlio.KIKA – Conheci o Costa e Silva, o Médici, o AI-5.GERALDINE – Você nunca foi presa ou torturada.Eu mesma, só apanhei uma vez. De política vocênão enten<strong>de</strong> nada.KIKA – O Nelson Rodrigues po<strong>de</strong>ria ser personagem<strong>de</strong> uma peça. (Expressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>bocheda mãe) Você sabia que ele era conservador,<strong>de</strong> direita, e teve um filho <strong>de</strong> esquerda, quechegou a ser preso, acusado <strong>de</strong> terrorista? Issojá dá uma peça.GERALDINE – Grand mer<strong>de</strong>.267KIKA – E D. Hél<strong>de</strong>r Câmara? Perseguido peladitadura, perseguido pelo Vaticano... A RainhaElizabeth, quando veio ao Brasil, e parou no Recife,fez questão <strong>de</strong> cumprimentá-lo, na cara dosmilitares. Também sei <strong>de</strong> um padre, em Pernambuco,que era assessor <strong>de</strong> D. Hél<strong>de</strong>r, que foi encontradoenforcado na Cida<strong>de</strong> Universitária. Osassassinos inventaram <strong>de</strong> tudo: que era viciadoem drogas, que era homossexual, que corrompiamenores e, lógico, que era comunista. Não dariauma peça incrível? Também houve, claro, a versãodo suicídio. Isso foi antes do Vladimir Herzog


ser assassinado em São Paulo. Nossa! Que tempofeio! (Pausa) É sobre tudo isso que eu gostaria<strong>de</strong> escrever. A juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> hoje <strong>de</strong>veria ir aoteatro e re<strong>de</strong>scobrir o Brasil. Por que será queexiste esse silêncio em nossos palcos? Por quenão vasculhamos o nosso passado?GERALDINE – Você tem certeza que isso dá dinheiro?268KIKA – Nós somos um povo sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. OChile e a Argentina também passaram por ditadurasbravas. Mas <strong>de</strong>pois purgaram e expurgaramos seus <strong>de</strong>mônios, as suas vergonhas, atravésdo teatro, do cinema, da literatura...GERALDINE (Desinteressada) – São povos comforte influência européia.KIKA – Só sei que não sinto nenhum orgulho<strong>de</strong> viver em um país que só é bom <strong>de</strong> samba esó é bom <strong>de</strong> bola. Aposto que Eisenstein fariaum filme sobre a chacina da Can<strong>de</strong>lária. Ah! Ashistórias que eu queria contar!GERALDINE (Entediada) – E por que não conta?E por que não escreve?KIKA – Não sei se esse é o meu caminho. Precisoainda me encontrar. Eu me sinto culpada pornão escrever textos assim.


GERALDINE (Encara-a) – Às vezes você me preocupa.Você é como o seu pai. Nunca sabe o que quer.KIKA – Sei <strong>de</strong> minhas limitações.GERALDINE – Quem não sabe o que quer, nuncachega a lugar algum.KIKA (Misteriosa) – Eu sei o que eu quero. (Sorri)Não tenho pressa em chegar.GERALDINE – Você não sabe o que quer. Nuncasoube. Já estou até adivinhando. As Malvadasserá sua primeira e última peça. Você é in<strong>de</strong>cisa<strong>de</strong>mais. Quer falar <strong>de</strong> tudo e não sabe o quefalar. Nunca será uma dramaturga. Não acredito.Não tem pique, não tem personalida<strong>de</strong>.Deveria continuar como atriz, investindo numacoisa só.269KIKA (Ressentida) – A senhora sabe direitinhocomo me <strong>de</strong>sanimar, como me <strong>de</strong>smotivar, comome <strong>de</strong>rrubar...GERALDINE – Você é a rainha da injustiça e daingratidão. Por que pensa que trabalho até hoje?Por que aceitei fazer Palhaços, a não ser pra tedar uma força?KIKA – Uma força??


GERALDINE – Minha pièce <strong>de</strong> resisténce semprefoi sua fragilida<strong>de</strong>, sua incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobreviversozinha. Não fosse você, há muito tempoestaria em Paris!KIKA – E quem é que te faria companhia nassuas crises <strong>de</strong> solidão? (Levanta-se) E agora, comlicença, que eu vou ao banheiro. Preciso fazerxixi. (Sai)270GERALDINE (Sozinha, atônita) – Solidão? Vocênunca soube o que é solidão. (Tira um envelopena bolsa e lê, assustada) Laboratórios brasileiros!(Desprezo) Médicos brasileiros! (Guarda o envelope)Não. Não vou ler o resultado. Biópsia! E eulá tenho tempo pra fazer biópsia? Isso não. Issoeu não faço. Não gosto <strong>de</strong> médico. Não gosto<strong>de</strong> hospital. Certas coisas me dão medo... Depoiseu penso nisso. Resolvo com calma. Não queroque nada me estrague a noite. A vida é curtae longa é a arte. (Levanta-se e fala em direçãoao banheiro) Há um tipo <strong>de</strong> solidão que você<strong>de</strong>sconhece. Construída pelo tempo. A cada anoque passa, eu olho ao meu redor... Imagino vivosaqueles que estão mortos... Sinto falta do passado,daqueles encontros, daquela comunhão.Coisas que já não fazem mais parte <strong>de</strong>ste tempo.Havia um certo tipo <strong>de</strong> humor que hoje já nãotem a menor graça. Quantas vezes dou risadas...e os outros não enten<strong>de</strong>m a graça. E as vezes em


