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História do Futuro

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<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 1 de 16927/08/2011<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>Padre António VieiraCAPÍTULO IDeclara-se a primeira parte <strong>do</strong> titulo desta <strong>História</strong>, e quão própria é dacuriosidade humana a sua matéria.Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seumaior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia <strong>do</strong>stempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e aoMun<strong>do</strong> esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousaspassadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memóriaaqueles sucessos públicos que viu o Mun<strong>do</strong>; esta intenta manifestar ao Mun<strong>do</strong>aqueles segre<strong>do</strong>s ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar oentendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidadehumana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabe<strong>do</strong>ria, posto que repartiu ostesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro,sempre reservou para si a ciência <strong>do</strong>s futuros, como regalia própria dadivindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, nãotanto de sua sabe<strong>do</strong>ria, quanto de sua eternidade, que to<strong>do</strong>s os futuros lhesejam presentes; o homem, filho <strong>do</strong> tempo, reparte com o mesmo a sua ciênciaou a sua ignorância; <strong>do</strong> presente sabe pouco, <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> menos e <strong>do</strong> futuronada.A ciência <strong>do</strong>s futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses <strong>do</strong>s homens,e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem comodeuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundi<strong>do</strong> todas as ciências,nenhuma lhes faltava senão a <strong>do</strong>s futuros, e esta lhes prometeu o Demôniocom a divindade, quan<strong>do</strong> lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum.Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi aherança que nos ficou <strong>do</strong> Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem veda<strong>do</strong>e mal apeteci<strong>do</strong>, mas por isso mais apeteci<strong>do</strong>, porque veda<strong>do</strong>.Como é inclinação natural no homem apetecer o proibi<strong>do</strong> e anelar ao nega<strong>do</strong>,sempre o apetite e curiosidade humana está baten<strong>do</strong> às portas deste segre<strong>do</strong>,ignoran<strong>do</strong> sem moléstia muitas cousas das que são, e afetan<strong>do</strong> impaciente aciência das que hão de ser. Por este meio veio o Demônio a conseguir que ohomem lhe desse falsamente a divindade, que o mesmo demônio com igualfalsidade lhe tinha prometi<strong>do</strong>. E senão, pergunto: Quem foi o que introduziu noMun<strong>do</strong>, sem algum me<strong>do</strong>, mas antes com aplauso, a a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong> Demônio?Quem fez que fosse tão freqüenta<strong>do</strong> e consulta<strong>do</strong> o í<strong>do</strong>lo de Apolo em Delfos? Ode Júpiter em Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O deDafne em Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O deHércules em Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que odesejo insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsaopinião <strong>do</strong>s oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas, foram osque to<strong>do</strong> este culto lhe granjearam, sen<strong>do</strong> certo que, se Deus, vin<strong>do</strong> ao Mun<strong>do</strong>,não emudecera (como emudeceu) os oráculos da Gentilidade, grande parte <strong>do</strong>que hoje é fé, fora ainda i<strong>do</strong>latria. Tão mal sofreram os homens que Deusreservasse para si a ciência <strong>do</strong>s futuros, que chegaram a dar às pedras adivindade própria de Deus, só porque Deus fizera própria da divindade estaciência: antes queriam uma estátua que lhes dissesse os futuros, que um Deusque lhos encobria.Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que oshomens inventaram desde a terra até o céu, leva<strong>do</strong>s deste apetite? Sobre osquatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os futuros, quetomaram os nomes <strong>do</strong>s seus próprios sujeitos: agromancia, que ensina aadivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da água; a aeromancia,pelas <strong>do</strong> ar, e a piromancia, pelas <strong>do</strong> fogo. Tão cegos seus autores no apetitevão daquela curiosidade, que, ten<strong>do</strong>-se perdi<strong>do</strong> na terra os vestígios de tantascousas passadas, cuidaram que na água, no ar e no fogo os podiam achar das


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 2 de 16927/08/2011futuras.No mesmo homem descobriram os homens <strong>do</strong>is livros sempre abertos epatentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas feições<strong>do</strong> rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão pequeno, tãoplano e tão liso como a palma da mão de um homem, inventaram osquiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão montes levanta<strong>do</strong>s edividi<strong>do</strong>s, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e casos dela, os anos, as<strong>do</strong>enças e os perigos, os casamentos, as guerras, as dignidades, e to<strong>do</strong>s osoutros futuros prósperos ou adversos; arte certamente merece<strong>do</strong>ra de serverdadeira pois punha a nossa fortuna nas nossas mãos.Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento <strong>do</strong>s príncipes, emque os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da vida,levantam ou figura ou testemunhos a to<strong>do</strong>s os Sucessos dela. Nem quero falarna triste e funesta nicromancia, que, freqüentan<strong>do</strong> os cemitérios e sepulturasno mais escuro e secreto da noite, invoca com deprecações e conjuros as almas<strong>do</strong>s mortos para saber os futuros <strong>do</strong>s vivos.A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na contingênciada sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim observaram os sonhoscomo se soubesse mais um homem <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> <strong>do</strong> que sabia acorda<strong>do</strong>; a estesenti<strong>do</strong> consultavam as entranhas palpitantes <strong>do</strong>s animais, como se um brutomorto pudesse ensinar a tantos homens vivos. Com o mesmo apetite pediamrespostas às fontes, aos rios, aos bosques e às penhas; com o mesmoinquiriam os cantos e vôos das aves, os mugi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s animais, as folhas emovimentos das árvores, com o mesmo interpretavam os números, os nomes eas letras, os dias e os fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tãobaixa e tão miúda por onde os homens não imaginassem que podiam alcançaraquele segre<strong>do</strong> que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, oestalar <strong>do</strong> vidro, o cintilar da candeia, o topar <strong>do</strong> pé, o sacudir <strong>do</strong>s sapatos,tu<strong>do</strong> notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios <strong>do</strong> futuro.Falo da cegueira e desatino <strong>do</strong>s tempos passa<strong>do</strong>s, por não envergonhar anobreza da nossa Fé com a superstição <strong>do</strong>s presentes.Finalmente, a investigação deste tão apeteci<strong>do</strong> segre<strong>do</strong> foi o estu<strong>do</strong> e disputa<strong>do</strong>s maiores e mais sinala<strong>do</strong>s filósofos, de Sócrates, de Pitágoras, de Platão, deAristóteles e <strong>do</strong> eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e <strong>do</strong>utos de todassuas obras. Esta era a teologia famosa <strong>do</strong>s Caldeus; este o grande mistério <strong>do</strong>sEgípcios; esta em Roma a religião <strong>do</strong>s áugures; esta em Judeia a seita <strong>do</strong>sPitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão <strong>do</strong>s Magos; esta enfim <strong>do</strong>Céu até o Inferno, o maior desvelo <strong>do</strong>s sábios e maior ânsia e tropeço <strong>do</strong>signorantes; uns injurian<strong>do</strong> o Céu, e dan<strong>do</strong> trato às estrelas para que digam oque não podem; outros inquietan<strong>do</strong> o Inferno (como dizia Samuel), e tentan<strong>do</strong>os mesmos demônios, para que revelem o que não sabem. Tanto foi em todasas idades <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e tanto é hoje, na curiosidade humana, o apetite deconhecer o futuro!Mas o que mais que tu<strong>do</strong> encarece a tenacidade deste desejo, é considerar que,engana<strong>do</strong>s tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de todasestas artes e seus ministros, não tenha basta<strong>do</strong> nenhuma experiência, nemhaja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele: Genus hominumpotentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate nostra, et vetabitursemper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que desterrou a Pitonisa, afoi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos que mais severamentenegam o crédito às cousas prognosticadas, folgam de ouvir e saber que seprognosticam, sinal certo que não buscam os homens os futuros, porque osachem, senão que vão sempre após eles, porque os amam.Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aosmaiores e mais ocultos segre<strong>do</strong>s deste mistério, pomos hoje no teatro <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> esta nossa <strong>História</strong>, por isso chamada <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>. Não escrevemos comBeroso as antigüidades <strong>do</strong>s Assírios, nem com Xenofonte a <strong>do</strong>s Persas, nemcom Heró<strong>do</strong>to as <strong>do</strong>s Egípcios, nem com Josofo a <strong>do</strong>s Hebreus, nem com Cúrcioa <strong>do</strong>s Macedônios, nem com Tucídides a <strong>do</strong>s Gregos, nem com Lívio a <strong>do</strong>sRomanos, nem com os escritores portugueses as nossas; mas escrevemos sem


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 3 de 16927/08/2011autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles escreveramhistórias <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> para os futuros, nós escrevamos a <strong>do</strong> futuro para ospresentes. Impossível pintura parece antes <strong>do</strong>s originais retratar as cópias, masisto é o que fará o pincel da nossa <strong>História</strong>.Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes <strong>do</strong> Verbo serhomem. O que ignorou o mun<strong>do</strong> antigo, o que não conheceu o moderno e oque não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste prodigiosomapa descrito: cousas e casos que ainda 1hes falta muito para terem serquanto mais antigüidade.A história mais antiga começa no princípio <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>; a mais estendida econtinuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempoem que se escreve, continua por toda a duração <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e acaba com o fimdele. Mede os tempos vin<strong>do</strong>uros antes de virem, conta os sucessos futurosantes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a fama ospublicar e de serem feitos.O tempo, como o Mun<strong>do</strong>, tem <strong>do</strong>is hemisférios: um superior e visível, que é opassa<strong>do</strong>, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outrohemisfério ficam os horizontes <strong>do</strong> tempo, que são estes instantes <strong>do</strong> presenteque imos viven<strong>do</strong>, onde o passa<strong>do</strong> se termina e o futuro começa. Desde esteponto toma seu princípio a nossa <strong>História</strong>, a qual nos irá descobrin<strong>do</strong> as novasregiões e os novos habita<strong>do</strong>res deste segun<strong>do</strong> hemisfério <strong>do</strong> tempo, que são osantípodas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Oh que de cousas grandes e raras haverá que ver nestenovo descobrimento!Aqueles historia<strong>do</strong>res que nomeamos e foram os mais célebres <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>,escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as resoluções, asconquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza, a opulência e felicidade, amudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas nações, ou de outrasigualmente poderosas, que com elas contendiam. Nós também havemos defalar de reinos e de impérios, de exércitos e de vitórias, de ruínas de umasnações e exaltações de outras; mas de impérios não já funda<strong>do</strong>s, senão que sehão-de fundar; de vitórias não já vencidas, mas que se hão-de vencer; denações não já <strong>do</strong>madas e rendidas, senão que se hão-de render e <strong>do</strong>mar.Hão-se de ler nesta <strong>História</strong>, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja, paraglória de Cristo, para felicidade e paz universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, altos conselhos,animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas, maravilhosasvitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas mudanças de esta<strong>do</strong>s,de tempos, de gentes, de costumes, de governos, de leis; mas leis novas,governos novos, costumes novos, gentes novas, tempos novos, esta<strong>do</strong>s novos,conselhos e resoluções novas, empresas e façanhas novas, conquistas, vitórias,paz, triunfos e felicidades novas; e não só novas, porque são futuras, masporque não terão semelhança com elas nenhumas das passadas. Ouvirá oMun<strong>do</strong> o que nunca viu, lerá o que nunca ouviu, admirará o que nunca leu, epasmará assombra<strong>do</strong> <strong>do</strong> que nunca imaginou. E se as histórias daquelesescritores, sen<strong>do</strong> de cousas menores antigas e passadas, se leram sempre comgosto, e depois de sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica paraesperar que não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tãodeleitosa ao gosto e ao juízo a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, quanto é estranho ao papel oassunto e nome dela.Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome <strong>do</strong> futuro nãoconcorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba que nos pareceuchamar assim à esta nossa escritura, porque, sen<strong>do</strong> novo e inaudito oargumento dela, também lhe era devi<strong>do</strong> nome novo e não ouvi<strong>do</strong>.Escreveu Moisés a história <strong>do</strong> princípio e criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, ignorada até aqueletempo de quase to<strong>do</strong>s os homens. E com que espírito a escreveu? Respondemto<strong>do</strong>s os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se já no Mun<strong>do</strong> houveum profeta <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, porque não haverá um historia<strong>do</strong>r <strong>do</strong> futuro? Osprofetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelasestilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam oslugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem <strong>do</strong>s casos e <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 4 de 16927/08/2011sucessos, e quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> isto viram e tu<strong>do</strong> disseram, é envolto em metáforas,disfarça<strong>do</strong> em figuras, escureci<strong>do</strong> com enigmas e conta<strong>do</strong> ou canta<strong>do</strong> em frasespróprias <strong>do</strong> espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade eadmiração <strong>do</strong>s mistérios, que à notícia e inteligência deles.Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S.Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A suaprofecia é o Evangelho fecha<strong>do</strong>; o Evangelho é a sua profecia aberta. E porquenós, em tu<strong>do</strong> o que escrevemos, determinamos observar religiosa epontualmente todas as leis da história, seguin<strong>do</strong> em estilo claro e que to<strong>do</strong>spossam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e secamente, senãovestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e porque havemos dedistinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades, nomear nações e aindapessoas, (quan<strong>do</strong> o sofrer a matéria), por isso, sem ambição nem injúria deambos os nomes, chamamos a esta narração <strong>História</strong> e <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>.Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio <strong>do</strong> dilúvio)sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar nemexemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a noiteescuríssima; mas esperamos no Pai <strong>do</strong>s lumes (a cuja glória e de seu Filhoservimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior ventura queArgos, e nós com maior ousadia que Tífis.Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!), emlugar da benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero pedirjustiça. É de direito natural que ninguém seja condena<strong>do</strong> sem ser ouvi<strong>do</strong>; istosó deseja e pede a to<strong>do</strong>s a nova <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, com palavras não suas,mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea despiciant: «Leiam primeiro, edepois condenem» — assim dizia aquele grande mestre da Igreja, defenden<strong>do</strong>a sua versão <strong>do</strong>s sagra<strong>do</strong>s Livros, então perseguida e impugnada, hoje a<strong>do</strong>radae de fé.CAPÍTULO II Segunda parte <strong>do</strong> titulo desta <strong>História</strong>; convidam-se osPortugueses à lição dela.No capítulo passa<strong>do</strong> falamos com to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>; neste só com Portugal.Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos brevesdesejos ao futuro. Nem to<strong>do</strong>s os futuros são para desejar, porque há muitosfuturos para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a Saul, o profeta aorei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaia<strong>do</strong>, e foramelhor cair em si que aos pés <strong>do</strong> Profeta. Mas era já a véspera <strong>do</strong> dia damorte; e quem busca o desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve,que por não temer os futuros, quiseram antes ignorá-los....Cessant oracula Delphis,Sed siluit postquam reges timuere futura,Et Superos vetuere loqui...Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos deuses, e nãoqueriam consultar os oráculos, por não temer os futuros prósperos e adversos,os felizes e os infelizes. To<strong>do</strong>s fora felicidade antever, os felizes para aesperança e os infelizes para a cautela.O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros; e senão há entre nós os vivos quem faça estas revelações, busque-se entre ossepulta<strong>do</strong>s, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto e Baltasar a Daniel vivo,porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. Declarou Daniel aBaltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe intrepidamente que naquelamesma noite havia de perder a vida e o império. E que lhe importou a Danielesta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- man<strong>do</strong>u Baltasarque o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 5 de 16927/08/2011reconheci<strong>do</strong> por Tetrarca de to<strong>do</strong> o império <strong>do</strong>s Assírios, que era faze-lo um <strong>do</strong>squatro supremos ministros ou governa<strong>do</strong>res da monarquia.Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premia<strong>do</strong> assim oprofeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por esta ação (se nãoforam as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe per<strong>do</strong>ara a vida.Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se tantoprêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria se osprometera?Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei <strong>do</strong>s Persas e <strong>do</strong>s Me<strong>do</strong>s.Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e confirmou sempre aDaniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto porque assim como profetizouque havia de perder o império o rei <strong>do</strong>s Assírios, ajuntou também que o haviade ganhar o <strong>do</strong>s Persas e Me<strong>do</strong>s: Divisum est regnum tuum et datum est Mediset Persis.Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o teu agradecimento, nemtemo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com Daniel entre os vivos, eume conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto acharadesgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a má fortuna semreceio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela(benignidade de Deus contigo deverá ser), que tu<strong>do</strong> o que leio de ti sãograndezas, tu<strong>do</strong> que descubro melhoras, tu<strong>do</strong> o que alcanço felicidades. Isto éo que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segun<strong>do</strong> e maisdeclara<strong>do</strong> chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é ocomento breve de toda a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>.Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal lhe poderá com razãosuspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos alvoroços emque o tenho meti<strong>do</strong> com estas esperanças: Spes qae differtur, affligit animam,disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana:ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, éum tormento desespera<strong>do</strong> o esperar.Muito seguras eram, e tão seguras como a mesma palavra de Deus (que nãopode mentir nem faltar)`, as promessas <strong>do</strong>s antigos Profetas; mas cansava-setanto o desejo na paciência de esperar por elas, que vinham a ser fábula <strong>do</strong>vulgo em Jerusalém as esperanças das profecias. Assim conta esta queixaIsaías no capítulo XXVIII, que pelas ruas e praças da corte se andavamcantan<strong>do</strong> por riso as suas esperanças, e que a volta ou estribilho da cantigaera:...expecta, reexpecta,Expecta, reexpecta.Modicum ibi,Modicum ibi.Esperavam, reesperavam e desesperavam aqueles homens, porque em muitascousas das que lhes prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida <strong>do</strong> quechegasse a esperança. Deixaram os pais em testamento as esperanças aosfilhos, os filhos aos netos e nem estes, sen<strong>do</strong> então as vidas mais compridas,chegavam a ver o cumprimento <strong>do</strong> que tão longamente tinham espera<strong>do</strong>. Asesperanças da Terra de Promissão deixou-as Abraão a Isaac, Isaac a Jacob eJacob aos <strong>do</strong>ze Patriarcas; mas to<strong>do</strong>s eles morreram e foram sepulta<strong>do</strong>s noEgito. A quem há-de cobrir a terra <strong>do</strong> Egito, que lhe importam as esperanças daterra de Promissão? No cativeiro de Babilônia pregavam e prometiam os


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 6 de 16927/08/2011Profetas que Deus havia de levantar mão <strong>do</strong> castigo e restituir o povo à suaantiga liberdade; e se lhes perguntavam quan<strong>do</strong>, respondiam e afirmavamconstantemente que dali a setenta anos.Boa esperança para um cativo, ainda que não fosse muito velho. De que meserve a esperança da liberdade, se primeiro se há-de acabar a vida? O mesmopodem argüir os que hoje vivem com estas esperanças, que eu lhas prometo.Grandes são essas esperanças de Portugal; mas quan<strong>do</strong> há-de ver Portugalessas esperanças?Ponto é este que depois se há-de tratar muito de propósito, e em que a nossa<strong>História</strong> há-de empregar to<strong>do</strong> o quinto livro. Por agora só digo que me nãoatrevera eu a prometer esperanças, se não foram esperanças breves. Deus naLei Escrita, como notaram grandes autores, nunca prometeu o Céuexpressamente, porque o que se não pode dar logo não se há-de prometer.Prometer o Céu para ir esperar por ele ao Limbo, são promessas em que porentão se dá o contrário <strong>do</strong> que se promete. Tais são as esperanças dilatadas.Se nelas se promete a vida, são morte; se nelas se promete o gosto, sãotormento; se nelas se promete o Paraíso, são Inferno.O Limbo chamava-se Inferno; e porque? Porque era um lugar onde se esperavatantos anos pelo Paraíso. Não me tenha a minha Pátria por tão cruel, que lhehouvesse de prometer martírios com nome de esperanças. Para se avaliar aesperança, há-se de medir o futuro, e não é este o futuro da minha <strong>História</strong>.São Paulo, aquele filósofo <strong>do</strong> terceiro Céu, desafian<strong>do</strong> todas as criaturas, eentre elas os tempos, dividiu os futuros em <strong>do</strong>is futuros: Neque instantia,neque futura. Um futuro que está longe e outro futuro que está perto; umfuturo que há-de vir e outro futuro que já vem; um futuro que muito tempo hádeser futuro — Neque futura — e outro futuro que brevemente há-de serpresente: Neque instantia.Este segun<strong>do</strong> futuro é o da minha <strong>História</strong>, e estas as breves e deleitosasesperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão-de ver os que vivem,ainda que não vivam muitos anos, mas viverão muitos anos os que as virem.Lignum vitae, desiderium veniens, disse no mesmo lugar alega<strong>do</strong> a mesmaVerdade divina.Assim como há esperanças que tardam, há esperanças que vem. As esperançasque vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae desiderium veniens. Avirtude maravilhosa daquele pomo era reparar e acrescentar a vida e remoçaraos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram a vida; as esperanças quevem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias e os alentos dela: Spesquae differtur, affligit animam. Lignurn vitae, desiderium veniens.Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade tão decrépita, que à vista<strong>do</strong> cumprimento destas esperanças, não torne atrás os anos para lograr tantobem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturososéculo! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que quem vos deu asesperanças, vos mostrará o cumprimento delas.Não é privilégio este de qualquer profecia, mas daquelas profecias de que secompõe esta <strong>História</strong>. Sim, porque são mais que profecias. Um profeta houveno Mun<strong>do</strong> mais que profeta, que foi o grande precursor de Cristo. E por querazão mereceu a singularidade deste nome S. João entre to<strong>do</strong>s os profetasdeste Mun<strong>do</strong>? Porque os outros profetas prometeram a Cristo futuro, mas não oviram, nem o mostraram presente; o Batista prometeu o futuro com a vez, emostrou o presente com o de<strong>do</strong> — Cecinit ad futurum, et adesse monstravit.Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque não haverá tambémalgumas profecias que sejam mais que profecias? Assim espero eu que o sejamaquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos prometem asfelicidades futuras, também as hão-de mostrar presentes. Agora as prometemcom a voz, depois as mostrarão com o de<strong>do</strong>.Mas este grande assunto fique para seu lugar. Só digo que quan<strong>do</strong> assim


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 7 de 16927/08/2011suceder, perderá esta nossa <strong>História</strong> gloriosamente o nome, e que deixará deser <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, porque o será <strong>do</strong> presente.Mas perguntar-me-á porventura alguma emulação estrangeira (que às naturaisnão respon<strong>do</strong>): se o império espera<strong>do</strong>, como se diz no mesmo título, é <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, as esperanças porque não serão também <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, senão só dePortugal? A razão (per<strong>do</strong>e o mesmo Mun<strong>do</strong>) é esta: porque a melhor parte <strong>do</strong>sventurosos futuros que se esperam, e a mais gloriosa deles, será não sóprópria da Nação portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será oassunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destasmaravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses.Vê agora, ó Pátria minha, quão agradável te deve ser. e com quanto gostodeves aceitar a oferta que te faço desta nova <strong>História</strong>, e com que alvoroço ealegria pede a razão e amor natural que leias e consideres nela os seus e osteus futuros. O Grego lê com maior gosto as histórias de Grécia, o Romano asde Roma e o Bárbaro as da sua nação, porque lêem feitos seus e de seusantepassa<strong>do</strong>s . E Portugal que com novidade inaudita lerá nesta <strong>História</strong> osseus e os <strong>do</strong>s seus vin<strong>do</strong>uros, com quanto maior gosto e contentamento, comquanto maior aplauso e alvoroço será razão que o faca?Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó Portugueses, com quedescobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o Mun<strong>do</strong> aomesmo Mun<strong>do</strong>. Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agoraesta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao Mun<strong>do</strong> o que eleera, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segun<strong>do</strong> e menoreste meu descobrimento, senão maior em tu<strong>do</strong>. Maior cabo, maior esperança,maior império.Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma cousase lia no Mun<strong>do</strong> senão as navegações e conquistas de Portugueses. Estahistória era o silêncio de todas as historias. Os inimigos liam nela suas ruínas,os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a <strong>História</strong>, Portugueses,que vos presento, e por isso na língua vossa. Se se há-de restituir o Mun<strong>do</strong> àsua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpotão grande, sem <strong>do</strong>r nem sentimento <strong>do</strong>s membros, que estão fora de seulugar. Alguns gemi<strong>do</strong>s se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas tambémestes fazem harmonia. Se são <strong>do</strong>s inimigos, para os inimigos será a <strong>do</strong>r, paraos êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto e para vós então aglória, e, entretanto, as esperanças.CAPÍTULO III Terceira parte <strong>do</strong> titulo e divisão de toda a <strong>História</strong>.O que encerra a terceira parte <strong>do</strong> título desta <strong>História</strong> só se pode declararinteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em provar aesperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se verão a seu tempo,chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de uma vez se compreenda esaiba o leitor em suma o que lhe prometemos, porei brevemente aqui suadivisão.Divide-se a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong> em sete partes ou livros: no primeiro se mostraque há-de haver no Mun<strong>do</strong> um novo império; no segun<strong>do</strong>, que império há-deser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto, os meios por que sehá-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto, em que tempo; no sétimo,em que pesca. Estas sete cousas são as que há-de examinar, resolver e provara nova <strong>História</strong> que escrevemos <strong>do</strong> Quinto Império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.Mas porque esta palavra Mun<strong>do</strong>, nos ambiciosos títulos <strong>do</strong>s impérios eimpera<strong>do</strong>res, costuma ter maior estron<strong>do</strong> na voz que verdade na significação,será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa <strong>História</strong> entende porMun<strong>do</strong>.Os Faraós <strong>do</strong> Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de talmaneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação de seusvastos pensamentos, que, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> somente aquela parte não grande daextrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os <strong>do</strong> Mar Vermelho,não duvidavam intitular-se Josés <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Essa foi a desigualdade <strong>do</strong> nome


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 8 de 16927/08/2011que puseram os Egípcios ao seu restaura<strong>do</strong>r José: Vocavit eum linguaaegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe chamaram Salva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Egito, senão <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, como se não houvera mais mun<strong>do</strong> que o Egito. Imitavam a soberba deseu soberbo Nilo, que, quan<strong>do</strong> sai ao mar, se espraia em sete bocas, como seforam sete rios, sen<strong>do</strong> um só rio; assim era aquele império, e os demaischama<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.Do império <strong>do</strong>s Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada no IIIcapítulo <strong>do</strong> Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande Nabuco<strong>do</strong>nosor, cujoexórdio é este: Nabucho<strong>do</strong>nosor, rex omnibus populis, gentibus et linguis, quihabitant in universa terra: «Nabuco<strong>do</strong>nosor, rei. a to<strong>do</strong>s os povos, gentes elínguas, que habitam em to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. E o mesmo Daniel (que é mais) falan<strong>do</strong>a este rei e acomodan<strong>do</strong>-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos desua grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus eset invaluisti, et magnitu<strong>do</strong> tua [...] pervenit usque ad Coelum, et potestas tuausque ad terminos universae terrae. Contu<strong>do</strong>, se lançarmos os compassos àsterras que obedeciam a Nabuco<strong>do</strong>nosor, acharemos que da Ásia entãoconhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da Europa menos e <strong>do</strong> resto<strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> nada. Mas bastavam estes três retalhos da terra para a soberba deNabuco<strong>do</strong>nosor revestir os títulos de seu império com o nome estron<strong>do</strong>so deto<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Tão grande era a significação <strong>do</strong>s nomes, e tanto menos 0 quesignificavam!Do império de Assuero (que era o <strong>do</strong>s Persas) diz o Texto Sagra<strong>do</strong> no primeirocapítulo da história de Ester, que se estendia da Índia até a Etiópia,obedecen<strong>do</strong> àquela coroa 127 províncias. Esta era a demarcação das terras eestes os limites <strong>do</strong> império, mas os títulos não tinham limite. Assim nos constapor um decreto de Dario, que se refere no VI capítulo de Daniel, por estaspomposas palavras, semelhantes em tu<strong>do</strong> às de Nabuco: Tunc Darius rexscripsit omnibus populis et gentibus et linguis, qui habitant in universa terra:Pax vobis multiplicetur.E o mesmo Assuero por outro decreto, no cap. XIII de Ester, não duvi<strong>do</strong>ufirmar por sua própria mão, que tinha sujeito ao seu <strong>do</strong>mínio o orbe universo:Cum universum orbem meae ditioni subjugassem. De maneira que os reispersas, por serem senhores de 127 províncias, passaram provisões e decretos ato<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>; mas quem desenrolasse o mapa <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e pusesse sobre eleos pergaminhos destas provisões, veria facilmente que o Mun<strong>do</strong>, semdemasia<strong>do</strong> encarecimento, é cento e vinte e sete vezes maior que o impériopersiano: tão pouco se proporcionava a geografia <strong>do</strong>s títulos com a medida <strong>do</strong>simpérios!Que direi <strong>do</strong> império <strong>do</strong>s Romanos? Os termos que lhe sinalam seus escritoressão as raias <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>:Orbem jam totum victor Romanus habebatQua mare, qua terra, qua sidus currit utrumquedisse Petrónio; e Cícero, que professava mais verdade que os poetas: Nullagens est. quae aut ita subacta sit ut vi non extet, aut ita <strong>do</strong>mita ut quiescat,aut ita pacata ut victoria nostra imperioque laetetur. Tal era a opinião queRoma tinha de sua grandeza e tal o estilo que guardava em seus editos: ...exiitedictum à Caesare Augusto ut describeretur universus orbis.Man<strong>do</strong>u Augusto César matricular e: alistar seu império, e dizia o edito: Alisteseo Mun<strong>do</strong>. Mas se examinarmos este mun<strong>do</strong> romano até onde se estendia,acharemos que pelo oriente se fechava com o rio Tigres, pelo ocidente com omar de Cádis, pelo meio-dia com o Nilo e pelo setentrião com o Danúbio eReno. Estes limites lhe prescreveu Claudiano, ainda que lhe deu por margensos Orientes:


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 9 de 16927/08/2011Subdit Oceanum sceptris, et margine coeliClausit opes; quantum distant a Tigride Gades,Inter se Tanais quantum Nilusque relinquunt.Deixo o Mogor, o China, o Tártaro e outros <strong>do</strong>mínios bárbaros <strong>do</strong> nosso tempo,que com a mesma majestade de títulos se chamam impera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>,seguin<strong>do</strong> a antiquíssima arrogância da Ásia, em que o Mun<strong>do</strong> an<strong>do</strong>u sempreata<strong>do</strong> aos títulos da monarquia.O Mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> nosso prometi<strong>do</strong> império não é Mun<strong>do</strong> neste senti<strong>do</strong>: não prometomun<strong>do</strong>s, nem impérios titulares, nomes tão alheios da modéstia como daverdade. Bem sei que o império de Alemanha (envelhecidas relíquias, e quaseacabadas, <strong>do</strong> Romano) em muitos textos de um e outro direito se chamaimpério <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>; mas também se sabe que os textos podem dar títulos, masnão impérios. No livro sétimo examinaremos os fundamentos deste direito;entretanto, ainda que liberalmente lho concedamos, é certo que os impérios eos reinos não os dá nem os defende a espada da justiça, senão a justiça daespada.A Abraão prometeu Deus as terras da Palestina mas conquistou-as a espada deJosué e defendeu-as a de seus sucessores. Estes são os instrumentos humanosde que se serve (ainda quan<strong>do</strong> obra divinamente) a providencia daquelesupremo Senhor que o é <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s exércitos. Os que querem o ruí<strong>do</strong> eencher de algum mo<strong>do</strong> o vazio destes grandes títulos, dizem que se entendepor hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamamsiné<strong>do</strong>que, em que se toma a parte pelo to<strong>do</strong>. O título desta <strong>História</strong> não falapor hipérboles nem siné<strong>do</strong>ques, não chama a um pigmeu gigante nem a umbraço homem. O Mun<strong>do</strong> de que falo é o Mun<strong>do</strong>, aquele Mun<strong>do</strong>, e naquelesenti<strong>do</strong> em que disse S. João: ...Mundus per ipsum factus est, et Mundus eumnon cognovit. O Mun<strong>do</strong> que Deus criou, o Mun<strong>do</strong> que o não conheceu, e oMun<strong>do</strong> que o há-de conhecer. Quan<strong>do</strong> o não conheceu, negou-lhe o <strong>do</strong>mínio;quan<strong>do</strong> o conhecer, dar-lhe-á a posse . universum terraram orbem — dizOrtélio — veteres [...] in tres partes divisere: Africam, scilicet, Europam etAsiam, sed in inventa America, eam pro quarta parte nostra aetas adjecit;quintamque expectat sub meridionali cardine jacentem: O Mun<strong>do</strong> queconheceram os Antigos se dividiu em tres partes: África, Europa, Ásia; depoisque se descobriu a América, acrescentou-lhe a nossa idade esta quarta parte;espera-se agora a quinta, que é aquela terra incógnita, mas já reconhecida,que chamamos Austral.»Este foi o Mun<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, e este é o Mun<strong>do</strong> presente, e este será o Mun<strong>do</strong>futuro; e destes três mun<strong>do</strong>s uni<strong>do</strong>s se formará (que assim o formou Deus) umMun<strong>do</strong> inteiro. Este é o sujeito da nossa <strong>História</strong>, e este o império queprometemos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> o que abraça o mar, tu<strong>do</strong> o que alumia o Sol,tu<strong>do</strong> o que cobre e rodeia o Sol, será sujeito a este Quinto Império; não pornome ou título fantástico, como to<strong>do</strong>s os que até agora se chamaram impérios<strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, senão por <strong>do</strong>mínio e sujeição verdadeira. To<strong>do</strong>s os reinos se unirãoem um centro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça, todas ascoroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da cruz deCristo.Resolveu Augusto com o sena<strong>do</strong> pôr limites à grandeza <strong>do</strong> Império Romano.Duvida Tácito se foi filha esta resolução <strong>do</strong> receio ou da inveja: Incertum metu,an per invidiam. Temeu César (se foi receio) que um corpo tão enormementegrande não se pudesse animar com um só espírito, não se pudesse governarcom uma só cabeça, não se pudesse defender com um só braço; ou não quis(se foi inveja) que viesse depois outro impera<strong>do</strong>r mais venturoso, quetrespassasse as balizas <strong>do</strong> que ele até então conquistara e fosse ou sechamasse maior que Augusto. Tal foi, dizem, o pensamento de Alexandre, oqual, vizinho à morte, repartiu em diferentes sucessores o seu império, para


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 10 de 16927/08/2011que nenhum lhe pudesse herdar o nome de Magno. Não é nem poderá serassim no império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> que prometemos; a paz lhe tirará o receio, a uniãolhe desfará a inveja, e Deus (que é fortuna sem inconstância) lhe conservará agrandeza.Aqui acaba o título desta <strong>História</strong>, e mais claramente <strong>do</strong> que o dissemos agorao provaremos depois. Entretanto, se aos <strong>do</strong>utos ocorrem instancias e aosescrupulosos dúvidas, damos por solução de todas a mão omnipotente: Utvideant, sciant et recogitent, et intelligant pariter quia manus Domini fecithoc...CAPITULO IV Utilidades da Historia <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong> § ISe o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o gostoou lisonja daquele apetite com que a impaciência <strong>do</strong> nosso desejo se adiantaem querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que temos prometi<strong>do</strong>foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e alegria com que asfelicidades grandes e próprias se costumam esperar, certamente eu suspenderalogo a pena e a lançara da mão, ten<strong>do</strong> este meu trabalho por inútil,impertinente e ocioso, e por indigno não só de o comunicar ao Mun<strong>do</strong>, mas degastar nele o tempo e o cuida<strong>do</strong>.Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram mestra davida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao governo e bemcomum <strong>do</strong> gênero humano e ao particular de to<strong>do</strong>s os homens, e se como talempregaram nela sua indústria tantos sujeitos em ciência, engenho e juízoeminentes, como foram os que em to<strong>do</strong>s os tempos imortalizaram a memóriadeles com seus escritos; porque não será igualmente útil e proveitosa, e aindacom vantagem, esta nossa <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, quanto é mais poderosa e eficazpara mover os ânimos <strong>do</strong>s. homens a esperança das cousas próprias, que amemória das alheias?Se em to<strong>do</strong>s os Livros Sagra<strong>do</strong>s contarmos os escritores de cousas passadas(como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na Escrita, Moisés,Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e não sabem com tãoaveriguada certeza), acharemos que são em muito maior número os queescreveram das futuras: diferença que de nenhum mo<strong>do</strong> fizera Deus, que é overdadeiro Autor de todas as .Escrituras (sen<strong>do</strong> todas elas como diz S. Pauloescritas para nossa <strong>do</strong>utrina, se não fora igual e ainda maior a utilidade quepodemos e devemos tirar <strong>do</strong> conhecimento das cousas futuras, que danoticiaria das passadas. E verdadeiramente que se os bens da ciência secolhem e conhecem melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quemdiscorrer pelos sucessos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, desde seu princípio até hoje, que forammuito menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia <strong>do</strong>passa<strong>do</strong>, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância <strong>do</strong> futuro.Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que tenhodisposto escrever, digo, leitor cristão, que to<strong>do</strong>s aqueles fins que sabemos tevea Providência Divina em diversos tempos, lugares e nações para lhes revelarantecedentemente o sucesso das cousas que estavam por vir, concorrem comparticular influxo nesta nossa <strong>História</strong> e se acham juntos nela. Esta é não só aprincipal razão, nas a única e total, por que nos sujeitamos ao trabalho de tãomolesto gênero de escritura, esperan<strong>do</strong> que será grato e aceito a Deus, a quemsó pretende nos servir; e entenden<strong>do</strong> que foram vontade, inspiração e aindaforça suave da mesma Providência os impulsos que a isto (não sem algumaviolência) nos levaram, para que estes secretos de seu oculto juízo e conselhose descobrissem e publicassem ao Mun<strong>do</strong> e em to<strong>do</strong> ele produzissemproporcionadamente os efeitos de mudança, melhoria e reformação a que sãoencaminha<strong>do</strong>s e dirigi<strong>do</strong>s. A mesma Majestade divina, humildementeprostra<strong>do</strong>s diante de seu infinito acatamento, pedimos com to<strong>do</strong> o afeto decoração, agora que entramos na maior importância desta matéria, se sirva denos comunicar aquela luz, graça e espírito que para negócio tão árduo nos énecessário, conhecen<strong>do</strong> e confessan<strong>do</strong> que sem assistência deste soberanoauxílio, nem nós saberemos explicar a outros o pouco que por mercê <strong>do</strong> Céu


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 11 de 16927/08/2011temos alcança<strong>do</strong> e conheci<strong>do</strong>, nem menos poderemos descobrir e alcançar aodiante o muito que nos resta por conhecer. § II Primeira utilidade.O primeiro motivo e mui principal por que Deus costuma revelar as cousasfuturas (ou sejam benefícios ou castigos) muito tempo antes de sucederem, épara que conheçam clara e firmemente os homens, que todas vêm dispensadaspor sua mão. Arma-se assim a sabe<strong>do</strong>ria eterna contra a natureza humana,sempre soberba, rebelde e ingrata, ou porque se não levante a maiores com osbenefícios divinos, e se beije as mãos a si mesma, como dizia Job, ou porquenão atribua a cousas naturais (e muito menos ao caso) os efeitos que vêmsentencia<strong>do</strong>s como castigo por sua justiça, ou ordena<strong>do</strong>s para mais altos eocultos fins por sua providência.Foram mostradas a Faraó em sonhos .as sete espigas gradas e as sete falidas,as sete vacas fracas e as sete robustas, e logo ordenou a Providência divinaque estivesse em Egito um José (posto que vendi<strong>do</strong> e desterra<strong>do</strong>), que lhedeclarasse o mistério <strong>do</strong>s sete anos da fartura e sete de fome, para queconhecesse o bárbaro que Deus, e não o seu a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> Nilo, era o autor daabundância e da esterilidade, e que a ele havia de agradecer no benefício <strong>do</strong>ssete anos o remédio <strong>do</strong>s catorze. Como na terra <strong>do</strong> Egito não chove jamais e seregam e fertilizam os campos com as inundações <strong>do</strong> rio Nilo, dissediscretamente Plínio que só os Egípcios não olhavam para o céu, porque nãoesperavam de lá o sustento, como as outras nações.Oh quantos cristãos há egípcios, que nem esperan<strong>do</strong>, nem temen<strong>do</strong>, levantamos olhos ao Céu, e em lugar de reverenciarem em ,to<strong>do</strong>s os sucessos a primeiracausa, só a<strong>do</strong>ram as segundas! Por isso mostra Deus a Faraó, tantos anosantes, quais hão-de ser os da fome e quais os da fartura; para que conheça aignorante sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> Egito que os meios da conservação ou ruína <strong>do</strong>s reinos,a mão onipotente de Deus é a que os distribui, quan<strong>do</strong> são, pois só ele os podedeterminar antes que sejam.Quis a mesma Providência, como acima dizíamos tirar o império a Baltasar edá-lo a Dario; mas apareceu primeiro a sentença escrita no paço de Babilônia,e houve logo um Daniel (também cativo e desterra<strong>do</strong>), que interpretasse ao reios mistérios dela, para que Baltasar, que perdia o reino, conhecesse que operdia, porque Deus lho tirava; e para que Dario, que o havia de receber,entendesse que o recebia, porque Deus lho dava. Deus é o que dá e tira osreinos e os impérios, quan<strong>do</strong> e a quem é servi<strong>do</strong>. E não bastam, se Deus dispõeoutra cousa, nem as armas de Dario para os adquirir, nem o direito e herançade Baltasar para os conservar; por isso quer a mesma Providência Divina queas sentenças estejam escritas antes da execução, e que haja quem asinterprete antes <strong>do</strong> sucesso.Os futuros portentosos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e Portugal, de que há-de tratar a nossa<strong>História</strong>, muitos anos há que estão sonha<strong>do</strong>s como os de Faraó e escritos comoos de Baltasar; mas não houve até agora nem José que interpretasse ossonhos, nem Daniel que construísse as escrituras; e isto é o que eu começo afazer (com a graça daquele Senhor que sempre se serve de instrumentospequenos em cousas grandes), para que conheça o Mun<strong>do</strong> e Portugal, com osolhos sempre no Céu e em Deus, que tu<strong>do</strong> são efeitos de seu poder e conselhosda sua providência; e para que não haja ignorância tão cega nem ambição tãopresumida, que tire a Deus o que é de Deus, por dar a César o que não é deCésar, atribuin<strong>do</strong> à fortuna ou indústria humana o que se deve só à disposiçãodivina.Estilo foi este que sempre Deus usou com Portugal, receoso porventura de queuma nação tão amiga da honra e da glória lhe quisesse roubar a sua. Quemconsiderar o Reino de Portugal no tempo passa<strong>do</strong>, no presente e no futuro, nopassa<strong>do</strong> o verá venci<strong>do</strong>, no presente ressuscita<strong>do</strong> e no futuro glorioso; e emtodas estas três diferenças de tempos e estilos lhe revelou e man<strong>do</strong>u primeirointerpretar o. favores e as mercês tão notáveis com que o determinavaenobrecer: na primeira, fazen<strong>do</strong>-o, na segunda restituin<strong>do</strong>-o, na terceira,subliman<strong>do</strong>-o.Antes <strong>do</strong> nascimento de Portugal, apareceu o mesmo Cristo a El-Rei (que ainda


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 13 de 16927/08/2011queixam, desci em pessoa a livrá-lo das mãos <strong>do</strong>s Egípcios e tirá-lo daquelaterra para outra, que lhe hei-de dar, boa, espaçosa, abundante e cheia deto<strong>do</strong>s os regalos e delícias». De maneira que quem tirou os filhos de Israel <strong>do</strong>Egito foi Deus, e quem fez os portentos e maravilhas foi Deus, e quem abriu oMar Vermelho e afogou nele Faraó e seus exércitos foi Deus; e os que atribuemas obras de Deus e os benefícios (de que só a Ele se devem as graças) a Moisése ao í<strong>do</strong>lo não merecem ter vida nem olhos para chegar a ver a Terra dePromissão; sen<strong>do</strong> muito justo e muito justifica<strong>do</strong> castigo que morram e acabemto<strong>do</strong>s antes de chegar o prazo das felicidades, e que, pois tão ingrata eimpiamente interpretaram o benefício da primeira promessa, sejam priva<strong>do</strong>s degozar a segunda.Eu não nego que em bom senti<strong>do</strong> se podia chamar Moisés liberta<strong>do</strong>r <strong>do</strong>cativeiro, como também Deus pelo honrar lhe dava esse nome; mas noshomens que deviam dar a Deus toda a glória (pois toda era sua), referirem-sea Moisés, era descortesia; atribuírem-na ao í<strong>do</strong>lo, era blasfêmia, e não a darema Deus toda, era ingratidão suma.Já Deus, Portugueses, nos livrou <strong>do</strong> cativeiro, já por mercê de Deus triunfamosde Faraó e <strong>do</strong> poder de seus exércitos; já os vimos, não uma, mas muitasvezes, afoga<strong>do</strong>s no Mar Vermelho de seu próprio sangue. Imos caminhan<strong>do</strong>pelo deserto para a Terra da Promissão, e pode ser que estejamos já muitoperto dela, e <strong>do</strong> último cumprimento das prometidas felicidades. Se há algumtão invejoso <strong>do</strong>s bens da Pátria e tão inimigo de si mesmo, que queira retardaro curso de tão próspera e feliz jornada e acabar infelizmente, ainda antes dever o fim deseja<strong>do</strong> dela, negue a Deus o que é de Deus e atribua à liberdade asvitórias e o cumprimento das primeiras promessas que temos visto, ou aMoisés ou ao í<strong>do</strong>lo. Quem refere a glória <strong>do</strong>s bons sucessos ao seu valor, à suaciência militar, ao seu braço, ao seu talento, dá a glória de Deus ao í<strong>do</strong>lo; porisso se vos escrevem aqui essa mesma liberdade, essas mesmas vitórias eesses mesmos sucessos, assim os que já se viram, como os que restam para sever, tantos anos antes revela<strong>do</strong>s por Deus. Para que conheça por nossaconfissão to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> que são misericórdias suas e não obras <strong>do</strong> nossopoder; e para que nós, como efeitos da providência, da bondade eomnipotência divina, a Deus só as refiramos todas, e a Deus só louvemos edemos as graças.Os inimigos que mais temo a Portugal são soberba e ingratidão, vícios tãonaturais da próspera fortuna, que, como filhos da víbora, juntamente nascemdela e a corrompem. A humildade e agradecimento, a desconfiança de nós, aconfiança em Deus e o zelo e desejo puríssimo de sua glória, dan<strong>do</strong>-lha emtu<strong>do</strong> e por tu<strong>do</strong>, sempre são os meios seguros que nos hão-de sustentar, levare meter de posse daquelas segundas promessas. E este conhecimento tão gratoa Deus, que aprendemos nas noticias de seus futuros, é o primeiro fruto eutilidade que da lição desta nossa <strong>História</strong> se pode tirar, tão importantementepara a vida como para a vista. BREVE ADVERTÊNCIA AOS INCRÉDULOSMas antes que passemos às outras utilidades, que ficarão para os capítulosseguintes, justo será que fechemos este com a terceira causa <strong>do</strong> castigo queponderávamos, a qual refere o Texto Sagra<strong>do</strong> no cap. XIV <strong>do</strong>s Números, e podeser de grande exemplo para outra casta de gente, que são os que a Escriturachama filhos da desconfiança.Chega<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>ze explora<strong>do</strong>res da Terra da Promissão, concordaram to<strong>do</strong>s nalargueza, bondade e fertilidade da terra; mas exceto Josué e Calef, que -facilitaram a conquista e animavam o povo a ela, os outros, conformemente,instavam que era impossível, assim pela fortaleza e sitio das cidades, comopela valentia, forças e corpulências <strong>do</strong>s homens, que, compara<strong>do</strong>s com osHebreus (diziam eles) pareciam gigantes. Enfim, prevaleceu o número contra arazão) (como as mais vezes sucede). Deliberou o povo eleger capitão e voltarsecom ele ao cativeiro <strong>do</strong> Egito, não bastan<strong>do</strong> a experiência de tantas vitóriaspassadas e de tantos sucessos e prodígios inauditos, e sobre tu<strong>do</strong> as promessasdivinas tão repetidamente inculcadas, de que Deus os havia de meter de possedaquela terra, para crerem e confiarem que assim havia de ser.Esta tão covarde incredulidade foi a última ou a última sem-razão com que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 14 de 16927/08/2011acabou de se apurar a paciência divina. E resoluto Deus a não sofrer mais talgente, nem os per<strong>do</strong>ar ou dissimular como até ali tinha feito, resolveu quefosse executada neles a sentença de sua própria incredulidade; e pois criamque Deus os não havia de meter de posse da Terra da Promissão, que nenhumdeles entrasse nela nem a visse, e que to<strong>do</strong>s morressem primeiro e fossemsepulta<strong>do</strong>s naquele deserto. Assim o disse e assim se executou.As palavras da queixa de Deus e da sentença, foram estas: Usque quo detrahetmibi populus iste? Quosque non credent mihi in omnibus signis, qae feci corameis? [...] Vivo ego, ait Dominus, sicut locuti estis, audiente me, sic faciamvobis. In solitudine hac jacebunt cadavera vestra; [...] non intrabitis terram,super quam levavi manum meam, ut habitare vos facerem...Leiam e pesem bem estas palavras de Deus os incrédulos e desanima<strong>do</strong>s(vícios ambos, não sei se de pouco, se de mau coração) e vejam o perigo emque os pode meter ou tem meti<strong>do</strong> a sua incredulidade:Sicut locuti estis, sic faciam vobis. Os que pela experiência <strong>do</strong> que têm vistocrêem o que está prometi<strong>do</strong>, vê-lo-ão, porque são dignos de o verem; os quenão crêem, ou não querem crer, a sua mesma incredulidade será a suasentenc: já que o não creram, não o verão. Diz Santo Agostinho (cujasexcelentes palavras adiante citaremos) que, depois de cumprida uma parte daspromessas, não crer que se hão-de cumprir as outras, é não só pertinácia deincredulidade racional, senão crime de ingratidão grande contra o divino Autor<strong>do</strong>s mesmos benefícios; e a estes incrédulos e ingratos castiga justissimamentesua Providência, com que não cheguem a ver nem gozar o que não querem crerde sua bondade:Quo usque non credent mihi in omnibus signis, quae feci coram eis?Antes da experiência das primeiras maravilhas, alguma desculpa parece quepodia ter a incredulidade na fraqueza <strong>do</strong> receio e desconfiança humana; masdepois de cumpridas e vistas com os olhos tantas cousas, tão grandes, tãomaravilhosas e tão raras, não crer ainda as que estão por vir, é rebeldia deingratidão e dureza da incredulidade, merece<strong>do</strong>ras ambas de que Deus ascastigue com se conformar com elas: Sicut locuti estis, sic faciam vobis.Quem quiser saber (segun<strong>do</strong> o estilo ordinário da justiça e providência divina)se há-de chegar a ver as felicidades que debaixo de sua palavra aqui lheprometemos, examine o seu coração e consulte a sua fé; <strong>do</strong> nosso própriocoração nos conta Deus a sentença e de nossas próprias palavras a forma: Exore tuo te judico. Aos que crêem, como ao Centurião, diz Cristo: Sicutcredidisti, fiat tibi. E aos que não creem como os Israelitas <strong>do</strong> deserto, dizDeus: Sicut locuti estis. Quem crê que se hão-de cumprir aquelas ,tão felizespromessas, para ele será o vê-las e gozá-las: Sicut creditisti, fiat tibi. E quemnão crê que se hão-de cumprir, será também para ele não gozá-las, nem vêlas.É lei da liberalidade de Deus pagar a fé com a vista, por isso havemos dever no Céu os mistérios que vemos na Terra. E este estilo que Deus costumaguardar na glória da outra vida, guarda também ordinàriamente nas felicidadesdesta, quan<strong>do</strong> as tem prometi<strong>do</strong>: os que as crêem, terão vida para as verem;os que as não crerem, morrerão, para que as não vejam. Assim o sentenciou omesmo Deus outra vez em semelhante caso por boca <strong>do</strong> profeta Habacuc: Eccequi incredulus est, non erit recta anima ejus in semetipso, justus autem in fidesua vivet. Assim sucedeu, porque na guerra queNabuco<strong>do</strong>nosor fez a Jerusalém, os que creram aos profetas com el-rei Iconiasviveram; e os que não quiseram crer, com el-rei Sedecias pereceram. Quemnão crê, desmerece a vista; e para que não chegue a ver, tira-lhe Deus a vida.Olhem por si os incrédulos, e se não crêem que havemos de ver, creiam quenão hão-de viver: Si non credideritis, non permanebitis — diz o profeta Isaías.CAPÍTULO V Segunda utilidade.A segunda utilidade desta <strong>História</strong>, e mais necessária aos tempos próximos epresentes, é a paciência, constância e consolacão nos trabalhos, perigos ecalamidades com que há-de ser allito e purifica<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, antes que chegue a


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 15 de 16927/08/2011esperada felicidade.Quan<strong>do</strong> o lavra<strong>do</strong>r quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro omacha<strong>do</strong>, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta esemeia. Quan<strong>do</strong> o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho earruina<strong>do</strong>, também começa derriban<strong>do</strong>, desfazen<strong>do</strong>, arrasan<strong>do</strong> e arrancan<strong>do</strong>até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novoedifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Cria<strong>do</strong>r e Artífice <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>,quan<strong>do</strong> quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e man<strong>do</strong>u notificar a to<strong>do</strong>o Mun<strong>do</strong> pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et superregna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto perder,quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades, antes que Deusvos replante e reedifique, e se veja restaura<strong>do</strong> o Universo! Maravilha é que hámuitos anos está prometida para esta última idade <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> por aquelesupremo Monarca, que tem por assento o trono de to<strong>do</strong> ele: Et dixit qui sedebutin throno: Ecce nova facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousatão nova e desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verbafidelissima sunt et vera.Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal, e se éele um <strong>do</strong>s reinos da Cristandade que merece ser mui renova<strong>do</strong> e reforma<strong>do</strong>, omesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o julgue, lembran<strong>do</strong>lheque está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-de começar por suacasa: Judicium incipiet a <strong>do</strong>mo Dei. Mas, ou sejam para Portugal, ou para oresto <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, ou para to<strong>do</strong>s (como é mais certo) nenhuma cousa poderão teros homens de maior consolação, alívio, nem remédio para o sofrimento econstante firmeza de tão fortes calamidades, <strong>do</strong> que a lição e condição desta<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, não pelo que ela tem de nossa, mas pelas escriturasoriginais de que foi tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muitoprincipal .para que elas se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad nostram<strong>do</strong>ctrinam scripta sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spemhabeamus.A lição das Escrituras, <strong>do</strong> conhecimento e fé das cousas futuras, é a que maisque tu<strong>do</strong> nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem a suaconsolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé e a fé nasEscrituras.Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-secercada e combatida por todas as partes de poderosíssimos inimigos, só edesamparada, e sem amigo nem alia<strong>do</strong> que a socorra? Neste esta<strong>do</strong> se virammuitas vezes no tempo de seu governo os Macabeus, de que Deus . sempre oslivrou com maravilhosas vitórias e assistências <strong>do</strong> Céu, pelas quais lhes não foinecessário valerem-se da confederação que naquele tempo tinham com osRomanos e Esparcíatas; e dan<strong>do</strong> conta disso aos mesmos Esparcíatas, Jónatas,que então governava o povo, diz assim em uma epístola: Nos. cum nullo horumindigeremus, habentes solatio sanctos libros qui sunt in manibus nostris,maluimus mittere ad vos renovare fraternitatem et amicitiam: «Mandamosrenovar por este nosso embaixa<strong>do</strong>r (diz Jónatas) a antiga amizade econfederação» que convosco fizeram nossos maiores, não porque tenhamosnecessidade dela e <strong>do</strong>s vossos socorros, posto que não nos faltam inimigos,guerras, opressões e trabalhos, mas temos sempre em nossas mãos os LivrosSantos, em que lemos as promessas divinas, e com eles e com elas nosconsolamos e animamos a resistir, pelejar e vencer, como temos venci<strong>do</strong> evencemos a to<strong>do</strong>s nossos inimigos.No cap. VIII se verá que sem atrevimento ou demasiada confiança podemoschamar a esta nossa <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong> livro santo, se houver (como há-dehaver primeiro) trabalhos, perigos, opressões, tribulações, assolações, e to<strong>do</strong> ogênero de calamidades, misérias e açoutes, com que Deus costuma castigar,emendar e <strong>do</strong>mar a rebeldia <strong>do</strong>s corações humanos.Para esta ocasião, e tão apertada sai a luz e se oferece ao Mun<strong>do</strong> este livrosanto, no qual acharão os aflitos alívio, os tristes consolação, os atribula<strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 16 de 16927/08/2011esperança, paciência, constância e fortaleza, tu<strong>do</strong> por meio da lição e fé dasdivinas promessas e consolação <strong>do</strong>s felicíssimos fins a que to<strong>do</strong>s estestrabalhos e tribulações pela providência <strong>do</strong> Altíssimo são ordenadas.É cousa muito digna de notar, que nunca no povo de Israel concorreram tantosProfetas juntos como antes <strong>do</strong> cativeiro de Babilônia e no mesmo cativeiro.Antes <strong>do</strong> cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amos; nocativeiro profetizou Miqueas, Habacuç Jeremias, Ezequiel, Daniel e Solonias. Demaneira que, sen<strong>do</strong> só <strong>do</strong>ze os Profetas canónicos, os dez deles tiveram porassunto e matéria muito principal de todas suas profecias o cativeiro deBabilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antesdaquele tempo, profetizaram que o povo por seus peca<strong>do</strong>s havia de ir cativo,mas que por misericórdia de Deus seria depois restituí<strong>do</strong> à sua pátria. Osoutros seis, que profetizaram no tempo <strong>do</strong> cativeiro, insistiram constantementeem que ele havia de ter fim, determinan<strong>do</strong> sinaladamente o ano da liberdade.A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes,nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grandetrabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração de Babilônia, sen<strong>do</strong>cativos, presos e. despoja<strong>do</strong>s de seus bens, arranca<strong>do</strong>s da pátria e leva<strong>do</strong>s aterras de bárbaros, e lá oprimi<strong>do</strong>s e trata<strong>do</strong>s como escravos em duríssimaservidão.Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e esta<strong>do</strong>tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas profecias, uns que astivessem escrito no tempo passa<strong>do</strong>, e outros que as pregassem no presente,para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e anima<strong>do</strong> com aesperança da liberdade, pudesse com o trabalho <strong>do</strong> cativeiro. O cativeiro e otirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam. Cantavam-se asprofecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros setornavam menos duros e os corações mais fortes.Foi mui particular neste caso entre to<strong>do</strong>s os outros Profetas o zelo e diligênciade Jeremias, porque, ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> em Jerusalém, onde padeceu grandestrabalhos, prisões e perigos da vida por pregar e profetizar a verdade (pela qualfinalmente morreu apedreja<strong>do</strong>), no meio destas opressões e perigos próprios,não esqueci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s alheios, antes mui lembra<strong>do</strong> <strong>do</strong> que padeciam osdesterra<strong>do</strong>s de Babilônia, escreveu um livro das suas profecias, em que portermos muito claros e palavras de grande consolação lhes anunciava aliberdade e o tempo dela, como se pode ver no cap. XXIX <strong>do</strong> mesmo Profeta.Levou este livro a Babilônia o Profeta Baruch, companheiro de Jeremias, leu-seem presença de El-Rei Iconias e publicamente de to<strong>do</strong> o povo, que com elevivia no cativeiro, e nota o mesmo Baruch que to<strong>do</strong>s com grande alvoroçocorriam ao livro. Assim o diz no primeiro capítulo da relação que fez destajornada, e anda no Texto Sagra<strong>do</strong> junta com as obras de Jeremias: Et legitBaruch verba libri hujus ad aures Jechoniae, filii Joachim, regis Juda, et adaures universi populi venientis ad librumNão sei se terá a mesma fortuna, e se será recebi<strong>do</strong> e li<strong>do</strong> com o mesmo animoe afecto este nosso livro da <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>; mas sei que nos trabalhoscalamidades e aflições que há-de padecer o Mun<strong>do</strong> e pode ser cheguemtambém a Portugal, nem Portugal nem o Mun<strong>do</strong> poderá ter outro alívio nemoutra consolação maior que a freqüente lição e consideração deste livro e dasprofecias e promessas <strong>do</strong> futuro que nele se verão escritas. Ao menos nãonegará Portugal que, no tempo da sua Babilônia e <strong>do</strong> cativeiro e opressões comque tantas vezes se viu tão maltrata<strong>do</strong> e aperta<strong>do</strong>, nenhuma outra apelaçãotinha a sua <strong>do</strong>r, nem outro alívio ou consolação a sua miséria, mais que a liçãoe interpretação das profecias, e a esperança da liberdade e <strong>do</strong> ano dela, e <strong>do</strong>termo e fim <strong>do</strong> cativeiro que nelas se lia.Lia-se na carta e tradição de S. Bernar<strong>do</strong> que quan<strong>do</strong> Deus alguma horapermitisse que o reino viesse a mãos e poder de rei estranho, não seria porespaço mais que de sessenta anos. Lia-se no juramento de El-Rei D. AfonsoHenriques e na promessa <strong>do</strong> santo ermitão, que, na décima sexta geraçãoatenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no Reino. Lia-se nas célebrestradições de Gregório de Almeida no seu Portugal Restaura<strong>do</strong>, que o tempo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 17 de 16927/08/2011deseja<strong>do</strong> havia de chegar, e as esperanças dele se haviam de cumprir no anosinala<strong>do</strong> de quarenta; e no concurso de todas estas profecias se consolava eanimava Portugal a ir viven<strong>do</strong> ou duran<strong>do</strong> até ver o cumprimento delas.Falan<strong>do</strong> no mesmo cativeiro de Babilônia o mesmo profeta Isaías, e <strong>do</strong> alívio econsolação que com suas profecias haviam de ter em seus trabalhos aquelescativos, diz com igual brandura e eloquência estas notáveis palavras: SpiritusDomini super me [...] ut mederer contritis corde et praedicarem captivisindulgentiam [...] ut praedicarem annum placabilem Domino [...] ut consolaremomnes 1ugentes [...] et darem eis coronam pro cinere, oleum gaudii pro luctu...«Desceu sobre mim o Senhor, e ungiu-me com seu espírito, diz Isaías, para quecomo médico <strong>do</strong>s aflitos cativos de Babilônia, curasse com o talento de minhaspromessas e profecias, a tristeza e desmaio de seus corações». E declaran<strong>do</strong>mais em particular os remédios cordiais que lhes aplicava, apontanomeadamente <strong>do</strong>is que mais parecem receita<strong>do</strong>s para o nosso cativeiro quepara o de Babilônia: o primeiro, era um ano de indulgência e redenção, em queo cativeiro se havia de acabar: Et praedicarem captivis indulgentiam, annumplacabilem Domino; o segun<strong>do</strong>, era uma coroa trocada pelas antigas cinzas,com que os lutos e tristezas passadas se convertessem em festas e alegrias: Etdarem eis coronam pro cinere, oleum gauudii pro luctu.Assim o liam os cativos de Babilônia; a nas suas profecias, e assim o líamos nóstambém nas nossas. E assim como eles não tinham outro remédio na sua <strong>do</strong>rsenão a esperança daquele deseja<strong>do</strong> ano e a mudança daquela prometidacoroa, assim nós, com os olhos longos no suspira<strong>do</strong> ano de quarenta e naesperada coroa <strong>do</strong> novo rei português, aliviávamos o peso <strong>do</strong> nosso jugo econsolávamos a pena <strong>do</strong> nosso cativeiro. E pois este remédio das profecias foitão presente e eficaz para os trabalhos passa<strong>do</strong>s, razão tenho eu (e razão sobrea experiência) para esperar e confirmar que o será também para os futuros.Eu não prometo nem espero infortúnios a Portugal; mas ou sejam de Portugal,ou da Cristandade, ou <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> os que pode causar nele a necessidade ou aadversidade <strong>do</strong>s tempos, para to<strong>do</strong>s lhes prometo este remédio: melhor é quesobejem os remédios à cautela, <strong>do</strong> que faltem à providência.E porque não pareça que argumento só de casos e profecias de tempos antigos,sejam os casos e profecias próprias <strong>do</strong>s nossos tempos e escritas só para eles.Ninguém ignora que as profecias <strong>do</strong> Apocalipse e mais ainda as que estão porcumprir) são próprias <strong>do</strong>s tempos que hoje correm e hão-de parar no fim <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>. Assim o dizem Padres e expositores, e nós o mostraremos em seupróprio lugar. Mas a que fim, pergunto, ordenou a Providência Divina que S.João tivesse aquelas revelações e escrevesse aquelas profecias?É pergunta esta de que foi respondida Santa Brígida, como se lê no Livro VI desuas Revelações. Queren<strong>do</strong> Cristo, por particular favor, que a santa ouvisse aresposta da boca <strong>do</strong> mesmo Profeta, apareceu ali S. João e disse destamaneira: Tu, Domine, inspirasti mihi mysteria ejus, et ego scrpsi adconsolationem futurorum, ne fideles tui propter futuros casus everterentur:«Vós, Senhor, me revelastes aqueles mistérios, e eu escrevi as profecias delespara consolação <strong>do</strong>s vin<strong>do</strong>uros e para que os vossos fiéis com os casos futurosse não perturbassem», antes confirma<strong>do</strong>s com as mesmas profecias, estejamneles constantes.Este é o fim (posto que não só este) por que Deus revela as cousas futuras, epor que os Profetas antigos, e o último de to<strong>do</strong>s, que foi S. João, asescreveram: para que se veja quão justa e quão útil é, e quão conforme com avontade e intento de Deus, a diligência com que eu me disponho, e o trabalhode escolher entre todas as profecias que pertencem a nossos tempos, e de asajuntar, ordenar e tirar à luz para o benefício público. E porque o fruto destebenefício se pode colher nas novidades que promete este mesmo ano em que.somos entra<strong>do</strong>s, aplican<strong>do</strong> o remédio à ferida ou aos ameaços dela, digo assimcom o profeta Amos: Leo rugiet; quis non timebit? Dominus Deus locutus estquis non prophetabit ? Está o leão bramin<strong>do</strong>? Sim, está; pois agora é o tempode se ouvirem as profecias e de se saber e publicar o que Deus tem dito:Dominus Deus locutus est. quis non prophetabit? Falem to<strong>do</strong>s nas profecias e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 18 de 16927/08/2011entendam-nas to<strong>do</strong>s, pratiquem-nas to<strong>do</strong>s, que agora é o tempo.Quan<strong>do</strong> as brami<strong>do</strong>s <strong>do</strong> leão se ouvirem em suas caixas e trombetas, soetambém em nossos ouvi<strong>do</strong>s por cima de todas elas, o trovão de nossasprofecias. Assim lhes chamei, porque são voz <strong>do</strong> Céu. Leo rugiet, quis nontimebit? «Quan<strong>do</strong> bramir o leão, quem não tremerá?»Responderão com razão os nossos solda<strong>do</strong>s que não temerão aqueles quetantas vezes os têm venci<strong>do</strong>; que não temerá Portugal, que é o Sansão quetantas vezes o tem desqueixa<strong>do</strong>. que não temerá Portugal, que é o Hérculesque tantas vezes se tem vesti<strong>do</strong> de seus despojos; que não temerá Portugalque é o David que tantas vezes lhe tem tira<strong>do</strong> das garras os seus cordeiros.Esta é a resposta <strong>do</strong> valor, e esta pode ser também a da arrogância, de queDeus se não agrada.Não confie Portugal em si, porque se não ofenda Deus; confie só no mesmoDeus e em suas promessas, e pelejará seguro. Oh! que bem arma<strong>do</strong>sesperarão o leão na campanha os nossos solda<strong>do</strong>s, se tiverem nas mãos asarmas e no coração as profecias! Leo rugiet, quis non prophetabit?Estas são as trombetas <strong>do</strong> Céu, de cujo som tremem os muros de Jericó e acuja bateria nenhuma fortaleza resiste.Mas se acaso (que pode ser) houver algum sucesso adverso (que tambémdepois <strong>do</strong> milagre de Jericó houve nos campos de Hai), não perca Josué nemseus solda<strong>do</strong>s o animo; recorram a Deus e a suas promessas, que por isso nostem preveni<strong>do</strong> com elas.Costuma a Providência Divina começar suas maravilhas por efeitos contrários,ou para provar nossa fé, ou para mais exaltar sua omnipotência. Ele pode maisque to<strong>do</strong>s os poderes humanos, e só uma cousa não pode, que é faltar ao quetem prometi<strong>do</strong>. Deixou Cristo aos discípulos lutar com a tempestade naprimeira vigia, na segunda não lhos acudiu, nem na terceira; e quan<strong>do</strong> naquarta, depois de os atemorizar com fantasmas, os socorreu com sua presença,ainda então os repreendeu de pouca confiança. Escureça-se a noite, brame omar, rompa-se o céu, enfureçam-se os ventos, que Deus há-de acudir por suapalavra; seguro está o Reino em que ele e a palavra de Deus correm o mesmoperigo. CAPITULO VI Terceira utilidade.Finalmente (e é a terceira e não menor utilidade desta <strong>História</strong>), len<strong>do</strong> ospríncipes da Cristandade, e mais particularmente aqueles que foram ou estão jáescolhidas por Deus para instrumentos gloriosos de ,tão singulares maravilhase maravilhosas felicidades, len<strong>do</strong>, digo, no discurso da <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, asvitórias, os triunfos, as conquistas, os reinos, as coroas e o <strong>do</strong>mínio e sujeiçãode nações tantas e tão dilatadas, que lhes estão prometidas, na fé e confiançadas mesmas promessas se atreverão animosamente a empreendê-las, sen<strong>do</strong>certo que, medidas só as forças da potência humana, sem ter por fia<strong>do</strong>r apalavra divina, nenhuma razão haveria no Mun<strong>do</strong> que se atrevesse aaconselhar, nem ainda temeridade que se arrojasse a empreender adesigualdade de tamanhas guerras e a desproporção de tão imensasconquistas. Mas as promessas e as disposições divinas, antecedentementeconhecidas na previsão <strong>do</strong> futuro, tu<strong>do</strong> facilitam e a tu<strong>do</strong> animam.Para testemunho desta tão importante verdade e alento <strong>do</strong>s que a lerem, poreiaqui um só exemplo de guerras, outro de conquistas, mas um e outro osmaiores que até hoje se viram no Mun<strong>do</strong>.Tinham vin<strong>do</strong> sobre o povo de Israel os exércitos <strong>do</strong>s Filisteus com trinta milcarros de guerra e tanta multidão de solda<strong>do</strong>s, que não só compara a EscrituraSagrada q número deles com o da areia <strong>do</strong> mar, senão com a areia muita:...sicut arena, quae est in littore maris, plurima. Os Israelitas, reconhecen<strong>do</strong>sua desigualdade para resistir a tão superior e excessivo poder, diz o mesmotexto que se tinham escondi<strong>do</strong> pelas brenhas, pelas montanhas, pelas covas,pelas grutas, pelas cisternas e por to<strong>do</strong>s os outros lugares mais ocultos esecretos que .sabe inventar o me<strong>do</strong> e a necessidade.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 19 de 16927/08/2011.Neste esta<strong>do</strong> de horror e miséria sai de noite o príncipe Jónatas, filho de el-reiSaul, trata de consultar a Deus por um mo<strong>do</strong> de oráculo ou sorte, a que osHebreus chamavam Phurim, pela qual a Providência divina naquele tempocostumava responder e significar os sucessos futuros; e encaminhan<strong>do</strong> para osalojamentos <strong>do</strong> inimigo, disse assim ao seu pajem da lança, que só oacompanhava:— Se quan<strong>do</strong> formos senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> exército <strong>do</strong>s Filisteus, disserem as sentinelas:— Esperai por nós — é sinal que responde Deus que paremos, e que nãoconvém acometer; mas se as sentinelas disserem: — Vinde para cá — é sinalque responde Deus que acometamos, porque os tem entregues em nossasmãos, e que havemos de prevalecer contra eles.Ajusta<strong>do</strong>s os sinais nesta forma, prosseguiram seu caminho, chegaram perto eforam senti<strong>do</strong>s. As sentinelas que deram fé <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is voltos, falaram entre si,concordan<strong>do</strong> em que eram hebreus <strong>do</strong>s que estavam meti<strong>do</strong>s pelas covas;levantaram a voz e disseram para eles:— Vinde cá, que temos certa cousa que vos dizer. Não foi necessário mais, paraque Jónatas entendesse a resposta <strong>do</strong> divino oráculo, interpretan<strong>do</strong>-a (comoverdadeiramente era) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiançadesta profecia, ten<strong>do</strong> por sem dúvida que havia de vencer, avançaanimosamente às tendas <strong>do</strong>s Filisteus, começa ele e o companheiro a matarnos inimigos, toca-se arma, cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, travaseuma brava peleja <strong>do</strong>s mesmos Filisteus uns contra os outros, cuidan<strong>do</strong> queeram os solda<strong>do</strong>s de Saul. Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covasos Israelitas, seguem os Filisteus fugitivos, e voltam carrega<strong>do</strong>s de despojos.Conhecem-se enfim com imortal glória de Jónatas os autores de tão estupendafaçanha, bastan<strong>do</strong> só <strong>do</strong>is homens arma<strong>do</strong>s da confiança de uma profecia, paraporem em fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual eprodigiosa vitória.A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu noMun<strong>do</strong>, foi a famosa de Alexandre Magno. O homem que a empreendeu era omaior capitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte eacompanhou a fortuna. mas se não fora ajuda<strong>do</strong> da profecia, nem ele seatrevera ao que se atreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem seique no dia em que nasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de DianaEfesina, onde prognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mun<strong>do</strong>quem havia de ser o incêndio de toda Ásia.Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com aespada, estava prometi<strong>do</strong> pelos oráculos de Apolo Délfico o império de to<strong>do</strong> oOriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações everdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são osvaticínios da Gentilidade.Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que entran<strong>do</strong> Alexandre emJerusalém, saiu a o receber fora <strong>do</strong> templo o sumo sacer<strong>do</strong>te Ja<strong>do</strong>, revesti<strong>do</strong><strong>do</strong>s ornamentos pontificais, e que Alexandre, ven<strong>do</strong>-o, se lançara a seus pés eo a<strong>do</strong>rara; e pergunta<strong>do</strong> pela causa de tão desusada reverência, tão alheia desua grandeza e majestade, respondeu que ele não a<strong>do</strong>rara aquele homemsenão nele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e arepresentação em que Deus lhe tinha apareci<strong>do</strong> em Dio, cidade de Macedônia,e exortan<strong>do</strong>-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempomeditava, lhe segurara a vitória.As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são asseguintes:— Non hunc a<strong>do</strong>ravi, sed Deum, cujus principadesse a resposta <strong>do</strong> divino oráculo, interpretan<strong>do</strong>-a (como verdadeiramenteera) conforme o sinal que tinha posto; e na fé e confiança desta profecia, ten<strong>do</strong>por sem dúvida que havia de vencer, avança animosamente às tendas <strong>do</strong>sFilisteus, começa ele e o: companheiro a matar nos inimigos, toca-se arma


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 20 de 16927/08/2011cresce a confusão, perturbam-se os arraiais, trava-se uma brava peleja <strong>do</strong>smesmos Filisteus uns contra os outros, cuidan<strong>do</strong> que eram GS solda<strong>do</strong>s de Saul.Fogem, atropelam-se, matam-se. Saem das covas os Israelitas, seguem GSFilisteus fugitivos, e voltam carrega<strong>do</strong>s de despojos. Conhecem-se enfim comimortal glória de Jónatas os autores de tão estupenda façanha' bastan<strong>do</strong> só <strong>do</strong>ishomens arma<strong>do</strong>s da confiança de uma profecia, para porem em fugida o maispoderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória.A maior e mais nobre conquista que até hoje se intentou e conseguiu no Mun<strong>do</strong>,foi a famosa de Alexandre Magno. o homem que a empreendeu era o maiorcapitão que criou a natureza, formou o valor, aperfeiçoou a arte e acompanhoua fortuna. mas se não fora ajuda<strong>do</strong> da profecia, nem ele se atrevera ao que seatreveu, nem obrara e levara ao cabo o que obrou. Bem sei que no dia em quenasceu Alexandre, ardeu o famosíssimo templo de Diana Efesina, ondeprognosticaram os Magos que naquele dia entrara no Mun<strong>do</strong> quem havia de sero incêndio de toda Ásia.Também sei que a quem desatasse o nó gordiano que Alexandre cortou com aespada, estava prometi<strong>do</strong> pelos oráculos de Apolo Délfico o império de to<strong>do</strong> oOriente; mas não chamo eu a isto profecias, nem assento considerações everdades tão sérias sobre fundamentos de tão pouca subsistência, como são osvaticínios da Gentilidade.Conta Josefo, no liv. XI de suas Antigüidades, que, entran<strong>do</strong> Alexandre emJerusalém, saiu a o receber fora <strong>do</strong> templo D sumo sacer<strong>do</strong>te Ja<strong>do</strong>, revesti<strong>do</strong><strong>do</strong>s ornamentos pontificais, e que Alexandre, ven<strong>do</strong>-o, se lançara a seus pés e oa<strong>do</strong>rara; e pergunta<strong>do</strong> pela causa de tão desusada reverência, tão alheia de suagrandeza e majestade, respondeu que ele não a<strong>do</strong>rara aquele homem, senãonele a Deus, porque reconhecera que aquele era o hábito, o ornato e arepresentação em que Deus lhe tinha apareci<strong>do</strong> em Dio, cidade de Macedônia, eexortan<strong>do</strong>-o a que empreendesse a conquista da Pérsia, que naquele tempomeditava, lhe segurara a vitória.As palavras de Alexandre (que é bem se veja a sua formalidade) são asseguintes:— Non hunc a<strong>do</strong>ravi, sed Deum, cujus principatus sacer<strong>do</strong>tii functus est. Namper somnium in hujus modi eum habitu conspexi, adhuc in Dio civitateMace<strong>do</strong>niae constitutus. Dumque mecum cogitassem posse Asiam vincere,incitavit me ut nequaqm negligerem, sed confidenter transirem. Nam per seducturum meum exercitum dicebat, et Persarum traditurum potentiam: ideoqueneminem alium in tali stola videns, cum huc advertissem, habens visionis etprobutionis nocturnae memoriam, salutavi. [...] Exinde arbitrar Divino iuvamineme directum Dariumque vixisse, virtutemque solvisse Persarum. Propterea etomnia quae meo.corde sperantur, pro ventura confi<strong>do</strong>.No mesmo templo de Jerusalém, refere também Josefo que foram mostradas aAlexandre as profecias de Daniel, particularmente aquela <strong>do</strong> cap. VIII. Conta alio profeta que viu <strong>do</strong>is animais <strong>do</strong> campo: um, o maioral das ovelhas, com <strong>do</strong>iscornos muito fortes; outro, o maioral das cabras, com um só corno entre osolhos (o qual depois de quebra<strong>do</strong> se dividiu em quatro), e que este segun<strong>do</strong>animal, corren<strong>do</strong> da parte <strong>do</strong> Ocidente contra o primeiro, sem pôr os pés naterra, o investira e derribara e metera debaixo <strong>do</strong>s pés.Nestas duas figuras é certo que estava profetiza<strong>do</strong>, na primeira, o império <strong>do</strong>sPersas e Me<strong>do</strong>s (como explicou o anjo a Daniel), por isso tinha a testa divididaem <strong>do</strong>is cornos; na segunda, o império <strong>do</strong>s Gregos, que no princípio esteveuni<strong>do</strong> em uma só pessca, que foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiuem quatro, que foram os quatro reinos em que ele o repartiu entre seuscapitães. Saiu pois Alexandre da parte ocidental, que é a Macedônia, e sem pôros pés na terra, pela velocidade com que vencia e sujeitava tu<strong>do</strong>, investiu,derribou e meteu debaixo <strong>do</strong>s pés o império <strong>do</strong>s Persas e Me<strong>do</strong>s, acaban<strong>do</strong> dese cumprir a profecia na última batalha <strong>do</strong> Tigranes, em que venceu edesbaratou de to<strong>do</strong> os exércitos de Dario e tomou ou se deixou saudar com onome de Impera<strong>do</strong>r da Ásia.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 21 de 16927/08/2011Não parou aqui Alexandre; porque não pararam aqui as profecias de Daniel navisão <strong>do</strong>s quatro animais referi<strong>do</strong>s no cap. VII. O terceiro era Alexandre,significa<strong>do</strong> no leopar<strong>do</strong> com quatro asas. Na visão da estátua de Nabuco,referida no cap. II, o terceiro <strong>do</strong>s metais, que era o bronze, significava tambémo império de Alexandre; e diz ali o Profeta que reinaria e se faria obedecer deto<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>: Et regnum tertium aliud aereum, quod imperabit universaeterrae.Em seguimento e confiança destas profecias, partiu Alexandre vitorioso para aconquista que lhe restava <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> oriental, o qual sujeitou e uniu to<strong>do</strong> ao seuimpério, passan<strong>do</strong> o Tauro e o Cáucaso e chegan<strong>do</strong> até os fins <strong>do</strong> Ganges epraias <strong>do</strong> mar Índico, que eram então os últimos da terra de onde Hércules e opadre Líbero os tinham coloca<strong>do</strong>.Mas foram ainda mais em número e grandeza as nações que venceu e sujeitouAlexandre com a fama mais que com a espada; porque, entran<strong>do</strong> da voltadesta jornada em Babilônia, achou nela os embaixa<strong>do</strong>res de África, de CartagoEspanha, Gália, Itália, Sicília, Sardenha, as quais províncias, em obséquio ereconhecimento de sua potência, se lhe mandaram sujeitar e entregarespontaneamente e entre elas os mesmos Romanos (nome já naquele: tempofamoso no Mun<strong>do</strong>), como é autor Clitarco, referi<strong>do</strong> e louva<strong>do</strong> por Plínio no liv.III da <strong>História</strong> Natural. Tu<strong>do</strong> certifica ainda com palavras maiores o mesmoTexto Sagra<strong>do</strong> no exórdio <strong>do</strong> I Liv. <strong>do</strong>s Macabeus, dizen<strong>do</strong>: ...percussitAlexander [...] qui primus regnavit in Graecia, et Darium regem Persarum etMe<strong>do</strong>rum, constituit et praelia multa et oblinuit omnium munitiones, etinterfecit reges terrae, pertransiit usque ad fines terrae, et accepit spoliamulitudinis gentium, et siluil terra in conspectu ejus.Porém o que mais admira nas conquistas e vitórias de Alexandre, é adesigualdade <strong>do</strong> poder e o limita<strong>do</strong> aparato de guerra com que entrou em tãoimensa empresa; porque, como refere Plutarco e o prova com graves autores,saiu de Macedônia com menos de quarenta mil homens, bastimentos só paratrinta dias, e com setenta talentos para estipêndios, que fazem da nossa moedaquarenta e <strong>do</strong>is mil cruza<strong>do</strong>s.Mas como Alexandre, antes de obrar todas estas maravilhas, com que mereceuo nome e se fez verdadeiramente magno, se tivesse visto a si mesmo melhorretrata<strong>do</strong> nas profecias de Daniel, <strong>do</strong> que depois se viu nas estátuas de Lisiponem nas pinturas de Apeles, não é muito que, anima<strong>do</strong> e sopra<strong>do</strong> <strong>do</strong> espiritodas mesmas profecias e cheio da majestade delas, se atrevesse a tão árduas edificultosas empresas, das quais justamente se duvida (como pôs em questãoJustino) se foi maior façanha o intentá-las, ou vencê-las.E de aqui se pode desculpar (cousa que não soube nem pôde advertir nenhum<strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res de Alexandre, sen<strong>do</strong> tantos e tão excelentes), de aqui, digo,se pode desculpar aquela mais temeridade que audácia (qualidade, posto quehonrosa, indigna de um general prudente e muito mais de um rei, quan<strong>do</strong>conquista o alheio e não defende o próprio), com que Alexandre empenhavasua pessoa e vida e se precipitava muitas vezes aos perigos por cousas leves,sen<strong>do</strong> a confiança ou o seguro de to<strong>do</strong>s estes arrojamentos, não o <strong>do</strong>mínio queele tivesse sobre a fortuna — Quam solus omnium mortalium sub potestatehabuit — como com discrição gentílica disse dele Cúrcio, mas a previsão epresciência de suas futuras vitórias e <strong>do</strong> império que lhe estava prometi<strong>do</strong>, ehavia necessariamente de conquistar, conforme as profecias de Daniel. E comotinha a vida e as empresas firmadas por uma escritura de Deus ou por trêsescrituras, e ao mesmo Deus por fia<strong>do</strong>r de sua palavra e promessas, fé era enão audácia, confiança e não temeridade empenhar-se Alexandre nos perigospara conseguir as empresas, e dar exemplo de desprezo da vida a seussolda<strong>do</strong>s para os animar às vitórias. Tanta parte teve a profecia nas açõesdeste grande capitão e no império deste grande monarca, o qual, se deve aFilipe o ser Alexandre, deve a Daniel o ser Magno!Os exemplos que temos <strong>do</strong>mésticos desta mesma utilidade, não são menosadmiráveis que os estranhos, assim nas batalhas, como nas conquistas. Era tãoinumerável a multidão de Sarracenos que debaixo das luas de Ismael, e <strong>do</strong>soutros quatro reis mouros, inundaram os campos de Guadiana com intento de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 22 de 16927/08/2011tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de nossa maior fortuna, quejustamente estavam temerosos os poucos portugueses, e seu valoroso príncipeduvi<strong>do</strong>so se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho ermitão, intérpreteda Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois realmente ouvi<strong>do</strong> econheci<strong>do</strong>, lhe assegurou da parte de Deus a vitória, com aquelas tãoexpressas e animosas palavras Vinces, Alphonse, et non vinceris — socorri<strong>do</strong> oanimoso capitão e fortaleci<strong>do</strong> o pequeno exército com esta promessa <strong>do</strong> Céu,sem reparar em que era tão desigual o parti<strong>do</strong>, que para cada lança cristãhavia no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha.Na manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebi<strong>do</strong> a profecia, acomete defronte a fronte ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso imenso de to<strong>do</strong> seupoder, rompe os esquadrões, desbarata o exército, mata, cativa, rende,despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a vitória, e libertada a Pátria, pisaglorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça, já rei, a portuguesa.Isto obraram as profecias daquela noite na guerra, mas ainda mostraram maisos poderes de sua influência na conquista. Quem duvida que foram maisestendidas e gloriosas as conquistas <strong>do</strong>s Portugueses que as de AlexandreMagno na mesma Índia? Desta conquista de Alexandre disse o seu grandehistoria<strong>do</strong>r ...Oriente per<strong>do</strong>mito, aditoque Oceano, quidquid mortalitas cutiebut,impleret. «Doma<strong>do</strong> o Oriente e navega<strong>do</strong> o Oceano, cumpriu e encheuAlexandre tu<strong>do</strong> o que cabia na mortalidade.:> Que dissera, se vira asnavegações <strong>do</strong>s Portugueses no mesmo Oceano e suas conquistas no mesmoOriente? Obrigação tinha em boa consequência de lhes chamar imortais. Nãochegaram os Portugueses só às ribeiras <strong>do</strong> Ganges, como Alexandre; maspassaram e penetraram adiante muito maior comprimento e terras <strong>do</strong> que há<strong>do</strong> mesmo Ganges a Macedônia, <strong>do</strong>nde Alexandre tinha saí<strong>do</strong>.Não venceram só a Poro, rei da Índia, e seus exércitos; mas sujeitaram efizeram tributárias mais coroas e mais reinos <strong>do</strong> que Poro tinha cidades. Nãonavegaram só o mar Indico ou Eritreu, que é um seio ou braço <strong>do</strong> Oceano, mas<strong>do</strong>maram o mesmo Oceano na sua maior largueza e profundidade, aonde ele émais bravo e mais pujante, mais poderoso e mais indômito: o Atlântico, oEtiópico, o Pérsico, o Malabárico, e, sobre to<strong>do</strong>s, o Sínico, tão temeroso porseus tulões e tão infame por seus naufrágios. Que perigos não desprezaram?Que dificuldades não venceram? Que terras, que céus, que mares, que climas,que ventos, que tormentas, que promontórios não contrastaram? Que gentesferas e belicosas não <strong>do</strong>maram? Que cidades e castelos fortes na terra? Quearmadas poderosíssimas no mar não renderam? Que trabalhos, que vigias, quefomes, que sedes, que frios, que calores, que <strong>do</strong>enças, que mortes nãosofreram e suportaram, sem ceder, sem parar, sem tornar atrás, insistin<strong>do</strong>sempre e in<strong>do</strong> avante, com mais pertinácia que com instancia?Mas não obraram todas estas proezas aqueles portugueses famosos porbenefício só de seu valor, senão pela confiança e seguro de suas profecias.Sabiam que tinha Cristo prometi<strong>do</strong> a seu primeiro rei que os escolhera paraargonautas apostólicos de seu Evangelho e para levarem seu nome e fundaremseu império entre gentes remotas e não conhecidas; e esta fé os animava nostrabalhos; esta confiança os sustentava nos perigos; esta luz <strong>do</strong> futuro era onorte que os guiava; e esta esperança a âncora e amarra firme, que nas maisdesfeitas tempestades os tinha seguros.Maiores contrastes tiveram ainda as conquistas de Portugal na nossa terra quenas estranhas, e mais fortes guerras experimentaram nos naturais queresistência nos inimigos. Quem quiser ver com admiração a tormenta decontradições populares , e de to<strong>do</strong> o Reino, que por espaço de dez anospadeceram os primeiros descobrimentos das conquistas, leia o grande cronistada Ásia, no IV cap. <strong>do</strong> I liv., e conhecerá quantas obrigações deve Portugal e oMun<strong>do</strong> ao sofrimento, valor e constância <strong>do</strong> Infante D. Henrique, filho de El-ReiD. João I, autor desta heróica empresa, o qual, como religiosíssimo príncipeque era, e nela principalmente pretendia a glória de Deus, dilatação da Fé econversão da Gentilidade, mereceu que o mesmo Deus com uma voz <strong>do</strong> Céu oexortasse a levar por diante o começa<strong>do</strong>, com promessa de seu favor e luz <strong>do</strong>sgloriosíssimos fins, que por meio de tão dura porfia se haviam de alcançar.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 23 de 16927/08/2011Assim se conta e escreve por fama e tradição daquele tempo. Com este oráculodivino mais fortaleci<strong>do</strong> o espírito <strong>do</strong> Infante, não só pôde romper e abrir asportas tão cerradas <strong>do</strong> Oceano e deixá-las francas e patentes aos que depoisvieram, vencidas as primeiras e maiores dificuldades, mas dar animo, valor,guia e esperança aos que, seguin<strong>do</strong> seu exemplo e empresa, a levaram aocabo. Desta maneira o Infante D. Henrique, que será sempre de feliz memória,nos ganhou com sua constância as conquistas, conquistan<strong>do</strong>-as primeiro emPortugal, <strong>do</strong> que fossem conquistadas na África, Ásia, América, e contrastan<strong>do</strong>com igual fortaleza o indômito furor <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> e quarto elemento (que são omar e o fogo), que não pudera conseguir sem o socorro da luz <strong>do</strong> Céu, anima<strong>do</strong>nas contradições e contrariedades presentes com o conhecimento e certeza <strong>do</strong>ssucessos futuros, para que até nesta parte deva Portugal as suas conquistasaos lumes e alentos da profecia.Finalmente, esta última resolução que no ano de quarenta assombrou o Mun<strong>do</strong>,posto que muito a devamos à ousadia <strong>do</strong> nosso valor, muito mais a deve onosso valor à confiança de nossos vatícinios. Que valor sesu<strong>do</strong>, prudente e bemaconselha<strong>do</strong> se havia de atrever a uma empresa tão cercada de dificuldades,como levantar-se contra o mais poderoso monarca <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e restituir-se àsua liberdade, e aclamar novo rei, não longe senão dentro de Espanha, umreino de grandeza tão desigual, sobre sessenta anos de cativo e despoja<strong>do</strong>;sem armas, sem solda<strong>do</strong>s, sem amigos, sem alia<strong>do</strong>s, sem assistências, semsocorros, só e até de si mesmo dividi<strong>do</strong> em tão distantes partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>? Mascomo havia outros tantos anos que a profecia estava dan<strong>do</strong> bra<strong>do</strong>s aoscorações, em que nunca se apagou o amor da Pátria, e a saudade <strong>do</strong> rei, e ozelo da liberdade, dizen<strong>do</strong> e publican<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s que o deseja<strong>do</strong> tempo delahavia de chegar no ano felicíssimo de quarenta, em que o novo rei serialevanta<strong>do</strong>; a promessa que sempre a conservou nos corações, a levantou a seutempo nas vozes, e ela foi a que deu o rei ao Reino, o Reino à Pátria, a Pátriaaos Portugueses, e Portugal a si mesmo; e este seja entre to<strong>do</strong>s o maiorexemplo, assim das nossas guerras como das nossas conquistas, pois tu<strong>do</strong> oque tínhamos venci<strong>do</strong> e conquista<strong>do</strong> em quinhentos anos, alenta<strong>do</strong>s daspromessas <strong>do</strong> Céu, o pudemos restaurar um dia.E se tanto tem vali<strong>do</strong> e importa<strong>do</strong> a Portugal o conhecimento de seus futuros,em to<strong>do</strong>s os casos maiores que podem acontecer a um reino; se debaixo destafé nasceu, quan<strong>do</strong> recebeu a coroa. se debaixo desta fé cresceu, quan<strong>do</strong> lheacrescentou as conquistas; se debaixo desta fé se restaurou, quan<strong>do</strong> asrestituiu a elas e se restituiu a si mesmo, oh! quanto mais necessário lhe será aPortugal, e quanto mais útil e importante esta mesma fé e conhecimento deseus futuros sucessos para aquelas empresas novas, e muito maiores, que nostempos que hão-de vir (ou que já vêm) o esperam! Não se poderácompreender a grandeza e capacidade desta importância senão depois de lidatoda a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, na qual só se medirá bem a imensidade <strong>do</strong> objetocom a desigualdade <strong>do</strong> instrumento.Mas quem quiser desde logo fazer de algum mo<strong>do</strong> a conjectura destadesproporção, tome os compassos a Portugal e ao Mun<strong>do</strong>, e pergunte-se a simesmo se se atreve a igualar estes paralelos. É porém, tão poderoso contrato<strong>do</strong>s os impossíveis o conhecimento e fé <strong>do</strong> que há-de ser representa<strong>do</strong> noespelho das profecias, que nenhuma empresa pode haver tão desigual,nenhuma tão armada de perigos, nenhuma tão defendida de dificuldades, quedebaixo <strong>do</strong> escu<strong>do</strong> desta confiança se não intente, se não avance, se nãoprossiga, se não vença. Da conquista espiritual <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> se pode fazer bomargumento para a temporal, pois é mais forte a guerra e mais dura resistênciaa <strong>do</strong>s entendimentos que a <strong>do</strong>s braços.Quis Deus que a Igreja, que é o seu reino, fundada pelos Apóstolos, seestendesse por seus sucessores em to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>; e quais foram as armas comque Deus os fortaleceu para que não temessem ou duvidassem a empresa e sedispusessem animosamente a tão estranha conquista?Advertiu com profun<strong>do</strong> juízo Primásio que fora o Apocalipse de S. João, porque,len<strong>do</strong> os solda<strong>do</strong>s evangélicos naquelas profecias quão largamente se havia depropagar a mesma Igreja e quão prodigiosas vitórias havia de alcançar a Fécontra to<strong>do</strong>s os inimigos, este mesmo conhecimento os animava a quereremser (como foram) os instrumentos gloriosos delas. Segurou-lhes Deus as


