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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brVê como <strong>um</strong>a coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfocom<strong>um</strong> das energias contraditórias <strong>de</strong>rramadas pela face da terra!Eis-me aqui, doce como <strong>um</strong> afago, leve como <strong>um</strong>a asa, breve como <strong>um</strong>sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como alágrima e como o sorriso, esses dois res<strong>um</strong>os h<strong>um</strong>anos da infinita comédia, e dainfinita alegria do universo...Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nuncafaltarei ao pé <strong>de</strong> ti, se o quiseres.Busca-me, achar-me-ás. Eu só <strong>de</strong>sapareço <strong>de</strong> teus olhos para que em ti serenove a ânsia pela minha presença.Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir <strong>um</strong>aesp<strong>um</strong>a <strong>de</strong> rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.Colhe, beija e sorri.Nesse minuto estarás n<strong>um</strong> pináculo da vida e n<strong>um</strong> ponto l<strong>um</strong>inoso daeternida<strong>de</strong>.Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha daterra vil e do homem <strong>de</strong>sgraçado...UM FIO DE CABELOAquela moça espigada que entrou no bon<strong>de</strong> com o ímpeto ágil <strong>de</strong> <strong>um</strong>gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possível<strong>de</strong> <strong>um</strong>a pequena tragédia.Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão longe <strong>de</strong> mim quesentia a irradiação das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como <strong>um</strong> cacho <strong>de</strong>flores <strong>de</strong> resedá arrancado ao galho pela manhã, tinha a afilada silhueta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a girlesportiva e a <strong>de</strong>spachada simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> rapaz. Tirou a espécie <strong>de</strong> boina quetrazia na cabeça, agitou o nevoeiro <strong>de</strong> fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, <strong>de</strong>leve, como se lhas queimasse, e minutos <strong>de</strong>pois, repondo o gorro, partia, n<strong>um</strong> outrosalto <strong>de</strong> gafanhotinho brincalhão.Jeunesse <strong>de</strong> visage et jeunesse <strong>de</strong> coeur!Quando cheguei a casa, tinha no ombro <strong>um</strong> fio <strong>de</strong> cabelo, <strong>um</strong> fio <strong>de</strong> chama.Descobriu-o a criada, com <strong>um</strong> sorriso ingênuo e perverso. Pegou nele, <strong>de</strong>intrometida, examinou-o à luz da janela, e ia <strong>de</strong>ixá-lo cair quando eu, não mepo<strong>de</strong>ndo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me comcara <strong>de</strong> surpresa e <strong>de</strong>sapontamento, como a pedir explicação. Não lha <strong>de</strong>i,limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha <strong>de</strong> Cádis, para não lhe <strong>de</strong>ixar aimpressão <strong>de</strong> estar zangado, e retirei-me para o meu quarto.Na verda<strong>de</strong>, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a molaao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a consi<strong>de</strong>rar os frutos <strong>de</strong>suspicácia, <strong>de</strong> bisbilhotice e <strong>de</strong> malignida<strong>de</strong> que a moral produz nas almas simples;e <strong>de</strong> reflexão em reflexão achei-me <strong>de</strong> repente imerso, mal sustendo a cabeça <strong>de</strong>fora, na imensurável e irremediável miséria da bicharia h<strong>um</strong>ana.E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua, dos raios que <strong>de</strong>ixacair, não esteve longe <strong>de</strong> ser causa <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>saguisado doméstico. Ao mesmotempo que alisava o cabelo, n<strong>um</strong> movimento <strong>de</strong> mãos e n<strong>um</strong>a dança <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos levee aérea como <strong>um</strong> gorjeio, po<strong>de</strong>ria estar agitando a corrente <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>stinosignorados e preparando <strong>um</strong>a pororoca longínqua.47

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