que fico em silêncio... quando todos riem ao meuredor? E quando ninguém presta atenção emmim? Outro dia, alguém, gentilmente, percebeuque eu estava presente... foi muito <strong>de</strong>licado...me perguntou: E você? O que você acha? Eu iarespon<strong>de</strong>r, eu me preparei pra respon<strong>de</strong>r, masnão houve tempo. Todos os outros já estavam falando<strong>de</strong> outra coisa, olhando em outra direção,todos juntos em outra freqüência! Eu não <strong>de</strong>i aresposta que eu queria dar. Fiquei engasgada,sem graça, sem voz, humilhada. Nessa hora eugostaria <strong>de</strong> gritar: quem vocês pensam que eusou? O que eu estou fazendo aqui? Quem sãoas pessoas ao meu redor? (Pausa. Baixinho) Vocêconhece esse tipo <strong>de</strong> solidão?271KIKA (Retornando) – A senhora ainda não estápronta? Já vão dar o terceiro sinal.GERALDINE (Recuperando-se) – Temos que pensarno futuro. Se eu morresse agora, o que eu<strong>de</strong>ixaria pra você? Nem casa própria nós temos.(Pausa) Pouco me importa o silêncio da crítica.Nunca <strong>de</strong>i importância à crítica. Vox populi,vox Dei. Faço teatro para o povo, não para oscríticos.KIKA – Não se esqueça, no final, <strong>de</strong> falar dos broches,da Etty Frazer, da campanha contra a aids.


GERALDINE (Aborrecida) – Aids, aids! Você sabiaque, na sua adolescência, eu cheguei a ficar commedo que você virasse lésbica? Digo isso semnenhum preconceito. Porque você sabe que euadoro os gays e eles me adoram. Nesse pontosempre fui muito liberal.KIKA – O filho da tia Elvira morreu <strong>de</strong> aids...GERALDINE (Defen<strong>de</strong>ndo) – Foi por causa dasdrogas! Na nossa família, Deo gratias!, nuncativemos um gay.KIKA – Mas o papai não era bissexual?272GERALDINE (Chocada) – De on<strong>de</strong> foi que vocêtirou essa idéia absurda?KIKA – A senhora quem me contou.GERALDINE – Eu??? Quando???KIKA – Depois <strong>de</strong> ter tomado uma garrafa inteira<strong>de</strong> conhaque, num <strong>de</strong> seus porres. Foi duranteos ensaios <strong>de</strong> Um bon<strong>de</strong> chamado Desejo. Opapai foi pra cama com aquele sujeito que faziao Kowalski.GERALDINE (Horrorizada) – Você enten<strong>de</strong>u tudoerrado! Era apenas um ensaio fotográfico. Aqueleseram outros tempos. Não havia malícia.


KIKA – Não havia malícia??GERALDINE – A gente fazia laboratório. Hojevocês não fazem... (tentando lembrar-se)...workshop?KIKA (Contando) – Uma noite a Elsa Lanchester pegouo Charles Laughton transando com outro atorno sofá da sala. A senhora sabe o que ela fez?GERALDINE (Nervosa) – Não, não sei.KIKA – Ven<strong>de</strong>u o sofá.GERALDINE (Ofendida) – Eu e seu pai sempre tivemosum relacionamento profundo e saudável.E ele não morreu <strong>de</strong> aids. Morreu <strong>de</strong> tuberculose.Naquele tempo tuberculose não tinha cura.273KIKA (Comentando) – Como a aids...GERALDINE – Isso foi em 1954, durante as filmagens<strong>de</strong> Floradas na Serra, em Campos doJordão. Você sabia que seu pai trabalhou coma Cacilda Becker?KIKA – As filmagens nem tinham começado. Elemorreu antes.GERALDINE – Mas fez algumas tomadas. Depoisficou doente e foi substituído pelo Chick Fowle.(Contrariada) Omitiram seu nome nos créditos.


KIKA – O que a senhora faria se eu fosse lésbica?GERALDINE – Eu sei que você não é lésbica. Semprefoi assexuada.KIKA – Um dos meus maiores arrependimentosfoi não ter ido pra cama com a Regina Duarte,no tempo <strong>de</strong> Réveillon.GERALDINE – Não fale bobagem. Sei – e assinoembaixo – que a Regina nunca foi lésbica.274KIKA – Po<strong>de</strong> ficar tranqüila. Eu também não sou.(Ri) Mas que ela me <strong>de</strong>u tesão, <strong>de</strong>u. Adoravaquando ela colocava os óculos e fazia crochê.Na época do Réveillon <strong>de</strong>i carona pra ela váriasvezes, no meu fusca. A senhora se lembra domeu fusquinha?GERALDINE – Por que você não se casou comaquele... (tentando lembrar-se)... Murilo DiasCésar? Trabalhava no Banco do Brasil. Na épocaera um bom partido.KIKA – A senhora foi contra. Esqueceu?GERALDINE – Ah! É verda<strong>de</strong>. Tinha umas idéiascomunistas...KIKA (Pensativa) – A senhora sempre espantoumeus namorados.


GERALDINE – Sempre quis o melhor pra você.(Pausa) Você não sabe lidar com os homens.Se pelo menos fosse bonita... e tivesse algumcharme...KIKA (Ofendida) – Des<strong>de</strong> criança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que metenho como gente, que a senhora se <strong>de</strong>licia emme <strong>de</strong>struir, me rebaixar, me humilhar...GERALDINE (Surpresa) – Que é isso? Que bobagemé essa? Tudo que faço, tudo que falo, épra te acordar, pra te estimular, pra que vocêreaja, pra que tenha personalida<strong>de</strong>, pra queconfie em si mesma, pra que não seja uma moscamorta! Não tenho culpa se você é feia, medrosa,insegura, <strong>de</strong>spreparada, sem talento. (Ênfase)Eu sou Geraldine Leão! Se eu morrer amanhã,minha morte será notícia em todos os jornais. Eusou alguém, eu sempre serei alguém, eu tenhoi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Você... Você não tem nada! Por quevocê não assume? Por que você não reconhece?Você sempre quis me copiar, me imitar, prestandoatenção em mim, me vigiando o tempo todo.Até já <strong>de</strong>sconfiei que você tem inveja <strong>de</strong> mim.Que tem a esperança <strong>de</strong> um dia ocupar o meuespaço... conquistar o MEU prestígio!275KIKA (Desprezo) – Prestígio! E <strong>de</strong>pois sou eu...quem não enxerga a realida<strong>de</strong>?


