12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brNisto, o velho bezerrão fez sinal ao condutor e, na sua voz plácida: "Vamos,Rufina; mas não caia!" A moça riu-se <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>, como <strong>um</strong> lindo mo<strong>de</strong>lo paraanúncio <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntifrício; fez-me <strong>um</strong> c<strong>um</strong>primento <strong>de</strong> cabeça, largo e cordial, e saltou,acompanhada pelo velhote.Vieram-me ímpetos <strong>de</strong> saltar igualmente, mas uns temores me agarraram aobanco, pelos fundilhos, como cola. Não me acharia ela ridículo. Não daria o meu atona vista dos passageiros? Refleti que este receio era estúpido. Eu tinha o sagradodireito <strong>de</strong> saltar on<strong>de</strong> quisesse. Demais, como é que se podia <strong>de</strong>centemente receber<strong>um</strong> sorriso <strong>de</strong> mulher bonita, sem a seguir, ainda que a custo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> risco?Ia eu refletindo, quando olhei para trás: Rufina tinha <strong>de</strong>saparecido. Bolas!Encolhi-me, n<strong>um</strong> acabrunhado <strong>de</strong>sprezo <strong>de</strong> mim mesmo, e <strong>de</strong>ixei o bon<strong>de</strong> rodar.Quando <strong>de</strong>i acordo <strong>de</strong> mim, era o único passageiro restante e estava no fim da linha.Só, só na solidão do carro vazio. Só e triste como a fruta murcha que ficou no fundodo cesto. A voz do condutor português rolava, irônica, conclusiva, ret<strong>um</strong>bando-mena alma como a voz do pai <strong>de</strong> Hamlet nos subterrâneos <strong>de</strong> Elsenor:Pooonto finale!!!O PESCADOR E O SILÊNCIO"Com que então, Barbosa, você é pescador?"Esta simples frase, dita n<strong>um</strong>a voz branca, <strong>de</strong> <strong>um</strong> jeito quase distraído, me iahoje ren<strong>de</strong>ndo <strong>um</strong>a quebra <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>.Fre<strong>de</strong>rico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direitoque jamais conheci. O senso com<strong>um</strong> encarnou-se nele como a seiva se infun<strong>de</strong> e sesolidifica n<strong>um</strong>a cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura <strong>de</strong> Barbosa fora armadacom aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzilmaciço, a fisionomia <strong>de</strong>nsa <strong>de</strong> hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. Enunca <strong>de</strong>scobri no meu amigo <strong>um</strong>a trinca, <strong>um</strong> recanto <strong>de</strong>sleixado, <strong>um</strong>a <strong>de</strong>pendênciain<strong>de</strong>cisa e frouxa.Vendo-o, hoje, no bon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> caniço em punho, tive <strong>um</strong>a pequena surpresa,olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei n<strong>um</strong> pontodolorido. Não se <strong>de</strong>sconcertou, nem se irritou propriamente, mas respon<strong>de</strong>u-me com<strong>um</strong> nadinha <strong>de</strong> impertinência:— "É verda<strong>de</strong>; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não fazmal a ninguém— senão aos peixes. É higiênica, tem a sua dose <strong>de</strong> poesia..."— "Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa <strong>de</strong> justificação."— "Mas, se eu quiser justificar?"Fez então o elogio da pesca <strong>de</strong> vara. Uma pessoa fica à beira da água coma cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenh<strong>um</strong> <strong>de</strong>sbarato <strong>de</strong>energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nema mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nemo enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca,engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara <strong>um</strong>estremecimento característico, dá-lhe <strong>um</strong> meneio, e puxa.— "Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudosemelhante à do acaso, ou dos aci<strong>de</strong>ntes cegos que semeiam o curso dos rios e <strong>de</strong>todas as coisas. Ele espera, enten<strong>de</strong>u? Ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o9

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!