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 24 de 16927/08/2011vitórias, para que não duvidassem cometer as batalhas: Post exortum autemEcolesiae, quae jam fuerat apostolorum praedicatione funduta, revelari oportuit— diz Primásio — qualiter esset latius propaganda, vel quali etiam finecontenta, ut praedicatores veritatis, hujus cognitionis fidutia freti, indubitanteraggrederentur pauci multos, inermes armatos, humiles superbos, infirminobiles, vivi tamen spiritualiter mortuos. Não se pode dizer, nem mais certa,nem mais elegantemente, se exceptuarmos a desproporção de poucos amuitos, pauci multos. Em todas as outras considerações foi mais desigual estaempresa que as que eu prometo ou hei-de prometer; e se a esta se atreverampoucos homens sem armas, sem estimação, sem nobreza, sem poder, contratantos arma<strong>do</strong>s arrogantes, nobres e poderosos, só porque no conhecimentodas profecias tinham segura a felicidade e fim da empresa, porque se nãoatreverão à mesma empresa, e na confiança das mesmas profecias, aqueles emquem o poder se iguala com as armas, as armas se ilustram com a nobreza e anobreza compete com a estimação e com a fama, ainda que sejam poucoscontra muitos?E digo na confiança das mesmas profecias, porque uma boa parte da nossa<strong>História</strong> (como veremos em seu lugar) são as <strong>do</strong> mesmo Apocalipse. Lerão osPortugueses, e to<strong>do</strong>s os que lhes quiserem ser companheiros, este prodigiosolivro <strong>do</strong> futuro, e com ele embraça<strong>do</strong> em uma mão e a espada na outra, postatoda a confiança em Deus e em sua palavra, que conquista haverá que nãoempreendam, que dificuldades que não desprezem, que perigos que não pisem,que impossíveis que não vençam?Ao conhecimento antecedente <strong>do</strong>s futuros chamou discretamente S. Gregórioescu<strong>do</strong> fortíssimo da presciência, em que todas as adversidades e golpes <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> se sustentam, se reparam e se rebatem: Et nos tolerabilius mundi mulasuscipmus, si contra haec per prtescientiae clypeum munimur. Que vem a seresta nossa <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, senão escu<strong>do</strong> da presciência - praescientia,clypeum? Arma<strong>do</strong>s com este escu<strong>do</strong>, que trabalhos, que perigos nos podeoferecer o mar, a terra e o Mun<strong>do</strong>, e que golpes nos pode atirar com todas asforças de seu poder, que não sustentemos nele com animosa constância? Quemhaverá que debaixo deste escu<strong>do</strong> não empreenda as mais dificultosasconquistas, nem aceite as mais arriscadas batalhas, e não vença e triunfe <strong>do</strong>smais poderosos inimigos, se as empresas no mesmo escu<strong>do</strong> vão já resolutas,as batalhas vão já vencidas e os inimigos já triunfa<strong>do</strong>s?Fingiu o príncipe <strong>do</strong>s poetas latinos, que pediu Vênus, mãe de Eneias, ao deusVulcano lhe fabricasse umas armas divinas, com que entrasse arma<strong>do</strong> nadificultosíssima conquista de Itália, com que vencesse os reis e sujeitasse asnações belicosíssimas que a <strong>do</strong>minavam, com que vitorioso fundasse naquelasterras o famosíssimo Império Romano, que pelos fa<strong>do</strong>s lhe estava prometi<strong>do</strong>.Forjou Vulcano as armas, e no escu<strong>do</strong>, que era a maior e principal peça delas,diz que abriu de subtilíssima escultura as histórias futuras das guerras etriunfos romanos, compon<strong>do</strong> e copian<strong>do</strong> os sucessos pelos oráculos e vaticínios<strong>do</strong>s profetas e pelas notícias próprias que tinha, como um <strong>do</strong>s deuses que eraparticipante <strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> supremo Júpiter....Clypei non enarrabile textumIllic res Italas, romanotumque triumphos,Haud vatum ignarus, venturique inscius aevi,Fecerat igni potens: illic genus omne futuraeStirpis ab Ascanio, purgnataque ordine bella.(Virgílio, Aeneid . 8. )O ofício e obrigação <strong>do</strong>s poetas não é dizerem as cousas como foram, maspintarem-nas como haviam de ser ou como era bem que fossem; e achou omais levanta<strong>do</strong> e judicioso espírito de quantos escreveram em estilo poético,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 25 de 16927/08/2011que para vencer as mais dificultosas empresas, para conquistar as maisbelicosas nações e para fundar o mais poderoso e dilata<strong>do</strong> império, nenhumaarma poderia haver mais forte, nem mais impenetrável, nem que maisenchesse de animo, confiança e valor o peito que fosse coberto e defendi<strong>do</strong>com ela, que um escu<strong>do</strong> forma<strong>do</strong> por arte e sabe<strong>do</strong>ria divina, no qualestivessem entalha<strong>do</strong>s e descritos os mesmos sucessos futuros que se haviamde obrar naquela empresa. Assim armou o grande poeta ao seu Enéias ; e estemesmo escu<strong>do</strong>, não fabuloso, senão verdadeiro, e não fingi<strong>do</strong>s depois deexperimenta<strong>do</strong>s os sucessos, senão escritos antes de sucederem, épropriamente, e sem ficção, o que nesta <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong> ofereço,Portugueses, ao nosso rei.Dobra<strong>do</strong> de sete laminas dizem que era aquele escu<strong>do</strong>; e também o da nossa<strong>História</strong>, para que em tu<strong>do</strong> lhe seja semelhante, é publica<strong>do</strong> em sete livros.Nele verão os capitães de Portugal, sem conselho, o que hão-de resolver; sembatalha, o que hão-de vencer; e sem resistência, o que hão-de conquistar.Sobre tu<strong>do</strong> se verão nele a si mesmos e suas valorosas ações, como emespelho, para que, com estas cópias de morte-cor diante <strong>do</strong>s olhos, retratempor elas vivamente os originais, anteven<strong>do</strong> o que hão-de obrar, para que oobrem, e o que hão-de ser. para que o sejam. CAPÍTULO VII Última utilidade.Entre as utilidades próprias a <strong>do</strong>s amigos, não quero deixar de advertir por fimdelas, que também a lição desta <strong>História</strong> pode ser igualmente útil e proveitosaaos inimigos, se, deixada a dissonância e escândalo deste nome, quiseremantes ser companheiros de nossas felicidades, que padecê-las <strong>do</strong>bradamente na<strong>do</strong>r e inveja <strong>do</strong>s êmulos. Lerão aqui nossos vizinhos e confinantes (que muito apesar meu sou força<strong>do</strong> alguma vez a lhes chamar inimigos, haven<strong>do</strong> tantasrazões, ainda da mesma natureza, para o não serem) lerão aqui com boaconjectura as promessas e decretos divinos, provada a verdade <strong>do</strong>s futuroscom a experiência <strong>do</strong>s passa<strong>do</strong>s: e verão, se quiserem abrir os olhos, ummanifesto desengano de sua profecia, conhecen<strong>do</strong> que na guerra quecontinuam contra Portugal, pelejam contra as disposições <strong>do</strong> supremo poder ecombatem contra a firmeza de sua palavra. Oh quantos danos, quantasdespesas, quantos trabalhos, quanto sangue e perda de vidas, quantaslágrimas e opressão de naturais e estrangeiros podia escusar Espanha, se, comos olhos limpos de toda a paixão e afeto, quisesse ler esta <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, ecom tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos de seu maior bem, como éo animo com que ele se escreve!Não entre só nos conselhos de Esta<strong>do</strong> a conveniência e reputação, o apetite e oódio, a vingança, o discurso militar e político; tenha também algum dia lugarneles a Fé; suponha-se que Deus é o que dá e tira os reinos, como e quan<strong>do</strong> éservi<strong>do</strong>; conheça-se e examine-se a sua vontade pelos meios com que ela secostuma declarar; e depois de averiguada e conhecida, ceda-se e obedeça-se aDeus por conveniência, pois se lhe não pode resistir com força.Bem pudera conhecer Espanha, voltan<strong>do</strong> os olhos ao passa<strong>do</strong>, pela experiência,que Deus é o que desuniu de sua sujeição a Portugal, e Deus o que o sustentadesuni<strong>do</strong> e o conserva vitorioso.Quan<strong>do</strong> se soube em Madrid <strong>do</strong> rei que tinham aclama<strong>do</strong> os Portugueses noprimeiro de Dezembro <strong>do</strong> ano de 640, chamavam-lhe por zombaria rei de umInverno, parecen<strong>do</strong>-lhes aos senhores Castelhanos, que não duraria a fantasia<strong>do</strong> nome mais que até a primeira Primavera, em que a fama só de suas armasnos conquistasse. Mas são já passa<strong>do</strong>s vinte e cinco Invernos, em queinundações <strong>do</strong> Bétis e Guadiana não afogaram a Portugal, e vinte e quatroPrimaveras, em que sabem muito bem os campos de uma e outra parte osangue de que mais vezes ficaram matiza<strong>do</strong>s.Imaginou Espanha que na prisão <strong>do</strong> Infante D. Duarte atava as mãos aPortugal e lhe tirava a cabeça com que haviam de ser governa<strong>do</strong>s na guerra, eque com os muros de Milão tinha sitia<strong>do</strong> a Portugal. Morreu enfim (ou foimorto) aquele príncipe, e nem por isso desmaiou o Reino, antes se armou denovo a justiça de sua causa com a sentença daquela inocência, e seendureceram e fortificaram mais os peitos com o horror e fealdade daqueleexemplo.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 26 de 16927/08/2011Voltou-se to<strong>do</strong> o peso da guerra contra Saul; maquinou-se contra a vida de El-Rei Dom João por tantos meios e instrumentos (e algum deles sobre indecentesacrilégio); parecia-lhe a Castela que, faltan<strong>do</strong> a Portugal aquela grande alma,seria fácil a suas águias empolgarem no cadáver <strong>do</strong> Reino. Faltou El-Rei D. Joãoao Reino, sobre ter falta<strong>do</strong> de antes seu primogênito Teodósio, príncipe detantas virtudes, opinião e esperanças; mas viu o Mun<strong>do</strong>, posto que o não quisver Castela, que era o braço imortal o que defendia e conservava aosPortugueses. Sucedeu na menoridade <strong>do</strong> rei com tanta prudência e valor aregência da rainha-mãe, e à regência da rainha o governo felicíssimo de El-ReiD. Afonso, que Deus guarde, monarca de tão conhecida fortuna, que parece atraz a sol<strong>do</strong> nos exércitos.Fez Castela neste tempo os maiores esforços de seu poder, e para os poderfazer maiores, assim como por esta causa tinha já concluí<strong>do</strong> ou compra<strong>do</strong>, apreço da própria reputação, a paz de Holanda, ajustou também a de França .Desembaraçadas em toda a parte as suas armas, chamou os espíritos de to<strong>do</strong> ocorpo da monarquia aos <strong>do</strong>is braços com que Castela cerca a Portugal. Viramsejuntas contra ele em um exército Espanha, Alemanha, Itália, Flandres, comtoda a flor militar, ciência e valor daquelas belicosas nações. Mas que resultasforam as desta tão estron<strong>do</strong>sa potência e <strong>do</strong>s progressos que com ela setinham ameaça<strong>do</strong> a nós e prometi<strong>do</strong> a Europa?Entrou a guerra dividida no ano de 62 por todas nossas províncias; em todasachou oposição igual e efeito superior. Uniu-se no ano seguinte com novoconselho o poder; acrescentou-se de gente de cavalos , de cabos, de aparatosbélicos ; escolheu-se para teatro daquela formidável campanha a província deAlentejo; começou a tragédia com prósperos e alegres passos, triunfan<strong>do</strong> <strong>do</strong>sque não podiam resistir às armas castelhanas; mas o fim foi tão adverso, tãolastimoso e verdadeiramente trágico, como viu com admiração o Mun<strong>do</strong> echorará eternamente Castela. Perdeu a batalha, o exército e a reputação;deixou a Portugal a vitória, a fama, os despojos, e só levou (como sempre) odesengano.Estes têm si<strong>do</strong> em vinte e cinco anos os efeitos <strong>do</strong> poder. Passemos aos daindústria.Entendeu Castela que não podia conquistar a Portugal sem Portugal; tratou deinclinar à sua devoção os grandes e os menores. Na constância houvediferença, mas nos efeitos nenhuma. O povo, cuja fortuna é inalterável, nãopadeceu alteração. Sen<strong>do</strong> tão livre e aberto em Portugal o mar como a terra, senão viu em tantos anos nenhum pastor que se passasse a Castela com duasovelhas, nenhum pesca<strong>do</strong>r menos venturoso que aos seus portos derrotasseuma barca.Basta por exemplo ou desengano a famosa resolução <strong>do</strong> povo de Olivença , quecom parti<strong>do</strong> de poder ficar inteiro com casas e fazendas, se não achou em to<strong>do</strong>ele um só homem de espírito tão humilde, que aceitasse a sujeição. Perderamto<strong>do</strong>s a Pátria pela lealdade, triunfou Castela das paredes e Portugal <strong>do</strong>scorações. Não viu Roma semelhante exemplo, e assim o celebrou um JerônimoPetrucho poeta romano, com este epitáfio:Victor uterque manet, victoria dividit orbem:Alphonsus cives, saxa Philippus habet.Ainda deu muito a Castela em partir a vitória pelo meio: o vence<strong>do</strong>r conquistoupedras o venci<strong>do</strong> vassalos. De indústria se pudera perder á praça, só por lograra fineza; e de indústria se pudera também não ganhar, só por nãoexperimentar o desengano. Isto vence Castela, quan<strong>do</strong> vence. e assim se rendeo povo de Portugal, quan<strong>do</strong> se rende.A nobreza, em que tem maiores poderes o receio ou a esperança, como mais


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 27 de 16927/08/2011escrava da fortuna, não foi toda constante. Alguns grandes houve entre osgrandes, uns que se passaram ao serviço de El-Rei D. Filipe, outros que commaior ousadia o quiseram servir em Portugal; a uns e outros castigou o mesmobraço da Providência, a estes com a vida, àqueles com o desterro. Até agoranão tiveram outro prêmio, nem mereciam outro, porque Castela nem poderessuscitar os primeiros, nem quis pagar os segun<strong>do</strong>s.É fama que foi respondi<strong>do</strong> à sua queixa que tinham feito o que deviam, masainda devem o que fizeram: cá perderam o que tinham, lá não ganharam o queesperavam; entre os Portugueses réus, entre os Castelhanos portugueses, quetambém é culpa.Isto é o que foram buscar a Castela to<strong>do</strong>s os que lá se passaram — odesengano de seu discurso, o descrédito de sua resolução e o castigo de suaincredulidade; e ainda de lá nos mandam o exemplo de seu arrependimento.Levaram o que nos não faz falta, porque se levaram; e deixaram o que nosajuda a defender, porque nos deixaram as suas rendas. A Portugal deixaram osdespojos de suas casas, aos vin<strong>do</strong>uros a memória de sua infidelidade e aoMun<strong>do</strong> pregão de sua covardia. Tal foi o merecimento, tal o prêmio. Julgueagora Castela se terá esse interesse cobiçosos e este empenho imita<strong>do</strong>res.Dizia um <strong>do</strong>s primeiros embaixa<strong>do</strong>res de Portugal em França (quan<strong>do</strong> aindahavia quem impugnasse a esperança da nossa conservação), que, no caso emque a desgraça fosse tanta, antes se havia de entregar ao Turco que a Castela.Era o embaixa<strong>do</strong>r ministro de letras, e como um grande senhor francês lhepedisse a razão deste seu dito, sen<strong>do</strong> católico e letra<strong>do</strong>, respondeu assim:-Porque eu em Turquia, se defender a Fé, serei mártir; se renegar, far-me-ãobaxá: e em Castela Monsieur, nem baxá nem mártir.Foi muito celebrada a discrição da resposta, a que acrescentava galantaria amesma pessoa <strong>do</strong> embaixa<strong>do</strong>r; porque era mui avulta<strong>do</strong> de presença e tão bemlhe podia estar na cabeça o turbante, como na mão a palma.Nada mais venturosamente lhe sucederam a Castela as indústrias estrangeirasque as <strong>do</strong>mésticas. todas desarmou em armas contra si mesma. Em Roma,impediu o provimento das mitras. mas os bagos se converteram em lanças e oque haviam de comer os pastores das ovelhas, comem os que as defendem <strong>do</strong>slobos. Em Holanda, comprou os estorvos da paz, mas esta se retar<strong>do</strong>u somentequan<strong>do</strong> foi necessário para se recuperarem as Conquistas. Caso grande e deprovidência admirável! Em Inglaterra, se empenhou por divertir o parentesco;em França, capitulou que não pudéssemos ser socorri<strong>do</strong>s. mas teve uma eoutra diligência tão contrários efeitos, que se vêem hoje em Portugal as suasquinas tão acompanhadas das cruzes de Inglaterra, como assistida das lises deFrança. Unidas e complicadas estas três bandeiras, fazem um silogismo político,de tão segura como terrível conseqüência. Se só Portugal pôde resistir aCastela tantos anos, ajuda<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is reinos mais poderosos da Europa, no mare na terra, como não resistirá? O maior contrário que tem Espanha é o seupróprio poder. Quan<strong>do</strong> se quis levantar sobre to<strong>do</strong>s, se sujeitou à emulação deto<strong>do</strong>s. Estes terá por si Portugal, enquanto ela for poderosa; se o não for, nãoos há mister.Os discursos da esperança (que é a última apelação de Castela) são os quemais lhe mentiram, porque os homens (quan<strong>do</strong> assim lho concedamos)discorrem com a razão, e Deus obra sobre; ela. To<strong>do</strong>s os que nas matérias dePortugal se governaram pelo discurso, erraram e se perderam; e por aqui seperderam (ainda entre nós) os que na opinião <strong>do</strong>s homens eram de maior juízo.São obras e mistérios de Deus; quer Ele que se venerem com a fé e não seprofanem com o discurso. Por isso todas as esperanças que se assentaramsobre esta fé foram certas e todas as que se fundaram sobre o discurso,erradas.É natureza isto, e não milagre da palavra e promessa divinas: ...in verba tuasuper superavi — dizia aquele grande político de Deus, que não só esperava,mas sobreesperava nas promessas de sua palavra divina; porque há-de esperarnas promessas da palavra divina, sobre tu<strong>do</strong> o que promete a esperança <strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 28 de 16927/08/2011discurso humano. Assim o temos sempre visto em Portugal, com admirávelcrédito da fé e igual confusão da incredulidade.No tempo em que Portugal estava sujeito a Castela, nunca as forças juntas deambas as coroas puderam resistir a Holanda; e de aqui inferia e esperava odiscurso que muito menos poderia prevalecer só Portugal contra Holanda econtra Castela. Mas enganou-se o discurso. De Castela defendeu Portugal oReino e de Holanda recuperou as Conquistas.Aquele fatal Pernambaco, sobre que tantas armadas se perderam e seperderam tantos generais, por não quererem aceitar a empresa semcompetente exército, que discurso podia imaginar que, sem exército e semarmada, se restaurasse? E só com a vista fantástica de uma frota mercantil serendeu Pernambuco em cinco dias, ten<strong>do</strong>-se conquista<strong>do</strong> pelos Holandeses comtanto sangue em dez anos, e conservan<strong>do</strong>-se vinte e quatro.Menos esperava o discurso que se conquistasse Angola com tão desigual poderenvia<strong>do</strong> a tão diferente fim; e conquistou-se contu<strong>do</strong> aquela tão importanteparte de África contra to<strong>do</strong> o discurso e antes de toda a esperança. E porque sesaiba mais distintamente quão grandes significações se contêm debaixo destesnomes tão pequenos — Pernambuco e Angola — o que se recuperou em Angolaforam duas cidades, <strong>do</strong>is reinos, sete fortalezas, três conquistas a vassalagemde muitos reis e o riquíssimo comércio de África e América. Em Pernambucorecuperaram-se três cidades, oito vilas, catorze fortalezas, quatro capitanias,trezentas léguas de costa.Desafogou-se o Brasil, franquearam-se seus portos e mares, libertaram-se seuscomércios, seguraram-se seus tesouros. Ambas estas empresas se venceram etodas estas terras se conquistaram em menos de nove dias, sen<strong>do</strong> necessáriomuitos meses só para se andarem.Quem nestes <strong>do</strong>is sucessos não reconhecer a força <strong>do</strong> braço de Deus, duvidarsepode se o conhece. Assim assiste a Portugal dentro e fora, ao perto e aolonge, aquele supremo Senhor que está em toda a parte e que em todas as <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> o plantou e quer conservar. Bendita seja para sempre sua omnipotênciae bondade!Também esperava o discurso de Castela que os ânimos <strong>do</strong>s Portugueses, com acontinuação da guerra e experiência de suas moléstias, se enfastiassem esuspirassem pela antiga e amada paz, cujo nome é tão <strong>do</strong>ce e natural, e mais àvista de seu contrário; que as contribuições forçosas para o subsídio <strong>do</strong>ssolda<strong>do</strong>s e a licença e opressão <strong>do</strong>s mesmos solda<strong>do</strong>s fossem carga intolerávelaos povos; que os povos, depois de apaga<strong>do</strong>s aqueles primeiros fervores quetraz consigo o desejo e alvoroço da novidade, com o tempo e seus acidentes sefossem entibian<strong>do</strong>, até se esfriarem de to<strong>do</strong>; que os pais se cansassem de daros filhos e que a guerra detestada das mães (como lhe chamou o Lírico) fossetambém detestada e aborrecida das Portuguesas, que, entre as outras mães, ocostumam ser mais que todas no amor e na saudade. Mas também aqui mentiua esperança e se enganou o discurso, porque os ânimos se acham hoje maisalenta<strong>do</strong>s, os fervores mais vivos, os corações mais resolutos, o amor ao rei, àPátria e à Liberdade mais forte, mais firme e mais constante, e maior que to<strong>do</strong>sos outros afetos da fazenda, <strong>do</strong>s filhos, da vida.Lembram-se os pais que davam os filhos para as guerras de Flandres, de Itália,de Catalunha e navegação das Índias de Castela, onde os perdiam parasempre; e querem antes dá-los para as fronteiras de Portugal, onde os vêem,os assistem e os têm consigo; onde recebem a glória de ouvir celebrar as açõesde seu valor e feitos galhar<strong>do</strong>s, e vêem estampa<strong>do</strong>s seus nomes e estendidapor to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> sua fama, honran<strong>do</strong>-se (como é razão) de serem pais de taisfilhos; e que, se morrem na guerra, têm rei que lhes pague as vidas com largaremuneração de mercês e aumento de suas casas, sen<strong>do</strong> tão generosas asmães (nas quais este afeto é superior a toda a natureza), que com igual alegriaos choram e sepultam mortos gloriosamente na guerra, <strong>do</strong> que os parem ecriam para ela.Os povos não se cansam com os subsídios e contribuições; porque sabem


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 29 de 16927/08/2011quanto maiores e mais pesadas são as que se pagam em Castela para osconquistar, <strong>do</strong> que eles em Portugal para se defenderem. Vêem o fruto de seustrabalhos e suores, e que concorrem com ele para o estabelecimento e honrade sua Pátria, e não para a cobiça de ministros e exatores estranhos.Têm na memória que também antigamente pagavam, e que então era tributo<strong>do</strong> cativeiro o que hoje é preço da liberdade; sobretu<strong>do</strong> vêem a seu rei da suaNação e da sua Língua, e que o têm consigo e junto a si para o requerimentoda justiça, para o prêmio <strong>do</strong> serviço, para o remédio da opressão, para o alívioda queixa; rei que os vê e se deixa ver; que os ouve e lhes responde; que osentende e o entendem; que os conhece e lhes sabe o nome, sem a dura einsuportável pensão de o irem buscar a Madrid, não para o verem e lhefalarem, mas para o verem por fé. Conhecem a grandeza desta estimávelfelicidade, e que logram aquele esta<strong>do</strong> ditoso de que se lembravam e falavamseus avós com tanta saudade e por que suspiravam seus pais com tantasânsias; e to<strong>do</strong> o preço para a conservação de tanto bem lhos parece baratoto<strong>do</strong> o trabalho leve toda a dificuldade suave, to<strong>do</strong> o perigo obrigação. Pelocontrário, to<strong>do</strong> o pensamento que não seja desta perpetuidade, horror; toda aconveniência, ruína; toda a promessa, traição; e toda a mudança impossível.Isto é o que só tem Castela, e o que só pode esperar <strong>do</strong>s ânimos <strong>do</strong>sPortugueses. Finalmente, esperava o discurso que Portugal, como Reino menore dividi<strong>do</strong> em todas as partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, com obrigação de alimentar aquelesmembros tão distantes com sua própria substância, haven<strong>do</strong> de sustentar asguerras e oposição de seus inimigos em to<strong>do</strong>s eles, natural e necessariamentese havia de atenuar e enfraquecer; que a gente, sen<strong>do</strong> toda da mesma Nação,se havia lentamente de diminuir; que o dinheiro e cabedais, não ten<strong>do</strong> minasnem Potosis, se havia de esgotar; e que não era possível aturar por muitosanos as despesas excessivas de uma guerra interior, tão contínua, tão viva etão multiplicada em tantas províncias, cerca<strong>do</strong> dela por todas as partes, contraos combates de uma potência tão desigual e superior como era a <strong>do</strong> maiormonarca <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>; que quan<strong>do</strong> o valor <strong>do</strong>s Portugueses se atrevesse sobresuas forças, seria como o de Eleázaro contra a grandeza e corpulência <strong>do</strong>elefante, que, ainda cain<strong>do</strong>, seria sobre ele, e ficaria oprimi<strong>do</strong> e sepulta<strong>do</strong>debaixo de seu próprio triunfo, sem mais diligência nem ação que o mesmopeso e grandeza de tão imenso contrário.Verdadeiramente este discurso, humana ou gentilicamente considera<strong>do</strong>, e nãoentran<strong>do</strong> na conta desta aritmética o poder e assistência de Deus, tinha muiforçosa conseqüência, e antes da experiência mui dificultosa solução. E por taljulgaram ainda aqueles políticos que sem ódio nem amor esperavam eprognosticavam o fim e mediam a desproporção de tão desigual empresa. MasDeus (a quem não queremos roubar a glória) e a mesma experiência natural eo concurso ordinário de suas causas, têm mostra<strong>do</strong> que só era sofístico eaparente, e em realidade falso, aquele discurso.Porque as Conquistas (que era o primeiro reparo), membros tão remotos e tãovastos deste corpo político de Portugal, ainda que <strong>do</strong> Reino, como <strong>do</strong> coração,recebem os espíritos de que se animam, é tanta a cópia de alimento, e tãoabundante, que eles mesmos com suas riquezas lhe subministram, que não sótem suficiente matéria para formar os espíritos que com os membros maisdistantes reparte, mas lhe sobeja com que se sustentar a si e a to<strong>do</strong> o corpo. Ea verdade desta experiência se tem prova<strong>do</strong> com mais sensíveis efeitos depoisda paz universal das mesmas Conquistas, as quais com igual liberalidade einteresse remetem hoje ao Reino toda aquela substância que o calor da guerraprópria lhes consumia; com que se acha Portugal mais rico e abundante quenunca das utilíssimas drogas de seus comércios. E ou seja esta a causa natural,ou outra mais oculta e superior, o certo é que as rendas e cabedais <strong>do</strong> Reino,assim próprios como particulares, com o tempo c continuação da guerra, nãotêm padeci<strong>do</strong> a quebra e diminuição que o discurso lhes prognosticava; antesse prova com evidente e milagrosa demonstração da experiência, que asubstância <strong>do</strong> Reino está hoje mais grossa, mais florente e opu1enta que noprincípio da guerra; pois, crescen<strong>do</strong> mais os empenhos sempre, e desposasdela, ao mesmo passo parece que ou crescem ou se manifestam novostesouros, com que se sustentaram até agora, e se sustentam to<strong>do</strong>s os anos,sempre mais e maiores exércitos, tão notáveis por seu nome é grandeza comobizarros por seu luzimento.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 30 de 16927/08/2011Nenhum ano se pôs em campo exército tão grande, que no seguinte se nãopusesse outro maior; nenhum ano tão bizarro e tão luzi<strong>do</strong>, que no seguinte senão excedesse na bizarria e nas galas. O ano passa<strong>do</strong>, que foi o último, quan<strong>do</strong>a Primavera se acabou nos campos, se renovou outra vez no nosso exército,tanta era a variedade das cores com que os terços se matizavam e distinguiam,para que pela divisa se conhecessem os solda<strong>do</strong>s e ostentassem a competênciade seu valor. O menor gasto nos vesti<strong>do</strong>s é o que se veste; mais se gasta emcobrir os vesti<strong>do</strong>s que em cobrir os corpos. A vulgaridade <strong>do</strong> ouro e prata só seestima pelo invento e pelo artífice, e não pelo preço; a pompa, riqueza egalhardia <strong>do</strong>s cabos mostra bem que vão às batalhas como a festas, e que sevestem mais para triunfar que para vencer.Não me atrevera a falar com tanta largueza, se não pudera alegar portestemunhas os mesmos que podiam ser partes. Diga agora o algarismo de seudiscurso, se pode haver falta no necessário, onde sobeja e se dispende tantocom o supérfluo? Mais temo eu a Portugal os perigos da opulência, que osdanos da necessidade.O mesmo que se vê na política bélica das campanhas, se admira na pacífica dascidades. Com a guerra, que tu<strong>do</strong> quebranta e diminui, cresceu e se aumentoutu<strong>do</strong> em Portugal. Nunca tanto se gastou no primor e preço das galas; nuncatanto no asseio e ornamento das casas; nunca tanto na abundância e regalodas mesas; nunca tantos cria<strong>do</strong>s, tantos cavalos, tanto aparato, tanta família.nunca tão grandes salários, nunca tão grandes <strong>do</strong>tes, nunca tão grandessol<strong>do</strong>s, nunca tão grandes mercês, nunca tantas fábricas, nunca tantos e tãomagníficos edifícios, nunca tantas, tão reais e tão sumptuosas festas.Passo em silêncio os imensos gastos <strong>do</strong> serviço e majestade <strong>do</strong> culto divino,porque só o silêncio os pode explicar, não encarecer. Que templo, que capela,que altar, que santuário, que neste mesmo tempo se não renovasse,desfazen<strong>do</strong>-se e arruinan<strong>do</strong>-se (com lástima) obras antigas e de grande arte epreço, só para se lavrarem outras de novo, mais ricas, mais preciosas e demais poli<strong>do</strong> artifício? Tu<strong>do</strong> isto <strong>do</strong> que sobeja da guerra. Mas por isso sobeja.As usuras de Deus são cento por um, e estas são as minas <strong>do</strong> nosso Reino,estes os Potosis de Portugal. Destes comércios lhe vêm as riquezas com quepode pagar e premiar seus exércitos e com que os prêmios e as pagas sejamverdadeiras, e não falsificadas, sem injúria <strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s, sem adultério <strong>do</strong>smetais e sem hipocrisia da moeda.Bem sabem os <strong>do</strong>utos que o nome grego hipocrisia se deriva <strong>do</strong> fingimento <strong>do</strong>melhor metal, e parece que foi posto em nossos tempos mais para declarar ovício da moeda, que a mentira da virtude. Quem pudera nunca imaginar quechegasse a tal esta<strong>do</strong> uma monarquia, que é a senhora da prata e de quem arecebe o resto <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>? Cui<strong>do</strong>u Castela que a Portugal havia de faltar odinheiro, e vê em si o que cui<strong>do</strong>u de nós; e assim como o seu discurso errou ascontas ao dinheiro, também as errou à gente. Com verdade se podia dizer dePortugal o que <strong>do</strong>s Romanos disse o seu poeta:Per damna, per coedes ab ipso,Ducit opes, animumque ferro.Ou tenha Portugal a qualidade da hidra ou a natureza das plantas, por cadacabeça que corta a guerra em uma campanha, aparecem na seguinte duas; epor cada ramo que faltou no Outono, brotam <strong>do</strong>is na Primavera. Assim seforam <strong>do</strong>bran<strong>do</strong> e crescen<strong>do</strong> sempre os nossos presídios, assim os nossosexércitos: exército no Minho, exército em Trás-os-Montes, exército e <strong>do</strong>isexércitos na Beira, exército e florentíssimo exército, e sempre mais numeroso eflorente em Alentejo. Assim se converte e se multiplica em nova substânciatu<strong>do</strong> o que come a guerra. E: se Castela quer conhecer as causas naturaisdesta filosofia, sem serem os Portugueses dentes de Cadmo, saiba que a suareparação foi o primeiro princípio deste aumento. To<strong>do</strong>s os Portugueses que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 31 de 16927/08/2011povoavam suas Índias, que mareavam suas frotas, que lavravam seus campos,que freqüentavam seus portos, que trafegavam seus comércios, que inteiravamseus presídios, que militavam seus exércitos, ficam hoje dentro em Portugal, eo habitam e o enchem e o multiplicam, e assim se vêem hoje mais povoa<strong>do</strong>sseus lugares, mais freqüentadas suas estradas, mais lavra<strong>do</strong>s seus campos, eaté as serras, brenhas, lagos e terras, onde nunca entrou ferro, nem ara<strong>do</strong>,abertas e cultivadas. As Conquistas com a paz não levam, nem hão mistersocorros, antes delas os recebe o Reino com muitos e valentes solda<strong>do</strong>s eexperimenta<strong>do</strong>s capitães, que, ou vêm requerer o prêmio de seus antigosserviços, ou servir e merecer de novo, e justificar com os olhos <strong>do</strong> rei e <strong>do</strong>Reino as certidões mais seguras de seu valor.Foi lei, e lei prudentíssima, no princípio da guerra, que não se alistassem nelasenão mancebos livres. A sombra desta imunidade, muitos filhos por indústria<strong>do</strong>s pais se acolhiam na menoridade ao sagra<strong>do</strong> <strong>do</strong> matrimônio, com que asfamílias se multiplicavam infinitamente, e os mesmos que então se retiravamda guerra, têm hoje muitos filhos com que a sustentam e os sustentam comela.Desta maneira se acha Portugal cada dia mais forneci<strong>do</strong> de muitos e valentessolda<strong>do</strong>s, nasci<strong>do</strong>s e cria<strong>do</strong>s entre o mesmo estron<strong>do</strong> das armas, em que opelejar e o morrer não é acidente senão natureza, to<strong>do</strong>s dentro em si e nasmesmas províncias e climas, onde nada lhes é estranho, e não trazi<strong>do</strong>s porforça de Sicília, de Nápoles, de Milão e de Alemanha, compra<strong>do</strong>s e conduzi<strong>do</strong>scom imensas despesas e perigos, sen<strong>do</strong> muitos os que se alistam e pagam, epoucos os que chegam, uns para se passarem logo, como passam, a Portugal,outros para pelejarem sem amor e com valor vendi<strong>do</strong>, como quem defende oalheio e conquista o que não há-de ser seu.Os Portugueses, pelo contrário, com grande vantagem de coração pelejam pelorei, pela Pátria, pela honra, pela vida, pela liberdade, e cada um por sua própriacasa e fazenda, sen<strong>do</strong> a maior comodidade da guerra e multiplicação da gentea mesma estreiteza <strong>do</strong> Reino (que o discurso mal avaliava), por benefício daqual os exércitos e províncias se podem dar as mãos umas a outras, pelejan<strong>do</strong>os mesmos solda<strong>do</strong>s quase no mesmo tempo em diversos lugares, emultiplican<strong>do</strong>-se por este mo<strong>do</strong> um solda<strong>do</strong> em muitos solda<strong>do</strong>s, e aparecen<strong>do</strong>em toda a parte (como alma de Di<strong>do</strong>) aos Castelhanos com novo horror eassombro. Desta maneira não teme o valor português que lhe suceda como aEleázaro com o elefante, fican<strong>do</strong> oprimi<strong>do</strong> com a sua própria vitória; mas estácerto que lhe há-de suceder como a David com o gigante, logran<strong>do</strong> vivo a glóriade seu triunfo. CAPÍTULO VIII Continua a mesma matériaDesengana<strong>do</strong> por estas evidências o poder, a indústria, o discurso e esperançaespanhola, bem pudera eu esperar <strong>do</strong> juízo mais político de nossoscompeti<strong>do</strong>res e seus conselheiros, acabassem de desistir de tão infrutuosaporfia. Mas deixa<strong>do</strong>s à parte os argumentos da razão e experiência, subamosum ponto mais alto, e se atègora me ouviram como homem a racionais,ouçam-me agora como cristão a católicos.Não duvi<strong>do</strong>, nem alguém pode duvidar da fé, religião e piedade espanhola, que,se o seu católico príncipe e seus maiores conselhos se acabassem de persuadirque Deus tinha decretada a conservação e perpetuidade de Portugal,obedeceriam com suma reverência aos divinos decretos, abateriam a Deus,ainda que tremulassem vitoriosas suas católicas bandeiras, tocariam a recolherseus capitães e exércitos e confessariam, na mais levantada fortuna, adesigualdade de sua maior potência contra os acenos da divina.Isto é o que eu agora lhes quero persuadir e demonstrar, e um <strong>do</strong>s finsprincipais por que escrevo esta <strong>História</strong>, para que, pelo conhecimento denossos futuros, possam emendar o engano de suas esperanças presentes.Sempre são falsas e enganosas as esperanças humanas, mas nunca maiscertamente falsas, que quan<strong>do</strong> se opõem e encontram com as promessasdivinas. Veja e saiba Castela o que Deus tem prometi<strong>do</strong> a Portugal, e logoadvertirá a vaidade <strong>do</strong> que suas esperanças lhe prometem. Oh quantasguerras, oh quanto sangue, ou quantos tesouros balda<strong>do</strong>s poderiam poupar os


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 32 de 16927/08/2011reis, se no meio de seus conselhos pudessem pôr um espelho em que sevissem os futuros! Tal é este livro, ó Espanha, que também a ti dedico eofereço. Aqui verás os futuros de Portugal, e tu<strong>do</strong> o que podes esperar dele emsua conquista.Levantou Deus no Mun<strong>do</strong> a Jeremias por seu ministro, e a comissão e ofício quelhe deu foi esta: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas,et destruas, et dissipes, et aedifices, et plantes: «Hoje te ponho e constituosobre as gentes e sobre os reinos, para que arranques, destruas e dissipes auns; plantes e edifiques a outros.» Não quer dizer Deus que Jeremias há-dearruinar ou edificar reinos com a espada; mas que os há-de arruinar ou edificarcom as suas profecias, profetizan<strong>do</strong> a uns sua exaltação e a outros suadestruição e ruína. Se as profecias resolutamente dizem que os reinos se hãodeperder ou arruinar, aparelhem-se sem remédio para sua ruína; e se dizemque se hão-de estabelecer e exaltar, crelam sem dúvida sua conservação eaumento: Ecce constitui te super gentes et super regna.Estão os profetas e as profecias sobre às gentes e sobre os reinos, ou comoastros benignos que influem e prometem suas felicidades, ou como cometastristes e funestos, que influem e ameaçam suas ruínas. Levantem pois os reis eos reinos os olhos, olhem para estes sinais <strong>do</strong> céu, e se os virem estrelas,esperem; se os virem cometas, temam. Mas porque muitos reis esperam deonde deviam temer, por isso erram, e se despenham, e se perdem, e perecemmuitos. Se Acab, rei de Israel, temera, como devia temer, a profecia deMiqueas, desistira da conquista de Ramoth Galaad, em que tão teimosamenteinsistia; mas porque quis antes esperar, como não devera nas promessas elisonjas vãs de seus adula<strong>do</strong>res, em um dia perdeu a batalha, a conquista acoroa a vida. Não podem as armas dar a vitória a Acab quan<strong>do</strong> nas profeciasestá segura Ramoth.Clamava a profecia de Jeremias ao rei e príncipes de Jerusalém que seacomodassem com Nabuco<strong>do</strong>nosor contra o qual não podiam prevalecer; masporque El-Rei Sedecias, fia<strong>do</strong> na potência de suas armas, quis antesexperimentar a fortuna da guerra que vir a honestos parti<strong>do</strong>s com os Assírios,prevaleceram estes enfim como o profeta tinha prometi<strong>do</strong>, e o rei conheceutarde a temeridade de seu conselho.Que diferente foi o de Ciro, prudente e famoso rei de Babilônia! Entendeu estemesmo excelente príncipe, pela mesma profecia que Jeremias e pelas de outrosprofetas, que o cativeiro e sujeição <strong>do</strong>s Israelitas que ele tinha debaixo de seuimpério não queria Deus que durasse mais de sessenta anos. E tanto que estesse acabaram (sen<strong>do</strong> gentio idólatra), sem parti<strong>do</strong>, sem interesse, semobrigação nem reconhecimento, os restituiu to<strong>do</strong>s livres à sua pátria.Contentou-se o gentio com o que Deus se contentava e não quis perpetuar aservidão, quan<strong>do</strong> Deus tinha limita<strong>do</strong> anos ao castigo. Creu as profecias semserem suas ou de seus oráculos, senão <strong>do</strong>s mesmos Israelitas, porque, ten<strong>do</strong>asexperimenta<strong>do</strong> verdadeiras na sentença <strong>do</strong> cativeiro, fora cobiça e não razãotê-las por falsas na promessa da liberdade.Oh que caso tão pareci<strong>do</strong> ao nosso caso! Oh que ação tão digna de se santificare fazer cristã, passan<strong>do</strong>-a de um rei gentio a um rei católico! Quis Deus porseus altos juízos que Portugal perdesse a soberania de seus antigos reis, e quesua coroa, ajuntan<strong>do</strong>-se às outras de Espanha, estivesse sujeita a rei estranho;mas esta sujeição e este castigo, não quis o mesmo Deus que fosse perpétuo,senão por tempo determina<strong>do</strong> e limita<strong>do</strong>, e que este termo e limite fosse oespaço só de sessenta anos. Assim o diziam as profecias, e assim o provou comadmirável consonância o cumprimento delas.Só faltou para total semelhança <strong>do</strong> caso de Babilônia e para imortal glória <strong>do</strong>Ciro de Espanha que a ação fosse voluntária e não violenta; sua, e não <strong>do</strong>sPortugueses. Mas vamos às profecias <strong>do</strong> cativeiro e ao termo <strong>do</strong>s sessenta anosdele.S. Frei Gil, religloso português da ordem de S. Domingos, (de cujo espíritoprofético se dará notícia em seu lugar) diz assim: Lusitania sanguine orbuta


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 33 de 16927/08/2011regio diu ingemiscet; sed propitius tibi Deus insperate ab insperato redimet:«Portugal por orfandade <strong>do</strong> sangue de seus reis, gemerá por muito tempo; masDeus lhe será propício e, não esperadamente, será remi<strong>do</strong> por um nãoespera<strong>do</strong>.»Gemeu Portugal muito tempo, porque gemeu por espaço de sessenta anosdebaixo da sujeição de Castela; e foi ocasião desta sujeição ,e destes gemi<strong>do</strong>sficar o Reino órfão de seus reis, porque os <strong>do</strong>is últimos — D. Sebastião e D.Henrique — faltaram sem deixar sucessão; mas foi-lhe Deus propício, porquedispôs com tão notáveis sucessos a execução de sua liberdade e foi remi<strong>do</strong> nãoesperadamente, porque muitos não esperavam, antes desesperavam destaredenção; e remi<strong>do</strong> por um não espera<strong>do</strong>, porque o redentor, pelo qualgeralmente se esperava, era outro e não el-rei D. João o IV.No juramento autentico de El-Rei D. Afonso Henriques, em que se conta omiraculoso aparecimento de Cristo, quan<strong>do</strong> por sua própria pessoa quis fundaro Reino de Portugal, são bem notórias aquelas palavras mandadas anunciar aorei pelo mesmo Senhor, com o reca<strong>do</strong> de que lhe queria aparecer: Dominebono animo esto: vinces, vinces, et non vinceris. Dilectus es Domino, posuitenim super te et super semen tuum post te oculos misericordiae suae usque indecimam sextam generationem, in qua atteniabitur proles, sed in ipsaattenuata ipse respiciet et videbit: «Senhor, estai de bom animo: vencereis,vencereis e não sereis venci<strong>do</strong>; sois ama<strong>do</strong> de Deus porque pôs sobre vós esobre vossa descendência os olhos de sua misericordia até a décima sextageração, na qual se atenuará a mesma descendência, mas nela atenuadatornará a pôr seus olhos.»Até aqui a divina promessa, cujo cumprimento é tão manifesto, que quase nãonecessita de explicação. A décima sexta geração de El-Rei D. Afonso Henriques(contan<strong>do</strong> as gerações, como se devem contar, de rei a rei e de coroa a coroa)foi o Cardeal D. Henrique, como se vê pelo catálogo seguinte:I.° — El-Rei D. Sancho I;2.° — El-Rei D. Afonso II;3.° — El-Rei D. Sancho II;4.° — El-Rei D. Afonso III;5.° — El-Rei D. Dinis;6.° — El-Rei D. Afonso IV;7.° — El-Rei D. Pedro I;8.° El-Rei D. Fernan<strong>do</strong>;9º— El-Rei D. João I;10° — El-Rei D. Duarte;11.° — El-Rei D. Afonso V;12.° — E1-Rei D. João II;13.° — El-Rei D. Manuel;14.° — El-Rei D. João III;15.° — E1-Rei D. Sebastião;16.° — El-Rei D. Henrique.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 34 de 16927/08/2011Neste último rei se atenuou a descendência, porque ainda que não quebrou deto<strong>do</strong>, ficou por um fio, e fio tão delga<strong>do</strong> e atenua<strong>do</strong> como era a única casa deBragança, descendente <strong>do</strong> infante D. Duarte irmão menor de D. Henrique. Masneste fio único e tão delga<strong>do</strong> se veio a verificar que, depois da descendência deEl-Rei D. Afonso Henriques, atenuada no décimo sexto rei, tornaria Deus a porseus olhos nela, porque nela se restituiu a coroa que Cristo então lhe dava,sen<strong>do</strong> restituída (como foi) ao Duque D. João, o II de Bragança, Rei D. João, oIV de Portugal e décimo sétimo <strong>do</strong>s reis portugueses descendentes <strong>do</strong> primeiroAfonso. Por outros mo<strong>do</strong>s também verdadeiros se faz esta mesma conta, maseste temos por mais natural, mais fácil e mais conforme à mente da profecia eàs circunstancias em que naquela ocasião se falava.S. Bernar<strong>do</strong>, em uma carta escrita a El-Rei D. Afonso Henriques, com quemtinha particular e íntima amizade e correspondência, a respeito das cousaspresentes e futuras <strong>do</strong> Reino, profetizou com admirável clareza o termo <strong>do</strong>ssessenta anos de castigo e a continuação e sucessão de reis portugueses, antese depois dela. A carta é a que se segue, conservada em muitos arquivos desteReino e divulgada fora dele muitos anos antes da nossa restauração: «Dou asgraças a Vossa Senhoria pela mercê e esmola que nos fez <strong>do</strong> sítio e terras deAlcobaça para os frades fazerem mosteiro em que sirvam a Deus, o qual emrecompensação desta, que no Céu lhe pagará, me disse lhe certificasse eu dasua parte que a seu Reino de Portugal nunca faltariam reis portugueses, salvose pela graveza de culpas por algum tempo o castigar; não será porém tãocompri<strong>do</strong> o prazo deste castigo, que chegue a termos de sessenta anos. DeClaraval, 13 de Março de 1136. Bernar<strong>do</strong>».A condicional <strong>do</strong> castigo cumpriu-se por nossos peca<strong>do</strong>s, que sem dúvidadeviam ser muito grandes, mas também se cumpriu muito pontualmente que ocastigo não chegaria a termo de sessenta anos, porque El-Rei D. Filipe o II foijura<strong>do</strong> por rei de Portugal, nas Cortes de Tomar, em 26 de Abril <strong>do</strong> ano de I58I,El-Rei D. João o IV, nas cortes de Lisboa, em I3 de Dezembro de 640, quefazem 59 anos e cinco meses menos alguns dias, ou sessenta anos nãocompletos, como S. Bernar<strong>do</strong> tinha profetiza<strong>do</strong>. Outra carta temos <strong>do</strong> mesmosanto escrita ao mesmo rei, em que dá outro sinal manifesto (e também jácumpri<strong>do</strong>), <strong>do</strong> tempo em que havia de faltar a coroa, que adiante poremos.Finalmente, muitas pessoas (de cujo espírito, a respeito <strong>do</strong>s sucessos futurosde Portugal, trataremos larga e particularmente no cap. IX deste livro) não sópredisseram a sujeição <strong>do</strong> Reino a Castela, e sua liberdade, mas que o fim deuma e princípio de outra havia de ser sinaladamente no ano de quarenta, e quenaquele ano seria levanta<strong>do</strong> novo rei de Portugal e que este se chamaria D.João, com todas as outras circunstâncias tão miúdas e particulares, como severá no mesmo lugar.De maneira que por todas estas profecias consta claramente que ao Reino dePortugal haviam de faltar os reis portugueses e que esta falta havia de sucederno décimo sexto rei descendente de El-Rei D. Afonso Henriques, e que havia oReino de gemer debaixo da sujeição estranha, e que esta sujeição havia de sera Castela, e que não havia de durar mais que sessenta anos não completos, eque o termo destes sessenta anos havia de ser no ano de quarenta, e queneste seria levanta<strong>do</strong> pelos Portugueses rei novo, e que se havia de chamar D.João: as profecias o disseram e os olhos o viram.Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse perpétua,porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se Deus limitou estasujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-de conformar oshomens com seus soberanos decretos? E porque se não hão-de contentar como que Deus se contentou? Porque se não verá no católico Ciro de Espanha umato de tanta justiça e generosidade, e de tanto rendimento e obediência aDeus, como se viu no Ciro de Babilônia? Se Deus lhe deu o usufruto de Portugalpor prazo somente de sessenta anos, e estes são acaba<strong>do</strong>s, porque se há-dequerer chamar ao <strong>do</strong>mínio e prescrever contra o Céu? Se lhe parece cousa duraarrancar de sua coroa uma jóia tão preciosa como o Reino de Portugal, reparemseus prudentes e católicos conselheiros que o não era menos naquele tempo,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 35 de 16927/08/2011nem menos conheci<strong>do</strong> e celebra<strong>do</strong> no Mun<strong>do</strong> o reino de Judá, e que Ciro, reiambicioso, arrogante e gentio, nem duvi<strong>do</strong>u de o demitir de seu império.Quanto mais que por este ato de consciência, religião e cristandade, e por esteReino que Castela restituir ou consentir a Deus (pois Ele tem já restituí<strong>do</strong>), lhepode Deus dar outros maiores e mais dilata<strong>do</strong>s, com que enriqueça e sublimesua coroa e amplifique o império de sua monarquia, como sucedeu ao mesmoCiro. Por aquele ato de generosidade e desinteresse, foi Ciro tão ama<strong>do</strong> deDeus, que lhe chamava o meu rei, o meu ungi<strong>do</strong>, o meu Cristo, o meu Ciro; epelo merecimento deste obséquio e rendimento à-vontade divina lhe deu Deusem um dia o império <strong>do</strong>s Assírios, que era a primeira monarquia e universal <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, como o mesmo Ciro reconhece havê-lo recebi<strong>do</strong> da sua mão. Tão liberalé Deus com os príncipes que não regateiam reinos nem esta<strong>do</strong>s com Ele; e porum reino de tão poucas léguas de terra, qual era o de Judeia (igual com poucadiferença de Portugal), dá em prêmio e recompensa a monarquia de to<strong>do</strong> oMun<strong>do</strong>!Tais são os interesses (quan<strong>do</strong> houvera algum maior que o de obedecer aDeus), que Espanha podia esperar <strong>do</strong> desinteresse deste ato, poden<strong>do</strong> de outramaneira (para que não calemos esta verdade), temer justissimamente que àresolução e porfia contrária sucedam efeitos também contrários. Se por um atode justiça, desinteresse e obediência dá Deus uma monarquia, por um ato dejustiça, ambição e desobediência também poderia tirar outra. E já a ordem dascousas naturais as teve menos dispostas a uma grande ruína.Quero pôr aqui as palavras <strong>do</strong> Texto Sagra<strong>do</strong>, em que Ciro faz desistência <strong>do</strong>reino de Judeia e deixou aquele povo em sua liberdade, por serem mui dignasde toda a ponderação, imitação e memória. Dizem assim no I Livro de Esdras,cap. I, e são o exórdio de sua história: In anno primo Cyri, regis Persarum,utcornpleretur verbum Dominini ex ore Jeremiae, suscitavit Dominus spiritumCyri, regis Persarum, et traduxit vocem in omni regno suo, etiam perscripturam, dicens: Haec dicit Cyrus, rex Persarum: omnia regna terrae deditmihi Dominus, Deus Caeli, et ipse praecepit mihi ut aedificarem ei <strong>do</strong>mum inJerusalem, quae est in Judaea. Quis est in vobis de universo populo ejus? SitDeus illius cum ipso; ascendat in Jerusalem...Lástima é que semelhante escritura não fosse de rei católico; e maior lástimaserá ainda que, posto algum rei católico na mesma ocasião, não queiraimortalizar seu nome e religião com outro decreto semelhante.«No ano primeiro de Ciro, rei <strong>do</strong>s Persas (quem assim começou a reinar nãopodia deixar de ter tão felizes progressos), para se dar cumprimento à palavradivina declarada nas profecias de Jeremias, levantou Deus o espírito de Ciro, rei<strong>do</strong>s Persas (que só podia fazer uma ação tamanha e tão real um rei de espíritoe espíritos mui levanta<strong>do</strong>s por Deus), e man<strong>do</strong>u apregoar em to<strong>do</strong>s seus reinospor escrito firma<strong>do</strong> de sua mão este decreto: «Ciro, rei <strong>do</strong>s Persas, diz: O Rei<strong>do</strong> Céu me deu e fez senhor de to<strong>do</strong>s os reinos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e ele me-man<strong>do</strong>u quelhe edificasse casa em Jerusalém, cabeça de Judeia; pelo que toda a pessoaque houver em meus esta<strong>do</strong>s pertencente àquele povo e reino, o mesmo Deusseja com ela, e se pode tornar livremente para Jerusalém, etc.».Leiam este decreto os reis e monarcas <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, aqueles principalmente que,sen<strong>do</strong> reis e possuin<strong>do</strong> os reinos, como dizem em suas provisões por graça deDeus, com tão pouco respeito ao mesmo Deus e à mesma graça armam seusexércitos contra os alheios. Se Deus deu tantos reinos a Ciro, porque não daráCiro um reino a Deus, ainda quan<strong>do</strong> fosse seu indubitavelmente?Mas o que eu só quero ponderar, e peço por reverência <strong>do</strong> mesmo Deus aosReis Católicos, a seus conselhos e a seus letra<strong>do</strong>s ponderem, é o que Ciro, reinão católico, chama preceito de Deus neste seu edito. Não teve Ciro outropreceito ou manda<strong>do</strong> particular de Deus (como notam to<strong>do</strong>s os expositores)mais que as profecias em que estava anuncia<strong>do</strong> que, no fim de sessenta anos,havia de ser o reino e povo hebreu liberta<strong>do</strong> <strong>do</strong> cativeiro de Babilônia erestituí<strong>do</strong> à sua Pátria, coroa e liberdade; e a estas profecias chama o rei semfé preceito de Deu; a este gênero de preceito assim escrito, posto que nãointima<strong>do</strong> com outra autoridade ou solenidade, julgou que tinha obrigação deobedecer, e obedeceu com efeito, e observou em matéria tão grave e de tanto


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 36 de 16927/08/2011peso e interesse de sua coroa, como era demitir de si um povo e um reino tãonotável, de que ele já era o terceiro possui<strong>do</strong>r, porque o primeiro foiNabuco<strong>do</strong>nosor, o segun<strong>do</strong> Baltasar e o terceiro Ciro.Não sei que possa haver mais claro espelho <strong>do</strong> nosso caso. Se Espanha sequiser ver e compor a ele, leia as profecias que neste livro vão escritas e jácumpridas; veja quão legitimamente está restituí<strong>do</strong> por elas, conforme odecreto ou preceito divino, o rei e reino de Portugal, e não me creia a mim,senão a seus próprios <strong>do</strong>utores e aos que mais duramente têm impugna<strong>do</strong> emnossos dias esta parte e defendi<strong>do</strong> a contrária. Siga-se a sua <strong>do</strong>utrina e não aminha advertência.D. João de Palafoz e Men<strong>do</strong>nça, bispo de la Puebla de los Angeles, <strong>do</strong> conselhosupremo de Aragão na sua <strong>História</strong> Real Sagrada, escrita, como se vê emtantos lugares, mais para contradizer o novo Reino de Portugal, que parahistoriar o de Saul impugnan<strong>do</strong> a eleição de El-Rei D. João o IV, cujo nome sedissimula, e ponderan<strong>do</strong> augusta e <strong>do</strong>utamente os sinais com que se havia dejustificar para ser 1egitima e de Deus, com maior elegância que decência,porque o afeto lhe fez corromper a pureza de seu estilo, diz assim:«Hazia-se una mudança tan grande en Israel, como acabarse el gobierno de losJuezes, que havia dura<strong>do</strong> quinjentos años, y começar el de los Reyes escogiasepara principe un hombre, que ayer era subdito y labra<strong>do</strong>r; el que antes eracompañero avian de venerarlo por rey. Pues para cosa tan grande, de tan raray de tales y tan graves dependencias, vayanse a sus casas los Israelitas,duerman y piensem sobre ello; buelva otra vez Samuel a la oracion, digale elSenor a que hora vendrá el dia siguiente, el destina<strong>do</strong> al império; suceda laprofecia buelva-se otra vez dezir que aquel es el hombre, llevele a su casa,conozcale y reconozcale; unjale, y ungi<strong>do</strong>, justifique su vocacion con algunasprofecias y senales de lo que le ha de succeder despues de ungi<strong>do</strong>, coh que elProfeta quede con quietud y sossiego de que áquello le mandò el Senor; yelegi<strong>do</strong> jostifique la jorisdiccion, y se tenga por principe legitimo y llama<strong>do</strong> deDios al gobierno.»Três cousas requer Palafoz, ou três circunstancias em uma, para que a vocação<strong>do</strong> rei se justifique ser de Deus e para que os ministros que o ungiram (comoSamuel e Saul) fiquem com quietacão e sossego de ser aquele o que Deusman<strong>do</strong>u ungir, e para que o mesmo rei ungi<strong>do</strong> e eleito justifique sua jurisdiçãoe se tenha por príncipe legítimo e chama<strong>do</strong> por Deus ao governo. E quais sãoestas três cousas ou circunstancias?As mesmas que intervieram e sucederam na eleição e unção de Saul: Primeira,haver profecia de ser Saul o destina<strong>do</strong> por Deus ao império; segunda, que aprofecia não seja só uma, senão algumas; terceira, que essas profeciassucedam, assim como estavam preditas e profetizadas.Verdadeiramente estas palavras <strong>do</strong> bispo Palafoz:Cum esset pontifex anni illius, me parecem ditadas por algum espírito e intentosuperior, para que, sen<strong>do</strong> ditas como as de Caifaz, com tão diverso e contráriointento, fossem verificadas no mesmo príncipe e no mesmo Reino que elequeria impugnar e destruir, e sua mesma acusação seja um testemunho públicoe mais qualifica<strong>do</strong> da justiça e justificação de nossa causa.Se Palafoz pede profecias, damos a Palafoz profecias, e não profecias daqueledia. como as de Samuel, senão de cento, de trezentos e de quinhentos anosantes, que são as mais qualificadas e livres de suspeita, e que só podem serditadas e inspiradas por aquela sabe<strong>do</strong>ria eterna a quem os futuros sãopresentes. E tais são as que pouco antes alegamos porque as últimas haviacem anos que estavam escritas, as de S. Frei Gil, trezentos anos e as de S.Bernar<strong>do</strong> e de El-Rei D. Afonso Henriques mais de quinhentos, e todas públicas,autênticas e justificadas com o testemunho universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, que as tinhavisto e li<strong>do</strong>.Se Palafoz pede que a profecia não seja só uma senão algumas, como as deSamuel foram três, não só damos a Palafoz três profecias, senão trinta


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 37 de 16927/08/2011profecias, e três vezes trinta, as quais se poderão ver no cap. VI desteanteprimeiro livro, porque tantas são (se bem se distinguirem e contarem) ascousas diversas e profetizadas que ali se referem todas, não só futuras, mas defuturos livres e contingentes, que nenhum entendimento humano, diabólico ouangélico, podia tantos anos prever nem conhecer sem revelação de Deus, quesão as condições que propriamente se requerem para a verdadeira, rigorosa eprovada profecia, como é sentença comum <strong>do</strong>s teólogos e se provará larga edemonstrativamente em seu lugar.Finalmente, se Palafoz pede que as mesmas profecias sejam provadas econfirmadas com o sucesso assim antes como depois de o rei ser eleito eungi<strong>do</strong> no alega<strong>do</strong> cap. VI se verão as mesmas profecias declaradas eajustadas com o sucesso; algumas delas cumpridas antes da restituição ecoroação de El-Rei D João IV, outras no mesmo caso e circunstancias de suarestituição, e as demais desde aquele tempo até o ano de 663, além de muitasoutras que estão ainda por cumprir, que se lerão no discurso desta <strong>História</strong>,com cujo efeito, de que se não deve duvidar (como também provaremos), seirá cada dia confirman<strong>do</strong> reais e mais a mesma verdade, bastan<strong>do</strong> e sobejan<strong>do</strong>a décima parte das profecias já cumpridas, para se justificarsuperabundantemente, conforme a <strong>do</strong>utrina de Palafoz, com grande quietaçãoe sossego <strong>do</strong>s ânimos, que a vocação daquele rei foi de Deus mandada eordenada por ele e que a sua jurisdição é verdadeira e legítima, como depríncipe notoriamente chama<strong>do</strong> e destina<strong>do</strong> pelo mesmo Deus ao império. Talfoi a eleição de Saul; tal a de El-Rei D. Afonso Henriques, funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Reino dePortugal; e tal a de El-Rei D. João, seu restaura<strong>do</strong>r.Não deixarei também de lembrar aqui que não são tão novas e desconhecidasem Castela as profecias ou esperanças de Portugal, que não façam mençãodelas seus autores, aplican<strong>do</strong>-as a primeira parte deste mesmo caso nosso, enão duvidan<strong>do</strong> que dele falavam e dele se haviam de entender.D. João de Horosco e Covarrovias, arcediago de Cuellar na igreja de Segóvia,no seu Trata<strong>do</strong> de la verdadeira y falsa profecia, Liv. I, cap IV, diz assim: —«...desta manera tuvo yo noticia de [un çapatero en Portugal que fue teni<strong>do</strong>por propheta, y era aver ley<strong>do</strong> en] algunas prophecias como las de S. Isi<strong>do</strong>ro, y[...] tengo notada una, en que a mi parecer se dixo mucho ha, el aver de jutarseaquel reyno de Portugal con el nuestro, con harta particularidad.»Até aqui no corpo <strong>do</strong> livro; e comentan<strong>do</strong> à margem o seu mesmo texto, põe astrovas seguintes:Vejo, vejo, <strong>do</strong> Rey vejo(Vejo, o estoy sonan<strong>do</strong>?)Simiente de rey Fernan<strong>do</strong>Hazer un forte despejo,E seguir con gran desejo,Y dexar acá sua viñaY decir, esta casa es miña,En que aora acà me vejo.A tradução não é muito limada, mas a explicação é muito própria, muitoacomodada e muito bem deduzida; porque, sen<strong>do</strong> o intento e o assunto outema daquela profecia predizer os sucessos futuros de Portugal depois de suarestauração, como se tem visto foi princípio muito conveniente à ordem <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 38 de 16927/08/2011mesmos sucessos começar pela sujeição <strong>do</strong> mesmo Reino a Castela, e pelaentrada <strong>do</strong>s reis castelhanos em Portugal. E se o verdadeiro profeta e primeiroautor desta profecia é Santo Isi<strong>do</strong>ro, e não outro, tanto melhor, porque temosmais qualifica<strong>do</strong> autor e mais autoriza<strong>do</strong> profeta.Mas vejamos de caminho que é o que diz Santo Isi<strong>do</strong>ro, e como avalia estaação <strong>do</strong> rei, semente de El-Rei D. Fernan<strong>do</strong>, que foi seu neto Filipe II.O nome que dá a esta ação Santo Isi<strong>do</strong>ro é chamar-lhe despejo, que em tomcastelhano quer dizer desverguença; e chamar-lhe despejo forte, porque foidespejo arma<strong>do</strong> de poder e de exércitos, e não (como devera ser) de justiça;ou lhe chama também forte, porque às cousas feitas sem razão chamamosforte cousa, como se dissera: Forte cousa é, e despejo grande que estan<strong>do</strong> emPortugal a senhora Dona Catarina, neta legítima de El Rei D. Manuel e filhaherdeira <strong>do</strong> Infante D. Duarte, e deven<strong>do</strong> preceder a to<strong>do</strong>s os pretensores dacoroa, assim pelo direito comum da representação, como pela leis particulares<strong>do</strong> Reino, que não admitem à sucessão príncipe estrangeiro, um rei que eradescendente de Fernan<strong>do</strong>, por antonomásia chama<strong>do</strong> o Rei Católico, se viessepor força introduzir na casa alheia, sem mais razão nem justiça que meter-senela e dizer: «Esta casa é minha, em que agora cá me vejo».Basta, Rei católico e descendente de católico, que porque vos vedes meti<strong>do</strong> nacasa alheia, por isso haveis de dizer: «Esta casa é minha»?!Não debalde o santo arcebispo se espanta tanto de uma tal ação, que depois dea estar ven<strong>do</strong> com espírito profético, ainda duvida se era visão ou sonho: Vejo,vejo, <strong>do</strong> rei vejo, vejo, ou estou sonhan<strong>do</strong>? Mas o efeito mostrou que não erasonho, senão visão verdadeira, posto que visão de um caso tão dificultoso decrer. E pois o meterem se os Castelhanos em Portugal foi despejo, razão foitambém que os fizessem despejar. Mas não é este o meu intento, nem estailação a que eu quero inferir.Diz o Doutor Horosco e Covarrovias que nesta profecia está profetiza<strong>do</strong> conharta particularidad, haver de juntar-se aquel reino de Portugal con el nuestro.Bem dito. Mas se este mesmo autor, e este mesmo texto, e este mesmo SantoIsi<strong>do</strong>ro diz que o Reino se há-de restituir outra vez, e com muito maiorparticularidade, no ano de quarenta, e què o seu rei se há-de chamar D. João;se isto, digo, está bem profetiza<strong>do</strong>, e profetiza<strong>do</strong> no mesmo livro e no mesmotempo, e alega<strong>do</strong> o mesmo <strong>do</strong>utor; porque não hão-de crer os Horoscos eCovarruvias castelhanos nesta segunda parte da mesma profecia, assim comocreram na primeira? De maneira que, quan<strong>do</strong> as profecias de Portugalprofetizam que Portugal se há-de ajuntar a Castela, são profecias; e quan<strong>do</strong>profetizam que Portugal se há-de tornar a separar de Castela e se há-derestituir à sua liberdade, não são profecias?!Não o havia de julgar o mesmo Horosco e o mesmo Covarruvias, nem o julgouassim o mesmo Santo Isi<strong>do</strong>ro. Forte despejo foi aquele, mas ainda estaconseqüência é mais forte. Ora, Senhores, acabemos de crer a Deus, que nemEle pode mentir, nem nós o podemos enganar. Sei eu e sabe Portugal, eCastela também o sabe, quanto cuida<strong>do</strong> lá davam antes deste tempo e quantotemor se tinha de nossas profecias; e não enten<strong>do</strong> agora como, depois delascumpridas e qualificadas com tão maravilhosos efeitos se lhos tem perdi<strong>do</strong> areverência. Em seu lugar, como tenho prometi<strong>do</strong>, se verá tão demonstrada asua verdade, que nenhum ódio nem interesse possa negar que são de Deus; eque, em conseqüência, será indigno de to<strong>do</strong> o juízo porfiar ainda contra elasdepois de tão conhecidas.Conhecia Herodes a verdade das profecias; inquiriu por elas o tempo, o lugar<strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> Rei profetiza<strong>do</strong>, e logo armou contra Ele a crueldade de seusexércitos. Até aqui podia chegar a loucura e a cegueira de um mal aconselha<strong>do</strong>príncipe: crer a verdade das profecias, e esperar prevalecer contra elas porforça de armas. Mas que efeito tiveram ou que façanhas obraram os exércitosde Herodes? Contra o rei e contra o reino que pretendia estorvar, nenhumacousa. Só se afogou Belém em sangue e na<strong>do</strong>u em lágrimas; só se ouviram emRamá e no Céu as queixas e lamentações de Raquel. Este é o fim sem outrofruto de tão desesperadas resoluções: sangue inocente derrama<strong>do</strong>, lágrimas,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 39 de 16927/08/2011queixas, lamentações, clamores, e não <strong>do</strong>s outros, senão <strong>do</strong>s próprios vassalos.Vassalos eram <strong>do</strong> mesmo Herodes to<strong>do</strong>s os que morreram em Belém: cobriu deluto o reino próprio, e não pôde atalhar com tantos rios de sangue osprogressos <strong>do</strong> que procurava impedir, porque estava destina<strong>do</strong> por Deus ao<strong>do</strong>mínio de seu verdadeiro Senhor e firma<strong>do</strong> com sua palavra.Considere Castela contra quem peleja, e conhecerá quão impossível é aempresa a que aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal,senão contra a firmeza da palavra e promessas divinas. Talar as nossascampanhas, vencer em batalha os nossos exércitos, sitiar as nossas cidades,bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode ser; mas fazerbrecha na firmeza da palavra divina é impossível. Não há muro tão gasta<strong>do</strong> daAntigüidade e tão fraco em Portugal, em cujas pedras não esteja escrito comletras de bronze: Verbum Domini manet in aeternum.Reparem os famosos capitães de Castela e considerem seus prudentíssimos eexperimenta<strong>do</strong>s conselheiros, apartan<strong>do</strong> os olhos por um pouco de Portugal, sese acham seus exércitos com forças e poder bastante para conquistar Europa,para sujeitar todas as quatro partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e ainda para escalar, como filhos<strong>do</strong> Sol, o Céu, e tirar dele a Júpiter pois saibam que mais fácil será conquistarEuropa, o Mun<strong>do</strong> e o mesmo Céu empíreo, <strong>do</strong> que vencer e sujeitar Portugal,defendi<strong>do</strong> e arma<strong>do</strong> como está com as promessas divinas: Coelum et terratransibunt, verba autem mea non praeteribunt. Pelejem primeiro contra afirmeza da palavra de Deus batam, abalem, derribem, desfaçam este castelo, edepois dele rendi<strong>do</strong>, então poderão conquistar Portugal. Perguntem a El-ReiJosé e a El-Rei Acab com as forças de <strong>do</strong>is tão poderosos reinos uni<strong>do</strong>s, porquenão conquistaram a Ramoth? Perguntem a Benedad, rei de Síria, e aos trinta e<strong>do</strong>is reis que o acompanhavam, porque uma e outra vez não conquistaramSamaria, sen<strong>do</strong> tanto o número de seus solda<strong>do</strong>s, que com um punha<strong>do</strong> deterra que cada um lançasse sobre ela (como eles diziam) a podiam sepultar?Perguntem ao soberbíssimo Senaquerib vence<strong>do</strong>r de tantas nações, com to<strong>do</strong> oestron<strong>do</strong> de tantos mil carros de guerra e tão inumeráveis exércitos de pé e decavalo, porque não chegou a meter uma seta dentro <strong>do</strong>s muros de Jerusalém?Porque Ramath estava defendida com uma profecia de Miqueas; Samaria comuma profecia de Eliseu; Jerusalém com uma profecia de Isaías.Mas deixa<strong>do</strong>s exemplos das Escrituras e profecias canônicas, ouçam também asnossas, que, sen<strong>do</strong> de inferior autoridade, também foram ditadas, como depoisse verá, pelo mesmo espírito.Porque puderam romper os Portugueses os claustros impenetráveis <strong>do</strong> Oceano,e conquistaram nas outras três partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> um Reino tão pequeno,tantas, tão novas e tão poderosas nações, senão porque estava escrito?Porque, estan<strong>do</strong> sujeitos a Castela e debaixo de seus presídios, sacudiram tãofeliz e animosamente o jugo, e em um dia restauraram sua liberdade, emPortugal, na África, na Ásia e na América, senão porque estava escrito? Porqueontem, na memorável batalha <strong>do</strong> Cano, com parti<strong>do</strong> tão desigual, romperamum tão luzi<strong>do</strong> e poderoso exército forma<strong>do</strong> mais de capitães que de solda<strong>do</strong>s, eescalaram com tanta facilidade aquelas montanhas ou muralhas da natureza, aque o seu general chamou castelos de Milão, senão porque estava escrito? Poisse a conservação, a liberdade e perpetuidade, as vitórias e outros maiorestriunfos de Portugal estão também escritos com as mesmas letras e dita<strong>do</strong>spelo mesmo espírito, que esperança ou desesperação é pretender conquistar aPortugal? Oh, acabe de entender Castela quem defende Portugal e contra quempeleja! Com mui desigual inimigo se toma, quem quer guerrear contra Deus!Não é nem pode ser nossa intenção diminuir as forças de Espanha, nemescurecer a grandeza de sua potência, tão conhecida <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> e tãotemida e reverenciada de seus inimigos e invejada de seus êmulos. Mas é forçaque ela e nós confessemos que são maiores os poderes de Deus, e que,assistida deles, a desigualdade de Portugal pode resistir e prevalecer contraEspanha, como lhe tem resisti<strong>do</strong> e prevaleci<strong>do</strong> em tantos anos.Dizem as fábulas, com significação não fabulosa mas verdadeira, que quan<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 40 de 16927/08/2011Páris houve de ferir mortalmente o impenetrável corpo de Aquiles, uniu o deusApolo a mão de Páris com a sua e ambas juntas dispararam a seta fatal.Compara<strong>do</strong> o braço de Páris com o de Aquilles, mão por mão e braço por braço,mais forte é o de Aquiles; mas compara<strong>do</strong> o de Aquiles com o de Páris,acompanha<strong>do</strong> de Apolo mais forte é o de Páris. Não foi só a espada de Gedeãoa que com tão poucos solda<strong>do</strong>s venceu os exércitos <strong>do</strong>s Madianitas, mas aespada de Gedeão maneada pelo seu braço e pelo de Deus, juntamente:Gladius Domini et Gedeonis. Contra a espada de Gedeão naturalmente pareceque haviam de prevalecer os exércitos madianitas; mas contra a espada deGedeão e de Deus, nenhum poder humano pode prevalecer. Não peleja Castelasó contra os exércitos de Portugal, mas contra o Senhor <strong>do</strong>s exércitos.No dia memorável da restituição de Portugal (ou fosse milagre ou mistério), écerto que a imagem de Cristo crucifica<strong>do</strong> despregou publicamente o braço asportas daquele santo português que tem por graça própria sua recuperar operdi<strong>do</strong>. Contra o braço estendi<strong>do</strong> de Deus, que força dá que possa prevalecer,nem ainda resistir? Este é aquele braço omnipotente, que tira os poderosos <strong>do</strong>trono e levanta a ele os humildes ou os humilha<strong>do</strong>s, como fez naquele dia.Grande glória é de Portugal ter em seu favor o braço de Deus; mas não foimenos honra e autoridade de Castela, que fosse necessário o braço de Deus aPortugal para se libertar da sua sujeição.Menos que o braço e menos que toda a mão de Deus, bastou para livrar o povode Israel <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> grande rei Faraó o de<strong>do</strong> de Deus. O de<strong>do</strong> de Deus é este— lhe disseram os seus sábios: Digitus Dei est hic. E verdadeiramente foigrande dureza de entendimento imaginar Faraó que podiam prevalecer seusexércitos contra um de<strong>do</strong> da mão de Deus, quanto mais contra toda a mão.Assim lho remoqueou Moisés, quan<strong>do</strong> escreveu aquela história: InduravitDominus cor Pharaonis, regis Egypti, et persecutus est filios Israel, at illiegressi erant in manu excelsa.Notem muito estas últimas palavras os reis e seus conselheiros: At illi egressierant in manu excelsa. Se a mão <strong>do</strong> Altíssimo é a que assistiu aos liberta<strong>do</strong>s,quan<strong>do</strong> eles saíram <strong>do</strong> cativeiro, em vão se cansa Faraó em tirar carruagens,cavalarias e exércitos contra eles, senão é que o juízo divino os leva ao MarVermelho e os chama lá alguma oculta fatalidade. Bem se viu neste caso, tãohorren<strong>do</strong>, quão gravemente se ofende Deus de que ninguém presuma cativar aquem ele liberta.Desengano, Senhores meus; falemos e ouçamos como católicos. O que Deusfaz, só Deus o pode desfazer; o que Ele levanta, só Ele o pode derribar. Bemsabe Castela (sinal é que o sabe bem, pois chega a o confessar, e no mesmoano em que Portugal se havia de levantar, o estamparam assim seus escritos)bem sabe Castela (digo) que Portugal com singularidade única entre to<strong>do</strong>s osreinos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> foi reino da<strong>do</strong>, feito e levanta<strong>do</strong> por Deus, naqueles mesmoscampos e naquela mesma província onde to<strong>do</strong>s os anos trabalham e batalhamos homens pelo derribar, pelo desfazer e pelo tirar a quem foi da<strong>do</strong>.Se Deus o deu, como o podem os homens tirar? Se Deus o fez, como o podemos homens desfazer? Se Deus o levantou, como o podem os homens derribar?E se Deus prometeu que na décima sexta geração atenuada poria os olhos nelapara o restituir, como há quem tanto à vista <strong>do</strong>s olhos de Deus queira triunfarsobre suas promessas e irritar seus decretos? Até a superstição <strong>do</strong>s Gentiosconheceu a conseqüência desta verdade, e que os reinos funda<strong>do</strong>s por umDeus, ainda quan<strong>do</strong> houvesse muitos deuses, só o mesmo Deus os podiaarruinar. Esta foi a teologia com que os <strong>do</strong>is príncipes <strong>do</strong>s poetas no in cêndio edestruição de Tróia introduziram ao Deus Neptuno, baten<strong>do</strong> com o tridente osmuros que ele mesmo tinha funda<strong>do</strong>.Naquela noite em que Cristo por sua própria Pessoa fun<strong>do</strong>u o Reino dePortugal, aparecen<strong>do</strong> e falan<strong>do</strong> ao seu primeiro rei, disse: Ego aedificator etdissipator regnorum alque imperiorum sum. Volo enim in te et in semine tuoimperíum mihi stabilire ut deferatur nomen meum in exteras nationes: «Eu souo funda<strong>do</strong>r e destrui<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s reinos e <strong>do</strong>s impérios, e quero em ti e em teusdescendentes fundar um império para mim, pelo qual o meu nome seja leva<strong>do</strong>às nações estrangeiras.:»


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 41 de 16927/08/2011Se Deus é o monarca supremo e universal, que funda e desfaz os reinos e osimpérios e com tão especia1 solenidade fun<strong>do</strong>u por sua própria Pessoa nos reisportugueses de Portugal, quem haverá, que não seja o mesmo Deus, que opossa desfazer e dissipar?Ponderem-se muito aquelas três cláusulas — in te mibi stabilire. Se Deus ofun<strong>do</strong>u em nós — in te — quem o poderá arrancar de nós? Se Deus o quis parasi –mihi- como o poderá ser de outrem? E se Deus prometeu de o estabelecer— stabilire- como o podem os homens arruinar? Acabem de conhecer os que seprezam de conhecer a Deus, que são homens; e tenham-se por homens, porracionais e por conselheiros, os que seguirem os ditames deste conhecimento.Na prodigiosa batalha das Linhas de Elvas, quan<strong>do</strong> o duque-general, primeiroministro de Espanha, se viu tão inopinadamente de conquista<strong>do</strong>r, conquista<strong>do</strong>,as trincheiras entradas, os esquadrões rotos, os fortes rendi<strong>do</strong>s, o exércitodesbarata<strong>do</strong>, as palavras com que se retirou, como tão prudente e tão católicocapitão, foram:— Contra Dios no valen manos.Se este ditame tão são, tão verdadeiro e tão evidente se seguira desde aqueledia. quanto sangue que ao depois se derramou estivera guarda<strong>do</strong> nas veias ouse tivera de uma e outra parte emprega<strong>do</strong> em serviço daquele grande Senhor,contra o qual não valem mãos nem vali<strong>do</strong>s? Contra a evidência e fé destarazão, que não tem resposta, costuma atravessar o Demônio aquela torpeza <strong>do</strong>Inferno, a que os homens com nome especioso e significação verdadeirainfernal chamaram reputação. Dizem que não convém à reputação <strong>do</strong> grandemonarca das Espanhas desistir da empresa de Portugal, não pelo que ele é,mas pelo que dirá o Mun<strong>do</strong>. Como se não estivéramos no mesmo Mun<strong>do</strong> emque ontem o mesmo monarca cedeu às Províncias Unidas <strong>do</strong>s Países-Baixosto<strong>do</strong>s aqueles esta<strong>do</strong>s de que com tão diferentes direitos era herdeiro elegítimo senhor!Mas para o nosso caso não são necessários exemplos, nem têm lugar, porque édiverso de to<strong>do</strong>s e de superior jerarquia. E quan<strong>do</strong> concedêssemos aos políticosque, para vaidade fantástica da opinião, se deviam arrastar tantos respeitossóli<strong>do</strong>s e verdadeiros, como eles falsamente ensinam, em nenhum caso da paze recíproca desistência das armas esteve mais segura e mais honrada areputação de Espanha e de seu grande monarca, que no da guerra presente.Pelo mesmo fundamento e único em que se funda to<strong>do</strong> este discurso, emceder, obedecer a Deus e não resistir à sua vontade conhecida, nunca se perdenem pode perder reputação, antes se ganha a maior e mais qualificada detodas; porque, se a reputação consiste no juízo <strong>do</strong>s homens, nenhum juízohaverá no mun<strong>do</strong> católico, político, nem ainda gentílico, que não estime evenere uma tal ação pela mais cristã, mais justa, mais prudente, maisgenerosa, mais heróica de quantas honraram a memória <strong>do</strong>s maiores príncipes.Quan<strong>do</strong> Moisés foi notificar da parte de Deus a El-Rei Faraó, que desseliberdade ao povo de Israel, que havia tantos anos tinha debaixo de seu<strong>do</strong>mínio, o que respondeu foi:— Nescio Dominum et Israel non dimittam: «Não conheço esse Deus, e nãohei-de demitir a Israel.»Não disse que não queria obedecer a Deus, senão que o não conhecia; porqueo príncipe que conhece a Deus, ainda que seja tão bárbaro e arrogante comoFaraó e em matéria de tanto peso e interesse, como demitir de si o <strong>do</strong>mínio deuma nação inteira e tão populosa não pode duvidar de obedecer e se sujeitar àsua vontade. E porque Faraó o não fez assim, ainda que gentio e semconhecimento de Deus, a reputação que granjeou com aquela teimosaresolução é a que hoje tem no Mun<strong>do</strong>, e terá enquanto durarem os LivrosSagra<strong>do</strong>s, de bárbaro, de néscio, de obstina<strong>do</strong> de ímpio rei e de inimigo edestrui<strong>do</strong>r (como foi por isso mesmo) de seu império.Resistir a uma razão tão evidente como a que diz — assim o quer Deus — , étão indigna e tão afrontosa resistência, que nenhuma razão de esta<strong>do</strong> a podejustificar, ainda que se perdesse o mesmo esta<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 42 de 16927/08/2011Depois da morte de El-Rei Saul, o tribo de Judá seguiu as partes de David, e osoutros onze tribos obedeceram e juraram por seu rei a Isboseth, filho herdeiro<strong>do</strong> rei defunto.Seguiram-se bravas guerras entre um e outro parti<strong>do</strong>; duraram sete anos, e ofim notável em que vieram a parar foi que os onze tribos deixaram a Isboseth evoluntariamente se entregaram e sujeitaram to<strong>do</strong>s a David; e a maiorcircunstancia <strong>do</strong> caso é que, sen<strong>do</strong> ao parecer tão indignas as condições dapaz, ela se ajustou em um dia sem o media<strong>do</strong>r Abner sem haver em to<strong>do</strong>s os<strong>do</strong>ze tribos um só homem que falasse uma palavra em contrário, nem ainda omesmo Isboseth, que ficara priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> reino de seu pai, passan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> aDavid, que ontem era seu vassalo.Mas que razões tão fortes e de tanta eficácia foram as que representou Abnerpara persuadir e concluir tão breve e subitamente um negócio tamanho, emque os interesses, a honra e a reputação de to<strong>do</strong>s estava tão empenhada, emuito mais a <strong>do</strong> mesmo rei?A razão foi uma só e esta que estou alegan<strong>do</strong>: ...quoniam locutus est Dominus.Propôs Abner aos tribos que a vontade de Deus era que David fosse rei, como otinha declara<strong>do</strong> o profeta Samuel; e contra esta proposta não houve rei, nemconselheiros, nem vassalos que repugnassem ou respondessem, porqueentenderam que o interesse de obedecer a esta razão era o maior de to<strong>do</strong>s osinteresses, e que debaixo dela, não só ficava salva a honra e a reputação, mashonrada a mesma honra.Assim como o vassalo nunca pode perder a honra e reputação, senão ganhá-laem obedecer ao rei, assim o rei nunca a pode perder em obedecer a Deus,senão ganhá-la, segurá-la e acrescentá-la muito.E se buscarmos a raiz desta verdadeira razão, achá-la-emos, sem muito cavar,no supremo <strong>do</strong>mínio de Deus, que, como Senhor absoluto <strong>do</strong>s reinos e <strong>do</strong>simpérios, os pode dar e tirar inteiros quan<strong>do</strong> lhe parecer, e também dividi-los eparti-los quan<strong>do</strong> é servi<strong>do</strong>. David, como acabamos de ver, começou com parte<strong>do</strong> reino de Israel, e depois inteirou-lhe Deus o império e reinou sobre toda aJudeia. Seu filho Salomão logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seuneto Roboão entrou no império também inteiro, mas em seu reina<strong>do</strong> lho dividiuDeus, e deu parte dele a Jeroboão.O mesmo sucedeu ao império de Espanha nos últimos três reis dela. Filipe IIcomeçou a reinar com parte, e depois com a união e sujeição de Portugal,inteirou-lhe Deus o império de toda Espanha.Seu filho Filipe III logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu netoFilipe IV entrou no império também inteiro, mas em seu reina<strong>do</strong> lho dividiuDeus, e deu a Portugal a parte que lhe pertencia.Antes <strong>do</strong> Reino de Israel se dividir entre Reboão e Jeroboão, tomou o profetaAhías a sua capa cortada em <strong>do</strong>ze partes, e destas <strong>do</strong>ze deu dez a Jeroboão,em sinal de que Deus o queria fazer rei de dez tribos de Israel.Note-se aqui, e note-se muito, que os profetas são os que dividem os reinos eos que os repartem: eles os dividem primeiro, profetizan<strong>do</strong>, e depois Deusexecutan<strong>do</strong>. E se o profeta Ahías pôde partir a sua capa e dar parte dela a El-Rei Jeroboão, e parte a El-Rei Roboão, porque não poderá Deus partir tambéma sua, e da púrpura inteira que tinha da<strong>do</strong> ou empresta<strong>do</strong> a um rei, cortar umretalho para vestir e coroar outro?Ah! se os reis e monarcas considerassem que as purpuras que vestemlhas ,empresta Deus da sua guarda-roupa, para que representem o papel dereis enquanto ele for servi<strong>do</strong>! E se o Roboão de Israel se contenta com que lhetirem dez partes <strong>do</strong> Reino e lhe deixem uma (assim o diz expressamente oTexto Sagra<strong>do</strong>: Porro una tribus remanebit ei; porque o tribo de Benjamim, queficou a Roboão juntamente com o de Judá, por sua pouquidade não fazianúmero - era outro Algarve em respeito de Portugal); e se o Roboão de Israel


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 43 de 16927/08/2011(como dizia) se contenta com que lhe tirem dez tribos e lhe deixem uma sóparte, porque se não contentaria o Roboão de Espanha, quan<strong>do</strong> lhe tire omesmo Dono um reino, se lhe deixa dez?Oh! como se pode temer que chame Deus ingratidão ao que os homenschamam reputação! A maior reputação de um príncipe que conhece a Deus ereconhece seu supremo <strong>do</strong>mínio, é dizer como Héli ainda quan<strong>do</strong> se vissedespoja<strong>do</strong> de tu<strong>do</strong>: Dominus est; quod bonum est; in oculis suis faciat.E se esta razão, ainda em termos tão aperta<strong>do</strong>s, é sempre verdadeira, quantomais no caso presente, em que a grandeza de Espanha e sua potência, é omaior seguro de sua reputação!Pedir paz quem se não pode defender da guerra, poderá ser menor crédito;mas dar a paz, não porque a há mister, senão porque a quer dar, quem podefazer e apertar a guerra, sempre é generosidade, honra, reputação e glória. Ogrande poder é muito confia<strong>do</strong>. Poder pôr em campo <strong>do</strong>ze legiões de anjos, emandar embainhar a espada a Pedro, foi a maior glória <strong>do</strong> poder supremo. Nãopode dar mais a fortuna a um príncipe que poder o que quer; nem podeexceder um príncipe essa mesma fortuna mais que não queren<strong>do</strong> o que pode; enão poder querer o que Deus não quer, ainda é um ponto mais alto sobre agrandeza. Mas se em toda a idade tem decência e decoro a gentileza destaresolução', nos maiores anos ainda é incomparavelmente maior.Pelejaram os pastores de Abraão com os de Loth, os <strong>do</strong> tio com os <strong>do</strong> sobrinho.Abraão, que foi o que apartou a demanda, não quis pelejar sobre a terra,quan<strong>do</strong> os anos o chamavam mais para o Céu.Ó poderosíssimo monarca Filipe IV, o Grande! Dai licença para que tenhamentrada a vossos ouvi<strong>do</strong>s os ecos destas últimas cláusulas, não de meudiscurso, senão de meu desejo. As vozes de que eles se formam, sabe O queconhece os corações, que não se escrevem com outro fim mais que o de Oagradar, e de que to<strong>do</strong> os príncipes católicos O agradem.Que se não derrame sangue cristão, e sobre cristão espanhol, pois é aquele deque mais puramente se alimenta a Santa Madre Igreja e de que cabeça delarecebe os espíritos com que vivifica e anima seus mais distantes membros.Ouvi, Senhor, a voz de um estrangeiro, desinteressa<strong>do</strong> vassalo que foi já vossopor sujeição, e hoje é também vosso (posto que não vassalo) por afeto. Ouvi avoz de um homem que nem das felicidades de Portugal espera, nem das vossasteme; porque vive fora da jurisdição da fortuna, por esta<strong>do</strong> muito abaixo dasua roda, e por coração muito acima dela. Com to<strong>do</strong> este desinteresse meatrevo, Senhor, a vos dizer de longe o que pode ser não tenhais ouvi<strong>do</strong> de maisperto.A maior façanha de Carlos, vosso avô, com que coroou todas as suas, foi sabermorrer. Merecestes na vida o título de Grande; maior sereis no fim dela se aode Grande acrescentardes o de Justo. Não se pode pagar a Deus o que é deDeus, sem dar a César o que é de César. E seria grande desgraça perder oReino eterno por um temporal já perdi<strong>do</strong>.Não duvi<strong>do</strong>, Senhor, que tereis conselheiros de grandes letras, que segurem ejustifiquem as causas e tão dilatada e cruel guerra; mas ponham os reis diante<strong>do</strong>s olhos as letras e as balanças de Baltasar e examinem eles se os seusmaiores se governaram pelos pareceres <strong>do</strong>s letra<strong>do</strong>s, ou os letra<strong>do</strong>s pelosinteresses <strong>do</strong>s reis. Os textos são da justiça, as interpretações podem ser dalisonja. Com um texto santo mal interpreta<strong>do</strong> quis o Demônio despenhar aCristo, e depois deste texto e desta interpretação, lhe ofereceu o reino que lhenão podia dar.Grande sinal é de predestinação de um príncipe que faça Deus por ele asrestituições que nem seus predecessores fizeram, nem ele havia de fazer.Felicidade é levar já abatida das contas que se hao-de dar a Deus uma partidatão grossa, como o Reino de Portugal e suas Conquistas: basta haver-se de dar