GERALDINE – Não seja patética. A sua incoerênciaé revoltante. Você é incoerente em tudo. Éfanática pela Elis Regina e estudou teatro coma Myriam Muniz. Você não sabe que as duasbrigaram? Que a briga foi parar na justiça?KIKA – Águas passadas!GERALDINE – E, mesmo assim, você venera asduas! (Pausa) Por que <strong>de</strong>sistiu do jornalismo? Desistiucoisa nenhuma! A verda<strong>de</strong> é que você nãotinha talento nem capacida<strong>de</strong> pra ser jornalista.Nem pra ser atriz. Nem pra ser dramaturga.276KIKA – A senhora sabe o que eu fiz hoje à tar<strong>de</strong>?GERALDINE – O que você fez hoje à tar<strong>de</strong>? O queme interessa o que você fez hoje à tar<strong>de</strong>?KIKA (Mostrando as duas malas) – Decidi <strong>de</strong> veza minha vida.GERALDINE (Olhando as malas) – Não entendio subtexto. Decidiu o quê? O que foi que você<strong>de</strong>cidiu?KIKA – Pretendia contar <strong>de</strong>pois. Mas é bom quea senhora saiba agora.GERALDINE – Saber o quê? Qual é a novida<strong>de</strong>?


KIKA – Viajo hoje à noite. Depois do espetáculo.GERALDINE – Viaja pra on<strong>de</strong>?KIKA – Rio! Rio <strong>de</strong> Janeiro! The prime of MissJean Brodie! Me candidatei ao papel. Fiz o teste.Fui a escolhida!GERALDINE (Trêmula) – Papel? Que papel?KIKA – Eu não sabia como lhe contar. Quandoe como lhe contar. Qual seria a hora certa. Masé bom esclarecer tudo <strong>de</strong> uma vez! O primeirotelefonema foi pra mim. O primeiro convite foipra mim. Fui eu quem sugeriu o seu nome prapeça. Fui eu quem quis lhe dar uma força, umachance. Mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo a senhora enten<strong>de</strong>utudo errado! A senhora nunca foi aventada parao papel <strong>de</strong> Jean Brodie!277GERALDINE – Mas o Gabriel me falou...KIKA (Cortando) – Ligou pra senhora porqueEU pedi! Mas nunca pra fazer Jean Brodie! Queculpa eu tenho se a senhora não sabe ouvir?Se enten<strong>de</strong> tudo errado, se vive no mundo daimaginação? EU é quem vou fazer Jean Brodie!Seu personagem seria outro, coadjuvante... umadas professoras – papel menor, secundário, <strong>de</strong>acordo com sua ida<strong>de</strong>. Quantos anos a senhora


pensa que tem? Não tem noção <strong>de</strong> sua própriaida<strong>de</strong>? Não percebe o ridículo das suas fantasias...na sua ida<strong>de</strong>... fazendo o papel <strong>de</strong> Jean Brodie?GERALDINE – Mas... Não era isso o combinado!Você vai fazer As Malvadas!KIKA – O projeto morreu. Pifou. Não haverá maisnenhuma montagem. Ainda tenho muito a apren<strong>de</strong>r.Eu tenho autocrítica. (Ameaçadora) A senhoranão sabia <strong>de</strong>sta minha qualida<strong>de</strong>? Eu tenho autocrítica!Coisa que a senhora nunca teve!278GERALDINE – Não é possível! Você <strong>de</strong>ve estarenganada. É claro que você está enganada! Eurecebi o texto. Decorei as falas <strong>de</strong> Jean Brodie.KIKA – Você leu o MEU texto! O envelope veiopra mim. En<strong>de</strong>reçado à minha pessoa. Nem issoa senhora foi capaz <strong>de</strong> perceber!GERALDINE – Traiçoeira! É isso o que você é!Traiçoeira!KIKA (Enjoada) – Não seja melodramática.GERALDINE – Você me apunhalou pelas costas!KIKA – Já estou enjoada <strong>de</strong>sses clichês! Pare <strong>de</strong>representar o tempo todo. Pare <strong>de</strong> ser repetitiva.Esse gênero já me cansou.


GERALDINE – Ven<strong>de</strong>tta! Traiçoeira... Agindoem silêncio... Escondida, pelas costas...KIKA – E tem mais. É bom que a senhora saibatudo <strong>de</strong> uma vez. Eu vou pro Rio e a senhora fica.A produção não concordou com o seu nome noelenco. Outra atriz fará o papel. Eu fiz o que pu<strong>de</strong>.Tentei ajudar. Mas acabaram escolhendo outra.GERALDINE (Desprezo) – Outra?? Escolheramoutra? Isso não po<strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>. Quem é vocêpra fazer Jean Brodie? Você não tem talento!Isso é um absurdo! Você não é nada sem mim!KIKA – Por que a senhora não cai na real? Porque não enxerga as coisas como realmente são?A senhora está velha. Não tem mais ida<strong>de</strong> para opapel. E prestígio? Nunca teve prestígio. Nuncafoi uma estrela, a não ser na sua imaginaçãodoentia, no seu currículo imaginário. Nuncafez nada no TBC. Não se enquadrou no Arena.Passou em branco no Oficina. Nunca brilhou emnada. Nem como atriz, nem como mulher, nemcomo mãe. Sua Blanche du Bois foi um fracasso.Sua indicação por Medéia foi um aci<strong>de</strong>nte,que nunca mais se repetiu. Nunca percebeu, avida inteira, que a senhora sempre foi rejeitadapara gran<strong>de</strong>s papéis? Nunca parou pra analisar?Não fez sua autocrítica? (Pausa) Toda minhavida, dia após dia, noite após noite, todos esses279


