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www.nead.unama.br— "Bolas! Não estou disposto a brigar com meio mundo." E o gordo a resmungar: "Ocalcinhas! Esta sucia..."A princípio não compreendi por que seria que o pançudo tanto se irritara. Éque sou por natureza tardo <strong>de</strong> compreensão. Nada mais fácil <strong>de</strong> ver que o homemsentira espicaçado justamente por aquele excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za. Se o moço,passando, lhe tivesse empurrado <strong>de</strong> leve os joelhos, dizendo <strong>um</strong> seco e rápido "comlicença!", e fosse tocando para diante, nada teria acontecido. O gordo levaria isso àconta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pequenina e <strong>de</strong>sculpável grosseria sem en<strong>de</strong>reço especial. Não já,assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço como farpazinhaparticularmente preparada para sua pessoa. Ninguém gosta <strong>de</strong> se ver assimpessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos tortos, que são mais o<strong>um</strong>enos os <strong>de</strong> toda a gente e <strong>de</strong>vem passar sem exame e sem reparo.Há <strong>um</strong>a causa mais geral, e é que o excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za leva <strong>um</strong>a dose <strong>de</strong>ironia, e a ironia ofen<strong>de</strong> e revolta mais do que a ru<strong>de</strong>za. Não, como geralmente sejulga, por penetrar mais fundo na <strong>de</strong>rme do alvejado, mas pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>armas. O homem <strong>de</strong>sprevenido e "natural" não tem, nos seus encontros e lidascotidianas, mais do que as armas <strong>de</strong> ataque e <strong>de</strong>fesa que a natureza lhe <strong>de</strong>u, e <strong>de</strong>lasse socorre como po<strong>de</strong>. O irônico é <strong>um</strong> mal intencionado, que carrega armas artificiaisno meio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a população policiada e pacífica. Viola a convenção em que ageneralida<strong>de</strong> repousa. Quebra a regra consuetudinária do jogo da convivência. On<strong>de</strong>outros se limitariam a usar das mãos e dos cotovelos, ele saca <strong>de</strong> <strong>um</strong> pequeninopunhal e põe-se a esgrimi-lo com a <strong>de</strong>streza <strong>de</strong> <strong>um</strong> especialista <strong>de</strong> má-fé e <strong>de</strong> mausbofes. O adversário sente-se apanhado à traição, exaspera-se e, às vezes explo<strong>de</strong>.O sujeito extremamente <strong>de</strong>licado é, no fundo, <strong>um</strong> indivíduo que faz o pior juízoacerca dos seus dissemelhantes, e os trata com infinitos cuidados, como se lidassecom cavalos passarinheiros ou cachorros agressivos. Ou isso, ou então é que gosta <strong>de</strong>lançar engodos às almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam emespetáculo. Todos os seus gestos estão impregnados <strong>de</strong> ironia, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ironia que nadatem com a dos homens compreensivos e sensíveis que já viveram muito, mas <strong>um</strong>aironia feita <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> caborteirice e <strong>de</strong> secura <strong>de</strong> coração. Ele é o "homem <strong>de</strong>escol", "a criatura <strong>de</strong> exceção", fina, distinta, lixada, repolida, cheia <strong>de</strong> bicos e rendas,<strong>de</strong>sgraçadamente obrigada a viver no meio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a canalha tosca e molesta!A antipatia instintiva que provoca é <strong>um</strong>a reação da vis medicatie social.O que mostra mais <strong>um</strong>a vez como os movimentos instintivos po<strong>de</strong>meqüivaler a longas reflexões, e como a mentalida<strong>de</strong> coletiva po<strong>de</strong> chegar, semraciocínio, aos mesmos resultados das lentas análises do psicólogo e do moralista.,— De on<strong>de</strong>, também, o erro dos paradoxófilos, quando partem do pressuposto <strong>de</strong>que, para bem pensar, é preciso pensar contra os sentimentos do maior número.O SONETOSe eu tivesse <strong>de</strong> fazer perante o vigário <strong>um</strong>a confissão minuciosa, raspandoas voltas mais fundas do meu ser, não encontraria <strong>de</strong> certo explicação para o fato <strong>de</strong>o soneto <strong>de</strong> Gabriela me haver tornado, hoje, ao espírito- não à lembrança apenas,ao espírito, à alma. Só posso dizer que, ao vir-me o condutor cobrar a passagem,nem o senti chegar, estava absorvido na segunda quadra.A vida é <strong>um</strong> céu que <strong>um</strong>a só vez se estrela; toda estrelada e rutilante a viste...Não me satisfizeram estes versos, nem como idéia nem como forma.Chamar céu à vida é sempre extravagância; <strong>de</strong>mais, <strong>um</strong> céu que só se estrela <strong>um</strong>a33