12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brNão. Detesto exibições. E não distingo entre exibições, sejam <strong>de</strong> roupas,sejam <strong>de</strong> talentos ou virtu<strong>de</strong>s, sejam <strong>de</strong> vícios ou maroteiras. Propendo até aperdoar mais facilmente a exibição <strong>de</strong> roupas, que não é assim tão idiota comoinculcam os que não a po<strong>de</strong>m pagar.Ter vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a farpela bonita é geralmente <strong>um</strong>a falta venial e, porassim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres da alma; ao passo que avaida<strong>de</strong> intelectual envenena e turba as próprias fontes do pensamento, e a vaida<strong>de</strong>da boa ação <strong>de</strong>strói exatamente essa misteriosa e fragílima levedura <strong>de</strong> heroísmo,que é o seu único valor, — o impon<strong>de</strong>rável que a análise não po<strong>de</strong> reduzir e ante oqual o escalpelo se <strong>de</strong>tém, enquanto faísca no olho implacável do operador <strong>um</strong>acentelha <strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana emoção.É a vaida<strong>de</strong> exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial<strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> energias profundas. Aparentemente frívola, ela é na realida<strong>de</strong> maisforte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas e fitas, as suas exteriorida<strong>de</strong>sesp<strong>um</strong>osas e florais <strong>de</strong> criatura espetacular, são na realida<strong>de</strong> <strong>um</strong>as couraças, unsadarves, <strong>um</strong>as muralhas, — são tranqueiras e circunvalações <strong>de</strong>fensivas que amulher esten<strong>de</strong> em redor <strong>de</strong> si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva lá<strong>de</strong>ntro, na intimida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>la sacra, o seu tesouro e o seu altar.Não, a ind<strong>um</strong>entária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me,luxuosamente, como a coisa <strong>de</strong>signada) a ind<strong>um</strong>entária não me influiu na resolução<strong>de</strong> ir para o primeiro banco. Predispôs-me bem, quando muito <strong>de</strong>u-me <strong>um</strong> calorzinho<strong>de</strong> otimismo e <strong>de</strong> simpatia difusa. Isto, sim. — De on<strong>de</strong> infiro que <strong>de</strong>víamos usar maisfreqüentemente <strong>de</strong> roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuaro efeito pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente <strong>de</strong> roupa nova.Se todos vivêssemos enfiados em estojos <strong>de</strong> boa fazenda e bom corte, <strong>de</strong>certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilida<strong>de</strong> e o concerto dasrelações entre os homens. — Um indivíduo ru<strong>de</strong>mente estrafegado pela vida, massempre cingido em ternos corretos e confortáveis, suporta com outra filosofia e outraelegância os baldões da fortuna. Principalmente, é claro, quando a roupa está paga.Homens há que são relembórios por teima, por <strong>de</strong>scaso, por sistematizaçãoinconsciente das sugestões da preguiça, da somiticaria ou da falta <strong>de</strong> gosto. Queremfazer crer que são assim por vonta<strong>de</strong> e que vão executando <strong>um</strong> programa bemmeditado. Dão-se ares <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar profundamente essas materialida<strong>de</strong>s ineptas. Ea verda<strong>de</strong> é que são às vezes sinceros. Mas como se ilu<strong>de</strong>m!O indivíduo mais sinceramente lavado <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>corativas não po<strong>de</strong>,quando menos, quando menos, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> sentir a cada instante a discrepância emque se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua atitu<strong>de</strong> interior<strong>de</strong> dissidência, não po<strong>de</strong> evitar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar nisso, <strong>de</strong> fazer reflexõesque <strong>de</strong>ixam forçosamente <strong>um</strong> sedimento amargo, sobretudo quando reagem contraatitu<strong>de</strong>s e atos <strong>de</strong>preciativos com que esbarrou. Sendo assim, on<strong>de</strong> está a liberda<strong>de</strong>interior que ele preten<strong>de</strong> prezar acima <strong>de</strong> tudo? A liberda<strong>de</strong> perfeita e bela seria aque implicasse no mesmo <strong>de</strong>sprezo profundo e sereno as materialida<strong>de</strong>s exteriorese todas as suas conseqüências — a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Diógenes ou <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong>Assis. Sem isso não é liberda<strong>de</strong>: é <strong>um</strong> simulacro, <strong>um</strong> escamoteio, <strong>um</strong> sofisma emação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua, como a sua própria sombra.Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria emantém o hábito das posições perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por<strong>um</strong> esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a <strong>um</strong>a disciplinaretificadora e a <strong>um</strong>a continuada economia <strong>de</strong> força. Excelente esporte para a alma,que se mo<strong>de</strong>la à feição do corpo. — As atitu<strong>de</strong>s e movimentos da alma são atitu<strong>de</strong>s15

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!