280anos, e a senhora sempre interpretando a mesmapersonagem, a mesma persona, em casa ena rua, no palco e nos bastidores, repetitiva,enjoativa, monocórdia, alienada, cega. (Gesto<strong>de</strong> Geraldine) Não me interrompa!!! Não hánada <strong>de</strong> novo que a senhora possa falar. Já seio seu texto <strong>de</strong> cor. Merda! Já sei o seu texto <strong>de</strong>cor! Conheço o tempo infinito dos seus bifes!Fazendo citações em francês, italiano, latim,tentando impressionar os impressionáveis, comuma cultura que não tem, com um conhecimento<strong>de</strong> vida que nunca saiu da superfície... Pedante,pernóstica, arrogante! E tem a petulância <strong>de</strong> meencomendar um monólogo! O que a senhoratem feito a vida inteira a não ser monologar?Aceitou fazer Palhaços por MINHA causa?? FuiEU que consegui a produção, que insisti no seunome, que concor<strong>de</strong>i que Geraldine Leão ficasseem <strong>de</strong>staque no cartaz. Se não houve coberturana imprensa é porque você não é mais notícia.Por que não encara que já passou a hora da suaaposentadoria? Por que não per<strong>de</strong> a pose? Porque não pára <strong>de</strong> fumar e jogar fumaça na carados outros? Por que não assume que é alcoólatrae viciada em estimulantes? Ah! E os seusataques <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>? A voz empostada,menosprezando tudo que é brasileiro... A gran<strong>de</strong>dama <strong>de</strong> formação européia! Você é perigosa!As crianças não <strong>de</strong>veriam ser expostas à sua in-


fluência! Sempre me humilhando, me insultando,me rotulando <strong>de</strong> fraca, feia, incompetente eoutras mer<strong>de</strong>s. Sempre procurando me castrar,me prejudicar, minando minha autoconfiança.Você é uma mulher ridícula! Não. (Para si mesma)Não sinto nenhuma pieda<strong>de</strong>. Jurei a mim mesmaque não sentiria nenhuma pieda<strong>de</strong>!Som da campainha. Terceira e última chamadapara o espetáculo.GERALDINE (Recompondo-se, gélida) – Tambémtenho uma novida<strong>de</strong>. (Fênix) O Antunes vairemontar A Moratória, do gran<strong>de</strong> dramaturgobrasileiro (empostada) Jorge Andra<strong>de</strong>. Me convidoupara o papel <strong>de</strong> Helena.281KIKA (Duvidando) – Ele também convidou asenhora pra Vereda...GERALDINE – Ninguém fará uma Helena melhorque eu. Já estou até me preparando. Esta semana,na feira, comprei um monte <strong>de</strong> jabuticabas.KIKA (Desarmando-se) – Não vi nenhuma jabuticabaem casa.GERALDINE – Chupei todas.KIKA (Desconfiada) – É confortante que a senhoramantenha seu senso <strong>de</strong> humor.


GERALDINE – Senso <strong>de</strong> humor é sinal <strong>de</strong> sabedoria.E isso eu tenho <strong>de</strong> sobra. Não fiz curso naEAD. Aprendi isso na vida. Sou uma self-ma<strong>de</strong>woman, com muito orgulho. (Sorri) Você pensaque sabe tudo, não é?KIKA (Desarmada) – Não tenho certeza <strong>de</strong> nada.(Olha as malas) Confesso que estou morrendo<strong>de</strong> medo.GERALDINE – A vida inteira convivi com o medo.(Dá <strong>de</strong> ombros) A gente se acostuma.KIKA (Alerta) – O público está em silêncio.282GERALDINE – Não é irônico? Você fazendo umtexto estrangeiro... e eu um nacional? (Riemtimidamente) Não sei se vou conseguir dormiresta noite. (Súbito abatimento)KIKA – Espere. (Arruma-a) A cartola e a bengala!(Entrega)GERALDINE (Ajeitando-se) – Estou bem?KIKA (Assente) – Vai!GERALDINE (Hesita) – Você me telefona amanhã?(Kika assente) Faça uma boa viagem. (Kikaassente, agra<strong>de</strong>cendo)


KIKA (Delicadamente) – Vai! Vai!GERALDINE (Brinca) – O compositor me disse...que eu cantasse... distraidamente... essa canção...(Sopra um beijo e sai)CENA – A música é I Clowns. Geraldine, interpretandoo palhaço Careta, com bengala e cartola,dança maravilhosamente, homenageando, comtípicos trejeitos, gente como Groucho Marx, StanLaurel, Charles Chaplin, Jacques Tati, Jean-LouisBarrault e todos os palhaços brasileiros. Brincacom bolinhas <strong>de</strong> sabão, que explo<strong>de</strong>m no ar.Efeito <strong>de</strong> muitas bolhas <strong>de</strong> sabão, vindas <strong>de</strong> todasas direções, explodindo no palco, somente nopalco. Alegres efeitos <strong>de</strong> luz... Detalhe para Kika,sob foco <strong>de</strong> luz, nos bastidores. Não está feliz,mas parece aliviada. Cria coragem e toma umadose <strong>de</strong> conhaque. Depois fica estática, frenteao espelho. Enquanto o foco <strong>de</strong> luz sobre Kikavai se apagando, começa a <strong>de</strong>scer sobre o palcouma lona <strong>de</strong> circo, criando um efeito mágico. Amúsica termina. Geraldine respira fundo e acomoda-seno banquinho, frente a um espelho.Começa a tirar a maquiagem do palhaço Careta.De repente, pelo espelho, vê a entrada <strong>de</strong> Kika,como Visitante, por uma abertura na lona...283CARETA – Quem é o senhor?