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 44 de 16927/08/2011a mesma conta de Ormuz, de Ceilão, de Malaca, <strong>do</strong> Brasil, perdi<strong>do</strong>s peladesatenção <strong>do</strong>s ministros ou pela intenção (que será pior) <strong>do</strong>s políticos. Otrata<strong>do</strong> de uma boa e justa paz podia ser uma bula de composição geral, comque se levassem purga<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s estes encargos. Não queirais levar sobre vós edeixar sobre vossos filhos, por ama de tanto sangue derrama<strong>do</strong>, o que ainda sepode derramar.Lembro-vos, Senhor, o signo debaixo de que nascestes — e seja este o últimosuspiro <strong>do</strong> meu afeto: nascestes no dia em que morreu o Rei <strong>do</strong>s reis eMonarca supremo <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, para dar exemplo de morrer a príncipes. Ponde osolhos neste soberano exemplar; firmai o título de rei com o de católico, poissempre prezastes mais o de católico que o rei; seja parte <strong>do</strong> sacrifício arepartição das vesti duras e leve embora a túnica aquele a quem coube emsorte; e faça-se tu<strong>do</strong> diante de vossos olhos antes que os fecheis. Se vosparece amargoso este trago, gostai o fel e não o passeis da boca. Com estaobra tão consumada, podeis entregar a alma segura nas mãos <strong>do</strong> Padre, que érei e Senhor, o que só importa. Com uma inclinação da cabeça podeis deixarpacifica<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Deixai a paz por herança a vossa esposa. Esta será a maiorprenda <strong>do</strong> vosso amor, este o troféu maior de vossas vitórias. CAPÍTULO IXVerdade desta <strong>História</strong>. Declara-se o mo<strong>do</strong> com que se pode conhecer e saberos futurosA primeira qualidade da história (quan<strong>do</strong> não seja a sua essência) é a verdade;e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura impossível na <strong>História</strong> <strong>do</strong><strong>Futuro</strong>, será razão que, antes que vamos mais por diante, sosseguemos oescrúpulo ou receio (quan<strong>do</strong> não seja o riso e o desprezo) <strong>do</strong>s que assim opodem imaginar. E pois pedimos aos leitores o assento da fé, justo é que lhesmostremos primeiro os motivos da credulidade; não duvidamos da pia afeiçãode to<strong>do</strong>s, pois a matéria é tanto para crer, e tão sua.Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de que sepode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi Mas nestemesmo abismo de trevas, se o espirito <strong>do</strong> Senhor (como esperamos) nos nãofaltar com a sua assistência, como ali não faltou: Spiritus Domini ferebatursuper aquas, dirá Deus o que so Ele pode dizer, e far-se-á o que só Ele podefazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As maiores trevas que se viram no Mun<strong>do</strong>, oucom que o Mun<strong>do</strong> se não viu, foram aquelas <strong>do</strong> Egipto, das quais diz o TextoSagra<strong>do</strong>: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo viditfratrem suum, nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror,trevas com que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais sãoas trevas, e tal a escuridade <strong>do</strong> futuro. Contu<strong>do</strong>, o Apóstolo S. Pedro nosensinou a entrar nestas trevas sem me<strong>do</strong>, e a dar passo, e muitos passosnelas, e a ver claramente e com maior certeza tu<strong>do</strong> o que elas encobrem:Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis attendentes, quasilucernae lucenti in caliginoso loco, <strong>do</strong>nec dies elucescat: «Temos — diz oPríncipe <strong>do</strong>s Apóstolos — as profecias e palavras certíssimas <strong>do</strong>s profetas, asquais devemos observar e atender, usan<strong>do</strong> delas como de candeia luzente emlugar escuro e caliginoso, até que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso éo futuro; a candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer éo cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre,não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora podemos e devemosfazer é levar a candeia das profecias diante, e com a sua luz (ainda que luzpequena) entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo <strong>do</strong>s futuros, e veremoso que neles se passa.Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásiaVidentes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares escuríssimos esecretíssimos <strong>do</strong>s futuros e viam neles claramente aquelas cousas para queto<strong>do</strong>s os outros homens são cegos, e ninguém as pode ver senão alumia<strong>do</strong> damesma luz.Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estu<strong>do</strong> ou diligência algumapara a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quan<strong>do</strong> e a quem é servi<strong>do</strong>:Non enim voluntate humana allata est ali quan<strong>do</strong> prophetia, sed Spiritu Sanctoinspirati locuti sunt sancti Dei homines — diz S. Pedro: Mas ainda que a candeiaesteja na mão de outrem, também se podem aproveitar da sua luz os que sechegarem a ela e a forem seguin<strong>do</strong>. Nesta propriedade fala a Escritura, quan<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 45 de 16927/08/2011diz da profecia de Ageu: ...factum est verbum Domini in manu Aggaeiprophetae. E da profecia de Malaquias: Onus verbi Domini ad Israel in manuMalachiae. E geralmente das profecias de to<strong>do</strong>s os profetas: Sicut locutus es demanu puerorum tuorum prophetarum. De maneira que pôs Deus a profeciacomo candeia na mão <strong>do</strong>s profetas, para que, alumia<strong>do</strong>s e guia<strong>do</strong>s da mesmaluz os que não somos profetas, possamos entrar com eles no lugar escuro ecaliginoso <strong>do</strong>s futuros e ver e conhecer com a luz não nossa, o que eles viram econheceram com a sua.Este é o mo<strong>do</strong> com que, haven<strong>do</strong> a nossa <strong>História</strong> de caminhar por passos tãoescuros e dificultosos, saberá contu<strong>do</strong> onde há-de pôr os pés, e os porá muiseguros, seguin<strong>do</strong> sempre os raios deste farol divino, e dizen<strong>do</strong> humilde a Deuscom David: Lucerna pedibus meis verbum tuum, et lumen semitis meis. Serãopois as primeiras fontes desta nossa <strong>História</strong>, e os primeiros e principaisescritores a quem nela seguiremos to<strong>do</strong>s ou quase to<strong>do</strong>s os profetas canônicos,desde Isaías até Miqueas; porque, exceto o profeta Jonas, cujo assunto foi umsó, e particularmente determina<strong>do</strong> à história <strong>do</strong>s Ninivitas, to<strong>do</strong>s os outros,mais ou menos, concorreram para a fábrica deste novo edifício.Assim como os que escrevem anais ou histórias passadas e antiquíssimas,recorrem aos autores mais antigos, e estes são os que têm maior crédito eautoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que escrevemos <strong>do</strong> futuro,devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa <strong>História</strong> nos autores<strong>do</strong>s tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só eles os conheceram.E porque entre os outros Livros Sagra<strong>do</strong>s, também canônicos, há alguns quetotalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o Apocalipse, e to<strong>do</strong>sos outros, assim <strong>do</strong> Velho como <strong>do</strong> Novo Testamento, contêm ou muitas oualgumas cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos, como oGênesis, Josué, Josias, Reis, Paralipamenon, Esdras e Macabeus; oumeramente <strong>do</strong>utrinais, como Provérbios, Sabe<strong>do</strong>ria, Eclesiastes, Eclesiástico eas Epístolas <strong>do</strong>s Apóstolos; ou juntamente <strong>do</strong>utrinais e históricos, como oLevítico, Números, Deuteronómio, Job e os Evangelhos, de to<strong>do</strong>s estes nosajudaremos também, quan<strong>do</strong> servirem ou puderem servir (que não será pouco)ao conhecimento e inteligência <strong>do</strong>s tempos futuros. Assim que podemos dizerem uma palavra que a primeira e principal fonte e os primeiros e principaisfundamentos de toda esta nossa <strong>História</strong> é a Escritura Sagrada; com que vem aser um só livro e um só Autor o que nela principalmente seguiremos: o livro, aEscritura; o Autor, Deus. Sobre estes fundamentos da primeira e suma Verdadeentrará o discurso como arquitecto de toda esta grande fábrica, dispon<strong>do</strong>,ordenan<strong>do</strong>, ajustan<strong>do</strong>, combinan<strong>do</strong>, inferin<strong>do</strong> e acrescentan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> aquilo quepor conseqüência e razão natural se segue e infere <strong>do</strong>s mesmos princípios, noqual mo<strong>do</strong> de fábrica se não perde a primeira verdade <strong>do</strong>s fundamentos, masvai crescen<strong>do</strong>, dilatan<strong>do</strong>-se e frutifican<strong>do</strong>, não em diversos, senão no mesmocorpo, como a árvore em suas raízes.Deste mo<strong>do</strong> crescem e se aumentam todas as ciências, não só as naturais,senão as divinas, e por isso se chamam e são ciências. Assim como a filosofiade princípios naturais evidentemente conheci<strong>do</strong>s tira conclusões certas,evidentes e científicas, assim a teologia, de princípios sobrenaturais nãoevidentes mas certissimamente conheci<strong>do</strong>s, tira conclusões teológicas, tambémcientíficas e ainda mais certas, posto que não evidentes. Nem este mo<strong>do</strong> dediscorrer sobre as profecias e revelações proféticas, para vir em conhecimento<strong>do</strong>s mistérios, segre<strong>do</strong>s, sucessos e tempos futuros, que nelas não estejamimediatamente expressa<strong>do</strong>s, é alheio da reverência que se deve aos oráculosdivinos, nem atrevimento <strong>do</strong> entendimento e discurso humano, ou cousa novae desusada na Igreja e escola de Cristo, antes estu<strong>do</strong> muito lícito, muitolouvável e muito recomenda<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo Mestre Divino e seus sucessores.Temos desta matéria um excelente texto <strong>do</strong> Apóstolo S. Pedro (primeira einfalível regra da Igreja), o qual, falan<strong>do</strong> das mesmas profecias e profetas, dizassim no primeiro capítulo de sua primeira epístola: De qua salute exquisieruntatque scrutati sunt Prophetae qui de futura in vobis gratia prophetaverunt,scrutantes in quod vel quale tempus significaret in eis spiritus Christipraenuntians eas quae, Christo sunt, passiones et posteriores glorias.Quer dizer S. Pedro que os Profetas antigos, depois de lhes serem revela<strong>do</strong>scom lume sobrenatural e eles conhecerem e profetizaram mistérios futuros


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 46 de 16927/08/2011(como os da paixão e glórias de Cristo) sobre os mesmos mistérios e sobre asmesmas suas profecias inquiriam e especulavam de novo com o lume natural<strong>do</strong> discurso muitas circunstancias que lhes não foram expressamentereveladas, como as <strong>do</strong> tempo esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> em que os mesmos mistérios sehaviam de obrar e as suas mesmas profecias haviam de suceder.Desta maneira, no senti<strong>do</strong> em que o digo vinham a inferir e alcançar peloestu<strong>do</strong> e especulação natural e própria o que Deus lhes não tinha manifesta<strong>do</strong>pela revelação sobrenatural e divina. Isto é o que literal e genuinamentesignificam aquelas palavras: «Exquisierunt et scrutati sunt.» Exquisitio etscrutatio (diz Lorino) ...proprie indicant... curam et studium et industriamnaturalem vel meditationis,vel lectionis, vel disputationis.De sorte que, ajuntan<strong>do</strong> o lume natural <strong>do</strong> d curso ao lume sobrenatural dapirofecia, com o cuida<strong>do</strong>, estu<strong>do</strong> e indústria própria, len<strong>do</strong>, disputan<strong>do</strong> emeditan<strong>do</strong>, vinham a estender e adiantar muito as mesmas profecias,conhecen<strong>do</strong> delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente nãoestava reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossacomparação) não só alumeia com a luz que está ao lume ou fogo que nela sesustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai produzin<strong>do</strong>,multiplican<strong>do</strong> e difundin<strong>do</strong> por todas as partes vizinhas e ainda distantes,conforme a sua menor ou maior esfera, assim o lume natural <strong>do</strong> discurso, sevai propagan<strong>do</strong>, difundin<strong>do</strong> e estenden<strong>do</strong> a muitas cousas, tempos, sucessos ecircunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e conseqüência <strong>do</strong>mesmo discurso se vão entenden<strong>do</strong> e descobrin<strong>do</strong> de novo. Isso quer dizer: Inquod vel quale tempus. A palavra, enm que tempo significa a determinação <strong>do</strong>tempo certo em que as cousas hão-de suceder; e a palavra no qual temposignifica as qualidades e circunstancias <strong>do</strong> mesmo tempo, isto é, o esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>sreinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particularesda paz, daguerra, <strong>do</strong> cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo,ou mais vizinho ou mais distante, se hão-de ver e suceder no Mun<strong>do</strong>:Deprehendebant Prophetae instinctu spiritus Messiae ejusdem Messiaeadventum et gratiae <strong>do</strong>na, quae allaturus erat, nec tamen salten omnes,definite sciebant quo tempore veniret et quali, quam brevi, an belli, aut pacis,captivitatis, aut libertatis; quo statu Reipublicae Hebraeorum. Eplicabant quaeMessias primum passurus, quam postea gloriam consecuturus et collaturusetiam esset; at ignorabant circumstantiam tem poris, et ratiocinan<strong>do</strong>, atqueconjecturan<strong>do</strong> disquirebant. Atèqui Lorino.O mesmo diz Salmeirão, ambos <strong>do</strong>utissimos expositores deste lugar, e ambostrazem em confirmacão o exemplo da Virgem Maria, nossa Senhora, da qual dizo Evangelho: Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in cordesuo. Conferia a Senhora, com ser alumiada sobre todas as criaturas, aspalavras que os pastores referiam ter ouvi<strong>do</strong> aos anjos, as que ouviu a Simeão,a Ana a profetiza, e ao mesmo Cristo Menino, quan<strong>do</strong> o achou entre os<strong>do</strong>utores; e delas, por discurso natural, inferia e descobria outros mistériosocultos e profundíssimos, que nas mesmas palavras não estavamexpressamente declara<strong>do</strong>s. Isto mesmo é o que se diz no cap. XV <strong>do</strong>s Atos <strong>do</strong>sApóstolos faziam os mais <strong>do</strong>utos cristãos da primitiva Igreja, e o que Cristoman<strong>do</strong>u a to<strong>do</strong>s que fizessem, dizen<strong>do</strong> por S. João na cap. L: ScrutaminiScripturas. É isto o que nós fazemos e devemos fazer, pois de nós e para nósfalam os Profetas, como diz o mesmo texto de S. Pedro nas palavras citadas:...qui de futura in vobis gratia prophetaverunt; e mais abaixo: Quibusrevelatum est quia non sibimetipsis, vobis autem mintistrabant, onde a versãosiríaca tem: Nostra nobis: vaticinabantur.E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas nossas, razão é que nóscomo nossas as entendamos. Mas porque as profecias por sua naturalescuridade não sao fáceis de entender, e assim como se há misternecessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessáriaoutra Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serãoaqueles a quem Cristo chamou luz <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>: Vox estis lux Mundi, e, por outraspalavras, candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et ponunt eum submodio, que são em primeiro lugar os Apóstolos sagra<strong>do</strong>s, e em segun<strong>do</strong> osPadres Doutores da Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quaisseguiremos e alegaremos em tu<strong>do</strong> o que dissermos com estas duas luzes oucandeias: uma <strong>do</strong>s Doutores sagra<strong>do</strong>s, com que alumiaremos as profecias, e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 47 de 16927/08/2011outra as mesmas profecias, com que alumiaremos e descobriremos os futuros;poderemos entrar neste labirinto com to<strong>do</strong> o aparato e prevenção deinstrumentos com que se entrava seguramente no de Creta.Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por outra mui intrica<strong>do</strong>; epara vencer e facilitar estas duas dificuldades se inventou entrar nele, não sócom tocha, mas também com fio: as tochas para ver o escuro <strong>do</strong>s caminhos e ofio para entrar e sair pelo intrica<strong>do</strong> deles. Por este mo<strong>do</strong> entraremos tambémnós pelo escuro e intrica<strong>do</strong> labirinto <strong>do</strong>s futuros. As profecias e os Doutores nosservirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio. Isto é quanto àsprofecias e Profetas canônicos.E porque o Espirito Santo, depois de fecha<strong>do</strong> o número <strong>do</strong>s livros e osescritores sagra<strong>do</strong>s (o qual se cerrou no Apocalipse de S. João), não deixou deilustrar e ornar sua esposa a Igreja com o lume e <strong>do</strong>m da profecia; e depoisdaqueles seus primitivos anos houve sempre novos profetas, alumia<strong>do</strong>s com omesmo espirito, que por palavra e escrito predispuseram muitas cousasfuturas, assim <strong>do</strong>s seus, como <strong>do</strong>s seguintes tempos, também estes darãomatéria à nossa <strong>História</strong>. Não meteremos porém nesta conta senão aquelasprofecias somente que, ou pela santidade de seus autores, aprova<strong>do</strong>s ecanoniza<strong>do</strong>s pela Igreja, ou por outros fundamentos sóli<strong>do</strong>s da razão,experiência e opinião <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, tenham, na forma possível, mereci<strong>do</strong> no juízo<strong>do</strong>s prudentes o nome e veneração de profecias ou predições verdadeiras.A este fim empregarei grande parte deste presente livro na qualificação <strong>do</strong>espírito profético que tiveram to<strong>do</strong>s os autores <strong>do</strong> futuro que na <strong>História</strong> sehão-de alegar, por ser este não só o principal, mas o único fundamento de todaa sua verdade, e sem o qual vã e não merecidamente lhe devemos prometer ocrédito que de to<strong>do</strong>s os que a lerem esperamos.Por esta causa se não acharão porventura neste nosso discurso menos algumasque em nome de profecias andam entre o vulgo, sem certeza de autor e muitomenos <strong>do</strong> espírito com que foram escritas; e não só provaremos quanto fornecessário o espírito da profecia destes autores, mas diremos o tempo em queescreveram as obras proféticas que deles existam; a inteireza ou corrupçãocom que se tem conserva<strong>do</strong>, com uma breve relação também das mesmaspessoas (quan<strong>do</strong> não forem geralmente mui conhecidas) pelo muito queimportam todas estas notícias não só para a fé e crédito, senão ainda, e muitomais, para a inteligência e combinação das mesmas profecias, quegrandemente depende <strong>do</strong> tempo e de outras semelhantes circunstâncias.Procuramos quanto nos foi possível que fosse mui exata esta diligência, e nãosó falaremos nos autores e Profetas modernos e não canônicos, senãoigualmente nos antigos e sagra<strong>do</strong>s, pelas mesmas causas. Tambémexcitaremos a este fim e resolveremos várias questões muito importantes aoconhecimento das profecias, pela ordem que a necessidade ou ocasião o forpedin<strong>do</strong>, e esta será a própria matéria de to<strong>do</strong> este livro, a que por issochamamos Anteprimeiro, e é como alicerce de to<strong>do</strong> o edifício. E posto que to<strong>do</strong>este tão largo Prolegómeno em rigor não seja <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, senãopreparação ou aparato para ela, à imitação de Barónio e de outros autores, quecom menos necessidade o fizeram em suas histórias, esperamos que a matéria,por sua grande variedade e diligente erudição de cousas curiosas, e pela maiorparte até agora não tratadas, não será injucunda aos que a lerem, e que possasem enfa<strong>do</strong> entreter a expectação e desejo da mesma <strong>História</strong>, enquanto nãosai a luz, que será, como em Deus esperamos, muito brevemente.De tu<strong>do</strong> o que fica dito ou prometi<strong>do</strong> se colhe facilmente quanta será a verdadedesta <strong>História</strong>; porque as cousas que expressa e imediatamente se predizemnas profecias canônicas, de cuja inteligência por sua clareza se não podeduvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canônicos porconcílios, por tradições, ou pelo consenso comum <strong>do</strong>s Padres, é certo que têmtoda aquela certeza infalível e de fé, que as outras verdades sagradas que secontêm nas Escrituras. As outras cousas, que destas verdades assimprofetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se deduzirem, ainda queintervenha no discurso algum meio ou proposição científica, são verdadessegundas que participam a mesma certeza também infalível, qual é a das


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 48 de 16927/08/2011conclusões teológicas que, não sen<strong>do</strong> totalmente fé, nem somente ciência, poresta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não é sujeita a erro oufalsidade, nem perigo de poderem não ser.As profecias não canônicas podem ser tão evidentemente provadas por seusefeitos, como veremos que tenham toda a certeza moral, que é a que depois afé e da ciência têm no juízo humano o maior assento; e a mesma participarão,na forma que pouco antes dissemos, todas as outras conclusões que pornatural e evidente conseqüência delas se deduzirem, pois são filhas e herdeirasda mesma Verdade de que tiveram seu nascimentoRestam somente aquelas profecias que, ou por não averiguadas com tãoevidente certeza (posto que sempre estabelecidas com bons e racionaisfundamentos) ou por sua interpretação não ser tão manifesta ou recebida quenão desfaça moralmente toda a razão de dúvida, ficam dentro <strong>do</strong>s lates daprobabilidade opinativa; le nestas, assim o que imediatamente predizem, comoas conseqüências que delas por formalização se deduzirem, terão somentecerteza provável naquele senti<strong>do</strong> em que dizemos provavelmente certasaquelas cousas de que há fundamentos prováveis para o serem.Estes quatro gêneros de verdade são os de que repartidamente se comporátoda a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>, merecen<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> todas suas partes, o nome dehistória verdadeira, posto que não em todas com igual grau de certeza. Nas <strong>do</strong>primeiro gênero, verdadeira com certeza de fé; nas <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>, verdadeiracom certeza teológica; nas <strong>do</strong> terceiro, verdadeira com certeza moral; nas <strong>do</strong>quarto, verdadeira com certeza provável, pelo mo<strong>do</strong> já explica<strong>do</strong>; sen<strong>do</strong> aexcelência singular desta <strong>História</strong> que toda ela, ou provável, ou moral, outeológica, ou canònicamente, será fundada na primeira e suma Verdade, que é;o mesmo Deus.Daqui inferimos sem injúria nem agravo de quantas histórias até hoje estãoescritas no Mun<strong>do</strong>, que esta <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong> é mais certa e mais verdadeiraque todas elas (exceptas somente as <strong>História</strong>s Sagradas), e ainda estaexcepção se não deve entender em to<strong>do</strong>, senão em parte; a <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>igualará na verdade e na certeza, gu, por melhor dizer, se não distinguirádelas, por ir toda (como vai) não só fundada nos mesmos textos e sentenças daEscritura divina, mas formada e como tecida deles.E digo que sem injúria nem agravo de todas as outras histórias humanas,porque, como também terão adverti<strong>do</strong> os mais li<strong>do</strong>s e versa<strong>do</strong>s, assim nasantigas como nas modernas, todas elas estão cheias, não só de cousas incertase improváveis, mas alheias e encontradas com a verdade, e conhecidamentesupostas e falsas, ou por culpas ou sem culpa <strong>do</strong>s mesmos historia<strong>do</strong>res.Que historia<strong>do</strong>r há ou pode haver, por mais diligente investiga<strong>do</strong>r que seja <strong>do</strong>ssucessos presentes ou passa<strong>do</strong>s, que não escreva por informações? E queinformações há de homens, que não vão envoltas em muitos erros, ou daignorância, ou da malícia? Que historia<strong>do</strong>r há de tão limpo coração e tão inteiroama<strong>do</strong>r da verdade, que o não incline só o respeito, a lisonja, a vingança, oódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou <strong>do</strong> seu ou de estranhopríncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e to<strong>do</strong>s na tinta deescrever misturam as cores <strong>do</strong> seu afeto.Prova Tácito a verdade da sua história, com ter longe as causas <strong>do</strong> ódio eamor; mas de aí se convence contra ele, que também tinha longe asinformações da verdade. O certo é que só tinha perto a ambição de seu própriojuízo, com que formava os processos para as sentenças, e não as sentençassobre os processos. Por isso Tertuliano lhe chamou com razão mendaciorumloquacíssimum.Não aponto erros em particular das histórias mais vizinhas a nossos tempos porreverência deles, e porque fora matéria infinita. Das <strong>do</strong>s Gregos e Romanosdisse S. Jerônimo, por ocasião <strong>do</strong> milagre da serpente: Cedaxt huic veritati,tam graeco quam romano stylo mendacis ficta miracula. E Cícero, que é mais,no livro primeiro das Leis: Apud Hero<strong>do</strong>tum patrem Historiae et apudTheopompum sunt innumerabiles fabulae. Estes foram os pais da <strong>História</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 49 de 16927/08/2011humana, e desta é filha legítima a sua verdade, sobre a qual batalham tantasvezes os mesmos historia<strong>do</strong>res, mas nunca com conhecida vitória.Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias humanas, leia a mesmahistóna por diferentes escritores, e verá como se encontram, se contradizem ese implicam no mesmo sucesso, sen<strong>do</strong> infalível que um só pode dizer a verdadee certo que nenhum a diz. Mas isto mesmo se conhece, ainda com maiorevidência, daquelas histórias de que temos verdadeira relação nas EscriturasSagradas, como são as de Noé, <strong>do</strong> Dilúvio, da divisão das primeiras gentes; as<strong>do</strong>s Assírios, Persas, Me<strong>do</strong>s, Romanos, Egípcios, Gregos, e principalmente a <strong>do</strong>sHebreus, com os quais coteja<strong>do</strong>, como em pedra de toque, o que escteveramos Berosos, os Heró<strong>do</strong>tos, os Dio<strong>do</strong>ros, os Trogos, os Cúrcios, os Lívios, e to<strong>do</strong>sos outros historia<strong>do</strong>res daquelas nações e tempos, apenas se acha cousa quenão seja contradição da verdade; e desta mesma experiência e razões dela sequalifica claramente ser a nossa <strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong> mais verdadeira que todasas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> porque elas em grande parte foram tiradas da fonte da mentira,que é a ignorancia e malícia humana, e a nossa tirada <strong>do</strong> lume da profecia eacrescentada pelo lume da razão, que são as duas fontes da verdade humana edivina. CAPÍTUL0 X Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhorcomenta<strong>do</strong>r das profecias é o tempo.Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com acandeia da profecia se podia entrar pela escuridade <strong>do</strong>s futuros e descobrir econhecer o que neles está encoberto e enterra<strong>do</strong>. Mas sobre esta resolução sepode dizer e argüir contra nós, que esta mesma candeia e luz das profecias hámuitos centos de anos que está acesa, e não sub modio, senão supracandelabrum, e que ninguém contu<strong>do</strong> se atreveu atègora a entrar com ela porestes abismos e escundades <strong>do</strong> futuro, como nós prometemos fazer, empresa eousadia, que mais merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais(que sempre serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmoargumento. Os futuros, quanto mais vão corren<strong>do</strong>, tanto mais se vão chegan<strong>do</strong>para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos que estão escritasestas profecias, também há outros centos de anos que os futuros se vãochegan<strong>do</strong> para elas, e elas para os futuros; e por isso nós nos atrevemos afazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda que tivessem acesa a mesmacandeia; porque a candeia de mais perto alumeia melhor. Para ver com umacandeia, não basta só que a candeia esteja acesa, é necessário que a distânciaseja proporcionada: Ut luceat omnibus qui in <strong>do</strong>mo sunt, disse Cristo. Com unacandeia na mão pode-se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver oque há em uma cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens etardens, e ainda que to<strong>do</strong>s os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista omostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: — Há-devir, e ele disse: — Este é.As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe: delonge viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo visionemhanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava ven<strong>do</strong> a visão, e disseque a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões de Deus ao longe, ouvê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o fogo; ao perto, entendeú oque aquelas figuras significavam. A mesma luz e a mesma candeia ao longe vêse,e ao perto alumeia.Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos antigos:nos antigos reconhecemos a vantagem da sabe<strong>do</strong>ria, nos nossos a fortuna davizinhança. Se estamos mais perto <strong>do</strong>s futuros com igual luz (ainda que nãoseja com igual vista), porque os não veremos melhor? Assim o confessou SantoAgostiho com ter os olhos de águia o qual, achan<strong>do</strong>-se às escuras em muitoslugares das profecias, reservou a verdadeira inteligência delas para osvin<strong>do</strong>uros.Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nosconhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós paraas mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais <strong>do</strong> que nós podemos versem eles; mas nós, como vive mos depois deles, e sobre eles por benefício <strong>do</strong>tempo, vemos hoje o que ,eles viram, e um pouco mais. 0 último degrau daescada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser oúltimo, e estar em cima <strong>do</strong>s mais, para que dele se possa alcançar o que de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 50 de 16927/08/2011outros se não alcança.Entre a multidão <strong>do</strong>s que acompanhavam e rodeavam a Cristo, o mais pequenode to<strong>do</strong>s era Zaqueu que por si mesmo, e com os pés no chão, não podiaalcançar a ver o que os outros viam; mas subi<strong>do</strong> em cima da árvore, viu melhore mais claramente que to<strong>do</strong>s.Mui bem medimos a nossa estatura, e conhecemos quão pequena, quãodesigual) quão inferior é, comparada com aqueles cedros <strong>do</strong> Líbano e comaquelas torres altíssimas, que tanto ornato, tanta grandeza e majestadeacrescentaram ao edifício da Igreja; mas subi<strong>do</strong>s por merecimento seu efortuna <strong>do</strong> tempo a tanta altura, não é muito que alcancemos e descubramosum pouco mais <strong>do</strong> que eles descobriram e alcançaram.Cousa maravilhosa é, e que apenas se pode entender, como os cava<strong>do</strong>res davinha que vieram na última hora puderam ser avantaja<strong>do</strong>s aos demais. Masestes são os privilégios da última hora: Hi novissimi una hora fecerunt. Fizeramna última hora o que os outros não fizeram to<strong>do</strong> o dia; porque eles com outrosacabaram a obra que os outros sem eles não puderam nem podiam acabar: Sicerunt novissimi primi. Este é o mo<strong>do</strong> com que os últimos podem vir a ser osprimeiros. Non ergo undecima hora in vineam Domini ad operandum conductisnobis invidendum est — disse Lipomano na prefação de seus Comentários,aplican<strong>do</strong> a parábola de Cristo ao estu<strong>do</strong> da Sagrada Escritura.Os que estudamos e trabalhamos na inteligência da Sagrada Escritura, mais oumenos to<strong>do</strong>s cavamos e, pode suceder que os que vêm na última hora porfelicidade da mesma hora acabem, descubram com poucas enxadas o quemuitos em muito tempo e com muito trabalho, cavan<strong>do</strong> muito mais, nãodescobriram.Aquele tesouro escondi<strong>do</strong> de que falou Cristo no cap. XIII de S. Mateus, dizRuperto Tertuliano, S. João Crisóstomo, que é a Escritura Sagrada, e S.Jerônimo com mais estrita propriedade o entende particularmente dasescrituras proféticas Quantas vezes os que trabalham no descobrimento dealgum tesouro, cavam por muitos dias, meses e anos sem acharem o quebuscam, e depois de estes cansa<strong>do</strong>s e desespera<strong>do</strong>s, sucede vir um maisventuroso que, descen<strong>do</strong> sem trabalho ao profun<strong>do</strong> da mesma cova, e cavan<strong>do</strong>alguma cousa de novo descobre a poucas enxadadas e tesouro, e logra é fruto<strong>do</strong>s trabalhos e suores <strong>do</strong>s primeiros?Assim aconteceu no tesouro das profecias: cavaram uns e cavaram outros, ecansaram to<strong>do</strong>s e no cabo descobre o tesouro quais sem trabalho aquele ultimopara quem estava guardada tamanha ventura, a qual sempre é <strong>do</strong> últimoEis aqui como pode acontecer que descubram o tesouro os que cavam menos:Saepe abseptus quisquam, et vilis invenit, quod magnus et sapiens virpraeterit, disse verdadeira e judiciosamente S. Crisóstomo. 0 último <strong>do</strong>sApóstolos foi S. Paúlo, e confessan<strong>do</strong>-se por mínimo de to<strong>do</strong>s, confessa terrecebi<strong>do</strong> a graça de descobrir aos mesmos anjos <strong>do</strong> Céu os tesouros que lhesestavam escondi<strong>do</strong>s: Mihi omnium sanctorum (diz ele na Epístola aos Efessos)minimo data est gratia hoec in gentibus evangelizare investigabiles divitiasChristi, et illuminare omnes quae sit dispensatio sacramenti absconditi asaeculis in Deo, qui omnia creavit, ut innotescat principatibus et potestatibus incaelestibus per Ecclestam, multiformis sapientia Dei, secundum praefinitionemsaeculorum. Nas quais palavras se devem ponderar muito quatro cousas: Que éo que se descobriu; quem o descobriu; a quem se descobriu; e quan<strong>do</strong> ; sedescobriu.O que se descobriu é um segre<strong>do</strong> escondi<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os séculos passa<strong>do</strong>s:Sactamenti absconditi a soculis in Deo; porque costuma Deus ter algumascousas encobertas e escondidas por muitos séculos, conforme a ordem edisposição de sua ProvidênMa. Quem o descobriu foi o último de to<strong>do</strong>s osapóstolos 9 discípulos de Cristo, que já o não alcançou, nem viu, nem ouviuneste Mun<strong>do</strong> como os demais, e se confessa por mínimo de to<strong>do</strong>s: Mihi omniumsanstorum minimo; porque bem pode o último e o mínimo alcançar e descobriros segre<strong>do</strong>s que os primeiros e maiores não alcançaram. A quem se descobriu


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 51 de 16927/08/2011foi não menos que aos espíritos angélicos das mais superiores jerarquias <strong>do</strong>Céu: Ut innotescat principatibus et caelestiu; porque não bastam as forças dasabe<strong>do</strong>ria e entendimento cria<strong>do</strong>, ainda que seja de um anjo e de muitos anjos,para conhecer e penetrar os segre<strong>do</strong>s altíssimos de Deus, enquanto ele querque estejam encobertos e escondi<strong>do</strong>s. Finalmente, quan<strong>do</strong> se descobriu, foi noséculo que Deus tinha predefini<strong>do</strong> e determina<strong>do</strong>: Secundum praefinitionemsaeculorum; porque, quan<strong>do</strong> chega o tempo determina<strong>do</strong> e predefini<strong>do</strong> porDeus para que seus segre<strong>do</strong>s se conheçam e descubram no Mun<strong>do</strong>, só então, ede nenhum mo<strong>do</strong> antes, se podem manifestar e entender.Assim que bem pode um homem menor que to<strong>do</strong>s descobrir e alcançar o queos grandes e eminentíssimos não descobriram, porque esta ventura não éprivilégio <strong>do</strong>s entendimentos, senão prerrogativa <strong>do</strong>s tempos.Desde que Túbal começou a povoar Espanha, que foi no ano da criação <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> I80I, até o de Cristo, I428, em que se passaram mais de 3600 anos, erao termo da navegação <strong>do</strong> mar Oceano junto somente à costa de África, o cabochama<strong>do</strong> de Não, sen<strong>do</strong> os mares que depois dele se seguiam, tão temorososaos navegantes, que era provérbio entre eles (como escreve o nosso João deBarros): quem passar o cabo de Não, o tornará ou não. Aparecia ao longe desteo cabo chama<strong>do</strong> Boja<strong>do</strong>r, pelo muito que se metia dentro no mar, cujapassagem, tanto por fama e horror comum, como pelo desengano de muitasexperiências, se reputava entre to<strong>do</strong>s por empresa tão arriscada e impossível àindústria e poder humano, como se pode ver no IV capítulo da primeiraDécada. Mas quem ler o capítulo seguinte, verá também como um homemportuguês não de muito nome, chama<strong>do</strong> Gil Eanes, foi o primeiro que,dispon<strong>do</strong>-se ousadamente ao rompimento de uma tamanha aventura, venceufelizmente o cabo em uma barca, quebrou aquele antiquíssimo encantamento emostrou com estranho desengano à Espanha, ao Mun<strong>do</strong> e ao mesmo Oceanoque também o não navega<strong>do</strong> era navegável; o qual feito ponderan<strong>do</strong> o nossogrande historia<strong>do</strong>r com seu costuma<strong>do</strong> juízo, diz breve e sentenciosamente: «Ea este seu propósito se ajuntou a boa fortuna, ou, por melhor dizer, a hora emque Deus tinha limita<strong>do</strong> o curso de tanto receio, como to<strong>do</strong>s tinham, de passaraquele cabo Boja<strong>do</strong>r..>>E verdadeiramente é assim: enquanto não chega a hora determinada por Deus,nem os Aníbales de Cartago, nem os Cipiões e Júlios de Roma, nem os Bacos,Lusos, Gedeões e Hércules de Espanha se atrevem a imaginar, que pode oBoja<strong>do</strong>r ser venci<strong>do</strong>, e param suas empresas e ainda seus pensamtentos nocabo de Não. Mas quan<strong>do</strong> chega a hora precisa <strong>do</strong> limite que Deus tem posto àscousas humanas, basta Gil Eanes em uma barca para vencer todas essasdificuldades, para atalhar to<strong>do</strong>s esses receios, para pisar to<strong>do</strong>s essesimpossíveis e para navegar segura e venturosamente os mares nunca de antesnavega<strong>do</strong>s. Ali <strong>do</strong>nde chega o presente e começa o futuro, era até agora o cabode Não; não havia historia<strong>do</strong>r que de ali adiantasse um momento a conta deseus anos e dias. Não havia pensamento que ainda com imaginação (que atu<strong>do</strong> se atreve) desse um passo seguro mais adiante naquele tão desusa<strong>do</strong>caminho; o que confusamente se representava adiante ao longo deste cabo,era a carranca me<strong>do</strong>nha, o temerosíssimo Boja<strong>do</strong>r <strong>do</strong> futuro, coberto denévoas, de sombras, de nuvens espessas, de escuridade, de cegueira, deme<strong>do</strong>s, de horrores, de impossíveis. Mas se agora virmos desfeitas estasnévoas, desvaneci<strong>do</strong> este escuro, facilitada esta passagem, <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> este cabo,sonda<strong>do</strong> este fun<strong>do</strong> e navegável e navegada a imensidade de mares que depoisdele se seguem, e isto por um piloto de tão pouco nome e uma tão pequenabarquinha como a <strong>do</strong> seu limita<strong>do</strong> talento, demos os louvores a Deus e àsdisposições de sua Providência, e entendamos que se passou o cabo, porquechegou a hora.É admirável a este propósito um lugar <strong>do</strong> profeta Daniel, com quedemonstrativa e indubitavelmente se persuade e convence esta verdade nospróprios termos da inteligência das profecias em que falamos.No cap. XII de Daniel, depois de um anjo lhe ter declara<strong>do</strong> grandes mistérios<strong>do</strong>s tempos futuros, man<strong>do</strong>u-lhe que fechasse e selasse o livro em queestavam escritas e lhe disse estas notáveis palavras: Tu autem, Daniel, claudesermones et sigra librum, usque ad tempus statutum, plurimi pertransibunt etmultiplex erit scientia: >>Tu, Daniel, fecharás e selarás o livro (em que


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 52 de 16927/08/2011escreveres estas cousas que tenho dito), para que estejam fechadas e seladasaté o tempo determina<strong>do</strong> por Deus; entretanto passarão muitos por elas, ehaverá sobre a inteligência de seus mistérios grande variedade de ciências eopiniões.:>>Este é o senti<strong>do</strong> literal e verdadeiro destas palavras <strong>do</strong> anjo, como se pode verem to<strong>do</strong>s os comenta<strong>do</strong>res de Daniel, posto que elas são tão claras e expressasque não necessitam de comenta<strong>do</strong>r. De maneira que, nas escrituras <strong>do</strong>sprofetas, há cousas de tal mo<strong>do</strong> fechadas e seladas, que ninguém as podeentender nem declarar, até que chegue o tempo determina<strong>do</strong> pela Providênciadivina, o qual é o que só tem poder para romper os sigilos e abrir e fazerpatentes as escrituras fechadas e declarar os mistérios futuros, que nelasestavam ocultos e encerra<strong>do</strong>s. E enquanto este tempo não chega, por mais<strong>do</strong>utos, sábios e santos que sejam os expositores daquelas profecias, dirãocousas muito discretas, muito <strong>do</strong>utas, muito santas e muito várias, mas o certoe verdadeiro senti<strong>do</strong> delas sempre ficará oculto e escondi<strong>do</strong>, porque passarãoto<strong>do</strong>s por ele sem entenderem nem penetrarem Isto quer dizer: Plurimipertransibunt, et multiplex erit scientia.()nde se deve advertir e notar que muitos homenl ainda que sejam de grandesletras, cuidam que passam os livros, e passam por eles: Plurimi perransibunt.Por quantos lugares passaram os Origgenes, os Clementes, os Tertulianos, quedepois en tenderam os Agostinhos, os Basílios, os Jerônimos? Por quantospassaram os Hugos, os Ricar<strong>do</strong>s, os Rupertos, os Teo<strong>do</strong>retos, que depoisentenderam os Montanos, os Sanches, os Cornélios, os Riberas? E por quantospassaram também estes, que depois entenderam melhor os que lhes foramsuceden<strong>do</strong>, não porque os últimos sejam mais <strong>do</strong>utos ou de mais aguda vista,mas porque lêem e estudam à luz da candeia, ajuda<strong>do</strong>s e ensina<strong>do</strong>s <strong>do</strong> tempo,que é mais certo intérprete das profecias, e para o qual reservou Deus aabertura <strong>do</strong>s seus sigilos? Signa librum usque ad tempus constitutum.No Apocalipse (cujas profecias são próprias deste tempo), em que a Igreja deCristo se vai continuan<strong>do</strong> mais claramente que em nenhum outro lugar dasEscrituras, temos relata<strong>do</strong> este segre<strong>do</strong> da Providência divina, com que dispôse tem decreta<strong>do</strong> que as profecias se vão descobrin<strong>do</strong> e entenden<strong>do</strong> ordenada esucessivamente aos mesmos passos, ou mais vagarosos ou mais apressa<strong>do</strong>s,com que vão seguin<strong>do</strong> e varian<strong>do</strong> os tempos. Entre as cousas muito misteriosasque viu S. João, ou a mais misteriosa de todas, foi um livro fecha<strong>do</strong> e sela<strong>do</strong>com sete selos o qual era o seu mesmo Apocalipse; foram-se rompen<strong>do</strong> estesselos e abrin<strong>do</strong>-se o livro, mas não to<strong>do</strong> Juntamente, senão por passos eespaços: um selo primeiro e outros depois, e com grande aparato decerimônias e efeitos admiráveis no céu e na terra; o mistério destas pausas eintervalos era porque se haviam ir descobrin<strong>do</strong> as profecias que estavamescritas no livro, e assim se haviam ir entenden<strong>do</strong>, não juntamente, senão emdiferentes tempos, e não apartadas de seus efeitos, senão igualmente comeles. De maneira que nas profecias estão encobertos os tempos e os efeitos, enos tempos e nos ebeitos estarão descobertas as profecias; e por isso naquelemisterioso livro, assim como eram diversas as profecias e diversos os efeitos esucessos da Igreja e <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, que nelas estavam profetizadas, assim tambémeram diversos os selos com que estavam fecha<strong>do</strong>s e diversos os tempos emque se haviam de abrir e manifestar, sen<strong>do</strong> o mesmo tempo e os mesmossucessos os que as abrissem e manifestassem, ou depois de chegarem, ouquan<strong>do</strong> já forem chegan<strong>do</strong>. Bem assim como antes de se acabar de to<strong>do</strong> anoite, pelos resplen<strong>do</strong>res da aurora se conhece a vizinhança <strong>do</strong> Sol, antes queele se veja descoberto nos horizontes.E se quisermos especular a razão desta providencia, acharemos que não éoutra senão a majestade da sabe<strong>do</strong>ria e omnipotência divina, sempre admirávelem todas suas obras.É este mun<strong>do</strong> um teatro; os homens as figuras que nele representam, e ahistória verdadeira de seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e dispostamaravilhosamente pelas idéias de sua Providência. E assim como o primor esubtileza da arte cômica consiste principalmente daquela suspensão deentendimento e <strong>do</strong>ce enleio <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, com que o enre<strong>do</strong> os vai levan<strong>do</strong>após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso, encobrin<strong>do</strong>-sede indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, senão


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 53 de 16927/08/2011quan<strong>do</strong> já vai chegan<strong>do</strong> e se descobre subitamente entre a expectação e oaplauso, assim Meus, soberano Autor e Governa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e perfeitíssimoexemplar de toda a natureza e arte para manifestação de sua glória eadmiração de sua sabe<strong>do</strong>ria, de tal maneira nos encobre as cousas futuras,ainda quan<strong>do</strong> as manda escrever primeiro pelos profetas, que nos não deixacompreender nem alcançar os segre<strong>do</strong>s de seus intentos, senão quan<strong>do</strong> Já temchega<strong>do</strong> ou vêm chegan<strong>do</strong> os fins deles, para nos ter sempre suspensos naexpectação e pendentes de sua providência. E é esta regra (com poucaexcepção de casos) tão comum em Deus e seus decretos, que, ainda quan<strong>do</strong> asprofecias são muito claras, costuma atravessar entre elas e os nossos olhosumas certas nuvens, com que sua mesma clareza se nos faz escura. Eu o nãocrera, se o não vira esento para maior admiração em um <strong>do</strong>s maiores profetas,que assim o confessa, não de outrem, senão de si: In anno primo Darii, filiiAsssueri, de semine Me<strong>do</strong>rum, qui imperavit super regnum Chaldeorum, announo regni ejus, ego, Daniel, intellexi in libris numerum annorum, de quo factusest sermo Domini ad Jeremiam prophetam, ut complerentur desolationisHierusalem septuaginta anni: e cativeiro <strong>do</strong>sJudeus em Babilônia.Agora entra o caso e a admiração: Esta profecia de Jeremias, que Daniel afirmaque entendeu no primeiro ano <strong>do</strong> império de Dario, é <strong>do</strong> cap. XXV daqueleprofeta, e diz assim: Et erit uníversa terra haec in solitudinem et in stuporem,et servient omnes gentes istae regi Babylonis septuaginta annis:Estes setenta anos, como consta da exacta cronologia que se pode verlargamente provada em Perério e rios comenta<strong>do</strong>res da profecia de Daniel, seacabaram de cumprir no primeiro ano <strong>do</strong> império de Dario. Pois se o termo desetenta anos estava profetiza<strong>do</strong> com palavras tão claras e expressas como sãoaquelas de Jeremias: Et servsent omnes gentes istae regi Babylonis septuagintaanni0s, como diz Daniel, que não entendeu o número destes setenta anos,senão no primeiro ano de Dario, que foi o último <strong>do</strong>s mesmos setenta? Podiahaver conta mais clara? Podia haver palavras mais expressas? Não Mas como éregra ordinária da Providência divina, que as profecias se não entendam senãoquan<strong>do</strong> já tem chega<strong>do</strong> ou vai chegan<strong>do</strong> o fim delas, por isso, sen<strong>do</strong> a profeciatão clara e o número <strong>do</strong>s setenta anos tão expresso, não quis Deus que omesmo Daniel, sen<strong>do</strong> Daniel, o entendesse senão no último ano.O tempo foi o que interpretou a ,profecia, e não Daniel, sen<strong>do</strong> Daniel um tãogrande profeta. E esta parece a energia daquela sua palavra: Ego, Danielintellexi: Eu, Daniel, sen<strong>do</strong> Daniel, não entendi a profecia tão clara de Jeremias,senão no último ano <strong>do</strong>s setenta, em que ela se cumpria; mas assim havia deser, porque assim o profetizou e o repete o mesmo Jeremias em <strong>do</strong>is lugares,onde, falan<strong>do</strong> de suae profecias, diz que se não entenderão senão nos últimostempos <strong>do</strong> cumprimento delas: No cap. XXIII: Non revertetur furor Dominiusque dum faciat et usque dum compleat cogitationem cordis sui: in novissimisdiebus intelligetis consilium ejus. E no cap. XX, quase pelas mesmas palavras:Non avertet iram indignationis Dominus, <strong>do</strong>nec faciat et cormpleat cogitationemcordis sui: in novissimo dierum intelligetis ea.E que fez Deus, ou pode fazer, para que umas palavras tão expressas e umaprofecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma nuvem (como dizíamos)entre a profecia e os olhos, e com este veu, ou sobre os olhos ou sobre aprofecia, o claro por claríssimo que seja fica escuro.Quan<strong>do</strong> queremos encarecer uma cousa de muito clara, dizemos que é claracomo a água, porque não há cousa mais clara; e contu<strong>do</strong> essa mesma água(como discretamente advertiu David), com uma nuvem diante, é escura:...tenebrosa aqfxa in nubibgs aeris Em haven<strong>do</strong> nuvem em meio, até a água eescura, e tais são as profecias, por claras e clarissimas que sejam. Por issopedia o mesmo David a Deus que lhe tirasse o véu <strong>do</strong>s olhos, para que pudesseconhecer as maravilhas <strong>do</strong>s seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 54 de 16927/08/2011mitrabilia de lege tua. Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ouse não querem entender, porque as quero remos ver por entre nuvens, e comvéu sobre os olhos! Peço e protesto a to<strong>do</strong>s os que lerem esta <strong>História</strong>, ou quetirem primeiro-o véu de sobre os olhos, ou que a não leiam.Como se hão-de entender as revelações com os entendimentos e olhosvenda<strong>do</strong>s? Não basta só que Deus tenha revela<strong>do</strong> os futuros, é necessário querevele também os olhos: Revela oculos meos. Se os olhos estão cobertos eescureci<strong>do</strong>s com o véu <strong>do</strong> afeto ou com a nuvem da paixão; se os cega o amorou ódio, a inveja ou a lisonja, a vingança ou o interesse, a esperança ou otemor, como se pode entender a verdade da profecia, por muito clara que nelaesteja, quan<strong>do</strong> o primeiro intento e nega-la ou quan<strong>do</strong> menos escurecê-la? Asnuvens que Deus põe sobre a profecia, o tempo as gasta e as desfaz; mas osvéus que os homens lançam sobre os próprios olhos, só eles os podem tirar,porque eles são os que querem ser cegos.Que profecias mais claras que as da vinda de Cristo ao Mun<strong>do</strong>? E muito maisclaras ainda depois de manifestas e provadas com os mesmos efeitos. Econtu<strong>do</strong> estas são as que mais obstinadamente nega a cegueira judaica, porquetêm os olhos cobertos com aquele antigo véu de Moisés, como lhes lançou emrosto o grande Paulo Judeu e semente de Abraão, como eles, <strong>do</strong> tribo deBenjamim: Usque in hodiernum diem, cum legitur Moyses, velamen positum estsuper cor eortum; cum autem conversu fuerit ad Dominum, auferetur velamen..Tirem o véu de sobre os olhos, e verão a luz das profecias: ainda que a profeciaseja candeia acesa, como se há-de ver com os olhos cobertos? Tire-se oimpedimento à luz, e logo se verão a candeia e mais o que ela alumeia. Amulher que buscava a dracma perdida não só acendeu a candeia, mas varreu acasa:...accendit lucernam, et (...) everrit <strong>do</strong>mum. A candeia está acesa e muitoclara, mas a casa não está varrida; varra-se e alimpe-se a casa, tirem-se osestorvos e impedimentos à luz, e logo verão os olhos o que há nela, e se acharáo que se busca; mas nem se busca, nem se quer achar.De maneira que, resumin<strong>do</strong> toda a resposta da objecção, digo que descobrimoshoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor porquevemos mais perto; e que trabalhamos menos porque achamos os impedimentostira<strong>do</strong>s. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passa<strong>do</strong>s; vemos demais perto, porque estamos mais chega<strong>do</strong>s aos futuros; e achamos osimpedimentos tira<strong>do</strong>s, porque to<strong>do</strong>s os que cavaram neste tesouro e varreramesta casa, foram tiran<strong>do</strong> impedimentos à vista, e tu<strong>do</strong> isto por beneficio <strong>do</strong>tempo, ou, para o dizer melhor, por providência <strong>do</strong> Senhor <strong>do</strong>s tempos.CAPÍTUL0 XI Declara-se qual seja a novidade desta <strong>História</strong>, e que as cousasnovas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdadeQuan<strong>do</strong> no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos, bemadvertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são estas armasjá tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer seus golpes, ainda quea novidade da nossa <strong>História</strong> fora qual se supõe, e não é, contanto que nãotenha, como por graça de Deus não tem, cousa alguma que encontre a Fé ou<strong>do</strong>utrina da Igreja. 0 reparo da novidade não é crime de que ela tema seracusada, e pelo qual, quan<strong>do</strong> o seja, ponha em risco o crédito da sua verdade,se por si mesma lhe for devida .Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de novas. Aprimeira instituição da vida monástica, sen<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> mais santo da IgrejaCatólica, que acusações não padeceu antigamente (e padece ainda hoje) <strong>do</strong>shereges, pela novidade <strong>do</strong> hábito e mo<strong>do</strong> de vida! Digam-no as apologias de S.João Crisóstomo, S. Gregório, S. Bernar<strong>do</strong> Santo Tomás, S. Boaventura, paraque não falemos nos Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nosBelarminos. A mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, emquantos Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória destetítulo! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio, Prudêncio,e to<strong>do</strong>s os outros padres que antes e depois destes escreveram contra Gentios.Mas o maior exemplo de to<strong>do</strong>s neste caso é o daquela divina obra de S.Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que hoje a<strong>do</strong>ptamos por canónica, tãoestranhada quan<strong>do</strong> nova, não por Gentios ou hereges, nem só por quaisquercatólicos, senão pela maior luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui aspalavras deste grande e santíssimo <strong>do</strong>utor, escritas não a outrem, senão ao


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 55 de 16927/08/2011mesmo S. Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litterislaborare te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, tequoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te voluisseexplanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das EscriturasSagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu não quisera quevós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são escuras ou manifestas.Se escuras, com razão se crê que também vos podeis enganar na suainterpretação, como os outros escritores; e se manifestas, supérflua diligência équererdes vós explicar o que os outros não podem deixar de ter entendi<strong>do</strong>».Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qualrespondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e verdadeiramentecom vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non debuisse me interpretaripost veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo tibi sermone respondeo: omnesveteres tractatores, qui nos in Domino praecesserunt et qui Scripturas Sanctasinterpretati sunt, aut manifesta. Si obscura, quomo<strong>do</strong> tu post eos ausus esdisserere, quod illi explanare non potuerunt? Si manifesta, superfluum est tevoluisse disserere, quod illis latere non potuit [...] respondeat mihi prudentiatua, quare tu post tantos ac tales scriptores et interpretes in explanationePsalmorgm diversa senseris? Si enim obscurt sunt Psalmi, te quoque in eis fallipotuisse credendum est; si manifesti, illos in eis falli potuisse non creditur, acper hoc utroque mo<strong>do</strong> superflua erit interpretatio tua, et hac lege post prioresnullus loqui audebit, et quodcumque alius occupaverit, alius de eo scribendi nonhabebit licentiam.«Quanto ao que me dizeis—diz S. Jerónimo a S. Agostinho — que eu me nãodevia cansar em interpretar as Escrituras depois <strong>do</strong>s antigos intérpretes delas, epara isso usais daquele novo silogismo, respon<strong>do</strong> com as mesmas vossaspalavras: To<strong>do</strong>s os expositores <strong>do</strong>s Livros Sagra<strong>do</strong>s, que nos precederam noSenhor, ou interpretaram o que era escuro, ou o que era manifesto. Se o queera escuro, como vos atreveis também a declarar o que eles não puderam? Seo que era manifesto, supérfluo trabalho é cansar-vos em querer fazer entendero que eles não podiam deixar de ter entendi<strong>do</strong>. Responda-me logo vossaprudência: com razão, depois de tantos e tais intérpretes, vos atrevestes naexposição <strong>do</strong>s Salmos a sentir diversamente <strong>do</strong> que eles sentiam? Porque, se osSalmos são escuros, também se deve entender que vós vos podeis enganar nasua inteligência; e se são claros e manifestos, supérflua é e não necessária avossa interpretação E segun<strong>do</strong> esta lei, ninguém poderá falar depois <strong>do</strong>sprimeiros, e tanto que um se adiantar à exposição de algum Livro Sagra<strong>do</strong>, logonenhum outro terá licença para escrever sobre ele.»Isto dizia Santo Agostinho a S. Jerónimo sobre a novidade de sua versão, aqual hoje é de fé; e isto S. Jerónimo a S. Agostinho sobre a novidade da suaexposição <strong>do</strong>s Salmos, que hoje . é antiquíssima e mui venerada, e depois delase escreveram infinitas outras mais novas, e ainda os Salmos não estãobastantemente interpreta<strong>do</strong>s. Assim que os reparos da novidade são pensão(como dizia) das cousas boas e grandes, e não só entre os inimigos eimpugna<strong>do</strong>res da verdade, senão entre os maiores zela<strong>do</strong>res e defensores dela.Mas destes mesmos exemplos se convence claramente quão frívolas são epouco eficazes as acusações <strong>do</strong> que se estranha por novo. Não é o tempo,senão a razão, a que dá o crédito e autoridade aos escritores; nem se deveperguntar o quan<strong>do</strong>, senão o como se escreveram. A antigüidade das obras éum acidente extrínseco que nem tira nem acrescenta validade, e só porque põeos autores delas mais longe <strong>do</strong>s olhos da inveja, lhes granjeia a triste fortunade serem mais venera<strong>do</strong>s ou melhor conheci<strong>do</strong>s depois da morte, que vivos. Astrevas foram mais antigas que o Sol e os animais que o homem. O TestamentoVelho não é mais perfeito que o Novo, por ser mais antigo, nem o Novo perde aperfeição e excelência que tem sobre o Velho, por ser mais novo. Que cousa háhoje tão antiga, que não fosse nova em algum tempo? Diz Salomão que não hácousa nova debaixo <strong>do</strong> Sol; e ainda é mais universalmente certo, que não hácousa debaixo <strong>do</strong> Sol que não fosse nova. A mais nova entre todas as <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>foi o mesmo Mun<strong>do</strong>. Se a nossa religião é nova, argumentava Arnóbio contra osGentios, tempo virá em que seja velha; e se a vossa superstição é velha, tempohouve em que também foi nova. Dizeis que a religião cristã é nova, porqueainda não tem quatrocentos anos, e há menos de <strong>do</strong>is mil que os deuses quevós a<strong>do</strong>ráveis ainda não tinham cento. Com a mesma energia disse o impera<strong>do</strong>r


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 56 de 16927/08/2011Cláudio ao sena<strong>do</strong>: Omnia, Patres conscripti, quae nunc vetustissima creduntur,nova fuere: plebei magistratus post patricios, latini post plebeios, coeterarumItaliae gentium post latinos; inveterescet hoc quoque, et quod hodie exemplistuemur inter exempla erit. E verdadeiramente é assim: quantas cousas são hojeexemplos que começaram sem exemplo? Todas as opiniões ou verdades que seescreveram, tiveram princípio, e aquele que as começou sem autor, foi oprimeiro que lhes deu a autoridade.Acudia S. Jerónimo à queixa da sua nova versão, e diz assim contra Rufino:Periculosum opus certe, et obtrectarorum meorum latratibus patens, qui measserunt in septuaginta interpretum sugillatione, nova pro veteribus cudere; itaingenium quasi vinum probantes. Discretamente; porque antepor o velho aonovo só pelos anos, escolha parece mais de cela vinária, que <strong>do</strong> trono oucadeira de Salomão. E notem os leitores que são estas palavras de uma dasapologias que S. Jerónimo escreveu em defesa daquela nova versão da SagradaEscritura, que hoje se chama Vulgata, e é de fé católica; para que se veja quaissão os juízos <strong>do</strong>s homens e quão impugnadas que costumam ser as obras deque Deus se quer servir.Não tinha esta de S. Jerónimo outro reparo mais que a glória de ser sua e nova;mas sobre esta lhe argüía Rufino e outros homens <strong>do</strong>utos tais calúnias, que aqueriam fazer não menos que herética, como se só os antigos fossem católicose a verdade sem cãs não fosse verdade. Uns o faziam por zelo, outros porinveja, muitos por malícia, to<strong>do</strong>s por ignorância.E verdadeiramente que, se bem apontamos os fundamentos destesimpugna<strong>do</strong>res d a novidade e as razões daquela dura lei com que forçosamentequerem que sigamos em tu<strong>do</strong> os antigos e a<strong>do</strong>remos as suas pisadas, ou éporque têm para si que já se não podem dizer cousas novas, ou que não hácapacidade nos modernos para as poderem descobrir e dizer. Se o primeiro,grande injúria fazem à verdade e às ciências; se o segun<strong>do</strong>, grande afronta aoshomens e à nossa idade. Mas não me ouçam a mim, ouçam aos mesmosantigos. E começan<strong>do</strong> pelos Gentios, alumia<strong>do</strong>s só pelo lume da razão, Séneca,na epist. LXIV, escreve ou ensina a Lucilo desta maneira: Multum adhuc restatoperis, multumque restabit; nec ulli nato, post mille secula, praecludeturoccasio aliqua adhuc adjiciendi. [...] Multum egerunt, qui ante nos fuerunt, sednon peregerunt. E na epístola LXXIX:: Et qui praeesserant, non praeripuissemihi videntur quae dici poterant, sed aperuisse; sed multum interest, utrum adconsumptam materiam, an ad subactam accedas: crescit in dies, et inventuminventa non obstant. E Marco Túlio, forman<strong>do</strong> um perfeito ora<strong>do</strong>r no livroOrator: Nec vero Aristotelem in philosophia deterruit a scriben<strong>do</strong> amplitu<strong>do</strong>Platonis, nec ipse Aristoteles admirabili quadam scientia et copia caeterorumstudia restrinxitAté aqui estes <strong>do</strong>is gentios, em que era ainda maior a soberba e presunção quea ciência. E se estes, sen<strong>do</strong> ambos eminentíssimos nas suas artes nãoduvidaram confessar que havia ainda muito mais que andar, que inventar, quedescobrir e saber nelas, porque havemos nós de esperar e afrontar tanto anossa idade e os homens dela, que cuidemos que já não podem adiantar asciências nem dizer e acrescentar sobre elas cousa de novo?Séneca floresceu nos tempos de Nero, que vem a ser, por boas contas,dezesseis séculos antes deste nosso; e se ele conheceu que os que nascessemde ali a mil séculos, ainda teriam muito que dizer na mesma filosofia moral emque ele tanto e tão subtilmente disse, que muito é que se atreva a dizer algumacousa nova a nossa idade, se ainda lhe restam por sua confissão novecentos eoitenta e quatro séculos (se tantos durar o Mun<strong>do</strong>) para dizer e inventar muitode novo sobre o mesmo Séneca? Se depois <strong>do</strong> divino Platão (como ponderaTúlio) não acovardaram os seus escritos a Aristóteles para que não escrevesse,nem a admirável sabe<strong>do</strong>ria e cópia <strong>do</strong> mesmo Aristóteles pôde apagar osfogosos espíritos de tantos filósofos que depois dele e sobre ele escreveram,sen<strong>do</strong> por comum aprovação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s maiores engenhos que produziua Grécia e a mesma natureza, porque havemos de querer abreviar as mãos <strong>do</strong>Autor dela e cuidarmos que já não podem falar de novo os homens presentes, esó lhes damos licença para decorarem e repetirem o que disseram os passa<strong>do</strong>s?Se assim fora, debalde nos deu Deus o entendimento, pois nos bastava amemória. Porque, como bem disse o mesmo Séneca, saber só o que os Antigos


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 57 de 16927/08/2011souberam, não é. saber, é lembrar-se: Aliud est meminisse, aliud scire.Meminisse est rem commissam memoriae custodire; at contra scire, est et suafacere quemque, nec ab exemplari pendere, et toties ad magistratum respicere.Estes tais haviam de ter a testa virada para as costas, como dizem os Italianos<strong>do</strong>s Alemães, que to<strong>do</strong>s se ocupam na erudição <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, sem descobrir neminventar cousa nova. Muito alcançaram os Antigos, e se lhes deve o primeirolouvor; mas ainda nos deixam seus grandes talentos em que exercitar osnossos.E se isto é assim nas ciências humanas, que será naquele pego imenso eprofundíssimo das divinas) Mas ouçamos também aos antigos delas.David que veio ao mun<strong>do</strong> 3000 anos depois de sua criação, diziaconfiadamente, que soubera e entendera mais que to<strong>do</strong>s os velhos: Supersenes intelexi; e estes velhos eram aqueles varões veneráveis da primeiraantigüidade — Seth, Enoch, Mathusalem, Noe, Abraão, Isaac Jacob, José,Moisés Josué, Melquisedech, Samuel e tantos outros de igual sabe<strong>do</strong>ria e nome.Desde a criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> até a reparação dele, em que se contaram quatro milanos, sempre os homens se foram exceden<strong>do</strong> na sabe<strong>do</strong>ria divina, ainda quefossem diminuin<strong>do</strong> na idade. Não é consideração minha, senão <strong>do</strong>utrina de S.Gregório, Papa: Per incrementa temporum crevit scientia spiritualium Patrum;plus namque Moyses quam Abraham, plus Prophetae, quam Moyses, plus Apostoli, quam Prophetae in Omnipotentis Dei scientia eruditi sunt: «Ao passoque iam proceden<strong>do</strong> os tempos —diz S. Gregório— ia juntamente crescen<strong>do</strong> asabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s antigos Padres, conhecen<strong>do</strong> sempre mais de Deus os segun<strong>do</strong>sque os primeiros. Moyses soube mais das cousas divinas que Abraão; osProfetas mais que Moysés; os Apóstolos mais que os profetas». E o mesmo quetinha sucedi<strong>do</strong> naquela primeira e antiga igreja, se experimenta depois nasegunda, nova e mais perfeita em que hoje estamos, de que ela tinha si<strong>do</strong>figura, porque, passa<strong>do</strong>s os tempos de Cristo e de sua vida, em que asabe<strong>do</strong>ria eterna viveu humanada no Mun<strong>do</strong> entre os homens (que foi umparêntesis excessivo e infinito de luz, com o qual nenhum outro esta<strong>do</strong> daIgreja se pode comparar), nos séculos que depois foram suceden<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s Padrese Doutores sagra<strong>do</strong>s, sempre foram também crescen<strong>do</strong>, com novos e maioresresplen<strong>do</strong>res, as ciências divinas, acrescentan<strong>do</strong>, ilustran<strong>do</strong> e escreven<strong>do</strong>muitas cousas de novo os que vinham depois, sobre o que tinham sabi<strong>do</strong> eensina<strong>do</strong> os mais antigos.Lactancio Firmiano, Padre <strong>do</strong>s primeiros séculos da Igreja, a quem tinhamprecedi<strong>do</strong> os Dionisios Areopagitas, os Hieroteus, os Inácios, os Policarpos, osIreneus, os Justinos, os Orígenes, os Tertulianos, os Clementes Alexandrinos,no Liv. II: Divinarum Institutionum, diz assim: Nec qui nos illis temporibusantecessunt;quae si hominibus aequaliter datur, occupari ab antecedentibusnon potest. S. Jerônimo, que floresceu muito depois <strong>do</strong> mesmo Lactancio e aquem prece deram os Hipólitos, os Ciprianos, os Taumaturgos, os Arnóbios, osAtanásios, os Basílios, os Teófilos, os Cirilos, os Epifânios, aumentou e adiantoutanto o estu<strong>do</strong> das divinas letras, que mereceu na eminência delas, porconsenso e pregão universal da igreja, o renome de <strong>do</strong>utor Máximo, naApologia acima citada , contra Rufino, escreve o santo Doutor com a modéstiacom que costumam falar os homens maiores, estas palavras: Quid igitur?Damnamus veteres? Minime; sed post priorum studia in <strong>do</strong>mo Domini, quodpossumus, laboramus. E converten<strong>do</strong>-se no fim contra os vitupera<strong>do</strong>res <strong>do</strong>sinventos novos, estranha muito que, sen<strong>do</strong> o apetite ou gula humana tãoambiciosa de novos e esquisitos sabores, só nas ciências, que são o sabor <strong>do</strong>sentendimentos se contentam os homens com a vulgaridade ou velhice <strong>do</strong>smanjares usa<strong>do</strong>s: Nam cum nova semper expectant voluntates, et gulae earumvicina maria non sufficiant, cur in solo studio scripturarum veteri saporecontentis sunt ?São Gregório Magno, que veio ao Mun<strong>do</strong> para lhe dar melhor cabeça <strong>do</strong> que seujuízo e erra<strong>do</strong>s juízos merecem, depois <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong>is Gregórios, Nazianzeno eNiceno, e <strong>do</strong> mesmo Jerônimo- depois <strong>do</strong>s Clímacos, <strong>do</strong>s Procópios, <strong>do</strong>sBoécios, <strong>do</strong>s Cassianos, <strong>do</strong>s Teo<strong>do</strong>retos; depois <strong>do</strong>s Euquérios, <strong>do</strong>s Pascásios,<strong>do</strong>s Máximos, <strong>do</strong>s Paulinos, <strong>do</strong>s Cassio<strong>do</strong>ros; depois <strong>do</strong>s Hesíquios, <strong>do</strong>sCrisólogos, <strong>do</strong>s Leões, <strong>do</strong>s Atanásios, <strong>do</strong>s Fulgêncios, e, o que é mais que tu<strong>do</strong>,depois de um Crisóstomo, de um Ambrósio e de um Agostinho, penetrou tão


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 58 de 16927/08/2011alta mente o espírito interior da Teologia Mística e Ascética, que por aplausocomum <strong>do</strong> Concílio oitavo toletano foi preferi<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os Doutores na <strong>do</strong>utrinaética e moral, com aquele famoso elogio: In ethicis assertionibus praecunctismerito praeferendus.Mas nem por isso depois de tantos e tão esclareci<strong>do</strong>s lumes da Igreja deixaramde espalhar nela, em to<strong>do</strong>s os séculos seguintes, novos raios de novas luzes ostrês ilustríssimos espanhóis — Isi<strong>do</strong>ro, Eugénio e Ildefonso; os Sofrónios, osElísios, os Bedas, os Damascenos, os Anselmos, os Teofilatos, os Eutímios, osRupertos, um Bernar<strong>do</strong>, nome singular, e muitos outros; entre os quais Ricar<strong>do</strong>Vitorino, defenden<strong>do</strong> modestamente alguma novidade que se acharia em seuslivros, diz assim no prólogo de um deles: Non est magnum, vel mirum, si inuno aliquo, aliquid addere possumus [...] haec propter illos dicta sunt, qui nihilacceptant, nisi quod ab antiquissimis patribus acceperunt; sed sicut Deusproduxit novos fructus ad recreationem hominis exterioris, non creduntscientias impertiri ad innovan<strong>do</strong>s sensus hominis interioris: «Não se tenha porcousa grande — diz Ricar<strong>do</strong> — nem merece<strong>do</strong>ra de admiração, que em algumamatéria das que escrevemos, possamos acrescentar alguma cousa de novo; edigo isto por aqueles que nada admitem nem lhes é aceito, senão o queprimeiro foi recebi<strong>do</strong> pelos antiquíssimos Padres. Mas se Deus para sustento egosto <strong>do</strong>s corpos, produz inacessivelmente to<strong>do</strong>s os anos tantos frutos novos,porque não cuidarão que também as ciências podem produzir cousas novaspara alimento e recreação das almas?»Não se podia explicar com mais clara comparação nem provar-se com maiseficaz argumento, e desde aquele tempo, que foi pelos anos de mil e trezentosa esta parte, se tem confirma<strong>do</strong> pela grandeza e liberalidade de Deus em to<strong>do</strong>sos séculos, com mais repeti<strong>do</strong>s exemplos que nos passa<strong>do</strong>s, porque não sóalumiou a Divina Providência pouco depois o Mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> com aquelas duastochas claríssimas e santíssimas de teologia — Santo Tomás e São Boaventura— mas antes e depois deles, para aumento ou competência de suas mesmasluzes, as cercou de tão luminosas e resplandecentes estrelas, que em outraidade podiam ter nome de primeiros planetas, como foram um Alberto Magno,um Alexandre de Ales e o famosíssimo e subtilíssimo Scoto, não só luz, senãofonte de luzes; as quais depois deste <strong>do</strong>utíssimo século se multiplicaram emtanto número, que se pode com razão dizer <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> o que Deus disse aAbraão <strong>do</strong> firmamento: Numera stellas, si potes.E porque é matéria impossível e número sem conto, fiquem em silêncio (pormais que tão grande bra<strong>do</strong> deram nas escolas) os Vasques, os Soares, osMolinas, os Valenças, os Belarminos, os Canísios, os Tole<strong>do</strong>s, os Lugos, osCaetanos, os Soutos, os Medinas, os Vitórias, em cujos felicíssimos e imensosescritos se vêem tão adiantadas as letras divinas, que mais parecem novas querenovadas.Digam agora os reprova<strong>do</strong>res das que eles chamam novidades, se se podeainda sobre os Antigos dizer alguma cousa de novo.É porventura o saber e dizer patrimônio só da Antigüidade e morga<strong>do</strong> como ode Isaac que, dada a bênção a Jacob, não fica outra para Esau? São os antigoscomo os cântaros da Sareftana (comparação de que usa Ruperto) que, depoisde cheios eles, parou a fonte milagrosa, e não correu mais o óleo? Houve nestegrande oceano de ciências alguma nau Vitória que desse volta a to<strong>do</strong> o mar? oualgum Gama que, passa<strong>do</strong> o cabo de Boa Esperança, a tirasse a to<strong>do</strong>s os outrosde novos descobrimentos? E se depois deste famoso círculo <strong>do</strong> Universo, aindaficaram mares e terras incógnitas que prometem novas empresas e novosargonautas, que será na esfera da sabe<strong>do</strong>ria e da verdade, cuja imensa einfinita circunferência só a pode abraçar 0 que é imenso e compreender O que éinfinito? Se depois <strong>do</strong>s antiquíssimos tiveram que descobrir os menos antigos, edepois <strong>do</strong>s que já não eram os primeiros, tiveram que inventar mais que ossegun<strong>do</strong>s, porque não quererão os a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res ou adula<strong>do</strong>res da Antigüidadeque, ainda depois de tanto dito, haja mais que dizer, e depois de tanto escrito,mais que escrever, e depois de tanto estuda<strong>do</strong> e sabi<strong>do</strong>, mais que estudar esaber?Como temo que os que condenam as cousas novas, são aqueles que não


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 59 de 16927/08/2011podem dizer senão as muito velhas, e pode ser que muito remendadas! Oavarento chama pródigo ao liberal. O covarde temerário ao valente. O distraí<strong>do</strong>hipócrita ao modesto; e cada um condena o que não tem, por não confessar oque lhe falta. O grande P.e Soares, que tanto tinha em si <strong>do</strong> que os Antigossouberam, dizia que daria de alvíssaras o que sabia, se lhe dessem o queignorava, isto é, o que ficou aos vin<strong>do</strong>uros para poderem saber e dizer denovo; mas querer precisamente que nos atemos em tu<strong>do</strong> aos passa<strong>do</strong>s, équerer atar os vivos aos mortos, crueldade que só se lê de Mezêncio.Fechemos este discurso, ou a<strong>do</strong>cemos a dureza deste rigor com o melífluoBernar<strong>do</strong>, o qual, como sempre falou pela boca da Escritura, assegurafirmemente aos vin<strong>do</strong>uros que poderão ter maiores notícias das cousas, <strong>do</strong> quetiveram e alcançaram os Antigos, e o prova e refere em <strong>do</strong>is textos ou <strong>do</strong>isexemplos: um de David, que afirmou que soubera mais que os passa<strong>do</strong>s; outrode Daniel, que prometeu saberiam mais os futuros: David quoque super<strong>do</strong>ctores suos et seniores <strong>do</strong>num sibi intelligentiae audacter praesumit, dicens:Super omnes <strong>do</strong>centes me intellexi. Sed et propheta Daniel: pertransibunt, aitplurimi et multiplex erit scientia, ampliorem scilicet rerum notitiam promittenset ipse posteris.Até aqui São Bernar<strong>do</strong>, escreven<strong>do</strong> a Hugo de São Vítor, que também lhe tinhaescrito lastima<strong>do</strong> da mesma chaga. To<strong>do</strong>s os grandes engenhos tiveramsempre esta queixa, e to<strong>do</strong>s se armaram destas apologias, porque to<strong>do</strong>sdisseram cousas novas; e nenhum careceu de quem lhas impugnasse. Não hacousa boa sem contradição, nem grande sem inveja:...Che come crebber l'arti,Crebbe l'invidia; e col sapere insiemeNe' cuori enflati i suoi veneni sparti.Mas antes de Petrarca o tinha dito em Roma o nosso discreto espanhol:Esse quid hoc dicam, vivis quod fama negatur,Et sua quod rarus tempora lector amat?Hi sunt invidiae nimirum, Regule, mores,Praeferat antiquos semper ut illa novis.Si veterem ingrati Pompeii quaerimus umbramEt laudant Catulli vilia templa senesEnnius et lectus salvo tibi, Roma, MaroneEt sua riserunt saecula Maeonidem.Os que mais queriam louvar a Cristo, diziam que era um <strong>do</strong>s Profetas antigos,sen<strong>do</strong> ele a luz de to<strong>do</strong>s os Profetas, e Herodes se persuadia que não podia sersenão o Baptista ressuscita<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> aquele a quem o Baptista não era dignode desatar a correia <strong>do</strong> sapato. Todas as cousas novas que se disserem nesta<strong>História</strong>, são aquelas que Deus tem prometi<strong>do</strong> que há-de fazer, quan<strong>do</strong> disse:Ecce nova facio omnia. Se acaso houver quem as impugne e contradiga, porquenem Deus pode fazer cousa de novo, sem contradição <strong>do</strong>s mesmos para quemas faz. A cousa mais nova que Deus fez no Mun<strong>do</strong>, foi aquela de que disse oProfeta: Creavit Dominus novum super terram: faemina circumdabit virum. Eesta novidade foi o alvo das maiores contradições, como também predisseoutro profeta: ...signum cui contradicetur.Mas para que não pareça que defen<strong>do</strong> as cousas novas, por não ser necessário


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 60 de 16927/08/2011este escu<strong>do</strong> à minha <strong>História</strong> responden<strong>do</strong> à objecção da novidade dela, digoque em toda essa novidade, com ser tão grande, nenhuma cousa direi de novo.Propriedade é <strong>do</strong>s futuros serem sempre novos to<strong>do</strong>s, por isso os últimos emais distantes se chamam novíssimos; mas ainda que esta <strong>História</strong> seja todade cousas tão novas, nem por isso ela será nova. :Ê uma <strong>História</strong> nova semnenhuma novidade, e uma perpétua novidade sem nenhuma cousa de novo;como isto possa ser. explicarei por alguns exemplos.Quan<strong>do</strong> os Romanos a primeira vez bateram os muros de Cartago com o aríeteou carneiro militar, ficaram os Cartagineses assombra<strong>do</strong>s com a novidadedaquela máquina, e não era novidade, senão esquecimento; porque osprimeiros inventores daquele bravo instrumento tinham si<strong>do</strong> os mesmosCartagineses; mas como havia muitos anos que gozavam da altíssima paz,esquecia-se Cartago <strong>do</strong> que inventara Cartago, e sen<strong>do</strong> cousa antiga e sua, atinha por novidade.Quero dizê-lo com palavras <strong>do</strong> grande Tertuliano, cuja foi esta advertência:...arietem [...] nemini umquam adhuc libratum, illa dicitur Carthago studiisasperrima belli, prima omnium armasse in oscillum penduli impetus [...] cumautem ultimarent tempora patriae, et aries jam romanus in muros quondamsuos auderet stupuere illico Carthaginienses, ut novam extraneum ingenium.Tantum aevi longinqua valet mutare vetustas. De maneira que o aríete, de queCartago tinha si<strong>do</strong> a primeira inventora, parecia instrumento novo aos mesmosCartagineses, não por novo, senão por esqueci<strong>do</strong>; não por novo, senão pormuito antigo.Muitas novidades se verão nesta nossa <strong>História</strong> não novas por novas, senãonovas por antiquíssimas. As pirâmides e obeliscos que assombraram com tãonova e desusada grandeza o foro romano (com boa vénia <strong>do</strong>s PadresConscritos), depois de serem velhice no Egito, foram novidade em Roma. Serãonovas neste nosso livro cousas que foram primeiro que as que hoje se têm porantigas. A nova opinião <strong>do</strong>s céus flui<strong>do</strong>s, também recebida em nossos dias,primeiro foi que a antiga de Aristóteles, que com tão continua<strong>do</strong> aplauso <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> os fez sóli<strong>do</strong>s e incorruptíveis.Nas ciências nascem poucas verdades; as mais delas ressuscitam. Se noMun<strong>do</strong>, como pouco há dizia Salomão, não há cousa nova, como se vêem cadadia tantas novidades no Mun<strong>do</strong>? São novidades de cousas não novas, e taisserão as desta <strong>História</strong>.Quan<strong>do</strong> Adão saiu flamante das mãos de Deus, abriu os olhos, e viu tantacousa nova, e todas eram mais antigas que ele. Nem eram elas as novas; eleera o novo. A novidade da nossa <strong>História</strong> há-de ser mais <strong>do</strong>s leitores que dela.Para aquele cego de seu nascimento, a quem Cristo abriu os olhos, ainda quenão eram novas as quantidades, porque as apalpava, foram novas as cores,porque as não via; já havia cores e luz, mas não havia olhos. Ao terceiro dia dacriação produziu a terra todas as árvores carregadas <strong>do</strong>s seus frutos. Se nãofora assim, não tivera ocasião o preceito, nem tentação o peca<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s osfrutos nasceram igualmente naquele dia. as pêras, os figos, as uvas e tambémas frotas novas; mas estas tiveram este nome, porque chegaram mais tarde ànossa terra.Porventura aquela metade <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> a que chamavam quarta parte, não foicriada juntamente com Ásia, com África e com Europa? E contu<strong>do</strong>, porque aAmérica esteve tanto tempo oculta, é chamada Mun<strong>do</strong> Novo; novo para nós,que somos os sábios; mas para aqueles bárbaros, velho e muito antigo. Assimque, recolhen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s estes exemplos, umas cousas faz novas o esquecimento,porque se não lembram. outras a escuridade, porque se não vêem; outras aignorância, porque se não sabem; outras a distancia, porque se não alcançam.outras a negligência, porque se não buscam; e de todas estas novidades semnovidade, haverá muito nesta nossa <strong>História</strong>. Lembraremos nela muitas cousasesquecidas, alumiaremos muitas escuras, descobriremos muitas ocultas,poremos à vista muitas distantes e procuraremos saber muitas ignoradas.E por não deixarmos sem juízo a controvérsia disputada entre as cousas novase as velhas, certamente entre umas e outras não se pode dar regra certa. O


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 61 de 16927/08/2011tempo umas cousas melhora e outras corrompe: ouro velho, vinho velho, amigovelho; casa nova, navio novo, vesti<strong>do</strong> novo. A velhice no ouro é preço, no vinhomadureza, no amigo constância, no vesti<strong>do</strong> pobreza, no navio e na casa perigo;absolutamente nas cousas que se consomem com o tempo, melhores são asnovas.Mais defendida está Roma com os muros de Urbano, que com os de Beluário;uns se conservam pelo que foram, outros pelo que são; em uns se admira aantigüidade, em outros se logra a fortaleza. A verdade e as ciências, em quenão tem jurisdição o tempo, impropriamente se chamam novas ou velhas,porque sempre são, sempre foram e sempre hão-de ser as mesmas, posto quenem sempre se conhecem igualmente. De Deus, que por essência é sabe<strong>do</strong>ria everdade, disse Tertuliano judiciosamente que nem é velho nem novo, masverdadeiro: ...germana divinitas nec de novitate nec de vetustate, sed de suaveritate censetur. E como a verdade da nossa <strong>História</strong> toda (como vimos) tenhao seu princípio em Deus, pedimos aos que a lerem que, assim no certo como noprovável, nem se atenda se é velho, nem se repare se é novo, mas só seconsidere se é ou pode ser verdade: Nec de novitate nec de vetustate, sed desua veritate censeatur. E quanto ao louvor que renunciamos fàcilmente, aindaque o merecêramos, digo com indiferença o que ensinou Cristo: ...scriba <strong>do</strong>ctus[...] profert de thesauro suo nova et vetera: «Os <strong>do</strong>utos quan<strong>do</strong> escrevem,tiram <strong>do</strong> seu tesouro as cousas novas e mais as velhas. Saber as velhas einventar as novas, isto parece que é ser <strong>do</strong>uto. Mas notou Santo Agostinho quenão disse Cristo as velhas e as novas, senão as novas e as velhas, dan<strong>do</strong> oprimeiro lugar às novas, porque as avaliou a suma justiça pelo merecimento enão pelo tempo: Non dixit vetera et nova, quod utique dixisset, nisi maluissetmeritorum ordinem servare, quam temporum. As cousas velhas são <strong>do</strong> tempo,as novas <strong>do</strong> merecimento; porque as velhas são alheias, as novas nossas.To<strong>do</strong>s dizem que os Antigos merecem maior louvor, e é assim; mas este louvor,se bem se considera, não é elogio da antigüidade, senão da novidade. Merecemmaior louvor os Antigos, porque foram os primeiros inventores das cousas; logoda novidade é o louvor, pois o mereceram, quan<strong>do</strong> as descobriram de novo. Sefora outro o autor desta <strong>História</strong>, folgara eu que se pudera dizer dele comVincêncio Lirinense: Per te posteritas gratulatur intellectum, quad ante vetustasnon intellectum venerabutur. CAPITULO XII Dá-se a razão por que emalgumas partes desta <strong>História</strong> se não alegaram padres e seguiram exposições<strong>do</strong>s escritores modernosAinda que o nosso intento é seguir em quanto nos for possível as pisadas <strong>do</strong>santigos Padres, como Padres e lumes da Igreja, depois <strong>do</strong>s Apóstolos (os quaisnão entram nesta controvérsia, porque em tu<strong>do</strong> o que escreveram foramalumia<strong>do</strong>s pelo Espírito Santo, e segui-los como havemos de seguir em tu<strong>do</strong>,não é só obséquio e piedade, senão obrigação e respeito); e posto que o nossodesejo fora levar sempre diante <strong>do</strong>s olhos esta segunda tocha, para alumiar epenetrar com sua luz, como dizíamos, o escuro das profecias; contu<strong>do</strong>, porquenão é nem será possível seguir em algumas cousas das que dizemos oudissemos este nosso intento e desejo, pede a razão e ordem da mesmaEscritura que, antes de passar mais adiante, desfaçamos este reparo, para oque os menos <strong>do</strong>utos ou mais escrupulosos não topem nele e levem desde logoentendídas as causas <strong>do</strong> que fizermos e os fundamentos, licença ou autoridadecom que o fazemos. Ver-se-á em algumas partes desta <strong>História</strong>, que ou nãoalegamos Padres antigos, ou nos desviamos da explicação que deram a algunslugares da Escritura, o que não fazemos senão com grandes razões, sem ofensada reverência que lhes devemos nem da verdade que seguimos, antes paramaior segurança e fundamento dela, a qual é o nosso intento e obrigaçãobuscar e descobrir a<strong>do</strong>nde quer que se ache, antepon<strong>do</strong> este respeito aqualquer outro, pois à verdade se deve o maior de to<strong>do</strong>s.As razões que nos movem e obrigam são três: a primeira, porque os Doutoresantigos não disseram tu<strong>do</strong>; segunda, porque não acertaram em tu<strong>do</strong>; terceira,porque não concordam em tu<strong>do</strong>. E com qualquer destes casos nos pode ser.não só lícito e conveniente, senão ainda necessário seguir o que se julgar pormais verdadeiro; porque nas cousas que não disseram, é forçoso falar semeles; nas cousas em que não acertaram, é obrigação apartar deles; e nascousas em que não concordaram, é livre seguir a qualquer deles; e tambémserá livre e lícito deixar a to<strong>do</strong>s, se assim parecer, como logo explicaremos.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 62 de 16927/08/2011PROVA-SE A PRIMEIRA RAZÃOPrimeiramente é certo que os Padres antigos não disseram tu<strong>do</strong>, e se provaclaramente com a experiência e lição de seus próprios livros, nos quais se nãoacha memória de muitas cousas grandes e <strong>do</strong>utas, achadas e acrescentadasdepois, não só nas outras ciências divinas, mas na inteligência das mesmasEscrituras Sagradas, e particularmente nas <strong>do</strong>s profetas, que nos tempos maischega<strong>do</strong>s a nós se descobriram, disputaram e entenderam como se lêem nosescritores modernos; e posto que para os 5 versa<strong>do</strong>s na lição de uns e outrosbastava esta suposição somente apontada, porei aqui para os demais aspalavras de <strong>do</strong>is grandes <strong>do</strong>utores, Castro e Canísio, ambos <strong>do</strong> séculoantecedente a este nosso, e ambos diligentíssimos investiga<strong>do</strong>res daantigüidade e <strong>do</strong>utíssimos na erudição da Escritura, Concílios e Padres, os quaisexpressamente afirmam que muitas cousas se sabem e entendem hoje queforam ignoradas <strong>do</strong>s Padres antigos, como fala Castro ou incógnitas a eles,como mais certamente diz Canisio.As palavras deste segun<strong>do</strong>, no livro primeiro De Beata Virgine, cap. VII, são asseguintes: Demum habuerint Patres suorum temporum rationem quibus multavel prorsus incognita erant, vel obscura neque satis evoluta, quae posterisdiligentius excutienda, et clarius illustranda, explicandaque non sine certo Deiconsilio reliquebantur... E Castro, no Liv. I Adversus haereses, cap. II, depoisde provar o mesmo com o lugar <strong>do</strong> cap. VI <strong>do</strong>s Cantares, que abaixo citaremos,conclui assim: Quo sit, ut multa nunc sciamus, qae, a primis Patribus autdubitata, aut prorsus ignorata fsuerunt. A qual diferença se não conheceu sócom a comprida experiência <strong>do</strong>s nossos tempos, senão já nos mesmos Padresse conhecia, como muitos deles escreveram, e particularmente entre os daprimeira idade, Tertuliano, e entre os da última Ricar<strong>do</strong> Vitorino, cujas palavrasde ambos referiremos neste mesmo capítulo.A razão de muitas cousas que hoje se sabem serem incógnitas aos Padresantigos, se pode considerar, ou da parte de Deus, ou da parte das mesmascousas. Da parte das mesmas cousas, nos não devemos admirar que lhesfossem incógnitas, por serem muitas delas dificultosas, escuras e muirecônditas nas Escrituras Sagradas e enigmas <strong>do</strong>s profetas, as quais se nãopodiam entender e penetrar só com a agudeza <strong>do</strong>s entendimentos, porsublimes e sublimíssimos que fossem, em quanto não estavam assisti<strong>do</strong>s deoutras notícias e circunstancias, que só se descobrem com o tempo e adquiremcom larga experiência.Excelente exemplo é nesta matéria o das ciências é artes, ainda naturais, asquais em seus princípios e rudimentos foram imperfeitas, e com os anos,experiência e exercício se vêem hoje sublimadas a tão eminente perfeição,como a náutica, a bélica, a música a arquitetura, a geografia, a hidrografia etodas ás outras matemáticas, e muito em particular a cronologia, de que nestemesmo capítulo falaremos. E assim como estas mesmas ciências e artescresceram e se apuraram muito com o socorro e aparelho de esquisitosinstrumentos, que nelas se inventaram, como foi na náutica o astrolábio, aagulha e o admirável segre<strong>do</strong> da pedra de cevar. e na bélica o terribilíssimo esubtilíssimo invento da pólvora, que deu alma e ser a tantos e tão notáveisinstrumentos de guerra, assim também puderam crescer e aumentar-se muitoas ciências divinas e chegar à perfeição e eminência em que hoje se vêem comos instrumentos próprios delas, que é a multidão de livros espalha<strong>do</strong>s efacilita<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> pelo beneficio da impressão, com que a <strong>do</strong>utrina eciência particular <strong>do</strong>s homens insignes se faz comum a to<strong>do</strong>s em tão distanteslugares, não sen<strong>do</strong> menor a comodidade <strong>do</strong>s mestres, que são instrumentosvivos das ciências, no concurso de tantas e tão diversas universidades, teatrose oficinas públicas de toda a sabe<strong>do</strong>ria; comodidade de que no tempo <strong>do</strong>sPadres se carecia, sen<strong>do</strong> necessário ao Doutor Máximo, São Jerônimo, como elemesmo escreve, copiar com imenso trabalho os livros por sua própria mão eperegrinar à Grécia à Palestina, ao Egipto e às Gálias para recolher os escritosde S. Hilário, ouvir a S. Gregório Nazianzeno, a Dídimo e aos mestres maisperitos na língua hebraica; inconvenientes que só podia vencer e contrastar umtão alenta<strong>do</strong> espírito e zelo de servir à Igreja, como <strong>do</strong> grande Jerônimo, dignotanto de imortal louvor pela eminência de sua sabe<strong>do</strong>ria, como pelos gloriosos


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 63 de 16927/08/2011trabalhos e suores com que a adquiriu e conquistou.Da parte <strong>do</strong>s mesmos Padres se deve igualmente considerar, que deixaram deespecular e dizer muitas cousas de grande importância que depois se souberame escreveram, porque se acomodaram à necessidade <strong>do</strong>s tempos em queviviam. To<strong>do</strong> o intento <strong>do</strong>s Padres antigos era provar a verdade da encarnação<strong>do</strong> Filho de Deus e o mistério de sua cruz, a qual na cegueira <strong>do</strong>s Judeus (comodiz S. Paulo) se reputava por escândalo e na ignorância <strong>do</strong>s Gentios porestultícia. E como esta era a guerra e a conquista daqueles tempos, todasarmas da Sagrada Escritura se forjavam e acostavam contra esta resistência, epor isso os primeiros Padres e seus sucessores nenhuma cousa buscavam nosLivros Sagra<strong>do</strong>s, não só proféticos, senão ainda nos históricos, mais que osmistérios de Cristo. É bom testemunho desta verdade o que diz Ruperto aTristérico, arcebispo coloniense, <strong>do</strong> prólogo <strong>do</strong>s seus Comentários sobre osProfetas menores: Scito me Pater mi sicut in caeteris Scripturis, ita et involumine duodecim Prophetarum operam dedisse, ad quaerendum Christum. Ecomo isto é o que só buscavam para escrever, isto é o que só achavam ou oque só escreviam, seguin<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s alegóricos e místicos e deixan<strong>do</strong> ouinsistin<strong>do</strong> menos nos literais, como se vê ordinariamente em todas asexposições <strong>do</strong>s Padres, que todas se empregam na alegoria, tocan<strong>do</strong> muitasvezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem algumaimpropriedade e violência.Assim o notaram entre os mesmos Padres alguns mais modernos que antigos eoutros menos antigos que antiquíssimos: <strong>do</strong>s primeiros, é Ricar<strong>do</strong> de São Vitor,contemporâneo de S. Bernar<strong>do</strong>, no Prólogo sobre o Profeta Ezequiel, ondeconfessa que se aparta de São Gregório, por se não chegar ao senti<strong>do</strong> literal <strong>do</strong>texto; <strong>do</strong>s segun<strong>do</strong>s, é o mesmo São Gregório, Padre <strong>do</strong> sexto século depois deCristo, no Proémio sobre o Livro <strong>do</strong>s Reis, onde diz que lhe foi necessário emalgumas partes não seguir os Padres mais antigos, por não faltar ao fioconseqüência e verdadeira interpretação da história.As palavras de São Gregório não refiro aqui, porque terão seu lugar maisabaixo; as de Ricar<strong>do</strong> depois de referir com os antigos Padres ocupavam seuestu<strong>do</strong> principal na alegoria, são estas: Hinc contigisse arbitror, ut litteraeexpositionem is obscuriobus quibusdam locis antiqui Patres tacile praeterirent,vel paulo negligentius tracterent, qui si plenius insistirent, multo perfectiusprocul dubio quam aliqui ex modernis, id potuissent. Quer dizer que os Padresantigos, por aplicarem toda a sua industria e engenho no senti<strong>do</strong> alegórico dasEscrituras, ou passaram totalmente em silêncio, ou trataram menosdiligentemente alguns lugares mais escuros delas, sen<strong>do</strong> certo, segun<strong>do</strong> eram<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s de altíssimos engenhos e enriqueci<strong>do</strong>s de muita ciência e erudição,que, se insistissem no senti<strong>do</strong> genuino e literal <strong>do</strong> texto, o poderiam conseguirmais perfeitamente que qualquer <strong>do</strong>s modernos.De maneira que, segun<strong>do</strong> a verdade desta advertência, vem a ser a diferençaentre os Padres antigos e os comenta<strong>do</strong>res modernos das Escrituras, a mesmaque houve naqueles <strong>do</strong>is homnes <strong>do</strong> Evangelho, ambos ricos e venturosos: umque achou o tesouro e deu quanto tinha por comprar o campo em que eleestava; outro que, buscan<strong>do</strong> so margaritas e achan<strong>do</strong> uma preciosíssima,empregou também nela quanto tinha. Os Padres antigos, que buscavam só nasEscrituras a Cristo e nesta preciosíssima margarita empregavam to<strong>do</strong> o cabedal<strong>do</strong> seu estu<strong>do</strong>, os modernos, que se não determinam no tesouro das Escriturasa um só gênero de riquezas, acham, além da mesma margarita, muitas outraspedras também preciosas, e tiram daquele tesouro (como dizia Cristo) nova etvetera, riquezas novas e velhas: as velhas, que são as notícias das verdades jápassadas; as novas, que são o conhecimento das outras futuras.Finalmente se deve considerar este silêncio das cousas que não disseram osPadres, da parte de Deus, o qual com particular providência não quis que elespor então as soubessem e escrevessem, para que a Igreja, nossa mãe, separecesse com seu Esposo, e, conforme os anos e idade, fosse tambémcrescen<strong>do</strong> em luz e sabe<strong>do</strong>ria. Assim o notou, além de muitos outros teólogos,o mesmo Canísio, continuan<strong>do</strong> o lugar acima cita<strong>do</strong>: Quae posteris diligentiusexcutienda et clarius illustranda explicandaque, non sine certo Dei consiliorelinquebantur non vero homini tantum, sed etiam Ecclesiae Christi tempusauget sapientiam, et Spiritus Sanctus aliam atque aliam <strong>do</strong>ctrinae lucem


