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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brpor acaso se tivesse vindo suster em cima <strong>de</strong> outras pedras menores e espaçadas.O lagarto, <strong>de</strong> <strong>um</strong> estilhaço <strong>de</strong> pau nodoso rachado pelo raio. Os peixes não teriamvindo da sugestão <strong>de</strong> <strong>um</strong> card<strong>um</strong>e <strong>de</strong> folhas polpudas caídas <strong>de</strong> grossas plantasaquáticas? E o morcego? O morcego foi <strong>de</strong> certo imitado <strong>de</strong> <strong>um</strong> pequeno guardachuvaesfrangalhado pelo vento. (Contudo, não estou seguro da existência préhistóricado guarda-chuva).Só <strong>de</strong>pois, muito <strong>de</strong>pois, a Artista se libertou das formas anteriores para asinventar novas e mais perfeitas — o galo, esse objeto <strong>de</strong> luxo, o cisne, esse sonho<strong>de</strong> paz e perfeição, o gato, essa pequena mistura <strong>de</strong> inocência e <strong>de</strong> malignida<strong>de</strong>, amulher... Ai, a mulher! Complexa obra <strong>de</strong> fantasia terna, cruel e h<strong>um</strong>orística: cisne,galinhola e gata. Rufina, meu amor, eu adivinho que tu és isso tudo!Tive também <strong>um</strong> acesso <strong>de</strong> ternura pelo coitado do meu louva-a-<strong>de</strong>us,perdido entre paralelepípedos e almas, na cida<strong>de</strong> poeirenta e dura, longe do fluidoverdor fresco das moitas e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo <strong>de</strong> menino, lámuito longe (muito longe, muito longe, n<strong>um</strong> outro mundo que já nem sei se existe!),on<strong>de</strong> o louva-a-<strong>de</strong>us se conhecia por cavalinho <strong>de</strong> Nosso Senhor e on<strong>de</strong> me divertiacom outros pequenos a caçá-lo, para o ver fazer a sua oração <strong>de</strong> mãos postas epara lhe amarrar <strong>um</strong> cor<strong>de</strong>linho a <strong>um</strong>a das patas traseiras.Vi os agros lavrados, gran<strong>de</strong>s remendos postos ao manto das lombas, comestrias roxas <strong>de</strong> terra e bordados ver<strong>de</strong>s <strong>de</strong> planta nova. Vi a vegetação mole e tufadados grotões por on<strong>de</strong> a água corria e ofegava, como rapariga surpreendida nua. Vi oempastamento violáceo-azul-f<strong>um</strong>aça dos morros distantes. Vi o risco sangrento docaminho velho através da solidão virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre dasmacegas. Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pé do valo esboroado,entupido <strong>de</strong> gravatás, à sombra do pau-d'alho fechado e baixo como <strong>um</strong>a cabanatriste. Ouvi ecos errantes <strong>de</strong> vozes grossas a chamarem pelo gado, <strong>de</strong> cantigas <strong>de</strong>lava<strong>de</strong>iras no córrego, do jorro da bica a referver no esqueleto negro da roda <strong>de</strong> água.E havia no meio <strong>de</strong> tudo isso, ainda mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo emais sonhado, <strong>um</strong> toque fremente e forte <strong>de</strong> buzina <strong>de</strong> caça, lá pelas barrocas e peloscerrados <strong>de</strong>sertos, <strong>um</strong> toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava o silênciocom ímpetos heróicos e melancólicos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio e <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.Traspassou-me a alma hereditária <strong>de</strong> lavrador <strong>de</strong>senraizado <strong>um</strong> sentimentoagudo <strong>de</strong> solidão e <strong>de</strong> incomunicabilida<strong>de</strong>, e fiquei a olhar para o louva-a-<strong>de</strong>us naânsia com que alguém, perdido em terra estrangeira, se poria a amar <strong>de</strong> longe <strong>um</strong>compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim as nossas ternuras vêmsempre acabar em nós mesmos. Aí, senhor duque <strong>de</strong> la Rochefoucauld!)Viajava a meu lado <strong>um</strong> moço atochado <strong>de</strong> conhecimentos exatos. Disse-me,com certa indignação, que o louva-a-<strong>de</strong>us, mante réligieuse, é <strong>um</strong> dos seres maissinistros da criação viva: a fêmea tem o in<strong>de</strong>licado cost<strong>um</strong>e <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorar o incautoesposo logo no festim <strong>de</strong> bodas (ao contrário portanto <strong>de</strong> outras que comem os seusaos bocadinhos, a vida inteira).Eu já sabia disso pelos Souvenirs do Fabre; mas o moço tinha prazer em meinstruir, e eu não lhe quis aguar essa satisfação não <strong>de</strong> todo inocente, mas tolerável.Não lha tolerei por generosida<strong>de</strong>, mas porque não queria jogar com ele a cena dosdois pedantes que se travam <strong>de</strong> sabenças.Tenho pavor a essa espécie <strong>de</strong> gente, (aliás estimável, posto que daninha) aessa espécie <strong>de</strong> gente que vive a verter sabi<strong>de</strong>las <strong>de</strong>coradas por todas as juntas,como pipotes <strong>de</strong> melado em que não se po<strong>de</strong> pôr o <strong>de</strong>do sem sentir o pegajoso dasescorrências. São sucursais vivas da tipografia. São jornais parlantes, cheios <strong>de</strong>reportagens, <strong>de</strong> ciência feita, mas sem artigos <strong>de</strong> fundo e sem rodapés literários. A27

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