VISITANTE – Boa noite... (Timidamente)CARETA – O que o senhor <strong>de</strong>seja?VISITANTE (Apontando a lona) – É que vi umaabertura e entrei pra...CARETA (Abruptamente) – Abertura? On<strong>de</strong>?(Vê a lona) Ah... (Sério) É proibida a entrada <strong>de</strong>pessoas que não pertençam ao circo. Não leu oaviso lá fora?VISITANTE (Inibido) – É que eu vi o senhor lá daplatéia e...284CARETA (Estalando a língua) – Ah, um espectador!VISITANTE – É, sou.CARETA – Bem, neste caso o senhor não é tãoestranho assim. Em que lhe posso ser útil?VISITANTE (Encabulado) – Eu... Eu vim pra cumprimentaro senhor. Ver o senhor <strong>de</strong> perto...Apertar as suas mãos.CARETA (Esten<strong>de</strong>ndo-lhe a mão) – Se isto o satisfaz,toma lá, a minha mão à sua disposição.VISITANTE (Emocionado) – Meus parabéns!


CARETA (Surpreso) – O que está lhe acontecendo?Você está tremendo todo.VISITANTE – É <strong>de</strong> emoção.CARETA – Emoção?VISITANTE – Emoção sim, <strong>de</strong> estar aqui...GERALDINE (Saindo da personagem) – Vocêfalou em emoção? (Face a face) Por que este ar<strong>de</strong> surpresa? Você falou em emoção?KIKA (Surpresa) – Sim, palhaço. Emoção. (Saindotambém) Emoção <strong>de</strong> estar aqui...GERALDINE (Sorrindo) – Repita! Outra vez!285KIKA (Sorrindo) – Emoção. Emoção <strong>de</strong> estaraqui...CENA – Estáticas, face a face. Delicadamente,o foco <strong>de</strong> luz <strong>de</strong>cresce, até que ambas <strong>de</strong>sapareçam.Depois, mais tar<strong>de</strong>, enquanto o públicose retira, ouvimos a música Jean. O que será <strong>de</strong>Kika no Rio? Ao término da música, nada maisa acrescentar.


Com Ariclê PerezCom Nathália Timberg


Com Antonio AbujamraCom Raul Cortez, Etty Fraser e Chico Martins


CronologiaPeças Originais1974Faça uma Festa do Seu Café da Manhã1975Feed BackAnabela No Mundo das MaravilhasO Estúpido Cupido Contra Miss CinelândiaA Mais Bela Empregada Doméstica do BrasilO Rabo do Pavão2891976A Rainha do Rádio1978Vintém Chinchéu (encenada também com otítulo Cuore Ingrato)1979No Ninho dos Escorpiões1980Coragem, Meu Bem, Coragem


1981Turminha da Breca1982Tempo VelozEu, Tu, Ele, Nós, Vós, Eles (apresentadatambém com o título Ninguém Viaja aoEquador1984O Diabo <strong>de</strong> Cuecas2901985Na Flor da Ida<strong>de</strong>1987A Guerra da Banana1990Santo Antonio Casamenteiro1991Diálogo (Tributo) com Elis Regina (para dança)1994As Malvadas


Programa <strong>de</strong> Miss Cinelândia


2000Louca Turbulência (com Antonio Abujamra)2001Subindo Cada Degrau2005Amável Momento2006Os Belochiques não Passam FomeAdaptações para o palco2921990Colombo, <strong>de</strong> Paul Clau<strong>de</strong>l1991O Presente dos Magos, conto <strong>de</strong> O’Henry(também direção)Vestido <strong>de</strong> Noiva, <strong>de</strong> Nelson Rodrigues(também direção)A Moratória, <strong>de</strong> Jorge Andra<strong>de</strong> (tambémdireção)1992Minha Bela Dama, <strong>de</strong> Bernard ShawNatal Atemporal, <strong>de</strong> Charles Dickens


2004As Cinco Estações , concepção e direção <strong>de</strong>espetáculo com <strong>de</strong>ficientes visuaisCinema e Ví<strong>de</strong>o1979A Rainha do RádioLonga-metragem adaptado da peça com omesmo títuloDireção: Luiz Fernando GoulartCom Beyla Genauer, Paulo Guarnieri, NelsonXavier, Maria Pompeu1993Memória do <strong>Teatro</strong> AmadorVí<strong>de</strong>o com roteiro e direção <strong>de</strong> <strong>Saffioti</strong>, 35minutos2932005O Quintal dos GuerrilheirosCurta-metragem com argumento original e coautoriado roteiro.Direção: João Massarollo


Programa <strong>de</strong> As 5 Estações


ÍndiceApresentação – José Serra 5Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7Entre o Individual e o Universal –Danilo Santos <strong>de</strong> Miranda 11Introdução – Alfredo Sternheim 15O Estúpido Cupido Contra Miss Cinelândia 39A Rainha do Rádio 107Coragem, Meu Bem, Coragem 157As Malvadas 233Cronologia 289


Crédito das FotografiasOlney Krüse 32, 33Demais fotos pertencem ao acervo <strong>de</strong> José <strong>Saffioti</strong><strong>Filho</strong>A <strong>de</strong>speito dos esforços <strong>de</strong> pesquisa empreendidos pela Editora parai<strong>de</strong>ntificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte <strong>de</strong>las não é<strong>de</strong> autoria conhecida <strong>de</strong> seus organizadores.Agra<strong>de</strong>cemos o envio ou comunicação <strong>de</strong> toda informação relativaà autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos,para que sejam <strong>de</strong>vidamente creditados.