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 64 de 16927/08/2011patefacitNo cap. VI <strong>do</strong>s Cantares, onde o Esposo é Cristo e a esposa a Igreja estãoprofetiza<strong>do</strong>s os progressos que ala havia de ter, e se comparam com extremadapropriedade à luz da aurora: Quae est ista , quae progreditur, quasi auroraconsurgens? Porque assim como a aurora nasce das trevas da noite e começana primeira luz, e nela vai sempre crescen<strong>do</strong> de menor para maior claridadeassim a Igreja, nascida nas trevas da ignorância e infidelidade começou emmenos luz de sabe<strong>do</strong>ria e vai sempre crescen<strong>do</strong> e aumentan<strong>do</strong>-se mais e maisde resplen<strong>do</strong>r, de claridade, que são os termos que usa S. Paulo na Segundaepístola aos Coríntios:Nos vero omnes, revelata facie, gloriam Dominispeculantes, in eamdem imaginem transformamur a claritate in claritatem. Falao Apóstolo <strong>do</strong> véu da infidelidade com que os Judeus têm cobertos os olhospara não ver a Cristo, e diz que se compõe a Igreja, tira<strong>do</strong> pela Fé aquele véu,com os olhos abertos e desempedi<strong>do</strong>s por meio da própria especulação eestu<strong>do</strong>, imos crescen<strong>do</strong> de claridade em claridade, não já passan<strong>do</strong> das trevasà luz, senão de uma luz para outra, sempre maior e mais clara, transforman<strong>do</strong>sepor este mo<strong>do</strong> a Igreja na imagem <strong>do</strong> seu mesmo Esposo, Cristo. Porque,assim como Cristo, posto que sua sabe<strong>do</strong>ria foi sempre igual e a mesma (emquanto Deus infinita e em quanto homem consumadíssima), contu<strong>do</strong>, nos atosexteriores e manifestação dela ao Mun<strong>do</strong>, a não mostrou toda junta, senão quea foi dispensan<strong>do</strong> por partes, crescen<strong>do</strong> sempre nela ao passo que ia crescen<strong>do</strong>nos anos, como diz o evangelista São Lucas: Proficiebat sapientia et aetate;assim a Igreja, que é o corpo místico <strong>do</strong> mesmo Cristo, transforman<strong>do</strong>-se nasua imagem e retratan<strong>do</strong>-se nele e por ele, vai sempre crescen<strong>do</strong> mais e maisna luz e na sabe<strong>do</strong>ria, à medida que cresce nos anos e na idade: Crescat igituroportet, et multum vehementerque proficiat, tam singulorum quam omium,tam unius hominis quam totius Ecclessiae, aetatum ac saecolorum gradibusintelligentia, scientia, sapientia — disse <strong>do</strong>utamente Vincencio Lirinense.De sorte que vai crescen<strong>do</strong> a inteligência, a ciência e a sabe<strong>do</strong>ria pelos mesmosgraus <strong>do</strong> tempo com que vão passan<strong>do</strong> os anos, os séculos e a idade, e isto nãosó na Igreja universal e em comum, senão nos homens e <strong>do</strong>utores particulares,que são os membros de que o seu corpo e os raios de que a sua luz se compõe.Donde se deve reparar e advertir (cousa que devera já estar mui notada eadvertida) que os Doutores antigos e mais velhos, própria e rigorosamentefalan<strong>do</strong>, não são os passa<strong>do</strong>s, senão os presentes; nem aqueles quevulgarmente são chama<strong>do</strong>s os antigos, senão os que hoje e nos tempos maischega<strong>do</strong>s a nós se chamam modernos Porque assim como nos anos de Cristohouve infância, puerícia e a<strong>do</strong>lescência, e depois idade perfeita, assim nos anose duração da Igreja há a mesma distinção e sucessão de idades, com que ocorpo místico dela vai crescen<strong>do</strong> e aumentan<strong>do</strong>-se sempre mais, até chegar aencher a perfeição ou medida da mesma idade de Cristo, como expressamentedisse São Paulo, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mesmos Doutores:..alios autem pastores et<strong>do</strong>ctores. ad consummationem sanctorum in opus ministerii, in aedificationemcorporis Christi <strong>do</strong>nec occurramus omnes in unitatem fidei et agnitionis Filii Dei,in virum perfectum in mensuram aetatis plenitudinis Christi. Donde segue queos Doutores da infância, da puerícia e da a<strong>do</strong>lescência da Igreja foram osmodernos e da ciência moderna; e os Doutòres da idade maior e mais provectada Igreja são os mais velhos e mais antigos, e da ciência mais antiga, porque aIgreja não se compõe das paredes mortas, senão <strong>do</strong>s membros vivos; nem foicrescen<strong>do</strong> <strong>do</strong>s nossos anos para os primeiros, senão <strong>do</strong>s primeiros para osnossos. E seria não só contra a ordem da natureza, senão contra a decência damesma idade, que não fosse mais sábia a Igreja nos maiores anos, <strong>do</strong> quetinha si<strong>do</strong> nos menores.Dizem contra isto os hereges (como notou Banhes) que a Igreja não está hojemais alumiada, senão cada vez menos; e <strong>do</strong> mesmo Sol tiram o argumentodesta cegueira.argumento desta sua cegueira. Dizem que Cristo é o sol da Igreja e aquelaprimeira verdadeira luz: quae illuminat omnem hominem venientem in huncmundum, e que, quanto mais se vão apartan<strong>do</strong> os nossos tempos <strong>do</strong> tempo emque Cristo viveu entre os homens, tanto os raios da sua luz são mais tênues,mais escassos e menos intensos; bem assim como a luz <strong>do</strong> Sol material, equalquer outra, alumia e quenta mais aos que lhe ficam mais vizinhos e menosaos que estão mais remotos e mais distantes.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 65 de 16927/08/2011Mas a aparência desta razão é tão falsa como todas as de seus autores; porqueainda Cristo corporalmente se apartou <strong>do</strong>s homens, espiritualmente e porparticular e invisível assistência sempre ficou com eles e os assistirá (dentroporém da sua Igreja) ate o fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, como prometeu a to<strong>do</strong>s osverdadeiros discipulos de sua <strong>do</strong>utrina quan<strong>do</strong> lhes disse: Ecce ego vobiscumsum usque ad consummationem saeculi.Também deixou em seu lugar, por segun<strong>do</strong> mestre de sua escola, ao EspíritoSanto, igualmente Deus como ele, o qual, com a mesma e não diferente luz,não só alumia a Igreja com os mesmos resplen<strong>do</strong>res da verdade, mas, segun<strong>do</strong>a disposição de sua providência, os vai descobrin<strong>do</strong> maiores a seu tempo,ensinan<strong>do</strong> e declaran<strong>do</strong> aquelas ocultas e altíssimas verdades, que por menoscapacidade <strong>do</strong>s discípulos deixou Cristo de lhas dizer, quan<strong>do</strong> por si mesmo osensinava; dizen<strong>do</strong>-lhes porém, (para: que o Judeu não duvide da assistência <strong>do</strong>Espírito Santo à Igreja e cabeça dela), que o Espirito lhas ensinaria: Adhucmulta habeo vobis dicere: sed non potestis portare mo<strong>do</strong>. Cum autem veneritille Spiritus veritatis, <strong>do</strong>cebit vos omnem veritatem.E porque a perfídia herética se nos não queira acolher por pés, (comoimprudentemente fazem ainda em lugares igualmente claros de outras Escritas)fugin<strong>do</strong> para os tempos antigos, em que eles confessam que a Igreja esteveverdadeiramente alumiada, ouçam ao antiquíssimo Tertuliano: Regula quidemfidei una omnino est. sola immobilis et irreformabilis [...] Haec lege fideimanente, caetera iam disciplinae et conversationis admittunt novitatemcorrectionis, operante scilicet et proficiente usque in finem gratia Dei. Quale estenim ut diabolo semper operante et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingeniaopus Dei aut cessaverit, aut proficere destiterit, cum propterea Paracletummiserit Dominus, ut quoniam humana mediocritas omnia semel capere nonpoterat, paulatim dirigeretur, et ordinaretur, et ad perfectum producereturdisciplina, ab illo Vicario Domini Spiritu Sancto [...] Quae est ergo Paracletiadministratio nisi haec quod disciplina dirigitur, quod Scripturar revelantur,quod intellectus reformatur,quod ad meliora proficitur.?Não me detenho em romancear as palavras; porque isso em suma tu<strong>do</strong> o queaté agora temos dito; são em suma tu<strong>do</strong> o que até agora temos dito; só peçose pondere aquela nova e bem achada razão de Tertuliano: Quale est enim utdiabolo semper operante, et adjiciente quotidie ad iniquitatis ingenia, etc.Se o Demônio sempre obra e não desiste de acrescentar cada dia novos erros enovos enganos com que impugnar, e novas: trevas com que diminuir eescurecer a luz da. verdade e resplen<strong>do</strong>r da Igreja, como havia o Espírito Santode cessar em acrescentar sempre nela novas:luzes contra essas trevas, novasverdades contra esses erros, nova claridade contra esses enganos e novasvitórias contra esse inimigo e seus sequazes? Em sua mesma cegueira tem oherege a prova da maior luz da Igreja; por isso disse São Paulo: Oportethaereses esse, e esse , é o bem que tira de tão grande mal aquelasapientíssima Providência, que, como <strong>do</strong>utamente disse Santo Agostinho, tevepor maior glória de sua grandeza fazer <strong>do</strong>s males bens, que não permitir osmales.Assim que os que quiserem reconhecer os aumentos da sabe<strong>do</strong>ria, em quesempre mais vai crescen<strong>do</strong> a Igreja com os anos, não devem tomar àsemelhança <strong>do</strong> Sol` e da luz, senão a da fonte e <strong>do</strong> no, a que o mesmo Cristocomparou sua <strong>do</strong>utrina, quan<strong>do</strong> disse: Si quis sitit, veniat ad me et bibat. Quicredit in me sicut dicit Scriptura, flumina de ventre ejus fluent aquae, vivae,.Hoc autem dixit de spiritu, quem accepturi erant credentes in eum. A luz quesai <strong>do</strong> Sol, quanto mais distante, mais se vai enfraquecen<strong>do</strong> e diminuin<strong>do</strong>; maso rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seuprincípio, tanto mais se engrossa, porque vai receben<strong>do</strong> novas correntes enovas águas, com que se faz mais largo, mais profun<strong>do</strong>, mais caudaloso.Tal é a sabe<strong>do</strong>ria da Igreja, entran<strong>do</strong> sempre nela as puríssimas correntes da<strong>do</strong>utrina de tantos Doutores católicos e sapientíssimos, que cada dia aaumentam com novos e tão excelentes escritos em uma e outra teologia, deque o nosso século tem si<strong>do</strong> mais fecun<strong>do</strong> e abundante que to<strong>do</strong>s até hoje.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 66 de 16927/08/2011A sabe<strong>do</strong>ria da Igreja no alumiar é luz e no correr é rio; rio daquela mesmafonte e luz daquele mesmo Sol que é Cristo, conservan<strong>do</strong> juntamente as luzes eclaridades das águas, e as águas' os resplen<strong>do</strong>res das luzes naquela milagrosametamorfose que se conta no cap. X de Ester: Parvus fons, qui crevit influvium, et in lucem solemque conversus est. et in aquas plurimas redundavit.Cristo, sol com propriedade de fonte, a Igreja luz com propriedade de rio, e porisso sempre mais alumiada, sempre mais vestida de resplen<strong>do</strong>res.E como, por esta providência particular de Deus e pela dificuldade e escuridadede muitos lugares da Escritura, e pela aplicação <strong>do</strong>s Padres, a confirmação deoutras verdades e a resistência de outras batalhas próprias daqueles tempos,deixaram de escrever algumas cousas com que a Igreja depois se foi alumian<strong>do</strong>e ilustran<strong>do</strong>, não é muito que nestas que eles não disseram, falemos e hajamosde falar sem eles. Nem isto se nos deve imputar a menos veneração <strong>do</strong>smesmos Padres <strong>do</strong>utíssimos e santíssimos; porque não querer descobrir nemsaber o que eles não disseram, antes é vício da ociosidade que virtude dareverência, como bem conclui o mesmo Ricar<strong>do</strong> Vitorino acima alega<strong>do</strong>: Sednec illud tacite praetereo, quod quidam quasi ob reverentiam Patrum nollunt abillis omissa attentare, nec videantur aliquid ultra maiores praesumere. Sedinertiae, suae, hujusmodi velamen habentes, otio torpent, et aliorum industriamin veritatis investigatione et inventione derident, subsanant et exsufftant, sedqui habitat in coelis, irridebit eos et Dominus subsanabit eos.Leiam e temam esta sentença os que culpam os que não querem ser culpa<strong>do</strong>snela, e advirtam que tamb5ém é um <strong>do</strong>s Padres o que isto disse.SEGUNDA RAZÃODiscorre-se sobre as cousas que no tempo <strong>do</strong>s padres houve para algunslugares <strong>do</strong>s Profetas não poderem ser entendi<strong>do</strong>s inteiramente.Em segun<strong>do</strong> lugar, dizíamos que os Padres não acertaram em tu<strong>do</strong>; e posto quepudéramos provar a verdade deste fundamento com a demonstração dascousas em que não acertaram, lembra<strong>do</strong>s porém da reverência que os filhosdevem aos pais e da bênção que mereceram aqueles <strong>do</strong>is honra<strong>do</strong>s filhos, Seme Jafet, quan<strong>do</strong> voltaram as costas e apartaram os olhos <strong>do</strong> que em seu pai,Noé, podia ser menos decente, nós também lançaremos a capa sobre estamatéria, deixan<strong>do</strong> tão indigno assunto a Lutero, Calvino, Bèze e Wiclef, e outroslegítimos herdeiros <strong>do</strong> ímpio e irreverente Cam.Não negamos, contu<strong>do</strong>, que houve muitos autores católicos e pios, em cujoslivros se podem ver por junto estes exemplos, os quais eles escreveram nãopor menos reverência que tivessem aos antigos Padres, por sua sabe<strong>do</strong>ria esantidade, e igualmente merece<strong>do</strong>res da eterna veneração, mas por zelo daverdade, necessidade de <strong>do</strong>utrina e cautela <strong>do</strong>s mesmos <strong>do</strong>utos que lessem assuas obras; bem assim como os que pintam cartas de marear sinalam novastíssimo e profundíssimo Oceano os baixos (poucos e raríssimos, se secompararem com a imensidade de suas águas) para maior vigilância esegurança <strong>do</strong>s que as navegam.Escreveram neste gênero <strong>do</strong>utissimamente Sixto Senense em to<strong>do</strong> o V e VIlivro de sua Biblioteca Santa; Ferdinan<strong>do</strong> Vellocillo, bispo de Luca, nasAdverteAncias Teológicas sobre cinco Padres da Igreja; Afonso de Castro,Adversus haeereses, António Possevino, no Aparato Sacro; o Cardeal CésarBarónio, em muitos lugares de seus Anais; Melchior Cano, De Locis Theologicis,e outros. Este último no Liv. VII cap. III, diz assim: Auctores canonici utsuperni, caelestes, divini, stabilem perpetuamque constantiam servant; reliquivero scriptores sancti inferiores et humani sunt, deficiuntque interdum acmonstrum quan<strong>do</strong>que pariunt propter convenientem ordinem, institutumquenaturae.Mas entre estes exemplos naturais da fragilidade humana, podemos ler em


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 67 de 16927/08/2011prova deles outros <strong>do</strong>s mesmos Padres, em que, confessan<strong>do</strong> com altahumildade e modéstia que podiam errar como os homens, nos ensinam noconhecimento que tinham de si e nós devemos ter de nós, quãoverdadeiramente eram santos, e por isso mesmo sapientíssimos Porem aqui aspalavras de <strong>do</strong>is maiores Doutores, um de teologia escolástica e outro` dapositiva — Santo Agostinho e S. Jerônimo — Santo Agostinho, na epístola III,escreven<strong>do</strong> a Fortunaciano desta maneira: Neque enim quorumlibetdisputationes quam vis catholicorum et laudutorum hominum, velut scripturascanonicas laudare debemus, ut nobis non liceat (salva honorificentia, quae illisdebetur) aliquid in eorum scriptis improbare, atque respuere (si forteinvenerimus, quod aliter senserint quam veritas habet, divino adjutorio vel abaliis intellecta, vel a nobis); talis ego sum in scriptis aliorunt, tales volo esseintellectores meorum: «As ciências e regulações <strong>do</strong>s autores, posto que sejamcatólicos, mui louva<strong>do</strong>s e estima<strong>do</strong>s por sua ciência e. <strong>do</strong>utrina, não asdevemos ler como escrituras canônicas, de tal sorte que nos não seja lícito(salva a reverência de suas pessoas), reprovar e não seguir algumas cousasdas que disseram, quan<strong>do</strong> acharmos por outra via a verdade, ou melhorentendida por outros, ou também por nos. Este é o mo<strong>do</strong> (diz Santo Agostinho)com que eu leio os escritos <strong>do</strong>s outros e com que quero que sejam 1i<strong>do</strong>s osmeus.:»O mesmo sentia S. Jerônimo, assim <strong>do</strong>s escritos alheios como <strong>do</strong>s próprios,cujas palavras na Epístola a Teófilo, contra os erros de S. João Hierosolimitanosão estas: Scio me aliter habere Apostolos, aliter reliquos tractores: illossemper vera dicere: istos in quibusdam ut homines aberrare>> «So osApóstolos, como alumia<strong>do</strong>s por Deus, disseram a verdade em tu<strong>do</strong>; os outroshomens, como homens eram e podem errar:>> _ diz o Doutor Máximo.E se o fundamento <strong>do</strong>s erros humanos é o efeito natural de serem os homenshomens, bem se segue que nenhum homem se pode livrar desta pensão dahumanidade, por <strong>do</strong>uto e sapientíssmo que seja. Exemplo seja o prodigiosolivro Das Retratações de Santo Agostinho, mais digno de veneração por aquelaobra que por todas as outras suas o qual prosseguin<strong>do</strong> a mesma sentença deSanto Agostinho no liv. II De Batismo, contra os Donatistas, cap. V diz assimcom admirável piedade e juízo: Homines enim sumus, unde aliquid alitersapere, quam se res habet, humana tentatio est.: nimis autem aman<strong>do</strong>sententiam suam, vel inviden<strong>do</strong> melioribus, usque ad prescidendaecommunionis et condendi schismatis vel haeresis sacrilegium pervenire,diabolica praesumptio est. In nullo autem aliter sapere, quam res se habet,angelica perfectio est.De maneira que, seguin<strong>do</strong> Santo Agostinho, cerrar em alguma cousa é fraquezade homens; acertar em tu<strong>do</strong>, é perfeição de anjo, e querer defender seuparecer até romper a caridade e união da Igreja, é presunção de demônios»; ecomo os Santos Padres fossem obedientíssimos filhos da Igreja Católica, a cujosupremo juízo sujeitaram sempre to<strong>do</strong>s os seus escritos, se em alguma cousadesacertaram, como dissemos ou supomos, é argumento só de que foramhomens, e não eram anjos.Mas para que se veja a ocasião ou ocasiões que tiveram para não acertar com averdadeira inteligência de algumas escrituras, principalmente as <strong>do</strong>s Profetas,que é o fim para que isto supomos, direi agora o que da ponderação dasmesmas escrituras proféticas e das exposições <strong>do</strong>s Padres sobre elas, e dasopiniões, que eram comuns e recebidas entre os <strong>do</strong>utos, quan<strong>do</strong> elesescreveram, tenho colhi<strong>do</strong>. E ponho aqui (tanto de melhor vontade) esta minhaadvertência, em que não acabei de cair de to<strong>do</strong>, senão depois de muitos anosde estu<strong>do</strong> e lição <strong>do</strong>s mesmos Padres, quanto dela se pode colher facilmente. esem menos louvor de sua grandeza e sabe<strong>do</strong>ria, quão impossível cousa lhes eraacertarem naquele tempo, em aquelas suposições, com o verdadeiroentendimento de alguns lugares <strong>do</strong>s Profetas que eles interpretaram em alheioe diferente senti<strong>do</strong>A primeira ocasião que os Padres tiveram para não poderem entender em seutempo o senti<strong>do</strong> literal e histórico daqueles textos proféticos, era a falta queentão havia no Mun<strong>do</strong> da verdadeira e exata cosmografia, e a errada opinião,ou de que o globo da Terra não era perfeitamente esférico, ou de que as partesopostas às que naquele tempo se conheciam, eram não só desertas, senão


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 68 de 16927/08/2011ainda inabitáveis Este sentimento, que foi de muitos filósofos antigos se tinhaentre os Padres por verdade muito certa e averiguada, negan<strong>do</strong> geralmente aopinião, ou fama de haver os que então já se chamavam antípodas Posto que osprincípios por que os Padres os negavam, não eram entre to<strong>do</strong>s as mesmasrazões filosóficas, em que alguns se afundavam, que então (antes daexperiência) tinham nome de razões, e hoje depois delas nos parecem ridículas.Descreve Lactâncio Firmiano que era um <strong>do</strong>s Padres, e muito <strong>do</strong>uto daqueletempo e zomban<strong>do</strong> elegantissimamente <strong>do</strong>s que tinham a opinião contrária,discorre assim: Quid illi, qui esse contrarios vestigiis nostris antipodas putant?Num aliquid loquuntur? Aut est quisquam tam ineptus, qui credut esse hominesquorum vestigia sint superiora quam capita? Aut ibi quae apud nos jacentinversa pendere? Fruges et arbores deorsum versas crescere; Pluvias et nives,et grandinem sursum versus ca dere in terram? Et miratur aliquis in hortospensiles ~nter seplem mira narrari, cum philosophi, et agros et maria, et urbes,et montes pensiles faciant; Hujus quoque erroris aperienda nobis origo est [. .]Quae igitur illos ad antipodas ratio perduxit? Videbant siderum cursus inoccasum meantium. Solem atque Lunam in aemdem partem semper occidere,atque oriri semper ab eadem. Cum autem non prospicerent quce machinatiocursus eorum temperaret, nec quomo<strong>do</strong> ab occasu ad Orientem remearent,coelum autem ipsum in ornnes partes putarent esse devexum, quod sic videripropler immensam latitudnem necesse est; existimaverunt rotundum esseMundum sicut pilam: et ex motu siderum opinati sunt coelum volvi. Sic astra,Solemque, cum occiderirint, volubilitate ipsa Mundi ad ortum referri; itaque etaereos orbes fabricati sunt quasi ad figuram Mundi, eosque caelaruntportentosis quibusdam simulacris, quae astra esse dicerent. Hanc igitur Coelirotunditatem illud sequebatur; ut Terra in medio sinu ejus esset inclusa; quod siita esset, etiam ipsam terram globo similem; neque enim fieri posset ut nonesset rotundum, quod rotun<strong>do</strong> conclusum teneretur. Si autem rotunda etiamTerra esset, necesse esse, ut in omnes Coeli partes eamdem faciem gerat, idest, montes erigat, campos tendat, maria consternat. Quod si esset, etiamsequebatur illud extremum, ut nulla sit pars Terrae,quae non ab hominibus,caeterisque animulibus incolatur: sic pendulos istos antipodas Coeli rotunditasadinvenit. Quod si quaeras ab is, qui haec portenta defendunt, quomo<strong>do</strong> ergonon cadunt omnia in inferiorem illam cueli partem, hanc respondent rerum essenaturam, ut pondera in medium ferantur, et ad medium connexa sint omniasicut radios videmus in rota; quae autem levia sunt, ut nebula, fumus, ignis, amedio deferantur ut coelum petant. Quid dicam de iis? Nescio; qui cum semelaberraverint, constanter in stultitia perseverant, et vana vanis defendunt, nisiquod eos interdum puto, aut joci causa philosophari, aut prudentes et sciosmendacia defendenda suscipere,quasi ut ingenia sua in malis rebus exerceantvel ostentent.Até aqui Lactancio, não se rin<strong>do</strong> menos <strong>do</strong>s que naquele tempo tinham estaopinião, <strong>do</strong> que nós hoje nos podemos rir dele. Por isso não duvidei de copiaresta página de latim, que para os que bem o entendem sei de certo não serálarga, por sua matéria e elegância; e muito menos para os que o nãoentendem, porque o passarão mais brevemente. O mesmo peço eu que façamos que não têm necessidade de ver a tradução dela, que agora se segue, paraque não fiquem com o sentimento de quão mal se pode trasladar à nossa línguaa elegância da latina:«Que direi daqueles—diz Lactan<strong>do</strong>—os quais tiveram para si que há no Mun<strong>do</strong>outros homens que andam com os pés vira<strong>do</strong>s para nós, a que chamamantípodas? Porventura dizem estes alguma cousa que tenha fundamento, oupode haver homem de tão pouco juízo que se lhe meta na cabeça que háhomens que andem com a cabeça para baixo, e que todas as cousas que aquiestão em pé, e direitas, lá estejam dependuradas? Que as árvores cresçam paraa parte inferior? Que a chuva caia para cima? E que os que hão-de colher osfrutos, hajam de descer aos ramos, e não subir? E espantamo-nos que oshortos pênsiles se contêm entre as Sete Maravilhas <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> háfilósofos que fazem campos pênsiles, mares pênsiles e cidades pênsiles, em queas torres e os telha<strong>do</strong>s estão pendura<strong>do</strong>s para baixo! Mas será bem quedigamos a origem <strong>do</strong>nde teve princípio este erro e que razão moveu ou levouestes homens a uma cousa tão irracional, como haver antípodas. Viam que oSol, a Lua e estrelas, saíam sempre <strong>do</strong> Oriente e entravam pelo Ocaso; viam,ou cuidavam que viam, que este céu que nos cobre, tem figura de uma abóbada


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 69 de 16927/08/2011(sen<strong>do</strong> que esta representação não a faz a figura <strong>do</strong> céu, senão o termo efraqueza de nossa vista); e não entenden<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> por que esta máquina segoverna, vieram a imaginar que o Mun<strong>do</strong> era re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> como uma bola, e assimfingiam que havia no céu vários orbes de matéria sólida como bronze, em queestavam esculpidas essas imagens e corpos portentosos, a que chamamosestrelas e planetas. Desta re<strong>do</strong>ndeza ou rotundidade <strong>do</strong> céu inferiam eassentavam que também a Terra era re<strong>do</strong>nda; e, acomodan<strong>do</strong>-se naturalmentea figura <strong>do</strong> corpo exterior e maior, dentro <strong>do</strong> qual estava metida, e torneadadesta maneira, e feita re<strong>do</strong>nda a Terra, tiravam por segunda conseqüência quetambém havia de estar povoada de homens e de animais, em todas as partes,como está: nesta em que vivemos; assim que a imaginada rotundidade <strong>do</strong> céufoi a inventora destes antípodas pendura<strong>do</strong>s. E se perguntarmos aos defensoresdeste portento como pode ser que os homens que. fingem com os pés paracima, se lhes não despeguem da terra, e como não caem por esses ares abaixorespondem que é o peso natural da Terra, que de todas as partes inclina para ocentro, assim como os raios de uma roda to<strong>do</strong>s vão parar ao eixo; e que, assimcomo <strong>do</strong> mesmo eixo saem os raios para a roda, assim as cousas pesadas vãobuscar o meio; as cousas leves, como o fogo, os fumos, as névoas, sobemdireitas para as diversas partes <strong>do</strong> Céu, de que a Terra está cercada.O que se haja de dizer de tais homens e de tais entendimentos, não o sei; sódigo que, depois de terem caí<strong>do</strong> no primeiro erro, perseveram constantementena sua ignorância, defenden<strong>do</strong> umas cousas vãs com outras tão vãs como elas;sen<strong>do</strong> que algumas vezes cui<strong>do</strong> que não dizem nem escrevem isto de siso,senão por jogo e zombaria, e que saben<strong>do</strong> muito bem que tu<strong>do</strong> o que dizemsão fábulas e mentiras, as defendem contu<strong>do</strong> para ostentar habilidade eengenho, empregan<strong>do</strong> tão bons entendimentos em tão más cousas.>>Este é o discurso de Lactâncio, e foi bem que o deixasse tão miúdamenteescrito, para que soubéssemos o que naquele tempo se sabia <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e paraque saiba o mesmo Mun<strong>do</strong> quanto deve aos Portugueses, primeirosdescobri<strong>do</strong>res de seus antípodas.Santo Agostinho também teve a mesma opinião de Lactâncio, posto que lhenão contentaram os seus fundamentos, os quais impugna no livro das suasCategorias; mas no liv. XVI De Civitate Dei, resolve que se não deve crer quehá antípodas, com palavras de tanta segurança como as seguintes: Quod veroet antipodas esse fabulantur, id est. homines a contraria parte Terrae, ubi Soloritur quan<strong>do</strong> occidit nobis, adversa pedibus nostris calcare vestigia, nullaratione credendum est. Neque hoc ulla historia cognitione didicisse seaffirmant; sed quasi ratiocinan<strong>do</strong> conjectant: «E quanto à fábula <strong>do</strong>s quefingem que há antípodas — diz Santo Agostinho_, isto é, homens da outra parte<strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, onde o Sol lhes nasce a eles, quan<strong>do</strong> se põe a nós, e que pisam aterra com os pés volta<strong>do</strong>s para os nossos, como nós para os seus, é cousa quede nenhum mo<strong>do</strong> se há-de crer, nem seus autores o provam com algumahistória que tal afirme, e só o conjeturam por discursos.>>Não dissera isto o sapientíssimo Doutor, se já naquele tempo estiveram escritasas histórias <strong>do</strong>s Portugueses, mas este é o maior louvor da nossa Nação (comodisse um ora<strong>do</strong>r delas) que chegaram os Portugueses com a espada onde SantoAgostinho não chegou com o entendimento.A razão de Santo Agostinho com que negou os antípodas, ainda encarece maiseste louvor nosso, porque o argumento em que se funda é este: To<strong>do</strong>s oshomens que se propagaram e estenderam pelo Mun<strong>do</strong>, são descendentes deAdão, como consta da Escritura; logo, segue-se que não há nem pode haverantípodas, porque, se os houvera, haviam de ter passa<strong>do</strong> a outra parte <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, por cima da imensidade <strong>do</strong> mar Oceano; e é grande absur<strong>do</strong> dizer queos homens pudessem fazer tal navegação.Esta é a razão de Santo Agostinho e este o famoso elogio que, sem saber dequem falava, disse o famoso e ilustríssimo africano <strong>do</strong>s Portuguesesconquista<strong>do</strong>res depois de sua pátria: Nimisque absurdum est (são palavrassuas no mesmo lugar) ut dicatur aliquos homines ex hac in illam partem Oceaniimmensitate trajecta, navigare ac pervenire potuisse, ut etiam illic ex uno illoprimo homine genus institueretur humanum.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 70 de 16927/08/2011Esta mesma opinião foi comum entre os outros Padres da Igreja, e assim alemos expressa, ainda antes de Lactâncio, em S. Justino, e antes de SantoAgostinho, em Santo Hilário, em S. João Crisóstomo, S. Basílio e SantoAmbrósio, e muitos anos e séculos depois em Procópio, Teofilato, Eutímio eoutros, uns fundan<strong>do</strong>-se nas razões já referidas e to<strong>do</strong>s naquela tão celebrada<strong>do</strong>s filósofos, historia<strong>do</strong>res e poetas, que não só faziam inabitável a zonatórrida, mas supunham tão grande incendio nela pela vizinhança <strong>do</strong> Sol, que denenhum mo<strong>do</strong> se podia passar: Media vero terrarum _ diz Plínio — qua Solisorbita est. exusta flammis et cremata, cominus vapore torretur. Circa duaetantum inter exustam et rigentes, temperantur: eaeque ipsae inter se nonperviae propter incendium sideris.Este incêndio da zona tórrida ainda em tempos tão chega<strong>do</strong>s aos nossos, eraum <strong>do</strong>s mais forçosos argumentos, com que os reprova<strong>do</strong>res da empresa <strong>do</strong>Infante Dom Henrique a impugnavam, e tinham por impossível aqueledescobrimento, como referem as nossas histórias. A estas razões propriamentefilosóficas e a este discurso, acrescentavam os Padres outras teológicas ealguns textos da Escritura Sagrada, que antes da experiência parecia afirmaremou definirem claramente que debaixo da terra não havia outra cousa mais quea água. Assim o argumentava Procópio sobre o primeiro capítulo <strong>do</strong> Gênesis,dizen<strong>do</strong>: Quod autem universa Terra in aquis subsistat nec ulla sit pars ejus,quae infra nos sita sit, aquis vacua et denudata hominibus, notum reor, nam sic<strong>do</strong>cet Scriptura: «Quid expandit terram super aquis»; et iterum: «quia itsesuper maria fundavit eum.» O primeiro lugar é <strong>do</strong> Salmo CXXXV e o segun<strong>do</strong><strong>do</strong> Salmo XXIII. E verdadeiramente que as palavras de um e outro são tãoclaras, que se a vista <strong>do</strong>s olhos não tivera ensina<strong>do</strong> o contrário, parece sedeviam entender assim; e que Deus, que tu<strong>do</strong> pode, para mostrar suaomnipotência tinha funda<strong>do</strong> a terra sobre a água.Assim o cui<strong>do</strong>u Tales Milézio, um <strong>do</strong>s sete sábios de Grécia, com muitos outrosfilósofos, os quais referiam os tremores da Terra à inconstância destefundamento de sua natureza tão pouco sóli<strong>do</strong>; mas depois que a experiêncianos mostrou que debaixo ou da parte oposta a esta Terra há outroshabita<strong>do</strong>res, que são os antípodas, a emenda deste engano nos ensinoutambém a entender aqueles textos de David, cujo verdadeiro senti<strong>do</strong> é este:Quan<strong>do</strong> Deus criou o Mun<strong>do</strong>, no princípio estava o elemento da terra cobertocom o elemento da água, e a água sobre a terra, conforme o lugar que se deviaà sua dignidade e nobreza, como elemento que é mais nobre; mas como poresta causa ficasse a terra vazia e inabitável, como notou o texto: Terra autemerat inanis et vacua, o que fez a Providência Divina foi apartar a água de cimada terra e dar-lhe outro lugar, que é o que hoje tem o mar para que ficasse aterra superior a ele e pudesse produzir e ser habitada: Et dixit Deus:Congregentur aquae [...] in locum unum, et appareat arida. E por que a terrapor este mo<strong>do</strong> ficou supenor à água, por isso diz David que a terra está sobreela, isto ésuperior a ela, e não inferior e debaixo como de antes estava, e porsua natureza devia estar. Repito o texto to<strong>do</strong>, para que da conseqüência delese veja melhor a verdade e clareza desta exposição: Domini est terra etplenitu<strong>do</strong> ejus; orbis terrarumm et universi qui habitant in eo: quia ipse supermaria fundavit eum, et super fluvia praeparavit eum.Deus é o Senhor da Terra e de to<strong>do</strong>s seus habita<strong>do</strong>res. E porque é Senhor daTerra? Porque a fun<strong>do</strong>u; e é Senhor de seus habita<strong>do</strong>res, porque, fazen<strong>do</strong> quefosse superior ao mar e aos rios, a fez habitável; e essa é a energia da palavrapraeparavit; porque, fazen<strong>do</strong> a terra superior à água, a preparou e acomo<strong>do</strong>u aque se pudesse habitar: Ratio cur Dominus Terrae, omniumque in ea rerum[...] sit Deus (diz Lorino), quoniam terram itse fecit, et supereminere aquisfecit, ut habitari posset... E não é muito que Lorino entendesse melhor estetexto da terra e <strong>do</strong> mar que Procópio; porque Procópio não sabia que havia mare terra habitada <strong>do</strong>s antípodas, e Lorino sim; mas vamos a outros lugares maisimpossíveis de entender, antes <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong>s antípodas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 71 de 16927/08/2011Referem-se vários lugares <strong>do</strong>s Profetas que os expositores modernos entendem<strong>do</strong>s antípodas e conquistas de Portugal.Começan<strong>do</strong> pelo mesmo David, aquele verso <strong>do</strong> Salmo LXVII: Regna terrae,cantate Deo, psallite Domino, psallite Deo, qui ascendit super Coelum Coeli adOrientem; ecce dabit voci suae vocem virtutis, diz Genebrar<strong>do</strong>, Viegas,Men<strong>do</strong>nça e outros autores, que fala da conversão <strong>do</strong>s reinos e terras <strong>do</strong>Oriente, convertidas à Fé por meio da pregação <strong>do</strong>s Portugueses e descobertaspor eles. Donde notou advertidamente Viegas, que no mesmo Salmo tinha ditoDavid: Cantate Deo, psalmum dicite nomini ejus; iter facite ei, qui ascenditsuper Occasum; Dominus nomen illi, para mostrar que a Fé e conhecimento deDeus primeiro havia de vir às terras mais ocidentais, que são as que habitamos,e depois havia de passar às <strong>do</strong> Oriente, que são aquelas que descobrimos,conquistamos, alumiamos com a luz <strong>do</strong> Evangelho; e esta é a virtude que Deusdeu às vozes da sua voz, isto é, às vozes <strong>do</strong>s seus prega<strong>do</strong>res: Ecce dabit vocisuae vocem virtutisTo<strong>do</strong> o Salmo LXIV explica Basílio Ponce da nova conversão das Índias, assimOrientais como Ocidentais, e são tão próprios desta explicação muitos lugaresdele, que, ainda os que não tiveram tal pensamento, não puderam deixar dedizer o mesmo. Lorino, comentan<strong>do</strong> o verso IX: Turbabuntur gentes, ettimebunt qui habitant terminos a signis tuis exitus matutini et vesperedelectabis, entende pelos habita<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s termos da terra as gentes orientais eocidentais, e assim explica as palavras: «Exitus matutini et vespere>> prohominibus qui habitant ubi exit dies et ubi exit nox, hoc est. pro Orientalibus etOccidentalibus.De maneira que os homens de quem aqui fala David, são aqueles que estão nos<strong>do</strong>is últimos fins e extremos da Terra, onde nasce o dia e onde nasce a noite.Uns nos fins <strong>do</strong> Oriente, que são os das Índias Orientais; e outros nos fins <strong>do</strong>Ocidente, que são os das Índias Ocidentais. Esta terra, uma e outra, diz oProfeta que visitaria Deus, e que a regaria como regou com a água <strong>do</strong>baptismo: Visitasti terram et inebriasti eum. E acrescenta com grande energiaque multiplicaria o Senhor o enriquecê-la: Multiplicasti locupletare eum;porque, ten<strong>do</strong>-lhe já da<strong>do</strong> as maiores riquezas temporais, que são as minas <strong>do</strong>ouro e prata, os diamantes, os rubis, as pérolas e outros tantos tesouros, sobreestes lhe havia de dar também as riquezas espirituais e a graça, com queficasse cada uma não só rica, mas multiplicadamente rica: Multiplicasti etc. Eporque para isto era necessário que o bravíssimo e indômito Oceano sesujeitasse aos homens e se deixasse arar de seus lenhos, o que até aqueletempo não consentia, também dizia David que fazia Deus esta mudança emsuas ondas: ..qui conturbas profundum maris, sonum fluctuum ejus. Ou, comolê S. Jerônimo e Teodósio: compescens sedans, mulcens sonitum, cavitatem,latitudinem aut profundumditatem maris.Finalmente, porque não duvidássemos que mares eram estes, declara o Profetaque não haviam de ser aqueles que lavam as terras e praias vizinhas a nós,senão os mares de muito longe e de terras e gentes muito remotas: ...spesomnium finium terrae et in mari longe, ou como tem o hebreu: Marisrémotorum. E não carece de mistério e grande mistério, o proêmio com queDavid introduziu tu<strong>do</strong> o que até aqui temos dito, que foi com estaspalavras:...sanctum est templum tuum, mirabile in aequitate. Como se dissera:antes de se pregar o Evangelho a estas terras ou a estes mun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Oriente é<strong>do</strong> Ocidente, parece que vós, Senhor, e vossa Igreja não guardáveis igualdadecom os homens, pois haven<strong>do</strong> tantos anos e tantos séculos que alumiastes auns com a luz da Fé, permitistes até agora, por vossos ocultas juízos, que osoutros estivessem às escuras (argumento que puseram os Japões a S.Francisco Xavier). Porém, depois que a Fé e o Evangelho, e o conhecimento eculto <strong>do</strong> verdadeiro Deus têm passa<strong>do</strong> os mares, chega<strong>do</strong> às mais remotasnações <strong>do</strong> Oriente, agora sim, que podemos dizer que a vossa Igreja éadmirável na igualdade, porque trata igualmente a to<strong>do</strong>s: sanctum est templumtuum, mirabile in aequitate.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 72 de 16927/08/2011Salomão, que sucedeu a David, não só na coroa, mas também no espírito deprofecia, em muitos lugares <strong>do</strong>s seus Cânticos deixou também profetizadasestas maravilhas da nossa idade: neste senti<strong>do</strong> explicam alguns modernosaquelas palavras no cap. IV: Surge, Aquilo, et veni, Auster, et perfla hortummeum, et fluent aromata illius. Como se dissesse Cristo, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> sen jardim,que é a Igreja: que saísse dele o Norte e viesse o Sul; isto é, que saíssem daIgreja as orações <strong>do</strong> Norte, como se saíram nestes tempos por meio da heresia,e que entrassem na mesma Igreja as orações <strong>do</strong> Sul (que são as <strong>do</strong> NovoMun<strong>do</strong>), como entraram por meio da Fé. Ao qual senti<strong>do</strong>, que é mui próprio everdadeiro, podemos aplicar as palavras de Honório: Siquidem inauditamhaeresim per malignos homines Draco mentibus fidelium infudit, qua totumortum Ecclesiae, quasi quadam lepre vitiavit; sed Rex gloriae Chrisus suisauxilium praebuit, dum universum haeresim per sapientes destruxit, et de hortosuo flagellis anathematis expulit; expulso autem Aquilone, Auster intravit...Segue-se logo no texto:. et fluent aromata illius. As quais palavras, entendidasassim como soam, que outra cousa dizem senão os interesses temporais quetrazem as naus da Índia por estes espirituais que levam quan<strong>do</strong> vêmcarregadas <strong>do</strong>s aromas e espécies aromáticas daquelas partes?Assim o tinha dito o mesmo Salomão no verso antecedente, com admirávelpropriedade e energia. Fala das missões que fazem àquelas partes osprega<strong>do</strong>res da Fé, e diz: Emissiones tuae, paradisus malorum punicorum cumpomorum fructibus As vossas missões são um paraíso de que se não colhemfrutos de árvores, senão frutos de frutos. Cum pomorum fructibus. Porque pelofruto espiritual que vão fazer os missionários, vêm de lá os frutos temporaiscom que Portugal se enriquece. E se vão faltan<strong>do</strong> os segun<strong>do</strong>s frutos, é porquetambém vão faltan<strong>do</strong> os primeiros, de que eles nascem.Mas que frutos são estes? Disse o mesmo Salomão: Cypri cum nar<strong>do</strong>, nardus etcrocus, fistula et cinnamomum cum universis lignis Libati, myrrha, et aloe cumomnibus primi unguentis: A canela, a canafistola, o sândalo, o benjoim, asáquilas, os calambucos, e to<strong>do</strong> o outro gênero de espécies o<strong>do</strong>ríferas earomáticas, que são as mesmas que vêm da Índia.No cap. VII diz assim o mesmo Salomão, ou a Esposa, que é a Igreja, falan<strong>do</strong>com seu Esposo Cristo: Mandragorae dederunt o<strong>do</strong>rem. In portis nostris omniapoma: nova et vetera servavi tibi. As mandrigoras são os prega<strong>do</strong>res da Fé,como diz S. Gregório: Quid per mandragoram, herbam scilicet medicinalem eto<strong>do</strong>riferam, nisi virtus perfectorum intelligitur? Qui, dum imperfectoruminfirmitatibus medentur in fide quam praedicant, id est. in portis Ecclesiae verimedici esse comprobantur.Com o cheiro destas mandrágoras e com a <strong>do</strong>utrina destes prega<strong>do</strong>res, [diz aEsposa] que ajuntou para seu Esposo os frutos novos aos velhos. Assim ointerpretam os Setenta: Nova et vetera servavi tibi; porque aos cristãosantigos, que eram os da Europa, ajuntou a Igreja estes novos, que são os danova gente que se descobriu no Oriente e no Ocidente, que são as portas deque fala a Esposa: In portis nostris. Uma porta por onde o Sol sai ao nossohemisfério, que é a <strong>do</strong> Oriente, e outra por onde entra aos antípodas, que é a<strong>do</strong> Ocidente. Assim entendem este lugar alguns autores que refere Cornélio,resumin<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> dele nestas palavras: Nonulli per nova opinantur hicnotari novi orbis inventionem et conversionem ad Chrstum. Novus enim hicorbis continet Peruanos, Mexicanos, Brasilios, Chilenses etc. est dimidium totiusorbis, ut patet ex globo cosmográphico [...] jam per religiosos S. Dominici, S.Francisci et Societatis Jesus totus pene subjacet Ecclesiae Sic in India Orientalihoc saeculo et praecedenti mire per eosdem propagatur Fides apud Japones, ubiplurimi pro Fide certant usque ad martyria lentorum ignium apud Sinenses,Molucenses et Ceilanos. De maneira que os frutos novos que a Igreja, por meio<strong>do</strong> cheiro destas mandrágoras medicinais e o<strong>do</strong>ríferas, ajuntou aos velhos eantigos, são os <strong>do</strong> Peru e México, <strong>do</strong> Brasil e Chile, e os <strong>do</strong> Japão e China, dasMalucas e Ceilão; uns nas portas <strong>do</strong> Oriente, outros nas <strong>do</strong> Ocidente:Madragorae dederunt o<strong>do</strong>rem suum. Parece que estavam esqueci<strong>do</strong>s, mas nãoestavam senão guarda<strong>do</strong>s para este tempo: servavi.Em quase to<strong>do</strong> o cap. VIII repete Salomão a mesma conversão das Índias, eparticularmente naquelas palavras: Soror nostra parva, et ubera no habet; quidfaciemus sorori nostrae in die quan<strong>do</strong> alloquenda est? Si murus est. aedificemus


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 73 de 16927/08/2011super eum propugnacula argentea; si ostium est. compingamus illud tabuliscedrinis. Até agora foi escuríssimo este lugar, mas são admiráveis os mistériose mais admiráveis ainda as propriedades dele. Lu<strong>do</strong>vico Legionense, noscomentários sobre este livro, entende por esta irmã mais moça da Esposa aIgreja da Gentilidade novamente convertida à Fé: ...sub persona hujus sororisnatu minoris, et parum forma praestantis, cu`jus de collocatione sponsasolicitari dicitur, multi significantur populi atque gentes longe a nostro orberemotae, ad Christum adducenda; nova quadam Evangelli tradendi ratione; hocest significatur Hispanorum navigationibus reperti orbis, ejusque incolarum adChristi. fidem nuper facta conversio.Ainda que a Igreja toda seja uma, como a destas novas gentilidades veio aoconhecimento de Cristo tanto depois, que não foram menos que mil equinhentos anos, por isso lhe chama Salomão irmã menor e pequena — Sorornostra parva est — não pela grandeza das terras e número das gentes, em queé maior ou, quan<strong>do</strong> menos, igual a toda a Igreja antiga, mas pela menoridade<strong>do</strong> tempo e da idade em que se converteu. E diz com muita propriedade quenão tem peitos: Et ubera non habet porque to<strong>do</strong>s estes anos esteve falta <strong>do</strong>leite da verdadeira <strong>do</strong>utrina. E porque haver-se de desposar com Cristo estanova Igreja era um negócio cheio de tantas dificuldades, assim pela distanciade tão remotas terras e navegação de tão desconheci<strong>do</strong>s mares, comoprincipalmente pela resistência de suas nações, umas bárbaras, outras políticase todas feras, armadas e belicosas, e tão superiores no número e multidão aosque lhes haviam de levar e introduzir a Fé, estas dificuldades representa aIgreja antiga a seu Esposo, Cristo, com aquelas palavras: Quid faciemus sororinostrae in die quan<strong>do</strong> alloquenda est? «Que faremos Senhor, quan<strong>do</strong> chegar otempo em que se há-de desposar convosco esta minha irmã menor?:>> Ao queresponde Cristo com o antiquíssimo conselho de sua providência, dizen<strong>do</strong>: Simurus est. aedificemus super eum propugnacula argentea; si ostium,compingamus illud tabulis cedrinis.Quem não admirará nesta resposta os altíssimos conselhos da sabe<strong>do</strong>ria eprovidência divina? Dispôs Deus desde a criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> que estas terras,assim por fora como por dentro, fossem enriquecidas de coisas preciosíssimas,para que o interesse <strong>do</strong>s homens facilitasse as dificuldades, que sem ele criamimpossíveis de vencer. Como se dissera o Senhor: Ainda que a conquista da Fétem muros que dificultem sua entrada nessas terras, também tem portas poronde poderá entrar; esses muros facilitá-los-emos com prata; essas portasabri-las-emos com cedros: Si murus, aedificemus propugnacula argentea; siostium, compingamus illud tabulis cedrinis. Pela prata se entendem as minas epelos cedros o<strong>do</strong>ríferos as plantas preciosas; e as minas que essas terras têmem suas entranhas, e as plantas o<strong>do</strong>ríferas e preciosas que nelas nascem, sãoos meios e incentivos que obrigaram o interesse humano a que se disponha avencer todas essas dificuldades e abrir e franquear essas portas. E assim foiporque a prata, o ouro, os rubis, os diamantes, as esmeraldas, que aquelasterras criam e escondem em suas entranhas; as áquilas, os calambucos, o paubrasil,o violeta, o ébano, a canela, o cravo e a pimenta, que nelas nascem,foram os incentivos <strong>do</strong> interesse tão poderoso com os homens, quegrandemente facilitaram os perigos e os trabalhos da navegação e conquista deumas e outras Índias. Sen<strong>do</strong> certo que, se Deus com suma providência nãoenriquecera de to<strong>do</strong>s estes tesouros aquelas terras, não bastaria só o zelo eamor da religião para introduzir nelas a Fé.O profeta Isaías, como profeta singularmente escolhi<strong>do</strong> para historiar asmaravilhas da lei evangélica, foi o que mais falou de nós e delas: no cap. XLIXdiz assim: Ecce isti de longe venient, et ecce illi ab aquilone et mari, et isti deterra australi. Laudate, caeli, et exulta, terra, jubilate, montes, laudem, quiaconsolatus est Dominus populum suum, et pauperum quorum miserebitur. Oqual lugar entende Cornélio à Lápide e Árias Montano da conversão da China, eo provam <strong>do</strong> original hebreu, o qual lêem de terra Senim, como verts S.Jerónimo, Símaco, Áquila, Teodósio, o Siro, o Arábio, e to<strong>do</strong>s, e é o mesmo quede terra Sinorum, por ser este o mo<strong>do</strong> de falar da língua hebréia, na qual osGalileus se chamam Gelilim, e os Judeus Jehudim, e os Assírios Assurim, eassim também os Chinas ou Sinas Sinim. E se replicarmos a este senti<strong>do</strong> que aChina não é terra austral, senão oriental, e que se não pode verificar dela otermo de terra australi, respondem os mesmos autores que aludiu o EspíritoSanto, que governava a pena de S. Jerónimo, à navegação <strong>do</strong>s Portugueses, os


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 74 de 16927/08/2011quais, quan<strong>do</strong> vão para o Oriente, fazem a sua viagem direita ao Austro,navegan<strong>do</strong> ao cabo da Boa Esperança: Sinae enim (dizem eles), qui proprie hicsignificantur, licet sint ad Orientem, dici tamen possum ad Austrum, quiaLusitani in Sinas navigaturi, initio longo flexu, navigant ad Austrum, scilicet exLusitania usque ad promontorium Bonae Spei, quod uItimum est in continenteet directe oppositum Austro.De maneira que, como os Portugueses eram os que haviam de levar a Fé àChina, navegan<strong>do</strong> ao Austro ou Sul, por isso o Espírito Santo chamou Austral àChina, não pelo sítio, senão pelo rumo da navegação. Da mesma conversão <strong>do</strong>sChinas fez outra vez menção Isaías no cap. XI, v. I4, o qual explica larga eeruditamente Malvenda, seguin<strong>do</strong> a Foreiro, ambos varões mui <strong>do</strong>utos dafamília <strong>do</strong>minicana.O mesmo Profeta Isaías no cap. LX: Qui sunt isti, qui ut nubes volant et quasicolumbae ad fenestras suas? Me enim insulae expectant, et naves maris inprincipio, ut adducam filios tuos de longe; argentum eorum et aurum eorumcum eis, nomini Domini Dei tui et Sancto Israel, quia glorificavit te. Etaedificabunt filii peregrinorum muros tugs, et reges eorum ministrabunt tibi.Nestas palavras está profetizada admiravelmente a conversão das ÍndiasOcidentais; assim as explicam o mesmo Cornélio, Bózio, Aldrovan<strong>do</strong> e outros,com bem notáveis propriedades. Chama o Profeta às Índias Ocidentais, ilhas:Me enim insulae expectant. Porque todas aquelas vastíssimas terras, em quantose têm descoberto, estão rodeadas de mar, e bastava para se chamarem assima imensidade de mares que as dividem <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> amigo; além de que estesterras no princípio eram chamadas com o nome de Antilhas, como se lê nahistória de seu descobrimento. As nuvens que voam a estes terras para asfertilizer—Qui sunt isti, qui ut nubes volant— são os prega<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Evangelho,leva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> vento pelo mar como nuvens; e chamam-se também pombas: Etsunt columbae ad fenestras suas; porque levam estes nuvens a água <strong>do</strong>baptismo sobre que desceu o Espírito Santo em figure de pomba, que são os<strong>do</strong>is termos que desde o princípio <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> andaram sempre juntos nasignificação <strong>do</strong> batismo.No I cap. <strong>do</strong> Gênesis: Spiritus Domini ferebatur super aquas, e no II de S. João:...nisi quis renatus fuerit ex aqua et Spiritu Sancto. Mas o mesmo Bózio eAldrovan<strong>do</strong>, ainda advertiram no nome e semelhança de pomba outrapropriedade mais aguda, tirada <strong>do</strong> descobrimento das mesmas Índias, de cujasterras e navegação foi o primeiro descobri<strong>do</strong>r Cristóvão Colombo; e dizem quea isto aludiu o profeta, chaman<strong>do</strong> Columbas ou Columbos a to<strong>do</strong>s os queseguem a mesma derrota e navegação das Índias: Nomine columbae alludit adChristophorum Columbum, qui nobis iter ad illas oras primus aperuit. Bemassim, ou muito melhor, e com mais verdade <strong>do</strong> que disseram os Gentios queos Argonautas, quan<strong>do</strong> foram conquistar o velo de ouro a Colcos, levaram porguia uma pomba:Et qui movistis duo littora, cum rudis ArgusDux erat, ignoto missa columba mari.Os Potosis e outras minas de prata e ouro, que juntamente com as almas paraa Igreja haviam de conquistar estes argonautas, também as não esqueceu oProfeta: Et adducam filios tuos de longe, argentum eorum et aurum eorum cumeis. Muito ouro, muita prata e muitos filhos para a Igreja, e tu<strong>do</strong> de muitolonge; e porque não ficassem em silêncio as frotas das Índias: Et navis maris inprincipio; ou como lê Foreiro <strong>do</strong> hebreu: Et naves maris cum primaria, seupraetoria, que faziam esta navegação muitas naus, não divididas, senão emfrota, com sua capitaina; finalmente, que homens peregrinos edificariam osmuros da Igreja naquelas terras: Et aedificabunt filii peregrinorum muros tuos;e que os ministros de tu<strong>do</strong> isto seriam os mesmos reis, como fazem com tantapiedade os reis católicos: Et reges eorum ministrabunt tibi.É também ilustre lugar em Isaías aquele <strong>do</strong> cap. XLI: Egeni et pauperesquaerunt aquas, et non sunt: lingua eorum siti aruit. Ego Dominus exaudiameos [...] non derelinquam eos. Aperiam in supinis collibus flumina, et in medio


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 75 de 16927/08/2011camporum fortes: ponam desertum in stagna aquarum, et terram inviam inrivos aquarum. Dabo in solitudinem cedrum, et spinam, et myrtum, et lignumolivae; ponam in deserto abietem, ulmum et buxum simul; ut videant et sciant,et recogitent, et intelligant pariter, quia manus Domini fecit hoc...Quantos pobres e miseráveis estão morren<strong>do</strong> à sede por falta de água, isto é,viven<strong>do</strong> na gentilidade sem água <strong>do</strong> batismo? Mas eu (diz Deus) que tambémsou Senhor destes, os ouvirei e não me esquecerei deles: Ego Dominusexaudiam eos. Nestes seus montes e desertos secos e estéreis abrirei fontes erios mui copiosos; e por mais que essas terras sejam sem caminho, eu abrireicaminho por onde a elas cheguem as águas, de que tanto necessitam: Etterram inviam in rivos aquarum; e de once atègora se não colheu fruto, eu fareique se colha muito copioso e de to<strong>do</strong> o género: Dabo in solitudinem cedrum etspinam et myrtum, etc. Para que entenda e conheça o Mun<strong>do</strong> quão poderososou, e que esta obra é de minha mão: Ut videant et sciant quia manus Dominifecit hoc.São Cirilo, São Jerônimo, Procópio e Teo<strong>do</strong>reto entendem este texto daconversão das gentilidades, que Deus havia de converter por meio da pregação<strong>do</strong> Evangelho, mas não nos disseram que gentes estes fossem ou houvessemde ser, porque as não conheciam; porém os Doutores modernos nos dizemquais elas são. O P.e. Cornélio, depois <strong>do</strong> reverendíssimo Cláudio Aquaviva,geral da sua religião, diz assim: Hoc etiam hodie in Japone, Brasilia, China,aliisque Indiarum provinciis impleri magna laetitia conspicimus: que se cumpriue está cumprin<strong>do</strong> esta profecia no Japão, no Brasil, na China.Atèqui andamos com Isaías pelas terras firmes; vamos agora às ilhas, que sãoas primeiras por onde os nossos descobrimentos começaram.No cap. LVIII fala Isaías das obras grandes que fará o homem misericordioso; ecomo a major obra e a major misericórdia de sodas é tirar almas <strong>do</strong> Inferno,como se tiram as <strong>do</strong>s Gentios, quan<strong>do</strong> por meio da luz da Fé se lhes mostra ocaminho da salvação, diz umas palavras o Profeta, que, bem ponderadas, denenhum outro homem se podem entender à letra senão <strong>do</strong> nosso Infante santo(sic) D. Henrique, primeiro autor <strong>do</strong>s descobrimentos portugueses, cujoprincipal intento naquela empresa, como dizem sodas as nossas histórias, foi opuro e pie<strong>do</strong>so zelo da dilatação da Fé e conversão da gentilidade. As palavrasde Isaías são estas: Et aedificabuntur in te deserta saeculorum, fundamentagenerationis, et generationis suscitabis, et vocaberis aedificator septum,avertens semitas in quietem: «Em vós se povoarão os desertos <strong>do</strong>s séculos;vós lançareis os fundamentos de uma e outra geração; vós sereis chama<strong>do</strong>edifica<strong>do</strong>r das cercas e fareis que os que sempre andam, tenham assento.»Tais foram em tu<strong>do</strong> as obras <strong>do</strong> Infante D. Henrique, continuadas depois pelosreis de Portugal, que levaram adiante o que ele começou. Primeiramente nele epor ele se povoaram os desertos <strong>do</strong>s séculos! porque muitas ilhas, que desde oprincípio <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, por tantos séculos estiveram desertas e incógnitas edespovoadas, como era a ilha da Madeira, as Terceiras ou <strong>do</strong>s Açores, ele asdescobriu, povoou e edificou, e de ilhas desertas que antigamente eram, estãohoje tão povoadas e populosas, e tão enobrecidas de famosas cidades esumptuosos edifícios: AEdificabuntur in te deserta saeculorum. E assim comonestas ilhas ermas e desertas lançou este glorioso príncipe os primeirosfundamentos da geração humana, fazen<strong>do</strong> que fossem povoadas de homens,assim em outras ilhas, que estavam povoadas de bárbaros, como eram asCanárias e de Cabo Verde, lançou também os fundamentos da geração divina,fazen<strong>do</strong> por meio da pregação e luz <strong>do</strong> Evangelho que esses bárbaros gentiosconhecessem a Deus e fossem gera<strong>do</strong>s em Cristo: Fundamenta generationis etgenerationis suscitabis.O meio que para esta segunda e mais importante geração tomaram osreligiosíssimos príncipes de Portugal, foi mandarem religiosos por sodas asconquistas, de grande virtude e letras, fundan<strong>do</strong> e edifican<strong>do</strong> conventos dediversas ordens; e por isso diz o Profeta que seria chama<strong>do</strong> o primeiro autordesta obra, edifica<strong>do</strong>r de cercas, que são, como aqui notam alguns expositores,as cercas e claustros das religiões: Et vocaberis aedificator septum


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 76 de 16927/08/2011Finalmente, não cala o Profeta o fruto que desta santa indústria se seguiu emsodas estes gentilidades de bárbaros, e foi que, andan<strong>do</strong> de antes vagamentepelas brenhas, como animais silvestres, se aquietassem e tomassem assento, evivessem como homens, que isso quer dizer—Avertens semitas in quietem.Neste senti<strong>do</strong> tão próprio e literal explica Bózio este texto de Isaías; mas antesque escreva as suas palavras, quero pôr aqui as <strong>do</strong> nosso João de Barros,referin<strong>do</strong> o que desta empresa <strong>do</strong> Infante sentiam e murmuravam os que lhesparecia inútil e infrutuosa:


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 77 de 16927/08/2011Trabalharam sempre muito os intérpretes antigos por acharem a verdadeiraexplicação e aplicação deste texto; mas nem atinaram nem podiam atinar comela porque não tiveram notícia nem da terra, nem das gentes de que falava oProfeta. Os comenta<strong>do</strong>res modernos acertaram em comum com o entendimentoda profecia, dizen<strong>do</strong> que se entende da nova conversão à Fé daquelas terras egentes também novas, que ultimamente se conheceram no Mun<strong>do</strong> com odescobrimento <strong>do</strong>s antípodas; e notaram alguns com agudeza e propriedade,que isso quer dizer a energia da palavra: Ad gentem conculcatam: gente pisada<strong>do</strong>s pés, porque os antípodas, que ficaram debaixo de nós, parece que ostrazemos debaixo <strong>do</strong>s pés e que os pisamos; mas chegan<strong>do</strong> mais de perto àgente e terra ou província de que se entende a profecia, também os modernosnão acertaram atègora com o senti<strong>do</strong> próprio, germano e natural dela, e este éo que nós havemos de descobrir ou escrever aqui, pelo havermos recebi<strong>do</strong> depessoa <strong>do</strong>uta e versada nas Escrituras, que, haven<strong>do</strong> visto as gentes, pisa<strong>do</strong> asterras e navega<strong>do</strong> as águas de que fala este texto, acabou de o entender, everdadeiramente o entendeu, como veremos e verão melhor os que tiveremli<strong>do</strong> as exposições antigas e modernas dele.Cornélio teve para si que fala o profeta de Etiópia e <strong>do</strong> Preste João; mas Etiópianão está além de Etiópia, como diz o texto. Malvenda, com os outros que cita,entente <strong>do</strong>s Chinas e Japões, e aplica à navegação <strong>do</strong>s Portugueses oparafraste caldeu, por estas palavras: Chaldeus interpres haec verba Isaiae inhunc modum reddidit:


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 78 de 16927/08/2011cruéis, bárbaras e verdadeiramente terríveis. Em lugar de gentem conculcatam,lê o Sírio—gentem depilatam: gente sem pêlo; e tais são também os Brasis,que pela maior parte não têm barba, e no peito e pelo corpo têm a pele lisa esem cabelo, com grande diferença <strong>do</strong>s Europeus.Estes são os sinais comuns que nos aponta o Profeta daquela terra e gente;mas porque assinala mindamente outros mais particulares e que não convêm atoda a gente e terra <strong>do</strong> Brasil, é outra vez necessário que nós tambémdeclaremos a província e gente em que eles to<strong>do</strong>s se verificam; e esta gente eesta província mostraremos agora que é a que com toda a propriedadechamamos Maranhão, que por ser tão pouco conhecida e menos nomeada nosescritores, não é muito que a falta de suas notícias lhe tivesse atègoraescureci<strong>do</strong> e diverti<strong>do</strong> a honra deste famoso oráculo <strong>do</strong> mais ilustre profeta,que tão expressamente tinha fala<strong>do</strong> nesta gente.Diz pois o Profeta, que são estes homens uma gente a quem os rios lheroubaram a sua terra: Cujus diripuerant flumina terram ejus. E é admirável apropriedade desta diferença, porque em toda aquela terra, em que os rios sãoinfinitos e os maiores e mais caudalosos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, quase to<strong>do</strong>s os camposestão alaga<strong>do</strong>s e cobertos de água <strong>do</strong>ce, não se ven<strong>do</strong> em muitas jornadasmais que bosques, palmares e arvore<strong>do</strong>s altíssimos, to<strong>do</strong>s com as raízes etroncos meti<strong>do</strong>s na água, sen<strong>do</strong> raríssimos os lugares por espaço de cento,duzentas e mais léguas, em que se possa tomar porto, navegan<strong>do</strong>-se semprepor entre árvores espessíssimas de uma e outra parte, por ruas, travessas epraças de água que a natureza deixou descobertas e desimpedidas <strong>do</strong> arvore<strong>do</strong>,e posto que estes alagadiços sejam ordinários em toda aquela costa, vê-se estedestroço e roubo que os rios fizeram à terra, muito mais particularmentenaquele vastíssimo arquipélago <strong>do</strong> rio chama<strong>do</strong> Orelhana, e agora dasAmazonas, cujas terras estão todas senhoreadas e afogadas das águas, sen<strong>do</strong>muito conta<strong>do</strong>s e muito estreitos os sítios mais altos que eles, e muito distantesuns <strong>do</strong>s outros, em que os Índios possam assentar suas povoações, viven<strong>do</strong> poresta causa não imediatamente sobre a terra, senão em casas levantadas sobreesteios a que chamam juraus para que nas maiores enchentes passem as águaspor baixo; bem assim como as mesmas árvores, que ten<strong>do</strong> as raízes e troncosescondi<strong>do</strong>s na água, por cima dela se conservam e aparecem, diferin<strong>do</strong> só asárvores das casas em que umas são de ramos verdes outras de palmas secas.Desta sorte vivem os Nheengaíbas, Goianás, Maianás e outras antigamentepopulosas gentes, de quem se diz com propriedade que andam mais com asmãos que com os pés, porque apenas dão passo que não seja com o remo namão, restituin<strong>do</strong>-lhes os rios a terra que lhes roubaram, nos frutos agrestes dasárvores de que se sustentam, cuja colheita é muito 1impa, porque caem to<strong>do</strong>sna água, e em muita quantidade de tartarugas e peixes-bois, que são os ga<strong>do</strong>sque pastam naqueles campos, além de outro pesca<strong>do</strong> menor, e alguma caça deaves e montaria de porcos, que nos mesmos lugares sobre-agua<strong>do</strong>s, entre oslo<strong>do</strong>s e raízes das árvores, se ceva nos frutos delas. E nota o Profeta que não ério, senão rios, os que isto fazem; porque, ainda que o rio das Amazonas tenhafama de tão enorme grandeza, toda esta se compõe <strong>do</strong> concurso de muitosoutros rios, que to<strong>do</strong>s desembocam nele, ou juntamente com ele, comunican<strong>do</strong>e confundin<strong>do</strong> em si as águas e como unin<strong>do</strong> e conjuran<strong>do</strong> as forças para esteroubo que fizeram àquela terra: Cujus diripuerunt flumina terram ejus.Continua Isaías a sua descrição, e diz que os habita<strong>do</strong>res desta província sãogente arrancada e despedaçada, e só o Espírito Santo poderá recopilar em duaspalavras a história e última fortuna daquela gente.Quan<strong>do</strong> os Portugueses conquistaram as terras de Pernambuco, desengana<strong>do</strong>sos Índios (que eram mui valentes e resistiram por muitos anos) que nãopodiam prevalecer contra as nossas armas, uns deles se sujeitaram, fican<strong>do</strong> emsuas próprias terras; outros, com mais generosa resolução e determina<strong>do</strong>s anão servir, se meteram pelo sertão, onde ficaram muitos; outros, cain<strong>do</strong> para aparte <strong>do</strong> mar, vieram sair às terras <strong>do</strong> Maranhão, e ali como solda<strong>do</strong>s tãoexercita<strong>do</strong>s com o mais poderoso inimigo, fizeram facilmente a seushabita<strong>do</strong>res o que nós lhes tínhamos feito a eles.Desta peregrinação e desta guerra se seguiram naquela gente os <strong>do</strong>is efeitos


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 79 de 16927/08/2011que sinala Isaías, fican<strong>do</strong> uma e outra gente arrancada e despedaçada: osvence<strong>do</strong>res arranca<strong>do</strong>s, porque os tinham lança<strong>do</strong> de suas terras osPortugueses; e também despedaça<strong>do</strong>s, assim porque foram fican<strong>do</strong> a pedaçosem vários sítios como porque depois da vitória lhes foi necessário paraconservarem o violento <strong>do</strong>mínio, dividirem-se em colônias mui distantes uns<strong>do</strong>s outros, os venci<strong>do</strong>s também ficaram arranca<strong>do</strong>s, porque os Tutinambás,(que assim se chamavam os Pernambucanos) os arrancaram de suas pátrias; etambém e com muito maior razão despedaça<strong>do</strong>s porque, não poden<strong>do</strong> resistir,muitos deles fugiram em magotes pelos matos e pelos rios toman<strong>do</strong> diferentescaminhos, onde fizeram assento, não sem novos inimigos que ainda mais osdespedaçassem; assim que uns e outros ficaram gente arrancada, e uns eoutros gente despedaçada: gentem conculcatam et dilaceratam.Conheci<strong>do</strong>s já pela fortuna os descreve o Profeta, e muito particularmente peloexercício e arte da navegação, em que eram e são os Maranhões mui sinala<strong>do</strong>sentre os índios, por serem eles, ou os primeiros inventores da sua náutica,como gente nascida e mais criada na água que na terra, ou certamente porquecom sua indústria adiantaram muito a rudeza das embarcações bárbaras, deque os primeiros usavam. Tanto assim que a principal nação daquela terra,toman<strong>do</strong> o nome da mesma arte de navegar e das mesmas embarcações emque lá navegavam, se chamam Igaruanas, porque as suas embarcações, quesão as canoas, se chamam na sua língua igara, e deste nome igara derivaram adenominação de Igaruanas, como se disséssemos os náuticos, os artífices ou ossenhores das nausDiz pois Isaías que esta gente de que fala é um povo: Quae mittit in marelegatos et in vasis papyri super aquas: «Que manda de uma parte para outraseus negociantes em vasos de cascas de árvores sobre as águas.>>As palavras <strong>do</strong> Profeta todas têm mistério e todas declaram muito apropriedade da gente de que fala. Diz que as manda o povo, com quemconcorda o relativo quae, porque é gente que não tem reis, mas o mesmo povoe a mesma nação é a que elege aqueles que lhes parecem de melhor talento,assim para os negócios da paz, como para os da guerra, que tu<strong>do</strong> isso querdizer a palavra legatos, como se pode ver nos autores da língua latina. Diz maisque vão sobre as águas em vasos de cascas de árvores, porque esta era amatéria e fábrica de suas embarcações. Depois que tiveram uso <strong>do</strong> ferro,cavam os troncos das árvores e fazem de um só madeiro muito grandes canoas,de que o autor desta explicação viu alguma que tinha dezassete palmos de bocae cento de comprimento; mas antes de terem ferro despiam estes mesmosmadeiros, cujos troncos são muito altos e direitos, e, tiran<strong>do</strong>-lhes as cascasassim inteiras, delas formavam as suas embarcações. E não faz dúvida dizer oprofeta que estas embarcações iam ao mar: Qui mittit in mare; porque, além deentrarem com elas pelo mar Oceano, o mesmo arquipélago que dizemos, deágua <strong>do</strong>ce, se chama na sua língua, por sua grandeza, mar, e de aqui veio onome que os Portugueses lhe puseram de Grão-Pará ou Maranhão, o que tu<strong>do</strong>quer dizer mar grande, porque Pará significa mar.Do que temos dito atèqui ficará mais fácil de entender aquele grande enigma <strong>do</strong>Profeta, que está nas primeiras palavras deste texto: Vae terrae cymbaloalarum; o qual foi sempre o que maior trabalho deu aos intérpretes e osobrigou a dizerem cousas mui violentas e impróprias, como aqueles quefalavam a adivinhar, e não adivinhavam nem podiam. Os Setenta Intérpretes,em lugar de terrae cvmbalo alarum, leram terrae navium alis; e uma e outracousa significam as palavras de Isaías; porque os nomes hebreus de que estasversões foram tiradas, têm ambas as significações e querem dizer: Ai da terraque tem navios com asas; ou, ai da terra que tem sinos com asas. Se são sinos,como são navios? e se são navios, como são sinos?Esta dificuldade foi atègora o torce<strong>do</strong>r de to<strong>do</strong>s os entendimentos <strong>do</strong>sexpositores sagra<strong>do</strong>s, de 1600 anos a esta parte; mas como podia ser queentendessem o enigma da terra, senão tinham as notícias nem a língua dela?Para inteligência <strong>do</strong> verdadeiro entendimento deste texto ou enigma, se há-desupor que a palavra latina cymbalum, com que significamos os nossos sinos demetal, significa também qualquer instrumento com que se faz som e estron<strong>do</strong> etais eram os címbalos de que usavam antigamente os Gentios, que sechamavam por nomes particulares sistros crotalos, ou cretitáculos, e por nome


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 80 de 16927/08/2011geral cimbalos. Assim o explicou eruditamente Carpenteio, verten<strong>do</strong> em versoeste mesmo lugar de Isaías:Vae tibi, quae reducem sistris cretitantibus apimConcelebras, crotalos et inania cymbala pulsas...Também se há-de supor que os Maranhões usavam de uns instrumentos a quechamavam maracás não de metal, porque o não tinham, senão de cabaços oucocos grandes, dentro <strong>do</strong>s quais metiam seixos ou caroços de várias frutas,duros e acomoda<strong>do</strong>s a fazer muito estron<strong>do</strong> e ruí<strong>do</strong>, servin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s menoresnas festas e nos bailes e <strong>do</strong>s maiores nas guerras. Estes maracás erampropriamente os seus címbalos ou sinos, tanto assim que, depois que viram ossinos de que nós usamos, lhes chamam itamaracás, que quer dizer, maracás ousinos de metal.Isto suposto, o expositor que mais foi rastejan<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> verdadeiro que podiater este enigma, foi Gabriel Palácio, o qual, no comentário literal deste lugar deIsaías, diz assim: Fortasse indicus usus nominis cymbali antiquitas inolevit apudHebraeos tempore Isaiae: «Porventura—diz ele—que no tempo de Isaías asembarcações <strong>do</strong>s Índios se chamariam entre os Hebreus sinos.» E porque nãoseria antes, digo eu, que se chamassem sinos, ou tomassem nome de sinos asembarcações <strong>do</strong>s índios, de que Isaías falava, não porque este nome fosseusa<strong>do</strong> entre os Hebreus, senão entre os mesmos Índios? Assim era e assim é, edeste mo<strong>do</strong> fica decifra<strong>do</strong> e entendi<strong>do</strong> o antiquíssimo e escuríssimo lugar eenigma de Isaías.As maiores embarcações <strong>do</strong>s Maranhões chamam-se maracàtim, deriva<strong>do</strong> onome da palavra mararacá, que, como dissemos, significa entre eles sino; e arazão de darem este nome às suas maiores embarcações era porque, quan<strong>do</strong>iam às batalhas navais, quais eram ordinariamente as suas, punham na proaum destes maracás muito grandes, ata<strong>do</strong>s aos gorupezes ou paus compri<strong>do</strong>s; ebolin<strong>do</strong> de indústria com eles, além <strong>do</strong> movimento natural das canoas e <strong>do</strong>sremeiros, faziam um estron<strong>do</strong> barbaramente bélico e horrível; e porque a proada canoa se chama tim, tirada a metáfora <strong>do</strong> nariz <strong>do</strong>s homens ou <strong>do</strong> bico dasaves, que têm o mesmo nome, e juntan<strong>do</strong> a palavra tim com a palavra maracá,chamavam àquelas canoas ou embarcações maiores maracàtim; e este nomeusam ainda hoje, e com ele nomeiam os nossos navios.Nem mais nem menos que os Romanos às suas galés de guerra deram nomesde rostratas, pelas pontas de ferro agudas que levavam nas proas, tira<strong>do</strong>também o nome ou metáfora <strong>do</strong>s bicos das aves, que chamam rostros. Assimque vem a dizer Isaías que a terra de que fala é terra que usa embarcações quetêm nomes de sinos; e estas são pontualmente os maracàtins <strong>do</strong>s Maranhões.Mas não está ainda explicada toda a dificuldade ou propriedade <strong>do</strong> enigma,porque diz o Profeta que estas embarcações ou estes sinos eram sinos eembarcações com asas: cymbalo alarum, navium alis. Os expositores to<strong>do</strong>sdizem que estas asas eram as velas das embarcações e que são as asas <strong>do</strong>snavios, conforme o poeta: Velorun pandimus alas. A qual explicação pudera serbem admitida, se não tivera a própria e verdadeira; sen<strong>do</strong> certo que o Profetanão havia de dar por sinal e divisa daquelas embarcações uma cousa tãocomum e universal em todas.Digo pois que fala o texto de verdadeiras asas de aves. Como aqueles gentiosnão tecem, nem têm panos, é grande entre eles o uso das penas pelaformosura das cores com que a natureza vestiu os pássaros, e particularmenteo chama<strong>do</strong> guarás, de que há infinita quantidade, grandes e to<strong>do</strong>s vermelhos,sem mistura de outra cor; destas penas se enfeitam quan<strong>do</strong> se querem pôrbizarros, e principalmente quan<strong>do</strong> vão à guerra, ornan<strong>do</strong> com elas to<strong>do</strong> ogênero de armas, porque não só levam empenadas as setas, senão também osarcos e rodelas, e as partaz anas de pau e pedra que chamam fanga-penas; equan<strong>do</strong> a guerra era naval, empavezavam-se as canoas com asas vermelhas<strong>do</strong>s guarás. e as mesmas levavam penduradas <strong>do</strong>s gorupezes e maracás dasproas; e por isso o Profeta diz que todas estas cousas via e notava como tãonovas: chamam as lanças sinos e sinos com asas: Navius alis, cymbalo alarum.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 81 de 16927/08/2011E porque não faltasse a esta terra a demarcação ou arrumação, como dizem osgeógrafos, da sua altura, onde a Vulgata leu gentem expectantemexpectantem, a propriedade da letra hebréia, como diz Foreiro, Pagnino,Vatablo, Sanchez e outros muitos tão geralmente, é gentem lineae linea:, genteda linha de linha; porque os Maranhões são aqueles que, além da Etiópia, ficampontual e perpendiculannente bem debaixo da Linha Equinocial, que épropriedade por to<strong>do</strong>s os títulos admirável; e assim como a palavra lineae serepete, está também repetida no mesmo texto a palavra expectantem; comque vem a concluir o Profeta o seu principal e total intento, que é exortar osprega<strong>do</strong>res evangélicos a que vão ser anjos da guarda daquela triste gente,que tanto há mister quem a encaminhe como quem a defenda: Ite, angelive1oces, ad gentem expectantem, expectantem: gente que está esperan<strong>do</strong>,esperan<strong>do</strong>. Porque entre todas as gentes <strong>do</strong> Brasil os Maranhões foram osúltimos a quem chegararn as novas <strong>do</strong> Evangelho e o conhecimento <strong>do</strong>verdadeiro Deus, esperan<strong>do</strong> por este bem, que tanto tar<strong>do</strong>u a to<strong>do</strong>s osAmericanos, mais que to<strong>do</strong>s eles. No Brasil se começou a pregar a Fé no ano de1550, em que o descobriu Pedro Álvares Cabral; e no Maranhão no ano de1615, em que o conquistou Alexandre de Moura, esperan<strong>do</strong> mais que to<strong>do</strong>s osoutros Brasis sessenta e cinco anos. Mas hoje estão ainda em pior fortuna,padecen<strong>do</strong> aquele vae <strong>do</strong> Profeta: Vae terra: cymbalo alarum; porque o esta<strong>do</strong>da esperança se Lhes tem troca<strong>do</strong> no de desesperação. E esperam de se salvaros que de tantos danos e danos são causa?Muito largos temos si<strong>do</strong> na exposição deste texto, mas foi assim necessário porsua dificuldade e por não estar até hoje entendi<strong>do</strong>. Deixo muitos outros lugares<strong>do</strong> Profeta Isaías, o qual verdadeiramente se pode contar entre os cronistas dePortugal, segun<strong>do</strong> fala muitas vezes nas espirituais conquistas <strong>do</strong>s Portuguesese nas gentes e nações que por seus prega<strong>do</strong>res se converteram à Fé; que oprimeiro e principal intento que neles tiveram nossos pie<strong>do</strong>síssimos reis, comose pode ver <strong>do</strong> que de El-Rei Dom Manuel, de El-Rei Dom João o II, <strong>do</strong> InfanteDom Henrique, de El-Rei Dom João o III e de El-Rei Dom Sebastião escrevemseus historia<strong>do</strong>res.O Profeta Abdias em um só capítulo que escreveu também falou das conquistasde Portugal: El transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est, possidebitcivitates Austri. A palavra hebreia Sepharad, de que São Jerônimo verteuBosphoro, significa termo, limite e fim. Esta mesma palavra Sepharad é nomecom que os Hebreus chamam a Espanha, porque em Espanha está o estreitoque divide a Europa de África e Espanha era o termo, limite e fim que osAntigos conheciam no Mun<strong>do</strong>, como testemunham de uma parte as Colunas deHércules e de outra o cabo de Finis Terrae, que são as duas balizas que têm nomeio a Portugal. Toda a explicação é comum e certa entre to<strong>do</strong>s os autoresmais peritos da língua hebraica—Vatablo, Pagnino, Burgense, Arias, Lirano,Isi<strong>do</strong>ro Clário e os demais. Diz agora o profeta Abdias que a transmigração deJerusalém, que passou a Espanha, viria tempo em que possuísse as cidades <strong>do</strong>Austro.Mas sobre a transmigração de Jerusalém de que Abdias fala, há duas opiniõesentre os autores. Árias Montano, Frei Luís de Leon, Malvenda e outros têm parasi que fala da transmigração de Nabuco<strong>do</strong>nosor o qual, ten<strong>do</strong> conquista<strong>do</strong> aJerusalém e passa<strong>do</strong> seus habita<strong>do</strong>res para Babilônia, de ali man<strong>do</strong>u partedeles para Espanha, por ser parte desta província conquista sua, como refereJosefo, Estrabo e outros graves autores, e que veio o mesmo Nabuco empessoa a fazer esta guerra. Destes hebreus, ou desterra<strong>do</strong>s ou trazi<strong>do</strong>s porNabuco, ficaram muitos em Espanha, pela qual fortuna (como notou SantoAgostinho na morte <strong>do</strong>s infantes de Belém) não tiveram parte na morte deCristo e conservaram sua antiga nobreza, e deles, como escrevem muitashistórias de Espanha, foi fundação a insigne cidade de Tole<strong>do</strong>, Maqueda,Escalona e outras. Assim querem também que de Nabuco traga seu apeli<strong>do</strong> ailustre família <strong>do</strong>s Osórios. Desta transmigração pois (diz Montano e os maisacima alega<strong>do</strong>s) se há-de entender o texto de Abdias; e como o Profeta própriae literalmente falava neste lugar <strong>do</strong> mesmo cativeiro de Babilônia, éconseqüência muito ajustada que da profecia <strong>do</strong> desterro passou, paraconsolação <strong>do</strong>s mesmos desterra<strong>do</strong>s, a uma felicidade tão estranha, que delashavia de ter princípio, qual é a que logo diremos.Nicolau de Lira, Vatablo, Fevardêncio e outros entendem por esta


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 82 de 16927/08/2011transmigração de Jerusalém a que fez Cristo, mandan<strong>do</strong> daquela cidade eespalhan<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> seus Apóstolos, entre os quais coube Espanha aSant' Iago, e ele por meio de seus discípulos a converteu toda à Fé e desterroudela a Gentilidade: Et transmigratio Hierusalem, quae in Bosphoro est (dizLirano) in hebraeo habetur in Cepharad, id est in Hispania, ubi dicit Rabbi Sa...quod fuit impletum per Jacobum apostolum, et ejus discipulos, ibi fidem Christiprimitus praedicantes, et colla gentium subjugantes, etc. E cumprida emSant'Iago a transmigração de Jerusalém, que é a primeira parte da profecia,em seus discípulos, que são os que em Espanha receberam e conservaramsempre a Fé que ele lhes tinha prega<strong>do</strong>, se cumpriu a segunda parte dela;sen<strong>do</strong> estes os que depois de tantos séculos vieram a <strong>do</strong>minar e possuir asregiões <strong>do</strong> Austro: Possidebunt civitates Austri. Assim o entendem também,seguin<strong>do</strong> esta segunda exposição, Cornélio, José da Costa, Antônio Caracciolo eoutros. De maneira que to<strong>do</strong>s estes autores concordam em que a profecia daconquista das regiões <strong>do</strong> Austro se entende de Espanha; e discordam só nainteligência da transmigração de Jerusalém, entenden<strong>do</strong> uns que é a de Nabucopelos Judeus passa<strong>do</strong>s à Espanha, e outros que é a de Cristo pelos Apóstolos,quan<strong>do</strong> vieram pregar a ela; mas eu, concilian<strong>do</strong> facilmente estas duas opiniõese mostran<strong>do</strong> que a profecia se entende mais particularmente de Portugal, digoque falou o Profeta de uma e outra transmigração, porque de ambas astransmigrações foram os primeiros ministros da Fé que a plantaram emPortugal, de onde ela depois tão felizmente se transplantou às regiões <strong>do</strong>Austro.O fundamento que tenho para assim o dizer, porei aqui com as palavras <strong>do</strong>arcebispo D. Rodrigo da Cunha, o qual, na primeira parte da HistoriaEcclesiastica Bracharense, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Apóstolo Sant'Iago, diz desta maneira:Entrou em Braga o santo Apóstolo, e para entrar com estron<strong>do</strong> de trovão (cujofilho o chamara Cristo, Nosso Senhor, se foi a uma sepultura célebre, ondejacia enterra<strong>do</strong> de seiscentos anos um santo profeta, judeu de nação, e que aliviera dar com outros cativos manda<strong>do</strong>s de Babilônia por Nabuco<strong>do</strong>nosor,chama<strong>do</strong> Malaquias, o velho, ou Samuel, o moço e em presença de infinitopovo, chaman<strong>do</strong> por ele o ressuscitou em nome de Jesus Cristo, a quem vinhapregar e publicar por verdadeiro Deus; bautizou-o pouco depois, e dan<strong>do</strong>-lhe onome de Pedro, o escolheu e tomou por primeiro e principal de to<strong>do</strong>s seusdiscípulos.Até aqui esta maravilhosa história, tirada de autores e memórias mui antigas, eparticularmente de uma carta de Hugo, bispo <strong>do</strong> Porto, e <strong>do</strong>s fragmentos deSanto Atanásio, bispo de Saragoça, o qual conheceu ao mesmo Pedroressuscita<strong>do</strong> e escreveu o caso quase pelas mesmas palavras, que por isso nãotraduzimos, e são as seguintes: Ego novi sanctum Petrum, BracharensemEpiscopum, quem antiquum prophetam suscitavit Sanctus Jacobus Zebedueifilius, magister meus. Hic venerat cum duodecim tributus missis aNabucho<strong>do</strong>nosore in Hispaniam Hierosolymis duce Nabucho-Cerdan, vel Pyrrho,Hispaniarum praefecto.De sorte que ambas as transmigrações de Jerusalém concorrem para a fé dePortugal: a de Cristo com o Apóstolo Santiago, e a de Nabuco com o ApóstoloMalaquias, depois chama<strong>do</strong> vulgarmente S. Pedro de Rates, que foi a pedrafundamental depois <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong> Apóstolo da Igreja de Portugal. Os filhos destaIgreja e herdeiros desta Fé foram os que dali a tantos anos <strong>do</strong>minaram com osestandartes dela as cidades e regiões <strong>do</strong> Austro, que são propriissimamente asque correm de uma e outra parte <strong>do</strong> Oceano Austral, à parte direita pela costada América ou Brasil, e à esquerda pela costa de África à Etiópia, cuja rainhaSabá chamou Cristo Regina Austri; e estas são as terras de que no comentodeste texto faz menção Cornélio: Americam, Brasilicam, Africam, AEthiopiam.Assim se cumpriu nos Portugueses a profecia de Abdias: Transmigratio, quaeest in Hispania, possidebit civitates Austri. E esperamos que seja novocomplemento dela o <strong>do</strong>mínio da terra indômita, geralmente chamada TerraAustral.O Cântico de Habacuc, que é a matéria de to<strong>do</strong> o III cap. e último desteProfeta, tem por assunto o triunfo de Cristo, com que por meio da sua cruz


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 83 de 16927/08/2011triunfou um dia da morte, <strong>do</strong> demônio e <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>, e depois em vários temposfoi triunfan<strong>do</strong> da i<strong>do</strong>latria e da gentilidade, conforme a disposição da suaprovidência. A parte marítima deste triunfo, que também foi naval, pertenceprincipalmente aos Portugueses, por meio de cuja navegação e pregaçãosujeitou Cristo à obediência de seu império tantas gentes de ambos os mun<strong>do</strong>s.Isto quer dizer 0 Profeta no v. 8.° ...ascendes super equos tuos: et quadrigaetuae salvatio. E no v. 15.°: Viam fecisti in mari equis tuis, in luto aquarummultarum. Que abriu Cristo caminho pelo mar à sua cavalaria, para que pisasseas ondas, e que a guerra que com esta cavalaria havia de fazer, não era paramatar os homens, senão para os salvar, e salvan<strong>do</strong>-os, triunfar deles: Equitatiotua salus; hoc est, evangelistae tui portabunt te, diz Santo Agostinho, everdadeiramente não se podia dizer cousa mais apropriada aos Portugueses.Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo abriu o primeirocaminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis. Os Portugueses, aquelescavaleiros que pisaram as ondas <strong>do</strong> mar, como os cavalos pisam o lo<strong>do</strong> daterra: In Iuto aquarum multarum; e as naus <strong>do</strong>s Portugueses, aquelas carroçasque levavam pelo mar a Fé, a salvação: Et quadrigae tuae salvatio. E a primeiraempresa e vitória desta cavalaria de Cristo foi a sujeição <strong>do</strong> mesmo mar bravo,soberbo, furioso e indigna<strong>do</strong>, que ou Cristo lhe sujeitou a eles, ou eles osujeitaram também a Cristo, para que o reconhecesse e a<strong>do</strong>rasse. O mesmoProfeta o disse assim: Numquid in mari indignatio tua?» «Porventura, ó Senhor,há-de ser eterna a vossa indignação no mar?» E responde a esta sua pergunta,que o mar submeteria suas ondas: Gurges aquarum transiit: que os abismosconfessariam a potência de Cristo as vozes: Dedit abyssus vocem suam; (Ibid.)e que as suas alturas ou profundidades, com as mãos levantadas o a<strong>do</strong>rariam ereconheceriam por Senhor: Altitu<strong>do</strong> manus suas levavit; e esta foi a primeiravitória de Cristo, e este da sua cavalaria o primeiro triunfo.Mas para que se veja o grande mistério desta metáfora de cavalaria de Cristo,de que usou o Profeta (deixan<strong>do</strong> à parte haver si<strong>do</strong> esta empresa <strong>do</strong>s primeirosdescobrimentos e conquistas <strong>do</strong>s Portugueses), por si mesma e na opinião <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> tem [esta] cavalaria [tanto valimento,] que não só os mesmosPortugueses, senão ainda os estrangeiros, faziam grande apreço de searmarem nela cavaleiros, como lemos que o fizeram alguns de Alemanha eDinamarca.Faz muito ao caso advertir o que escreve o nosso insigne historia<strong>do</strong>r destasconquistas, que quero pôr aqui por suas próprias palavras): Mas ainda foiacerca dele (fala <strong>do</strong> Infante D. Henrique) outra cousa muito mais eficaz, queera a obrigação <strong>do</strong> cargo e administração que tinha de governa<strong>do</strong>r da Ordem daCavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que El-Rei D. Dinis, seu tresavo, paraesta guerra <strong>do</strong>s Infiéis ordenou e novamente constituiu. E mais abaixo nomesmo cap., que é o 2° <strong>do</strong> liv. I.°, Década I.a: Assentou em mudar estaconquista para outras partes mais remotas de Espanha, <strong>do</strong> que eram os reinosde Fez e Marrocos, com que a despesa deste caso fosse própria dele e nãotaxada por outrem; e os méritos de seu trabalho ficassem meti<strong>do</strong>s na Ordem eCavalaria de Cristo que ele governava; de cujo tesouro podia pretender. Desorte que dizer o Profeta que Cristo havia de abrir carmino no mar à suacavalaria, e que a empresa havia de ser a salvação das almas, não só tem aformosura da metáfora, senão a propriedade <strong>do</strong> caso, e a verdade da história ecumprimento da profecia; pois verdadeiramente esta admirável empresa foiobra, não de outro príncipe, senão de um que era propriamente administra<strong>do</strong>r egoverna<strong>do</strong>r da Ordem da Cavalaria de Cristo, e feita, não com outras despesas,senão com as rendas e tesouros da mesma cavalaria e serviços e merecimentospróprios dela.E porque o maior ministro <strong>do</strong> Evangelho que se embarcou nas carroças destacavalaria, para levar a salvação às terras e gentes que ela descobriu econquistou, foi o grande Apóstolo da Índia S. Francisco Xavier, cujos primeirostrabalhos foram os da navegação da costa de África e pregação da Fé emMoçambique, é cousa memorável e muito digna de se referir neste lugar, quetambém ele foi cavaleiro da mesma Ordem.Na <strong>História</strong> <strong>do</strong> P.e Marcelo Mastrilli, a quem S. Francisco Xavier restituiumilagrosamente a vida, para que a fosse dar por Cristo no Japão, onde padeceuglorioso martírio, se conta uma visão em que o mesmo santo apóstolo apareceu


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 84 de 16927/08/2011vesti<strong>do</strong> com o manto branco da Ordem de Cristo e com cruz vermelha no peito,como insigne cavaleiro desta santa cavalaria, e que tanto adiantou em nossasConquistas a glória de sua empresa. Singular prerrogativa, por certo, da Ordem<strong>do</strong>s Cavaleiros de Cristo de Portugal, não haven<strong>do</strong> outra entre todas as daCristandade, que se possa gloriar de ter tão ilustre cavaleiro, nem de que sobreos <strong>do</strong>tes da glória se vestisse o seu manto e a sua cruz; mas to<strong>do</strong> este favor <strong>do</strong>Céu merece uma cavalaria que tanto mar, tanto mun<strong>do</strong> e tantas almasconquistou para o mesmo Céu.Para confirmação de tu<strong>do</strong> isto, e para que os Portugueses conheçam quantodevem a Deus, pelos escolher para instrumentos de obras tão admiráveis, epara que se não admirem quan<strong>do</strong> lhes dissermos que os tem escolhi<strong>do</strong> paraoutras maiores, não pode haver melhor testemunho que o proêmio <strong>do</strong> mesmoProfeta, com que deu princípio a este cântico triunfal das vitórias de Cristo:Domine, (começa ele) audivi auditionem tuam et timui. Domine, opus tuum inmedio annoram vivifica illud. In medio annorum notum facies: cum iratusfueris, misericordiae recordaberis. Quan<strong>do</strong> Deus revelou ao Profeta e quan<strong>do</strong>ouviu de sua boca o que havia de fazer aos vin<strong>do</strong>uros, diz que ficou cheio detemor e assombro ( assim o interpretaram os Setenta , acrescentan<strong>do</strong> pormo<strong>do</strong> de glosa no mesmo texto: Consideravi opera tua, et expavi). Porque nãohouve obra de Deus, depois <strong>do</strong> princípio e criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, que maisassombrasse e fizesse pasmar aos homens que o descobrimento <strong>do</strong> mesmoMun<strong>do</strong> que tantos mil anos tinha esta<strong>do</strong> incógnito e ignora<strong>do</strong>; nem que maiornem mais justo temor deva causar aos que bem ponderarem esta obra, que aconsideração <strong>do</strong>s ocultos juízos de Deus, com que por tantos séculos permitiuque tão grande parte <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, tantas gentes e tanta s almas vivessem nastrevas da infidelidade, sem lhes amanhecerem as luzes da Fé, tão breve noitepara os corpos e tão comprida noite para as almas. Mas no meio dessescompridíssimos anos, diz o Profeta que faria Deus que se descobrisse econhecesse o que até então estava oculto: In medio annorum notum facies; eque ten<strong>do</strong> dura<strong>do</strong> tantos séculos sua ira contra aquelas gentes idólatras, emfim se lembraria de sua misericórdia: Cum iratus fueris, misericordiaerecordaberis; e que então tornaria o Senhor a vivificar e ressuscitar a sua obra:Opus tuum, in medio annorum vivifica illud.Os Setenta, traduzin<strong>do</strong> juntamente e explican<strong>do</strong> leram: Cum appropinquaverintanni, cognosceris. «Quan<strong>do</strong> chegarem os anos determina<strong>do</strong>s por vossaprovidência, então sereis conheci<strong>do</strong>.:>> E este novo conhecimento que Deusdeu àquelas nações por meio <strong>do</strong>s nossos apóstolos e prega<strong>do</strong>res da sua Fé foitornar a ressuscitar a mesma obra, que tinha começa<strong>do</strong> pelos primeirosapóstolos que naquelas mesmas terras a pregaram, e com o tempo estava emalgumas partes amortecida e em outras totalmente morta. Isto quer dizer:Opus tuum vivifica illud: ou, como traslada Símaco: Reviviscere fac ipsum. E omesmo profeta mais abaixo se comenta a si mesmo, dizen<strong>do</strong>: Suscitanssuscitatis arcum; tuum. «Vós, Senhor, tornareis a ressuscitar o vossoarco» (que é a sua cruz), por meio de cuja pregação ressuscitaria também a Fée as vitórias dela naquelas nações.Assim o profetizou na Índia seu primeiro Apostolo, S. Tomé, quan<strong>do</strong> na cidadede Meliapor, então famosíssima, levantan<strong>do</strong> uma cruz de pedra em lugardistante das praias, não menos que <strong>do</strong>ze léguas. Lhes disse e man<strong>do</strong>u esculpirno pé dela, que quan<strong>do</strong> o mar ali chegasse, chegariam também de partesremotíssimas <strong>do</strong> Ocidente outros homens da sua cor. que pregassem a mesmaCruz, a mesma Fé e o mesmo Cristo que ele pregava.Cumpriu-se pontualmente a profecia, porque o mar, comen<strong>do</strong> pouco a pouco aterra, chegou ao lugar sinala<strong>do</strong>, e no mesmo tempo chegaram os Portugueses.Igual glória (e não sei se maior de Portugal) a da Índia, que ainda tivesse a S.Tomé por seu apóstolo e Portugal não era de to<strong>do</strong> cristão, e já os Apóstolosplantavam as balizas da fé em seu nome e conheciam e pregavam que ele erao que havia de fazer cristão ao Mun<strong>do</strong>. Lembre-se outra vez Portugal destasobrigações, e de quanto lhe merece Cristo.O Profeta Sofonias, no cap. III, também falou mui particularmente nesteglorioso assunto: Ultra flumina AEthiopiae (diz ele, ou por ele Deus) inde


