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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brque se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem <strong>de</strong> ser aturado nas suasimportunações, ou carregado como <strong>um</strong>a coisa, ou conduzido como <strong>um</strong> animal, ouque extravasa, dá escândalo e faz <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.Há a bebe<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> morfina, éter e similares, e das paixões políticas,profissionais e confessionais, a da ambição doentia, a do exibicionismo patológico;há a embriaguez mo<strong>de</strong>rna da ativida<strong>de</strong> exacerbada, que, como todas, enfuria,<strong>de</strong>sfalca, mecaniza e <strong>de</strong>forma a natureza do homem. E há a embriaguez dasensualida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>sdobra nesta epi<strong>de</strong>mia universal <strong>de</strong> ostentação, <strong>de</strong> festas e<strong>de</strong> fantochismo dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez típica.O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes arrenega, às vezesduvida entre si se é bom ou se não será. Mas volta, e prova mais <strong>um</strong>a vez, maisoutra, e mais outra, a<strong>um</strong>entando as doses. Para encurtar, não tarda que seja <strong>um</strong>viciado. Torna-se <strong>um</strong> automobilimaníaco. Anda quase constantementeautomobiliagado, com períodos lúcidos <strong>de</strong> mais em mais breves, em que trata <strong>de</strong>seus negócios e participa da vida íntima <strong>de</strong> sua família.Quando está em crise, empali<strong>de</strong>ce, enrija-se, tem os olhos parados, o lábio<strong>de</strong>scaído e branco. A pequena velocida<strong>de</strong> é a fase alegre e brincalhona: elepirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico,dirige pilhérias aos guardas. A velocida<strong>de</strong> média é a fase da provocação e do "leve odiabo". A velocida<strong>de</strong> máxima média é o estado <strong>de</strong>lirante: a consciência acaba <strong>de</strong><strong>de</strong>saparecer, <strong>de</strong>saparece tudo, ou tudo se reduz a <strong>um</strong> sonho agônico, em que apersonalida<strong>de</strong> tem a abafada impressão <strong>de</strong> se libertar das prisões materiais e voarno vento e na luz.Embriaguez <strong>de</strong>testável como qualquer outra. Mais do que qualquer outraproduz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme todos os diasrevelam as crônicas. E, como muitas outras, <strong>de</strong>ixa suas heranças à <strong>de</strong>scendência.Entretanto, não se cogita <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lei seca para esse flagelo.A verda<strong>de</strong> é que o homem é <strong>um</strong> ser que se embriaga. Não importa a maneira:o essencial é embriagar-se. Morfina, éter, coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin,vodca, cerveja, automóvel, jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notorieda<strong>de</strong>,glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos,sentir a falsa plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>saforo interior, embora à custa do <strong>de</strong>sbarate e daquebra do rico, vário e harmônico plano natural da construção h<strong>um</strong>ana.Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o entorpecimentodo Eu consciente. E é verda<strong>de</strong>. Mas o álcool e o tabaco não são os únicosmananciais <strong>de</strong>ssa felicida<strong>de</strong> mutilante. Há-os em barda por aí, todos produzindoefeitos exteriores análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, querse trate <strong>de</strong> <strong>um</strong> cigarro ou <strong>de</strong> <strong>um</strong> trago, quer <strong>de</strong> <strong>um</strong> veículo atirado como <strong>um</strong> buscapéou <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paixão ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo doscuidados, abafar <strong>um</strong>a porção <strong>de</strong> vozes que balbuciam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, prevenir <strong>um</strong>mundo <strong>de</strong> preocupações e <strong>de</strong> angústias possíveis, apequenar a nossa h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>,pôr entre nós e o cariz oceânico da vida <strong>um</strong> véu que o esf<strong>um</strong>e e nos tranqüilize.Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos <strong>de</strong> nós. Todos temos o nosso copo, etodos parecemos obe<strong>de</strong>cer ao conselho <strong>de</strong> Omar Kayyám: Sonha que já não és, esê feliz.És que? Homem, cá para o nosso caso.BOA PROSA29

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