Coleção AplausoSérie Cinema BrasilAlain Fresnot – Um Cineasta sem AlmaAlain FresnotAgostinho Martins Pereira – Um I<strong>de</strong>alistaMáximo BarroO Ano em Que Meus Pais Saíram <strong>de</strong> FériasRoteiro <strong>de</strong> Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaerte Cao HamburgerAnselmo Duarte – O Homem da Palma <strong>de</strong> OuroLuiz Carlos MertenAntonio Carlos da Fontoura – Espelho da AlmaRodrigo MuratAry Fernan<strong>de</strong>s – Sua Fascinante HistóriaAntônio Leão da Silva NetoO Bandido da Luz VermelhaRoteiro <strong>de</strong> Rogério SganzerlaBatismo <strong>de</strong> SangueRoteiro <strong>de</strong> Dani Patarra e Helvécio RattonBens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaiae Carlos ReichenbachBraz Chediak – Fragmentos <strong>de</strong> uma vidaSérgio Rodrigo ReisCabra-CegaRoteiro <strong>de</strong> Di Moretti, comentado por Toni Venturie Ricardo KauffmanO Caçador <strong>de</strong> DiamantesRoteiro <strong>de</strong> Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro


Carlos Coimbra – Um Homem RaroLuiz Carlos MertenCarlos Reichenbach – O Cinema Como Razão <strong>de</strong> ViverMarcelo LyraA CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner <strong>de</strong> AssisCasa <strong>de</strong> MeninasRomance original e roteiro <strong>de</strong> Inácio AraújoO Caso dos Irmãos NavesRoteiro <strong>de</strong> Jean-Clau<strong>de</strong> Bernar<strong>de</strong>t e Luis Sérgio PersonO Céu <strong>de</strong> SuelyRoteiro <strong>de</strong> Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício ZachariasChega <strong>de</strong> Sauda<strong>de</strong>Roteiro <strong>de</strong> Luiz BolognesiCida<strong>de</strong> dos HomensRoteiro <strong>de</strong> Elena SoárezComo Fazer um Filme <strong>de</strong> AmorRoteiro escrito e comentado por Luiz Moura e JoséRoberto ToreroO Contador <strong>de</strong> HistóriasRoteiro <strong>de</strong> Mauricio Arruda, José Roberto Torero, MarianaVeríssimo e Luiz VillaçaCríticas <strong>de</strong> B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosida<strong>de</strong>Org. Luiz Antônio Souza Lima <strong>de</strong> MacedoCríticas <strong>de</strong> Edmar Pereira – Razão e Sensibilida<strong>de</strong>Org. Luiz Carlos MertenCríticas <strong>de</strong> Jairo Ferreira – Críticas <strong>de</strong> invenção:Os Anos do São Paulo ShimbunOrg. Alessandro Gamo


Críticas <strong>de</strong> Luiz Geraldo <strong>de</strong> Miranda Leão – AnalisandoCinema: Críticas <strong>de</strong> LGOrg. Aurora Miranda LeãoCríticas <strong>de</strong> Rubem Biáfora – A Coragem <strong>de</strong> SerOrg. Carlos M. Motta e José Júlio SpiewakDe PassagemRoteiro <strong>de</strong> Cláudio Yosida e Direção <strong>de</strong> Ricardo EliasDesmundoRoteiro <strong>de</strong> Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina AnzuateguiDjalma Limongi Batista – Livre PensadorMarcel NadaleDogma Feijoada: O Cinema Negro BrasileiroJeferson DeDois CórregosRoteiro <strong>de</strong> Carlos ReichenbachA Dona da HistóriaRoteiro <strong>de</strong> João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel <strong>Filho</strong>Os 12 TrabalhosRoteiro <strong>de</strong> Cláudio Yosida e Ricardo EliasEstômagoRoteiro <strong>de</strong> Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Nativida<strong>de</strong>Fernando Meirelles – Biografia PrematuraMaria do Rosário CaetanoFim da LinhaRoteiro <strong>de</strong> Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards<strong>de</strong> Fábio Moon e Gabriel BáFome <strong>de</strong> Bola – Cinema e Futebol no BrasilLuiz Zanin OricchioGeraldo Moraes – O Cineasta do InteriorKlecius Henrique


Guilherme <strong>de</strong> Almeida Prado – Um Cineasta CinéfiloLuiz Zanin OricchioHelvécio Ratton – O Cinema Além das MontanhasPablo VillaçaO Homem que Virou SucoRoteiro <strong>de</strong> João Batista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, organização <strong>de</strong> ArianeAbdallah e Newton CannitoIvan Cardoso – O Mestre do TerrirRemierJoão Batista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> – Alguma Solidãoe Muitas HistóriasMaria do Rosário CaetanoJorge Bodanzky – O Homem com a CâmeraCarlos Alberto MattosJosé Antonio Garcia – Em Busca da Alma FemininaMarcel NadaleJosé Carlos Burle – Drama na ChanchadaMáximo BarroLiberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Imprensa</strong> – O Cinema <strong>de</strong> IntervençãoRenata Fortes e João Batista <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>Luiz Carlos Lacerda – Prazer & CinemaAlfredo SternheimMaurice Capovilla – A Imagem CríticaCarlos Alberto MattosMauro Alice – Um Operário do FilmeSheila SchvarzmanMiguel Borges – Um Lobisomem Sai da SombraAntônio Leão da Silva NetoNão por AcasoRoteiro <strong>de</strong> Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski eEugênio Puppo


Narradores <strong>de</strong> JavéRoteiro <strong>de</strong> Eliane Caffé e Luís Alberto <strong>de</strong> AbreuOn<strong>de</strong> Andará Dulce VeigaRoteiro <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Almeida PradoOrlando Senna – O Homem da MontanhaHermes LealPedro Jorge <strong>de</strong> Castro – O Calor da TelaRogério MenezesQuanto Vale ou É por QuiloRoteiro <strong>de</strong> Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio BianchiRicardo Pinto e Silva – Rir ou ChorarRodrigo CapellaRodolfo Nanni – Um Realizador PersistenteNeusa BarbosaSalve GeralRoteiro <strong>de</strong> Sérgio Rezen<strong>de</strong> e Patrícia Andra<strong>de</strong>O Signo da Cida<strong>de</strong>Roteiro <strong>de</strong> Bruna LombardiUgo Giorgetti – O Sonho IntactoRosane PavamVladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejasno PlanaltoCarlos Alberto MattosViva-VozRoteiro <strong>de</strong> Márcio AlemãoZuzu AngelRoteiro <strong>de</strong> Marcos Bernstein e Sergio Rezen<strong>de</strong>Série CinemaBastidores – Um Outro Lado do CinemaElaine Guerini