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 85 de 16927/08/2011supplices mei, filii dispersorum meorum deferent munus mihi. As quais palavrasentendem Árias, Vatablo, Castro e Cornélio das nações que estão além <strong>do</strong>Tigres e <strong>do</strong> Eufrates, isto é, <strong>do</strong>s Chinas, Japões e outras gentes da Índia menosremotas, que por meio das pregações <strong>do</strong>s Portugueses se haviam de ajoelhardiante <strong>do</strong>s altares de Cristo e lhe haviam de levar e oferecer seus <strong>do</strong>ns emtestemunho de o reconhecerem por seu Deus; mas contra esta explicaçãoparece que se opõem as primeiras palavras <strong>do</strong> texto, que verdadeiramentefalam das gentes que estão além <strong>do</strong> rio da Etiópia: Ultra flumina AEthiopiaeinde supplices mei. Logo, segun<strong>do</strong> o que acima deixamos dito, não se podeentender este texto das gentes orientais. Por este argumento há outros autoresque o entendem <strong>do</strong> Brasil e da América, e posto de um e outro mo<strong>do</strong>, sempre ooráculo ou elogio deste Profeta nos fica em casa. Digo que de uma e outraterra, e de uma e outra gente se pode entender.E a razão é porque, segun<strong>do</strong> Estrabo, Éforo, Heró<strong>do</strong>to e outros, debaixo <strong>do</strong>mesmo nome de Etiópia se compreendiam antigamente duas Etiópias: umaoriental, que estava na Ásia além <strong>do</strong> Tigres e Eufrates, <strong>do</strong>nde era a mulher deMoisés, chamada por isso Etiópia; e outra ocidental, na África, que são todasaquelas terras que cerca o mar Oceano, desde Guiné até o mar Roxo.As palavras de Heró<strong>do</strong>to são estas: Hi AEthiopes, qui sunt ab ortu Solis, subPharnarzatre, censebantur cum Indiis specie nihil admodum a caeterisdifferentes, sed sono vocis dumtaxat, atque capillatura. Nam AEthiopes qui abortu Solis sunt, permixtos crines; qui ex Africa, crespissimos inter homineshabent. De sorte que também havia Etíopes na Ásia, como são hoje os que seconservam com o mesmo nome na África, e só se distinguiam uns <strong>do</strong>s outrosno som da voz e no cabelo; porque os da .Ásia tinham o cabelo solto e corredioe os da África crespo e retorci<strong>do</strong>; a qual distinção não não só é necessária parao entendimento de muitos lugares das Escrituras, senão ainda <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>rese poetas antigos, que de outro mo<strong>do</strong> se não podem bem entender.Nem faça dúvida a esta distinção a palavra Chus, de que usa indistintamente ooriginal hebreu, <strong>do</strong>nde nós lemos AEthiopae; porque Membrot, filho de Chus eneto de Cham, deu o nome de seu pai às terras orientais, onde habitou epovoou. Os descendentes deste mesmo Membrot e deste mesmo Chus, comodiz Éforo, referi<strong>do</strong> por Estrabo, e os que depois passaram à África e apovoaram, levaram consigo o nome que tinham herda<strong>do</strong> de seu pai e de seuavô; e assim como uns e outros na língua latina se chamam AEthiopes, e a suaterra Ethiopia, assim uns e outros na língua hebréia se chamam Chuteos e asua terra Chus. Donde se segue que quan<strong>do</strong> na Escritura se acha este nomesem outra diferença, (como neste lugar de Sofonias) se pode entender dequalquer das Etiópias; porém quan<strong>do</strong> se ajuntem na história ou narraçãoalgumas diferenças que o determinem, então se há-de entenderdeterminadamente ou só da Etiópia Oriental ou só da Ocidental, como nósfizemos no texto de Isaías ultimamente referi<strong>do</strong>.No cap. XVI, 12, <strong>do</strong> Apocalipse, diz S. João: Et sextus angelus effudit phialamsuam in flumen illud magnum Euphraten: et siccovit aquam ejus, utpraepararetur via regibus ab ortu Solis: Que «o sexto anjo derramou suare<strong>do</strong>ma sobre aquele grande rio Eufrates e que secou suas águas, paraaparelhar o caminho aos reis <strong>do</strong> Oriente». O maior impedimento de água quetinham os reis <strong>do</strong> Oriente para passar a Jerusalém, era o rio Eufrates, por ser omais profun<strong>do</strong> e mais caudaloso da Saia; e este impedimento diz S. João quese lhes havia tirar, de mo<strong>do</strong> que se pudesse passar o Eufrates a pé enxuto. Masdebaixo das figuras deste enigma se significava outra melhor Jerusalém, que éRoma, cabeça da Igreja, e outro melhor Eufrates, que é o mar Oceano, peloqual se abriu caminho aos reis <strong>do</strong> Oriente, para que pudessem vir à Igreja.Assim como o Profeta Jeremias chamou ao Eufrates mar, não é muito que S.João chamasse ao mar Eufrates, principalmente acompanha<strong>do</strong> daqueles <strong>do</strong>isepítetos de alusão a grandeza: Illud magnum Euphatem. E este grandeEufrates é aquele grande mar, pelo qual os Portugueses (maior façanha eventura que a <strong>do</strong> outro Ciro) fizeram passagem a pé enxuto nas suas grandesnaus da Índia, para levarem nelas a Fé ao Oriente e trazerem tantos reisorientais à obediência e sujeição da Igreja. Não sou eu nem autor português(como quase to<strong>do</strong>s os que até agora tenho alega<strong>do</strong>) o que isto digo, senão o<strong>do</strong>utíssimo Genebrar<strong>do</strong>, insigne professor parisiense das Letras Sagradas.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 86 de 16927/08/2011falan<strong>do</strong> em geral <strong>do</strong>s Espanhóis e em particular <strong>do</strong>s Portugueses, a quem sópertence a conversão <strong>do</strong>s reis <strong>do</strong> Oriente, 0 diz assim sobre este mesmo lugar<strong>do</strong> Apocacalipse.O mesmo Evangelista Profeta S João, no cap. X, diz que viu descer <strong>do</strong> Céu umanjo forte, cujas insígnias descreve largamente , que nós pode ser expliquemosem outro lugar. Neste basta dizer que tinha na mão um livro aberto: Ethabebut in manu sua libellum apertum, e que pôs o pé esquer<strong>do</strong> sobre a terra eo direito sobre o mar: Et posuit pedem suum dextrum super mare et sinistrumsuper terram.Este anjo forte (diz Pedro Bulêngero) é Cristo; o livro, o Evangelho explica<strong>do</strong>; eos pés de seu corpo místico, que é a Igreja, os prega<strong>do</strong>res apostólicos quelevam pelo Mun<strong>do</strong> ao mesmo Cristo e seu Evangelho, entre os quais o péesquer<strong>do</strong>, que está sobre a terra, são aqueles que, sem saírem da terra firmepregaram nela; o pé direito, que está sobre o mar, os que, navegan<strong>do</strong> àsregiões apartadas e remotas <strong>do</strong> nosso hemisfério, levam a elas a Fé de Cristo ea luz de seu Evangelho; <strong>do</strong>nde se segue que o pé direito que Cristo pôs sobre omar para esta gloriosa e evangélica empresa, são, entre todas as nações <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, por excelência os Portugueses. Não os nomeou por seu nome esteautor, mas nomeou-os por suas obras, e é o mais honra<strong>do</strong> nome e de maiorestimação que lhes podia dar, explican<strong>do</strong>-se com as palavras seguintes: Istudnostra memoria factum videmus, quae quidem regna a nobis longe dissita elincognitae regiones teterrimo daemonum cultui additae sunt, opera patrumSocietatis nominis Jesu ad Christi religionem traducta sunt. Sinenses enim, quipopuli ad veteres Índias expectant, et infideles sunt, (relicto daemonum cultu,ad octo millia primum) et in his reges et princites, permultique proceres etoptimates sub anno Domini I564, Christi Jesu fidem susceperunt; deinde multaIn<strong>do</strong>rum insulae et regiones christianam, catholicamque amplexerunt<strong>do</strong>ctrinam, et integrae civitates sacro sunt ablutae baptismate.«Em cumprimento desta profecia (diz Bulêngero, alegan<strong>do</strong> a Súrio). vemos queos reinos e regiões muito apartadas de nós, que a<strong>do</strong>ravam nos í<strong>do</strong>los aosdemônios, pela indústria <strong>do</strong>s padres da Companhia de Jesus, se têm passa<strong>do</strong> àverdadeira religião; porque os Chinas, que pertencem às antigas Índias, e sãoinfiéis e gentios, deixan<strong>do</strong> o culto da i<strong>do</strong>latria no ano de I564, receberam a Féde Cristo em número de 8.ooo, em que entraram os príncipes e reis e muitosgrandes senhores; e em outras muitas ilhas e terras, de tal maneira os Índiosabraçaram a <strong>do</strong>utrina cristã e católica, que as cidades se batizaram.>> Tãofacilmente triunfa Cristo pela voz e espada <strong>do</strong>s Portugueses, com o pé direitono mar e o livro na mão direita!No capítulo seguinte se verão muitos lugares de vários Profetas, explica<strong>do</strong>s porautores que escreveram de cem anos a esta parte, depois que por meio danavegação <strong>do</strong> mar Oceano se quebrou o fabuloso encantamento <strong>do</strong>s nega<strong>do</strong>santípodas e se descobriram tantas terras e gentes, não só incógnitas aosAntigos, mas nem ainda presumidas ou imaginadas deles. Ali veremos asadmiráveis propriedades e miudíssimas circunstâncias com que os mesmosProfetas falaram <strong>do</strong>s mares, das ilhas, das navegações, das terras, <strong>do</strong>s sítios,<strong>do</strong>s rios, das minas, das árvores, <strong>do</strong>s frutos, das gentes, <strong>do</strong>s costumes, dacegueira e infelicidade em que viviam, e sobre tu<strong>do</strong> da Fé e luz <strong>do</strong> Evangelho,com que por meio <strong>do</strong>s prega<strong>do</strong>res de Cristo o haviam finalmente de conhecer,a<strong>do</strong>rar e servir, como hoje, com tanta glória da Igreja, conhecem, a<strong>do</strong>ram eservem.Agora só pergunto: Como era possível que aqueles antigos e antiquíssimosautores explicassem neste senti<strong>do</strong> aos Profetas? Ou como podiam entendernem perceber que destas gentes, e destas terras, e destes mares, falavam osseus oráculos e profecias? Se criam tão firme e assentadamente que não havianem podia haver antípodas, como podiam explicar as profecias <strong>do</strong>s antípodas?Se criam que a imensidade <strong>do</strong> mar Oceano não era navegável e tinham estepensamento por absur<strong>do</strong>, como haviam de entender as profecias destasnavegações e destes mares? Se queriam que a zona tórrida era um perpétuoincêndio, e totalmente abrasada e inabitável, como haviam de interpretar asprofecias <strong>do</strong>s habita<strong>do</strong>res da zona tórrida? Como haviam de cuidar, nem lheshavia de vir ao pensamento que os Profetas falavam <strong>do</strong>s Americanos, se nãosabiam que havia América? Como <strong>do</strong>s Brasis, se não havia Brasil? Como <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 87 de 16927/08/2011Peruanos e Chiles, se não sabiam que havia Peru nem Chile? Como haviam deinterpretar os Profetas das ilhas desertas ou povoadas <strong>do</strong> Oceano, se nãosabiam que havia no Mun<strong>do</strong> tais ilhas? Como <strong>do</strong>s Etíopes ocidentais, se nãosabiam que havia tal Etiópia? Como <strong>do</strong>s Japões, se não sabiam que haviaJapões? Como <strong>do</strong>s Chinas, se não sabiam que havia China? Se os Profetas nasfiguras enigmáticas <strong>do</strong>s seus oráculos se declaram pela natureza, propriedade,costumes, exercícios e histórias das gentes e reinos de que falam, como haviamde vir em conhecimento dessas gentes e desses reinos os que não podiamsaber sua natureza, suas propriedades, seus exercícios e seus costumes, nemsuas histórias? Se declaram as terras pelos sítios, pelos rios, pelas árvores,pelos frutos, pelas minas e seus metais, como podiam conhecer nem atinar comas terras os que não tinham notícia de tais sítios, de tais rios, de tais minas, detais árvores, nem de tais frutos? E se ainda hoje, depois de descobertas econhecidas estas terras e estas gentes, e se terem escrito tantos livros de suahistória natural e política, ainda por falta de notícias mais particulares e miúdas,se não acerta mais que em comum e individualmente com algumas das terras egentes de que os profetas falaram, que seriam na confusão escuríssima daAntigüidade, em que nenhuma destas cousas se sabia nem se imaginava, antesas contrárias delas se tinham por averiguadas e certas?Frei João de la Puente, naquele seu erudito livro da Conveniência das duasmonarquias, romana e espanhola, trabalhan<strong>do</strong> por explicar de Espanha certolugar de Isaías, diz assim <strong>do</strong>s teólogos, sen<strong>do</strong> ele mestre em Teologia: La faltade Geographia v la de otras artes liberales es causa que los teologos nonatinem con el senti<strong>do</strong> de la divina Escritura. E isto que se não pode dizer <strong>do</strong>steólogos <strong>do</strong> nosso tempo sem grande nota de sua ciência e diligência, depois <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> estar tão descoberto e conheci<strong>do</strong>, é obrigação e força que digamos ousuponhamos <strong>do</strong>s teólogos antigos, por <strong>do</strong>utíssimos e sapientíssimos quefossem, como verdadeiramente eram, sem agravo, nem menos decoro de suaerudição e grande sabe<strong>do</strong>ria, porque sabiam a geografia <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong> e nãopodiam saber nem adivinhar a <strong>do</strong> nosso. Só por nova revelação e luzsobrenatural podiam conhecer os autores daquele tempo o que nós tão fácil enaturalmente conhecemos hoje; mas esta revelação, esta luz e posto quefossem varões santíssimos e tão favoreci<strong>do</strong>s de Deus, não quis o mesmo Deusque eles então a tivessem, porque era disposição mui assentada da suaprovidência que estas cousas se não soubessem, e estivessem ocultas atéàqueles tempos medi<strong>do</strong>s e taxa<strong>do</strong>s por ele, em que tinha decreta<strong>do</strong> que sesoubessem e descobrissem.Diz o Apóstolo S. Paulo que acomo<strong>do</strong>u Deus e repartiu os séculos conforme osdecretos da sua palavra, para que cousas invisíveis se fizessem visíveis: Fideintelligimus aptata esse saecula verbo Dei, ut ex invisibilibus, visibilia fiant; poronde não é muito que tanta parte <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e as gentes que o habitavam,estivessem ignoradas e invisíveis por tantos séculos, e que depois chegasse umséculo em que se descobrissem e fossem visíveis; e assim como, corrida estacortina, se descobriram e manifestaram as terras e gentes de que tinham fala<strong>do</strong>os Profetas, assim se entenderam e descobriram também os segre<strong>do</strong>s emistérios de suas profecias.Destas terras ultramarinas, encobertas e incógnitas, falava Isaías, quan<strong>do</strong> disseno cap. XXIV: ...in <strong>do</strong>ctrinis glorificate Dominum; in insulis maris nomenDomini, Dei Israel. E logo acrescentou: Secretum meum mihi, secretum meummihi: «Este segre<strong>do</strong> é só para mim; este segre<strong>do</strong> é só para mim.» E se namesma profecia estavam profetizadas as cousas, e mais o segre<strong>do</strong> delas, comopodia ser que contra a verdade infalível da profecia soubessem os Antigos destesegre<strong>do</strong>, antes de chegar o tempo em que Deus tinha determina<strong>do</strong> de orevelar?O cântico <strong>do</strong> profeta Habacuc, que também trata destes novos descobrimentosou triunfos da Fé e da conversão destas gentes, tem por título Pro ignorantiis. Ese o conselho de Deus foi que o entendimento ou de todas ou de muitas cousasque ali contou o Profeta, se ignorasse; que agravos ou descréditos é ou podeser <strong>do</strong>s antigos sábios, que para eles fossem ocultas, incógnitas ou ignoradas?Podem os homens ocultar os seus segre<strong>do</strong>s, e Deus não será senhor dereservar os seus, sen<strong>do</strong> logo certo que estes segre<strong>do</strong>s da Providência Divina senão podiam alcançar por ciência humana, e que a mesma Providência tinhadecreta<strong>do</strong> que se não soubessem por revelação? LAUS DEO


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 88 de 16927/08/2011Clavis ProphetarumJESUS, MARIA, JOSÉ CAPÍTULO IEntran<strong>do</strong> a tratar <strong>do</strong> Quinto Império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> (grande assunto deste nosso pequenotrabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão necessária em toda ahistória e muito mais neste gênero, a primeira cousa que se oferece para averiguar esaber é que impérios tenham si<strong>do</strong> ou hajam de ser os outros quatro, em respeito ousuposição <strong>do</strong>s quais este novo de que falamos se chama Quinto. Porque sem recorrerà memória <strong>do</strong>s tempos passa<strong>do</strong>s, e pon<strong>do</strong> somente os olhos no mun<strong>do</strong> presente,conhecemos hoje nele muito maior número de impérios. Na Ásia, o vastíssimoImpério da China, o <strong>do</strong>s Tártaros, o <strong>do</strong> Persa, o <strong>do</strong> Mogor; na África, o da Etiópia; naEuropa, o de Alemanha, em que sem a grandeza se continua o nome, e o deEspanha, em que sem o nome, posto que arruinada e combatida, se sustenta agrandeza; e em todas estas três partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> o violento Império <strong>do</strong>s Turcos, tãoestendi<strong>do</strong>, tão uni<strong>do</strong>, tão poderoso e formidável. Haven<strong>do</strong> pois ainda nesta nossaidade tantos impérios, e sen<strong>do</strong> tantos mais os de nações bárbaras e políticas que emdiversos tempos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> se têm levanta<strong>do</strong> e caí<strong>do</strong>, com razão se deve duvidar edesejar saber a causa pôr que este nosso Império que prometemos recebe o numerode Quinto, e quais sejam em ordem os outros quatro que lhe deram este lugar oueste nome. Ao que respondemos breve e facilmente que este mo<strong>do</strong> de contar não énosso nem de algum outro historia<strong>do</strong>r ou autor humano, senão funda<strong>do</strong> e tira<strong>do</strong> dasEscrituras divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e grandesimpérios que floresceram e haviam de florescer em vários tempos e lugares <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, só trata <strong>do</strong> primeiro que se começou e levantou nele, e <strong>do</strong>s que emcontinuada sucessão se lhe foram seguin<strong>do</strong> até o tempo presente, os quais emespaço quase de quatro mil anos têm si<strong>do</strong> com este quatro. Esta sucessão e seuprincípio foi desta maneira.CAPÍTULO IICorren<strong>do</strong> os anos de 1860 da criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, 3800 antes <strong>do</strong> presente de 1664 emque isto escrevemos, depois que a confusão das línguas na torre de Babel dividiuseus fabricantes em diversas partes da terra, castigo tão mereci<strong>do</strong> a sua soberbacomo necessário à propagação <strong>do</strong> gênero humano e à o mesma grandeza queaspiravam, Belo, filho <strong>do</strong> gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores quefazem destes <strong>do</strong>is nomes o mesmo homem), reduzin<strong>do</strong> a sujeição e obediênciapolítica a liberdade natural com que to<strong>do</strong>s até aquele tempo nasciam, foi o primeiroque ensinou ao Mun<strong>do</strong> e introduziu nele a tirania, a que depois com nome menosodioso chamaram Império. Tantos anos tar<strong>do</strong>u a ambição em romper o respeitoàquela lei com que nos fez iguais a todas a natureza.Foi este império de Belo o <strong>do</strong>s Assírios ou Babilônios; durou, segun<strong>do</strong> Justiço, pertode mil e trezentos anos; teve, entran<strong>do</strong> neste número Semearmos, 37 impera<strong>do</strong>res,de que foi o último Sardanapalo.Ao império <strong>do</strong>s Assírios sucedeu o <strong>do</strong>s Persas pelos anos da criação 3444. Começouem Ciro, acabou em Dario; contou por to<strong>do</strong>s catorze impera<strong>do</strong>res. Não durou,conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta anos.O terceiro Império, que foi o <strong>do</strong>s Gregos, ainda durou menos, se o considerarmoscomo monarquia. Alexandre o começou e acabou em Alexandre, para que vejam econheçam as coroas quanto é grande a sua mortalidade, pois pode ser mais breve avida de um império que a de ,um, homem. Começou este Império <strong>do</strong>s Gregos depoispelos anos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> 3672, conservou-se uni<strong>do</strong> somente oito, e, antes delesacaba<strong>do</strong>s, se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia, o <strong>do</strong> Egito; e este(que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual fortuna trezentos anos, atéque, governa<strong>do</strong> e não defendi<strong>do</strong> pela celebrada Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio àgrandeza romana.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 89 de 16927/08/2011Havia já neste tempo setecentos anos que Rômulo levantara junto ao rio Tibreaquelas primeiras choupanas que depois se chamaram Roma, cujo Império começoucom este nome em Júlio César, trinta anos antes <strong>do</strong> nascimento de Cristo. Durou,pois, o Império Romano com toda a inteireza de sua monarquia 400 anos, comsucessão de 35 impera<strong>do</strong>res até o grande Constantino, o qual, fundan<strong>do</strong> nova corteem Constantinopla, dividiu o Império, para melhor governo, em Império Oriental eOcidental, e desde este tempo começaram as águias romanas a aparecer coroadascom duas cabeças. Sustentou-se o Império Oriental por espaço de quatro mil anos,em que contou oitenta e quatro impera<strong>do</strong>res, de que foi o último outro Constantinode muito diferente fortuna, porque, sen<strong>do</strong> sitia<strong>do</strong> e venci<strong>do</strong> por Maomete II, dentroem Constantinopla ,perdeu a vida e a cidade e sepultou consigo to<strong>do</strong> o Império. O <strong>do</strong>Ocidente, depois daquela divisão, experimentou nela grandes variedades, porque,sen<strong>do</strong> governa<strong>do</strong> alguns anos por impera<strong>do</strong>r com igual jurdição e majestade, sepassou o governo a exarcas, que eram ministros e como lugar-tenentes <strong>do</strong>simpera<strong>do</strong>res orientais, até que, em tempo o Papa Lúcio TII, eleito Carlos Magno emimpera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Ocidente, fican<strong>do</strong> Roma como cabeça da Igreja, ao Pontífice passou oassento <strong>do</strong> Império - a Alemanha.Sucedeu esta mudança pelos anos de Cristo de 810, nos quais o Império, diminuin<strong>do</strong>sempre em grandeza e majestade, tem conta<strong>do</strong> noventa impera<strong>do</strong>res até Fernan<strong>do</strong>III, que hoje reina, e com grande valor e zelo da Cristandade está resistin<strong>do</strong>-se(queira o Céu que seja com melhor ventura!) a outro Maomete.Estes são em breve suma os quatro Impérios que desde o primeiro que houve noMun<strong>do</strong> se foram continuan<strong>do</strong> e suceden<strong>do</strong> até o presente, cuja notícia, quan<strong>do</strong> nãofora tão necessária para o ponto em que estamos, sempre era muito convenientedar-se logo neste princípio, para melhor entendimento de tu<strong>do</strong> o que se há-de dizeradiante.Em respeito pois e suposição destes quatro impérios, chamamos Império Quinto aonovo e futuro que mostrará o discurso desta nossa <strong>História</strong>; o qual se há-de seguir aoImpério Romano na mesma forma de sucessão em que o Romano se seguiu aoGrego, o Grego ao Persa e o Persa ao Assírio. E assim como o Império <strong>do</strong>s Persas sechama o segun<strong>do</strong> Império, porque sucedeu ao <strong>do</strong>s Assírios, que foi o primeiro <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, e o das Gregos se chama o terceiro, porque sucedeu ao <strong>do</strong>s Assírios e <strong>do</strong>sPersas, e o <strong>do</strong>s Romanos se chama o quarto, porque sucedeu ao <strong>do</strong>s Assírios, ao <strong>do</strong>sPersas e ao <strong>do</strong>s Gregos, assim este nosso Império, porque há-de suceder ao <strong>do</strong>sAssírios, Persas, Gregos e Romanos (como logo veremos) se deve chamar com amesma razão e propriedade o Quinto Império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>; e porque to<strong>do</strong>s os outrosImpérios, passa<strong>do</strong>s e presentes, por grandes e poderosos que fossem, ficaram forada ordem desta sucessão, que começou no primeiro e há-de acabar no Quinto (queserá também o último), por isso as Escrituras Sagradas não fazem menção nemmemória alguma deles, como também nós a não fazemos. Nem eles, por muitos quehajam si<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> fora da mesma ordem, podem acrescentar número ou lagar aonovo Império com que mude ou exceda o que lhe damos de Quinto.Tu<strong>do</strong> o que até aqui fica dito são suposições certas e sem dúvida, tiradas dediferentes lugares <strong>do</strong> Texto Sagra<strong>do</strong>, que vão citadas ,à margem, e o não pusemosno corpo da história por não embaraçar o desenho dela. Autores que dizem o mesmo,posto que em matéria tão averiguada e sem controvérsia não são necessáriosautores, alegaremos nos capítulos seguintes; o que resta e importa mostrar é quehaja de haver sem dúvida este novo e prometi<strong>do</strong> Império a que chamamos Quinto. Eassim o faremos agora, com toda a demonstração e certeza, porque esta é a base efundamento de toda a nossa <strong>História</strong> e assunto particular deste I Livro. LIVRO ICAPÍTULO I Mostra-se a Quinta Monarquia com a 1. a profecia de DanielJá dissemos que os futuros livros ou contingentes (qual é o Império que prometemos)só são manifestos a Deus e a quem os quer revelar. E assim, para fundarmos bem aesperança deste grande futuro, devemos recorrer principalmente aos que a Fé nosensina que foram verdadeiros profetas, entre os quais, como também deixamos dito,tem o primeiro lugar Daniel, não ,pelo espírito de profecia que foi tão superiormenteilustra<strong>do</strong>, mas porque o fez Deus particular profeta <strong>do</strong>s reinos e das monarquias.Será pois a primeira pedra deste edifício uma grande profecia de Daniel.No ano antes de Redenção <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> 450, Nabuco<strong>do</strong>nosor, um <strong>do</strong>s últimos reisimpera<strong>do</strong>res de Babilônia, que era, como fica dito, o Império <strong>do</strong>s Assírios, desvela<strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 90 de 16927/08/2011uma noite com os pensamentos da sua monarquia, em prêmio ou conseqüência destecuida<strong>do</strong> mereceu que Deus lhe revelasse, sen<strong>do</strong> gentio, o sucesso de muitas cousasfuturas, assim como outros príncipes que têm fé e desmerecem por sua negligência edescui<strong>do</strong> até o conhecimento natural <strong>do</strong>s presentes. Viu pois Nabuco em sonhos umavisão admirável e portentosa, com cuja apreensão e assombro acor<strong>do</strong>u de talmaneira perturba<strong>do</strong> e contuso, que somente se lembrava que acabava de sonhacousasprodigiosas, grandes e prenhes de mistérios, mas totalmente se esqueciaquais foram. Assim, estimula<strong>do</strong> igualmente <strong>do</strong> desejo e <strong>do</strong> temor que a mesmalembrança lhe causava, man<strong>do</strong>u logo chamar os maiores sábios <strong>do</strong>s seus reinos, osmagos, os aríolos; os caldeus, que eram os que pela observação das estrelas e outrasprofessavam a ciência das cousas futuras, e depois de trazi<strong>do</strong>s à sua presença, lhesdeclarou por si mesmo tu<strong>do</strong> o que lhe tinha sucedi<strong>do</strong>, e man<strong>do</strong>u-lhes seriamente quenão só lhe haviam de dizer logo a significação <strong>do</strong> sonho, senão também o que tinhasonha<strong>do</strong>. Responderam os sábios que, se o rei lhes manifestasse o que sonhara, elesse obrigavam a declarar a significação de tu<strong>do</strong>, porque isso era a sua profissão e omais a que se estendia a ciência humana; mas que adivinhar qual houvesse si<strong>do</strong> osonho era segre<strong>do</strong> impossível de alcançar aos homens e reserva<strong>do</strong> somente àsabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong>s deuses. Falaram assim, porque to<strong>do</strong>s eram gentios.Não se aquietou Nabuco com esta resposta <strong>do</strong>s sábios, antes os argüiu com ela defalsos, engana<strong>do</strong>res e indignos de crédito; porque, se não podiam saber o sonho, queera cousa passada, como haviam de conhecer a significação <strong>do</strong>s futuros, e somentelhes haviam de dar crédito no segun<strong>do</strong> e mais dificultoso, se no primeiro e mais fácileles mesmos confessavam sua ignorância? Que se resolvessem a dizer logo uma eoutra cousa, senão que ele e sus famílias morreriam todas. E como os tristes sábiosrespondessem outra vez que não sabiam nem podiam satisfazer ao rei no que delesqueria, ira<strong>do</strong> grandemente Nabuco, man<strong>do</strong>u que os levassem de sua presença e queneles e em to<strong>do</strong>s os professores das mesmas artes se executasse logo a sentença demorte. Tão violentos são os apetites <strong>do</strong> poder supremo, e tão arrisca<strong>do</strong> não satisfazeraos reis até no impossível!Achava-se neste tempo em Babilônia Daniel, onde fora leva<strong>do</strong> com El-Rei Joaquim noprimeiro cativeiro ou transmigração <strong>do</strong>s Hebreus. Oro a Deus, ele e seus trêscompanheiros, ,que também entravam no número <strong>do</strong>s condena<strong>do</strong>s, porque tinhamestuda<strong>do</strong>, por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo rei, as ciências de Caldeia; folhe revela<strong>do</strong> peloCéu o sonho e a interpretação dele, e quan<strong>do</strong> já a multidão <strong>do</strong>s sábios, rodea<strong>do</strong>s derústicos e tumulto popular, começavam a caminhar para o lugar <strong>do</strong> suplício, faz parara execução Daniel. Oferece-se a declarar o sonho; pede que o levem aNabuco<strong>do</strong>nosor, e posto em sua presença e na <strong>do</strong>s maiores príncipes de Babilôniaque o acompanhavam, depois de confessar a insuficiência sua e de to<strong>do</strong> o saberhumano, e mostrar como só o Deus verdadeiro, a quem ele servia e que fora o autordaquele sonho, o podia revelar e a significação dele, primeiramente com assombro epasmo <strong>do</strong> rei lhe contou muito miudamente por sua ordem a história <strong>do</strong> que tinhasonha<strong>do</strong>, e depois com igual admiração e espanto de to<strong>do</strong>s lhe foi explican<strong>do</strong> partepor parte os mistérios e segre<strong>do</strong>s futuros que tão prodigiosa visão em si encerrava.Este é o prólogo da primeira profecia de Daniel, e to<strong>do</strong> este aparato de circunstânciascom o Texto Sagra<strong>do</strong> descreve o sucesso dela, as quais porventura puderam parecermenos necessárias ao nosso argumento, mas nós as quisemos resumir brevementeaqui, para crédito natural da mesma profecia; pois não só nos obrigam a que acreiamos por fé os que somos cristãos, mas se podem convencer com elas pordiscurso até os mesmos Gentios.A história <strong>do</strong> sonho, pelas palavras com que Daniel a referiu, é a seguinte: Tu, Rex,cogitare coepisti in strato tuo quid esset futurum post hoec; et qui revelat misteria,ostendit tibi que ventura sunt. Tu, Rex, videbas et ecce quasi statua una grandis:statua illa magna et statura sublimis stabat contra te et intuitus ejus erat terribilis,etc. , usque ad implevit universam terram. Hoc est somnium. «Começaste a cuidar, óRei, deita<strong>do</strong> no teu leito, diz Daniel, o que havia de suceder depois <strong>do</strong> tempopresente, e o Deus que só pode revelar os mistérios e segre<strong>do</strong>s ocultos, te mostrounaquela visão tu<strong>do</strong> o que está para vir nos tempos futuros, e o que eu agora te direi,não por arte ou ciência minha, se não por revelação sua. Parecia-te que vias defrontede ti uma estátua grande, de estatura alta e sublime e de aspecto terrível etemeroso. A cabeça desta está tua era de ouro, o peito e os braços de prata, o ventreaté os joelhos de bronze, <strong>do</strong>s joelhos de ferro, os pés de ferro e de barro. Estan<strong>do</strong>assim suspenso no que vias, viste mais que se arrancava uma pedra de um monte,cortada dele sem mãos, e q, dan<strong>do</strong> nos pés da estátua, a derrubava. Então se


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 91 de 16927/08/2011desfizeram juntamente o barro, o ferro, o bronze, a prata, o ouro, e se converteramem pó e cinza, que foi levada <strong>do</strong>s ventos, e nem aqueles metais apareceram mais,nem o lugar onde tivessem esta<strong>do</strong>; porém a pedra que tinha derruba<strong>do</strong> a estátuacresceu, e fazen<strong>do</strong>-se um grande monte, ocupou e encheu toda a terra».Até aqui a relação <strong>do</strong> sonho, a qual Nabuco de novo ia ouvin<strong>do</strong> e reconhecen<strong>do</strong>,lembran<strong>do</strong>-se outra vez de tu<strong>do</strong> pela mesma ordem com aquela espécie de memóriaa que os filósofos chamam reminiscência.Seguiu-se à história <strong>do</strong> sonho a interpretação dele, de que nós diremos agorasomente o que pertencer ao ponto em que estamos, reservan<strong>do</strong> o de mais (que émuito) para seus lugares. Disse pois Daniel que aquela grande estátua significava asucessão <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e os diferentes metais de que era composta asmudanças que o mesmo Império havia de ter em diferentes tempos e para diferentesnações. A cabeça de ouro significava o Império <strong>do</strong>s Assírios, em que Nabuco<strong>do</strong>nosornaquele tempo reinava; e porque este Império, como deixamos nota<strong>do</strong>, foi o primeiroe o princípio de to<strong>do</strong>s os Impérios, por isso estava representa<strong>do</strong> na cabeça, que é oprincípio <strong>do</strong> corpo, e no ouro, que é o primeiro entre to<strong>do</strong>s os metais.A prata, que é o segun<strong>do</strong> metal, significava o Império <strong>do</strong>s Persas, que foi o segun<strong>do</strong>depois <strong>do</strong>s Assírios, e que se seguiu a eles, assim como o peito e braços se seguem àcabeça.O bronze, que é o terceiro metal, significava o Império <strong>do</strong>s Gregos, que foi o terceirodepois <strong>do</strong>s Persas e se seguiu depois deles, assim como o ventre se segue depois <strong>do</strong>peito.O ferro finalmente, que é o quarto metal, significava o Império <strong>do</strong>s Romanos, que foie é o quarto Império, que sucedeu aos três primeiros; e assim como as pemas e péssão a última parte <strong>do</strong> corpo humano, assim este é e há-de ser o último Império <strong>do</strong>sque naquela estátua se representavam.Tu<strong>do</strong> o que até aqui fica dito é de fé, ou se segue imediatamente dela, porque, aindaque Daniel na sua explicação <strong>do</strong> sonho não nomeou as três nações de Persas, Gregose Romanos, disse porém expressamente que os três metais significavam três reinos,que sucessivamente se haviam de continuar uns aos outros, sinalan<strong>do</strong>-osnomeadamente por primeiro, segun<strong>do</strong> e terceiro reino: Et post te consurget regnumaliud minus te argenteum, et regnum tertium aliud oereum [...] et regnum erit velutferrum; e consta pela experiência e pelo testemunho ,de todas as histórias, não sóhumanas, senão também das sagradas e divinas, que os três reinos e impérios quesucessivamente se seguiram ao <strong>do</strong>s Assírios foram o <strong>do</strong>s Persas, o <strong>do</strong>s Gregos e o <strong>do</strong>sRomanos: ou, por o dizer com mais propriedade e certeza, consta que o mesmoImpério que primeiro foi <strong>do</strong>s Assírios, venci<strong>do</strong>s estes por Ciro, passou aos Persas, e omesmo Império <strong>do</strong>s Persas, venci<strong>do</strong>s estes por Alexandre, passou aos Gregos, e omesmo Império <strong>do</strong>s Gregos, venci<strong>do</strong>s estes por vários capitães de Roma, passou e seincorporou no Império Romano. E este é o verdadeiro, certo e indubitável senti<strong>do</strong> deinterpretação de Daniel, recebi<strong>do</strong>, aprova<strong>do</strong> e segui<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os Padres eexpositores deste lugar, em que não há discrepância nem dúvida alguma.A razão ou mistério por que o Império Romano se representou no ferro, dizparticularmente Daniel que foi porque, assim como o ferro lima, bate, corta e <strong>do</strong>maos metais, sem haver algum que lhe possa resistir, assim o Império Romano e opoder invencível de suas armas havia de abater, desfazer, sujeitar e <strong>do</strong>minar to<strong>do</strong>s osoutros impérios. Et regnum quartum erit velut ferrum; quomo<strong>do</strong> ferrum comminuit et<strong>do</strong>mat omnia, sic comminuet et conteret omnia hoec. E quadra maravilhosamente noImpério Romano a figura das duas pernas e pés da estátua em que foi representa<strong>do</strong>;não só porque, assim como os pés da estátua sustentavam e tinham sobre si o peso egrandeza de toda ela, assim o Império Romano teve sobre si e em si o peso egrandeza de to<strong>do</strong>s os outros impérios que nele se uniram e ajuntaram, mas porque omesmo peso e grandeza, como acima vimos, foi causa de que o Império Romano sedividisse em <strong>do</strong>is impérios ou duas partes iguais <strong>do</strong> mesmo, com a qual divisão,pon<strong>do</strong> um pé no Oriente outro no Ocidente, um em Roma outro em Constantinopla,ficaram verdadeiramente sen<strong>do</strong> estas duas partes <strong>do</strong> Império Romano como duascolunas naturais de ferro, sobre as quais toda a máquina daquele portentoso colossose sustentava. Mas não parava aqui a propriedade da semelhança. Assim como, nadivisão de uma e outra perna da estátua se representava a divisão <strong>do</strong> Império


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 92 de 16927/08/2011Romano nos <strong>do</strong>is impérios, assim os dez de<strong>do</strong>s, uns maiores outros menores, em quese dividiam, significavam dez reinos, em que a grandeza <strong>do</strong> mesmo Império Romano,na sua última declinação, se havia de dividir. Para cuja inteligência se deve notar quetu<strong>do</strong> o que hoje possuem os príncipes cristãos na Europa, e tu<strong>do</strong> o que na Europa, naÁfrica e na Ásia possui o Turco, são umas divisões ou ,retalhos <strong>do</strong> Império Romano, eas partes ou membros de que aquele vastíssimo corpo na sua maior grandeza epotência se compunha, as quais lhe foram tiran<strong>do</strong> as mesmas nações que ele tinhasujeita<strong>do</strong>, restituin<strong>do</strong>-se outra vez a sua primeira liberdade e soberania, como hojeestão, sem reconhecerem sujeição nem obediência alguma ao Império Romano. Adextremum (diz Perério) ex uno duplex factum est Imperium Romanum: alterumLatinorum seu Occidentis, allerum vero constantinopolitanum, Græcorum seuOrientis. Adjice, quod omnia regna quæ nunc sunt apud Christianos, et sub ImperioTurcorum, partes sunt Imperii Romani tanquam rami ex una illa Imperii arbore decisi.E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação <strong>do</strong>s dez de<strong>do</strong>s da estátua, que jáantes <strong>do</strong>s tempos de S. Hierónimo em que o Império Romano estava íntegro epotentíssimo, sem ter perdi<strong>do</strong> cousa alguma sua grandeza, era opinião comum (comodiz o mesmo santo) de to<strong>do</strong>s os escritores eclesiásticos que o Império se havia dedividir em dez reinos.Assim se dizia e escrevia então, e assim o estamos ven<strong>do</strong> hoje, comprovan<strong>do</strong>-se averdade desta interpretação com a experiência e confirman<strong>do</strong>-se ser este overdadeiro senti<strong>do</strong> da profecia com o cumprimento dela; porque, se bem contarmosos reinos em que hoje está dividi<strong>do</strong> ou despedaça<strong>do</strong> o que antigamente foi e sechamava Império Romano, acharemos pontualmente que são dez reinos: Portugal,Castela França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Moscóvia, Polônia e Esta<strong>do</strong> ou ImpérioTurco, e o mesmo Império Romano, que compreende Alemanha e Itália. E se unsreinos destes são maiores, outros menores, uns mais fortes outros menos, essamesma é a propriedade <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s, como nota neste lugar o mesmo autor alega<strong>do</strong>, edepois dele outros muitos: por decem digitos partim ferreos et partim terreossignificatur Romanum Imperium novissime iri in multa regna multosque reges,quorum alii maiores et potentiores, alii minores et imbecilliores futuri sint.Ao diante dividiremos estes mesmos de<strong>do</strong>s da estátua em outras partes que temospor mais proporcionadas; por agora baste esta divisão que nós pusemos em primeirolugar por ser mas fácil, e porque, com a notícia vu1gar que se tem <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, podeser entendida e percebida de to<strong>do</strong>s. E posto que Daniel nesta profecia não declaracom tanta miudeza que a divisão <strong>do</strong> Império Romano há-de ser ,pontualmente emdez partes ou dez reinos, em outra profecia, como depois veremos, especifica estenúmero, e nesta diz clara e expressamente que os de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés da estátuasignificam a divisão <strong>do</strong> Império: Porro quia vidisti pedum et digitorurn partem testæfiguli et partem ferream: regnum divisum erit.Passa finalmente o mesmo Profeta a declarar o mistério ou significação <strong>do</strong> barro deque os de<strong>do</strong>s eram compostos em uma parte juntamente com outra de ferro, e dizassim: ... quod vidisti ferrum mistum testæ ex luto. Et digitos pedum ex parteferreos, et parte fictiles: ex parte regnum erit solidum, et ex parte contritum. Quodautem vidisti ferrum mistum testæ ex luto, commiscebuntur quidem humano semine,sed non adhærebunt sibi, sicuti ferrum misceri non potest testæ. Nas quais ,palavrasdiz Daniel que o barro <strong>do</strong>s pés dá estátua significava a debilidade e fraqueza a que oImpério Romano, depois de tanta potência, havia de descair, principalmente na suaúltima idade e declinação, que é o esta<strong>do</strong> em que o vemos. Adverte, porém, o Profetaque não eram os de<strong>do</strong>s totalmente de barro, senão compostos parte de barro e partede ferro, porque nesse mesmo esta<strong>do</strong> de sua declinação, debilidade e fraquezaconservaria o Império algumas partes sólidas em que permanecesse a dureza efortaleza <strong>do</strong> antigo ferro de que to<strong>do</strong> antes era forma<strong>do</strong>, que é, ao pé da letra, o quese tem visto e experimenta<strong>do</strong> no Império Romano, desde o tempo de sua maiordeclinação a esta parte, em tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos,contra hereges e contra alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria eda Igreja têm peleja<strong>do</strong> os exércitos imperiais com grande valor, disciplina econstância, e alcança<strong>do</strong> de seus inimigos gloriosas vitórias. E a mesma oposição tãobizarra com que as armas <strong>do</strong> Império nas fronteiras de Alemanha e Hungria, e omesmo Impera<strong>do</strong>r em pessoa estão hoje resistin<strong>do</strong> às invasões <strong>do</strong> Turco e poderotomano, que outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquelemesmo ferro?Mas vin<strong>do</strong> às partes de barro: estas são (diz Daniel) aquelas províncias e nações que,sen<strong>do</strong> partes <strong>do</strong> antigo Império Romano, se desuniram e tiraram de sua sujeição, e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 93 de 16927/08/2011formaram novos reinos, os quais, ainda que em si mesmos sejam muito poderosos efortes, e verdadeiramente se possam chamar partes de ferro, em respeito porém <strong>do</strong>Império de que se apartaram e que tanto desuniram e enfraqueceram com suaseparação, não são nem se podem chamar senão partes de barro. E tal é hoje oReino de França, o de Inglaterra e da Suécia, e o mesmo de Castela ou Espanha, emrespeito <strong>do</strong> Império Romano. E porque não cuidasse alguém que a união que seperdeu pela separação das coroas se recuperou e supriu pela conjuração <strong>do</strong> sangue,casan<strong>do</strong> os impera<strong>do</strong>res nas casas reais <strong>do</strong>s outros príncipes e os reis na <strong>do</strong>simpera<strong>do</strong>res, e sen<strong>do</strong> estes muitas vezes eleitos das mesmas famílias que <strong>do</strong> Impériose apartaram, acode Daniel a esta objeção, dizen<strong>do</strong>: Commiscebuntur quidemhumano semine «misturar-se-ão e ligar-se-ão no sangue», sed non adhærebunt sibi«mas nem por isso se unirão nem ligarão entre si», sicuti ferrum misceri non potesttestæ, «bem como o ferro se não pode unir nem ligar com o barro.» A tanta miudezacomo isto desceu o Profeta, acrescentan<strong>do</strong> em todas estas circunstâncias novas eadmiráveis confirmações à verdade da sua Profecia.Quantas vezes se intentou na Europa que entre os impera<strong>do</strong>res e reis da Cristandadese estabelecesse uma liga firme, interpon<strong>do</strong>-se para isso a autoridade <strong>do</strong>s SumosPontífices, e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes entre si por meio derecíprocos casamentos, sem jamais se conseguir a união desejada! Que impera<strong>do</strong>r ouque rei houve na Cristandade há muitos anos que, se gota por gota lhe distinguirem osangue, não tenha cada um <strong>do</strong>s outros príncipes quase iguais partes nele? E queguerras vimos ou sabemos entre estas coroas, em que o sangue que de uma e outraparte se defende, e ainda o que se derrama, não seja o mesmo? Tão mistura<strong>do</strong> andao sangue nestas últimas relíquias <strong>do</strong> Império Romano, mas tão resumi<strong>do</strong> sempre, epor isso o mesmo império tão enfraqueci<strong>do</strong>!Nasceu juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito <strong>do</strong> sangue emRômulo e Remo; viu-se no casamento de Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e node Marco Antônio com Octávia, filha de Octávio, quão facilmente se desatam, antes,se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo matrimônio se uniram. Mas nãosão estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de Daniel, porque não sãoos <strong>do</strong>s pés da estátua ou os <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés. Significam os de<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s pés daestátua as últimas extremidades <strong>do</strong> Império Romano e a sua duração, e, se eu menão engano, no mesmo dia em que isto estou escreven<strong>do</strong> se está cumprin<strong>do</strong> estaprofecia. Que casa real há no Mun<strong>do</strong> mais ligada com a <strong>do</strong> Império, que ramo há queseja mais próprio daquele tronco, e que sangue mais repetidamente uni<strong>do</strong> pormultiplica<strong>do</strong>s casamentos que o de Áustria e Castela? E que pessoa real há tambémem que mais apertadamente estejam ata<strong>do</strong>s estes vínculos e mais <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>sestes respeitos que na de El-Rei Filipe IV, primo <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r, cunha<strong>do</strong> <strong>do</strong>Impera<strong>do</strong>r, genro <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r? Considere agora o Mun<strong>do</strong> o esta<strong>do</strong> em que omesmo Impera<strong>do</strong>r se achou no ano passa<strong>do</strong> e em que se acha no presente, com ospoderosos exércitos <strong>do</strong> Turco meti<strong>do</strong>s dentro na Áustria, e quase, baten<strong>do</strong> às portasde Praga, corte <strong>do</strong> Império, os campos tala<strong>do</strong>s, as cidades destruídas, os homensbarbaramente mortos a sangue-frio, as mulheres e meninos cativos e transmigra<strong>do</strong>spara a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo em abomináveissacrilégios profana<strong>do</strong>s, e, depois de profana<strong>do</strong>s, abrasa<strong>do</strong>s e feitos em cinzas; eneste mesmo tempo em que o ferro de Espanha se havia de unir to<strong>do</strong> ao ferro <strong>do</strong>Império, vemo-lo to<strong>do</strong> infelizmente converti<strong>do</strong> contra Portugal, mas por isso mesmoinfelizmente! Se este ferro se unira ao Império contra o Turco, fora ferro, mas,porque se desune dele em tal ocasião e se converte contra Portugal, é barro.Barro e barro quebradiço, foi o ano passa<strong>do</strong> e, por mais que se mostre ou ameaceferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais católica ação fora,e quanto de maior exemplo para to<strong>do</strong>s os príncipes católicos e de menor escândalopara os hereges e para os mesmos Turcos se o sangue espanhol, e tão valoroso, quede uma é outra parte se desperdiça, com lástima e lágrimas da Igreja, no campo dePortugal e Castela, se empregara com glória imortal de ambas as coroas em defesada Fé, da Cristandade, da Religião, e da mesma cabeça dela, a quem tão de pertoameaça este golpe! Mas quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o poder de Espanha se havia de achar uni<strong>do</strong>contra o Turco em socorro de Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália,levantam-se os de Alemanha e chamam-se to<strong>do</strong>s a Castela contra Portugal, para quetriunfem nas bandeiras otomanas as luas de Mafoma, e se conquistem e sejamvencidas nas portuguesas - as chagas de Cristo!Este é o barro <strong>do</strong>s pés da estátua, esta é a fraqueza das extremidades <strong>do</strong> ImpérioRomano, esta é a queixa que ,Daniel explica e pondera na mesma fraqueza,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 94 de 16927/08/2011mostran<strong>do</strong> que a principal causa de toda ela é a desunião daquelas partes que porserem mais conjuntas em sangue e parentesco, tinham obrigação de ser mais unidas»— commiscebuntur quidem humano semine »— isto é, casará o Impera<strong>do</strong>rFernan<strong>do</strong> com Maria, irmã de el-Rei Filipe IV; casará Filipe IV com Leonor, filha deFernan<strong>do</strong>; mas nas últimas extremidades <strong>do</strong> Império Romano e nos seus maioresapertos e trabalhos não se acharam parentes nem aderentes »— sed nonadhærebunt sibi.Temos visto até aqui, desde a cabeça até os pés da estátua, o primeiro, segun<strong>do</strong>,terceiro e quarto império; segue-se agora ver o quinto na mesma história <strong>do</strong> sonhode Nabuco e na mesma interpretação de Daniel, o qual, depois das palavrasultimamente referidas, continuou e concluiu desta maneira: In diebus autemregnorum illorum etc.... quæ ventura sunt postea. Quer dizer: aquela pedra, ó Rei,que viste arrancar e descer <strong>do</strong> monte, que derrubou a estátua e desfez em pó e cinzato<strong>do</strong> o preço e dureza de seus metais, significa um novo e quinto Império que o Deus<strong>do</strong> Céu há-de levantar no Mun<strong>do</strong> nos últimos dias <strong>do</strong>s outros quatro. Este Império oshá-de desfazer e aniquilar a to<strong>do</strong>s, e ele só há-de permanecer para sempre, semhaver de vir jamais por acontecimento algum a <strong>do</strong>mínio ou poder estranho, nemhaver de ser conquista<strong>do</strong>, dissipa<strong>do</strong> ou destruí<strong>do</strong>, como sucedeu ou há-de sucederaos demais. Estas são as cousas futuras que Deus te quis mostrar, ó Rei, e este é osonho que tiveste e esta a verdade de sua interpretação -- et verum est somnium etfidelis interpretatio ejus.Depois de contar Daniel toda esta prodigiosa história, acrescenta imediatamente oque Nabuco<strong>do</strong>nosor lhe fez e o que lhe disse. O que lhe disse foi: Vere Deus vesterDeus deorum est, et Dominus regnum, et revelans mysteria, quoniam tu potuistiaperire hoc sacramentum. «Verdadeiramente o Deus que a<strong>do</strong>ras, ó Daniel, é o Deus<strong>do</strong>s deuses e a Senhor <strong>do</strong>s reis, e o que só conhece e revela as mistérios escondi<strong>do</strong>saos homens, pois tu, alumia<strong>do</strong> por ele, pudeste declarar este grande segre<strong>do</strong> esacramento. O que fez Nabuco no mesmo tempo, e ainda antes de dizer estaspalavras, refere o mesmo texto em as seguintes: Tunc rex Nabucho<strong>do</strong>nosor cecidit infaciem suam, et Danielem a<strong>do</strong>ravit, et hostias et incensum præcepit ut sacrificarentei. «Tanto que o rei acabou de ouvir a Daniel, prostrou-se diante dele e a<strong>do</strong>rou-o como rosto em terra, e man<strong>do</strong> que lhe oferecessem incenso e sacrifício.» Se isto fezNabuco<strong>do</strong>nosor a Daniel, quan<strong>do</strong> lhe disse que seu império se havia de acabar epassar outros quatro, que faria se lhe dissesse ser e1e o senhor <strong>do</strong> quinto? Naqueletempo pagava-se a interpretação de uma profecia infeliz com a<strong>do</strong>rações e sacrifícioshoje pagam-se as interpretações felicíssimas com opróbrios e calúnias.Mas este ponto ficará para seu tempo e para seu lugar. O que deste somente querorecolher e deixa assenta<strong>do</strong> é que, depois <strong>do</strong>s três impérios <strong>do</strong>s Assírios, Persas eGregos, que já passaram, e depois <strong>do</strong> quarto, que ainda hoje dura, que é o romano,há-de haver um novo e melhor império que há-de ser o quinto e último. Estasuposição é de fé, porque assim o lemos nas Escrituras, é de experiência, porqueassim o mostrou o sucesso <strong>do</strong>s tempos, e é de razão, porque assim se infere por bomdiscurso.CAPÍTULO II Segunda profecia de DanielNão é cousa nova em Deus quan<strong>do</strong> revela cousas grandes, significar por repetidasvisões o mesmo mistério e por diferentes figuras a mesma revelação. Assim mostrouantigamente a José suas felicidades, primeiro no sonho das paveias <strong>do</strong>s onze irmãosque a<strong>do</strong>ravam a sua, e depois no <strong>do</strong> Sol e nas estrelas que lhe faziam a mesmaa<strong>do</strong>ração. Assim mostrou a El-Rei Faraó os sete anos da fartura e os outros sete dafome, primeiro no sonho das sete vacas robustas e sete fracas, e depois no das seteespigas gradas e sete falidas. E assim nos tempos em que agora imos, depois derevelar Deus a Daniel o secreto <strong>do</strong> Quinto Império, no sonho de Nabuco<strong>do</strong>nosor e navisão daquela estátua, em outro sonho e em outras figuras lhe fez segunda vez amesma representação, nada menos misteriosa e cheia de circunstâncias, que aprimeira, antes mais portentosa em tu<strong>do</strong> e mais notável.Passa<strong>do</strong>s 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 <strong>do</strong> último cativeiro deBabilônia), reinan<strong>do</strong> já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no Império <strong>do</strong>s Assíriosou Caldeus, viu o Profeta Danie1 em uma visão de noite, (ou fosse <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> e emsonhos, como tem a opinião mais comum <strong>do</strong>s Doutores, ou fosse, como outrossuspeitam, acorda<strong>do</strong>, velan<strong>do</strong>) viu, digo, que os quatro ventos principais se davam


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 95 de 16927/08/2011batalha no meio <strong>do</strong> mar e levantavam uma horrível e furiosa tempestade; mas o marassim perturba<strong>do</strong> e temeroso não era mais que o teatro em que haviam de sair arepresentar quatro figuras horrendas, a que o, profeta chama bestas grantes: ...etecce quatuor venti coeli pugnabant in mari magno, et quator bestiæ grandesascendebant de mari diversæ inter se.«Saiu a primeira besta semelhante a uma leoa com asas de águia; pôs o Profeta nelaos olhos, e não levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas ou arrancadas asasas. E logo levantou as mãos da terra e se pôs em pé e ficou em figura de homem.»,Vejam lá os leões se lhes tira Deus as asas para [que] sejam homens! Prima [bestia]quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam <strong>do</strong>nec evulsæ sunt ale ejus, etsublata est de terra, et super pedes quasi homo stetit, et cor hominis datum est ei.«Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-se sobre os pés e parou; tinhatrês ordens de dentes, entre os quais trazia três boca<strong>do</strong>s, e diziam-lhe que comesse ese fartasse de carne» Et ecce bestia alia similis urso in parte stetit; et tres ordineserant in ore ejus, et in dentibus ejus, et sic dicebant ei: Surge, comede carnesplurimas.«Depois desta saiu a terceira besta semelhante a leopar<strong>do</strong>, e tinha quatro asas comoave e quatro cabeças; e foi-lhe da<strong>do</strong> grande poder.» Post hæc aspiciebam, et ecc aliaquasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et quator capita erant inbestia et potestas data est ei.Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou «a quarta besta,horrível, espantosa e muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que comia edespedaçava tu<strong>do</strong> o que lhe caía da boca ou não queria comer pisava com os pés. Eramui diferente de todas as outras bestas, e tinha na testa dez pontas». Post hæcaspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta terribilis atque mirabilis, et fortisnimis, dentes ferreos habebat magnos, comedens atque comminuens, et reliquapedibus suis conculcans: dissimilis autem erat ceteris bestiis, quas videram ante eam,et cornua decem.Enquanto tu<strong>do</strong> isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta besta saíauma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e outras cousasprodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V desta nossa <strong>História</strong>,para onde o reservamos, como também outras circunstâncias desta mesma visão queexpenderemos em seus lugares.E continuan<strong>do</strong> o que pertence a este, «levantou Daniel os olhos ao céu e viu que searmava um tribunal de juízo, cheio com grande aparato de horror, grandeza emajestade. Trouxeram-se cadeiras e assentou-se em um alto trono um velho devenerável ancianidade, a quem o Profeta chama Antigo <strong>do</strong>s dias, cujo cabelo era to<strong>do</strong>branco, e brancas as roupas de que estava vesti<strong>do</strong>, aquele como arminhos, estascomo neve; a matéria <strong>do</strong> trono era fogo, umas rodas sobre que o trono estavalevanta<strong>do</strong> também fogo, e de fogo também um rio arrebenta<strong>do</strong> que da boca lhe saía.Os ministros que lhe assistiam de uma e outra parte eram milhares de milhares;assentaram-se os conselheiros ou juizes assessores; vieram os livros e abriram-se».Este é o aparato daquele tribunal e juízo, descrito ou construí<strong>do</strong> ao pé da letra, comofazemos, para maior crédito da verdade em tu<strong>do</strong> o mais que imos referin<strong>do</strong>, e porisso repetimos as palavras <strong>do</strong> texto: Aspiciebam <strong>do</strong>nec throni positi sunt, et Antiquusdierum sedit: vestimentum ejus candidum quasi nix, et capili capitis ejus quasi lanamunda. Thronus ejus flammæ ignis: rotæ ejus ignis accensus. Fluvius igneus,rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia millium ministrabant ei, et decies milliescentena millia assistebant ei: judicium sedit, et libri aperti sunt.A primeira sentença ou execução que saiu deste juízo foi que à primeira, segunda eterceira besta se tirasse to<strong>do</strong> o poder, limitan<strong>do</strong>-se a cada uma o tempo determina<strong>do</strong>de sua duração, o qual acaba<strong>do</strong>, acabaram. Acabou também a quarta besta. porque«viu o Profeta que fora morta violentamente, e que to<strong>do</strong> aquele grande corpoperecera, e que fora entregue ao fogo para ser queima<strong>do</strong>», não fican<strong>do</strong> de tantagrandeza e bravosidade mais cinzas.Et vidi quoniam interfecta esset bestia, et perisset cortus ejus, et traditum esse adcomburendum igni; aliarum quoque bestiarum ablata esset potestas, et tempora vitæconstituta essent eis usque ad tempus et tempus.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 96 de 16927/08/2011Torna a dizer o Profeta que «ainda durava a noite e viu vir rodea<strong>do</strong> de nuvens <strong>do</strong> céuum como filho <strong>do</strong> homem, o qual chegou ao trono <strong>do</strong> Antigo de Dias e o ofereceramem sua presença. E ele lhe deu o poder, a honra e reino de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, para queto<strong>do</strong>s os povos e to<strong>do</strong>s os tribos, e todas as línguas o obedeçam e sirvam. Este seupoder será eterno, eterno também o reino, porque nunca jamais lhe será tira<strong>do</strong>»Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum nubibus coeli quasi filius hominisveniebat, et usque ad Antiquum dierum pervenit; et in conspectu ejus obtulerunteum. Et dedit ei potestatem et honorem et regnum; et omnes populi, tribus et linguæitsi servient: potestas ejus, potestas æterna quæ non auferetur; et regnum ejus,quod non cortumpetur.Esta é pontualmente a relação de to<strong>do</strong> o sonho ou história enigmática, representadanele. «Com a qual (diz Daniel) ficou o meu espírito assombra<strong>do</strong> e cheio de horror. Evolven<strong>do</strong> eu no pensamento que significariam aquelas cousas, cheguei-me a um <strong>do</strong>sministros que ali assistiam, pedin<strong>do</strong>-lhe me quisesse declarar o verdadeiro senti<strong>do</strong>delas. E ele o fez assim e me ensinou a interpretação e mistérios de tu<strong>do</strong> o que tinhavisto».Até aqui o mesmo Profeta, o qual, porém, referin<strong>do</strong> a dita interpretação, passa emsilêncio algumas circunstâncias dela, sem dúvida para não exceder a brevidade queno princípio deste capítulo tinha prometi<strong>do</strong>. Daniel somnium vidit, et somninmscribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a razão depassar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôsbastantemente declaradas na visão <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> capítulo ou sonho de Nabuco<strong>do</strong>nosorque acabamos de explicar, ou certamente porque as julgou de menos importância aoseu interesse principal, que e a demonstração <strong>do</strong> Quinto Império, exprimin<strong>do</strong> comgrande particularidade e miudeza tu<strong>do</strong> o que pertence a ele, como agora veremos.Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu intérprete) que «aquelas quatrobestas grandes significavam quatro reinos ou quatro impérios, que sucessivamente sehaviam de levantar no Mun<strong>do</strong> depois <strong>do</strong>s quais se havia de seguir outro quinto reinoou império, que o mesmo intérprete chama Reino <strong>do</strong>s Santos <strong>do</strong> Altíssimo, o qual nãohá de ter mudança nem variedade, nem outro reino algum ou império que lhe suceda,porque há-de durar para sempre. Hæ quatuor bestiæ magnæ quator sunt regna, quæconsurgent de terra. Suscipient autem regnum sancti Dei altissimi, et obtinebuntregnum usque in sæculum et sæculum sæculorum.Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete <strong>do</strong> Céu a toda a visão, sobre aqual nos explicaremos mais particularmente, declaran<strong>do</strong> todas as figuras dela pelamesma ordem com que foram sain<strong>do</strong>, advertin<strong>do</strong> o que o Profeta e seu intérpreteexprimiram, e suprin<strong>do</strong> com a exposição <strong>do</strong>s Doutores o que eles calaram, coligi<strong>do</strong>porém tu<strong>do</strong> imediatamente <strong>do</strong> mesmo que dizem. Não declara Daniel que ventosfossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar antes de sair nele asquatro bestas, mas to<strong>do</strong>s os expositores concordam em que o mar significava oMun<strong>do</strong>, e os ventos e tempestades que o alteram as alterações, movimentos, guerrase perturbações que se costumam experimentar no mesmo Mun<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> nele selevantam novos impérios.Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos fica no textode Daniel, porque não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto que levantará Deusesta nova monarquia in diebus regnorum illorum, nos dias daqueles impérios. Logo,esta monarquia não é futura se não passada, porque <strong>do</strong>s quatro impérios já passaramtotalmente os três, que são o <strong>do</strong>s Assírios, o <strong>do</strong>s Persas e o <strong>do</strong>s Gregos, e o quarto,que é o Romano, também está na última declinação. Respon<strong>do</strong> que o Profeta na suainterpretação se acomo<strong>do</strong>u com grande propriedade à figura <strong>do</strong> enigma quedeclarava. Porque Deus, no sonho de Nabuco<strong>do</strong>nosor, representou to<strong>do</strong>s os quatroimpérios, não como quatro corpos ou quatro indivíduos, senão como um só corpo ouum só indivíduo. Por isso viu o Rei não quatro estátuas senão uma só estátua; eassim como da quatro corpos <strong>do</strong>s quatro impérios se formou um corpo, assim dasquatro durações <strong>do</strong>s quatro impérios se há-de compor uma só duração, <strong>do</strong>nde segueque com toda a verdade se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos oque sucede nos dias de qualquer deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se demuitas idades, e o que acontece em qualquer destas idades se diz com toda;propriedade e verdade que acontece nos dias daquele homem. Da mesma maneira aduração da estátua <strong>do</strong>s impérios era composta de diferentes idades. A sua primeiraidade, que é o tempo <strong>do</strong>s Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo <strong>do</strong>sPersas, foi idade de prata, a terceira, que é o tempo <strong>do</strong>s Gregos, foi idade de bronze,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 97 de 16927/08/2011a quarta, que é o primeiro Império <strong>do</strong>s Romanos, foi idade de ferro, a quinta, que éeste último tempo <strong>do</strong>s mesmos Romanos, é idade de ferro e barro. E basta que nestaúltima idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de levantaro Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade severifique havê-lo Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus regnorumillorum. Assim que o Império que promete Daniel não é império já passa<strong>do</strong>, senãoque ainda está por vir. CAPÍTULO III Prova-se o mesmo contra outra profecia deZacariasAssim como Deus <strong>do</strong>brou as visões, assim <strong>do</strong>brou também as testemunhas , e amesma sucessão de impérios que revelou a Daniel em umas figuras a mostra agoraao Profeta Zacarias em outras. A primeira profecia de Daniel foi a mesma deNabuco<strong>do</strong>nosor, a segunda em tempo de Baltasar, que sucedeu a Nabuco; es1aterceira de &carias em tempo de Hidaspes, que sucedeu a Baltasar. De mo<strong>do</strong> que,assim como iam suceden<strong>do</strong> os reis, iam suceden<strong>do</strong> as profecias, e Deus multiplican<strong>do</strong>as revelações, mas sempre mostran<strong>do</strong> pela mesma forma primeiro os quatroimpérios e depois o quinto.Diz pois o Profeta Zacarias, no capítulo VI da sua profecia, levantan<strong>do</strong> os olhos (oulevanta<strong>do</strong>-lhos Deus da atenção das cousas presentes para a visão das futuras), viuque <strong>do</strong> meio de <strong>do</strong>is montes de bronze saíam quatro carroças puxadas por quatrocavalos, cada tiro ou parelha de diferentes cores. Pela primeira tiravam cavalosmela<strong>do</strong>s, pela segunda murzelos, pela terceira pombos, pela quarta remenda<strong>do</strong>s;assim parece que se deve construir o texto na forma da nossa cavalaria, mas nafrase <strong>do</strong> mesmo texto chama aos da primeira carroça ruivos, aos da segunda negros,aos da terceira brancos, aos da quarta vários, e estes entre os outros diz que eramos mais fortes.Ven<strong>do</strong> estas carroças Zacarias e não entenden<strong>do</strong> o que significavam, diz que operguntou a um anjo que falava dentro nele. Mas, ou porque este anjo falasse maisculto que o de Daniel, ou porque Zacarias se entendia por dentro com e1e acham osDoutores que explicou um enigma com outro, e mais trabalho tem da<strong>do</strong> aosexpositores deste lugar a declaração <strong>do</strong> Anjo que a visão <strong>do</strong> Profeta. Respondeu poiso Anjo que aquelas quatro carroças (<strong>do</strong>s montes não disse nada) eram quatro ventos<strong>do</strong>ces que assistiam ao <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r da Terra para executarem suas ordens; e que oscavalos negros tinham saí<strong>do</strong> contra as terras <strong>do</strong> Norte, e após eles os brancos; osvários saíram contra as <strong>do</strong> Sul, e destes os mais fortes trataram de discorrer por todaa Terra, e que com licença <strong>do</strong> Domina<strong>do</strong>r a tinham passea<strong>do</strong> toda.Até aqui a interpretação <strong>do</strong> Anjo, na qual e na visão <strong>do</strong> Profeta seguiremos a comumsentença <strong>do</strong>s Doutores, que é desta maneira: estas carroças significam os mesmosquatro impérios que Deus mostrou a Daniel, e foram estes impérios representa<strong>do</strong>s aoProfeta em figura de carroças, e declara<strong>do</strong>s pelo Anjo em metáfora de ventos, paramostrar a violência e velocidade com que seus funda<strong>do</strong>res conquistariam esujeitariam por armas os reinos terras e gentes de que se haviam de formar os ditosimpérios; porque, ao uso daqueles tempos, a principal força <strong>do</strong>s exércitos consistianas carroças armada que eram as que faziam maior estrago na guerra como se vênos casos tão celebra<strong>do</strong>s.Estas carroças diz o Anjo que estavam prontas como ventos para execução <strong>do</strong>smanda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Domina<strong>do</strong>r da terra, porque Deus, como supremo Senhor <strong>do</strong>sExércitos, se servia sempre das armas de todas as nações, principalmente destasquatro, como tão poderosas para a execução de seus divinos decretos, os quais poraltos e imutáveis são comparáveis aos <strong>do</strong>is montes de bronze <strong>do</strong>nde saíam ascarroças. A primeira carroça representava o Império <strong>do</strong>s Assírios, e tiravam por elacavalos ruivos, que é cor de fogo, para significar os danos, assolações e incêndioscom que os Assírios conquistaram destruíram e abrasaram o povo hebreu,principalmente no cativeiro de setenta anos a que eles com razão chamavamfornalhas da Babilônia. A segunda carroça representava o Império <strong>do</strong>s Persas, etiravam por ela cavalos negros, cor de tristeza e luto, porque também os Persasafligiram e foram lutuosos aos Hebreus, principalmente naquela grande aflição,quan<strong>do</strong> El-Rei Assuero, mari<strong>do</strong> de Ester, persuadi<strong>do</strong> pelos enganos de Amão, tinhacondena<strong>do</strong> a morrer em um dia com crueldade inaudita toda a nação hebréia. Aterceira carroça representava o Império <strong>do</strong>s Gregos e tiravam por ela cavalosbrancos, cor pacífica e alegre, porque, exceto Antíoco (cuja tirania também serviu dematéria gloriosa aos triunfos <strong>do</strong>s Macabeus) os outros príncipes gregos sempre forambenéficos aos Hebreus, e mais que to<strong>do</strong>s Alexandre Magno, funda<strong>do</strong>r daquele


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 98 de 16927/08/2011império, cuja majestade, como escreve José, não duvi<strong>do</strong>u de a<strong>do</strong>rar no templo aopontífice Jada. Finalmente, a quarta carroça representava o Império Romano, etiravam por ela cavalos vários, porque os Romanos, assim no ódio como nabenevolência, foram vários para com os Hebreus, uns amigos e propícios, como JúlioCésar, Augusto, Tibério, Cláudio; outros inimigos, persegui<strong>do</strong>res e cruéis, comoPompeu, Calígula, Nero, Vespasiano, Adriano, Tito.Restam por explicar os diferentes caminhos que disse o Anjo fizeram estas carroças,e primeiro que tu<strong>do</strong> se deve muito notar que da primeira carroça não disse cousaalguma, que é admirável confirmação de serem significa<strong>do</strong>s nas quatro carroças osquatro impérios. Porque, como a primeira carroça significava o Império <strong>do</strong>s Assírios,que já havia muito tempo florescia, não tinha necessidade de intérprete nemdeclaração. E assim declarou somente o Anjo os três impérios seguintes, cujafundação e sucessos estavam ainda por vir. A segunda carroça, <strong>do</strong>s cavalos negros,que são os Persas, diz o Anjo que caminhou para as terras <strong>do</strong> Norte; e assim foi,porque os Persas devastaram e ocuparam a Babilônia que fica para a parte <strong>do</strong> Norteda Judeia, e ali acabou o Império <strong>do</strong>s Assírios. A terceira carroça, a <strong>do</strong>s cavalosbrancos, diz que foi atrás da primeira, e assim sucedeu, porque os Gregos vencerame destruíram a Dario, último impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s Persas, junto à mesma Babilônia ondeAlexandre, como escreve Crítio e Plutarco, tomou o nome de Rei da Ásia. E a quartacarroça, <strong>do</strong>s cavalos vários, diz que foi para o Sul, e assim consta das histórias,porque os Romanos passaram por várias vezes à conquista <strong>do</strong> Egito, que fica ao sulde Judeia, e depois da vitória chamada actíaca, em que Augusto desbaratou aCleópatra e Marco Antônio, reduziu o mesmo Egito a província, como escreveSuetónio, e ali acabou o Império <strong>do</strong>s Gregos. De toda esta combinação das históriascom a profecia, e da consonância e harmonia <strong>do</strong>s tempos, lugares, nações, princípios,fins e to<strong>do</strong>s os sucessos desses Impérios tão ajusta<strong>do</strong>s com as propriedades dasfiguras que as representavam, se faz certo e evidente argumento de que estainterpretação é a sólida e verdadeira, e que isto foi o que Deus e o Anjo quiseramsignificar ao Profeta.Ultimamente diz que os cavalos mais fortes ou os robustíssimos da quarta carroçaquiseram correr e passear toda a Terra, e que a correram e passearam; e assim severificou nos Romanos, que com sua potência e vitórias se fizeram senhores <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> e o meteram debaixo <strong>do</strong>s pés. Estes robustíssimos <strong>do</strong>s Romanos foram osseus maiores capitães e impera<strong>do</strong>res, como Cipião, Pompeu, César, Augusto,Vespasiano, Trajano, Constantino, Teodósio, etc. E posto que os Romanosabsolutamente não conquistaram o Mun<strong>do</strong> como é em si, porque nunca chegaram àAmérica, que mais é uma metade que parte <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong> diz o Anjo quecorreram e passearam to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> no mesmo senti<strong>do</strong> em que Augusto, no seuedicto <strong>do</strong> tempo <strong>do</strong> nascimento de Cristo, man<strong>do</strong>u que to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> se alistasse, utdescriberetur universus orbis. Mas Sanchez, para explicar a palavra per omnemterram em toda a sua largueza, quer que não só nas terras <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> Antigo, senãonas da América, Mun<strong>do</strong> Novo, e nas da Índia Oriental, nunca conquistada nem aindaconhecidas pelos Romanos. E diz que aqueles robustíssimos de que fala o Anjo são osEspanhóis, verdadeiramente valentíssimos, audacíssimos e fortíssimos, poisconquistaram estas regiões novas e incógnitas, não pelejan<strong>do</strong> contra os homens,como os antigos Romanos, senão contra os ventos, contra os mares, contra o Céu,contra o Sol, contra to<strong>do</strong>s elementos e contra a mesma natureza, a que venceram econtrastaram. E para este autor perfilhar ou acomodar aos Romanos, conforme aprofecia, estas vitórias próprias <strong>do</strong>s Espanhóis, e que de nenhum mo<strong>do</strong>; parece lhecompetiam, leva o direito desta herança à origem que os Reis de Espanha trazem <strong>do</strong>sGo<strong>do</strong>s, os quais Go<strong>do</strong>s, como já tinha nota<strong>do</strong> Ribeira, foram estipendiários <strong>do</strong>sRomanos e pelejaram debaixo de suas bandeiras, ajudan<strong>do</strong> a defesa e conquista <strong>do</strong>Império, como fizeram ao Impera<strong>do</strong>r Maximino contra os Partos e a Constantinocontra Licínio. Mas esta aplicação, como violenta e trazida de tão longe, com razãonão é admitida de Cornélio à lápide, que impugna facilmente. Contu<strong>do</strong>, porque estaglória que Sanchez dá aos Espanhóis toca pela maior e melhor parte aosPortugueses, pelas vitórias <strong>do</strong> Oriente a que o mesmo Cornélio chama ad miraculumusque illustres, por não deixar perder a nossa, nação um título tão honra<strong>do</strong> comoserem chama<strong>do</strong>s por ,boca de um anjo os mais fortes de to<strong>do</strong>s os Romanos, digo queos Portugueses e to<strong>do</strong>s os Espanhóis se podem e devem entender debaixo <strong>do</strong> nomede Romanos, no senti<strong>do</strong> desta profecia, porque Espanha e Portugal foram colônias<strong>do</strong>s Romanos, e parte não só <strong>do</strong> Império, senão <strong>do</strong> povo romano, e verdadeiroscidadãos romanos; ao que não obstava serem de diferente nação, como se vê em S.Paulo, que, sen<strong>do</strong> hebreu, apelou para o César, alegan<strong>do</strong> que era cidadão romano eque só no tribunal de César podia ser julga<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 99 de 16927/08/2011Além de que muitos portugueses eram filhos e netos <strong>do</strong>s Romanos, como muitosromanos de Portugueses, pela união e comércio destas duas nações, assim emPortugal, onde viviam os presídios romanos, como nas guerras <strong>do</strong>s mesmosRomanos, onde os Portugueses iam servir e merecer debaixo de suas bandeiras. Eposto que qualquer destas razões e muito mais todas juntas são bastantes para quesem impropriedade se possa entender os Portugueses debaixo <strong>do</strong> nome de Romanos,o fundamento principal sóli<strong>do</strong> e certo desta interpretação é ser esta a mente e senti<strong>do</strong>em que falaram os mesmos Profetas, os quais entendem Império Romano to<strong>do</strong> ocorpo íntegro <strong>do</strong> dito Império, e todas as partes de que ele se compôs e inteirouquan<strong>do</strong> esteve em sua maior grandeza, ainda que essas mesmas partes depois sedesunissem <strong>do</strong> mesmo Império e lhe negassem obediência.Vê-se claramente esta verdade na primeira profecia de Daniel, onde se diz que os pése de<strong>do</strong>s da estátua eram compostos de ferro e barro, e que o barro e o ferro nãoestavam uni<strong>do</strong>s, na qual divisão de de<strong>do</strong>s e desunião de metais se significava que oImpério Romano se havia de dividir em muitos reinos e senhorios menores, e queesses se haviam de desunir da sujeição e obediência <strong>do</strong> mesmo Império. Assim ointerpretou o mesmo Daniel: Porro quia vidisti pedum et digitorum partem testæfiguli, et partem ferream, regnum divisum erit; as quais palavras comentan<strong>do</strong>,Cornélio diz assim: Potissimum vero divisum fuit hoc regnum ideoque enervatum cumvariæ gentes ab ejus obedientia se subduxerunt, sibique proprios reges crearunt, utifecerunt Hispani, Poloni, Angli, Franci, etc. De maneira que a divisão <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s e adesunião <strong>do</strong>s metais <strong>do</strong>s pés da estátua significava os reinos <strong>do</strong>s Espanhóis, Polacos,Ingleses, Franceses e os demais, que, sen<strong>do</strong> antes sujeitos aos impera<strong>do</strong>res romanos,lhes negaram a sujeição e se desuniram, deles. Mas contu<strong>do</strong> (que é o nosso intento)ainda assim dividi<strong>do</strong>s e desuni<strong>do</strong>s se computam e reputam por parte da mesmaestátua e <strong>do</strong> mesmo Império Romano, ainda que não sejam romanos, porquerealmente são partes daquele corpo e daquele to<strong>do</strong>, ainda desuni<strong>do</strong>s dele. Destasnações pois e destes reinos de que se compunha o Império Romano, aqueles homens,que eram os mais fortes e valentes de to<strong>do</strong>s, não se contentaram só com as terras<strong>do</strong>s outros impérios, mas que intentaram discorrer e passear toda a re<strong>do</strong>ndeza daTerra. Estes foram os Espanhóis, e entre os Espanhóis muito particularmente osPortugueses; porque a conquista <strong>do</strong>s mares e terras <strong>do</strong> Oriente, pela distanciaremotíssima das terras, pela dificuldade de navegações, pela diferença <strong>do</strong>s climas,pelo valor e potência das nações que se conquistaram, foi empresa de muito maiorvalor, resolução e esforço que a <strong>do</strong>s Castelhanos. Assim que, consideran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> ocorpo <strong>do</strong> Império Romano e todas suas empresas, os fortes <strong>do</strong>s Romanos foram osCipiões, os Pompeus, os Césares, os Augustos; os fortíssimos foram os Espanhóis, eentre esses Espanhóis os fortíssimos <strong>do</strong>s fortíssimos foram os Portugueses. Nãosomos nós que o dizemos, senão o anjo que falava em Zacarias: Qui autem erantrobustissimi, exierunt, et quærebant ire et discurrere per omnem terram; et dixit: Ite,perambulate terram: et perambalaverunt terram. Finalmente, para que a profecia seentenda <strong>do</strong>s Espanhóis e Portugueses, era justo... LIVRO II Em que se mostra queImpério há-de ser esteSuposto como deixamos assenta<strong>do</strong> que há-de haver no Mun<strong>do</strong> um quinto e novoImpério, segue-se que digamos que Império há-de ser: e assim o faremos em to<strong>do</strong>este II Livro.Que o Quinto Império é o Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos CAPÍTULO IÉ conclusão certa e de fé que este Quinto Império de que falamos, anuncia<strong>do</strong> eprometi<strong>do</strong> pelos Profetas, é o Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos. Prova-se <strong>do</strong>s mesmostextos e profecias já alegadas, sobre as quais fundaremos tu<strong>do</strong> o que dissermos nestahistória, para maior clareza e firmeza dela, pois não é cerzida de pedaços ou retalhosdas Escrituras, senão cortada toda da mesma peça.Primeiramente aquela pedra que derrubou a estátua e desfez as quatro monarquiasfiguradas nos quatro metais, e depois cresceu e a sua grandeza ocupou e encheu todaa Terra, é Cristo, o qual em outros muitos lugares da Sagrada Escritura se chamaPedra. Ele foi a pedra que no deserto matou a sede aos filhos de Israel e osacompanhou até a terra da Promissão. Ele foi a pedra com que David derrubou aogigante, em significação de que por meio e virtude de Cristo havemos de vencer oMun<strong>do</strong> e o Demônio. Ele foi a pedra que viu Zacarias, e sobre ela sete olhos, superlapidem unum septem oculi, que são os sete <strong>do</strong>ns <strong>do</strong> Espírito Santo, o qual infundiuto<strong>do</strong> e descansou sobre Cristo. Ele foi a pedra sobre que a<strong>do</strong>rmeceu Jacob, quan<strong>do</strong> selhe abriu o Céu e viu a escada; ele a pedra sobre que sustentou os braços levanta<strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 100 de 16927/08/2011de Moisés, quan<strong>do</strong> venceu os exércitos de Amalec; ele finalmente a pedra angular, aque uniu os <strong>do</strong>is povos gentílicos e judaico, e a pedra fundamental e provada sobreque se fundaram na Lei antiga a Igreja de Sion e na nova a <strong>do</strong> mesmo Cristo. Estapedra pois foi a que, arrancada <strong>do</strong> monte, derrubou a estátua e desfez os quatroimpérios <strong>do</strong>s Assírios, Persas, Gregos e Romanos, para fundar e levantar o seu sobreto<strong>do</strong>s eles. Assim o dizem conformemente neste lugar não só to<strong>do</strong>s os Padres eexpositores católicos, senão também os hereges e até mesmo Rabinos, os quaisacertam em dizer que nesta pedra está profetiza<strong>do</strong> o Reino <strong>do</strong> Messias, e erramsomente em não crerem que o Messias é Cristo.Diz Daniel que esta pedra caiu de um alto monte, arrancada dele sem mãos. E estemonte ou é o Céu e o seio <strong>do</strong> Eterno Padre, <strong>do</strong>nde desceu Cristo quanto a divindade,como interpreta S. Ambrósio; ou é a nação hebraica, levantada naquele tempo comomonte entre todas as outras nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, da qual o Verbo se dignou tomar eunir a si a humanidade, como explica S. Agostinho; ou finalmente é a Virgem Maria,Senhora Nossa, sublimada como monte altíssimo sobre todas as criaturas, como amais perfeita e excelente de todas.Esta é a sentença comum e mais recebida <strong>do</strong>s Padres e expositores deste lugar, coma qual concorda admiravelmente a advertência de Daniel, que a pedra foi arrancadaou cortada <strong>do</strong> monte sem mãos: Lapis abscissus de monte sine manibus; porque nageração temporal de Cristo, sen<strong>do</strong> verdadeiro homem, não tiveram parte mãos dehomem, toda foi obra sobrenatural e divina, suprin<strong>do</strong> o Espírito Santo e a virtude <strong>do</strong>Altíssimo o que nela faltou de concurso humano. Assim o notou o mesmo S.Agostinho, S. Hierónimo, S. Ireneu, S. Júlio, S. Epilanio, Teo<strong>do</strong>reto, Ruperto e muitosoutros Padres.Na segunda visão de Daniel ainda consta mais claramente e por termos maisexpressos que este Império é o de Cristo....et ecce (diz o Profeta) cum nubibs cæliquasi filius hominis veniebat, et usque ad.Antiquum dierum pervenit: ...et dabit eipotestatem et honorem et regnum, etc.; De sorte que a pessoa a quem foi da<strong>do</strong> porDeus o Quinto Império de que Danie1 fala neste lugar (como vimos) era o Filho <strong>do</strong>Homem. E que cousa há mais certa e freqüente no Evangelho que chamar-se CristoFilho <strong>do</strong> Homem? Quem dicunt homines esse filium hominis? Væ autem homini illi perquem filis hominis tradetur! Tunc videbunt filius hominis venientem in nubibus cæli.Não repito os autores desta explicação, porque são to<strong>do</strong>s, e porque o texto é tãoclaro que não há mister intérpretes. Só reparou Mal<strong>do</strong>na<strong>do</strong> que não se chama Cristoneste lugar Filho <strong>do</strong> Homem absolutamente, sen<strong>do</strong> quasi filius hominis, para denotaro Profeta que entre este homem e os outros homens havia diferença: os outros sãopuros homens, Cristo é homem e Deus juntamente; assim que aquele quasi significaa falta de substância humana, posto que tão superiormente suprida com a divina. Eporque Deus não havia de ter subsistência humana como os outros homens, postoque tivesse a mesma natureza como eles, não lhe chama por isso o Profeta homem,senão quase homem-quasi filius hominis. Quem havia de duvidar que em um quasicabia uma distancia infinita?A terceira visão de Zacarias confirma ainda com maior propriedade ser Cristo oSenhor deste Império. Já dissemos que a coroa ou coroas que foram postas sobre acabeça de Jesus, filho de Josedec significavam o mesmo Império Quinto profetiza<strong>do</strong>por Daniel: e que seja Cristo o soberaníssimo Monarca que Zacarias viu coroarnaquela figura, não só o confessa a Igreja Universal na aplicação deste lugar, e aopinião comum de to<strong>do</strong>s os Padres e Doutores, senão ainda muitos hebreus, que semódio escreveram antes de Cristo. Communis est Patrum sententia et multorum exHebræis quibus accedit Chaldeus sermonem hic esse de Messsiah, diz o <strong>do</strong>utissimoSanchez. De maneira que na primeira visão foi Cristo, significa<strong>do</strong> com o nome comume metafórico de pedra, na segunda com o nome particular de Filho <strong>do</strong> Homem, naterceira com o nome propriíssimo de Jesus, Jesus filii Josedeci: e em todas estas trêsvisões em que Deus revelou aos seus Profetas a grandeza e majestade futura <strong>do</strong>Quinto Império, e os quatro a que ele devia de suceder, lhes mostrou , e reveloutambém que o Senhor e o Monarca deste Império havia de ser Cristo.Com muitos outros textos da Escritura pudéramos confirmar esta mesma conclusão,mas porque tu<strong>do</strong> o que havemos de dizer nesta história será uma continuada prova econfirmação dela, bastem os textos alega<strong>do</strong>s, que são, como dizia, os fundamentaisde toda ela.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 101 de 16927/08/2011Mas porque no princípio deste capítulo dissemos que o Quinto Império era o Impériode Cristo e <strong>do</strong>s, Cristãos, tornemos à segunda visão de Daniel, onde Deus paraconsolação <strong>do</strong>s fiéis quis que nos ficasse expressa e revelada esta tão gloriosaverdade.Depois de referir Danie1 como Deus Padre, a quem ele chama o Antigo <strong>do</strong>s dias deraao Filho <strong>do</strong> Homem aquele novo reino ou império, perguntou o mesmo Profeta a um<strong>do</strong>s anjos que assistiam ao trono a significação das cousas que via, e ele lhe disse portrês vezes que o reino e império que vira dar ao Filho <strong>do</strong> Homem era o reino eimpério que os santos <strong>do</strong> Altíssimo haviam de ter neste Mun<strong>do</strong>. No verso 18 daquelecapítulo (que é o VII) diz assim: Suscitient autem regnum Sancti Dei altissimi: etoblinebunt regnum usque in sæculum et sacculum sæculorum. E no verso : Donecvénit Antiquus dierum, et dierum, et judicium dedit sanctis Excelsi, et tempusadvenit, et regnum obtinuerunt sancti. E no 27: Regnum autem, et potestas, etmagnitu<strong>do</strong> regni quæ est subter omne cælum, detur populo sanctorum Altissimi;cujus regnum, regnum sempiternum est, et omnes reges servient ei et obedient.Muitas cousas e muito grandes disse nestas palavras o Anjo, as quais ficamreservadas para se explicarem em seus lugares por agora só nos serve (o que diz erepete tantas vezes o Anjo) que aquele mesmo Reino que o eterno Padre deu ou hádedar a seu filho Cristo é o Reino e o Império <strong>do</strong>s Santos, isto é, <strong>do</strong>s Cristãos. Assimo diz expressamente sobre estas palavras de Daniel o seu grande comenta<strong>do</strong>rPerério, chaman<strong>do</strong> a este Quinto Império Regnum Christi e Christianoram, Reino deCristo e <strong>do</strong>s Cristãos. Deinceps (diz ele) pagnandum nobis est cum Judæis quiChristianis infensi infestique et iniquo animo ferentes, quæ de illo quinto Regno tampræclara et gloriosa prædix Daniel, ea ad Regnum Christi et Christianormaccommodari, etc.E que pelo nome de Santos, de que usa Daniel, se entendam e devam entender osCristãos não é só explicação de intérpretes da Escritura, senão frase muito corrente eordinária em toda ela. S. Paulo, escreven<strong>do</strong> aos cristãos da cidade de Filipe, emMacedônia,. no título ou sobrescrito da carta diz assim: Omnibus Sanctis in Christoqui sunt Philippis «a to<strong>do</strong>s os Santos em Cristo que estão em Philippis». E escreveuaos cristãos de Roma: Omnibus qui sunt Romæ dilectis Dei, vocatis Sanctis. E namesma epístola, exortan<strong>do</strong> aos mesmos Romanos a que socorressem com suasesmolas aos cristãos necessita<strong>do</strong>s: Necessitatibus Sanctorum communicantes. Esaudan<strong>do</strong> aos Filipenses no fim da epístola citada, em nome de alguns cristãos queestavam em serviço <strong>do</strong> Impera<strong>do</strong>r que então era Nero: Salutant vos omnes Sanctimaxime autem qui de Cæsaris <strong>do</strong>mo sunt: «saúdam-vos, diz, to<strong>do</strong>s os Santos, eprincipalmente os que estão em casa de César». Finalmente este era o ordináriomo<strong>do</strong> de falar da primitiva Igreja, e assim lemos no capítulo IX <strong>do</strong>s Atos <strong>do</strong>sApóstolos que usou da mesma frase Ananias, representan<strong>do</strong> Cristo os grandes malesque Saulo tinha feito contra os Cristãos: Quanta mala Sanctis tuis fecerit. E a este usose chamaram as igrejas <strong>do</strong>s Cristãos igrejas <strong>do</strong>s Santos, conforme o texto da Epístolaad Corinthios: In ecclesiis Sanctorm <strong>do</strong>ceo.A razão deste nome é tomada da santidade da Lei de Cristo que professam osCristãos, os quais, assim como de Cristo se chamavam cristãos, assim da Lei santade Cristo se chamaram santos. E este é o senti<strong>do</strong> em que Daniel e o Anjo falaramnaquela visão chaman<strong>do</strong> a Cristo Filho <strong>do</strong> Homem, com a mesma frase com quedepois se nomeou a Cristo, e chaman<strong>do</strong> ao Reino <strong>do</strong>s Cristãos Reino <strong>do</strong>s Santos, coma mesma frase com que depois se nomearam os Cristãos, bem assim como já antesde Daniel o tinha profetiza<strong>do</strong> com o mesmo espírito Isaías: Et vocabunt eos populussanctus, redempti a Domino. E aquele povo remi<strong>do</strong> por Deus será chama<strong>do</strong>publicamente Povo santo, que é em próprios termos o que depois se viu na Igreja e oque diz aqui o Anjo: Regnum autem et potestas detur populo sanctorum. E ambosestes nomes e as etimologias deles compreendeu S. Paulo no princípio da Epístolaaos Romanos, em que lhe chama Vocati Jesu Christi et vocatis Sanctis, chama<strong>do</strong>s deJesus Cristo e chama<strong>do</strong>s santos.CAPÍTULO IIPergunta-se se este Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há-de ser neste Mun<strong>do</strong> ou nooutroDeu motivo a esta questão, entre os Padres gregos, o Teo<strong>do</strong>reto, e entre os latinos,Tertuliano, os quais concordavam com a verdade da nossa <strong>História</strong> em dizerem com


