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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brcuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para trásdas orelhas, on<strong>de</strong> formavam caracóis. A camisa era limpa, e <strong>um</strong> sorriso satisfeito,que se diria igualmente lavado com sabão <strong>de</strong> cinza, ao jorro da torneira sobre a tina,se lhe abria na cara tostada, como <strong>um</strong>a toalha a corar ao sol.Pois filhos buliçosos, entre os seis e os <strong>de</strong>z anos, enfarpelados à marinheira,com gran<strong>de</strong>s colarinhos <strong>de</strong>itados, por cuja abertura se estripavam altos laçarotes <strong>de</strong>fita escocesa. Tinham chapéus <strong>de</strong> palha amarela com cintas atuis, nos quais se liamnomes <strong>de</strong> navios <strong>de</strong> guerra: "Aquidabá", "Timbira", em letras douradas. Traziambengalinhas, <strong>de</strong>masiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-secom esse luxo <strong>de</strong>sacost<strong>um</strong>ado.A mãe, maciça no seu largo vestido <strong>de</strong> lãzinha cor chocolate, os cabelosrepartidos em duas asas negras e lisas, apanhados n<strong>um</strong>a rodilha farta sobre a nucamorena. Estava alegre como os outros, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a alegria meio assustada, —talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do penteado que lherepuxava a pele da testa.Quando o bon<strong>de</strong> chegou, os pequenos treparam <strong>de</strong>sajeitadamente,agarrando-se ao carro com as mãos ambas e foram colocar-se nas extremida<strong>de</strong>sfronteiras dos dois primeiros bancos, a garantir os postos <strong>de</strong> observação.A mãe entrou com eles, arrastando <strong>um</strong> pela blusa, empurrando outro pelotraseiro e sentou-se ao pé dos dois, ralhando em voz baixa, como se estivessemn<strong>um</strong> lugar <strong>de</strong> respeito.O pai mais senhor <strong>de</strong> si, aboletou-se a pouca distância, inspecionando tudocom <strong>um</strong> semblante meio severo meio con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para <strong>um</strong> e outrolado, a olhar os prédios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares dosedifícios alteados ao longe, os automóveis que passavam. Divertiu-os muito <strong>um</strong>caminhão cheio <strong>de</strong> futebolistas seminus e gritadores. Também acharam bastantegraça n<strong>um</strong> velho <strong>de</strong> barbas bíblicas, que trazia na mão <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> árvore, <strong>de</strong>folhagem toda florida <strong>de</strong> papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventosgiravam e z<strong>um</strong>biam como <strong>um</strong> enxame assanhado.O estridor das rodas do bon<strong>de</strong> nas curvas mal engraxadas foi ponto <strong>de</strong>partida <strong>de</strong> <strong>um</strong>a rivalida<strong>de</strong> entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado emimitá-lo com a boca. A mãe ria-se, tapando os <strong>de</strong>ntes com a mão, relanceando osolhos <strong>de</strong>sconfiados pela circunvizinhança.Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam sabercomo era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicações fantasiosas que eramocasião <strong>de</strong> teimas e risos.Enfim, como aquela família se divertia!Ao chegarmos à cida<strong>de</strong>, saltaram para ir ver as vitrinas e, <strong>de</strong> certo, para ir aalg<strong>um</strong> botequim tomar café-com-leite e comer cavacas e pães-<strong>de</strong>-ló — <strong>um</strong> festim<strong>de</strong>licioso.Respiravam tranqüilida<strong>de</strong> e alegria. A alma boiava-lhes n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>scuidosasatisfação <strong>de</strong> filhos amados da felicida<strong>de</strong> e do candor.Passear <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, andar pela cida<strong>de</strong>, ver a gente, ver as vitrinas, tomarcafé-com-leite n<strong>um</strong> botequim gran<strong>de</strong>, cheio <strong>de</strong> espelhos, em chávenas <strong>de</strong> louçabrilhante,—que recreio, que consolo, que temerida<strong>de</strong> jovial e dissipadora!Nunca tenho inveja a ninguém, e aos felizes da felicida<strong>de</strong> exterior, aindamenos que a ninguém. Mas diante <strong>de</strong>ssa família, tive <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> inveja.Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquelagente era vago e distante como tudo quanto é muito próximo e muito visto, senti em55

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