Série Ciência & TecnologiaCinema Digital – Um Novo Começo?Luiz Gonzaga Assis <strong>de</strong> LucaA Hora do Cinema Digital – Democratizaçãoe Globalização do AudiovisualLuiz Gonzaga Assis <strong>de</strong> LucaSérie CrônicasCrônicas <strong>de</strong> Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeçasMaria Lúcia DahlSérie DançaRodrigo Pe<strong>de</strong>rneiras e o Grupo Corpo – Dança UniversalSérgio Rodrigo ReisSérie <strong>Teatro</strong> BrasilAlci<strong>de</strong>s Nogueira – Alma <strong>de</strong> CetimTuna DwekAntenor Pimenta – Circo e PoesiaDanielle PimentaCia <strong>de</strong> <strong>Teatro</strong> Os Satyros – Um Palco VisceralAlberto GuzikCríticas <strong>de</strong> Clóvis Garcia – A Crítica Como OficioOrg. Carmelinda GuimarãesCríticas <strong>de</strong> Maria Lucia Can<strong>de</strong>ias – Duas Tábuas eUma PaixãoOrg. José Simões <strong>de</strong> Almeida JúniorFe<strong>de</strong>rico García Lorca – Pequeno Poema InfinitoRoteiro <strong>de</strong> José Mauro Brant e Antonio GilbertoJoão Bethencourt – O Locatário da ComédiaRodrigo Murat


Leilah Assumpção – A Consciência da MulherEliana PaceLuís Alberto <strong>de</strong> Abreu – Até a Última SílabaAdélia NicoleteMaurice Vaneau – Artista MúltiploLeila CorrêaRenata Palottini – Cumprimenta e Pe<strong>de</strong> PassagemRita Ribeiro Guimarães<strong>Teatro</strong> Brasileiro <strong>de</strong> Comédia – Eu Vivi o TBCNydia LiciaO <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Alci<strong>de</strong>s Nogueira – Trilogia: ÓperaJoyce – Gertru<strong>de</strong> Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso –Pólvora e PoesiaAlci<strong>de</strong>s NogueiraO <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Ivam Cabral – Quatro textos para um teatroveloz: Faz <strong>de</strong> Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos<strong>de</strong> Maldoror – De Profundis – A Herança do <strong>Teatro</strong>Ivam CabralO <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Noemi Marinho: Fulaninha e DonaCoisa, Homeless, Cor <strong>de</strong> Chá, Plantonista VilmaNoemi Marinho<strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Revista em São Paulo – De Pernas para o ArNey<strong>de</strong> VenezianoO <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Samir Yazbek: A Entrevista –O Fingidor – A Terra PrometidaSamir YazbekTeresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadasem CenaAriane Porto


Série PerfilAracy Balabanian – Nunca Fui AnjoTania CarvalhoArllete Montenegro – Fé, Amor e EmoçãoAlfredo SternheimAry Fontoura – Entre Rios e JaneirosRogério MenezesBete Men<strong>de</strong>s – O Cão e a RosaRogério MenezesBetty Faria – Rebel<strong>de</strong> por NaturezaTania CarvalhoCarla Camurati – Luz NaturalCarlos Alberto MattosCecil Thiré – Mestre do seu OfícioTania CarvalhoCelso Nunes – Sem AmarrasEliana RochaCley<strong>de</strong> Yaconis – Dama DiscretaVilmar Le<strong>de</strong>smaDavid Cardoso – Persistência e PaixãoAlfredo SternheimDenise Del Vecchio – Memórias da LuaTuna DwekElisabeth Hartmann – A Sarah dos PampasReinaldo BragaEmiliano Queiroz – Na Sobremesa da VidaMaria LeticiaEtty Fraser – Virada Pra LuaVilmar Le<strong>de</strong>sma


Ewerton <strong>de</strong> Castro – Minha Vida na Arte: Memóriae PoéticaReni CardosoFernanda Montenegro – A Defesa do MistérioNeusa BarbosaGeórgia Gomi<strong>de</strong> – Uma Atriz BrasileiraEliana PaceGianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no ArSérgio RoveriGlauco Mirko Laurelli – Um Artesão do CinemaMaria Angela <strong>de</strong> JesusIlka Soares – A Bela da TelaWagner <strong>de</strong> AssisIrene Ravache – Caçadora <strong>de</strong> EmoçõesTania CarvalhoIrene Stefania – Arte e PsicoterapiaGermano PereiraIsabel Ribeiro – IluminadaLuis Sergio Lima e SilvaJoana Fomm – Momento <strong>de</strong> DecisãoVilmar Le<strong>de</strong>smaJohn Herbert – Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa BarbosaJonas Bloch – O Ofício <strong>de</strong> uma PaixãoNilu LebertJosé Dumont – Do Cor<strong>de</strong>l às TelasKlecius HenriqueLeonardo Villar – Garra e PaixãoNydia LiciaLília Cabral – Descobrindo Lília CabralAnalu Ribeiro


Lolita Rodrigues – De Carne e OssoEliana CastroLouise Cardoso – A Mulher do BarbosaVilmar Le<strong>de</strong>smaMarcos Caruso – Um ObstinadoEliana RochaMaria A<strong>de</strong>lai<strong>de</strong> Amaral – A Emoção LibertáriaTuna DwekMarisa Prado – A Estrela, O MistérioLuiz Carlos LisboaMauro Mendonça – Em Busca da PerfeiçãoRenato SérgioMiriam Mehler – Sensibilida<strong>de</strong> e PaixãoVilmar Le<strong>de</strong>smaNicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em FamíliaElaine GuerriniNívea Maria – Uma Atriz RealMauro Alencar e Eliana PaceNiza <strong>de</strong> Castro Tank – Niza, Apesar das OutrasSara LopesPaulo Betti – Na Carreira <strong>de</strong> um SonhadorTeté RibeiroPaulo José – Memórias SubstantivasTania CarvalhoPedro Paulo Rangel – O Samba e o FadoTania CarvalhoRegina Braga – Talento é um AprendizadoMarta GóesReginaldo Faria – O Solo <strong>de</strong> Um InquietoWagner <strong>de</strong> Assis