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 102 de 16927/08/2011os demais que o Quinto Império é o de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos, mas que tem para sique há-de ser este Império no Céu e não na Terra. Fundam a sua opinião nasmesmas visões de Daniel, desta maneira:Antes que a pedra cortada <strong>do</strong> monte (que é Deus e o seu Império) crescesse a todaaquela sua grandeza (diz Teo<strong>do</strong>reto), já to<strong>do</strong>s os outros reinos e impérios <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>estavam derruba<strong>do</strong>s e caí<strong>do</strong>s, já o vento os tinha leva<strong>do</strong> pelos ares, desfeito em pó eem cinza, e já tinham desapareci<strong>do</strong> totalmente <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, sem haver mais que amemória deles, nem se poder achar ou conhecer o lugar onde tivessem esta<strong>do</strong>, comoconsta <strong>do</strong> texto: Tunc contrita sunt pariter ferrum, testa, æs, argentum et aurum, etredacta quasi in favillam æstiva, areæ quæ rapta sunt vento; nullusque locusinventus est eis; lapis autem qui percusserat statuam factus est mons magnus.Sen<strong>do</strong> logo certo como é que os reinos, cidades, repúblicas e impérios <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> senão hão-de desfazer em cinza, nem se hão-de acabar, senão quan<strong>do</strong> se desfizer eacabar o mesmo Mun<strong>do</strong> na última ruína dele, segue-se que o Império de Cristo e <strong>do</strong>sCristãos, de que fala Daniel, e aquela sua grandeza prodigiosa e que há-de crescer,não há-de ser neste Mun<strong>do</strong>, senão no outro.Tertuliano, funda<strong>do</strong> na mesma visão, e muito mais na segunda, argumenta assimEste Reino ou Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há-de ser Reino perpétuo,incorruptíve1 e eterno, como dizem expressamente as palavras de ambos os textos:Regnum quod in eternum non dissipabitur; Regnum quod non corrumpetur; Regnumusque in sæculum et sæculum sceculorum; Regnu sempiternum. Os reinos desteMun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s de sua própria natureza são corruptíveis, e to<strong>do</strong>s, por mais que durem epermaneçam, hão-de ter um com o mesmo Mun<strong>do</strong>, o qual é de fé que se há-deacabar. Logo, se o Reino e Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há-de ser perpétuo,incorruptível e eterno, clara e manifestamente se segue que não há-de ser império daTerra, senão <strong>do</strong> Céu.Contu<strong>do</strong> a sentença comum <strong>do</strong>s Santos, e recebida e seguida como certa de to<strong>do</strong>s osexpositores, é que este Reino e Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos profetiza<strong>do</strong> porDaniel (qualquer que haja de ser) é Império da Terra e na Terra. E posto que osautores desta sentença mais supõem que aprovam, nós aprovaremos edemonstraremos com os textos das mesmas visões.Daquela pedra que representava a Cristo e seu Império, diz Daniel, na primeira visão,que cresceu e se fez um monte tão grande que ocupou e encheu toda a terra. Lapisautem qui percusserat statuam factus est mons magnus et implevit universamterram. Infiro agora assim:Esta pedra e este Império de Cristo, que derribou os outros impérios, cresceu? Logo,não é império <strong>do</strong> Céu nem depois de acaba<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>; porque o Reino e Império deCristo, depois de acaba<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, de nenhum mo<strong>do</strong> há-de crescer nem podecrescer. Não há-de crescer nem pode crescer no número <strong>do</strong>s homens, porque, depoisde acaba<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> e depois <strong>do</strong> Dia de Juízo, não há-de haver mais homens que vãoao Céu; não há-de crescer nem pode crescer na glória <strong>do</strong>s bem-aventura<strong>do</strong>s, porque,desde aquele ponto, cada um há-de receber por inteiro toda a glória devida a seusmerecimentos; e como se acabou o tempo de mais merecer, assim se acabou otempo de mais alcançar. Logo, se o Reino de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há-de crescerdepois daquele tempo, e crescer a uma grandeza tão imensa, segue-se que essecrescimento há-de ser neste Mun<strong>do</strong> e não no outro. Mas para que são conseqüências,se as mesmas palavras <strong>do</strong> texto o dizem claramente? Factus est mons magnus etimplevit universam terram. Se a pedra, crescen<strong>do</strong>, se fez um grande monte, o qualgrande monte encheu e ocupou toda a Terra, e este é o Império profetiza<strong>do</strong> deCristo, bem claro se mostra que é Império da Terra e não <strong>do</strong> Céu e que na Terra enão no Céu há-de ter toda esta sua grandeza.Não negamos, porém, nem podemos negar que este Reino e Império de Cristo e <strong>do</strong>sCristãos há-de durar também com o mesmo Cristo e os mesmos Cristãos depois debem-aventura<strong>do</strong>s por toda a eternidade no Céu; mas nem por isso há-de deixar deter na Terra a grandeza que nestes textos lhe é profetizada e prometida, antes arazão de haver de ter tanta grandeza no Céu, é porque a terá primeiro na Terra, noCéu consumada e perfeitíssima, como se deve ao esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Céu. Desta maneira seconcilia e concorda facilmente a opinião de Tertuliano e Te<strong>do</strong>reto com a verdade danossa; este é o mais ordinário sentir de to<strong>do</strong>s os expositores de Daniel, os quaisdizem que este Reino e Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há-de ser incoa<strong>do</strong> na Terra e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 103 de 16927/08/2011consuma<strong>do</strong> no Céu, mas com tanta discrepância de tempos, como veremos em seulugar, que agora só trataremos qual seja em comum o deste Império.Os termos da segunda visão de Daniel ainda são (se podem ser) mais evidentes.Regnum autem et potestas et magnitu<strong>do</strong> regni, quæ est subter omne cælum, deturpopulo sanctorurn Altissimi. «0 Reino ou Império que se há-de dar ao povo <strong>do</strong>sSantos <strong>do</strong> Altíssimo, que são os Cristãos, é o poder e grandeza de to<strong>do</strong>s os reinosque há debaixo <strong>do</strong> Céu.»Podia-se dizer cousa mais clara? Parece que estava anteven<strong>do</strong> Daniel que havia dehaver quem interpretasse esta sua visão em diferente senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que ele a escrevia,dizen<strong>do</strong> que este Reino havia de ser no Céu e não na Terra, pois posto se entenda esaiba que não é assim, adverte e nota sinaladamente o Profeta que não é Reino <strong>do</strong>Céu, senão de debaixo <strong>do</strong> Céu: magnitu<strong>do</strong> regni, que est subter omne cælum, deturpopulo sanctorum Altissimi.Nas palavras que se seguem a estas declara mais em particular Danie1 (ou o Anjopor ele) quem hão-de ser os súbditos deste Império, e diz em nova confirmação <strong>do</strong>que dizemos, que serão to<strong>do</strong>s os reis <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, os quais o hão-de servir e lhe hãodeobedecer: et omnes reges servient ei et obedient.Se os reis hão-de servir e obedecer a este Império, bem se colhe que há-de serImpério da Terra e não <strong>do</strong> Céu, porque no Céu não se serve, nem se obedece, nemse merece, e só se goza o prêmio <strong>do</strong> que se obedeceu, <strong>do</strong> que se serviu e <strong>do</strong> que semereceu na Terra. Da Terra é logo este Império, e na Terra é que há-de ser servi<strong>do</strong> eobedeci<strong>do</strong> e reconhecida de to<strong>do</strong>s os reis dela, como bem advertiu Cornélio,comentan<strong>do</strong> as palavras subter omne cælum, pouco atrás citadas: Non quæ estsuper, sed quæ est subter omne cælum, id est in omni terra, sive in omni plaga cælosubjecta.Responder aos seus argumentos é igualmente fácil. Ao de Teo<strong>do</strong>reto dizemos que otexto de Daniel só fala das quatro monarquias representadas nos quatro metais daestátua, as quais nem cada uma por si nem todas juntas compreenderão nunca todaa grandeza da Terra; e quan<strong>do</strong> se diz que ficaram desfeitas em pó e desapareceram,e foram voadas <strong>do</strong> vento, e não se achou mais o lugar onde estivessem, não querdizer que as terras, cidade e gentes das ditas monarquias se haviam de acabar eextinguir totalmente (como há-de acontecer a to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> no Dia de Juízo) senãoque havia de se acabar seu man<strong>do</strong>, seu poder, seu império, sua soberania, comoverdadeiramente se acabou a <strong>do</strong>s Assírios pela sucessão <strong>do</strong>s Persas, e a <strong>do</strong>s Persaspela sucessão <strong>do</strong>s Gregos, e a <strong>do</strong>s Gregos pela sucessão <strong>do</strong>s Romanos e se acabarátambém a <strong>do</strong>s Romanos pela sucessão <strong>do</strong> Quinto Império. E isto quer dizer em fraseda Escritura - non inventus est locus ejus-que «se não achou mais o seu lugar»,porque sucederam outros nele, como se vê no exemplo de Judas, de quem fala aEscritura pelos mesmos termos, e consta que sucedeu em seu lugar S. Matias.Ao argumento de Tertuliano que se fundava na eternidade <strong>do</strong> Quinto Império, játemos dito que a continuação dele no Céu há-de ser verdadeiramente eterna em todaa propriedade e largueza da significação desta palavra. Mas se entendermos o textode Daniel da duração somente que o Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há de ser nesteMun<strong>do</strong>, pela palavra eternidade não se entende rigorosamente duração sem fim,senão continuação e permanência de muito tempo, que depois veremos quanto há-deser. Entretanto basta saber-se que a palavra eterno tem este mesmo senti<strong>do</strong> elimitação em muitos lugares da Escritura, como notou S. Agostinho na Questão 3I. asobre o Gênesis, e mostraremos mais largamente quan<strong>do</strong> escrevermos a duração <strong>do</strong>Quinto Império.Mas para que tiremos to<strong>do</strong> o escrúpulo aos outros razão será não passe semsatisfação uma grande dúvida que, por ser fundada nas mesmas palavras <strong>do</strong> texto deDaniel, não só pode embaraçar a verdade da nossa sentença, mas confirmar nacontrária os autores e segui<strong>do</strong>res dela. Aspiciebam (diz Daniel na segunda visão)<strong>do</strong>nec throni positi sunt, et Antiquus dierum sedit vestimentum ejus candidum quasinix, et capilli captis ejus quasi lana munda; thronus ejus flammæ ignis rotæ ejusignis accensus, Fluvius igneus, rapidusque egrediebatur a facie ejus. Millia milliumministrabant ei, et decies millies centena millia assistebant ei; judicium sedit et libriaperti sunt, etc. E estas palavras por todas as circunstâncias <strong>do</strong> trono, <strong>do</strong> fogo, daassistência <strong>do</strong>s anjos, <strong>do</strong>s livros que se abriram e <strong>do</strong> mesmo nome de juízo, não só


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 104 de 16927/08/2011parece que significam, senão que estão demonstran<strong>do</strong> o vigor e majestade <strong>do</strong> juízofinal, e assim o entendem mais ordinariamente os expositores desta visão. Logo, se oReino e Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos há-de ser depois <strong>do</strong> juízo final, claramentese convence que ano é nem há-de ser Império desde Mun<strong>do</strong>, senão <strong>do</strong> outro.Respon<strong>do</strong> que é certo falar neste lugar o Profeta de juízo, e juízo de Deus, e juízorigoroso e de grande majestade, mas digo com a mesma certeza que este juízo não éo juízo final, em que Cristo há-de vir julgar os vivos e os mortos no fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>,senão um juízo particular, em que o Padre Eterno há-de tirar o Reino e Impériouniversal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> ao tirano ou tiranos que então o possuírem, e para meter deposse e o entregar a Cristo, seu filho, como legitimo senhor e herdeiro dele, e aosprofessores de sua fé e obediência, que são os Cristãos. CAPÍTULO III Se esteImpério de Cristo no Mun<strong>do</strong> é espiritual ou temporalAssenta<strong>do</strong>, como acabamos de resolver, que este Império de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos, deque falam as profecias alegadas, é principalmente o da Terra e não o <strong>do</strong> Céu, aindanesta suposição nos resta averiguar um ponto de grande importância e de cujadecisão depende o maior fundamento de to<strong>do</strong> este nosso discurso. Porque esteImpério de Cristo, que dizemos há de ser na Terra, ou pode ser espiritual outemporal. espiritual como o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo poder e jurdição seordena a governar os fiéis membros e súbditos da Igreja, a conseguir a bemaventurança,que é o último fim <strong>do</strong> homem; temporal, como o que têm os príncipescatólicos sobre os seus reinos e províncias, que se dirige a governar os vassalos pormeio de leis prudentes e justas, que é o fim particular de todas as comunidadeshumanas, <strong>do</strong>s Cristãos católicos, em quanto este fim particular e mediato se ordenaao último fim.Isto posto, perguntamos agora se este Império de Cristo há-de ser espiritual outemporal; e começan<strong>do</strong> pela conclusão em que não há resistência nem dificuldade,diremos primeiramente que este Império de Cristo (o qual não há-de ser diferente <strong>do</strong>que hoje é, senão ,quanto ao mo<strong>do</strong> como em seu lugar veremos) é império espiritual.Assim o ensinam e ensinaram sempre conformemente to<strong>do</strong>s os Padres e Doutores daIgreja, to<strong>do</strong>s os teólogos antigos e modernos, e to<strong>do</strong>s os expositores de ambos osTestamentos, e se demonstra com o mesmo mistério da Encarnação e fim com queCristo veio ao Mun<strong>do</strong>, e com a <strong>do</strong>utrina e acções de sua vida e morte.Porque, se perguntarmos aos Evangelistas (deixan<strong>do</strong> o testemunho das outrasEscrituras) que fez Cristo e que ensinou com a palavra e com o exemplo, desde o diaem que nasceu até à hora em que expirou na cruz, dir-nos-ão que veio ensinar aoshomens a ciência da saúde e salvação; que veio ser luz <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e alumiar os quevêm a ele; que veio lançar fogo na terra, para que se acendesse nela a claridade quetão apagada estava; que veio encher e informar a lei e animar a letra com o espírito;que veio vencer o demônio e lançá-lo <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, onde reinava e se intitulavapríncipe; que veio apartar os pais <strong>do</strong>s filhos e os filhos <strong>do</strong>s pais, para que a graçaprevalecesse contra a natureza e o amor de Deus pudesse mais que o <strong>do</strong> sangue;que ensinou o desprezo das riquezas, os interesses da esmola, o perdão das injúrias,a verdadeira amizade com os inimigos, a virtude da humildade e a da castidade, umanão usada, outra não conhecida no Mun<strong>do</strong>, que pregou o Reino <strong>do</strong> Céu, a eternidade<strong>do</strong> Inferno, o rigor <strong>do</strong> juízo, o preço e imortalidade da alma; finalmente que abriusete fontes de graça e ou que instituiu sete sacramentos perpétuos e ficou Eleconosco perpetuamente em sacramento; que nos lavou com o seu sangue, quemorreu por nós, e que nos deixou o seu amor e o nosso contentamento.Sen<strong>do</strong> pois estas as ações daquele Senhor a quem antes de vir ao Mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s osprofetas chamaram Pai, e em seu nascimento foi aclama<strong>do</strong> Rei e em sua morteintitula<strong>do</strong> Rei; e sen<strong>do</strong> todas elas ordenadas só à salvação e perfeição <strong>do</strong>s homens edirigidas e encaminhadas ao Céu, cujo reino lhes pregou e prometeu sempre, eestan<strong>do</strong> até aquele tempo fecha<strong>do</strong>, lho abriu e mereceu com seu sangue; que maiorsentimento se pode desejar, nem que maior demonstração ou evidência de ser oReino e Império deste santíssimo e soberaníssimo Rei, Reino e Império espiritual?Foi Reino e Império espiritual no fim e causas de sua instituição, espiritual nas leis,espiritual no governo, espiritual no uso, nas execuções e no exercício; e suposto quedizemos há-de ser sempre o mesmo (nem é decente nem seria crível outra cousa),em qualquer tempo futuro será e há-de ser também espiritual.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 105 de 16927/08/2011Não alegamos aos autores desta <strong>do</strong>utrina, assim por serem to<strong>do</strong>s, como dissemos,como porque alegaremos muitos no capítulo seguinte. CAPÍTULO IVExamina-se se o Reino e Império de Cristo é também temporal. Refere-se a opiniãonegativaO império e <strong>do</strong>mínio temporal é certo que de sua natureza não exclui nem implicacom o temporal, de mo<strong>do</strong> que um outro <strong>do</strong>mínio bem pode sem repugnância algumaconvir e ajustar-se no mesmo sujeito. Assim vemos que o Sumo Pontífice, ten<strong>do</strong> o<strong>do</strong>mínio espiritual de toda a Igreja, é também senhor e príncipe temporal <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>que chamam eclesiástico; em Alemanha, três <strong>do</strong>s eleitores <strong>do</strong> Império são príncipeseclesiásticos e senhores temporais de seus esta<strong>do</strong>s; e no nosso reino, o Arcebispoprimaz é juntamente Bispo e Senhor de Braga.Suposto pois que o Reino e Império de Cristo seja espiritual, como acabamos deresolver, resta examinar agora se é também império temporal. Muitos e gravesteólogos seguem de tal maneira a parte negativa que exclui totalmente <strong>do</strong> Império deCristo toda a jurdição, poder e <strong>do</strong>mínio temporal, e somente lhe concedem ouadmitem nele o puramente espiritual; bem assim como aquele que os príncipeseclesiásticos têm sobre suas igrejas ou ovelhas (posto que por mo<strong>do</strong> mais sublime eexcelente) mas de nenhum como aquele que os senhores e príncipes seculares têmsobre seus esta<strong>do</strong>s e vassalos.Fundam primeiramente esta sua sentença em muitos lugares da Escritura eparticularmente em to<strong>do</strong>s aqueles com que no capítulo passa<strong>do</strong> mostramos o seunome e título de Rei, que os Profetas davam a Cristo; e notam bem advertida e<strong>do</strong>utamente estes autores que todas as vezes que os textos da Escritura Sagradafalam no Reino, Império, <strong>do</strong>mínio, poder ou principa<strong>do</strong> de Cristo, sempreacrescentam alguma explicação ou limitação com que o nome geral de Rei e Senhorse distinga ou aliene da significação de poder temporal, e se limite, estreite edetermine ao espiritual somente.No Salmo II chama David a Cristo Rei constituí<strong>do</strong> por Deus - Ego autem constitutussum rex ab eo; mas logo limita a significação <strong>do</strong> ofício ou dignidade, dizen<strong>do</strong> quepara pregar seus preceitos-praedicans praeceptum ejus. No Salmo XLIV descreve omesmo Profeta as prosperidades e progressos <strong>do</strong> Reino de Cristo: ...intende,prospere procede et regna; mas logo declara o gênero de armas, todas espirituais,com que há-de conquistar o Mun<strong>do</strong>: Propter veritatem et mansuetudinem etjustitiam , et deducet te mirabiliter dextera tua. Isaias, no capítulo IX, anuncia omesmo Reino de Cristo e sua perpetuidade: ...super solium David et super regnumejus sedebit in eternum; mas logo aponta os fundamentos espirituais também, deque lhe háde vir a firmeza: ut confirmet illud et corroboret in judicio et justitia.Jeremias, no capítulo XXIII, celebra o Reino e sabe<strong>do</strong>ria de Cristo Rei: ...regnabit rexet sapiens erit; mas logo determina os efeitos dessa sabe<strong>do</strong>ria que hão-de serencaminha<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s à salvação: In diebus illis salvabitur Juda. Zacarias no capítuloIX descreve o triunfo de Cristo aclama<strong>do</strong> por rei na entrada de Jerusalém: Ecce Rextuus veniet tibi; mas logo lhe chama rei e salva<strong>do</strong>r justo, pobre e humilde: Justus etsalvator, ipse pauper et ascendens super asinam. Finalmente, o mesmo Cristo »—confessan<strong>do</strong> a Pilatos que era rei »— Tu dicis quia rex sum ego - acrescentou logoque o seu Reino era para dar testemunho da verdade ao Mun<strong>do</strong>: Ego in hoc veni inmundum ut testimonium perhibeam veritati. E depois de ressuscita<strong>do</strong>, declaran<strong>do</strong> aosApóstolos com a maior majestade de palavras que podia ser a grandeza de seuimpério, <strong>do</strong>mínio e potestade-Data est mihi omnis potestas in Cælo in Terra-aconseqüência que tirou deste poder tão universal foi: Euntes in mundum universumprædicantes Evangelium omni creaturæ; qui crediderit et baptizatus fuerit, salvuserit: fé, batismo e salvação <strong>do</strong>s homens. Segue-se logo que o Reino e Império deCristo é espiritual somente, e de nenhum mo<strong>do</strong> temporal. Sobretu<strong>do</strong> está por estaparte aquele claríssimo oráculo de Cristo: Regnum meum non est hoc mun<strong>do</strong> - o meuReino não é deste Mun<strong>do</strong>, das quais palavras podemos dizer: Quid adhuc egemustestibus?A eficácia destes textos se acrescenta a de muitas razões e argumentos, entre osquais porventura não é o que tem granjea<strong>do</strong> menos votos a esta opinião erradaaquela palavra temporal, a qual, construída com o Império de Cristo e pronunciadaaos ouvi<strong>do</strong>s mais religiosos e espirituais, parece que traz consigo alguma dureza edissonância, por não dizer indecência.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 106 de 16927/08/2011De que servia a Cristo (dizem) o nome ou jurdição de Rei temporal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, se elevinha como vimos a confundir com seu exemplo o mesmo Mun<strong>do</strong>, os mesmos reis eas mesmas temporalidades? Se a perfeição cristã que Cristo veio ensinar aos homensconsistia em deixar tu<strong>do</strong> e seguir em pobreza e humildade a Cristo pobre e humilde,como dizia com esta renunciação de to<strong>do</strong>s os bens, honras e haveres <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, o<strong>do</strong>mínio, o império, a majestade de to<strong>do</strong> ele? E se esta majestade, este império eeste <strong>do</strong>mínio não havia de ter (como nunca teve com Cristo) uso ou exercício público,e havia de estar sempre oculto e encoberto aos homens, não seria maior autoridade,maior exemplo e ainda maior circunstância de perfeição saber-se que o renunciaraCristo, poden<strong>do</strong> tê-lo, que dizer-se que o tivera e conservara, e ainda que o pedira,como alguns dizem? Com que liberdade ou com que confiança havia de aconselhar oumandar Cristo a certo mancebo que, se queria ser perfeito, deixasse o <strong>do</strong>mínio dassuas herdades, se no mesmo tempo o mestre desta perfeição retivesse o <strong>do</strong>mínio detoda a Terra? Para que se há-de admitir logo o nome deste Império temporal emCristo; se nem para o decoro da pessoa, nem para o fim <strong>do</strong> ofício, nem para oexemplo da <strong>do</strong>utrina era necessário, e para o exercício e uso que nunca teverealmente inútil e ocioso?Estas razões ou admirações, que não são muitas vezes as que menos persuadem, sefecham e apertam eficazmente com um discurso fundi<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os princípiosgerais de direito, com que parece aos autores desta sentença que não sóestabelecem de to<strong>do</strong> a certeza dela, mas que convencem e desfazem a probabilidadede qualquer outra. Argumentam ou decorrem assim:Se Cristo foi Rei temporal, ou foi Rei por direito natural, ou por direito divino, ou pordireito humano. Por direito natural não, porque Cristo não era filho nem herdeiro derei; e da<strong>do</strong> que fosse legítimo sucessor <strong>do</strong> Reino de Israel, como dizem menosprovavelmente alguns autores, a herança de um reino particular não lhe dava direitopara o império de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Por direito divino também não, porque, se houveratal direito, constara pelas Escrituras, e posto que muitos textos da Escritura falem deCristo como Rei e lhe dêem o nome e título de Rei, to<strong>do</strong>s, como vimos, se entendem<strong>do</strong> Reino espiritual ou celeste, e quan<strong>do</strong> menos se podem interpretar assim, sem nosobrigarem a que os entendamos <strong>do</strong> Reino ou Império temporal. Finalmente, pordireito humano não, porque a jurdição de fazer ou eleger rei está na comunidade <strong>do</strong>shomens; e para Cristo ser respectivamente Rei universal de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> por estavia, era necessário que to<strong>do</strong>s os homens e comunidades <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> se unissem emum consentimento, com que o elegessem por Rei e Senhor de todas, o que nuncahouve, antes sabemos que os príncipes e povo de Judeia, que era a terra onde Cristovivia, se conjuraram contra ele e lhe tiraram a vida, só porque não tomasse o nomede Rei; e que o mesmo Senhor, na ocasião em que alguns deles lho quiseram dar,fugiu deles e <strong>do</strong> mesmo título, e se escondeu em um monte para escapar daquelaviolência. Logo se não foi Rei temporal, nem por sucessão natural, nem por eleiçãohumana, nem ,por <strong>do</strong>ação ou nomeação divina, bem se conclui que o Reino e Impériode Cristo, tão celebra<strong>do</strong> nas Escrituras, de nenhum mo<strong>do</strong> foi nem pode ser temporal,se não espiritual e somente qual acima dissemos.Os Padres que isto disseram e seguiram querem alguns que sejam to<strong>do</strong>s. Ao menosconfessa Vasques que da <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong>s Padres não se pode convencer o contrário. Oprimeiro que se alega é Santo Agostinho em muitos lugares, entre os quais o maisclaro (ou o que parece) é este: Populi personam figurate gerebat homo ille, scilicetSaul; qui populus regnum fuerat amissurus Christo Domino nostro per NovumTestamentum, non carnaliter sed spiritualiter regnaturo. Nenhum <strong>do</strong>s outros Padresfala em termos de tanta expressão, mas alegam-se e podem-se alegar no mesmosenti<strong>do</strong> S. Ambrósio, S. Atanásio, S. João Crisóstomo, Tertuliano, Teófilo e outros, ediz o <strong>do</strong>utíssimo Mal<strong>do</strong>na<strong>do</strong> que esta é a sentença comum <strong>do</strong>s melhores teólogos queassim o disseram. O <strong>do</strong>uto leitor julgará se são os melhores. E são estes: Hermas,Letmatio, Drie<strong>do</strong>, Castro, Bertolameu de Medina, Jansénio, Vitória, Adrião Fino, JoãoParisiense, Francisco de Cristo, Melchior Flávio; e posto que também se citem poresta ,parte Soto, Abulense e Waldense, falam, por termos tão indiferentes, queVasques os alega (e diz que assim se devem alegar) pela parte contrária.Advirta-se, porém, para crédito de Mal<strong>do</strong>na<strong>do</strong> e nosso, que os teólogos que hoje têmmaior fama nas escolas, quan<strong>do</strong> ele escreveu, ainda não tinham escrito.CAPÍTULO V Propõe-se e defende-se a opinião afirmativa


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 107 de 16927/08/2011Se escrevêramos menos há de cem anos, porventura que não puséramos aqui tãoconfiadamente este capitulo. Mas, como disse S. Gregório, e antes dele Sábio, quantoa Igreja mais cresce, mais se alumia, e o que nos tempos passa<strong>do</strong>s é duvi<strong>do</strong>so, nosfuturos se sabe, a opinião <strong>do</strong> Reino temporal de Cristo e da Conceição imaculada desua Mãe se acompanharam no mesmo tempo na mesma fortuna, e ambas ao fim, senão têm ainda triunfa<strong>do</strong>, já têm venci<strong>do</strong> Mitigou-se com os dias e com a consideraçãoo horror daquele nome temporal; acabou-se de conhecer que com e1e se não davamarmas, antes se tiravam ,aos inimigos (porque também na Teologia se deveentender: Omnia dat qui justa negat); sucederam àqueles teólogos de grande espíritooutros de grandes espíritos, e resolveu-se que não eram menos espirituais os queadmitiam no Império de Cristo o nome de temporal.Nem sempre é maior espiritualidade o que mais opõem ao corpo. Os Origenistaschamavam por escárnio pelusiotas aos que seguem a fé de que to<strong>do</strong>s havemos deressuscitar em nossos corpos, parecen<strong>do</strong>-lhes cousa indigna, e muito contra o decoroda bem-aventurança, que houvessem de aparecer diante de Deus as nossas almascom vesti<strong>do</strong>s tão indecentes como são os corpos; e diz S. Jerônimo, com outrasgalantarias, que não eram os que pior tratavam seus corpos os que isto diziam. Nãofazem menos santo a Cristo, nem querem fazer menos espiritual o Mun<strong>do</strong>, os quereconhecem em Cristo o <strong>do</strong>mínio temporal dele. Porventura ofende a Deus, emquanto Deus, o ser senhor e cria<strong>do</strong>r de todas as cousas corporais, e o ter em suaprópria essência eminentemente as idéias de todas elas? Antes deixava de ser Deus,se assim não fora. Pois o <strong>do</strong>mínio soberano, que é perfeição em Deus Deus (digamoloassim), porque há-de ser menos decência em Deus Homem?Quan<strong>do</strong> chamamos Império temporal ao de Cristo, não queremos dizer que é o seuImpério sujeito às mudanças e inconstâncias <strong>do</strong> tempo, nem que receba a grandeza emajestade da pompa e aparato vão das cousas exteriores <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, a que o mesmoMun<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> fala com mais siso chama com razão temporalidades; e isto é só o quenegam as Escrituras, isto o que não admitem os Padres, e isto o que explicou omesmo Cristo, quan<strong>do</strong> disse: Regnum meum non est de hoc mun<strong>do</strong>.O Império que dão ou reconhecem em Cristo os que admitem e veneram nele o nomede temporal, é um <strong>do</strong>mínio soberano e supremo sobre to<strong>do</strong>s os homens, sobre to<strong>do</strong>sos reis, sobre todas as cousas criadas, com poder de dispor delas a seu arbítrio,dan<strong>do</strong> e tiran<strong>do</strong> reinos, fazen<strong>do</strong> e desfazen<strong>do</strong> leis castigan<strong>do</strong> e premian<strong>do</strong>, comjurdição tão própria e direta sobre to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> como a que os reis particulares têmsobre seus vassalos e reinos, antes com muito maior, mais perfeito e mais excelente<strong>do</strong>mínio, não dependente como eles das criaturas, mas absoluto soberano, sublime eindependente de to<strong>do</strong>s.Os teólogos que isto assentam por conclusão é S. Tomás, Soares, Vasques, e bastavater escrito estes três grandes nomes, para dar por provada e acreditada com o Mun<strong>do</strong>uma verdade tão necessária e importante como depois veremos. Seguem a estes trêslumes outros muitos que o puderam ser da Telogia, se eles não foram diante. OCardeal Tole<strong>do</strong>, o Cardeal Lugo, Molina, Valença, Salazar, Hurta<strong>do</strong> Arriaga, Arnico,Peres, Verga, Caspense, Carçosa, Lacerda, Justiniano, Cornelio, Ludòvico Tena, e os<strong>do</strong>is Men<strong>do</strong>nças insignes de Portugal e Castela, <strong>do</strong>s quais este último já no ano de1586, na Universidade de Salamanca, onde era catedrático de Scoto, excitou edefendeu galhardamente esta questão nos termos seguintes, que por serem tãoparticulares os quero referir aqui:Verum Jesus Christus Deus ac Salvator noster fuerit vere ac proprie Dominus et Rextotius Orbis, atque omnium rerurm creatarum, secundum quod homo est, non tantumspiritualis rex ac <strong>do</strong>minus, sed et verus ac absolutus et proprius, atque adeotenporalis: tam vere et proprie quam Philippus 2 dus temporis rex est Hispaniarum, etunusquisque hominum <strong>do</strong>minus est suarum rerum, eo quod i11is in omnem usumpotest citra alicujus injuriam uti.Este é o senti<strong>do</strong> em que falam com pouca diferença de palavras to<strong>do</strong>s os teólogosreferi<strong>do</strong>s, como se pode ver nos lugares cita<strong>do</strong>s à margem, antes <strong>do</strong>s quais tinhamsegui<strong>do</strong> e ensina<strong>do</strong> a mesma <strong>do</strong>utrina Santo Antonino, Duran<strong>do</strong>, Almaino e os três jánomea<strong>do</strong>s Abulense, Scoto, Waldense, a que podemos ajuntar muitos juristas degrande nome, como o Cardeal Turrecremata, o Cardeal Hostiense, Navarro, Bacónio eoutros.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 108 de 16927/08/2011E para que demonstremos a verdade desta nossa crença, e <strong>do</strong> império temporal deCristo, pelos mesmos princípios e fundamentos da opinião contrária, e os vamosjuntamente impugnan<strong>do</strong> e desfazen<strong>do</strong>, seja o primeiro o testemunho das mesmasEscrituras alegadas, em que Cristo tão repetida e expressamente é chama<strong>do</strong> Rei porboca de to<strong>do</strong>s os Profetas antigos. A que podemos acrescentar o <strong>do</strong> maior Profeta daLei da Graça, S. João Evangelista, em <strong>do</strong>is lugares <strong>do</strong> Apocalipse, em que chama aCristo Príncipe <strong>do</strong>s reis da Terra e Rei <strong>do</strong>s reis e Senhor <strong>do</strong>s senhores, no capítulo I,Princeps regnum terrae, e no capítulo XIX, Rex regnum et Dominus <strong>do</strong>minantium. Osquais textos e to<strong>do</strong>s os mais se não podem entender própria e naturalmente senão<strong>do</strong> Reino temporal de Cristo, porque o contrário devia fazer manifesta violência àsignificação da palavra Rei, a qual em toda a Escritura Sagrada significa Reitemporal; e se é regra certa, como ensina S. Agostinho, que as palavras da SagradaEscritura se não hão-de interpretar em senti<strong>do</strong> metafórico e figurativo, senãoquan<strong>do</strong>, se se entenderem na sua significação própria e natural, se seguisse algumgrande inconveniente ou absur<strong>do</strong> contra a <strong>do</strong>utrina da mesma Escritura recebida pelaIgreja, os mesmos nomes de Rei e Reino, tantas vezes celebra<strong>do</strong>s e canta<strong>do</strong>s pelosProfetas, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Império de Cristo, nos obrigam a conceder e confessar que emtoda sua propriedade significam Rei e Reino temporal, pois se não segue de assim oentendermos inconveniente algum ou dissidência contra aquela grandeza emajestade de Cristo, antes muita honra, glória e autoridade, sua e da Igreja, comoneste capítulo se irá ven<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> respondermos a estas leves objeções da partecontrária.A esta confirmação geral da significação da palavra Rei acrescenta o Padre Soaresoutra, que é própria da pessoa de Cristo, e que eficazmente convence o senti<strong>do</strong> emque se deve tomar a mesma palavra. Porque o Reino espiritual de Cristo se distingue<strong>do</strong> Sacerdócio <strong>do</strong> mesmo Cristo, e consta das Sagradas Escrituras, como prova S.Agostinho no Trata<strong>do</strong> XXII sobre S. João, e nós mostraremos largamente no capítuloseguinte, que o Reino e o Sacerdócio em Cristo são dignidades e jurdições distintas.Logo, se o nome de Supremo Sacer<strong>do</strong>te significa o Reino e Império espiritual, segueseque o de Supremo Rei significa o temporal.Finalmente, o mesmo Cristo, antes de subir ao Céu, deixou dito e publica<strong>do</strong> ao Mun<strong>do</strong>que seu Eterno Pai lhe tinha da<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o poder no Céu e na Terra: Data est mihiomnis potestas in Cælo et in Terra. E quem diz to<strong>do</strong>, seguin<strong>do</strong> as regras <strong>do</strong> direito,nenhuma cousa exclui. Teve logo Cristo o império espiritual, que é o que maispropriamente se chama império no Céu, e teve juntamente o império temporal, que éo que com toda a propriedade se chama império na Terra, porque de outra maneirase não de dizer nem entender, sem manifesta implicação, que tivesse ou tenha Cristoto<strong>do</strong> o poder, pois lhe faltaria nesse caso o poder temporal, que é uma tão grandeparte desse to<strong>do</strong>.Estes são os textos mais eficazes e expressos com que os teólogos costumam provara verdade <strong>do</strong> Império temporal de Cristo. E posto que baste cada um deles, toma<strong>do</strong>na propriedade e natureza de sua significação, para ,persuadir facilmente a qualquerentendimento fácil e dócil, nós, para maior demonstração da mesma verdade, semsair das mesmas profecias e textos fundamentais desta história, não só esperamosde a confirmar eficazmente na mesma certeza, mas de lhe acrescentar com a novaluz deles nova evidência.E, começan<strong>do</strong> pela profecia de Zacarias, já vimos que a coroação de Jesus, filho deJosedec significa a dignidade suprema <strong>do</strong> Império de Cristo. Agora pergunto porquefoi coroa<strong>do</strong> não com uma senão com duas coroas, e porque uma delas foi de prata eoutra de ouro?A razão, não mística senão literal, dizem comummente os expositores que foi porqueCristo não teve uma só coroa, senão duas: uma como Supremo Sacer<strong>do</strong>te, quepertencia ao Império espiritual; e outra como Supremo Rei, que pertencia aotemporal. E por isso não eram ambas de ouro, ou ambas de prata, senão uma deprata e outra de ouro, para significar a diferença e preço daqueles <strong>do</strong>is impérios oujurdições; e que o império espiritual significa<strong>do</strong> no ouro era mais alto, mais preciosoe mais sublime que o império temporal.E quanto ao império temporal, em que só podia haver dúvida, que maior prova sepodia desejar que a da estátua de Nabuco, cujos metais desfez a pedra em pó e emcinza? Porque, se é certo (como é de fé) que aqueles quatro metais significavam


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 109 de 16927/08/2011quatro impérios sucessivos, e impérios verdadeiramente temporais, bem se segueque a pedra que os derrubou e desfez, figura <strong>do</strong> Reino e Império de Cristo, não sósignifica Império espiritual, senão também temporal, porque só impérios temporaisse derrubam, arruínam e desfazem uns aos outros, o que não faz nem pode fazer oImpério espiritual.Para um império derrubar e desfazer a outro, é necessário que tenha oposição econtrariedade com ele acerca das mesmas cousas, e esta oposição e contrariedade sóse acha nos impérios temporais entre si, e não entre o império espiritual e temporal,como bem tem mostra<strong>do</strong> a experiência no mesmo Império espiritual de Cristo, oqual, depois de comunica<strong>do</strong> a seus vigários os Sumos Pontífices, não desfez osimpérios e reinos <strong>do</strong>s príncipes temporais, antes aju<strong>do</strong>u muito e se aju<strong>do</strong>u de seusaumentos, crescen<strong>do</strong> e estabelecen<strong>do</strong>-se mais a grandeza e majestade da Igreja e<strong>do</strong>s Pontífices, quanto mais se estabelecia e crescia a <strong>do</strong>s Impera<strong>do</strong>res. E este foi oerro, ignorância e engano de que sempre os fiéis notaram e motejaram a Herodes,cantan<strong>do</strong> sobre sua loucura por boca da Igreja: Crudelis Herodes, Deum regemvenire quid times? non eritit mortalia qui Regna dat cælestia? sen<strong>do</strong> pois certo que oReino e Império de Cristo derrubou ou há-de derrubar to<strong>do</strong>s os impérios <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>,que são impérios verdadeiramente temporais, e não espirituais, ocupan<strong>do</strong> eenchen<strong>do</strong> toda a Terra, <strong>do</strong>nde eles antes estiveram, como expressamente se colheque o império de Cristo não é só espiritual, senão temporal!E tu<strong>do</strong> isto se verá mais claramente, quan<strong>do</strong> adiante explicarmos o tempo da ruínadesta estátua e outras circunstâncias dela. Nem menos se confirma a mesma verdadecom a segunda visão de Daniel (Daniel VII) na qual lemos que, para Deus dar oImpério ao Filho <strong>do</strong> Homem, man<strong>do</strong>u primeiro queimar a quarta besta das vintepontas, em que era significa<strong>do</strong> o Império Romano, e to<strong>do</strong>s os reinos temporais quedela nasceram, o que de nenhuma maneira era necessário se o Reino e Império deCristo fora somente espiritual, pois vemos que reinou antigamente Cristoespiritualmente em to<strong>do</strong> o Império Romano, e reina também hoje espiritualmente emto<strong>do</strong>s os reinos que <strong>do</strong> mesmo Império Romano nasceram e se dividiram, econservam o nome de cristãos, e nem por isso deixam de ter o mesmo <strong>do</strong>mínio esoberania temporal que, antes de receberem a sujeição de Cristo, tiveram. Segue-selogo com evidência que o Império de Cristo, que lhes há-de tirar essa soberaniatemporal, não é ou há-de ser o Império espiritual de Cristo, a que eles já estãosujeitos, senão o Império temporal, como melhor se entenderá pelo discurso de tu<strong>do</strong>o que diremos.Finalmente, como consta <strong>do</strong> mesmo texto de Daniel, o império <strong>do</strong> Filho <strong>do</strong> Homem oude Cristo naquela visão é o mesmo Império universal que hão-de ter os Cristãos naTerra, no qual Império hão-de entrar e ser encorpora<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os reis e reinos <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>. Como se pode logo duvidar que este imenso e portentoso Império, compostode to<strong>do</strong>s os impérios, de to<strong>do</strong>s os reinos e de todas as repúblicas temporais, postoque seja espiritual e espiritualíssimo, não haja de ser também temporal? Este é, eeste o Reino e Império de Cristo, tão canta<strong>do</strong> e celebra<strong>do</strong> nos oráculos <strong>do</strong>s Profetas,pelo qual se intitula com toda a propriedade Rex regnum et <strong>do</strong>minus <strong>do</strong>minantium; eassim como a palavra regnum e <strong>do</strong>minantium é sem dúvida que significa reis esenhores temporais, assim a palavra rex e <strong>do</strong>minus significa rei e senhor tambémtemporal, para não admitirmos, com manifesta violência da Escritura e repugnância<strong>do</strong> entendimento, que na mesma sentença e na mesma palavra se varia o senti<strong>do</strong> esuposição dela, e que rex e <strong>do</strong>minus têm uma significação e regnum e <strong>do</strong>minantiumoutra. E se nos lugares da Escritura alega<strong>do</strong>s pelos autores da opinião contrária, e emoutros que também lhes pudéramos ajuntar, parece que o <strong>do</strong>mínio real de Cristo selimita e determina ordinariamente a fins e obras espirituais, de nenhum mo<strong>do</strong> seenfraquece com este indício ou argumento a verdade da nossa sentença, antes comela se confirma e estabelece mais, porque nós não dizemos que o Reino e Império deCristo é espiritual, senão que é espiritual e temporal juntamente, conhecen<strong>do</strong> e ten<strong>do</strong>pela maior excelência deste felicíssimo Reino, que não só em quanto espiritual, senãoainda em quanto temporal, se ordena ao fim último e sobrenatural da bemaventurança,pois esse Reino e não outro é o que há-de ser eterno e glorioso no Céu,como dizem as palavras tão repetidas <strong>do</strong> nosso texto, e isto é ser império de Cristo e<strong>do</strong>s Cristãos; e nisto se distingue <strong>do</strong>s reinos meramente políticos e humanos, porqueestes têm por fim a conservação e felicidade da Terra, e o de Cristo e <strong>do</strong>s Cristãos a<strong>do</strong> Céu.Vin<strong>do</strong> às autoridades (como dizem) <strong>do</strong>s Padres concedemos facilmente que sãopoucos os lugares de seus escritos em que se ache expressamente e em próprios


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 110 de 16927/08/2011termos o Reino temporal de Cristo, como também se não acha o da graça santificante<strong>do</strong> mesmo Cristo, distinta da união hipostática, e outras cousas de igual importânciae dignidade, recebidas entre os teólogos; não porque os santos tivessem diferenteparecer, mas porque em seu tempo não estavam em uso aqueles termos que depoisinventou a Teologia, para maior clareza da <strong>do</strong>utrina escolástica, explican<strong>do</strong> muitosdeles com palavras menos latinas (por não dizer bárbaras) qual é a palavra temporal.Dos quais termos se abstêm ainda hoje os que escrevem com estilo mais poli<strong>do</strong> elevanta<strong>do</strong>, como nos primeiros tempos da Igreja faziam aqueles santíssimos e<strong>do</strong>utíssimos Padres, para convidarem a to<strong>do</strong>s a lerem de boa vontade e com gostoseus escritos, e para que nos livros <strong>do</strong>s autores cristãos se não achasse menos apropriedade e majestade da eloquência que tanto se venera nos escritores gentios.Desta razão, que é geral para muitas matérias, damos por testemunhas os mesmoslivros <strong>do</strong>s Padres, nos quais também se acharam freqüentemente louvadas,inculcadas e persuadidas as virtudes que pertencem ao Reino espiritual de Cristo, nãoporque aqueles santos negassem à universalidade de seu Império o <strong>do</strong>míniotemporal, mas porque deste não quis ter exercício aquele Senhor que era juntamenteSenhor e Mestre, e os principais e maiores exemplos que nos quis deixar foram <strong>do</strong>desprezo dele.Não faltam contu<strong>do</strong> lugares muito ilustres aos Padres, em que falavam <strong>do</strong> Impériotemporal de Cristo com termos Não menos expressos que os que se alegam pelaparte contrária, <strong>do</strong>s quais porei aqui os que bastem a responder a estes e confirmar averdade da nossa.S. Cirilo, explican<strong>do</strong> as palavras de Cristo: Regnum meum non est de hoc mun<strong>do</strong>, noLivro XII sobre S. João, diz assim: Regem se esse non negat, sed regni Cæsaris senon esse hostem ostendit, quia -ejus regnum terrenum non est, sed caeli et terra:,ceterarunque rerum omnium. E S. Agostinho, no Trata<strong>do</strong> XIV sobre o mesmoEvangelista: Erat quidem Rex non talis qualis ab hominibus fit, sed talis ut hominesreges faceret. E S. Gregório, na Homilia VIII, sobre os Evangelhos, ponderan<strong>do</strong> olugar <strong>do</strong> nascimento de Cristo, Não próprio senão alheio:Alienum, diz, non secundumpotestatem sed secundum naturam; nam secundum potestatem in propria venit. Emais claramente que to<strong>do</strong>s S. Bernar<strong>do</strong>, no Livro III De consideratione escreven<strong>do</strong> aoPapa Eugénio: Dispensatio tibi super illum credita est, non data possessio; ...Non tuille de quo Propheta: «Et erit omnis terra possessio ejus?» Christus hic est, quipossessionem sibi vindicat, et jure creaturæ et merito redemptionis et <strong>do</strong>no patris.Cui enim alteri dictum est: «Postula a me, et dabo tibi gentes hæreditatem tuam etpossessionem tuem terminos terræ?»Possessionem et <strong>do</strong>minium cede huic, tu curamilius habe.Outras muitas sentenças semelhantes a estas se vêem em outros Santos Padres damesma e maior antigüidade, como S. Ireneu, no Livro IV, cap. XVII; S. CiprianoAdversus Judaeos cap. XXVI, S. Hilário sobre o Salmo II, v. V; S. Jerônimo, Lib. IV,sobre Jeremias, cap. XXII, e S. Ambrósio no Livro III, sobre S. Lucas. Aos quais comrazão podemos acrescentar to<strong>do</strong>s aqueles autores antigos e modernos que, a títulode Mãe de Cristo, reconhecem e veneram na Virgem, Senhora nossa, o império e<strong>do</strong>mínio de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. O mesmo S. Bernar<strong>do</strong>, no Sermão sobre as palavras <strong>do</strong>Apocalipse - signum: Maria (diz) eo quod mater Dei est, regina cælorum et <strong>do</strong>minamundi jure esse probutur. E S. Atanásio, no Sermão I De nativitate Virginis:Quan<strong>do</strong>quidem Christus rex est qui natus est ex virgine idemque et Dominus etDeus; ea propter et mater quæ eum genuit, et regira <strong>do</strong>mina et deipara proprie etvere censetur. E S. Bernardino de Sena, no Tomo I, Serm. XI, cap. I: Virgobeatissima omnem hujus murdi meruit principatum et regnum, quia filius ejus inprimo instanti suæ conceptionis monarchiam totius promeruit et obtinuit uriversi,sicut Propheta testatur, dicens: «Domini est terra et plenitu<strong>do</strong> ejus, orbis terrarum etuniversi qui habitant in eo».Dos quais lugares to<strong>do</strong>s e muito mais claramente destes últimos se mostra quãoassentada cousa era, e quão sem controvérsia, no sentir comum <strong>do</strong>s Padres, oImpério e Monarquia universal de Cristo, não só quanto ao Reino espiritual e <strong>do</strong> Céu,senão quanto ao temporal e da Terra. E se alguns <strong>do</strong>s mesmos Santos Padres ,principal mente em livro s apologéticos ou trata<strong>do</strong>s, parece que diziam e ensinavam ocontrário (como verdadeiramente parece), deve-se advertir que falavam <strong>do</strong> Reino deCristo, não quanto ao poder, império ou <strong>do</strong>mínio, senão quanto ao aparato, grandezae majestade exterior de rei temporal, o qual os Judeus esperavam e os Gentiosdesejavam em Cristo, os primeiros interpretan<strong>do</strong> erradamente as Escrituras, e os


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 111 de 16927/08/2011segun<strong>do</strong>s fingin<strong>do</strong> as propriedades de Deus humana<strong>do</strong> conforme sua vaidade eapetite, como gente costumada a fazer deuses à sua vontade.E como a controvérsia e disputa daqueles tempos era contra este escândalo <strong>do</strong>sJudeus e contra esta estultícia <strong>do</strong>s Gentios, que são os nomes injuriosos ou gloriososcom que uns e outros afrontavam a cruz e humildade de Cristo, por isso é tãofreqüente nos escritos <strong>do</strong>s Padres a diferença <strong>do</strong> seu Reino aos reinos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, nãonegan<strong>do</strong> a Cristo Rei, como dizíamos, o <strong>do</strong>mínio e império ainda temporal sobre to<strong>do</strong>e1e, mas engrandecen<strong>do</strong> esse mesmo império pelo desprezo da pompa e aparato vãoem que põem os reis da Terra sua grandeza e majestade.Basta, por to<strong>do</strong>s os Padres que pudéramos trazer em comprovação desta nossaadvertência, um lugar de S. João Crisóstomo, em que, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rei que vierama<strong>do</strong>rar a Belém os reis e da diferença humilde de seu esta<strong>do</strong>, diz assimelegantemente:Quonam pacto magi ex stella illa Judaeorum regem illum esse didicerut, cum certenon istius regni ille rex esset... Nihil quippe tale monstravit, quale mundi hujs regeshabere conspicimus. Neque enim hastas, neque clypeatas ostendit militum catervas:non equos regalibus phaleris insignes, non cunas auro ostroque fulgentes; non enimistum neque alium quempiam circa se habuit ornatum, sed vilem hanc prorsus vitamegit ac pauperem: duodecim tantummo<strong>do</strong> homines, eosque despectabiles secumcircumducen<strong>do</strong>.Esse aparato e pompa exterior de riquezas, galas, palácios, cavalos, coches, cria<strong>do</strong>s,exércitos, é o que os Santos negavam no Império de Cristo, e não o império e<strong>do</strong>mínio dele sobre to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, e este é o senti<strong>do</strong> próprio e germano em queCristo disse a Pilatos: Regnum meum non est de hoc mun<strong>do</strong>. Como logo explicou namesma razão que deu <strong>do</strong> que tinha dito: Si ex hoc mun<strong>do</strong> esset regnum meum,ministri utique mei decertarent, ut non traderer Judæis. Onde se deve notar que nãodisse Cristo: Regnum meum non est hujus mundi, senão de hoc mun<strong>do</strong>, porque oReino de Cristo verdadeiramente era deste Mun<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, e só não tinhaos acidentes da vaidade e falsa grandeza com que se sustentam os outros reinos <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>. CAPÍTULO VI Prossegue a mesma matéria, apontam-se os títulos e razões <strong>do</strong>Reino temporal de CristoO principal fundamento <strong>do</strong>s que não admitem no Reino de Cristo o império e <strong>do</strong>míniotemporal, é por não haver título, como eles dizem, ao qual compita e seja devi<strong>do</strong>aquele <strong>do</strong>mínio; e para que se veja manifestamente a debilidade deste fundamento etragamos à nossa sentença os mesmos autores que em seguimento deles abraçam acontrária, apontaremos e provaremos aqui, com a maior brevidade que nos forpossível, os títulos por que é devi<strong>do</strong> e compete a Cristo em quanto homem o Impérioe <strong>do</strong>mínio supremo, não só espiritual, senão também temporal de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Sãoestes títulos seis, to<strong>do</strong>s legítimos e conforme o direito: o primeiro por natureza, osegun<strong>do</strong> por herança, o terceiro por <strong>do</strong>ação, o quarto por compra, o quinto porguerra justa, o sexto por eleição e aceitação de to<strong>do</strong>s os homens, como iremosmostran<strong>do</strong> pela mesma ordem.Primeiramente, é Cristo Rei e universal Monarca <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> por natureza, porque pormeio da união da divindade à humanidade, a qual se inclui essencialmente nanatureza de Cristo, sem algum outro concurso ou condição extrínseca, da parte deDeus nem da parte <strong>do</strong>s homens, pertence ao mesmo Cristo em quanto homem o<strong>do</strong>mínio e império universal de tu<strong>do</strong> o cria<strong>do</strong>, e por ela fica constituí<strong>do</strong>, ou por ela(sem ninguém o constituir) é Rei e Senhor e Monarca supremo de to<strong>do</strong>s os reis, deto<strong>do</strong>s os reinos e de to<strong>do</strong>s os impérios <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Por isso Cristo no Apocalipse traziao título de Rex regnum e Dominus <strong>do</strong>minantium, escrito, como diz o texto, in femore,que significa a geração humana, para mostrar que o ser rei de to<strong>do</strong>s os reis e senhorde to<strong>do</strong>s os senhores lhe convinha e era seu por sua própria natureza. E por isso onome que lhe puseram na circuncisão foi de Jesus, que quer dizer salva<strong>do</strong>r, e não ode Cristo, que quer dizer ungi<strong>do</strong>, porque o ser ungi<strong>do</strong> por Rei e universal Monarca <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> não lhe pertencia por imposição divina ou humana, senão por naturezaprópria sua, ou por ser quem era. Salva<strong>do</strong>r por obediência, mas ungi<strong>do</strong> por natureza.E assim como antigamente se faziam ou consagravam os reis pelo óleo que eramungi<strong>do</strong>s, assim a união hipostática em Cristo foi uma verdadeira e própria unção comque juntamente com o ser e a natureza recebeu o poder e a Monarquia <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 112 de 16927/08/2011Este é o único fundamento <strong>do</strong> Padre Vasques, a quem geralmente seguiram to<strong>do</strong>s osque depois dele escreveram. Do qual Vasques diz Salazar que foi o primeiro a quem aTeologia deve os sóli<strong>do</strong>s e verdadeiros princípios em que fun<strong>do</strong>u o Império temporalde Cristo. E posto que Arriaga, por não faltar ao costume de impugnar tu<strong>do</strong>, nãoreconheceu na unção da união hipostática mais que a propriedade e energia dametáfora, nós veneramos nela a autoridade de David, que assim o disse no SalmoXLIV: Unxit te Deus, Deus tuus, oleo laetitiae pre consortibus tuis e a explicação de S.Agostinho e S. Gregório Nasianzeno, e de outros grandes Padres que. assim oentenderam. Porei suas palavras no capítulo seguinte pelas não repetir duas vezes.O segun<strong>do</strong> título <strong>do</strong> Império de Cristo é por herança, porque, sen<strong>do</strong> Cristo filhonatural de Deus, conforme o texto de S. Paulo — quod si filius et haeres — lhepertence a Cristo o título de herdeiro <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio e império universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, deque Deus é absoluto Senhor. Assim o disse o mesmo Deus por boca <strong>do</strong> Profeta Rei:Postula a me et dabo tibi gentes hæreditatem tuam et possessionem tuam terminosterræ. E S. Paulo, falan<strong>do</strong> também de Cristo: Quem haeredem universorum per quemfecit et sæcula. E o mesmo Cristo, na parábola da vinha: Hic est hæres, venite etoccidamus eum. E neste título convêm to<strong>do</strong>s os teólogos acima alega<strong>do</strong>s, comotambém no seguinte:É o terceiro título, o de <strong>do</strong>ação, o qual se acha mais expresso que to<strong>do</strong>s, assim noVelho como no Novo Testamento, no Salmo pouco antes alega<strong>do</strong>: Dabo tibi genteshæreditatem tuam; e no salmo...: Omni subjecisti sub pedibus ejus; as quaispalavras entende S. Paulo de Cristo, no I capítulo da Epístola aos Hebreus. O Anjo àSenhora, no capítulo II de S. Lucas: Dabit illi <strong>do</strong>minus Deus sedem David patris ejuset regnabit in <strong>do</strong>mo Jacob. S. João, no capítulo III: Sciens quia omnia dedit ei pater inmanus. O mesmo Cristo no capítulo...: Omnia mihi tradita sunt a Patre meo. E nocapítulo...: Data est mihi omnis potestas in cælo et in terra.O título da compra, que é o quarto, parece que cai mais imediatamente sobre oshomens que sobre o Mun<strong>do</strong>, mas ao primeiro <strong>do</strong>mínio se segue necessária enaturalmente o segun<strong>do</strong>, assim como o que é senhor <strong>do</strong> escravo fica juntamentesen<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os seus bens. E é conclusão certa na teologia, e de grande glória nãosó de Cristo mas nossa, que pelo título da Redenção não só ficamos vassalos destesoberaníssimo Monarca, senão verdadeiramente escravos seus, compra<strong>do</strong>s com opreço de seu sangue: empti enim estis pretio magno:O sexto e último título <strong>do</strong> Império de Cristo dizíamos que era por consentimento,aceitação e como eleição de todas as nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Este título é o mais natural ejurídico entre os homens, em cujas comunidades, quan<strong>do</strong> querem viver juntos epoliticamente, pôs Deus, como autor da natureza, o poder e jurdição suprema deeleger e nomear príncipe. Assim o tem a comum sentença de to<strong>do</strong>s os juristasteólogos, e o alcançaram e ensinaram antes deles, por lume natural, Aristóteles noLivro III das Políticas, e Platão no Diálogo de Regno e nos livros — De republica. Masem Cristo parece que não pode ter 1ugar este título porque, sen<strong>do</strong> o Monarcauniversal de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s os homens, era necessário que os mesmoshomens conviessem to<strong>do</strong>s este consentimento, eleição ou aceitação, como acimadizíamos, e este consentimento comum nunca jamais o houve no Mun<strong>do</strong>, antes, comodizem alguns teólogos, não é possível havê-lo. Contu<strong>do</strong> digo que não faltou aoImpério e Monarquia universal de Cristo este último título <strong>do</strong> consentimento eaceitação universal <strong>do</strong>s homens, como agora mostrarei. E peço licença aos quequiserem ler este discurso para meditar um pouco mais nele, por ser pensamentonovo e matéria até agora não tratada, à qual é necessário abrir os alicerces e lançaros primeiros e sóli<strong>do</strong>s fundamentos, prometen<strong>do</strong> aos que fizerem esta detença nãoperderão o fruto <strong>do</strong> tempo que nela gastarem, pois verão por grandes notícias e nãovulgares da Antigüidade quão certa e concertadamente concorre a novidade everdade desta nossa consideração ao maior estabelecimento <strong>do</strong> Reino de Cristo.Alberto Pighio (para que de to<strong>do</strong> não entremos neste novo caminho sem alguma guia)no Livro V da Hierarchia Ecclesiastica, capítulo III, arrostan<strong>do</strong> a opinião de muitos egraves autores, os quais têm para si que Cristo foi legitimo Rei <strong>do</strong> Reino de Israel, otítulo em que funda este direito é o consentimento, aceitação e expectação geral, comque Cristo, verdadeiro Messias, era espera<strong>do</strong> de to<strong>do</strong> aquele povo como seuverdadeiro Rei e Senhor, prometi<strong>do</strong> aos primeiros Patriarcas da sua nação.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 113 de 16927/08/2011Nec Pilato (diz este autor) nec Caesari ullum legitimum jus in regnum Judaeorum, sedsi cuiquam maxime competiit Christo, quem semper expectaverunt sibi regem f ore in1ege promissum. E para ,prova desta geral aceitação e consentimento com que to<strong>do</strong>o povo hebreu tinha recebi<strong>do</strong> por seu Rei ao prometi<strong>do</strong> Messias, traz o mesmo AlbertoPighio a história <strong>do</strong> Livro I <strong>do</strong>s Macabeus, Capítulo XIV, em que se refere como osJudeus por consentimento comum elegeram por seu príncipe Simão e seusdescendentes com a cláusula, porém, que o seriam somente até que viesse o Messias,a cujo Reino e direito não queriam prejudicar. Judæi (diz o texto) consenserunt eumSimonem esse ducem suum [...] in aeternum, <strong>do</strong>nec surgat propheta fidelis. Sobre asquais palavras conclui assim o dito autor: Vides omnium Judeorum votis etexpectatione semper expectatum Christum et Messiam in lege promissum, regem sibifore; nam ad ejus usque aduentum Simoni atque e jus posteritati regnum stabilierunt,quod illi adventanti legitimo jure deberi significaverunt, velut expresse protestantes inejus praejudcium et injuriam nihl se velle facere.De maneira que o título com que tão grande teólogo e jurista defende o direito deCristo ao Reino de Israel é aquele geral consentimento, espectação e como eleiçãocom que to<strong>do</strong> o povo judaico tinha aceita<strong>do</strong> como seu verdadeiro Rei o futuroMessias, e como tal o esperava.Assim explica em próprios termos esta sentença de Alberto Pighio, Alonço de Men<strong>do</strong>çaacima cita<strong>do</strong>, cujas palavras quero também referir aqui, porque não pareça aacomodação da dita sentença levada de algum mo<strong>do</strong> por nós ao intento em que nosserve: Alii (diz Men<strong>do</strong>ça, referin<strong>do</strong>-se a Pighio) alio titulo Christi regnum abaduersariis vindicant; nam dicunt ex consensu et quasi electione populi judaiciChristum fuisse illius gentis regem; nam cum ardentissime Messiam expectarent, ettenacissime crederent regem itsum futurum temporalem, ideo pblico totius gentisdecreto in ipsum sua suffragia conjecerant et in regem elegerant.De toda esta sentença assim entendida me não serve mais que o exemplo e o mo<strong>do</strong>de dizer ou filosofar; e digo que, assim como em respeito <strong>do</strong> Reino de Israel,concorreu ou pode concorrer em Cristo o título da aceitação e como eleição geraldaquele povo, pela espectação, desejo e consentimento comum com que eraespera<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s por seu legítimo, supremo e verdadeiro Rei, assim concorreu econcorre o mesmo título no Reino e Monarquia universal de Cristo, em respeito deto<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s os homens e nações dele, nos quais houve o mesmoconsentimento comum, o mesmo desejo e a mesma espectação, como logomostraremos.Nem impede ou encontra a verdade ou legitimidade deste título o ser o mesmo ReiCristo primeiro eleito, ungi<strong>do</strong>, prometi<strong>do</strong> e da<strong>do</strong> por Deus, porque todas estascircunstâncias e condições concorrem no exemplo alega<strong>do</strong> (o qual não é semelhantese não o mesmo) e o mesmo temos nas eleições <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is primeiros reis de Israel,Saul e Daniel, os quais por primeiro foram ungi<strong>do</strong>s pelo Profeta Samuel por manda<strong>do</strong>de Deus, e depois novamente aceitos, aclama<strong>do</strong>s e cada um deles ungi<strong>do</strong> pelo mesmopovo, como consta da <strong>História</strong> Sagrada, no I e II Livro <strong>do</strong>s Reis.E que em to<strong>do</strong>s os homens e nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> houvesse geralmente o mesmoconsentimento comum, e o mesmo desejo, e a mesma espectação acerca <strong>do</strong> Reino eMonarquia universal de Cristo sobre to<strong>do</strong>s eles, que é o ponto e suposição em quefundamos este novo título, deixa<strong>do</strong>s outros muitos textos de menor clareza, apontareisomente <strong>do</strong>is, que se não podiam desejar nem ainda fingir mais expressos. O primeiroé <strong>do</strong> capítulo penúltimo <strong>do</strong> Gênesis, na bênção que lançou Jacob a seu filho Juda, noqual, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Messias prometi<strong>do</strong>, como entendem uniformemente to<strong>do</strong>s os autorescatólicos, e antes da vinda de Cristo, entenderam também sempre to<strong>do</strong>s os Hebreus,diz assim: Non auferetur sceptrum de Juda et dux de femore ejus, <strong>do</strong>nec veniat quimittendus est, et ipse erit expectatio gentium: «Não faltará o ceptro de Juda nempríncipe de sua descendência até que venha o que há-de ser manda<strong>do</strong>, e este será aespectação das gentes.» E o Profeta Ageu, no. capítulo II, falan<strong>do</strong> da mesma vinda deCristo (como é de fé que falava, porque assim o explicou S. Paulo na Epistola aosHebreus, capítulo XII): ...ego commovebo caelum et terram et mare et aridam; etmovebo omnes gentes, et veniet desideratus cunctis gentibus. Daqui a um pouco (dizDeus) «moverei o céu e a terra, o mar e to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, e moverei todas as gentes evirá o deseja<strong>do</strong> de todas elas»De sorte que, antes de Cristo vir ao Mun<strong>do</strong>, não só era Ele o deseja<strong>do</strong> e espera<strong>do</strong> <strong>do</strong>


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 114 de 16927/08/2011povo de Israel, senão o espera<strong>do</strong> e deseja<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os povos e de todas as gentes,porque to<strong>do</strong>s o esperavam por seu Rei e natural Senhor, e não só por Rei particular<strong>do</strong>s Judeus, senão por Monarquia universal de todas as outras nações e reinos <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>. Esta é a razão e o mistério por que os três reis <strong>do</strong> Oriente (em que serepresentavam, como diz a glossa, as três partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> até aquele tempoconheci<strong>do</strong>) sen<strong>do</strong> gentios, vieram a<strong>do</strong>rar Cristo e oferecer-lhe tributos.Sobre a nação daqueles reis, e se eram só de uma ou de diferentes nações, hávariedade entre os Doutores. S. Jerônimo quer que fossem da Arábia Feliz, outros osfazem da Pérsia, outros da Média, outros da Etiópia. Eu tenho por mais provável queao menos parte deles eram de regiões mais distantes, e verdadeiramente da nossaÍndia Oriental, conforme profecia de David: Reges Tharsis et insula numera offerent,reges Arabum et Saba <strong>do</strong>na adducent. Porque aquelas palavras reges Tharsis etinsule, conforme a significação mais recebida, querem dizer reis ultramarinos, o quese não verifica sem grande impropriedade nos reis da Arábia e Sabeia com respeitoda Palestina.Mas de qualquer mo<strong>do</strong> que seja, o certo e sem controvérsia é que to<strong>do</strong>s eram reisgentios. Pois se eram reis gentios, e de nenhum mo<strong>do</strong> sujeitos ao <strong>do</strong>mínio darepública hebreia, que razão ou motivo tiveram para vir a<strong>do</strong>rar um menino que elesmesmo conheciam e diziam que era Rei <strong>do</strong>s Judeus? Ubi est qui natus est rexJudaeorum?A razão e motivo que tiveram foi (como bem notou Almaino) porque sabiam e criamque aquele rei <strong>do</strong>s Judeus novamente nasci<strong>do</strong> não era rei particular (como os outrosreis hebreus) de uma só nação ou de um só reino, senão Rei, Monarca e Senhoruniversal de to<strong>do</strong>s os reinos e de todas as nações, e por isso como o Rei verdadeiro eSenhor universal de to<strong>do</strong>s os reinos e de todas as nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e por isso comoa rei verdadeiramente seu, o vinham a<strong>do</strong>rar e reconhecer, e render-lhe a devidaobediência e vassalagem: debitam ei seu vero eorum regi et <strong>do</strong>mino prestantesobedientiam.De sorte que antes de Cristo nascer e aparecer no Mun<strong>do</strong>, e quan<strong>do</strong> somente estavaprofetiza<strong>do</strong> e prometi<strong>do</strong> já às nações <strong>do</strong> Universo, não só a hebreia, senão as <strong>do</strong>sgentios a tinham aceita<strong>do</strong> e queri<strong>do</strong>, e por certo mo<strong>do</strong> de eleição segunda e humanaescolhi<strong>do</strong> depois de Deus para seu futuro Rei e Senhor, e como tal o esperavamto<strong>do</strong>s, e era desejada de to<strong>do</strong>s a sua vinda: Ipse erit expectatio gentium; venietdesideratus cunctis gentibus.Só vejo que podem reparar com muita razão os <strong>do</strong>utos, e argüir contra esta nossasuposição (como argüiu S. Agostinho contra este último texto) que não podia ser queas nações <strong>do</strong>s Gentios, e .muito menos todas elas, esperassem e desejassem oMessias antes da sua vinda; pois antes de Cristo vir ao Mun<strong>do</strong>, nem a fé ou aesperança de que havia de vir se tinha anuncia <strong>do</strong> ou manifesta<strong>do</strong> às nações <strong>do</strong>sGentios, senão somente aos Hebreus.É tão forçoso e ao parecer tão evidente este argumento que, venci<strong>do</strong>s da força deleos maiores intérpretes da Escritura, excogitavam aos <strong>do</strong>is textos referi<strong>do</strong>s asexplicações que neles se podem ver, as quais, quan<strong>do</strong> não façam alguma violênciaaos mesmos textos, ao menos não enchem o senti<strong>do</strong> de suas palavras, porque aqueleerit expectatio gentium e aquele veniet desideratus cunctis gentibus verdadeiramentesigrnficam própria espectação e próprio desejo, com que as nações <strong>do</strong>s Gentios todas(geral e moralmente falan<strong>do</strong>) ao menos algum tempo esperassem e desejassem avinda <strong>do</strong> prometi<strong>do</strong> e futuro Rei.Assim é e assim foi, e assim se cumpriu uma e outra profecia, e assim digo se devementender ambas em toda a capacidade <strong>do</strong> seu senti<strong>do</strong> próprio e natural. E para quese veja que não era cousa impossível nem dificultosa ser a vinda <strong>do</strong> Messias desejadae esperada geralmente de todas as nações gentílicas, mostrarei aqui os mo<strong>do</strong>s e osmeios mais prováveis e certos por onde o conhecimento e esperança <strong>do</strong> futuroMessias não só podia chegar, mas com efeito chegou, ou a todas ou a quase todas asnações de to<strong>do</strong> o que naquele tempo se chamava Mun<strong>do</strong>.O primeiro meio é a tradição continuada desde Adão até Noé, cujos três filhos, Sem,Cam e Jafet foram os segun<strong>do</strong>s povoa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> gênero humano, no qual, enquanto seconservou uni<strong>do</strong>, continuou também unida a mesma tradição, e depois que na Torre


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 115 de 16927/08/2011de Babel se dividiram os homens e as linguas, e se começaram novas nações, queencheram o Mun<strong>do</strong>, também com elas se espalhou pelo mesmo Mun<strong>do</strong> aquela noticiae esperança recebida de seus antepassa<strong>do</strong>s, pois é certo que com a mudança daslínguas não perderam os homens a memória nem a ciência.Este discurso é tão natural que não havia mister autor. Mas temos para maiorconfirmação dele o testemunho de S. Pedro Crisólogo, no Sermão 157, o qual,declaran<strong>do</strong> o meio por onde os magos puderam entender que a estrela significava oMessias e que este havia de nascer na Judeia, diz que tinham aprendi<strong>do</strong> e sabi<strong>do</strong>assim por <strong>do</strong>utrina e tradição de seus maiores, derivada desde Noé. Non chaldeaarte, sed de prisca sanctorum traditione majorum; erant isti de genere Noe, etc. E oautor <strong>do</strong> Imperfeito na humildade, II, sobre S. Mateus, toman<strong>do</strong> esta tradição maisperto da fonte, e referin<strong>do</strong>-se aos tempos de Set, filho terceiro de Adão, depois deAbel, conta haver ouvi<strong>do</strong> de certo livro escrito com o nome <strong>do</strong> mesmo Set, o qual seconservava em uma nação das últimas partes <strong>do</strong> Oriente, junto ao mar Oceano, e queneste livro estava descrita a aparição futura daquela estrela, e os <strong>do</strong>ns que se haviamlevar e oferecer ao Rei nasci<strong>do</strong> que ela significava, e que todas estas notícias setinham conserva<strong>do</strong> entre os <strong>do</strong>utos e estudiosos daquela gente por tradição de pais afilhos. Audivi aliquos (diz ele) referentes de quadam scriptura, et si non certa tamennon destruente fidem, sed potius delectante, quoniam erat quaedam gens sita in ipsoprincipio Orientis juxta Oceanum, apud quos ferebutur quaedam scriptura, irscriptanomine Seth, de apparitura hac stella, et muneribus ei hujusmodi offerendis, quaeper generationes studiorum hominum patribus referentibus filiis suis habebaturdeducta.Até aqui este autor, chama<strong>do</strong> o Imperfeito, por deixar imperfeita e não acabada aobra que comeu, o qual querem muitos que seja S. João Crisóstomo. E posto que nãotem por certo aquele livro, e que só refere a fama, por ser de tão duvi<strong>do</strong>saantiguidade, não nega, porém, antes aprova a tradição <strong>do</strong> futuro Messias, que entreos Gentios se conservava, e da nova estrela que havia de anunciar o seu nascimento.Esta é a opinião comum <strong>do</strong>s Padres, como se pode, ver em Orígenes, S. Basílio, S.Cipriano, S. Jerónimo, S. Gregório Nasianzeno, Teofilato, Eutímio, Ambrósio, S.Máximo, S. Anselmo, Procópio, .S. Tomás e S. Leão Papa, cujas palavras citaremosdepois.O outro meio por onde os Gentios puderam vir em conhecimento da vinda e impériouniversal <strong>do</strong> Messias, que os Judeus esperavam, foi a grande comunicação que emtodas as partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> tiveram sempre com os mesmos Gentios, e os mesmosGentios com os Judeus, entre os quais era tão vulgar e celebrada aquela esperança,que o nome com que vulgarmente chamavam ao Messias era o Espera<strong>do</strong>, ou o quehá-de vir, como se vê nos termos que falaram os discípulos ou embaixa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>Baptista, quan<strong>do</strong> perguntavam a Cristo: Tu es qui venturus es, an aliumexpectatamus?Era Jerusalém antigamente a mais formosa cidade e o maior império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>situa<strong>do</strong> no meio de to<strong>do</strong> ele, que por isso se chamava Umbellicus terrae, e como talconcorriam a ela de todas as partes infinitas gentes de todas as nações e ainda detodas as cores. Isto é o que tanto celebrava David naquela cidade em cuja fundação eformosura tinha ele tão grande parte: Glorosa dicta sunt de te, civitas Dei, Memor eroRahab, et Babylonis scientium me. Ecce alienigenæ et Tyrus et populus AEthiopum hifuerunt illic. Numquid Sion dicet: Homo et homo natus est in ea, et ipse fundavit eamAltissimus? Dominus narrabit in scripturis populorum et principum, horum qui feruntin ea. Que gloriosas cousas se contam de ti (diz David) e se escrevem nas escriturasde to<strong>do</strong>s os povos, ó cidade de Deus! Em ti se acham todas as diferenças de homens,que isso quer dizer homo et homo, homens de todas as línguas; homens de todas ascores, homens de todas as nações e partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>; em ti se acham to<strong>do</strong>s oshomens de África, como são os de Etiópia; em ti os da Ásia, como são os deBabilônia; em ti os da Europa, como são tantos outros estrangeiros; em ti se vêemhomens brancos, como os Tírios; em ti homens negros, como os Etíopes; em tihomens de todas as outras cores meãs, como são os asiáticos; e de todas estasgentes, que é mais, não só freqüentam tuas ruas os <strong>do</strong> povo, mas também aspasseiam os príncipes — populorum et principum! Mas o que sobretu<strong>do</strong> é digno demaior memória, e o que sobretu<strong>do</strong> te faz gloriosa, ó cidade santa, é que to<strong>do</strong>s estes,vin<strong>do</strong> a ti, aprendem o que dantes ignoravam, e sabem o que dantes não sabiam,porque conhecem a Cristo.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 116 de 16927/08/2011Este é o senti<strong>do</strong> literal das palavras scientium me; porque o mesmo Cristo é o quefalava neste Salmo por boca de David, como dizem comummente to<strong>do</strong>s osintérpretes. E se no tempo de David era tão freqüentada a cidade de Jerusalém detodas as nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, que seria no tempo de seu filho Salomão, depois deedifica<strong>do</strong> o templo, primeira maravilha <strong>do</strong> mesmo Mun<strong>do</strong>, se o mesmo Salomão nãofora maior maravilha! Para ver e ouvir estas duas maravilhas, e muito mais asegunda, diz o Texto Sagra<strong>do</strong> no III Livro <strong>do</strong>s Reis, cap. IV, que vinham de to<strong>do</strong>s ospovos e de to<strong>do</strong>s os reis da Terra a Jerusalém pessoas enviadas por eles (que é certoseriam os maiores sábios <strong>do</strong>s mesmos povos e reinos) os quais, depois de ouvirem eadmirarem em presença a sabe<strong>do</strong>ria de Salomão, iam contar e ensinar a suas terrase príncipes o que dele tinham ouvi<strong>do</strong> e aprendi<strong>do</strong>. Et veniebant de cunctis populis adaudiendam sapientiam Salomonis, et ab universis regibus terræ qui audiebantsapientiam ejus.E quem poderá duvidar que um <strong>do</strong>s principais mistérios que Salomão ensinavanaquela cadeira universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> era o da fé e esperança <strong>do</strong> futuro Messias, filho edescendente seu, e que a maior maravilha que levavam para contar em suas terrasos que tinham ouvi<strong>do</strong> aquele famoso oráculo era que, sen<strong>do</strong> tão admirável asabe<strong>do</strong>ria e grandeza de Salomão, ainda havia de ter o mesmo Salomão umdescendente que fosse mais sábio e maior que ele, plusquam Salamone! Assim odizem expressamente neste lugar .., e se conformam com o exemplo da Rainha deSabá, que, depois de ouvir a Salomão, foi a primeira que pregou nesta fé e esperança<strong>do</strong> Messias no seu Império de Etiópia, e em sinal da mesma fé introduziu em to<strong>do</strong> elea circuncisão, que era uma protestação pública <strong>do</strong>s que a professavam.Mas quan<strong>do</strong> nos faltavam estes testemunhos <strong>do</strong> Testamento Velho, bastava um só <strong>do</strong>nosso para abundantíssima prova das muitas nações de Gentios que vinhamordinariamente e residiam em Jerusalém, pois só no dia de Pentecoste, ao somdaquele trovão <strong>do</strong> céu, soubemos que acudiram ao convento e ouviram a primeirapregação de S. Pedro, quan<strong>do</strong> menos, dezassete gêneros de homens de línguas enações diferentes — Partos, Me<strong>do</strong>s, Persas, Elamitas, Mesopotamios, Judeus,Capa<strong>do</strong>ces, Pontos, Asianos, Frígios, Panfílios, Egipcios, Africanos, Cirenos, Romanos,Cretenses, Arabes e outros converti<strong>do</strong>s das gentilidades, que chamavam com nomegeral prosélitos, que quer dizer novos, assim como hoje os judeus converti<strong>do</strong>s à Féde Cristo se chamam cristãos-novos . Et quomo<strong>do</strong> nos ( diziam to<strong>do</strong>s estes no cap. II<strong>do</strong>s Actos <strong>do</strong>s Apóstolos) audivimus unusquisqe linguam nostram in qua nati sumus?Parthi et Medi, et AElamitæ, et qui habitant Mesopotamiam, Judaeam etCappa<strong>do</strong>ciam, Pontum et Asiam, Phrygiam et Pamphiliam, et AEgyptum et partesLiyæ, quæ est circa Cyrenen, et advene Romani; Judaei quoque et proselyti, Creteset Arabes, audivimus eos loquentes nostris linguis magnalia Dei. Onde se deve muitoadvertir que, quan<strong>do</strong> isto aconteceu, já a. cidade de Jerusalém e o povo e república<strong>do</strong>s Hebreus estava quase arruinada, e não conservava a quarta parte da grandeza aque nos tempos de sua maior opulência tinha chega<strong>do</strong>. E se agora era tãofreqüentada de nações estrangeiras, que seria nos tempos passa<strong>do</strong>s?Mas se importou muito para se estender a notícia <strong>do</strong> Messias por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> acomunicação que os Gentios tinham com os Judeus em suas próprias terras, muitomais aju<strong>do</strong>u e adiantou a mesma notícia a muito maior comunicação e frequência queos mesmos Judeus tinham e continuaram sempre nas terras <strong>do</strong>s Gentios, desde quenasceu e começou no Mun<strong>do</strong> a nação hebreia, que foi em Abraão, primeiro tronco epai de toda ela. Revelou Deus por três vezes sucessivamente a Abraão, Isaac e Jacoba vinda <strong>do</strong> Messias, prometen<strong>do</strong>-lhes que em sua descendência seriam abençoadastodas as nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>: Benedicentur in semine tuo omnes gentes terrae; e nomesmo tempo pôs a Providência divina aqueles três Patriarcas em diferentes naçõese províncias: a Abraão em Canaan, a Isaac em Gerara, a Jacob em Mesopotamia,para que fossem três prega<strong>do</strong>res daquele primeiro Evangelho, ou como trêsevangelistas que anunciassem às gentes a boa nova da mercê grande que Deustinha ,prometi<strong>do</strong> fazer a todas. E porque ao numero <strong>do</strong>s três Evangelhos não faltasseo primeiro, permitiu a mesma Providência que por extraordinários caminhos fosseJosé leva<strong>do</strong> ao Egito, e que aí por manda<strong>do</strong> <strong>do</strong> rei, como diz David, pusesse escola desua sabe<strong>do</strong>ria, onde tivesse por ouvintes to<strong>do</strong>s os príncipes e sábios egiptianos: Uterudiret principes ejus sicut semetipsum, et senes ejus prudentiam <strong>do</strong>ceret. Assimtrouxe Deus naquele tempo pelo Mun<strong>do</strong> estas quatro testemunhas de suaspromessas de reino em reino e de nação em nação, como notou o mesmo Profeta: Etpertransierunt de gente in gentem, et de regno ad populum alterum.Ajuntou depois disto a fome em Egito os <strong>do</strong>ze irmãos, filhos de Jacob e cabeças <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 117 de 16927/08/2011tribos; entraram livres, continuaram cativos, saíram vence<strong>do</strong>res. Mas no tempodaquele compri<strong>do</strong> cativeiro Não havia casa no Egito em que o cativo não fosse mestre<strong>do</strong> senhor. As maravilhas que depois viram nos Egípcios é certo que acrescentariamfé às esperanças <strong>do</strong>s Hebreus, porventura até aquele tempo mal cridas, e já pode serque a crueldade de Faraó, como a de Herodes, se não fundasse tanto no receio desua multidão que no me<strong>do</strong> de suas profecias.Passa<strong>do</strong>s, enfim, à Terra de Promissão, onde permaneceram até verem ocumprimento delas em Cristo, concorreram e floresceram no mesmo tempo os quatroimpérios ou monarquias <strong>do</strong>s Assírios, <strong>do</strong>s Persas, <strong>do</strong>s Gregos e <strong>do</strong>s Romanos, quesenhoreavam o Mun<strong>do</strong>, e com todas elas tiveram grande comunicação os Hebreus, ealgumas vezes mais estreita <strong>do</strong> que quiseram.Todas as histórias sagradas estão cheias de embaixadas, de confederações, deentradas, de guerras, de pazes, de presentes e de outros tratos e correspondênciaspolíticas, que passaram entre as quatro nações imperantes e o reino ou povo hebreu.Com os Assírios notemos de Ezequias, de Acáz, de Oseas, de Joaquim e <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>teEliacim, gue concorreram com Berodac, com Salmanasar, com Ful, comNabuco<strong>do</strong>nosor e com Baltasar, como consta <strong>do</strong> IV Livro <strong>do</strong>s Reis e da história deJudite. Com os Persas, em tempo de Jeconias, de Zorobadel, de Esdras, de Neemias,que concorreram com Ciro, com Dario e com Assuero, como consta <strong>do</strong> I e II Livro deEsdras e da <strong>História</strong> de Ester. Com os Gregos, em tempo <strong>do</strong> Sumo Sacer<strong>do</strong>te Ja<strong>do</strong>,de Matatias, de Judas Macabeu, de Simão e Jónatas, que concorreram com AlexandreMagno, com os <strong>do</strong>is Antíocos, com Demétrio, Helio<strong>do</strong>ro, Ptolemeu e Trifon, comoconsta <strong>do</strong> I e II Livro <strong>do</strong>s Macabeus.Finalmente, com os Romanos, em tempo de Judas Macabeu, de Simão e Jónatas, queconcorreram com diversos cônsules de Roma, de que se nomeia na Escritura Sagradasomente Lúcio, como consta das mesmas capitulações feitas entre uma e outranação, mandadas pelos Romanos à Judeia, escritas em tábuas de bronze, comolemos nos mesmos Livros <strong>do</strong>s Macabeus.E não só com estes quatro estendidíssimos impèrios, mas com todas as nações <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, tiveram muito particular trato e comunicação os Judeus, concorren<strong>do</strong> Deuspara este fim com disposições de mui particular providência. A primeira foi dar-lhesmuitos filhos e pouca terra. Prometeu Deus a Abraão que multiplicaria suadescendência como o pó da terra e como as estrelas <strong>do</strong> céu, e foi assim que de <strong>do</strong>zenetos de Abraão se formaram os tribos e destes cresceu e se multiplicou a maisnumerosa nação que jamais houve no Mun<strong>do</strong> de um só sangue. A terra, porém, queDeus deu e repartiu aos <strong>do</strong>ze tribos para sua habitação foi a terra chamada dePromissão, cuja largura e comprimento, tomada em sua maior extensão, nãochegava a oitenta léguas da nossa medida. E a razão desta providência foi para que,crescen<strong>do</strong> e multiplican<strong>do</strong>-se a nação hebreia, e não caben<strong>do</strong> nos estreitos limites dasua própria terra, se espalhasse e estendesse por todas as nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, elevasse a elas a primeira luz da fé de Deus e da esperança de Cristo: e este é omistério ou a energia de primeiro se haverem de multiplicar como pó e depois comoestrelas, para que o alumiassem no meio das trevas em que to<strong>do</strong> estava.Com o mesmo fim ordenou a sabe<strong>do</strong>ria e justiça divina que os maiores e mais geraiscastigos daquela nação fossem desterros e cativeiros, com que eram leva<strong>do</strong>s etransmigra<strong>do</strong>s a terras e regiões estranhas cousa poucas vezes vista em naçõesinteiras, para que por este meio ficassem castiga<strong>do</strong>s os Judeus, e juntamenteinstruí<strong>do</strong>s e alumia<strong>do</strong>s os Gentios. Assim lemos no cap. VIII <strong>do</strong>s Actos <strong>do</strong>s Apóstolosque se levantou uma grande perseguição na igreja de Jerusalém, por ocasião da qualse dividiram e espalharam os Cristãos por todas as regiões e terras de Judeia eSamaria: Facta est in illa die persecutio magna in ecclesia, quae erat Jerosolymis, etomnes dispersi sunt per regiones Judae et Samariae:. E notam comummente osPadres e expositores que ordenou ou permitiu a Providência divina este desterro oudispersão geral de to<strong>do</strong>s os cristãos de Jerusalém pelas cidades e lugares daquelasprovíncias, para que, juntamente com eles assim espalha<strong>do</strong>s ou semea<strong>do</strong>s poraquelas terras, se plantasse nelas a Fé e depois, por este meio tão natural e aoparecer não pretendi<strong>do</strong>, ficasse tão crescida e arreigada.O primeiro e principal desterro e cativeiro, não falan<strong>do</strong> no <strong>do</strong> Egito, de que jádissemos, foi o de Salmanasar, no tempo de El-Rei Oseas , como adiante largamentecontaremos, no qual foram leva<strong>do</strong>s os dez tribos desde Judeia até as terras <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 118 de 16927/08/2011Me<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>s Assírios, que estavam bem no coração de toda a Àsia; e posto que omaior corpo daquela gente teve o sucesso que depois se verá, é certo, como escrevePaulo Orósio, Severo Sulpício e outros autores latinos e hebreus, que muitos deles sedividiram por todas as terras orientais daquela vastíssima parte <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>,penetran<strong>do</strong> até as províncias de que então nem muitos anos depois houve notícia, deque é bom exemplo a China, onde em nossos tempos depois de 2300 anos, comoescreve o Padre Trigantio nas suas Relações da China, se achavam judeus daquelatransmigração com to<strong>do</strong>s os sinais dela.O segun<strong>do</strong> foi no tempo de Nabuco<strong>do</strong>nosor, em que os <strong>do</strong>is tribos que haviam fica<strong>do</strong>foram também cativos, em tempo de El-Rei Joaquim, e leva<strong>do</strong>s a Babilónia. E destestemos o testemunho da Sagrada Escritura no cap. XVI <strong>do</strong> Livro de Ester, que, sen<strong>do</strong>aquele império dividi<strong>do</strong> em 127 províncias, em todas elas e em todas suas cidadesestavam espalha<strong>do</strong>s os Judeus, e com eles a fé <strong>do</strong> verdadeiro Deus, queprofessavam, como se vê nas palavras <strong>do</strong> edicto de El-Rei Assuero ou Artaxerxes,com que man<strong>do</strong>u revogar a sentença de morte, que por malícia e vingança de ummau e soberbo priva<strong>do</strong> — Aman — contra a mesma nação se tinha manda<strong>do</strong>executar. Nos autem (diz o edicto) a pessimo mortalium Judaeos neci destinatos, innulla penitus culpa reperimus, sed e contrario justis utentes legibus, et filios altissimiet maximi semperque viventis Dei, cujus beneficio et patribus nostris et nobis regnumest traditum, et usque hodie custoditur. Nas quais palavras, cheias todas de fé,conhecimento, honra e sujeição ao verdadeiro Deus que os Judeus a<strong>do</strong>ravam, se vêclaramente quão grande fruto faziam com sua presença nas terras onde estavamcativos e desterra<strong>do</strong>s, Não só entre a gente popular mas nos maiores ministros epríncipes, e nos mesmos impera<strong>do</strong>res supremos, qual era Assuero ou Artaxerxes quefirmou aquele edicto.E aqui se entenderá o mistério com que um <strong>do</strong>s anjos custódios da nação hebreia,que falava com o Profeta Daniel (como se lê no cap. X de suas visões), oran<strong>do</strong> eleapertadamente pela liberdade <strong>do</strong> povo, lhe deu por causa da dilaçao daqueledespacho a resistência que fizera por muitos dias diante de Deus o Anjo Custódio <strong>do</strong>reino <strong>do</strong>s Persas, onde os mesmos Hebreus estavam cativos. Princeps autem regniPersarum restitit mihi viginti et uno diebus. E a razão desta resistência, como nestelugar notam to<strong>do</strong>s os expositores modernos, era o grande proveito espiritual que osgentios persas conseguiam com a presença e comunicação <strong>do</strong>s Judeus, pela fé econhecimento das cousas divinas que de sua conversação e <strong>do</strong>utrina (ainda semparticular estu<strong>do</strong>) se lhes pregavam.Nem se deve passar em silêncio a cobiça natural <strong>do</strong>s Judeus, ou desejo de adquirirriquezas, e o gênio indústria e inclinação tão particular que teve sempre esta naçãoao comércio e mercancia, como filhos alfim daquele pai que, compran<strong>do</strong> e venden<strong>do</strong>,fez sua fortuna, e com tão pouco cabedal como uma escudela de lentilhas soubeadquirir por indústria o que lhe tinha nega<strong>do</strong> a natureza, e fazer-se patrão e senhor<strong>do</strong> maior morga<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.Desta inclinação <strong>do</strong>s Judeus se serviu a Providência divina para os levar suavementeàs terras e regiões mais remotas, e os introduzir e misturar com todas as nações,meten<strong>do</strong>-lhes em casa, sem uns nem outros o pretenderem, as drogas <strong>do</strong> Céu entreas merca<strong>do</strong>rias da Terra. Cuidava Benjamim que só levava trigo no seu saco, e levavanele o trigo e mais o cálix de José. Assim saíam de Judeia os merca<strong>do</strong>res, e nosfar<strong>do</strong>s de merca<strong>do</strong>ria que levavam, metia também a sua o Salva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, queera esse o nome de José no Egito: Vocabit eum lingua egyptiaca Salvatorem Mundi. Ejá pode ser (se o pensamento me não engana) que fosse este o intento de Deusnaquela lei <strong>do</strong> cap. XXIII <strong>do</strong> Deuteronómio: Non fænerabis fratri tuo ad usuram [...]sed alieno, na qual se permitia (posto que não se justificava) para com as naçõesestrangeiras, para que esta maior liberdade ou impunidade de adquirir ou multiplicarfazenda fora de sua pátria os convidasse a sair dela e os arrebatasse voluntàriamenteàs terras estranhas onde com eles se transplantasse a verdadeira fé, que era droganaquele tempo que só nascia em Judeia.E que seria se a este título justificasse Deus as usuras que permitia aos Hebreus nasoutras nações, como direitos ou gabelas daquela merca<strong>do</strong>ria? Não me atreverei a oafirmar assim, mas sei que não é cousa nova em Deus, quan<strong>do</strong> quer passar a religiãode um reino a outros, meter neles a Fé às costas <strong>do</strong> interesse. Quan<strong>do</strong> os deuses deTróia passaram a Itália, Anquises levava os deuses na mão, e Eneias levava às costasa Anquises. Os prega<strong>do</strong>res levam a Fé aos reinos estranhos, e o comércio leva àscostas os prega<strong>do</strong>res.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 119 de 16927/08/2011E em quantas províncias achou o Evangelho fechadas as portas e, depois que ocomércio bateu a elas, as teve abertas e francas? O primeiro rei de Portugal que seintitulou rei <strong>do</strong> comércio da Etiopia, Arábia, Pérsia e dia foi o que introduziu a Fé naÍndia, na Pérsia, na Arábia e na Etiópia. Se não houvesse merca<strong>do</strong>res que fossembuscar a umas e outras Índias os tesouros da terra, quem havia de passar lá osprega<strong>do</strong>res que levam os <strong>do</strong> Céu? Os prega<strong>do</strong>res levam o Evangelho, e o comércioleva os prega<strong>do</strong>res. S. Tomé, que levou <strong>do</strong> Brasil à Índia o Evangelho, quan<strong>do</strong> nãohavia comércio, houve de caminhar (como é tradição) por cima das ondas, porquenão teve quem o levasse; e o segun<strong>do</strong> Apóstolo <strong>do</strong> Oriente, queren<strong>do</strong> pregar naChina, traçou que o prega<strong>do</strong>r entrasse como negociante, para que a Fé tivesse lugarcomo merca<strong>do</strong>ria.Assim começou Deus a espalhar o conhecimento de sua Fé pelo Mun<strong>do</strong>, e assim deuprincípio àquele admirável comércio em que depois, toman<strong>do</strong> de nós o que tínhamosna Terra, nos enriqueceu com o que trazia <strong>do</strong> Céu.Naaman Siro trouxe de Damasco as suas azêmolas com carga de ricos presentes paraoferecer a Eliseu e levou-as carregadas de terra de Israel, porque era santa aquelaterra. Assim entravam os negociantes hebreus em Judeia ricos e acrescenta<strong>do</strong>s comas drogas mais preciosas de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, e o que principalmente levavam de Judeiapara o mesmo Mun<strong>do</strong>, se não era a terra de Israel, era urna droga que só se davaentão naquela terra, que era a Fé e conhecimento de Deus. Isto levaram as frotascelebradas del-Rei Salomão quan<strong>do</strong> navegavam a terras de Ofir, ou fosse Ofir a Índia,ou fosse a América, ou fosse, como muitos querem, a nossa Espanha, impériofamosissimo já naquela idade ,pela riqueza e opulência de suas minas Isto vinhabuscar a cobiça, e aquilo vinha trazer a Providência, sen<strong>do</strong> certo então o que depoisvimos nas frotas das nossas Indias, que muito mais ricas iam <strong>do</strong> que voltavam.Quan<strong>do</strong> voltavam, traziam ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis; quan<strong>do</strong> iam,levavam a Fé de Cristo, a esperança <strong>do</strong> Céu, as verdades <strong>do</strong> Evangelho, ossacramentos, a graça, a salvação.De maneira que o comércio, os desterros e a estreiteza da terra própria foram as trêsocasiões principais por que os Judeus se saíam e Deus os derramava por todas asterras e nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Josefo, no Livro XI de suas Antiguidades, diz que a naçãohebreia tinha cheia toda a re<strong>do</strong>ndeza da Terra: orbem terrarum replevit. E FiloHebreu, naquele memorial ou livro que intitula De Legatione ad Caium, diz que amaior parte de todas as ilhas e terras firmes maritimas e mediterraneas da Asia, daÁfrica e da Europa eram habitadas de Judeus: Itaque si exorat mea Patria tuamclementiam præpter ipsam, alias civitatis demereberis plurimas, sitas in diversis orbistractibus, Asia, Europa, Africa, insulares, maritimas, mediterraneas.E se estes <strong>do</strong>is autores, posto que tão alega<strong>do</strong>s e segui<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s os queescrevem, por serem da mesma nação, parecerem a alguém suspeitosos e dignos demenos crédito, saiba que os mesmos testemunhos se leram nas Escrituras Sagradasainda com palavras mais universais e de maior encarecimento. No edicto que passouAssuero para que morressem to<strong>do</strong>s os Judeus sujeitos às terras de seu Império, dizassim a Relação ou Relatório de suas culpas: In toto orbe terrarum populum essedispersum, qui novis uteretur legibus, et contra omnium gentium consuetudinemfaciens, regnum jussa contemneret, et universarum concordiam natonum suadissensione violaret. Quod cum didicissemus, videntes unam gentem rebellemadversus omne hominum genus perversis uti legibus, nostrisque jussionibuscontraire, et turbare subjectarum nobis provinciarum pacem atque concordiam,jussimas etc., nas quais palavras se diz votada e expressamente que o povo hebreunaquele tempo estava espalha<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>:In toto orbe terrarum populumesse dispersum; e que com a novidade de suas leis perturbavam a paz de todas asgentes e de todas as nações:omnium gentiam et universarum nationum; e quedesobedeciam os manda<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s reis e eram rebeldes contra to<strong>do</strong> o género humano:adversus omne genus humanum. E estas culpas assim relatadas que vêm a ser senãoum testimunho público e autêntico de tu<strong>do</strong> o que imos provan<strong>do</strong>? Porque não sóconsta delas estarem os Judeus espalha<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, mas se mostratambém com a mesma clareza que os efeitos dessa dispersão era ser pública enotória a todas as nações e reis e a to<strong>do</strong> o género humano a nova lei e nova Fédiferente de todas as outras que os mesmos Judeus professavam.No I capítulo <strong>do</strong>s Actos <strong>do</strong>s Apóstolos temos outro testimunho sagra<strong>do</strong> igualmenteuniversal e por termos, se pode ser ainda mais notáveis: Erant autem in Hierusalemhabitantes judaei viri religiosi ex omni natione quæ sub caelo: «Havia em Jerusalém


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 120 de 16927/08/2011(diz S. Lucas) muitos judeus mora<strong>do</strong>res da mesma cidade, homens religiosos detodas as nações que cobre o céu;» para cuja inteligência se deve supor que to<strong>do</strong>s oshebreus que viviam longe de Judeia em diferentes nações, reinos ou cidadespopulosas tinham em Jerusalém suas sinagogas particulares e distintas, as quaissinagogas não eram pròpriamente igrejas como as nossas (porque o templo era umsó e comum a to<strong>do</strong>s, nem podia ser mais que um conforme a lei), mas eram umascasas grandes e públicas, onde se ajuntavam principalmente aos sába<strong>do</strong>s, e ali setinham as pregações, os conselhos, as disputas, e todas as outras conferências dascousas espirituais ou eclesiásticas, como se conta no capítulo XVII <strong>do</strong>s Actos o faziaou costumava fazer S. Paulo: Secundum consuetudinem autem Paulus introivit adeos, et per sabbata tria disserebat eis de Scripturis. E no capítulo VI <strong>do</strong> mesmo livrose faz expressa menção das sinagogas diferentes que dizíamos: Surrexuntur autemquidam de Synagoga, quae appellatur libertínorum, et Cirenensium etAlexandrinorum, et eorum qui erant a Cilicia et Asia; mas no qual texto, comoadvertiu S. Crisóstomo e outros Doutores, não se há-de entender que uma sósinagoga fosse <strong>do</strong>s Libertinos, Cirenenses, Cilicianos, Asiáticos e Alexandrinos, senãoque cada uma das comunidades <strong>do</strong>s Judeus pertencentes a estas províncias tinham asua sinagoga própria, separada e particular. Era Jerusalém naquele tempo (e muitomais antes daquele tempo) a corte <strong>do</strong>s rei, a universidade das letras, o assento <strong>do</strong>stribunais, e sobretu<strong>do</strong> era a cabeça da Igreja da Lei Velha, como hoje é Roma daNova, à qual estavam sujeitos to<strong>do</strong>s os Judeus e professores da mesma Fé, ainda quevivessem em outros reinos, como se vê das provisões de S. Paulo, as quais ele foibuscar a Jerusalém contra os Judeus de Damasco, que era terra de gentios sujeitos aEl-Rei Arctas, e assim como to<strong>do</strong>s os reinos e repúblicas da Cristandade têm seusembaixa<strong>do</strong>res, agentes requerentes e igrejas particulares em Roma, e ainda hospitaisda mesma nação, assim e muito mais se observava o mesmo uso entre os Judeus,gente por natureza tenacíssima <strong>do</strong>s seus costumes e ritos.E era tanto o número destas sinagogas em Jerusalém, que quan<strong>do</strong> ultimamente foidestruída aquela cega cidade por Tito e Vespasiano, se acharam nela, como refereLorino, quatrocentas e oitenta sinagogas. cada uma de diferente nação, província,reino corte ou povo notáve1 onde houvesse tanto número de Judeus que só ó quedeles assistiam em Jerusalém pudessem formar corpo e comunidade distinta.Daqui se tira o novo e eficaz argumento de quão espalha<strong>do</strong>s e multiplica<strong>do</strong>s estavamos Judeus por todas as partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. E estes eram aqueles a quem S. Pedro, noSermão de dia de Pentecoste, chamou judeus de longe: Vobis enim est repromisio etfiliis vestris et omnibus qui longe suntViven<strong>do</strong> pois os Judeus tão mistura<strong>do</strong>s e trava<strong>do</strong>s com todas as nações <strong>do</strong>s gentios,desta companhia se lhes pegara, como dizíamos, o conhecimento da Fé de Deus eesperança de Cristo, e não só pelo trato, comunicação e exemplo, senão também porindústria e estu<strong>do</strong> particular de alguns judeus mais zelosos, os quais com desejo deaumentar a sua religião e o culto <strong>do</strong> verdadeiro Deus, ensinavam e afeiçoavam a elaos gentios.Desta verdade temos em prova (que não é só suspeita ou conjectura nossa) otestemunho e autoridade <strong>do</strong> mesmo Cristo no capítulo XXIII de S. Mateus, onde,repreenden<strong>do</strong> a hipocrisia <strong>do</strong>s escribas e fariseus, diz assim: circuitis mare et aridam,ut faciatis unum proselytum: et cum fuerit factus, facitis eum filium gehennæ duploquam vos. «Cercais o mar e a terra para converter um gentio à Fé, e depois que estáconverti<strong>do</strong>, ensinai-lhes tais <strong>do</strong>utrinas que o fazeis mais filho <strong>do</strong> Inferno <strong>do</strong> que vóssois.» Na qual sentença de Cristo se vê principalmente como os Judeus rodeavammar e terra, isto é, peregrinavam e navegavam por todas as terras e mares <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, e juntamente se prova que com estas suas peregrinações e navegaçõeslevavam pelo mesmo Mun<strong>do</strong> a Fé <strong>do</strong> verdadeiro Deus, e o davam a conhecer aosGentios, <strong>do</strong>s quais convertiam alguns; e finalmente que Não se fazia isto acaso e porocasião <strong>do</strong> trato, se não por zelo e cuida<strong>do</strong> particular da Religião, posto que depois aviciavam os escribas e fariseus <strong>do</strong> tempo de Cristo com a má <strong>do</strong>utrina e exemplo quelhes ensinavam; nem faltavam em diversas partes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> padrões desta mesmaverdade, levanta<strong>do</strong>s entre as gentes mais políticas e celebradas da Gentilidade. Talera aquele altar que S. Paulo achou em Atenas, consagra<strong>do</strong> ao Deus não conheci<strong>do</strong> —Ignoto Deo — o qual Deus não conheci<strong>do</strong>, como logo lhes declarou o mesmoApóstolo, era o verdadeiro Deus, cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Céu e da Terra.Destes altares havia outros, como escreve o Cardeal Barónio, na Arábia, nas Gálias,na nossa Espanha e em outras províncias nobres da Asia e da Europa, e que estes


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 121 de 16927/08/2011monumentos de Religião e este conhecimento de Deus não conheci<strong>do</strong> se tivessederiva<strong>do</strong> aos Gentios da <strong>do</strong>utrina e trato com os Judeus, provam-no agudamentealguns autores, com o mesmo título de não conheci<strong>do</strong>. Porque os deuses <strong>do</strong>s Gentioseram conheci<strong>do</strong>s pelos seus nomes particulares de Júpiter, Saturno, Marte; mas oDeus <strong>do</strong>s Judeus não era conheci<strong>do</strong> de nome, porque Ihes estava proibi<strong>do</strong> tomaremna boca o nome de Deus, e por isso se chamava Inefável, isto é, nome que se nãopodia falar nem dizer. Vere tu es Deus abconditus, Deus absconditus et Salvator —dizia Isaías a Deus, aludin<strong>do</strong> a esta proibição: «Verdadeiramente, Senhor, vós seisum Deus escondi<strong>do</strong>, mas Deus que escondi<strong>do</strong> e desconheci<strong>do</strong> salvais.» E Josefo, noLivro II de suas Antiguidades, vin<strong>do</strong> a tratar <strong>do</strong> nome de Deus, passou-o em silêncio edisse que lhe não era lícito pronunciá-lo: De quo mihi dicere non est fas.Conheciam, porém, os Gentios, ensina<strong>do</strong>s pelos Judeus, que este Deus desconheci<strong>do</strong>a quem não sabiam o nome era o Deus que criara todas as cousas, e este foi omistério daquela erudita ignorância, com que, descreven<strong>do</strong> Ovídio a criação <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, não o nomeou nem determinou o Deus que o criara, dizen<strong>do</strong>-o só absoluta eincertamente: Quisquis fuit ille deorum «quem quer que foi o Deus» que o criou.Mas nesta mesma incerteza com que falou no Deus cria<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, este poetadeclarou ser ele o Deus que a<strong>do</strong>ravam os Judeus, ao qual os Gentios chamavam Deusincerto, porque não tinha nome particular com que fosse conheci<strong>do</strong> e se distinguisse<strong>do</strong>s outros deuses. Assim o disse Claudiano, também poeta latino e gentio, chaman<strong>do</strong>aos Judeus os a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res de Deus incerto: Cultrix incerti Judæa Dei. E estes foram osprimeiros rudimentos da Fé que os Judeus semearam entre os Gentios, introduzin<strong>do</strong>seo verdadeiro Deus nas outras nações e andan<strong>do</strong> nelas como disfarça<strong>do</strong>, conheci<strong>do</strong>debaixo <strong>do</strong> nome de incógnito, e cri<strong>do</strong> com o sobrenome de incerto.E para que concluamos este discurso com uma advertência em tal matéria digna demuito reparo, no capítulo XXXII <strong>do</strong> Deuteronómio diz Moisés que, quan<strong>do</strong> Deus, naconfusão da Torre de Babel, dividiu a to<strong>do</strong>s os filhos de Adão em diversas nações elínguas, fez aquela divisão conforme o número <strong>do</strong>s filhos de Israel, responden<strong>do</strong> acada um deles uma nação: Quan<strong>do</strong> dividebut Altissimus gentes, quan<strong>do</strong> separabatfilios Adam, Constituit terminos populorum juxta numerum filiorum Israel. No qualnúmero alude Moisés aos filhos de Israel, que entraram no Egito, ·os quais consta <strong>do</strong>capítulo X <strong>do</strong> mesmo livro e <strong>do</strong> capítulo XLVIII <strong>do</strong>s Génesis, que foram setenta almas:Omnes animæ <strong>do</strong>mus Jacob, quae ingressæ sunt in AEgyptum, fuere septuaginta.Assim entendem este lugar to<strong>do</strong>s os Padres e intérpretes, os quais tambémconcordam em que as línguas e nações em que Deus dividiu os homens (como secolhe <strong>do</strong> capítulo X <strong>do</strong> Génesis, em que se referem as famílias <strong>do</strong>s descendentes deNoé) foram setenta e duas. Destas, se se tirarem a hebreia e egipcia, que já estavamunidas e se comunicavam, ficam pontualmente setenta.Agora pergunto: E que mistério ou que intento teve a Providência Divina em igualar onúmero de todas as nações ao <strong>do</strong>s primeiros hebreus e não em outro tempo ouocasião, senão quan<strong>do</strong> a primeira vez se ajuntaram com os Gentios? O mistério erazão desta providência foi sem dúvida porque tinha Deus destina<strong>do</strong> aos Judeus paramestres da Fé <strong>do</strong>s Gentios naquela primeira Igreja. E era conveniente e necessáriopara este soberano fim que fossem tantos os mestres quantas eram as nações.Temos a confirmação deste pensamento na mesma Providência Divina, que sempre ésemelhante a si mesma em casos semelhantes. Tratou Cristo de dispor a pregação <strong>do</strong>Evangelho e conversão <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e, depois de nomea<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>ze Apóstolos, emcorrespondência também <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ze filhos de Jacob e <strong>do</strong>s <strong>do</strong>ze tribos de Israel, elegeusinaladamente setenta e <strong>do</strong>is. E <strong>do</strong>is discípulos, como escreve S. Lucas no capítulo X,que man<strong>do</strong>u diante de si: ...designavit Dominus et alios septuginta duos et misit illosbinos ante faciem suam, in omnem civitatem et locum, quo erat ipse venturus. E sebuscarmos nos expositores sagra<strong>do</strong>s o mistério e proporção deste número, respondeS. Jerônimo, e com ele a sentença comum <strong>do</strong>s intérpretes, que foram setenta e <strong>do</strong>isestes novos precursores e embaixa<strong>do</strong>res de Cristo, por serem outras tantas (comodizíamos) as nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, que o Senhor, por meio da sua pregação e <strong>do</strong>utrina,queria trazer (como trouxe) ao conhecimento da Fé. De maneira que, assim comoCristo, no princípio da Lei da Graça, igualou o número <strong>do</strong>s seus discípulos ao dasnações e gentes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, para que levassem por to<strong>do</strong> ele o conhecimento de Deuse a nova de que o Messias era já vin<strong>do</strong>, assim Deus, no princípio da Lei Escrita, mediuo número <strong>do</strong>s filhos de Israel, que são os Hebreus, com o de todas as outras nações egentes <strong>do</strong> mesmo Mun<strong>do</strong>, porque eles eram os que haviam de levar e semear entretodas elas o conhecimento <strong>do</strong> verdadeiro Deus. E a nova e promessa de que o


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 122 de 16927/08/2011Messias havia de vir é explicação admirável de outros setenta e <strong>do</strong>is intérpretes dadivina palavra, os quais, em lugar de — juxta numerum filiorum Israel — tresladaram— juxta numerum Angelorum Dei »— , chaman<strong>do</strong> neste lugar aos filhos de Israelanjos ou embaixa<strong>do</strong>res de Deus, porque esse era o fim e ofício para que foramdestina<strong>do</strong>s a todas as nações e toma<strong>do</strong>s e reparti<strong>do</strong>s conforme o número delas.O terceiro meio de providência particular com que pôde chegar facilmente e chegounaquele tempo aos Gentios o conhecimento da fé e esperança de Cristo, foram asEscrituras Sagradas. O primeiro livro que viu o Mun<strong>do</strong> foi o Pentateuco, de Moisés, enão faltam grandes conjecturas para se crer que Moisés foi aquele prodigiosoMercúrio a quem os Antigos celebraram com o nome de Trimegisto. Este livro foi oque fez aos Caldeus mestres da Ásia, aos Egípcios da África e aos Gregos da Europa.Com razão chamou Clemente Alexandrino a Platão o Moisés de Atenas — MoysesAtlicus — porque de Moisés foram tira<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s aqueles lumes que deram a Platãoem suas obras nome de divino. Deste rústico, que assim lhe chamou Aristóteles,tomou este soberbo e ingrato filósofo a sabe<strong>do</strong>ria mais sublime que o fez o maior daGrécia. Aos livros de Moisés se seguiram os outros sagra<strong>do</strong>s; os <strong>do</strong>s Profetas, quesão entre to<strong>do</strong>s quase os últimos, ainda vencem em antigüidade os mais antigosfilósofos e escritores gentios. Tempore nostrorum prophetarum (diz S. Agostinho)philosophi gentium nondum erant. E como só estes livros havia no Mun<strong>do</strong>, só estesse liam em to<strong>do</strong> ele, dispon<strong>do</strong>-o assim a Providência, que tu<strong>do</strong> governa, para quemais se estendessem por toda a parte e fossem mais celebradas suas notícias.Não lhes podia suceder então às Escrituras divinas o que depois lhes aconteceu comJerônimo, quan<strong>do</strong> as deixou pela suavidade de Túlio, porque ainda não tinha gosta<strong>do</strong>sua <strong>do</strong>çura. Elas só eram o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sábios, elas o entretenimento <strong>do</strong>s curiosos,elas o desvelo <strong>do</strong>s entendi<strong>do</strong>s. Esse foi um <strong>do</strong>s mistérios de Deus, em as fazerescuras, para que, ten<strong>do</strong> sempre que entender, fossem uma e muitas vezes lidas.Quem quiser saber facilmente quão estudadas eram <strong>do</strong>s Gentios as Escrituras, leiacom atenção os livros <strong>do</strong>s seus filósofos, <strong>do</strong>s seus historia<strong>do</strong>res e ainda <strong>do</strong>s seuspoetas, e verá o que delas tomaram, delas imitaram e sobre elas fingiram; veráquanto as não largavam das mãos. «Tu<strong>do</strong> o que compôs o estilo <strong>do</strong>s vossosescritores — dizia Tertuliano aos Gentios — a substância, a matéria, a origem, aordem, as histórias das gentes e das cidades insignes, e ainda as mesmas cidades ealgumas das gentes; as causas e memórias <strong>do</strong> que escreveram e até a forma dasletras e imagens <strong>do</strong>s caracteres, e os vossos mesmos deuses (e não digo nisto maissenão menos) os vossos templos, os vossos oráculos, os vossos sacrifícios, tu<strong>do</strong>vencem em muitos séculos de antigüidade os livros de nossas profecias, e tu<strong>do</strong> foitoma<strong>do</strong> <strong>do</strong> tesouro das escrituras judaicas, que são também as nossas: Omnesitaque substâncias omnesque materias, origines, ordines, venas veterani cujusquestyli vestri, gentes etiam plurasque et urbes insignes, historiarum causas etmemoriarum , ipsas denique effigies literarum indices custodesque rerum, et (putoadhuc minus dicimus) ipsos, inquam, Deos vestros, ipsa templa, et oracula, et sacraunius interim prophetae scrinium, sæculis vincit, in quo videtur thesaurus collocatustotius Judaici Sacramenti, et inde etiam nostri... Até aqui Tertuliano.É certo que, se os versa<strong>do</strong>s nas divinas Escrituras considerassem diligentemente amatéria delas e a traça e harmonia com que foram ditadas pelo Espírito Santo,achariam facilmente que não só foram escritas pela lei e observância <strong>do</strong>s Hebreus,senão também para lição e estu<strong>do</strong> de todas as outras nações; porque, sen<strong>do</strong> um só oPovo de Deus, e os autores que escreveram aqueles livros to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mesmo Povo, aque outro fim se faz neles tão freqüente memória de todas as outras nações <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> e seus sucessos? Assim temos os Cananeus, os Amorreus, os Fereses, osEveus, os Eteus, os Jebuseus, os Filisteus; assim os Ismaelitas, os Amonitas, osMoabitas, os Madianitas, os Gabaonitas, os Amalecitas; assim os Assírios, os Me<strong>do</strong>s,os Caldeus, os Persas, Sírios, os Tírios, os Sidónios, os Egípcios, os Etíopes, osGregos, os Macedónios, os Romanos. E não havia antes de Cristo província conhecidaou cidade de grande nome no Mun<strong>do</strong>, de cujos sucessos se não achasse algumamemória no Testamento Velho, assim <strong>do</strong>s passa<strong>do</strong>s nas histórias, como <strong>do</strong>s futurosnas profecias.Não falo já de Daniel, que falou universalmente de to<strong>do</strong>s os maiores impérios; massó em nove capítulos de Isaías lemos sinaladamente as profecias de onze naçõesdiferentes, chamadas cada urna por seu nome a ouvir a sentença e a saber da bocade Deus o que lhe estava por vir. E que nação destas haveria que não lesse comgrande atenção e cuida<strong>do</strong> os oráculos daquele famoso profeta, onde estavam


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 123 de 16927/08/2011conhecen<strong>do</strong> seus nomes e len<strong>do</strong> as fortunas? Bastava só para mover a curiosidadeuniversal de todas as gentes à lição <strong>do</strong>s livros Sagra<strong>do</strong>s, serem só eles os querevelaram e descobriram o Mun<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> de seu primeiro princípio, tão ignora<strong>do</strong>entre to<strong>do</strong>s os sábios, a origem das línguas, o nascimento das nações, a divisão dasterras, a ordem e cronologia <strong>do</strong>s tempos, <strong>do</strong> que tu<strong>do</strong> houvera perpétua ignorâncianos homens, se não estivera revela<strong>do</strong> nas Escrituras.Mas quan<strong>do</strong> nenhum destes tesouros houvera deposita<strong>do</strong> e encerra<strong>do</strong> nelas, falan<strong>do</strong>somente <strong>do</strong> que pertence à história, que livros se escreveram jamais, não digo <strong>do</strong>sque professam verdade, mas <strong>do</strong>s fingi<strong>do</strong>s e fabulosos, que igualem em grandeza evariedade de casos admiráveis a menor parte ou sombra <strong>do</strong> que se refere nashistórias sagradas?Narraverunt mihi iniqui fabulationes, sed non ut lex tua, dizia Daniel, e mais aindanão tinha si<strong>do</strong> o que depois dele se escreveu. Que gigantes fabulosos filhos da terrase atreveram a edificar uma torre como a de Babel, nem arrimaram escadas ao céu,sem pôr monte sobre monte, como a de Jacob? Que metamorfoses outransformações fingiram como a de Nabuco<strong>do</strong>nosor, converti<strong>do</strong> em bruto, a damulher de Lot em estátua, a da vara de Moisés em serpente, comen<strong>do</strong> serpentes, edepois de serpente convertida outra vez em vara?Descreveram as fábulas o dilúvio, mas não tiveram fantasia para meter to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>em uma arca, nem confiança para o salvar nela. Qual poeta se impôs ou traçoujamais uma comédia como a de Job, uma tragédia como a de Aman, uma novela ouenre<strong>do</strong> como a de José? Em que teatro <strong>do</strong>s Gentios se representaram aparências detanto artifício como um paraíso terreal sumi<strong>do</strong> no meio <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, um Enocdesapareci<strong>do</strong> ,de repente, um Datão e Abiron traga<strong>do</strong>s da terra, e um Elias voan<strong>do</strong>pelos ares em um carro de quatro cavalos, o carro, as rodas e os cavalos tu<strong>do</strong> defogo? Que semelhança tiveram aquelas máquinas que se levantaram com nome demaravilhas <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> com a portentosa grandeza das que lemos nas Escrituras? Queestátua como a de Nabuco, que carroça como a de Ezequiel, que coluna como a <strong>do</strong>Deserto, que jardins como os de Assuero, que palácio encanta<strong>do</strong> como o templo deSalomão, edifica<strong>do</strong> de seus fundamentos sem nele se ouvir o golpe de martelo? Umpavilhão que de dia cobria <strong>do</strong> sol seiscentas mil famílias, uma tocha que de noite asalumiava, já dissemos que se chamava coluna.Que disse a Gentilidade da cítara de Orfeu, que se iguale com a harpa de David, deque fugira o Inferno? Que disse das respostas duvi<strong>do</strong>sas <strong>do</strong> seu Apolo, que se pareçacom os oráculos sempre certos <strong>do</strong> propiciatório? Que disse das vozes de Eudimião,também ouvidas da Lua, que não exceda uma só voz de Josué, obedecida da Lua e<strong>do</strong> mesmo Sol? O caduceu tão celebra<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu Mercúrio que comparação teve comos poderes da vara de Moisés, que dividia os mares, parava os rios, fazia caminhar osmontes? Onde se lê tal agravo de omnipotência como no tenente daquela vara emquem foi culpa tirar fontes de um penhasco com <strong>do</strong>is golpes, porque o podia fazercom uma palavra?Não digo nada <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentas da Escritura, porquanto trato <strong>do</strong> <strong>do</strong>ce e não <strong>do</strong> útil,só <strong>do</strong> que leva o apetite e não <strong>do</strong> que move a razão. Que se podia inventar de maiorpasmo aos ouvi<strong>do</strong>s, que ouvir falar um jumento com Balaão e uma serpente comEva? Que se podia fingir de maior lisonja e admiração ao gosto, que comer em umaiguaria to<strong>do</strong>s os banquetes e gostar em um só maná to<strong>do</strong>s os sabores? Que se podiaimaginar de maior suspensão e assombro à vista, que ver o monstro marinho engolira Jonas, ver levá-lo consigo ao fun<strong>do</strong> e desaparecer, e ver dali a três dias surgir abaleia, desembarcá-lo a fera vivo nas praias de Nínive?Como estes são os prodígios que se encontram a cada página nos Livros Sagra<strong>do</strong>s.Mas que dírei das façanhas e cavalarias que, ainda conhecidas por falsas, deleitam esuspendem tanto a curiosidade <strong>do</strong>s homens? Que desafio como o de David, com umafunda e um caja<strong>do</strong> contra o gigante coberto de ferro? Que batalha como a deGedeão, só com trombetas e luzes em cântaros de barro? Que bateria como a <strong>do</strong>smuros de Jericó, derruba<strong>do</strong>s com os instrumentos <strong>do</strong>s músicos <strong>do</strong> templo! Queemboscada como a de Abimelec em que os bosques e as sombras caminhavamjuntamente e os solda<strong>do</strong>s com eles? Que vitória como a de Jónatas, em que um sócapitão com um só solda<strong>do</strong>, pôs em fugida e desbarato o exército inumerável <strong>do</strong>sFilisteus? Que triunfo como o da galharda Judite, quan<strong>do</strong> entrou pelas portas deBetúlia com a cabeça de Olofernes, em que degolou de um golpe to<strong>do</strong> aquele seu


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 124 de 16927/08/2011exército?Mas passan<strong>do</strong> nós a encontros de maiores forças em que pelejaram os braços e não aindústria, que Hércules Tebano como Sansão, aquele que, ata<strong>do</strong> sete vezes, de umasó rompeu as cordas e nervos como se foram teias de aranha; aquele que, presodentro da cidade de Gaza, quebrou com as mãos os ferrolhos e lançou às costas asportas; aquele que, leva<strong>do</strong> ao templo <strong>do</strong>s Filistinos, lançou a mão direita e esquerdaa duas colunas, dan<strong>do</strong> com o templo em terra, sepultou debaixo dele to<strong>do</strong>s osidólatras; aquele que, com uma queixada de um jumento, matou, em campo aberto,mil de seus inimigos e ainda matara mais, se não fugiram to<strong>do</strong>s?Teve sede Sansão, cansa<strong>do</strong> de matar, e, arrancan<strong>do</strong> um dente da mesma queixada,fez brotar dela uma fonte. Assim obedecem os elementos a quem assim triunfa <strong>do</strong>shomens. Todas estas forças tinha este bizarro mancebo em sete cabelos, porquededicou to<strong>do</strong>s a Deus, desde seu nascimento.Segun<strong>do</strong> Sansão, foi Sangar capitão <strong>do</strong> mesmo povo depois de juiz, e juiz depois delavra<strong>do</strong>r, mas lavra<strong>do</strong>r que, fazen<strong>do</strong> montante <strong>do</strong> ara<strong>do</strong>, matou com ele em um diaseiscentos filisteus, e deixou semean<strong>do</strong> com seus corpos o campo que andavalavran<strong>do</strong>. Fique à trombeta da fama Josué, vence<strong>do</strong>r de trinta e um reis, e ofortíssimo Macabeu, restaura<strong>do</strong>r vítima da sua pátria. Paremos no valente Eleásaro,que, meten<strong>do</strong>-se intrepidamente com a espada debaixo de um elefante arma<strong>do</strong>,primeiro foi mata<strong>do</strong>r de sua sepultura, e depois ficou ali não sei se diga morto, semortalmente oprimi<strong>do</strong> <strong>do</strong> peso de tamanha vitória.Mas deixan<strong>do</strong> a guerra, o sangue e o estron<strong>do</strong> das armas, que história tão admirávelcomo a da casta Susana? Que sacrifício tão lastimoso como o da filha de Jepta, e tãoventuroso como o de Isaac posto já sobre o altar, e de entre a lenha e a espadaescapan<strong>do</strong> vivo? Que caso tão bem teci<strong>do</strong> como o de Moisés infante, já entregue àfúria <strong>do</strong> Nilo na barquinha ou naufrágio de vimes, toman<strong>do</strong> posto nos braços daPrincesa <strong>do</strong> Egito, encomenda<strong>do</strong> com maior ventura à própria mãe para que ocriassem a seus peitos? Que maravilha como a da sarça verde e sem arder no meiodas chamas, a <strong>do</strong>s meninos de Babilônia toman<strong>do</strong> fresco na fornalha, a de Danielcomen<strong>do</strong> e não comi<strong>do</strong> no lago <strong>do</strong>s leões, e a da serpente <strong>do</strong> Deserto dan<strong>do</strong> vida aosmordi<strong>do</strong>s só com olharem para ela? Que prudência como a de Salomão em mandarpartir o menino para conhecer a mãe verdadeira? Que engenho como o de Jacob emmeter as cores pelos olhos das mães, para pintar os cordeiros antes de nascerem?Que indústria como a de Daniel em semear de noite o templo de cinza, para mostrarde dia nas pegadas <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes e seus filhos que eles e não o í<strong>do</strong>lo eram os quecomiam as ofertas? Que subtilezas de Esta<strong>do</strong> tão bem entendidas como as <strong>do</strong>s Livros<strong>do</strong>s Reis, que como as de David com Saul e as de Cusai com Aquitofel?Tu<strong>do</strong> nas divinas Escrituras é divino, tu<strong>do</strong> raro, tu<strong>do</strong> maravilhoso, e fora matériaimensa de prosseguir e impossível de compreender querer levar por diante osprincípios deste não intenta<strong>do</strong> discurso.Bastem estes poucos exemplos, mais aludi<strong>do</strong>s que conta<strong>do</strong>s, para que deles possaentender o leitor (que é o que só lhe pretendemos persuadir) quão fraca seria a todasas nações <strong>do</strong>s Gentios a lição <strong>do</strong>s Livros Sagra<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> chegassem a suas mãos, ecomo este foi o altíssimo conselho da Providência Divina, no estilo e disposição dasescrituras <strong>do</strong> Testamento Velho (tão diversas nesta parte das <strong>do</strong> Testamento Novo)temperan<strong>do</strong> a alteza e majestade de seus mistérios com o sabor de tantas verdadesgostosas e com a variedade de tantas maravilhas tão novas e tão notáveis, para que,convida<strong>do</strong>s com o cevo da curiosidade os que ainda não deviam àqueles livros outrosmelhores respeitos, aprendessem por eles a Fé de Deus e juntamente as esperançasde Cristo.E quão impossível cousa seja poderem ler os Gentios as Escrituras Sagradas, sembeberem daquelas fontes esta esperança, vê-se clara e naturalmente da matéria dasmesmas Escrituras, que, como todas, foram ordenadas à vinda de Cristo, e de Cristoem quanto Rei e Senhor <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, apenas se acha cláusula em muitas delas que nãoesteja anuncian<strong>do</strong> esta vinda e este Reino.Três partes da Escritura, disse Cristo aos discípulos que falavam mais particularmentena sua vinda ao Mun<strong>do</strong>: os Profetas, os Salmos e os livros de Moisés: Necesse estimpleri omnia quae scripta sunt in lege Moysi et prophetis et psalmis de me. E


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 125 de 16927/08/2011deixan<strong>do</strong> à parte os lugares mais escuros (que esses não os entendiam os Gentiossem itérprete) como se viu no eunuco da rainha Cândaces, de Etiópia (se bem haviamuitos hebreus, como dissemos, entre os Gentios, a quem estes podiam perguntar ainterpretação quan<strong>do</strong> quisessem) o cap. 2, o 9, o II, o 35, o 52, o 53, o 54, o 65 e o66 de Isaías, e muitos outros de to<strong>do</strong>s os Profetas, que homem os podia ler com juízoe entendimento, ainda que fosse sem fé, que não visse e conhecesse que eraprometi<strong>do</strong> naquelas palavras um Rei futuro, e não Rei como os que costumava ver noMun<strong>do</strong>, de uma só ou algumas nações, senão de todas as gentes e reinos <strong>do</strong>Universo? E quan<strong>do</strong> todas as outras profecias tivessem alguma escuridade que elesnão pudessem entender ou interpretar por si mesmos, os <strong>do</strong>is textos de Daniel,fundamentais desta nossa <strong>História</strong>, em que o Reino universal daquele futuro Monarcaestá expresso e declara<strong>do</strong> com palavras tão vulgares e tão significativas, e comtermos que Não admitem outro senti<strong>do</strong> nem interpretação, que gentio havia dehaver, por bárbaro e ignorante que fosse, que não fizesse conceito <strong>do</strong> que diziam?Mas basta ao nosso intento que o fizessem os <strong>do</strong>utos e os entendi<strong>do</strong>s. Nos Salmos deDavid, como ele era a quem tão de perto tocava aquela felicidade e a quemparticularmente estava prometida, é cousa maravilhosa a freqüência com que estárepeti<strong>do</strong>, a clareza com que está apregoa<strong>do</strong> e a pompa e majestade de palavras comque está engrandeci<strong>do</strong> o Reino de Cristo. O Salmo II, o Salmo IX, o Salmo XLI, oSalmo XLV, XLVI e XLVII, o Salmo LVIII, LXVII e LXXXVIII, o Salmo XCII, XCV, XCVI,XCVII, o Salmo CII, to<strong>do</strong>s estes catorze salmos têm por principal assunto o Império<strong>do</strong> Messias.E porque não duvidassem os Gentios que eles, as suas terras e as suas coroas, eramas que haviam de ser sujeitas a este grande Império, vinte nove vezes lhes repete einculca o mesmo Daniel esta gloriosa sujeição, falan<strong>do</strong> com eles nomeadamente, enão por termos enigmáticos ou metatífisicos, senão clara e distintamente pelo seupróprio nome de Gentios. Que gentio podia haver tão rude, tão alheio <strong>do</strong> lume darazão e tão gentio, que len<strong>do</strong> no Salmo II: Dabo tibi gentes hæreditatem tuam etpossessionem tuam ter minos terræ; e no Salmo XXI: A<strong>do</strong>rabunt in conspectu ejusuniversæ familiæ gentium, quoniam Domini est regnum; e no Salmo XCVIII: Dominusin Sion magnus, et excelsus super omnes populos; e no Salmo XCV: [Dicite] ingentibus quia Dominus regnavit, etenim correxit orbem terrae; e no Salmo LXXI:A<strong>do</strong>rabunt eum omes reges terræ, omnes gentes servient ei; que gentio, digo, podialer estes textos ou ouvir estes pregões tão expressos e declara<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>do</strong>míniodaquele futuro Rei sobre to<strong>do</strong>s os Reis e nações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, que, se não cresse aquelaFé, ao menos não conhecesse aquela esperança?Deixo de ponderar mais lugares de David, porque o faremos muitas vezes, em todaesta <strong>História</strong>.Finalmente, os livros de Moisés (que era a 3. a alegação de Cristo), posto que sejamprincipalmente históricos e não proféticos, não só têm por ocasião da mesma históriamuitas profecias e promessas desta esperança, mas tão dirigidas e encaminhadastodas as nações, nomeadamente <strong>do</strong>s mesmos Gentios, que não podiam deixar de serlidas deles com grande advertência e recebi<strong>do</strong>s com grande aplauso. No capítulo XII,<strong>do</strong> Gênesis, a primeira vez que Deus apareceu a Abraão e o man<strong>do</strong>u sair da pátria,lhe prometeu que seriam abendiçoadas nele todas as nações da terra: In tebenedicentur universæ cognationes terræ; e no capítulo XVIII torna a referir Deusesta mesma promessa: ...cum benedicendae sint in illo omnes nationes terræ; e nocapítulo XXII, em prêmio da resolução e obediência com que Abraão não duvi<strong>do</strong>u desacrificar seu filho, lhe promete Deus terceira vez a mesma bênção, com declaraçãoque não seria na sua pessoa, senão na de um seu descendente: Benedicentur insemine tuo omnes gentes terrae. A qual promessa tornou Deus a ratifica quarta equinta vez em Isaac, filho, e em Jacob, neto <strong>do</strong> mesmo Abraão, sempre pelasmesmas palavras. Em Isaac no capítulo XXVI: Benedicertur in semsa tuo omnesgentes terræ; e em Jacob, no capítulo XXVIII: Benedicentur in semine tuo cuntaetribus terræ; finalmente, no capítulo XLIX <strong>do</strong> mesmo livro <strong>do</strong>s Gênesis está o famosotexto já referi<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is em que fundamos to<strong>do</strong> este discurso: Non auferetursceptrum de Juda, <strong>do</strong>nec veniat qui mittendus est, et ipse erit expectatio gentium.De sorte que em um só livro de Moisés tinham os Gentios seis profecias claras e queclaramente falavam com eles, nas quais se lhes prometia por boca de Deus queseriam abendiçoadas em um homem da descendência de Abraão, que era o espera<strong>do</strong>Rei e Messias <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Assim que, len<strong>do</strong> os Gentios como liam as Escrituras, e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 126 de 16927/08/2011particularmente os livros de Moisés, os <strong>do</strong>s Salmos e os <strong>do</strong>s Profetas, não podiamdeixar de vir em conhecimento, e tal conhecimento de Cristo, que to<strong>do</strong>s o desejasseme esperassem to<strong>do</strong>s.O quarto e último meio e mais imediato da Providência Divina, com que as naçõesgentílicas puderam conhecer, e com efeito conheceram, o prometi<strong>do</strong> Messias, forammuitas revelações particulares daquele mistério com que Deus em diferentes temposalumiou por si mesmo a vários homens e mulheres de toda a Gentilidade. Seja oprimeiro exemplo desta luz aquele grande varão mais conheci<strong>do</strong> pelo testemunho dapaciência que pelo lume da profecia, Job.Era Job verdadeiramente gentio, idumeu de nação, natural da terra de Hus, e foiinsigne profeta de Cristo, a quem conheceu por universal Redentor: Et scio quodRedemptor mous vivit; e em quem esperou ver a Deus vesti<strong>do</strong> de carne: In carnemea videbo deum meum; e esta esperança, como ele diz, trazia sempre guardada noseio: Reposita est haec spes mea in sinu meo». Similiter et Job—diz SantoAgostinho— eximius prophetarum, et in carne mea videbo Deum meum, quod de illotempore prophetavit quia Christi deitas habitum nostrae carnis induta est.Os amigos de Job também eram gentios de outras províncias vizinhas, e tambémalumia<strong>do</strong>s da mesma fé e confirma<strong>do</strong>s na mesma esperança, como consta da mesmahistória e <strong>do</strong> que eles disseram nela; e como to<strong>do</strong>s fossem reis e senhores de suasterras (assim lhes chama o Texto Sagra<strong>do</strong> no capítulo I de Tobias) com aquelasuprema autoridade e com o conhecimento e sabe<strong>do</strong>ria que tinham <strong>do</strong> Céu , já se vêquão ensina<strong>do</strong>s teriam nela a to<strong>do</strong>s seus vassalos, e quão pública seria entre eles aesperança de CristoBalaão (cujo espírito profético é tão vulgar que não tem necessidade de provas) nãosó foi gentio, senão mau gentio. Dele diz S. Máximo: Nemo [...] miretur netivitatem<strong>do</strong>minicam agnovise Chaldaeos quam utique, si revelante Deo praenuntiare potuit;potuit Gentilis agnoscere. Este Balaão, este gentio, (o qual não duvi<strong>do</strong>u de se chamara si mesmo auditor sermonum Dei, qui novit <strong>do</strong>ctrinam Altissimi et visionemOmnipotentis vidit) profetizou claramente de Cristo e de seu império naqueletexto ,tão celebra<strong>do</strong> no capítulo XXIV <strong>do</strong>s Números: Videbo eum, sed non mo<strong>do</strong>;intuebo, illum, sed non prope: orietur stella ex Jacob, et consurget virga de Israel, etpercutiet duces Moab, vastabitque omnes filios Seth. Quer dizer: «Vê-lo-ei, mas nãoagora; olharei para ele, mas não de perto; nascerá a estrela de Jacob, e levantar-seáo ceptro de Israel; vencerá to<strong>do</strong>s os capitães <strong>do</strong>s Gentios e sujeitará todas asnações <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.» As quais palavras foram sempre entendidas, assim pelosHebreus, como pelos Gentios, de um Rei descendente da casa de Jacob, que emtempos futuros havia de imperar no Mun<strong>do</strong> e havia de sujeitar a seu <strong>do</strong>mínio todas asnações dele.E digo que não só os Hebreus entendiam assim este lugar, mas também os Gentios,por ser muito célebre entre eles a notícia deste oráculo, e muito famosa, ou difamada(como diz S. Leão Papa), a memória desta profecia, pela qual memória ou notícia (dizo mesmo santo) informa<strong>do</strong>s os Reis Magos, puderam argüir <strong>do</strong> aparecimento da novaestrela o nascimento <strong>do</strong> novo Rei: ...ad intelligendam miraculum signi potuerunt Magietiam de antiquis Baluam praenuntiationibus commoveri scientes alim essepraedictum et celebri memoria diffamatam. Notem-se bem estas últimas palavras, deque se ve facilmente quão notória era no Mun<strong>do</strong> e quão pública entre os Gentios estaesperança.Das Sibilas (profetizas também da Gentilidade) diz assim Xisto Betuleu, nasAnota,cões que fez sobre o original grego <strong>do</strong>s oráculos sibilinos: Sic prarsus sentioDeum totius universitatis opificem et administrum aeternum, suum votum et totamillam futuram seriem praesertim ad salatem mortalium spectantem, sicut Israeli perprophetas, ita gentibus per Sibyllas ostendere voluisse per idem numen fatidicum.Quer dizer este autor (e o confirma com o que disseram das Sibilas Lactanio Firmianoe S. Agostinho) que comunicou Deus o espírito de profecia a estas famosas mulheres,porque, assim como os Hebreus tiveram os seus Profetas, tivessem também osGentios os seus, por cujo meio a uns e outros fossem manifestos os conselhosdivinos, principalmente aqueles que para a salvação uníversal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> eramnecessários, conforme a ordem e disposição eterna de sua providência.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 127 de 16927/08/2011E se alguém perguntar curiosamente a quem e por cu]a boca falou Deus maisclaramente, se aos Hebreus pelos Profetas, ou aos Gentios pelas Sibilas, respon<strong>do</strong>que em muitas cousas particulares, principalmente das que pertencem a Cristo,falaram com termos de maior clareza as Sibilas <strong>do</strong> que os Profetas, como se pode verfàcilmente de uns e outros livros. De muitos lugares e exemplos que pudera trazerdesta diferença, porei sòmente aqui <strong>do</strong>is, para que se veja quão fácil era aos Gentioso conhecimento de Cristo pelos livros ou oráculos das Sibilas, antes quão impossívelcousa era lerem eles, como liam, aqueles livros, e não terem notícia da Messias e daesperança e promessa de sua vinda, forman<strong>do</strong> ao menos um conceito comum, econceito de um Rei e de um Império futuro, debaixo <strong>do</strong> qual se havia de renovar erestaurar o Mun<strong>do</strong>. No fim <strong>do</strong> Livro II diz a Sibila Eritrea estes versos:Sed postquam Roma AEgyptum reget imperioqueFraenabit, summi tum summa potentia regniRegis inextincti mortalibus exorietur.Rex etenim sanctus veniet, qui totius orbisOmnia sceculorum per tempora sceptra tenebit.Não se podia descrever com maior clareza o tempo e circunstâncias <strong>do</strong> nascimento deCristo, a soberania de seu supremo poder e a Monarquia Universal de seu Reinosobre to<strong>do</strong>s os ceptros e coroas <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Diz que nasceria este Rei e daria princípioa seu Império quan<strong>do</strong> Roma <strong>do</strong>minasse e governasse o Egito; e assim foi, porquedepois da vitória de Augusto César, em que venceu a Marco António e Cleópatra noEgito, e acabou de <strong>do</strong>minar o Império Romano, as últimas relíquias de poder em quese conservava o Grego não passaram mais que <strong>do</strong>ze anos, até o nascimento deCristo, como consta da... (lacuna <strong>do</strong> original)No Livro VIII (que é o último) tem a mesma Sibila outros versos mais notáveis <strong>do</strong>género daqueles que os Gregos chamaram acrósticos, cujo artifício é lerem-se pelasprimeiras letras, e formar-se com elas alguma sentença, nome ou inscriçãoparticular. Os versos, pois, são trinta e cinco e a sentença é esta: Jesus Christus, Deifilius, servator CruxJesus Cristo, Filho de Deus, Salva<strong>do</strong>r cruz.Estes versos estão em toda a sua propriedade no texto grego, e não se poderãotraduzir na língua latina com o motivo daquelas letras sem alguma variedade. S.Agostinho, no Livro XVIII De Civitate Dei, cap. XXIII, diz que a primeira versão quechegou a suas mãos deste acróstico era em versos mal latinos, e que se não podiamter em pé: Versibus male latinis et non stantibus; tão galante é a frase com que oSanto declara o mal fala<strong>do</strong> e mal medi<strong>do</strong> daqueles versos. Depois diz que o ProcônsulFlaviano lhe mostrou outros mais conformes às leis da gramática e da poesia, osquais copia este naquele lugar, e nós deixamos de os pôr aqui, porque não guardama ordem das letras iniciais, propriedade que falta em muitas outras versões latinas. Ade João Bongro, traduzida por Xisto Betuleu, compreendeu e cumpriu felizmente comtodas estas dificuldades, sem tomar outra licença mais que a de desatar a últimaletra em duas, e fazer de um X, C e S. É a seguinte:Judicii metuet sudans presagia tellusEt Rex ceternus magno descendet OlympoSublimis carnem mundumque ut judicet, omnem.Unum suscipient numen pravique boniqueSummum, supremo cum Sanctis tempore mundi.Carnifer ille homines judex inquiret in omnes,Horrida terra vias caeli spinceque tenebunt.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 128 de 16927/08/2011Rejicient simulacta viri, gazamque retostam.Ille <strong>do</strong>mus caecas et Ditis claustra refringet.Sanctior a mortis jam nexu libera lucemTurba hominum cernet, scelerosos flamma piabitUltrix bertetuum: mala quae quicumque patravitSontica suppressitque diu, producent in aurasDeteget et turbis Deus obsita corda tenebris;Erumnae et stri<strong>do</strong>r dentis regnabit ubique;Ipsum deficiet solis decus astra coloreFusco obducentur, argentea luna peribit,Insurgent valles, consident ardua montis,Luxus sublimis mortales deseret oras.Immensos colles aequabunt marmora campi.Velivago nulli cernentur in aequore nautae.Succendet terram fulmen, vaga lymphaSolis arescet ripis, fontesque dehiscent:Et tuba de caelo tristis clangore sonabitRaucisono mundi clades pereuntis acerbas;Vastam terra chaos stygio monstrabit hiatu,Atque Dei solio sistetur judicis omnisTurba ducum regumque; pluet tum sulphure et igniOmnibus extabunt ligni vexilla verendiALIGN="JUSTIFY">Robur et auxilium populo exoptata fidéli:Certa pio generi vita, ast offensa malignis,Rore bonos lustrans bisseni fontis ab unda:Virgaque qua pecori dat ferrea jura magisterCarminis auspiciis qui crimina morte piabitServator Rex arternus Deus ipse patescit.Destes mesmos versos faz menção Eusébio Cesariense na Vida de ConstantinoMagno, e Marco Túlio, que morreu cinquenta anos antes <strong>do</strong> nascimento de Cristo, nolivro II De Divinatione. O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s versos, em suma, é a vinda de Cristo a julgaro ,Mun<strong>do</strong>, com todas as circunstâncias de grandeza, majestade e horror quepertencem ao aparato e execução <strong>do</strong> juízo.O mistério da encarnação está com tanta e maior clareza no Livro I <strong>do</strong>s mesmosoráculos das Sibilas:


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 129 de 16927/08/2011Tunc ad mortales veniet, mortalibus ipsisIn terris similis, natus Patris omnipotentisCorpore vestitus.Não falou com palavras mais claras S. Paulo, quan<strong>do</strong> disse: In similitudinemhominum factus et habitu inventus ut homo. E mais abaixo se lê a pregação <strong>do</strong>Baptista, quase pelas mesmas palavras de S. Mateus:Verum cum quaedam vox per deserta locorumNuncia mortales veniet, quae clamet ad omnesUt rectos faciant calles, animosque refurgentA vitiis et aqua lustrentur corpora cuncta,Ut nunquam <strong>do</strong>incets peccent in jura, renati...A embaixada <strong>do</strong> Anjo à Virgem com o mesmo nome de Gabriel descreve a Sibila noLivro VIII por estas palavras:E caelo veniens mortales induit artus.Ac primum cortpus Gabriel ostendit honestumNuncius, hinc tali affatur sermone puellam:Accipe, Virgo, Deum premio intemerata pudico.Sic ait: est illam caelestis gratia mo11iLeniit afiatu: tum virginitatis amatrixPerpetuae magno subito correpta stuporeAtque metu trepida pressit formidine mentem.E pelo mesmo estilo vai prosseguin<strong>do</strong> a história da encarnação, segun<strong>do</strong> as leis dahistória. E porque não faltasse com todas estas circunstâncias, até o presépio deBelém, alegria e pasmo <strong>do</strong>s pastores, aparecimento da estrela e a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong>s Reis. Onome da Virgem, assim como tinha declara<strong>do</strong> o <strong>do</strong> Anjo, diz no mesmo lugar:Et brevis egressus Mariae de Virginis alvoExorta est nova lux.Finalmente, resumin<strong>do</strong> todas as obras de Cristo, assim da vida santíssima, como dasua Paixão, até lhe pôr a coroa (como se esta fora o fim e assunto <strong>do</strong> seu poema)conclui com estes versos:Ergo ad judicium veniet diciti memor hujus,Persimilem formam portans in Virginis alvum,Collustrans lympha manibus senioribus (?) omnes


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 130 de 16927/08/2011Cuncta jubens faciet morboque medebitur omni.Placabit ventos dicto sternetque profundumInsanum, placidis pedibus calcan<strong>do</strong>, fideque,Ad virosa genas praedebit sputa prudentesVerberibusque sacrum tradet proscindere tergum[Viriginem enim castam tradet mortalibus ipse.]Perque feret tacitus cotaphos ne forte sciaturQuis sit, cujus, mortalibus unde locutumVenerit, horrentemque feret de vepre coronam.Até aqui a Sibila, compreenden<strong>do</strong> admiravelmente em tão poucas regras onascimento virginal de Cristo, o sacramento <strong>do</strong> batismo, que instituiu e administrou,depois que teve (como ele diz) maiores as mãos, o império que exercitou sobre todasa criaturas, as enfermidades que curou milagrosamente, os mares que pisou andan<strong>do</strong>placidamente, sobre as ondas, a sujeição com que lhe obedeceram os ventos, apaciência e humildade com que sofreu ser cuspi<strong>do</strong>, açouta<strong>do</strong> e afronta<strong>do</strong> com mãossacrílegas em seu próprio rosto, e coroa<strong>do</strong> por escárnio com coroa de espinhos,dissimulan<strong>do</strong> debaixo de tantas injúrias a grandeza, poder e majestade de quem erae de quem o mandara ao Mun<strong>do</strong>.Tanta como esta é a clareza com que falaram de Cristo as Sibilas, qual se não achamaior nem ainda igual nos Profetas. Sen<strong>do</strong> a razão desta providência (como bemnotou Castálio) a rudeza e ignorância das cousas divinas em que viviam os Gentios,aos quais era necessário se falasse com maior clareza <strong>do</strong> que aos Hebreus, nasci<strong>do</strong>se cria<strong>do</strong>s entre os resplan<strong>do</strong>res da Fé e conhecimento de Deus, ten<strong>do</strong> também estesali tantos mestres que os pudessem alumiar e ensinar, e carecen<strong>do</strong> aqueles de toda aluz e <strong>do</strong>utrina.Se já não foi (como considera o mesmo autor e o prova com Isaías) que a escuridade<strong>do</strong>s Profetas, por permissão ou castigo, se acomo<strong>do</strong>u à cegueira com que os Judeushaviam de negar a Cristo, e a claridade das Sibilas à fé com que os Gentios o haviamde crer. Nonne (são as palavras de Castálio) quae de Christo gentibus praedicta suntea clariora esse oportuit, quod Mose et cetera disciplina carebant, quae eis ad Christilumen quasi proluceret: ut quod hic durat, id oraculorum perspicuitatecompensaretur? Accedit eo quod (quemadmodum scitur ex Isaia) voluit Deus Judaeisobscuriorem esse Christi adventum, ut in eum obscurarent alque ita sua, pertinaciaepoenas darent, quod idem de gentibus dicere non licet.Por meio destes oráculos das Sibilas, que andavam nas mãos de to<strong>do</strong>s,principalmente <strong>do</strong>s sábios, como se vê em Platão e Aristóteles, era tão vulgar efamosa entre os Gentios a esperança daquele novo Rei e da idade <strong>do</strong>urada que haviade trazer ao Mun<strong>do</strong> com seu felicíssimo Reino, quanto a lemos elegantementeprofetizada na IV Égloga de Virgilio, que morreu treze dias antes <strong>do</strong> nascimento deCristo, e cita nela os oráculos da Sibila Cumea:Ultima Cumaei venit jam carminis aetas,para que entendêssemos que as Sibilas foram as Musas Sicélides que exercitaramcousas maiores, e que destas fontes bebeu aqueles levanta<strong>do</strong>s espíritos, e não nas


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 131 de 16927/08/2011de Aganipe ou Hipocrene.Eusébio Cesareense, no já cita<strong>do</strong> livro da Vida de Constantino Magno, é de opiniãoque esta quarta Égloga de Virgílio é toda alegórica, e que debaixo da metáfora deAsínio, filho de Polion, foi verdadeiramente escrita e dedicada a Cristo, filho <strong>do</strong> EternoPadre, encobrin<strong>do</strong> e envolven<strong>do</strong> o vigilantíssimo Poeta a verdade desta sua fé epensamento com as figuras e metáforas daquele seu Mecenas, para que o nãocondenasse a superstição romana como viola<strong>do</strong>r da divindade <strong>do</strong>s deuses.Intelligimus autem (diz Eusobio) dicta haec manifeste simul et obscure per allegoriasprolata iis, qui carminum horum sensum altius sub conspectum divinitatis Deiscrutantur, innuere quomo<strong>do</strong> Poeta, ne quis eorum qui in regio orbe denominabantur,culpare posset quod contra patrias leges scriberet, et quae jam olim inde a majoribusde diis credita fuiissent, rejiceret, veritatem occuluerit.Desta mesma opinião de Eusébio são outros muitos autores, os quais constantementese persuadem que o sujeito da IV Égloga virgiliana não foi outro senão Cristo,conheci<strong>do</strong> pelos oráculos das Sibilas, e certo são tão extraordinariamente grandes ascousas que o príncipe <strong>do</strong>s poetas diz naquele poema bucólico, que nem ainda <strong>do</strong>mesmo César se puderam dizer sem nota de demasiada adulação e indigna de um tãoeminente juízo como o de Virgílio, talha<strong>do</strong> verdadeiramente para poeta de Cristo.Quem tiver curiosidade de ver a alegoria de toda a Égloga aplicada e explicada deCristo, veja nos Antigos ao mesmo, e <strong>do</strong>s Modernos ao P. e Lacerda, e sobre to<strong>do</strong>s(lacuna no original)..... que de versos de Virgílio teceu e compôs felizmente toda avida de Cristo .As razões mais fundamentais e sólidas com que se persuade e converte a verdadedeste império temporal de Cristo são as que imediatamente se tiram <strong>do</strong>s mesmostítulos que acabamos de declarar. E assim a primeira e mais relevante de todas sefunda na união hipostática com que a humanidade sagrada de Cristo está unida aoDivino Verbo, posto que esta mais se pode chamar natureza que razão; outra é omerecimento infinito de Cristo, inseparável a todas as suas acções, pelo qual lheeram devidas todas as dignidades e grandezas humanas, sem exclusão de poder,autoridade e soberania alguma, em consequência <strong>do</strong> qual merecimento se ajuntou aele a vontade eficaz divina, que foi o princípio efectivo <strong>do</strong>nde manou e se derivou aCristo a comunicação liberalíssima, e como investi<strong>do</strong>ra absoluta desta suprema euniversal potestade; assim que as razões fundamentais <strong>do</strong> império temporal de Cristosão três: o ser quem é, o seu merecimento e a von tade divina, que é razão de simesma.Estas razões capitais se podem ajudar e revestir de várias congruências, quefàcilmente se consideram muito convenientes todas ao decoro e majestade de Cristo;o qual, como cabeça <strong>do</strong>s homens que são compostos de carne e espírito, não erajusto que tivesse sobre eles o <strong>do</strong>mínio parti<strong>do</strong>, senão inteiro, assim sobre as cousas eacções concernentes ao espírito, como as que pertencem ao corpo; antes, por Cristoser verdadeiro e inteiro homem, composto não só de espírito, se não de carne, foimuito conveniente que não só tivesse o Império espiritual que pertence às almas, senão também o temporal que é próprio das corpos: ...ut sicut ipse e corpore et spiritucompositus erat, ita eum (Pater) et regem spirituum et corporum etiam fecerit, uttam late ipsius regnum et imperium pateret quam ipsius Dei, como <strong>do</strong>utamente disseStuniga, comentan<strong>do</strong> o capítulo IX, v. 9, <strong>do</strong> Profeta Zacarias.Se os Trajanos e outros impera<strong>do</strong>res e príncipes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> deram seus impérios e


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 132 de 16927/08/2011reinos inteiros aos estranhos que a<strong>do</strong>ptaram por filhos, como havemos de crer nemimaginar que desse Deus só uma parte de seu império e <strong>do</strong>mínio a Cristo, que não sóem quanto Deus, se não ainda em quanto homem, éseu filho natural e verdadeiro eunigénito? Se quis e não pôde (como em semelhante caso argumentava Agostinho)foi fraqueza; se pôde e não quis, foi inveja, e um ou outro pensamento fora blasfêmiacontra o omnipotente amor de tão divino Pai.A Adão deu Deus o império universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> com sujeição e otediência a todas ascriaturas dele, só por ser feito a sua imagem e semelhança: Faciamus hominem adimaginem et similitudinem nostram, ut praesit piscibus maris, et volatilibus caeli, etbestiis terrae,. Como negaria logo Deus este mesmo poder, não digo já àquelesegun<strong>do</strong> Adão que veio restaurar as ruínas <strong>do</strong> primeiro, senão àquele que é imageme retrato perfeitíssimo de sua sustância: Ipse est enim imago Patris et figurasubstantiae ejus? Haverá quem se atreva a dizer ou presumir que foi menor o poderde Cristo no Mun<strong>do</strong> que o de Adão ou que teve Adão poder que faltasse a Cristo? Acarne de Adão que tomou Cristo não foi de Adão peca<strong>do</strong>r, senão de Adão inocente,porque, como advertiu o Apóstolo, tomou a carne e não contraiu o peca<strong>do</strong>. E seCristo não foi filho de Adão escravo, se não de Adão senhor, porque não reteria aomenos o que não perdeu em seu Pai?A geração de Cristo escrita por S. Mateus começa em David, e por S. Lucas em Adão;e se, por filho de David, melhor que Salomão lhe foi devi<strong>do</strong> o ceptro de Israel, porfilho de Adão, melhor que Caim e Abel, porque se lhe há-de negar o <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>?Finalmente, é príncipio geral e recebi<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os teólogos, que se deve conceber eadmitir na soberana pessoa de Cristo to<strong>do</strong>s aqueles atributos de poder, grandeza emajestade, que sem implicação nem indecência se podem considerar nela, porqueto<strong>do</strong>s lhe são infinitamente devi<strong>do</strong>s; e tão fora está deste perigo o império e <strong>do</strong>míniotemporal que admitimos em Cristo, que antes da falta dele se podem arguirconheci<strong>do</strong>s inconvenientes, e ainda alguma consequência indigna e de menos decoro.Porque o império espiritual de Cristo, por supremo e universal que seja, só tem podere jurdição indirecta sobre as cousas e acções temporais, enquanto estas se ordenamou subordinam ao fim e conservação das espirituais: e no caso ou suposição em queCristo sòmente fosse Rei espiritual, segue-se (como <strong>do</strong>utamente infere o PadreSoares) que, se Cristo quisesse mandar a um homem ou a um anjo uma acçãomeramente temporal alheia (ainda que fosse para obrar um milagre), que o nãopoderia fazer livre e abs olutamente a seu arbítrio e sem licença <strong>do</strong> <strong>do</strong>no dela (secòmodamente o pudesse fazer de outra sorte): Indignum autem videtur (conclui ogrande Doutor) haec et similia de Christi potestate sentire. Sen<strong>do</strong> logo estesentimento indigno <strong>do</strong> poder e majestade de Cristo e da soberania de sua pessoa,necessàriamente havemos de dizer e confessar, em boa teologia, que não é sòmenteespiritual o império e <strong>do</strong>mínio que Cristo tem sobre o Mun<strong>do</strong>, se não tambémtemporal, e que espiritual e temporalmente lhe são to<strong>do</strong>s os homens e todas ascousas sujeitas.E quanto ao reparo da pobreza e desprezo das cousas temporais que Cristo veioensinar ao Mun<strong>do</strong>, nós nos contentaremos com que os autores deste escrúpulo, porsantos e espirituais que sejam, se contentem com o que se contentou este Monarcatemporal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>: imitem a pobreza de Cristo, pobre no nascimento, pobre na vida,pobre na morte, e pobre sobretu<strong>do</strong> na eleição de pais pobres, e não queiram maispobreza, nem mais exemplo em Cristo. Muitos há que querem parecer pobres; algunsque o querem ser; mas quem queira ser e parecer filho de pobres: Quis est hic etlaudabimus eum? Só Cristo e quem tem muito de Cristo.O <strong>do</strong>mínio universal que Cristo tinha <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> era o que mais subiu de preco osquilates de sua pobreza. Não ter uso das cousas <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> quem não tem ou teve


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 133 de 16927/08/2011<strong>do</strong>mínio delas, virtude pode ser, mas virtude que parece fortuna ou necessidade;porém senhor absoluto de tu<strong>do</strong> quanto há e pode haver no Mun<strong>do</strong>, e ter menos uso<strong>do</strong> mesmo Mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> que os bichinhos da terra, e poder dizer com verdade: Vulpesfoveas habent et volucres caeli ni<strong>do</strong>s; filius autem hominis non habet ubi caputreclinet, oh! que pasmo, oh! que exemplo, oh! que confusão para os homens, aindaos mais despreza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>!Mas replicam a esta resposta os autores da contrária opinião, e dizem que a pobrezaevangélica, de que Cristo professou ser mestre, não consiste só na mortificação outemperança <strong>do</strong> uso das cousas temporais, se não principalmente na renunciação <strong>do</strong><strong>do</strong>mínio delas; logo, no desprezo e abdicação deste <strong>do</strong>mínio é que devia Cristo darnoso exemplo da perfeita pobreza. E pois é certo que foi Cristo consumadíssimoexemplar de todas as virtudes, e muito pa rticularmente desta , segue-se que não sónão te ve o uso das cousas temporais, se não que também careceu <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio detodas.Primeiramente digo que, para Cristo ser perfeitíssimo mestre e exemplar de todas asvirtudes, não era necessário exercitar to<strong>do</strong>s os actos particulares delas, ainda que ostivesse ensina<strong>do</strong>. Não era menos mestre nem menos exemplar Cristo da paciência <strong>do</strong>que o foi da pobreza, e sen<strong>do</strong> uma das mais altas proposições de sua <strong>do</strong>utrina namatéria <strong>do</strong> sofrimento, cum te percusserint in una maxilla, praebe illi et alleramsabemos contu<strong>do</strong> que, quan<strong>do</strong> deram a Cristo a bofetada em presença <strong>do</strong> PontíficeCaifás, não ofereceu o Senhor a outra face, antes acudiu à calunia de que falsa esacrilegamente o arguiam.Mas deixada esta estrada geral, porque não é nosso intento divertir o argumento,senão desfazê-lo, digo outra vez que na pobreza de Cristo, quanto a renunciação <strong>do</strong><strong>do</strong>mínio, havia outra razão mais forçosa e necessária, que era ser este actoincompatível com a natureza e essência <strong>do</strong> mesmo Cristo. Porque aquele <strong>do</strong>míniosupremo e uníversal de todas as cousas fundava-se imediatamente, como dissemos,na união hipostática, e era não só propriedade inseparável, senão parte intrínsecadela; e assim como Cristo não podia renunciar nem abdicar de si a própria natureza,assim (diz o Padre Vasquez) não podia renunciar nem demitir de si o direito soberano<strong>do</strong>mínio. O que podia só fazer Cristo era privar-se <strong>do</strong> uso dele, e assim o fez tãoperfeita e perfeitissimamente como sabemos. Quanto mais qnue ainda no caso emque fora possível na pessoa de Cristo a renunciação <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio temporal de todas ascousas, porventura que era mais conveniente ao mesmo exemplo <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>conservar o <strong>do</strong>minio sem o uso, que renunciar o uso e mais o <strong>do</strong>mínio; porqe Cristo,como mestre e exemplar da perfeição evangélica, não só devia dar exemplo aosreligiosos que professam renunciar o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s bens temporais senão também aosprela<strong>do</strong>s e bispos, e ao supremo bispo e supremo prela<strong>do</strong>, cujo esta<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> demaior perfeição, conserva o <strong>do</strong>mínio e administração <strong>do</strong>s bens e só periga ou podeperigar na imoderação ou excesso <strong>do</strong> uso deles. Foi logo convenientíssimo que emCristo se ajuntasse o sumo <strong>do</strong>mínio e o sumo desprezo e abstinência das cousas <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, para que no mesmo exemplar aprendessem os religiosos a mortificação <strong>do</strong>uso e os prela<strong>do</strong>s a moderação <strong>do</strong> <strong>do</strong>minio.Finalmente, para que ponhamos o selo à confirmação desta nossa sentença eacabemos de desfazer as razões ou admirações, como dizíamos da parte contrária,provemos demonstrativamente a causa pelos efeitos, a potência pelos actos, ajurdição pelo exercício, e o direito (<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> que pode ser) pela posse. Temos nesteponto contra nós não só os inimigos, senão também os amigos. Resolvem osdefensores da opinião contrária, e também muitos da nossa, que Cristo em toda asua vida, não teve exercício algum <strong>do</strong> império temporal, nem em quanto Rei nem emquanto Senhor, porque nem fez acto que fosse próprio da dignidade real, nem seserviu de cousa alguma <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, como quem teve só o <strong>do</strong>mínio e senhorio dele. Edaqui inferem, não to<strong>do</strong>s mas só os que impugnam a nossa sentença, que vinha a sertotalmente ocioso este império temporal que consideramos em Cristo, e por


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 134 de 16927/08/2011conseguinte nulo, conforme aquele princípio vulgar da filosofia: Frustra est potentiaquae non reducitur ad actumMas começan<strong>do</strong> pela forma desta consequência, ou colhe demasiadamente ou nada.Porque tão boa consequencia é esta: Cristo não teve exercício de rei, logo não tevepoder real; como esta: Cristo não teve exercício de juiz, logo não teve poder judicial.E nesta segunda consequência, sen<strong>do</strong> de Fé a premissa, é contra a Fé a conclusão. Apremissa é de Fé, porque lemos no capítulo XII, de S. Lucas, que, pedin<strong>do</strong> <strong>do</strong>isirmãos a Cristo que julgasse certa dúvida que tinham entre si, o Senhor lhesrespondeu: Quis me constituit judicem super vos? E a conclusão é contra a Fé,porque neiga contraditòriamente o texto de S. Paulo: Pater non judicat quemquam,sed omne judicium dedit filio, quia filius hominis est. Antes daqui se forma novoargumento em confirmação da verdade da nossa sentença, porque a potestadejudiciária em Cristo foi consequência da dignidade real, como expressamente ensinaS. Tomás na Questão LIX, Art. IV, ad. I: Potestas judicis secuta est in Christo regiamdignitatem. E a razão desta ordem natural é, posto que o Santo Doutor a nãoexprima, porque o ofício de julgar é parte da dignidade de Rei, conforme o texto deDavid: Et nunc, Reges, intelligite: erudimini qui judicatis terram. Por isso o mesmoCristo, descreven<strong>do</strong> o supremo e último acto de juízo em que há-de sentenciar oMun<strong>do</strong>, se chama nomeadamente Rei: Tunc dicet Rex his qui a dexteris ejus eruntetc. E se é certo e de Fé que Cristo tem esta parte da jurdição e dignidade real,porque havemos de ser tão estreitos de coração que lha não concedamos toda?Os que admitem ou veneram connosco em Cristo o título e <strong>do</strong>minio de rei econcedem contu<strong>do</strong> que não teve exercício dele, dizem muito <strong>do</strong>uta econsequentemente que, ainda que a dignidade e jurdição real em Cristo não tivesseacto ou exercício algum em sua vida, nem o haja de ter em outro tempo, nem porisso se deve julgar aquele poder por balda<strong>do</strong> e ocioso, porque serve, como falam osfilósofos, de ornar e mais aperfeiçoar o sujeito. Bem assim como na humanidade <strong>do</strong>mesmo Cristo é certo que houve alguma potência, que nunca teve nem havia de teracto (qual é a potência que há nos indivíduos para a conservação da espécie); econtu<strong>do</strong> ninguém a nega nem pode negar em Cristo, porque é perfeição natural daHumanidade.Persistin<strong>do</strong> na mesma suposição, se pode também dizer, não in<strong>do</strong>uta nemindiscretamente, que, ainda que o <strong>do</strong>mínio temporal de Cristo não teve aqueles actosou exercício positivo que costuma ter nos reis e príncipes da terra, teve porém umacto excelentissimo e urn exercício contínuo, nunca visto até então no Mun<strong>do</strong>, a quepodemos chamar negativo, que foi o não querer usar Cristo <strong>do</strong> mesmo <strong>do</strong>minio. E tero <strong>do</strong>mínio para poder e não querer usar dele (que é um acto heróico de humanidadee modéstia, o qual necessàriamente supõe o mesmo <strong>do</strong>mínio) não é tê-lo ocioso, senão mui gloriosamente xercita<strong>do</strong>, de maneira que neste senti<strong>do</strong> (que nem é vulgarnem violento) podemos dizer que não careceu Cristo <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio temporal quenele consideramos, e que o uso que teve daquele <strong>do</strong>mínio foi a privação <strong>do</strong> mesmouso, ou não querer usar dele. E se não, perguntemos a S. Ambrósio para que quis eman<strong>do</strong>u Cristo aos Apóstolos que comprassem espadas, ainda que fosse a preço dasmesmas túnicas com que andavam cobertos, se lhes havia de mandar que asdeixassem estar na bainha? e responde o grande Doutor que foi para mostrar Cristoque se podia defender e vingar de seus inimigos, mas não queria. Para este uso oudesuso quis Cristo a procuração das espadas, porque muitas vezes o mais nobre e omais generoso uso <strong>do</strong> poder é não querer usar dele. E se aquelas espadas só paraeste uso não foram ociosas, porque o seria o <strong>do</strong>mínio de Cristo, ainda que nãotivesse outro uso mais que não querer o poderosíssimo Senhor usá-lo, para maiorexemplo e <strong>do</strong>utrina nossa? Onde mais bem emprega<strong>do</strong> e aplica<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio, quepara poder dizer, depois <strong>do</strong> maior acto de humildade: Si ergo ego <strong>do</strong>minus etmagister?Desta maneira respondem (e podem responder os que seguem que Cristo não teve


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 135 de 16927/08/2011exercício algum <strong>do</strong> império e <strong>do</strong>mínio temporal; porém nós, ponderan<strong>do</strong> devagar ahistória evangélica, temos por certo o contrário; pelo que respondemos negan<strong>do</strong> asuposição, e por última confirmação da nossa opinião mostraremos, por actospróprios de jurdição e <strong>do</strong>mínio, como foi Cristo Rei e Senhor temporal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, nãosó em acto primo (como diz a frase <strong>do</strong>s Teólogos) senão em acto segun<strong>do</strong>; e não sóquanto a jurdicão e <strong>do</strong>mínio, senão quanto ao uso e exercício dela; não porquepública e continuadamente o professasse Cristo, como fazem os reis da Terra, masporque exercitou alguns actos particulares de império e <strong>do</strong>mínio, que eram própriossó <strong>do</strong> legítimo Rei e verdadeiro Senhor <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, como se vê claramente em muitoslugares e exemplos <strong>do</strong> Evangelho.O primeiro seja mandar Cristo, tanto que entrou neste Mun<strong>do</strong>, chamar os Reis <strong>do</strong>Oriente pela estrela, para que o viessem reconhecer e a<strong>do</strong>rar por Rei. como elesmesmos disseram: Ubi est qui natus est Rex Judaeorum? Vidimus enim stellam ejusin Oriente et venimus a<strong>do</strong>rare eum.Item em receber os tributos que Ihe ofereceram os mesmos Reis em reconhecimentoda soberania suprema de sua majestade, não só em quanto Deus, se não em quantoRei. Nesta conformidade entendem to<strong>do</strong>s os Padres o mistério das três espécies deouro, incenso e mirra, que os Reis ofereceram: o incenso como a Deus, a mirra comoa homem, e o ouro como a rei, e assim cantou Arato, poeta cristão da primeiraIgreja, naquele verso que tão bem pareceu a S. Jerónimo:Aurum, thus, myrrham regique hominique Deoque.E a Igreja, no Hino da Epifania:Thus, myrrham etaurum regium.E muito antes David, no Salmo que começa: Deus, judicium tuum Regi da, etjustitiam tuam filio Regis. Este Salmo se entende literalmente <strong>do</strong> Reino de Cristo,conforme a explicação de S. Jerónimo, S. Agostinho, S. Ambrósio, e o comumconsenso de to<strong>do</strong>s os Padres e da mesma Igreja; e não só <strong>do</strong> Reino de Cristoabsolutamente, se não <strong>do</strong> Reino e Império temporal, como larga e eruditamenteprova Alonço de Men<strong>do</strong>ça, na sua Relatio Theologica de universali Christi Regno. Eem comprovação deste Reino de Cristo, alega David profèticamente no mesmo Salmoa a<strong>do</strong>ração e tributos <strong>do</strong>s Reis <strong>do</strong> Oriente: Reges Tharsis et insulae numera offerent,Reges Arabum et Saba <strong>do</strong>na adducent, et a<strong>do</strong>rabunt eum omnes Regeç terrae,omnes gentes servient ei.Finalmente, a entrada <strong>do</strong>s mesmos reis em Jerusalém, perguntan<strong>do</strong> publicamente:Ubi est qui natus est Rex? que outra cousa foi, se não um pregão público e um Real!Real! por Cristo Rei <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, com que o mesmo Rei se man<strong>do</strong>u apregoar na praçamais universal de to<strong>do</strong> ele, que era Jerusalém, e no meio <strong>do</strong> mesmo Mun<strong>do</strong>, que erao lugar onde aquela cidade estava situada ?A mesma publicação fizeram os Anjos nos montes e campos de Judeia, quan<strong>do</strong>anunciaram aos pastores: Quia natus est vobis hodie salvator qui est Christus<strong>do</strong>minus, in civitate David; responden<strong>do</strong>·toda a milícia <strong>do</strong> Céu: Gloria in altissimisDeo ed in terra paz huminibus! Nas quais palavras todas não só apregoaram onascimento e chegada ao Mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> novo Rei, mas declararam também por to das as


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 136 de 16927/08/2011circunstancias de salva<strong>do</strong>r, de ungi<strong>do</strong> por Deus, de descendente de David, e da pazque trazia consigo, ser ele o Rei prometi<strong>do</strong> aos Patriarcas e anuncia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Profetas,que havia de salvar e <strong>do</strong>minar o Mun<strong>do</strong>; da qual publicação foram os mesmospastores os terceiros pregoeiros, que divulgaram por toda a parte o que tinham visto,como se colhe claramente <strong>do</strong> texto de S. Lucas:Et omnes qui audierunt mirati sunt,et de his quae dicta erant a pastoribus ad ipsos. Que acto pois mais próprio e positivode rei, que mandar-se publicar por tal, nas cortes e aldelas, nas cidades e noscampos, aos grandes e aos pequenos, com quatro pregões tão públicos e tãonotáveis, de estrelas, de anjos, de reis, de pastores, e receber a<strong>do</strong>rações e tributos<strong>do</strong>s mesmos reis, e ultimamente desobrigá-los da palavra que tinham da<strong>do</strong> a El-ReiHerodes, como senhor supremo de to<strong>do</strong>s, e mandá-los como súbditos e novosembaixa<strong>do</strong>res seus, assinalan<strong>do</strong>-lhes o caminho por onde haviam de ir?Mas passemos <strong>do</strong> nascimento de Cristo aos dias mais chega<strong>do</strong>s à sua morte, paraque vejamos como, entran<strong>do</strong> e sain<strong>do</strong> <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, se mostrou e publicou Rei e senhorde to<strong>do</strong> eleCAPÍTULO VII Conclui-se que o Reino de Cristo é espiritual e temporal juntamenteRecolhen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> o que tão largamente temos disputa<strong>do</strong> (que foi necessário ser tãolargamente) e reduzin<strong>do</strong> a concórdia quanto pode ser as opiniões de to<strong>do</strong>s osDoutores, posto que alguns pareçam entre si contrários, diremos por últimaconclusão que o Império de Cristo é juntamente espiritual e temporal, e que,segun<strong>do</strong> estas duas jurdições, ambas supremas, se compõem; a coroa de Cristo,Sacer<strong>do</strong>te Supremo, e outra coroa de universal Senhor e Legisla<strong>do</strong>r in temporalibus,segun<strong>do</strong> a qual se chama pròpriamente Supremo Rei.Este é o Reino universal que Daniel veio dar ao Filho <strong>do</strong> Homem (que é Cristo), e esteo Reino que Nabuco<strong>do</strong>nosor também tinha visto encher o Mun<strong>do</strong>, posto que não viunem lhe foi mostra<strong>do</strong> a quem se havia de dar. Este é o que viu mais distintamenteque to<strong>do</strong>s Zacarias na sua terceira visão; porque Nabuco<strong>do</strong>nosor viu sòmente o Reinoe sua grandeza, Daniel viu o Reino e a pessoa que o havia de <strong>do</strong>minar, e Zacarias viuo Reino e a pessoa, e o número e distinção das coroas.Torno a repetir o texto e suponho a história, pois fica contada no I LivroPara maior inteligência desta matéria havemos de supor que, deste tempo da Lei daNatureza, an<strong>do</strong>u sempre o morga<strong>do</strong> temporal uni<strong>do</strong> com o sacerdócio, e um e outrovincula<strong>do</strong> aos primogénitos. Estas eram aquelas bênçãos tão celebradas e tãopleiteadas que os Patriarcas davam a seus filhos, como foi a que Abraão deu a seuprimogénito Isaac, e a que Isaac quis também dar a seu primogénito Esaú, e porindústria de Rabeca foi dada a Jacob. Conforme a este direito de sucessão, hav~a dedar também Jacob a seu primogénito Ruben a mesma bênção, mas, em castigo dairreverência que tinha cometi<strong>do</strong> contra o tálamo de seu pai, foi priva<strong>do</strong> dela, comolhe disse o mesmo Jacob: Ruben, primogenitus meus, tu fortitu<strong>do</strong> mea et principum<strong>do</strong>loris mei, prior in <strong>do</strong>nis major in imperio, effusus es sicut aqua; non crescas, quiaascendisti cubile patris tui et maculasti stratum ejus.Desde este tempo se dividiram estas duas dignidades que haviam de estar juntas nomorga<strong>do</strong> ou maioria de um só império (major in imperio) e o reino e o sacerdócio,que havia de andar encabeça<strong>do</strong> no primogénito de Ruben, se repartiu em <strong>do</strong>is filhos<strong>do</strong> mesmo Jacob, que foram Judá e Levi, fican<strong>do</strong> em Judá a benção <strong>do</strong> reino, e emLevi a <strong>do</strong> sacerdócio, como depois se cumpriu, porque na instituicão <strong>do</strong> Tabernáculo,que precedeu ao Templo, foi ungi<strong>do</strong> por sumo sacer<strong>do</strong>te Arão, que era <strong>do</strong> tribo deLevi, e na instituição <strong>do</strong> reino, depois de o perder Saul, foi ungi<strong>do</strong> por rei de IsraelDavid, que era <strong>do</strong> tribo de Judá.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 137 de 16927/08/2011Nestas duas descendências de Arão <strong>do</strong> tribo de Levi e de David <strong>do</strong> tribo de Judá, seconservou sempre o reino e sacerdócio, até que a tiara e a coroa, ou estas duascoroas, se uniram outra vez em Cristo, Supremo Sacer<strong>do</strong>te e Supremo Rei, e deambos se compõe o império (assim o natural como o figurativo) que Ruben tinhaperdi<strong>do</strong>, prior in <strong>do</strong>nis, rnajor in imperio. Daqui se entende maravilhosamente omistério da ascendência e primogenitores de Cristo, os quais, como consta <strong>do</strong> Icapítulo de S. Mateus e <strong>do</strong> III de S. Lucas, foram reis e sacer<strong>do</strong>tes, unin<strong>do</strong>-se porverdadeira geração no sangue santíssimo de Cristo e sua mãe o tribo real de Judá e osacer<strong>do</strong>tal de Levi, como gravemente notou e expressamente disse S. Agostinho nolivro II de Consensu Evangelisarum, capítulo II. Cum autem evidenter dicat ApostolusPaulus: ex semine David secundum carnem Christum, ipsam quoque Mariam de stirpeDavid a liquam consanguinitatem duxisse dubitare utique non debemus. Cujusfeminae quoniam nec sacer<strong>do</strong>tale genus tacotur, insinuante Luca, quod cognata ejusesset Elisabeth, quam dicit de filiabus Aaron. Firmissime tenendum est carnem Christiex utroque genere propagatam, et regum et sacer<strong>do</strong>tum, in quibus personis apudillum populum Hebraeorum etiam mystica unctio figurabutur...De manera que ordenou a Providência Divina que na generação e ascendência deCristo se tecesse o tribo sacer<strong>do</strong>tal de Levi com o tribo real de Judá, e que a tela deque se havia de vestir o Verbo, quan<strong>do</strong> se desposou com a natureza humana, fosselavada de coroas e de tiaras, para que visse o Mun<strong>do</strong> que, ainda a título de generaçãonatural, era ele o herdeiro legítimo <strong>do</strong> reino e <strong>do</strong> sacerdócio, como direitodescendente daqueles sacer<strong>do</strong>tes e daqueles reis que só eram feitos por Deus; o qualmistério (para maior propriedade e majestade dele) se observou até nos escritores damesma genealogia de Cristo, porque <strong>do</strong>s quatro animais <strong>do</strong> carro de Ezequiel quesignificam os quatro evangelistas, a S. Mateus, que escreveu a geração real, pertenceo homem, que é o rei <strong>do</strong>s animais; e a S. Lucas, que escreveu a geracão sacer<strong>do</strong>tal,pertence o boi, que é o animal <strong>do</strong> sacrifício, como, depois de S. Jerónimo e S.Gregório Papa, notam comummente to<strong>do</strong>s os Doutores.O nome de Cristo e de Messias, com que o mesmo Senhor foi chama<strong>do</strong> e conheci<strong>do</strong>,antes e depois de vir ao Mun<strong>do</strong>, foram duas firmas ou assina<strong>do</strong>s públicos de um eoutro império sacer<strong>do</strong>tal e real, temporal e espiritual, entre si uni<strong>do</strong>s. Porque Messias,que é nome hebreu, e Cristo, que é nome grego, ambos têm a mesma significação,como diz S. João no capítulo I; e referin<strong>do</strong> as palavras de S. André a S. Pedro:Invenimus Messiam (quod est interpretatum Christus) e esta foi uma das erudiçõesem que a Samaritana se mostrou tão letrada: Scio quia Messias venit, qui diciturChristus. Um e outro nome, assim o de Cristo como o de Messias, quer dizer ungi<strong>do</strong>,e chama-se Cristo ungi<strong>do</strong>, porque foi ungi<strong>do</strong> por Rei e Sacer<strong>do</strong>te Supremo.Três ofícios achamos na Escritura Sagrada, que se davam com a cerimónia da unção:o de rei, como ungi<strong>do</strong>, e chama-se Cristo ungi<strong>do</strong>, porque foi ungi<strong>do</strong> Arão, e o deProfeta, como foi ungi<strong>do</strong> Eliseu, e com todas estas unções foi ungi<strong>do</strong> Cristo. Da unçãode profeta já dissemos no capítulo VII <strong>do</strong> I Livro. A de Rei e a de Sacer<strong>do</strong>te Supremo,que eram as duas maiores, são aquelas por que Cristo principalmente se chamaungi<strong>do</strong>, não porque fosse ungi<strong>do</strong> com aquela cerimónia exterior com que os reis esacer<strong>do</strong>tes eram ungi<strong>do</strong>s por mãos <strong>do</strong>s homens, senão pela unção interior, com que omesmo Deus o ungiu na união da divindade com a hum ani da de, como acimadizíamos.E agora poremos aqui as autoridades <strong>do</strong>s Padres, que para este lugar reservamos: S.Agostinho no livro e capítulo pouco antes cita<strong>do</strong>: Firmissime tenendum est carnemChristi ex utroque genere propagatam et regum et sacer<strong>do</strong>tum, in quibus personisillum populum Hebraeorum etiam mystica unctio figurabutur, id est. chrisma, und eChristi nomen elucet tanto ante etiam illa evidentissima significatione praenuntiatumResolve-se quan<strong>do</strong> começou este Império de Cristo e propõe-se acerca dele umagrande dificuldade


file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...27/08/2011<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>PLANO DA HISTÓRIA DO FUTURO<strong>História</strong> <strong>do</strong> futuro; Esperança de Portugal, Quinto Império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> (Cópia <strong>do</strong> Ms.da Biblioteca Nacional Maquinações de Antonio Vieira jesuita, tomo II p. 89)LIVRO PRIMEIRONome, verdade e fundamento deste ImpérioPágina 138 de 169QUESTÃO 1. aQUESTÃO 2. aQUESTÃO 3. aQUESTÃO 4. aQUESTÃO 5. aQUESTÃO 1. aQUESTÃO 2. aQUESTÃO 3. aSe na Sagrada Escritura está revela<strong>do</strong> algum Império, que se deva chamar o V.?Resp. afirm.Se o dito Império é diverso e totalmente distinto <strong>do</strong> IV Império <strong>do</strong> lIun<strong>do</strong>, que foi oRomano? Resp. afirm.Se o Império Romano há-de durar até a vinda <strong>do</strong> Anticristo? Resp. afirm.Se no Capitulo I de Daniel é significa<strong>do</strong> o Império <strong>do</strong> Anticristo na figura <strong>do</strong>chama<strong>do</strong>_ Cornuparvulum? ou o <strong>do</strong> Anticristo, ou o <strong>do</strong> Turco? Resp. afirmSe na suposição que o Império Romano há-de durar até o Anticristo, pode haver noMun<strong>do</strong> outro Império que se chame o Quinto? Resp. afirm.LIVRO SEGUNDODefinição <strong>do</strong> V Império, e declaração deleQue Império seja este, a que chamamos o Quinto? Resp.: Até o de Cristo.Se o Império de Cristo, que dizemos ser o Quinto, é o Império <strong>do</strong> Céu ou da Terra?Resp. que da Terra.


file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...27/08/2011<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>Página 139 de 169Se o Império de Cristo na Terra é espiritual ou temporal? Resp. que é espiritual etemporal juntamente.QUESTÃO 4. aSe no dito Império espiritual e temporal de Cristo se distingue o <strong>do</strong>mínio, posse,exercício? Resp. afirm.QUESTÃO 5. aQual seja o dito <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Império de Cristo, e quan<strong>do</strong> começou? Resp., que é, quetem sobre to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> e sobre to<strong>do</strong>s os homens, e começou desde o primeiroinstante da sua encarnação.QUESTÃO 6. aEm que consiste a posse <strong>do</strong> dito Império? Resp. que consiste em ser conheci<strong>do</strong> por fée obedeci<strong>do</strong>.QUESTÃO 7. aQuan<strong>do</strong> começou, e como se continuou a dita posse? Resp. que começou desde osprimeiros que creram em Cri st o , e vai continuan<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os que têm a mesmafé.QUESTÃO 8. aSe teve Cristo exercício <strong>do</strong> dito Império em quanto espiritual? Resp. afirm.QUESTÃO 9. aSe teve Cristo exercício <strong>do</strong> dito império em quanto temporal? Resp. problem.QUESTÃO 10. aSe tem Cristo hoje exercício <strong>do</strong> dito império temporal e espiritual, e qual seja? Resp.que tem o exercício, imediato não, mas o mediato.QUESTÃO 11. aPor que pessoa ou pessoas tem Cristo o exercício mediato <strong>do</strong> império espiritual?Resp. que pelo Sumo Pontífice e mais ministros da Igreja.QUESTÃO 12. a


file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...27/08/2011<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>Por que pessoa ou pessoas tem Cristo o exercício mediato <strong>do</strong> império temporal?Resp. que pelos príncipes temporais cristãos. QUESTÃO 13. aSe há-de Cristo ainda ter alguma hora o exercício <strong>do</strong> dito império, assim espiritualcomo temporal, por sua própria pessoa , ou se é possível? Resp. que é possível, masque nunca há-de ter o dito exercício pessoal.LIVRO TERCEIROGrandeza e felicidades <strong>do</strong> dito ImpérioQUESTÃO 1. aSe este Reino e Império de Cristo há-de continuar sempre no esta<strong>do</strong> presente, ou hádeter outro e mais perfeito? Resp. que há-de ter outro esta<strong>do</strong> mais perfeito,completo e consuma<strong>do</strong>.Como se prova este esta<strong>do</strong> mais perfeito e consuma<strong>do</strong> <strong>do</strong> Império de Cristo? Resp.que pelas Escrituras, por autoridade e por razão.Porque a opinião <strong>do</strong> dito esta<strong>do</strong> não é comum de to<strong>do</strong>s os Padres e Doutores? Resp.que por muitos fundamentos.Quanta haja de ser a grandeza <strong>do</strong> Império de Cristo no dito esta<strong>do</strong>? Resp. queuniversal, sobre todas as gentes e sobre to<strong>do</strong>s os reinos.Se a dita grandeza há-de ser simultanea e permanente ou sucessiva? Resp. quesimultanea e permanente.Se hão-de ser to<strong>do</strong>s cristãos no dito esta<strong>do</strong>? Resp. afirm.Página 140 de 169QUESTÃO 2. aQUESTÃO 3. aQUESTÃO 4. aQUESTÃO 5. aQUESTÃO 6. aQUESTÃO 7. aQUESTÃO 8. aSe hão-de ser to<strong>do</strong>s pela maior parte justos no dito esta<strong>do</strong>? Resp. afirm.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 141 de 16927/08/2011Se há-de haver no dito esta<strong>do</strong> paz universal? E em to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>? Resp. afirm.LIVRO QUARTOCausas, meios e instrumentos com que se há-de conseguir o esta<strong>do</strong>consuma<strong>do</strong> <strong>do</strong> dito ImpérioQUESTÃO 1. aSe o primeiro meio da consumação <strong>do</strong> dito esta<strong>do</strong> seja a conversão universal deto<strong>do</strong>s os homens à Fé de Cristo e a extirpacão de todas as heresias <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>? Resp.afirm.QUESTÃO 2. aComo se prova em especial a conversão de to<strong>do</strong>s os gentios e a extinpação dai<strong>do</strong>latria? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.QUESTÃO 3. aComo se prova em especial a conversão, a extinção <strong>do</strong> Turco, a extirpacão da seitade Mafona? Resp. que pelas Escrituras e Doutores. QUESTÃO 4. aComo se prova em especial a conversão de to<strong>do</strong>s os hereges, e a extirpação de todasas heresias? Resp. que pelas Escrituras e Doutores.QUESTÃO 5. aComo se prova em especial a conversão <strong>do</strong>s Judeus e a extirpação <strong>do</strong> Judaísmo?Resp. que pelas Escrituras e Doutores.QUESTÃO 6. aSe nesta conversão <strong>do</strong>s Judeus hão-de entrar também os Dez Tribos perdi<strong>do</strong>s? Resp.afirm.QUESTÃO 7. a Se converti<strong>do</strong>s uníversalmente os Judeus hão-de ser restitui<strong>do</strong>s à suaPátria? Resp. afirm.QUESTÃO 8. aSe podem os Judeus 1icitamente esperar esta restituição mediante a Fé de Cristo?Resp. afirm.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 142 de 16927/08/2011QUESTÃO 9. aSe é conveniente ao bem da Igreja que a opinião da dita esperança se pratique?Resp. afirm.QUESTÃO 10. aSe por meio da dita conversão universal se há-de consumar a união <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is povos,gentílico e o judaico? Resp. afirm. QUESTÃO 11. aSe então se cumprirá a profecia <strong>do</strong> texto—et erit unum ovile et pastor?—Resp.afirm.QUESTÃO 12. aSe a causa principal eficiente da dita conversão universal será o Eterno Padre? Resp.afirm.QUESTÃO 13. a Se concorrerá para a dita conversão o Espírito Santo com especial enova uncão da divina graça? Resp. afirm.QUESTÃO 14. aQue parte terá nesta obra a autoridade e intercessão de Cristo e da VirgemSantíssima? Resp. que muito grande.QUESTÃO 15. aSe o instrumento principal humano da dita conversão será o sumo pontífice santo emuitos prega<strong>do</strong>res evangélicos? Resp. afirm.QUESTÃO 16. aSe concorrerá para a dita conversão algum príncipe temporal, com a sua autoridade,o seu poder e as suas armas? Resp. afirm.QUESTÃO 17. aSe este príncipe temporal será impera<strong>do</strong>r e monarca universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>? Resp.afirm.QUESTÃO 18. aSe o dito impera<strong>do</strong>r universal se poderá chamar Vigário de Cristo no temporal? Resp.afirm.LIVRO QUINTO


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 143 de 16927/08/2011Tempo, duração e ordem <strong>do</strong> dito ImpérioQUESTÃO 1. aSe o esta<strong>do</strong> consuma<strong>do</strong> <strong>do</strong> Quinto Império há-de ser antes ou depois <strong>do</strong> Anticristo?Resp. que antes.QUESTÃO 2. aQual <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is povos se há-de converter primeiro universalmente, para a consumação<strong>do</strong> dito I:npério, se o gentílico, se o judaico? Resp. que o gentílico.QUESTÃO 3. aQuanta seja a duração <strong>do</strong> dito Império, depois de consuma<strong>do</strong>? Resp. que até o fim <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>.QUESTÃO 4. aQuan<strong>do</strong> há-de começar a dita consumação <strong>do</strong> Império de Cristo? Resp. que naextinção <strong>do</strong> Império turco.QUESTÃO 5. aSe <strong>do</strong> tempo presente até o da vinda <strong>do</strong> Anticristo pode e há-de correr um grandenúmero de séculos? Resp. afirm.LIVRO SEXTOTerra em que se há-de fundar o dito Império em quanto temporal, e qualhá-de ser a cabeça deleQUESTÃO 1. aSe o dito Império temporal há-de ser na Europa ou em alguma das outras quatropartes <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>? Resp. que há-de ser na Europa.QUESTÃO 2. aEm que província da Europa se há-de fundar o dito Império temporal de Cristo ?Resp. que em Espanha.QUESTÃO 3. aEm que reino de Espanha se há-de fundar o dito Império? Resp. que em Lisboa.LIVRO SÉTIMO


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 144 de 16927/08/2011Pessoa que será o primeiro Impera<strong>do</strong>r instrumento temporal <strong>do</strong> ditoImpérioQUESTÃO 1. aSe a dita pessoa que seja impera<strong>do</strong>r será o impera<strong>do</strong>r de Alemanha? Resp. negativ.QUESTÃO 2. aSe a dita pessoa há-de ser El-Rei Cristianíssimo de França? Resp. negativ.QUESTÃO 3. aSe a dita pessoa há-de ser El-Rei Católico de Espanha? Resp. negativ.QUESTÃO 4. aSe a dita pessoa há-de ser o Sereníssimo Rei de Portugal? Resp. afirm .QUESTÃO 5. aSe o Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. Sebastião? Resp. negativ.QUESTÃO 6. aSe o dito Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. João IV? Resp. problem.QUESTÃO 7. aSe o dito Rei de Portugal há-de ser El-Rei D. Afonso ou o Infante D. Pedro?Responde-se:Vejo subir um InfanteNo alto de to<strong>do</strong> o lenho.BandarraEstes são os livros e questões de que consta o livro intitula<strong>do</strong> Clavis ProphetarumApêndiceCLAVIS PROPHETARUMTradução feita por Francisco Sabino Alvares da Rocha Vieira, estudante baiano, <strong>do</strong>Resumo que dela escreveu o P. e Carlos António Casnedi, S. J.NOTA DO EDITORO ms. <strong>do</strong> Fun<strong>do</strong> Geral da Biblioteca Nacional n.° I74I, de que foi copiada a presente