Renata Fronzi – Chorar <strong>de</strong> RirWagner <strong>de</strong> AssisRenato Borghi – Borghi em RevistaÉlcio Nogueira SeixasRenato Consorte – Contestador por ÍndoleEliana PaceRolando Boldrin – Palco BrasilIeda <strong>de</strong> AbreuRosamaria Murtinho – Simples MagiaTania CarvalhoRubens <strong>de</strong> Falco – Um Internacional Ator BrasileiroNydia LiciaRuth <strong>de</strong> Souza – Estrela NegraMaria Ângela <strong>de</strong> JesusSérgio Hingst – Um Ator <strong>de</strong> CinemaMáximo BarroSérgio Viotti – O Cavalheiro das ArtesNilu LebertSilvio <strong>de</strong> Abreu – Um Homem <strong>de</strong> SorteVilmar Le<strong>de</strong>smaSônia Gue<strong>de</strong>s – Chá das CincoAdélia NicoleteSonia Maria Dorce – A Queridinha do meu BairroSonia Maria Dorce ArmoniaSonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana?Maria Thereza VargasSuely Franco – A Alegria <strong>de</strong> RepresentarAlfredo SternheimTatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte OutraSérgio Roveri


Tony Ramos – No Tempo da Delica<strong>de</strong>zaTania CarvalhoUmberto Magnani – Um Rio <strong>de</strong> MemóriasAdélia NicoleteVera Holtz – O Gosto da VeraAnalu RibeiroVera Nunes – Raro TalentoEliana PaceWal<strong>de</strong>rez <strong>de</strong> Barros – Voz e SilênciosRogério MenezesZezé Motta – Muito PrazerRodrigo MuratEspecialAgildo Ribeiro – O Capitão do RisoWagner <strong>de</strong> AssisBeatriz Segall – Além das AparênciasNilu LebertCarlos Zara – Paixão em Quatro AtosTania CarvalhoCinema da Boca – Dicionário <strong>de</strong> DiretoresAlfredo SternheimDina Sfat – Retratos <strong>de</strong> uma GuerreiraAntonio GilbertoEva Todor – O <strong>Teatro</strong> <strong>de</strong> Minha VidaMaria Angela <strong>de</strong> JesusEva Wilma – Arte e VidaEdla van SteenGloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda doMaior Sucesso da Televisão BrasileiraÁlvaro Moya


Lembranças <strong>de</strong> HollywoodDulce Damasceno <strong>de</strong> Britto, organizado por Alfredo SternheimMaria Della Costa – Seu <strong>Teatro</strong>, Sua VidaWar<strong>de</strong> MarxNey Latorraca – Uma CelebraçãoTania CarvalhoRaul Cortez – Sem Medo <strong>de</strong> se ExporNydia LiciaRe<strong>de</strong> Manchete – Aconteceu, Virou HistóriaElmo FrancfortSérgio Cardoso – Imagens <strong>de</strong> Sua ArteNydia LiciaTônia Carrero – Movida pela PaixãoTania CarvalhoTV Tupi – Uma Linda História <strong>de</strong> AmorVida AlvesVictor Berbara – O Homem das Mil FacesTania CarvalhoWalmor Chagas – Ensaio Aberto para Um HomemIndignadoDjalma Limongi Batista


Formato: 12 x 18 cmTipologia: FrutigerPapel miolo: Offset LD 90 g/m 2Papel capa: Triplex 250 g/m 2Número <strong>de</strong> páginas: 316Editoração, CTP, impressão e acabamento:<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado <strong>de</strong> São Paulo


Coleção Aplauso Série <strong>Teatro</strong> BrasilCoor<strong>de</strong>nador GeralCoor<strong>de</strong>nador Operacionale Pesquisa IconográficaProjeto GráficoEditor AssistenteEditoraçãoTratamento <strong>de</strong> ImagensRevisãoRubens Ewald <strong>Filho</strong>Marcelo PestanaCarlos CirneFelipe GoulartFátima ConsalesSelma BrisollaJosé Carlos da SilvaWilson Ryoji Imoto


© 2009Dados Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)<strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>, JoséO teatro <strong>de</strong> José <strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong> / José <strong>Saffioti</strong> <strong>Filho</strong>. -- SãoPaulo : <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong>, 2009. -- (Coleção aplauso teatroBrasil / coor<strong>de</strong>nador geral Rubens Ewald <strong>Filho</strong>)ISBN 978-85-7060-745-4Conteúdo: O estúpido cupido contra Miss Cinelândia --A rainha do rádio -- Coragem, meu bem, coragem --As malvadas.1. Crítica teatral 2. Peças <strong>de</strong> teatro 3. <strong>Teatro</strong> - História ecrítica I. Ewald <strong>Filho</strong>, Rubens. II. Título. III. Série.09-06695 CDD - 809.2Índices para catálogo sistemático:1. <strong>Teatro</strong> : Literatura : História e crítica809.2Proibida reprodução total ou parcial sem autorizaçãoprévia do autor ou dos editoresLei nº 9.610 <strong>de</strong> 19/02/1998Foi feito o <strong>de</strong>pósito legalLei nº 10.994, <strong>de</strong> 14/12/2004Impresso no Brasil / 2009Todos os direitos reservados.<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado <strong>de</strong> São PauloRua da Mooca, 1921 Mooca03103-902 São Paulo SPwww.imprensaoficial.com.br/livrarialivros@imprensaoficial.com.brSAC 0800 01234 01sac@imprensaoficial.com.br


Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no sitewww.imprensaoficial.com.br/livraria

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