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 145 de 16927/08/2011tradução, tem o seguinte título: Resumo <strong>do</strong> Clavis Prophetarum feito pelo PadreCarlos António Casnedi, da Companhia de Jesus. de ordem <strong>do</strong> Eminentíssimo Cardealda Cunha, Inquisi<strong>do</strong>r Geral <strong>do</strong>s Reinos de Portugal. Autor o incomparável PadreAntónio Vieira, da Companhia de Jesus.Tradu-lo <strong>do</strong> latim em português Francisco Sabino Á1vares da Rocha Vieira, estudantebaiense, que dedica o seu trabalho a D. Marcos de Noronha e Brito, Conde <strong>do</strong>s Arcos,etc., etc., que era então governa<strong>do</strong>r no Brasil.No Prólogo, o tradutor afirma que as proposições que se contêm na obra foramcensuradas pelo Tribunal da Inquisição de Coimbra, «quan<strong>do</strong> a emulação e rivalidadelevou aos seus cárceres ao nosso Autor, o incomparável (e até o presente nãoimita<strong>do</strong>) Padre António Vieira, pelos anos de I666 e I667».Lembra a defesa de Vieira, no papel que ofereceu ao Santo Ofício, e em que mostrouque esta opinião não era sua e sim de gravíssimos autores, <strong>do</strong>s quais citou pelos seusnomes trinta, em cujo número se compreendem muitos santos canoniza<strong>do</strong>s e to<strong>do</strong>ssábios.A Alexandre VII, que tinha aprova<strong>do</strong> as censuras. sucede Clemente X, que, informa<strong>do</strong><strong>do</strong> que se tinha pratica<strong>do</strong> com o Padre Vieira na Inquisição de Coimbra, expediu logoo Breve Dilecte Fili, que o isenta de qualquer jurisdição que não seja a da SéApostólica. E acrescenta: «...por sua morte se lhe acharam 33 cadernos que ele tinhaescrito—«De Regno Christi in terris consummato», e, por outro nome, «ClavisProphetarum» Correu a noticia, e por ordem régia foram remeti<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os seusmanuscritos para Lisboa e entregues ao Eminentíssimo Cardeal da Cunha, Inquisi<strong>do</strong>r-Geral <strong>do</strong>s Reinos de Portugal, o qual escolheu ao Padre Carlos António Casnedi, bemconheci<strong>do</strong> em Itália, Espanha e Portugal, e por seus escritos em to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, para oinformar da qualidade e merecimento da obra, e a informação é a que se segue,resumin<strong>do</strong> nela os pontos da mesma obra, declaran<strong>do</strong> o seu merecimento e atéalgumas suas proposições. Foi mandada a dita obra a Roma, onde foi examinada peloPadre Mestre Fr. Jacinto de Santa Romana, <strong>do</strong>utor na sagrada Teologia, examina<strong>do</strong>rsinodal da Nunciatura de Espanha, da Ordem <strong>do</strong>s Prega<strong>do</strong>res, pelos P.P. M.M. FreiMário Diana e Fr. Pedro Platamone, da mesma Ordem, e pelo P. André Semiri, jesuíta,que Ihe fizeram grandes elogios e declararam que se podia imprimir, o que aconteceuno mês de Agosto de I7I5, e por extenso se podem ver as censuras <strong>do</strong>s ditos Padres,no «Livro da vida <strong>do</strong> nosso Vieira», dito Livro V, p. 628 até p. 631 nos números 212,213, 215 e 216»Lembra o autor que nas censuras a esta última obra foi unanime o elogio, e cita <strong>do</strong>Padre Mestre D. José Barbosa, cronista da Casa de Bragança, examina<strong>do</strong>r das TrêsOrdens Militares e sinodal <strong>do</strong> Patriarca<strong>do</strong>, académico-censor da Academia Real, oseguinte juízo crítico: «Maior dano experimentarão os sábios em ficar imperfeita agrande obra «CIavis Prophaetarum», porque é certo que ninguém terá o atrevimentode a pretender concluir, porque para esse fim é necessário outro António Vieira, e sóDeus sabe quan<strong>do</strong> lhe dará semelhante, para se fazer senhor da grande e imensaideia daquela obra, que, para ser admirável, basta que fosse concebida na vastíssimacompreensão, nos dilata<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s e na profundíssima erudição sagrada daquelehomem verdadeiramente incomparável»E: conclui o tradutor com esta nota, que faz <strong>do</strong> seu entusiasmo de panegirista umcaso vulgar na época: ten<strong>do</strong> solicita<strong>do</strong> havia perto de três anos a obra em Portugal,soube que a possuía o convento <strong>do</strong>s Capuchos. Pediu uma cópia, mas «tem si<strong>do</strong> tal oconcurso de pretendentes ao mesmo fim, e a copiar pedaços dela, que, ten<strong>do</strong>-se


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 146 de 16927/08/2011principia<strong>do</strong> a nossa cópia em Abril de 1813, ainda até o presente Março de 1818 senão pôde concluir...»Segue-se a este Prólogo <strong>do</strong> tradutor o Prefácio <strong>do</strong> P. e Casnedi ao seu resumo. Deleextraímos, por mais significativo, o seguinte: Vieira, pela memória que tu<strong>do</strong> fielmenteconservava, pela eficácia persuasiva com que alegava os textos, pela óptima maneiracomo sabia exemplificar, era um Herói Superior a to<strong>do</strong> o louvor e aplauso humano.Aquilo que os outros Heróis de primeira grandeza desprezavam como estéril e inútil, eo que não entenderam como envolto nas trevas da obscuridade , tu<strong>do</strong> o Padre Vieiratem mostra<strong>do</strong> abundante de mistérios, de mo<strong>do</strong> que parecem sempre novas as suasopiniões e que diz cousas que não vem nas Sagradas Páginas, não sen<strong>do</strong> contu<strong>do</strong>senão cousas antigas, ocultas no mesmo Texto Sagra<strong>do</strong> e de que os outros nãofizeram caso ou não entenderam [...]. Por esta razão é que o incomparável Autor,assim como se deveria pôr inferior a to<strong>do</strong>s os intérpretes, se dissesse cousas quesenão contivessem no Sagra<strong>do</strong> Texto, assim se deveria elevar acima de to<strong>do</strong>s, por terdescoberto com a perspicácia <strong>do</strong> seu engenho e ter publica<strong>do</strong> cousas que estavamocultas no Tesoiro da Sagrada Escritura.O juízo <strong>do</strong> P. e Casnedi sobre a eficácia da exegese que Vieira fez <strong>do</strong>s Profetas,revelan<strong>do</strong> o que neles se ocultava, é esta perfeita adesão ao seu pensamento:«Parece, pois, justo que o Reino de Cristo, Senhor nosso, na terra, seja perfeitamenteconsuma<strong>do</strong> antes da vinda <strong>do</strong> mesmo Senhor como Juiz. De sorte que disto se segueque, funda<strong>do</strong> nas profecias que ainda se não completaram e expon<strong>do</strong>-as literalmente,prognostique muitas cousas que hão-de acontecer na Igreja Militante, e conceba oReino de Cristo, Senhor nosso, na terra tal qual pode convir ao mesmo Senhor, quehá-de vir não como Redentor, mas como Juiz.De novo no prefácio se louva a luz, a erudição, a enfática e energia de razões, aharmónica consonância, a extensão <strong>do</strong> espírito com que expõe literal e nãomisticamente o que as profecias anunciam sobre o futuro esta<strong>do</strong> da Igreja, e terminacom estes informes sobre o livro:Divide-se este estupen<strong>do</strong> volume <strong>do</strong> Reino de Cristo Senhor nosso, consuma<strong>do</strong> sobrea terra. em três livros, como o declara o seu mesmo Autor no princípio da sua obra:No 1.° trata da natureza e qualidade <strong>do</strong> Reino de Cristo, Senhor nosso; no 2.° daconsumação <strong>do</strong> mesmo Reino sobre a terra; no 3.° <strong>do</strong> tempo em que se há-deconsumar e o tempo que deve durar depois da consumação.Segue-se o texto integral da tradução:Da imperfeição física da obraNão falo da imperfeição moral da obra, porque demonstrarei depois que nenhumapode haver; falo, sim, da sua imperfeição física, como a tenho na minha mão, porquese não sabe se ela é fisicamente imperfeita, como a têm os outros. Da mesma sorteignora-se se o Autor a deixou imperfeita; assim mo certificam algumas pessoas queviveram nos últimos meses antes da sua morte e nos primeiros depois.Falarei portanto da sua imperfeição física como está na minha mão e como me foiconfiada pelo Eminentíssimo Cardeal da Cunha, da Santa Igreja Romana, Inquisi<strong>do</strong>rGeral de to<strong>do</strong>s os Reinos sujeitos ao Rei de Portugal. Quanto a mim, depois de a ter


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 147 de 16927/08/2011li<strong>do</strong> terceira vez, acho que é sumamente desordenada e muito confusa, mutilada eimperfeita.Ora ainda que se possam facilmente pôr em ordem os primeiros cadernos, porquenão só os capítulos como os parágrafos estão distintamente numera<strong>do</strong>s, contu<strong>do</strong> nãose pode fazer o mesmo aos outros cadernos pertencentes ao 2.° e 3.° livros.Da primeira imperfeição moral ou teológica da obra tirada <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosóficoDuas imperfeições teológicas ouço que se imputam a este grande varão: uma sobre opeca<strong>do</strong> filosófico e outra a respeito <strong>do</strong>s sacrifícios da Lei antiga, que se hão-derestabelecer antes <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Uma e outra explicarei em poucas palavras, aprimeira neste parágrafo e a segunda explicarei nos seguintes.No trata<strong>do</strong> da pregação universal <strong>do</strong> Evangelho, no segun<strong>do</strong> caderno <strong>do</strong> Autor, pág.2, leio na margem as seguintes palavras:«Estas opiniões acerca <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosófico já em outro exemplar foram riscadas porcausa <strong>do</strong> Decreto de Alexandre VIII, que as condenou muito depois que elas foramescritas pelo Autor.»Com permissão, ,porém, <strong>do</strong> que notou a dita margem, digo que este talimprudentemente se alucina, queren<strong>do</strong> inferir que a opinião <strong>do</strong> Padre Vieira, na qualdefende o peca<strong>do</strong> puramente filosófico entre os bárbaros americanos, vulgarmentechama<strong>do</strong>s Tapuias, <strong>do</strong>s quais a maior parte passam to<strong>do</strong> o decurso da sua vida emuma invencível ignorância de Deus, queren<strong>do</strong> inferir, digo, que esta opinião <strong>do</strong> Autortem semelhança com a que foi condenada por Alexandre VIII, no, ano de I690.Eis aqui, pois, a opinião condenada: o peca<strong>do</strong> filosófico ou moral é um acto quedesconvém à natureza racional; o teológico, porém, e o mortal é a transgressão livreda divina Lei O filosófico, ainda que grave, naquele que tem ignorância de Deus, ounão cogita actualmente <strong>do</strong> mesmo Deus, é peca<strong>do</strong> grave, na verdade, mas não éofensa feita a Deus, nem peca<strong>do</strong> mortal que faça apartar a sua amizade, nem dignode pena eterna. Esta, portanto, foi a opinião condenada.Se bem se examinar, ver-se-á que Alexandre VIII condena a opinião que defende nãoser ofensa feita a Deus, nem remover a sua amizade, nem digno de pena eterna opeca<strong>do</strong>, ainda que grave, cometi<strong>do</strong> contra a razão por aquele que não temconhecimento de Deus (não diz conhecimento invencível) ou que nada cogitaactualmente <strong>do</strong> mesmo Deus.E pelo contrário, defende o Padre Vieira que o peca<strong>do</strong>, ainda que grave, cometi<strong>do</strong>contra a razão ,por aquele que tem ignorância invencível de Deus, não é ofensa aDeus.Ora quanto dista a asserção daquele que diz que o peca<strong>do</strong> feito por ignorância


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 148 de 16927/08/2011invencível de Deus, não é peca<strong>do</strong> grave contra Deus, nem desfaz a sua amizade, nemé digno de pena eterna, da <strong>do</strong> que afirma que não é peca<strong>do</strong> grave contra Deus, nemtira a sua amizade, nem é digno de pena eterna o delito feito por ignorância (nãoinvencível) de Deus; quanto dista, digo, a asserção de um da <strong>do</strong> outro, tanto dista aproposição <strong>do</strong> Padre António Vieira da condenada por Alexandre VIII.Vejamos agora a diferença destas duas opiniões, para <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> podermosinferir a discordância que tem entre si a opinião <strong>do</strong> Padre Vieira da que foicondenada.1.°—É peca<strong>do</strong> grave contra Deus e ofensa <strong>do</strong> mesmo Deus e faz apartar a suaamizade e é digno de pena eterna, quan<strong>do</strong> qualquer delito é cometi<strong>do</strong> por aqueleque, não cogitan<strong>do</strong> actualmente de Deus contu<strong>do</strong> implícita e virtualmente oreconhece ,pela mesma razão natural, que proíbe qualquer maldade.2.°—Não é ofensa feita a Deus o peca<strong>do</strong> cometi<strong>do</strong> por aquele que nunca teveconhecimento de Deus, antes <strong>do</strong> mesmo Deus sempre teve uma ignorânciainvencível.A mesma repugnância que há entre estas proposições há também entre a opinião <strong>do</strong>Padre António Vieira e a que foi condenada. Logo, sem motivo no exemplar que foipara Roma se riscou a proposição <strong>do</strong> Padre António Vieira, como coincidente com acondenada, quan<strong>do</strong> dela dista sumamente. Confirmo portanto, a opinião antecedentecom esta outra que .tem entre si uma paridade irrefragável. E digo queimerecidamente se chamaria herética esta proposição:—Não peca contra a lei quem,ignoran<strong>do</strong>-a invencivelmente, a quebranta. Não peca contra a lei quem, ignoran<strong>do</strong>-a,a viola. Logo, sem razão nenhuma se chama condenada esta proposição <strong>do</strong> Autor:—Não peca contra Deus quem <strong>do</strong> mesmo Deus tem uma ignorância invencível —porque foi condenada esta outra: Não peca contra Deus quem o ignora. Pois podemuito bem ser que tenha de Deus uma ignorância vencível, que o não livracertamente <strong>do</strong> peca<strong>do</strong>.Acresce ainda mais que, sen<strong>do</strong> assim, to<strong>do</strong> o II livro <strong>do</strong> Autor, que se funda naasserção <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosófico cometi<strong>do</strong> por aquele que tem ignorância invencível deDeus, deveria ser anula<strong>do</strong>. Logo que não foi, segue-se portanto queinconsequentemente se reprova a proposição e não to<strong>do</strong> o livro, ouinconsequentemente se admite o livro segun<strong>do</strong>, e não a proposição.Ninguém poderá portanto duvidar da discordância que tem a proposição <strong>do</strong> Autorcom a que foi condenada, mas sim tão somente escrupulizar se é verdadeira aproposição em que ele quer admitir entre muitos <strong>do</strong>s Americanos, por to<strong>do</strong> o decursodas suas vidas, uma invencível ignorância de Deus.Que é verdadeira , prova ele consolidíssimas razões, e tão somente o poderá negaraquele, que <strong>do</strong>s Americanos quiser julgar da mesma sorte que julga <strong>do</strong>s Europeus,entre os quais de algum mo<strong>do</strong> se dá a conhecer o verdadeiro Deus no mesmo í<strong>do</strong>loque invocam, veneram, a quem sacrificam e em cuja presença suplicam vénia <strong>do</strong>sseus delitos. Quan<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, quisermos falar <strong>do</strong>s Tapuias americanos comoverdadeira e realmente são, devemos afastar deles toda a espécie de deus e de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 149 de 16927/08/2011Í<strong>do</strong>los que os teólogos reconhecem em to<strong>do</strong>s os homens geralmente, e substituir emseu lugar outras espécies muito diversas, como próprias e acomodadas àincomparável estupidez de que são possuí<strong>do</strong>s. Porque muitos há que não só nãoconhecem o verdadeiro Deus, porém também não se ocupam com religião alguma,nem ainda falsa, como seja cultivan<strong>do</strong> í<strong>do</strong>los, invocan<strong>do</strong>-os, sacrifican<strong>do</strong>-lhes epedin<strong>do</strong>-lhes vénia. Além <strong>do</strong> que, depois de um grande trabalho que tiveram osmissionários em os catequizar, apenas escassamente entendem os mistérios da Fésanta. São tão estúpi<strong>do</strong>s, que apenas muitos só podem contar até 3 e tu<strong>do</strong> o maisque excede a este número chamam eles muitos. E assim vivem sem saber nem poderdizer quantos anos têm, nem quantos de<strong>do</strong>s contêm suas ,mãos, nem quantos osseus pés, e para poderem comunicar aos nossos confessores o número <strong>do</strong>s seuspeca<strong>do</strong>s, trazem um cordel, no qual dan<strong>do</strong> tantos nós quantos são os peca<strong>do</strong>s, oentregam deste mo<strong>do</strong> ao confessor.Além disto, observa o Autor em muitos destes Tapuias, entre os quais por muitotempo viveu, não só uma ignorância invencível de Deus, por to<strong>do</strong> o decurso das suasvidas, mas também ignorância de to<strong>do</strong> o Direito Natural. Pois a educação que dão ospais aos filhos, ainda na mais tenra idade, é induzi-los para os furtos, homicídios etomarem vingança, e se nutrirem de carne humana, e a se exercitarem em tu<strong>do</strong>quanto é obscenidade.E tão longe estão de serem puni<strong>do</strong>s por estas suas maldades, que antes o são, se asdeixam de cometer. Se, porém, algum, pelo mesmo lume da razão, vem noconhecimento que estes crimes são dissonantes ao Direito Natural e contu<strong>do</strong> os puserem execução. então assevera o Autor que neste caso o delito deste bárbaro cometi<strong>do</strong>contra a sua razão natural, ten<strong>do</strong> ele ignorância invencível de Deus, é peca<strong>do</strong>puramente filosófico, e não deve ser puni<strong>do</strong> com pena eterna, nem é ofensa de Deus,não ten<strong>do</strong> ele conhecimento algum <strong>do</strong> mesmo Deus verdadeiro, nem ; í<strong>do</strong>los, poisque está bem patente que, não poderá também ter religião alguma; e o mesmoacontecerá a qualquer europeu ou idólatra, que sem dúvida venera a algumadivindade.Já tenho assaz prova<strong>do</strong> quanto julgo ser bastante, para justificar o Autor e escusá-loda opinião condenada que se lhe imputa, nem me devo mais demorar. E com istofinalmente concluo que a opinião condenada fala <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosófico cometi<strong>do</strong> poraquele que tem conhecimento de Deus e da sua Graça, o que impede que sejapuramente filosófico, e é pois teológico, porque o mesmo Deus verdadeiro sempre dealgum mo<strong>do</strong> brilha no mesmo lume da razão daqueles que algum tanto oreconhecem, ainda que implicitamente, de <strong>do</strong>nde se segue que nestes repugna opeca<strong>do</strong> puramente filosófico, e não nos Tapuias, que: nada absolutamente cultivam,e por este mesmo título se vê que a proposição condenada não vem ao caso. Porém,a esse respeito, falarei mais a baixo.Da segunda imperfeição teológica da obra, que trata <strong>do</strong>s sacrifícios da Lei antiga,que se hão-de restabelecerO parecer <strong>do</strong> Autor a este respeito é que na consumação da Igreja, ou no seu 3.°esta<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s abraçarem a Lei de Cristo, Senhor nosso, se hão-derestabelecer os sacrifícios da Lei antiga. É, pois, este parecer tão mal entendi<strong>do</strong> poralguns, que por isto julgam indigna de ser publicada aquela admirável obra <strong>do</strong> Autor,que trata <strong>do</strong> Reino de Cristo, nosso Senhor, consuma<strong>do</strong> na Terra.Eu, porém, len<strong>do</strong>-a uma e outra vez e certamente antes com o ânimo de reprovar <strong>do</strong>que aprovar, no trata<strong>do</strong> De templo Ezechielis, no qual copiosamente disputa arespeito <strong>do</strong>s sacrifícios que se hão-de restabelecer, nada absolutamente acho dignode censura, mas antes a moderação e limitação com que fala o Autor. A este respeito


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 150 de 16927/08/2011dá a entender que estas mesmas cousas de que fala são dignas de admiração elouvor, como constará mais plenamente na minha Sinopse pertencente a estetrabalho.O que para provar com suma eficácia supõe o Autor, com autoridade de to<strong>do</strong>s osteólogos, primeiramente, que os sacrifícios, sacramentos da Lei antiga, serevogaram; em segun<strong>do</strong> lugar, que estes se instituíram por multiplica<strong>do</strong>s fins, osquais são o culto de Deus, e para que os Hebreus se afastassem da i<strong>do</strong>latria; paraprefigurarem os Sacramentos da Lei nova o sacrifício cruento da Redenção e oincruento da Eucaristia, e para que por meio desses sacrifícios de ovelhas e novilhosaprendessem os Hebreus a consagrar a Deus as paixões das suas almas, em terceirolugar, supõe que estes fins são de tal sorte separáveis, que um possa existir semoutro.Estabeleci<strong>do</strong>s estes fins, assevera o Autor que, por dispensação de Deus ou da Igreja,se hão-de restabelecer na consumação da mesma Igreja os sacrifícios da Lei antiga,não como prefigurativos <strong>do</strong>s sacramentos e sacrifícios da nova Lei, pois que estes jáestão presentes, porém reti<strong>do</strong> o outro fim, ou como demonstrativos <strong>do</strong> sacrifício eSacramentos da mesma nova Lei, ou como moralmente significativos da imolaçãointerior da nossa alma, e tu<strong>do</strong> isto para que os Hebreus (<strong>do</strong>s quais dez tribos estãodispersas por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, e ainda se ignora aonde estejam) sen<strong>do</strong> tenacíssimosaos seus ritos, mais facilmente se reduzam à Fé de Cristo na consumação da suaIgreja.E prova este restabelecimento de tantos mo<strong>do</strong>s já com textos da Sagrada Escritura,já com excepcionais autoridades <strong>do</strong>s Santos Padres, e com tão poderosas razões, queapenas se pode negar, e de nenhuma sorte censurar, excepto se houver de censurartambém a dispensação da Igreja nascente.Certamente consta que a Lei mosaica que proibia a comida sanguinolenta e sufocada,se conservou na maior, parte das províncias da Cristandade por dispensa da Igreja,nos primeiros três séculos <strong>do</strong> seu esta<strong>do</strong>. Consta mais que a lei da circuncisão foirevogada por S. Pedro e outros Apóstolos, e que S. Paulo, apesar de seguir a mesma<strong>do</strong>utrina e ter impugna<strong>do</strong> em Antioquia a sua necessidade a favor <strong>do</strong>s Gentios,contu<strong>do</strong>, por causas urgentes, circuncidara a S. Timóteo, nasci<strong>do</strong> de pai ,gentio. Ealém disto, consta também que na Igreja grega, e entre os Abissínios, ainda seconserva no seu vigor a permissão de receber-se a circuncisão depois <strong>do</strong> baptismo,não como necessária para a salvação, porém sim como carácter de antiquíssimanobreza, derivada de Abraão e Salomão.Depois, o uso destas cerimónias legais tira<strong>do</strong> pelos Apóstolos, como desnecessário,assim mesmo conservou o seu vigor em muitas províncias convertidas à Fé, e agoramesmo está em uso na Igreja grega; por que razão na perfeitíssima consumação daIgreja, quan<strong>do</strong> não só todas as gentes, porém também to<strong>do</strong>s os Hebreus dispersospor toda a Terra houverem de abraçar a Fé de Cristo, Senhor nosso, não poderá aIgreja, ao menos no Templo hierosolomitano que se há-de reedificar, permitir o usodestes sacrifícios? não como necessários ou prefigurativos, porém como moralmentesignificativos da imolação interior da nossa alma, significada por meio das vítimasexteriormente imoladas, ou como demonstrativos <strong>do</strong>s Sacramentos da nova Lei queprefiguravam, e certamente só por este altíssimo fim, para que os Hebreus maisfacilmente se convertam à Fé de Cristo, e deles e de todas as gentes, tanto asconvertidas, como as que se houverem de converter, se venha a fazer um só rebanhoe um só pastor.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 151 de 16927/08/2011Na verdade, é tanta a moderação com que o Autor fala neste uso <strong>do</strong>s legais, que,poden<strong>do</strong> os estender a várias províncias e reinos, funda<strong>do</strong> na claríssima eexcelentíssima exposição <strong>do</strong>s Santos Padres e nas muitas razões tiradas da dispensada Igreja, contu<strong>do</strong> ele põe limites no seu dizer e só afirma que este uso se há-derestabelecer unicamente no Templo jerosolomitano.Ora, quem fala desta sorte, sem ser por defeito <strong>do</strong>s divinos Textos, porque alegamuitos que clarissimamente mostram que este uso se há-de restabelecer; quemassim restringe o seu dizer, sem para isto ser obriga<strong>do</strong> pela contrariedade <strong>do</strong>s SantosPadres, porque, não ten<strong>do</strong> nenhum contra si, refere em seu favor muitos eclaríssimos textos tira<strong>do</strong>s deles; quem desta sorte modera a sua proposição, sem serpor falta de razões, porque alega inumeráveis, funda<strong>do</strong> nas histórias eclesiásticas,que referem quanto os Sumos Pontífices têm dispensa<strong>do</strong> com muitas nações acerca<strong>do</strong>s ritos <strong>do</strong>s Hebreus; quem, digo, assim patenteia o seu parecer, a sua sentença,ignoro eu que seja digno de censura ou que possa haver cousa alguma repreensívelque se possa objectar contra semelhante sentença.É verdade que pode parecer nova a alguém esta sentença, e portanto ser digna decensura; porém prova-se, pelo contrário, primeiramente que não pode parecer novoum parecer funda<strong>do</strong> nas Sagradas Escrituras e nos Santos Padres, senão ,paraaqueles a quem <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> estas mesmas cousas parecem novas; em segun<strong>do</strong>lugar, se toda a novidade se deve desterrar, devem também ser desterra<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s osantiquíssimos pareceres, exceptuan<strong>do</strong>-se os primeiros a quem eles se opuseram; emterceiro lugar, ouçamos a S. Antonino, 3 p. <strong>História</strong>, n.0 33, § 2, que diz de S. Tomáso seguinte: «No ler era inventor de novos artigos, e de tal sorte produzia nasdeterminações as suas razões, que ninguém, ouvin<strong>do</strong>-o, poderia duvidar de o terDeus ilustra<strong>do</strong> com raios de nova luz.»Eis aqui pois quantas novidades traz S. Antonino de S. Tomás: era inventor ,de novosartigos e de novas conclusões; produzia novas razões, parecia ilustra<strong>do</strong> com raios denova luz; tinha novo mo<strong>do</strong> de definir. E não podemos duvidar que muitosdeterminan<strong>do</strong>-se a cavar nos tesouros da Sagrada Escritura e <strong>do</strong>s Santos Padres,passam em silêncio cousas que outros com mais profundidade e meditan<strong>do</strong>-as deramà luz.LIVRO IEste livro, que está perfeitíssimo, consta de II cadernos dividi<strong>do</strong>s em I2 capítulos etrata <strong>do</strong> poder de Cristo, Senhor nosso, como Rei.SINOPSENo I capítulo prova com muitas razões a existência <strong>do</strong> Reino de Cristo, Senhor nosso:1.°) porque já desde o principio <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> foi figura<strong>do</strong>; 2.°) porque foi prenuncia<strong>do</strong>nos Salmos; 3.°) porque foi vaticina<strong>do</strong> pelos Profetas; 4.°) porque foi declara<strong>do</strong> noNovo Testamento.No II, prova que Cristo, Senhor nosso, como homem não só tem um reino no Céu,coimo também na Terra. Dá e explica aquelas palavras <strong>do</strong> Senhor:«Que o seu reinonão é deste Mun<strong>do</strong>»,—dizen<strong>do</strong> que Cristo, Senhor nosso, disse que não era Rei desteMun<strong>do</strong>, porque não viera com aquela ostentação e majestade <strong>do</strong>s reis <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 152 de 16927/08/2011No III, afirma que, suposto que o Reino de Cristo, Senhor nosso, seja no tempoposterior às quatro monarquias, pois que começou no dia em que nasceu; portantopela ordem sucessiva <strong>do</strong> tempo seja o 5.° Império <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, na ordem dadignidade, é superior a to<strong>do</strong>s os reis e reinos da Terra.No IV, defende que o Reino de Cristo, Senhor nosso, é não só espiritual, mastambém temporal; e o pensava assim pelas Escrituras e Santos Padres, como,também, pela razão da união apostólica; e porque seria grande absur<strong>do</strong> o julgar queCristo, Senhor nosso, não teve tanto <strong>do</strong>mínio quanto teve Adão. E passan<strong>do</strong> depois adesfazer o argumento tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> Papa, como vigário de Jesus Cristo, ter direito depropriedade em to<strong>do</strong>s os reinos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, se acaso Cristo, Senhor nosso, tivessesemelhante reino temporal, diz que, assim como Cristo, Senhor nosso, não deu aoseu Vigário to<strong>do</strong> o poder espiritual que ele tinha, pois que o Pontífice não podeinstituir sacramentos, nem santificar almas sem sacramentos, assim muito menos lhedevia confiar to<strong>do</strong> o poder temporal que ele tinha, pois que o Pontífice não podeinstituir sacramentos, nem santificar almas sem sacramentos, assim muito menos lhedevia confiar to<strong>do</strong> o poder temporal que ele tinha, servin<strong>do</strong> este muito de embaraçoao poder espiritual. Finalmente, conclui o mesmo capítulo IV, dizen<strong>do</strong> que o Reino deCristo, Senhor nosso, não é só espiritual, mas também temporal.No V, examina os títulos pelos quais Cristo, Senhor nosso, tomou para si o Reinoespiritual e temporal. Diz que pela razão da união apostólica, pelo título de Redentore <strong>do</strong>s seus merecimentos, pelo título de aquisição ou herança, como herdeiro de Adãoinocente e não peca<strong>do</strong>r, pelo título de eleição, quan<strong>do</strong> antes da sua vinda foi eleitopelos povos e deseja<strong>do</strong> por Rei, o que tu<strong>do</strong> prova com admirável engenho.No VI, examina quan<strong>do</strong> começará o Reino de Cristo, Senhor nosso; e, expon<strong>do</strong> ospareceres <strong>do</strong>s que dizem ter começa<strong>do</strong> no dia em que foi concebi<strong>do</strong> ou no dia em quefoi crucifica<strong>do</strong>, decide admiravelmente que o Reino de Cristo, Senhor nosso, pelotítulo da união ,apostólica, de direito hereditário e de <strong>do</strong>ação e por ser filho de Adãoinocente e de eleição por todas as gentes, teve princípio no dia em que foi concebi<strong>do</strong>;com os títulos, porém, de redenção de merecimentos, de aquisição e de vitória, <strong>do</strong>dia em que foi crucifica<strong>do</strong>.No VIII, examina se Cristo, Senhor nosso, foi legítimo e próprio Rei <strong>do</strong>s Judeus.Parece, pois, que não, pela razão de que a Virgem Santíssima não gozou de direitoalgum de rainha, e portanto Cristo, Senhor nosso, em quanto seu Filho, não tevedireito algum para ser Rei <strong>do</strong>s Judeus. Ao que responde com suma agudeza que,ten<strong>do</strong> Deus prometi<strong>do</strong> a David e a sua Família não só o reino de Israel, como que oMessias nasceria da sua família, segue-se que, descenden<strong>do</strong> a Virgem Santíssima dafamília de David, e nascen<strong>do</strong> dela o mesmo Messias, o reino de Israel pertencia aCristo, Senhor nosso, tanto pela natural descendência de David, como pela eleiçãodivina, que prometera ao Messias o reino de Israel.No VIII, discute excelentemente as qualidades <strong>do</strong> Reino temporal e espiritual deCristo, Senhor nosso. Decide admiravelmente que as qualidades <strong>do</strong> Reino espiritualconsistem na suprema dignidade sacer<strong>do</strong>tal, porquanto não só se ofereceu a simesmo, por si mesmo, como por nós, fundan<strong>do</strong> um Reino espiritual, e instituin<strong>do</strong> leise meios próprios ao culto divino e à salvação da alma.Acrescenta de mais que este poder espiritual de Cristo, Senhor nosso, chama-se real,porque, como to<strong>do</strong> o poder temporal que excede a to<strong>do</strong>s os mais se chama real, <strong>do</strong>mesmo mo<strong>do</strong> como o poder espiritual de Cristo, Senhor nosso, excede, semcomparação, a to<strong>do</strong>s os outros poderes, por isso se chama real, porque não só é


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 153 de 16927/08/2011poder de dar, sacrificar e santificar algum povo, o que tu<strong>do</strong> compete a qualquersacer<strong>do</strong>te, mas também é poder de instituir república espiritual, sacramentos, leis,prémio para remunerar o bem que se obra, e pena para castigar os delitos oumaldades, pelos quais se poderá corromper a mesma república espiritual. Diz aodepois que as qualidades <strong>do</strong> Reino temporal consistem em ter Cristo, Senhor nosso,um directo e absoluto <strong>do</strong>mínio sobre to<strong>do</strong>s os reinos da Terra, determinan<strong>do</strong>-os elivran<strong>do</strong>-os como e quan<strong>do</strong> quer, e que o <strong>do</strong>mínio de Cristo, Senhor nosso, sen<strong>do</strong>somente inferior ao <strong>do</strong> Padre Eterno, excede sempre a to<strong>do</strong>s os mais.No IX, examina se Cristo, Senhor nosso, exerceu no Mun<strong>do</strong> um e outro poderespiritual e temporal. É de fé que Ele exerceu o espiritual, porque, diz, santificou aoBaptista, chamou aos magos e aos pastores, repeliu os demónios e ofereceu-se emsacrifício a seu eterno Pai. Do temporal diz que, ainda que não o exerceu com aquelefasto com que o costumam exercer os reis <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, porque quis ensinar ahumildade e misturá-la com o poder régio, contu<strong>do</strong> exerceu-o sem este fasto, usan<strong>do</strong><strong>do</strong> juramento como seu, secan<strong>do</strong> a figueira, lançan<strong>do</strong> <strong>do</strong> templo os merca<strong>do</strong>res,destruin<strong>do</strong> as mesas <strong>do</strong>s banqueiros , permitin<strong>do</strong> que os reis o a<strong>do</strong>rassem e que ospovos o aclamassem Rei. Acrescenta que muitas vezes Cristo, Senhor nosso,exercera um e outro poder, espiritual e temporal, como se vê <strong>do</strong> caso da adúltera, aqual absolven<strong>do</strong>, mostra o poder espiritual e, per<strong>do</strong>an<strong>do</strong>-lhe a pena de serapedrejada, estabelecida por Moisés, mostra o poder temporal.No X, pergunta se Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o poder espiritual. Diz quesim, porque exerce o ofício sacer<strong>do</strong>tal, oferecen<strong>do</strong>-se a si mesmo a seu Pai por mãosde qualquer sacer<strong>do</strong>te, porque, pela boca <strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te, diz que oferece o seu corpo.Torna a rogar por nós e assiste a to<strong>do</strong>s os pastores das almas. Demonstra, alémdisso, excelentemente, que Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o seu poderespiritual, não só sobre to<strong>do</strong>s os infiéis, iluminan<strong>do</strong>-os, ajudan<strong>do</strong>-os, substituin<strong>do</strong>lhesministros espirituais, mas também sobre to<strong>do</strong>s os homens em geral, tanto fiéiscomo infiéis, reina e exerce o seu poder espiritual. Acrescenta, além disto, que Ele oexerce também sobre to<strong>do</strong>s os condena<strong>do</strong>s como juiz espiritual. Conclui, dizen<strong>do</strong> queCristo, Senhor nosso, exerce o seu poder espiritual sobre os condena<strong>do</strong>s comomembros podres, sobre os infiéis como membros mortifica<strong>do</strong>s, e sobre os justoscomo membros reuni<strong>do</strong>s.Na XI, pergunta se Cristo, Senhor nosso, exerce no Céu o poder de Rei temporal. Dizque sim, porque Cristo governa o Mun<strong>do</strong>, tanto pelo que toca às cousas espirituais,como temporais, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que o Verbo Divino, com a diferença somente deque o poder de governar <strong>do</strong> Verbo Divino é inato a si mesmo, o de Cristo, porém,como homem, é um poder participativo.Por isto diz a Escritura que o Pai deu to<strong>do</strong> o juízo ao Filho, tanto de julgar como degovernar o Mun<strong>do</strong>, e portanto Cristo, Senhor nosso, muda reis e repúblicas, e pormeio <strong>do</strong>s anjos e <strong>do</strong>s homens exerce no Céu o poder <strong>do</strong> Reino temporal.No XII, pergunta curiosamente se Cristo, Senhor nosso, há-de governar visivelmentepor espaço de I.000 anos e que há-de haver duas ressurreições; que na primeiraressuscitarão to<strong>do</strong>s os justos, que cheios de bens temporais reinarão com Cristo,Senhor nosso. Mas O P. e Vieira o refuta optimamente, porque seria cousa indecenteque Cristo, Senhor nosso, deixasse o Céu para reinar na Terra com abundância debens temporais, e que nem é necessário que para fazer guerra ao Anticristo edestruí-lo, que Ele desça à Terra a reinar e a pelejar com ele.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 154 de 16927/08/2011Eis o que se contém no I Livro, que é admirável, erudito e razoável. Da perfeitaconsumação <strong>do</strong> Reino de Cristo, Senhor nosso, na TerraEste II Livro é sumamente imperfeito, porquanto não tem senão o primeiro capítulo,e <strong>do</strong>s sete cadernos falta o segun<strong>do</strong>. Se os mais trata<strong>do</strong>s que não estão ordena<strong>do</strong>spor capítulos pertencem ao II ou III Livros, só pelo contexto da matéria se poderáreconhecer.SINOPSENesta Sinopse julguei não dever proceder pelos capítulos, porque, excepto o I, faltamto<strong>do</strong>s os mais; porque, se bem to<strong>do</strong>s os trata<strong>do</strong>s tenham seu título, contu<strong>do</strong> faltamto<strong>do</strong>s os capítulos. Mas devemo-nos regular pelos cadernos <strong>do</strong> mesmo, suposto faltao II.Diz, portanto, no I.° caderno que, ten<strong>do</strong> explica<strong>do</strong> no I Livro o poder e <strong>do</strong>mínio deCristo, Senhor nosso, como Rei, é justo que neste II Livro exponha as pessoas acercadas quais Cristo, Senhor nosso, exerce na Terra este poder. Ora, ten<strong>do</strong> só a IgrejaMilitante o Império e o Reino espiritual de Cristo, Senhor nosso, na Terra, porque aIgreja Triunfante não é o seu Reino na Terra, mas sim no Céu, e consistin<strong>do</strong> a suaperfeitíssima consumação não na Fé, porém na união de Deus, não na Esperança,porque nesta nada resta que esperar, porém no amor beatífico, segue-se que ele falatão somente da Igreja Militante, que é o Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra.Suposto, portanto, que o Reino espiritual de Cristo, Senhor nosso, seja na Terra nãosó a comunidade <strong>do</strong>s Fiéis, que se chama Igreja Militante perfeita, formada, actual,enquanto fundada na fé, esperança e caridade, como também a comunidade de to<strong>do</strong>sos homens que estão fora da Igreja que se chama Igreja Militante, informe, potenciale imperfeita; pergunta em que consiste a consumação e perfeição <strong>do</strong> Reino de Cristo,Senhor nosso, na Terra, ou da Igreja Militante ou imperfeita, prometida por Deus nasSagradas Páginas, para que com toda a certeza se faça um só rebanho e um sópastor?É incrível quanto este admirável Autor excede a si mesmo, para assim dizer, a fim deprovar a sua conclusão:—que o Reino de Cristo, Senhor nosso, então seráconsuma<strong>do</strong> e perfeito, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os homens, ou judeus ou infiéis, abraçarem a Féde Cristo, Senhor nosso, e segun<strong>do</strong> a Lei antiga e nova se formar um só rebanho eum só pastorDo segun<strong>do</strong> caderno nada me corre dizer, porque falta. Contu<strong>do</strong>, pelo que pudecoligir <strong>do</strong> 3.°, 4.°, 5.°, 6.° 7.°, parece-me que a intenção <strong>do</strong> Autor é provar, funda<strong>do</strong>em muitos Doutores, Santos Padres, figuras e textos, que ainda que haja hoje naTerra muitos infiéis que são como uma parte informe da Igreja Militante, contu<strong>do</strong>to<strong>do</strong>s absolutamente se hão-de converter e passar para a parte da Igreja Militante,formada e aperfeiçoada pela Fé, pela Lei de Cristo, Senhor nosso, e que nestaconversão geral de to<strong>do</strong>s os homens consiste a perfeita consumação <strong>do</strong> Reino deCristo, Senhor nosso, sobre a Terra ou da Igreja Militante. Não me posso demorar emreferir as engenhosíssimas e muito especiais reflexões que ele forma sobre ossagra<strong>do</strong>s textos, profecias e figuras, para provar o seu intento e como para pôr àvista a veracidade da sua proposição.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 155 de 16927/08/2011Trata<strong>do</strong> da santidade <strong>do</strong> último esta<strong>do</strong> da Igreja e de que to<strong>do</strong>s os homens nestetempo hão de ser justos e se hão-de salvarSINOPSEEste trata<strong>do</strong> consta de 3 cadernos. Primeiramente diz que ele dividirá este trata<strong>do</strong> em3 pontos, que vêm a ser: se neste tempo haverá peca<strong>do</strong>s, se to<strong>do</strong>s serão justos, e seto<strong>do</strong>s se salvarão.No I caderno prova que no último esta<strong>do</strong> da Igreja ou na perfeitíssima consumação<strong>do</strong> Reino de Cristo, Senhor nosso, não haverá peca<strong>do</strong> algum, segun<strong>do</strong> o que dizIsaías, não se ouvirá falar na Terra de iniquidade alguma, o que não se ten<strong>do</strong> aindacompleta<strong>do</strong> em algum esta<strong>do</strong> da Igreja, se há-de completar no terceiro esta<strong>do</strong> dela.Depois, prova também pela profecia <strong>do</strong> Arcanjo Gabriel feita a Daniel que o peca<strong>do</strong>achará fim e que a maldade será riscada <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. Logo, não se ten<strong>do</strong> aindacompleta<strong>do</strong> esta profecia, há-de-se completar no último esta<strong>do</strong> da Igreja, e por issoacrescenta ainda o Arcanjo Gabriel — para se cumprir a profecia e se ungir o Santo<strong>do</strong>s Santos—sobre as quais palavras, diz o Autor, será ungi<strong>do</strong> o Santo <strong>do</strong>s Santoscom a terceira e última unção , a qual como representada nas três unções de David,já nós distinguimos no cap. 2.° deste livro, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> Reino de Cristo sobre a Terra.Confirma o seu dito com o Salmo XCV, que é to<strong>do</strong> a respeito das conversões <strong>do</strong>spovos: Toda a Terra se comove na sua presença, porque o Senhor reinou, porqueestabeleceu o orbe da Terra de sorte que se não moverá. Eis aqui, diz o Autor, queCristo, Senhor nosso, reinará então perfeitissimamente sobre a Terra, quan<strong>do</strong> oMun<strong>do</strong> ficar livre de to<strong>do</strong> o peca<strong>do</strong>. Traz também to<strong>do</strong> o texto <strong>do</strong> Apocalipse, que eleinterpreta com admirável engenho.Depois disto, pergunta de que mo<strong>do</strong> se extinguirão to<strong>do</strong>s os peca<strong>do</strong>s? Responde:primeiro pela conversão de to<strong>do</strong>s os infiéis; segun<strong>do</strong>, pela morte antecipada de to<strong>do</strong>sos peca<strong>do</strong>res que se não quiseram converter.No II caderno, pergunta se no Reino de Cristo perfeitissimamente consuma<strong>do</strong> naTerra, serão to<strong>do</strong>s justos? Responde que sim, porque, tirada a culpa de necessidade,há-de só reinar a graça. Expõe depois o capítulo LX de Isaías, no qual, depois destaspalavras: — Já se não ouvirá falar de violência na tua terra— acrescentaimediatamente estas:—To<strong>do</strong> o teu povo será um povo de justos—as quais palavras,se concordarmos com o texto de Isaías e outras profecias, devem aplicar-se à IgrejaMilitante.O Autor continua no mesmo assunto no II caderno, em que ele pergunta se entãoto<strong>do</strong>s se salvarão? Deixou contu<strong>do</strong> este ponto por acabar, suposto que <strong>do</strong> defini<strong>do</strong>pelo Autor no I.° e 2.° ponto se siga evidentemente que to<strong>do</strong>s se salvarão.Trata<strong>do</strong> da Paz <strong>do</strong> MessiaSINOPSEContém este trata<strong>do</strong> três cadernos, no I <strong>do</strong>s quais, antes de decidir se as profecias arespeito <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Messias estão já completas, diz que, se estivermos pelaexperiência da guerra que tem havi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o século, parecem não estar ainda


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 156 de 16927/08/2011completas; e, depois de mostrar o erro <strong>do</strong>s Anabaptistas, em que caiu antes destes omesmo Tertuliano, os quais negam ser lícita a guerra, o que é contra o DireitoNatural, que manda cada um defender-se como pode, traz diversas interpretações.Primeira é que as profecias falam da paz que reina entre os Bem-aventura<strong>do</strong>s, a qualele não admite.. A outra é que falam de paz espiritual, que também não admite. A 3. aé que falam da paz da Igreja e que neste tempo se completarão as profecias, o quedestrói com muitos argumentos. A 4. a é que falam da paz que houve no ImpérioRomano tão somente no tempo de Augusto, a qual ele refuta, tanto porque não foi demo<strong>do</strong> algum uma paz segura, como porque foi limitada só a este império; e a pazprometida não foi antes <strong>do</strong> Messias e da sua vinda, como foi a de Augusto. A 5. a éque, depois da vinda de Cristo, Senhor nosso, a paz é muito maior, porque asguerras são menores <strong>do</strong> que dantes, a qual ele também reprova, tanto porque émuito duvi<strong>do</strong>so se as guerras foram maiores antes <strong>do</strong> que depois da vinda de JesusCristo, como porque, se as guerras e os instrumentos bélicos de que usamos, secompararem com aqueles de que usaram os Antigos, facilmente se pode supor quesão mais sanguinolentas as guerras de hoje <strong>do</strong> que as anteriores a Cristo, Senhornosso. A 6. a é que, se os Cristãos observarem a Lei de Cristo, haverá maior paz entreeles. Refuta esta interpretação, porque não concorda com os textos que afirmam queas nações não tomarão armas contra nações, que a Terra será isenta de guerras. A7. a é que, quan<strong>do</strong> Cristo, Senhor nosso, promulgou a sua Lei, que toda é de paz, deupaz; reprova, porque se não promete lei de paz, porém sim paz perfeitíssima.Finalmente, ,no II caderno, pág. 6, diz que a paz perfeitíssima prometida pelosProfetas ainda se não completou, porém, que se há-de completar no último esta<strong>do</strong> daIgreja, isto é, no Reino de Cristo, Senhor nosso, consuma<strong>do</strong> na Terra.Prova pelo que diz S.to Agostinho — ainda não vimos o texto completo —: Levan<strong>do</strong>as guerras até os fins <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>. E suposto seja verdade que a vinda de Cristo,Senhor nosso, aumentará a paz, porque entre os príncipes cristãos se guardarão commais fidelidade os trata<strong>do</strong>s de paz firma<strong>do</strong>s com juramentos, <strong>do</strong> que entre os Infiéis,e ainda que muitos infiéis converten<strong>do</strong>-se à Fé, tenham deposto o bárbaro costumede se comerem e pelejarem uns com os outros contu<strong>do</strong> ainda se não completou a pazgeral de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, que há-de ser tão segura, que qualquer poderá descansarsem susto e temor de guerra.Primeiramente, porque esta paz, como diz Isaías, está prometida à pregação <strong>do</strong>Evangelho; logo, que se o Evangelho ainda não está espalha<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>,não está também ainda completa a paz prometida. Segun<strong>do</strong>, porque não se há-deconsumar o Reino de Cristo, Senhor nosso, na Terra, senão quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> seconverter à Fé e se unir perfeitissimamente a Cristo, Senhor nosso; logo, nãohaven<strong>do</strong> ainda a paz prometida, há-de ser muito mais viva a mesma, com a sua luzinfundirá um veemente desejo, e sem esta perfeitíssima sujeição, fé e obediênciapara com Cristo, Senhor nosso, não se há-de ainda conceder a paz prometida, e sóse completará quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> se resolver a seguir inteiramente a Cristo,Senhor nosso. Refere a este assunto muitos textos, expostos literalmente e comadmirável engenho.No III caderno, desfazen<strong>do</strong> este argumento—que parece incrível que só a Fé sejacapaz de conseguir esta perfeita paz—responde mostran<strong>do</strong> ele neste II Livro que a Fédeste 3.° esta<strong>do</strong> da Igreja é amor à paz. Além de que diz Isaías que o Espírito Santofará to<strong>do</strong>s os seus filhos instruí<strong>do</strong>s pelo Senhor, e depois conduzirá uma grandeabundância de paz— e porque finalmente então haverá um só coração e uma só almae to<strong>do</strong>s viverão na graça <strong>do</strong> Senhor.No mesmo III caderno suscita esta objeção: A paz é um <strong>do</strong>s principais sinais da vinda


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 157 de 16927/08/2011<strong>do</strong> Messias; logo que esta não está ainda completa, ainda não chegou também oMessias. Responde engenhosamente que os sinais da vinda <strong>do</strong> Messias, uns sãoantecedentes, e estes se haviam de cumprir antes da sua vinda, conforme o textoque diz que o Messias não viria até que se não tirasse o ceptro de Judá—o que naverdade aconteceu, porque então apareceu ele, quan<strong>do</strong> o ceptro de Judá já tinhapassa<strong>do</strong> ao poder de Herodes; outros são concomitantes, como a sua santidade,pobreza, sua paixão e pregação; outros subsequentes, que se não haviam de verificare completar senão depois da sua ascensão ao Céu, como a pregação evangélica porto<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> e a paz geral. Por isso diz David que Cristo, Senhor nosso, depois quese assentasse à direita de Deus Padre, poria a seus pés to<strong>do</strong>s os seus inimigos.Continua a mostrar a paz prometida por Deus e diz que assim como na arca de Noé,que foi a figura da Igreja, os leões e os lobos formaram aliança e paz com oscordeiros e ovelhas, assim no 3.° esta<strong>do</strong> da Igreja ou na última consumação <strong>do</strong> Reinode Cristo, Senhor nosso, sobre a Terra, os homens que forem opostos entre si emleis, ritos e costumes, gozarão de uma paz seguríssima e firmíssima.Trata<strong>do</strong> da pregação universal <strong>do</strong> Evangelho Último esta<strong>do</strong> da Igreja e consumação<strong>do</strong> Reino de Cristo, Senhor nossoDeste trata<strong>do</strong> não há capítulo algum, exceto um que não está enumera<strong>do</strong>, pelo que, para maiorinteligência e clareza, disporei a Sinopse pela série <strong>do</strong>s dez cadernos.SINOPSENo I e II cadernos examina se o Evangelho tem si<strong>do</strong> prega<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Pelaparte afirmativa traz para prova o Apóstolo, dizen<strong>do</strong> aos Romanos: A vossa Fé serálevada por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> — e o mesmo afirma aos Colossenses; e pela partenegativa, que ele segue, traz muitos argumentos e com curiosa erudição discorreexcelentemente pelos I7 séculos da Igreja, citan<strong>do</strong> os templos em que o Evangelhofoi recebi<strong>do</strong> em vários reinos <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, o que prova que ele não foi publica<strong>do</strong> porto<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> no tempo <strong>do</strong>s Apóstolos. Eis aqui a razão por que os intérpretes de S.Paulo explicaram o texto — de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> —entenden<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> romano e outroso mun<strong>do</strong> então habita<strong>do</strong> e conheci<strong>do</strong>.Depois disto, o Autor demora-se muito em expor o texto: Para toda a Terra saiu osom das suas vozes— e com admirável e engenhosa agudeza de espírito diz que umacousa é sair e outra chegar. Concede que a voz <strong>do</strong>s Apóstolos tenha saí<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>o Mun<strong>do</strong>, porém, nega o ter chega<strong>do</strong> a todas as terras. Do mesmo mo<strong>do</strong> que (diz) sesaírem <strong>do</strong> porto de Lisboa duas naus, uma para o Brasil, outra para Goa, que éverdade terem ambas saí<strong>do</strong> <strong>do</strong> porto ao mesmo tempo, mas que é falso o teremchega<strong>do</strong> ambas ao mesmo tempo, porque a que foi para o Brasil chegou primeiro.Persuade, porém, que o Evangelho se há-de pregar por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> por muitostextos da Sagrada Escritura, que dizem claramente que o Evangelho se há-de pregarpor to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Logo, se em to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> se há-de pregar, a voz <strong>do</strong>s Apóstolos,apesar de ter saí<strong>do</strong> para to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, ainda não chegou a to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>.Finalmente, na 5. a questão <strong>do</strong> II caderno expõe, com a mesma agudeza de engenho,os diversos mo<strong>do</strong>s da pregação evangélica. A um chama mu<strong>do</strong>, que vêm a ser asmesmas criaturas irracionais, as quais, se se considerarem, são bastantes para queos Gentios entendam a unidade de Deus; seriam além disto bastantes para tambémperceberem a Trindade das, Pessoas e a Encarnação <strong>do</strong> Verbo, se não estivessemcegos pelos seus peca<strong>do</strong>s e pelos seus <strong>do</strong>utores, os quais como que prendem no


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 158 de 16927/08/2011cárcere a verdade, segun<strong>do</strong> a expressão <strong>do</strong> Apóstolo aos Romanos: Prendem averdade de Deus na injustiça.Outro mo<strong>do</strong> de pregação evangélica são as vozes e a fama. Tu<strong>do</strong> isto trata o Autorcom esquisita erudição no I e II cadernos <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>.No III caderno examina o Autor com grande esforço esta muito árdua questão: Seaqueles que não crêem no Evangelho, porque não o ouviram, devem sercondena<strong>do</strong>s? Porque, sen<strong>do</strong> certo que tanto aqueles que ouviram o Evangelho sehão-de salvar, como os que o ouviram e não obedeceram se hão-de perder, deve-sedeterminar, diz ele, se aqueles que não obedeceram, porque não o ouviram, secondenarão ao Inferno para sempre.Defende o Autor: primeiro, que em muitos bárbaros americanos se dá o peca<strong>do</strong>puramente filosófico e não o teológico, enquanto ele parece precisamente contra arazão natural, e não contra Deus, pois que padecem uma invencível ignorância deDeus. Segun<strong>do</strong>, afirma que se ,dá também em muitos bárbaros invencível ignorância<strong>do</strong> Direito Natural, porque muitos têm o furto como uma cousa sumamente gloriosa,e por isso se aplicam a ele desde meninos, nutrem-se da carne <strong>do</strong>s seus inimigos, ede mais, comem os seus ,próprios filhos e cometem outras obscenidades, sem que selhes ensine o contrário, antes pela sua omissão são repreendi<strong>do</strong>s e castiga<strong>do</strong>s.Um e outro assunto prova o Autor com a autoridade <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res os mais fiéisque estiveram entre os Tapuias, e que foram encarrega<strong>do</strong>s de os civilizar; os quaistêm tão rombo entendimento, que muitos não são capazes de aprender mais que trêsnúmeros. Por esta razão diz o Autor: se os teólogos da Europa (que negam serpossível a ignorância de Deus e <strong>do</strong> Direito Natural totalmente invencível) praticassemcom estes bárbaros, cederiam da sua opinião.Suposto, portanto, pelo Autor, naqueles bárbaros, o peca<strong>do</strong> paramente filosófico,porque padecem invencível ignorância de Deus, examina se, porque cometem oucometeram o peca<strong>do</strong> mortal puramente filosófico, deverão ser castiga<strong>do</strong>s com a penaeterna.Nega. E, continuan<strong>do</strong> largamente a mesma matéria no 3.° caderno, na I. a e 2. apágina. <strong>do</strong> 4.° o prova desta maneira: To<strong>do</strong> o motivo por que se impõe a pena eternaao peca<strong>do</strong> mortal, é porque ele é ofensa de um Deus infinito; dan<strong>do</strong>-se, porém,muitos bárbaros que não ofendem este Deus infinito, porque ignoraminvencivelmente a sua existência, segue-se que não são dignos da pena eterna, massó sim devem ser castiga<strong>do</strong>s com uma pena temporal e arbitrária.Pelo que deve haver algum lugar onde se devem punir aqueles que cometem opeca<strong>do</strong> puramente filosófico. E porque não admire a novidade da opinião, perguntaem que lugar se há-de punir aquele bárbaro que morreu sem batismo, só com opeca<strong>do</strong> venial?Não deve ser no Purgatório, porque este lugar é só para aqueles que morreram emgraça e que hão-de gozar da presença de Deus. Não no Inferno, porque este lugar édestina<strong>do</strong> aos que morreram em atual peca<strong>do</strong> mortal teológico; não no Limbo,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 159 de 16927/08/2011porque este esta<strong>do</strong> é para aqueles que morrem só com o peca<strong>do</strong> original, sempeca<strong>do</strong> venial. Portanto, assim como para aqueles que morreram sem batismo comum peca<strong>do</strong> venial, está determina<strong>do</strong> o lugar próprio em que devem ser puni<strong>do</strong>s coma pena <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, assim para aqueles que morrem com o peca<strong>do</strong> mortalpuramente filosófico, deve-se destinar um lugar próprio, que não seja nem o Limbonem o Purgatório, nem o Inferno, onde devem ser puni<strong>do</strong>s.Consideran<strong>do</strong> estas cousas , nunca acabo de admirar como alguém se atreva a riscardeste trata<strong>do</strong> a opinião <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> puramente filosófico, como condena<strong>do</strong> porAlexandre VIII. Primeiramente, pergunto eu se são equivalentes estas duasproposições: o peca<strong>do</strong> filosófico, por mais grave que seja naquele que ignorainvencivelmente a existência de Deus, não é ofensa de Deus nem merece uma penaeterna; o peca<strong>do</strong> filosófico, por mais grave que seja naquele que ignora Deus, não éofensa de Deus nem digno de pena eterna? Por certo que não. Logo, sem razãoalguma foi riscada <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> Autor a <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosófico naquele queignora invencivelmente a existência de Deus.Demais, se se extinguir a <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosófico, dever-se-ia também extinguirquase to<strong>do</strong> este trata<strong>do</strong> da universal pregação <strong>do</strong> Evangelho, visto estar funda<strong>do</strong> nopeca<strong>do</strong> filosófico. Porque é cousa muito singular neste Autor, ver a coerência que têmas cousas que diz com as que há-de dizer, de mo<strong>do</strong> que as derradeiras estãofundadas sobre as primeiras e se ligam umas às outras. Nada portanto se pode tirardeste, que se não perca to<strong>do</strong> o trata<strong>do</strong>. Logo, para que nada se destrua <strong>do</strong> que eletem feito por muitos cadernos cheios de erudição e engenho, funda<strong>do</strong> unicamente nopeca<strong>do</strong> filosófico, nada se deve tirar dele.Da mesma sorte digo que, de negar nos Cristãos e nos Idólatras o peca<strong>do</strong> filosófico,não se segue que se deva também negar nos Bárbaros americanos. E a razão éporque, nos Cristãos e nos Idólatras, não há invencível ignorância de Deus, porquea<strong>do</strong>ram alguma cousa. E ainda que os Idólatras errem no seu culto, contu<strong>do</strong> namesma luz natural da razão que lhes proíbe alguma cousa, sempre resplandece, aomenos implicitamente, um Deus a quem a<strong>do</strong>ram, no Bárbaro americano, porém, quenada absolutamente a<strong>do</strong>ra, não existe na sua mesma razão Deus algum pois que:padece uma ignorância invencível da existência de um Deus, qualquer que seja; logo,o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Cristãos e <strong>do</strong>s Idólatras contra a razão natural não é puramentefilosófico, mas é também teológico; e, pelo contrário, o peca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Bárbaros, quenão a<strong>do</strong>ram divindade alguma, cometi<strong>do</strong> contra a razão natural, é puramentefilosófico; <strong>do</strong>s quais e nos quais o Autor defende o peca<strong>do</strong> puramente filosófico.No IV caderno pergunta o Autor se Deus ministra a to<strong>do</strong>s os bárbaros adultos osmeios suficientes para a sua salvação? Afirma com S. Tomás, a quem de boamenteconcede que os exemplos referi<strong>do</strong>s por ele — de S. Pedro envia<strong>do</strong> a Cornélio, S.Paulo aos Macedónios —, provam que Deus manda prega<strong>do</strong>res àquele que faz o queestá na sua parte; contu<strong>do</strong>, queren<strong>do</strong> mostrar que estes exemplos não vêm ao caso,diz que de <strong>do</strong>is casos raríssimos não se pode inferir universalmente que Deusconceda a graça da pregação àqueles que fazem o que está na sua parte.Depois suscita esta grande dúvida e pergunta que meios tiveram os Americanos em1.300 anos depois da pregação <strong>do</strong> Apóstolo S. Tomé (pois que este foi o tempo quemediou entre a pregação <strong>do</strong> Apóstolo e a entrada <strong>do</strong>s Europeus na América) quemeios, digo, tiveram para conseguirem a sua salvação? Porque eles não tiveram nemum nem outro meio, isto é, sem a agudeza <strong>do</strong> engenho pela qual pudessem .conhecer a Deus naturalmente, pelas cousas criadas, e nem prega<strong>do</strong>res que ostirassem da sua estupidez; logo, não tiveram meio algum de salvação eterna.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 160 de 16927/08/2011Dizer, porém, diz o Padre Vieira, que Deus deu o seu conhecimento a to<strong>do</strong>s osadultos antes da morte, para que, pecan<strong>do</strong> mortalmente, pudesse condená-los, écousa duríssima e contrária à piedade de Deus, que Ele condenasse a uns homenstão estúpi<strong>do</strong>s e que não tiveram prega<strong>do</strong>res por espaço de 1.300 anos. Eis aqui osapertos em que se viram aqueles que negam o peca<strong>do</strong> puramente filosófico; porquecondenam a to<strong>do</strong>s estes. Pelo contrário, admitin<strong>do</strong>-se o peca<strong>do</strong> puramente filosóficoe outro lugar além <strong>do</strong> Céu e <strong>do</strong> Inferno em que padeçam a pena temporal aquelesbárbaros que têm invencível ignorância de Deus e que pecam gravemente contra arazão natural, nada se diz nem se segue que pareça cruel, nem contra a piedade deDeus.Para, portanto, desfazer esta dúvida, que ao Autor causa suma admiração, diz queDeus, não providencian<strong>do</strong>, providenciou àqueles bárbaros. E para provar isto, supõeque em Deus, além da ciência absoluta, se dá também a condicionada, pela qual Elevê o que fariam aqueles bárbaros, se se lhes desse um entendimento agu<strong>do</strong> ou se selhes mandassem prega<strong>do</strong>res. Conhecen<strong>do</strong>, porém, que eles haviam de abusar tantode um como de outro meio, cometen<strong>do</strong> o peca<strong>do</strong> mortal teológico, e que seriamcondena<strong>do</strong>s à pena eterna; e que, negan<strong>do</strong>-lhes um e outro meio, não seriampuni<strong>do</strong>s com a pena eterna, porém com a temporal, tão somente depois da suamorte, Deus, que é tão cheio de piedade, negan<strong>do</strong>-lhes primeiro outro meio desalvação, não os providencian<strong>do</strong>, providenciou-os.Medite, portanto, o leitor que, abolin<strong>do</strong>-se a <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> filosófico, se deverátambém abolir quase to<strong>do</strong> o trata<strong>do</strong>, pois tu<strong>do</strong> o que se afirma no IV caderno, sefunda no peca<strong>do</strong> filosófico.Acrescenta o Autor das utilidades que daí se tiram, que vêm a ser: que Deus, nãoprovidencian<strong>do</strong>, providenciou os <strong>do</strong>is meios de salvação àqueles bárbaros, isto é, nãolhes dan<strong>do</strong> nem agudeza de engenho, nem prega<strong>do</strong>res por onde conhecessem aDeus.Diz que daí se seguem duas utilidades: Primeira, que, ignoran<strong>do</strong> invencivelmente aDeus, nunca poderão cometer o peca<strong>do</strong> mortal teológico; segunda, que, cometen<strong>do</strong>só o peca<strong>do</strong> mortal filosófico, estão livres da pena eterna.Confirma primeiramente com S. Paulo e S. Timóteo, os quais, como diz S. Lucas,queren<strong>do</strong> pregar a Fé de Deus na Ásia, foram proibi<strong>do</strong>s pelo Espírito Santo; porque,como explica Beda, sabia que os Asiáticos haviam de desprezar a palavra de Deus, aqual cousa, não sen<strong>do</strong> providência, é providência de Deus, enquanto ela livrará dapena eterna <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s a to<strong>do</strong>s aqueles que invencivelmente O ignoram, o quecertamente não sucederia, se acaso O conhecessem. E saben<strong>do</strong> Ele que os Asiáticoshaviam de resistir à sua Lei, se acaso a conhecessem, e a Ele mesmo, nãoprovidencian<strong>do</strong>, os providenciou, proibin<strong>do</strong> que se lhes fosse pregar.Prova, em segun<strong>do</strong> lugar, com o Salmo XVII, que fala <strong>do</strong> Padre Eterno, onde se lêdas salvações de Seu Filho Jesus Cristo. Não diz da salvação, mas sim das salvações;porque são <strong>do</strong>is os mo<strong>do</strong>s de salvação: o primeiro é perfeito, providencian<strong>do</strong> a Fé ebons costumes com que se adquira a vida eterna; e outro é imperfeito, admitin<strong>do</strong>que vivam numa infidelidade inculpável, e salve ou livre da pena eterna <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>saqueles que morrem em invencível ignorância de Deus.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 161 de 16927/08/2011Acrescenta mais <strong>do</strong> Salmo XXXV estas palavras: Salvarás, Senhor, os homens e osjumentos. Chama homens aos fiéis que crêem e obram bem e que se salvam pelasboas obras, e jumentos aos infiéis, que estão entre os homens e os brutos, porque,viven<strong>do</strong> na sua invencível ignorância de Deus, se salvam da pena eterna <strong>do</strong>ssenti<strong>do</strong>s.Confirma, em terceiro lugar, pelo preceito que impôs Cristo, Senhor nosso, a S.Paulo, logo depois da sua conversão: Apressa-te—disse — e sai já de Jerusalém,porque não receberão o testemunho das minhas palavras. Eis aqui Cristo, Senhornosso, preven<strong>do</strong> que os Judeus não se haviam de converter; por isso man<strong>do</strong>u a S.Paulo que saísse de entre eles e os deixasse na sua ignorância, para que fossemmenos maus, não ouvin<strong>do</strong> a S. Paulo, e não se fizessem dignos da pena eterna.No mesmo caderno, junto <strong>do</strong> fim, pág. 8 até pág. 9, examina os meios pelos quais sepode alcançar a conversão de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> à Fé de Cristo: primeiro, pela eficácia dapregação, isto é, dan<strong>do</strong> tão grande eficácia às palavras <strong>do</strong>s prega<strong>do</strong>res, que os Infiéisnão lhes poderão resistir; segun<strong>do</strong>, pelos milagres; terceiro, pelas inspiraçõesinteriores, sem auxílio <strong>do</strong>s homens, e isto o prova elegantissimamente por causa daimpossibilidade moral de irem os prega<strong>do</strong>res a todas as regiões <strong>do</strong>s Infiéis.Depois, continua a declarar os instrumentos de que Deus há-de usar para aconversão de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Primeiramente, diz que o melhor instrumento será omesmo Cristo, <strong>do</strong> qual se lêem no Salmo II estas palavras: Eu, porém, fuiestabeleci<strong>do</strong> por Ele Rei, a fim de intimar os seus preceitos. Não diz— diz o Autor—Rei prega<strong>do</strong>r, porém sim Rei que prega; porque Cristo, Senhor nosso, nunca seabsteve de pregar. Em segun<strong>do</strong> lugar, diz que serão os homens santos, porque, seCristo, Senhor nosso, fun<strong>do</strong>u o seu Reina<strong>do</strong> por meio de homens santos, com muitomais razão se servirá deles para aperfeiçoá-lo. Em terceiro lugar, diz que será osocorro <strong>do</strong>s príncipes seculares. Porque — diz o Autor— assim como as almas nãoserão governadas pelos bispos, estan<strong>do</strong> separadas <strong>do</strong> corpo, mas sim unidas a ele,assim também entre os príncipes seculares e os eclesiásticos deve haver esta união,e por isso Deus, no Velho Testamento, dividiu entre os <strong>do</strong>is irmãos, isto é, Moisés eAarão, o poder secular e sacer<strong>do</strong>tal, para que entendêssemos que se deviam unirentre si no amor fraternal. Traz para este fim muitas histórias, e o que diz Isaías nocap. XLIX, falan<strong>do</strong> sobre a Igreja: Serão os reis os teus cura<strong>do</strong>res, e as rainhas astuas amas.No V caderno, pergunta se antes <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s serão cristãos e, refutan<strong>do</strong> oque diz o Padre Soares,—que, ainda que a Igreja se dilatará por to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, negacontu<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s se converterão — o Autor afirma que totalmente hão-de sercristãos, porque a Sagrada Escritura diz que todas as gentes, pátrias e famílias denações o a<strong>do</strong>rarão—isto é, a Jesus Cristo, acrescentan<strong>do</strong> a mesma :Escritura que atécada um <strong>do</strong>s indivíduos o há-de a<strong>do</strong>rar. Logo, por conseqüência, deve vir tempo emque se convertam não só as nações, pátrias e famílias, mas ainda mesmo cada um<strong>do</strong>s homensNo VI caderno, trata <strong>do</strong> tempo em que de uma vez ou <strong>do</strong>s tempos em que por partesse há-de completar a conversão de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> à Fé, e diz que to<strong>do</strong>s os intérpretesquerem que esta conversão de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> à Fé não se completará senão depois damorte <strong>do</strong> Anticristo por Elias, que converterá os Judeus, e por Henoc, que converteráaos Gentios, segun<strong>do</strong> o que disse Cristo, Senhor nosso, ,por S. Marcos, cap. IX:Quan<strong>do</strong> vier Elias restituirá todas as cousas. O Autor, porém, segue outro parecer,ensinan<strong>do</strong> que não há-de haver uma só conversão, porém que são duas asconversões gerais de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>: a primeira, pelos sucessores <strong>do</strong>s Apóstolos,antes da morte e destruição <strong>do</strong> Anticristo, e o prova: primeiro, porque o fim por queCristo, Senhor nosso man<strong>do</strong>u aos Apóstolos, foi a conversão de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>,


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 162 de 16927/08/2011porque diz: Pregai o Evangelho a todas as criaturas; logo, não se ten<strong>do</strong> aindaalcança<strong>do</strong> este fim, algum dia se alcançará. Segun<strong>do</strong>, porque, sen<strong>do</strong> certíssimo tantoque antes <strong>do</strong> dia de juízo to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> se deve converter à Fé, como que, desde amorte <strong>do</strong> Anticristo até o dia de juízo, não se hão-de passar mais que 45 dias, éimpossível que em tão breve tempo to<strong>do</strong>s os homens geralmente se possamconverter à Fé de Cristo por meio de <strong>do</strong>is homens, Henoc e Elias logo, deve precedera vinda <strong>do</strong> Anticristo outra conversão geral de to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>. Terceiro, porque, seantes da vinda <strong>do</strong> Anticristo to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> não fosse cristão, o Articristo não seria oAnticristo porque Anticristo é aquele que se opõe aos Cristãos, logo, antes da vinda<strong>do</strong> Anticristo, to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> deve ser cristão. Confirma, além disto, o seu dito pelasreferidas palavras de Cristo, que não diz: Elias, quan<strong>do</strong> vier, converterá tu<strong>do</strong>, porém,sim,—restituirá tu<strong>do</strong>—que quer dizer que aqueles que por causa de tormentos eenganos <strong>do</strong> Anticristo se tiverem afasta<strong>do</strong> da Fé, serão restituí<strong>do</strong>s a ela; logo, se osrestituir à Fé, segue-se que já tinham si<strong>do</strong> antes cristãos.Ajunta muitas dificuldades desta conversões. As principais são: que a conversãoprecedente à vinda <strong>do</strong> Anticristo será feita pelos sucessores <strong>do</strong>s Apóstolos semmudança de hábito, que terá por fim a conversão de to<strong>do</strong>s aqueles que, ou pormalícia ou por erro invencível, não tiverem abraça<strong>do</strong> a Fé de Cristo, Senhor nosso;que esta conversão, antecedente à vinda <strong>do</strong> Anticristo, começou no nascimento deCristo, Senhor nosso, e, pelo contrário, a subsequente à vinda <strong>do</strong> Anticristoprincipiará por Henoc na Lei da Natureza e por Elias na Lei Escrita, e começará outravez por eles e durará tão somente 45 dias; que o fim desta conversão é reduzir à Fétão somente aqueles que pelos enganos e tormentos <strong>do</strong> Anticristo tiverem apostata<strong>do</strong>da Fé de Cristo, Senhor nosso; que Henoc e Elias hão-de pregar, vesti<strong>do</strong>s de saco.Depois disto examina se neste tempo tão somente se completará o oráculo de Cristo,Senhor nosso:—Haverá um só rebanho e um só pastor. Afirma, porém, contra aopinião de quase to<strong>do</strong>s os intérpretes: porque Cristo, Senhor nosso, diz:—Tenhooutras ovelhas e é justo que eu as guie, e ouvirão a minha voz e se fará (não diz—ese fez um só rebanho e um só pastor, porém, se há-de fazer) um só rebanho...Segue-se que ainda não está completo este oráculo de Jesus Cristo.Daí, passan<strong>do</strong> o Autor ao tempo e à ordem por que se há de formar este rebanho oucongregação de ovelhas, diz que os Hebreus se hão-de unir com os Hebreus e osGentios com os Gentios, e ambos se unirão com os mais. Prova, além disto, a geralconversão de to<strong>do</strong>s os homens a Cristo, Senhor nosso, e à sua Fé, tanto pelo cap.XXXI de Jeremias, que diz: to<strong>do</strong>s me conhecerão, desde o mais pequeno até , aomaior, como pelo cap. XI, de Isaías: Será cheia a Terra <strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong> Senhor,assim como as águas <strong>do</strong> mar cobrirão a mesma Terra, ou como outros: Bem assimcomo as águas cobrem o mar. E segun<strong>do</strong> diz o profeta Habacuc: A terra se encherá,assim como as águas cobrem o mar, para que to<strong>do</strong>s conheçam a glória <strong>do</strong> Senhor.Sobre as quais palavras diz o Autor engenhosamente que, assim como as águaspodem cobrir o mar, o conhecimento <strong>do</strong> Senhor há-de ser tão grande, que inundará oMun<strong>do</strong>, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que o dilúvio inun<strong>do</strong>u a Terra.Depois disto, nota a diferença que há entre o dilúvio de Noé e este, cuja figura foi ade Noé; porque, assim como o dilúvio de Noé inun<strong>do</strong>u a Terra, assim também ainundará o conhecimento <strong>do</strong> Senhor, com a diferença somente de que aquele ainun<strong>do</strong>u para destruí-la, este porém é para vivificá-la com o dilúvio <strong>do</strong> batismo.No IX caderno, supõe ser tradição antiga, derivada de Adão e tida por certa entre osmesmos Antigos, que o Mun<strong>do</strong> não há-de exceder <strong>do</strong> espaço de 6.ooo anos; porquedizem que, se to<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong> se completou em seis dias, os dias porém na presençade Deus são 1.000 anos; por conseqüência não há-de durar mais de 6.ooo anos; desorte que os <strong>do</strong>is primeiros 1.000 anos são da Lei da Natureza, os <strong>do</strong>is intermédiossão da Lei Escrita e os <strong>do</strong>is últimos da Lei da Graça. Todavia o Autor deixou poracabar to<strong>do</strong> o IX caderno—o <strong>do</strong> tempo em que se há-de acabar o Mun<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 163 de 16927/08/2011No I, examina se os homens viverão mais tempo naquele em que se consumar naTerra o Reino de Cristo, Senhor nosso. Afirma que sim, funda<strong>do</strong> na profecia de Isaías,cap. LXV, onde se lêem as seguintes palavras: «Não se verá mais ali menino que vivapoucos dias, nem velho que não cumpra o tempo da sua vida; porquanto aquele quefor menino morrerá de 1OO anos e o peca<strong>do</strong>r de 1OO anos será maldito.» Da mesmasorte diz Isaías: «Edificarão casas e as habitarão; plantarão vinhas e comerão o seufruto.»Sen<strong>do</strong> portanto, certo por to<strong>do</strong>s os intérpretes que estas palavras se devem entendera respeito da Lei da Graça, sen<strong>do</strong> também certo que, desde que Cristo, Senhor nosso,subiu ao Céu, ninguém viu menino nem velho que cumprisse os seus dias e anos, eacontecen<strong>do</strong>, de ordinário, que aquele que fabrica não habita a casa que construiunem come o fruto das árvores que plantou, segue-se necessariamente que estaprofecia se completará um dia. quan<strong>do</strong> o Reino de Cristo, Senhor nosso, se consumarsobre a Terra, e tanto mais pelo que se lê no Apocalipse a respeito de Cristo, Senhornosso: Eis aqui faço tu<strong>do</strong> novo, isto é, renovan<strong>do</strong> as idades passadas.Será, porém, perfeitamente consuma<strong>do</strong> o Reino de Cristo, Senhor nosso? Com aúltima evidência, diz o Autor, e acrescenta que tem tu<strong>do</strong> prova<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> oMun<strong>do</strong> abraçar a Fé de Cristo, Senhor nosso, e quan<strong>do</strong> houver um só rebanho e umsó pastor.Diz também que este Reino durará perfeitamente completo por espaço de 1.000 anos,porque está escrito: Viverão e reinarão com Cristo pelo espaço, de 1.000 anos; e noReino de Cristo, Senhor nosso perfeitamente consuma<strong>do</strong>, ou quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s foremcristãos, os homens viverão muitos anos, ainda que to<strong>do</strong>s não vivam os mesmos,porque alguns morrerão de 100 anos, e nesta idade se chamarão ainda meninos,outros de duzentos, outros de muitos séculos, outros finalmente, que tiveram umavida mais santa, viverão 1.000 anos, para combaterem com o Anticristo e triunfaremdele.Dificuldades <strong>do</strong>s sacrifícios e cerimônias legaisObjeta o Autor que, sen<strong>do</strong> sentença constante ser a Lei antiga não só morta, masainda mortificada, e que jamais deve ser de novo suscitada, segue-se portanto que avisão de Ezequiel a respeito <strong>do</strong>s sacrifícios legais não pode ser literalmente expostasem o perigo da Fé.Para desfazer, porém, a sua objeção, supõe, em primeiro lugar, que o antigosacerdócio e as cerimônias <strong>do</strong> antigo sacrifício foram revogadas. Em segun<strong>do</strong> lugar,que os antigos sacrifícios foram instituí<strong>do</strong>s, não só para o culto de Deus e para que osHebreus fossem retraí<strong>do</strong>s da i<strong>do</strong>latria, como também para significar o futuro sacrifíciode Cristo, Senhor nosso; o que suposto— diz o Autor — não sen<strong>do</strong> os sacrifícios legaisintrínsecamente maus, porque, sen<strong>do</strong>-o, nunca seriam lícitos pela dispensação deDeus ou da Igreja, bem poderão segunda vez ser restituí<strong>do</strong>s.Prova o Autor a primeira parte da sua proposição por meio da dispensação de Deus eservin<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> Salmo L, em que se distinguem três tempos e três gêneros desacrifícios: O primeiro tempo é o da antiga Sinagoga; o segun<strong>do</strong> é o da Igrejapresente; e o terceiro é o da Igreja futura, quan<strong>do</strong> a Sinagoga se unir à Igreja eentregar-se totalmente à mesma Fé, pois por meio destas palavras: Livrai-me <strong>do</strong>s


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 164 de 16927/08/2011sangues, ó Deus, ó Deus da minha salvação! se indica o tempo da Igreja passada ouda Sinagoga, e os sacrifícios cruentos desta mesma Igreja, <strong>do</strong>s quais David sedesejava livrar como de sacrifícios que não conferiam graças.E por meio destas outras palavras: Porque, se tu tivesses deseja<strong>do</strong> um sacrifício, eunão teria falta<strong>do</strong> a to oferecer, mas tu não terás por agradável os holocaustos, seindica o tempo e a Igreja presente, no qual cessarão os antigos sacrifícios daSinagoga. E ultimamente por meio destas: Então é que tu receberás com agra<strong>do</strong> ossacrifícios de Justiça, as oblações e os holocaustos, então é que te oferecerão osnovilhos sobre o teu altar, se indica o tempo e a Igreja futura, no qual se há-dereedificar o templo de Jerusalém e se hão-de restabelecer as oblações, etc., nãocomo significativas <strong>do</strong> sacrifício incruento ou da eucaristia como futura, porém sim <strong>do</strong>sacrifício eucarístico como presente. Portanto, diz o Autor, entenden<strong>do</strong> literalmente aexpressão de David, segue-se que o Templo se há-de restabelecer no tempo daIgreja futura, em que os Judeus e todas as gentes se hão-de reduzir à Fé de Cristo,Senhor nosso.Prova a segunda parte por meio da dispensação da Igreja , dizen<strong>do</strong> primeiramenteque to<strong>do</strong> o legisla<strong>do</strong>r pode ser também dispensa<strong>do</strong>r nas suas mesmas leis e que,portanto, não sen<strong>do</strong> o uso das cerimônias legais da antiga Lei proibidas por lei divina,mas meramente pela Igreja, poderá dispensar e permitir que se restabeleçam asmesmas cerimônias no seu 3. o , esta<strong>do</strong>.Depois disto, passa a expor as causas mais graves por que a Igreja há-de dispensarestes ritos no seu 3. o esta<strong>do</strong>. A principal é a inata tenacidade <strong>do</strong>s Judeus para com osseus votos; porque, diz ele, se os Apóstolos, por causa desta tenacide <strong>do</strong>s Judeus,dispensaram às duas tribos, no tempo da primitiva Igreja, o poderem conservaralguns <strong>do</strong>s seus ritos, como é constante (disse duas tribos, porque se ignora poronde se espalharam as demais), segue-se portanto que poderá a Igreja ainda commaior razão dispensar os Judeus que se houverem de converter no fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, opoderem usar os seus ritos, ao menos no templo de Jerusalém, não para alcançarempor meio deles a salvação, como diz Beda, porém para preencherem as profeciasdaqueles sacramentos.Logo, satisfazen<strong>do</strong> aos argumentos <strong>do</strong> Padre Soares, mostra, primeiramente, que anecessidade, utilidade, piedade e outras cousas que o mesmo Padre Soares julgasuficientes para a dispensa da lei, estas mesmas podem concorrer para que a Igrejaconceda aos Judeus que se hão-de converter o uso <strong>do</strong>s seus ritos no templo deJerusalém.Em segun<strong>do</strong> lugar, traz aquele memorável exemplo <strong>do</strong>s ritos mistos-arábicos,permiti<strong>do</strong>s na Espanha, em alguns templos, pelo Pontífice, por cuja permissão osÁrabes abraçaram a Igreja Romana, como se vê nas catedrais toletana e granatense,que têm capelas públicas, nas quais se celebram as missas com o rito chama<strong>do</strong>moçarábico ou misto-arábico.Em terceiro lugar, ajunta com esquisita erudição to<strong>do</strong>s os ritos permiti<strong>do</strong>s pela SéApostólica aos Gregos, Rutenos e aos outros cismáticos, para que deste mo<strong>do</strong>pudéssemos unir as Igrejas Orientais à Romana. Permite, diz ele, aos seussacer<strong>do</strong>tes o sacramento <strong>do</strong> matrimônio, o poderem consagrar em pão fermenta<strong>do</strong> ecomungar em ambas as espécies, o uso da carne aos sába<strong>do</strong>s, ainda na Quaresma, ea observância <strong>do</strong>s mesmos sába<strong>do</strong>s juntamente com os <strong>do</strong>mingos. E todas estas


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 165 de 16927/08/2011cousas lhes concede, não para conformá-las com a observância judaica, porém paraque se confundissem os hereges simoníacos nasci<strong>do</strong>s no Oriente, que diziam não terDeus cria<strong>do</strong> o Mun<strong>do</strong>, porque descansava ao sába<strong>do</strong>, como adverte o Padre Turriano(Livro VII) nos Cánones <strong>do</strong>s Apóstolos. Além disto a circuncisão, que é o principalsacramento <strong>do</strong>s Judeus, aí se permite aos Cristãos, não como culto religioso, porémcomo caráter ou sinal e brasão da antiga nobreza derivada de Abraão e Salomão, <strong>do</strong>mesmo mo<strong>do</strong> com que se esculpem nos sepulcros os brasões das famílias iguais dasua nobreza, como notou Guilherme Reginal<strong>do</strong> no seu livro contra Calvino, Livro II,cap. 9, dizen<strong>do</strong> que os Abexins cristãos batizam os infantes e logo os circuncidam,em sinal da sua antiga nobreza, sem respeito algum ao merecimento e confiançajudaica. Logo, diz o Autor, se por benignidade da Sé Apostólica se uniram em algunsreinos os <strong>do</strong>mingos com os sába<strong>do</strong>s e o batismo com a circuncisão, por fim honesto eainda político, por que razão não será então licito à Igreja Nova o permitir que se unao sacrifício da Eucaristia com as cerimônias naturalmente legais?Outras muitas provas refere o autor, as quais passo em silêncio.Termina aqui a trução manuscrita <strong>do</strong> Códice da Biblioteca Nacional adiante inserto.Damos a seguir a tradução por nós próprios tentada, da parte que o tradutor baianoomitiu:Prossegue, ,ponderan<strong>do</strong> a utilidade máxima de tal permissão e em sua confirmaçãoaduz o recente testemunho <strong>do</strong> que em 1594 se passou com a Lituânia. Com efeito,quan<strong>do</strong>, por ordem de Clemente VIII, reuniu o síno<strong>do</strong> para trazer os Rutenos à FéCatólica, foram nele apresenta<strong>do</strong>s os pedi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s seus bispos respeitantes tanto à Fécomo aos ritos, em cuja observância são tenazes. Respondeu-lhes o Núncio antes queos pedi<strong>do</strong>s fossem leva<strong>do</strong>s a Roma, que, assim como a Igreja Romana é inexorávelem tu<strong>do</strong> o que respeita à integridade da Fé, assim tem tolera<strong>do</strong> dispensas naquiloque é determina<strong>do</strong> pelo direito humano e eclesiástico. Portanto, poderá a Igrejapermitir alguns ritos aos Judeus, que tão dificilmente consentem em aban<strong>do</strong>nar osritos <strong>do</strong>s seus maiores.Em segun<strong>do</strong> lugar, afirma poder dizer-se que Ezequiel pretende que os sacrifícioslegais se hão-de restabelecer, como significativos não de Cristo futuro senão deCristo presente, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que á Igreja diz de S. João Batista que nãoprofetizou Cristo, Senhor nosso, como haven<strong>do</strong> de nascer, senão que o mostrou jáexistente. Consequentemente, os sacrifícios que então puderam ser permiti<strong>do</strong>s, nãoserão prefigurativos de futuro sacrifício eucarístico, mas indicativos da presença <strong>do</strong>mesmo sacrifício que primeiro eles tinham prefigura<strong>do</strong>.Estabelece a este propósito uma comparação com uma representação teatral a quena nossa Casa professa assistiu em Roma, no entru<strong>do</strong> de 1650: Em baixo, o templode Salomão, com os seus sacer<strong>do</strong>tes sacrifican<strong>do</strong> no rito nacional; em cima, o pãoeucarístico, a que era dirigida a a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong>s Fiéis.Eis que nada melhor ilustra — diz o Autor — a concepção <strong>do</strong> templo de Ezequiel eseus sacrifícios legais; tal como no teatro romano estavam presentes a figura e ofigura<strong>do</strong>, a Eucaristia e os muitos sacrifícios que figuravam, assim no templo deEzequiel serão simultâneos os sacrifícios legais que prefiguram a Eucaristia, a par <strong>do</strong>que a mostra. Também das Sagradas Páginas aduz, ao propósito, textoengenhosamente apropria<strong>do</strong>.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 166 de 16927/08/2011Diz, em terceiro lugar, que os sacrifícios legais indica<strong>do</strong>s por Ezequiel, rejeita<strong>do</strong> to<strong>do</strong>o significa<strong>do</strong> figurativo, poderão ser admiti<strong>do</strong>s como demonstrativos. Tiveram eles, naverdade, segun<strong>do</strong> Santo Agostinho, além da significação figurativa, um senti<strong>do</strong> moral,porquanto pela imolação das vítimas aprendiam os Hebreus a imolar a Deus o corpo ea alma (como ensina o Apóstolo); e com agudeza diz Orígenes: «Temos dentro de nósvárias vítimas que imolamos: se vences a soberba <strong>do</strong> corpo, imolas a Deus um vitelo;se a ira, um carneiro, se a libididez, um bode; se lúbricos arrebatamentos <strong>do</strong>spensamentos, uma pomba ou uma rola.»Que, em verdade, não foi o sacrifício material a principal finalidade <strong>do</strong>s sacrifícios,admiravelmente o prova com o Salmo L.:«Porque, se tivesses queri<strong>do</strong> um sacrifício,de qualquer mo<strong>do</strong> eu o teria ofereci<strong>do</strong>; não te deleitarás com holocaustos; 0 sacrifícioa Deus é o espírito atribula<strong>do</strong>; não desprezarás, meu Deus, o coração contrito ehumilha<strong>do</strong>»Eis em Deus—diz o Autor—duas vontades que parecem opostas: não quer a carne <strong>do</strong>animal que se sacrifica, quer o coração <strong>do</strong> homem, que é o que no sacrifício <strong>do</strong> animalé sacrifica<strong>do</strong>. O mesmo se exprime no Salmo XLIX: «Porventura hei-de comer carnede touros e beber sangue de bodes? Imola a Deus o sacrifício <strong>do</strong> louvor»O mesmo se lê em Isaías: «Não ofereças mais sacrifícios vãos; abomino o incenso ....Lavai-vos, sede limpos ... deixai de cometer perversidades; aprendei a bem-fazer» Eispois que Deus não quer o sacrifício puramente material, senão o moral por elesignifica<strong>do</strong>. Consequentemente, com toda a probabilidade se pode afirmar que, notemplo de Ezequiel, haverá os sacrifícios materiais significativos <strong>do</strong> sacrifício moralque Deus ordena.Desenvolve isto eloquentemente, advertin<strong>do</strong> que Deus ensina os homens por meio desimbolos exteriores; assim man<strong>do</strong>u a Oseas que tomasse como mulher uma meretrizinfame que lhe desse filhos, para deste simbolo compreenderem os Hebreus a injúriafeita a Deus; e man<strong>do</strong>u a Isaias que caminhasse nu pelas pracas, para que por suanudez fosse entendida a nudez espiritual <strong>do</strong> Egito e da Etiópia; e isto desenvolve emoutros exemplos, como o das parábolas evangélicas de que Cristo se serviu paraensinar o povo. É pois muito provável que os antigos sacrifícios e cerimônias, queforam como parábolas por que se exprimia a vontade divina, muitos <strong>do</strong>s quais osJudeus não entenderam, de novo se hão-de estabelecer, não só para que os Judeus,que se hão-de converter, atinjam a sua significação, como também para que seconvertam.É, na verdade, vulgar, diz o insigne Autor, instruir o militar ou o nauta porinstrumentos apropria<strong>do</strong>s a um e a outro; assim também, para que, na derradeiraconversão <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, os Hebreus se instruam na Fé Cristã, nada mais adequa<strong>do</strong> <strong>do</strong>que o uso <strong>do</strong>s sacrifícios legais, a par <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> sacrifício evangélico que moralmenteindicaram.Confirma São Gregório com um bem claro dito e feito, como se lê no Livro IX, RegistriEpistolarum: pergunta<strong>do</strong> por Augustino, primeiro bispo <strong>do</strong>s Ingleses, como Ihecumpriria proceder com eles para <strong>do</strong>s ritos profanos os chamar a Deus, escreve osanto: Esforça-te por que não destruam os templos, mas somente os i<strong>do</strong>los, a fim de


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 167 de 16927/08/2011que mais facilmente concorram aos lugares costuma<strong>do</strong>s, aí a<strong>do</strong>ran<strong>do</strong> a Deus, paraque não mais imolem animais ao Diabo; mantém-nos segun<strong>do</strong> o seu uso em louvorde Deus , e ao Da<strong>do</strong>r de tu<strong>do</strong> refiram as graças em sociedade, de mo<strong>do</strong> que,enquanto se manifestem os prazeres próprios da vida exterior, na vida íntima outrospossam ser permiti<strong>do</strong>s. Assim Deus se deu a conhecer uo povo israelita no Egito, masaqueles sacrifícios que costumava prestar ao Diabo reservou-os para Si próprio,mandan<strong>do</strong>-lhes imolar animais em seu sacrifício; até certo ponto o alteran<strong>do</strong>, deleaban<strong>do</strong>navam e retinham alguma coisa, e posto que fossem os mesmos animais quecostumvam oferecer, contu<strong>do</strong>,imolan<strong>do</strong>-os a Deus e não a I<strong>do</strong>los, já não eram osmesmos sacrifícios.»Isto escreveu São Gregório, o qual, aproveitan<strong>do</strong> o próprio exemplo de Deus,inventou um mo<strong>do</strong> pelo qual os povos, tenazmente aferra<strong>do</strong>s aos seus ritos, em parteos conservassem, em parte os perdessem e, mudan<strong>do</strong> o uso e o culto <strong>do</strong>s sacrificios,não fosse defraudada a alegria que deles recebiam.Assim também, diz o Autor, mudan<strong>do</strong> o culto <strong>do</strong>s sacrificios antigos e a fé judaica, 0povo que deve ser afasta<strong>do</strong> <strong>do</strong> uso das suas cerimônias legais, não será priva<strong>do</strong> daalegria que delas recebia, ingénitas e inveteradas como eram.Trata<strong>do</strong> sobre se é lícito perscrutar os tempos das coisas futuras e delas assentaralguma coisaEste caderno parece ser único e nada tem que pertença ao Livro III, porqueapresenta o titulo <strong>do</strong> I Capitulo. Como. portanto, o livro primeiro e segun<strong>do</strong> têm seuprimeiro capitulo, deve este pertencer ao III Livro. Isto ainda porque, além disso, oAutor diz no I Capítulo: «Parece-me ver no limiar deste livro...» Portanto, como oLivro I e II tenham seus princípios, segue-se que é neste capítulo que começa oLIVRO IIIToda a dificuldade consiste em saber se os trata<strong>do</strong>s Da Conversão <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, Da paz<strong>do</strong> Messias Do templo de Ezequiel, pertencem ao Livro III, porque, no final destecaderno, diz o Autor: tu<strong>do</strong> isto cumprirá demonstrar no seu Iugar... Não —diz estádemonstra<strong>do</strong>. Consequentemente, se tu<strong>do</strong> depois deste caderno deve serdemonstra<strong>do</strong>, devem aqueles trata<strong>do</strong>s ser coloca<strong>do</strong>s depois dele.Quis notar isto e daqui se deve concluir que, por mais que quem quer que sejaaplique seu engenho, é muito difícil saber se os ditos trata<strong>do</strong>s pertencem ao II ou aoIII Livro.SINOPSEExamina o Autor no Capítulo I, além <strong>do</strong> qual outro não há, se é lícito procurar saberem que tempo se realizarão as coisas profetizadas e assentar qualquer coisa sobretais questões, e nega-o com razões persuasivas: I) Porque Cristo, Senhor nosso, diz:«Não vos pertence conhecer o tempo nem o momento que o Pai estabeleceu em seupoder» texto que ilustra com a autoridade <strong>do</strong>s Santos Padres. 2) Porque, se a


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 168 de 16927/08/2011cronologia <strong>do</strong>s tempos pretéritos é tão incerta entre os Autores, que dificilmente umconcorda com o outro, pois que da criação <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> à Incarnação <strong>do</strong> Verbo afirmamuns terem decorri<strong>do</strong> cinco mil anos, outros seis, outros sete mil, muito mais incerta éa cronologia <strong>do</strong> tempo futuro. 3, Porque, se os Autores discordam acerca <strong>do</strong> tempo<strong>do</strong> Dilúvio, <strong>do</strong> fim das Monarquias c da duração <strong>do</strong> Templo, que acor<strong>do</strong> se podeesperar na determinação <strong>do</strong> tempo futuro? 4) Porque se na <strong>História</strong> Sagrada osmeses e os anos são referi<strong>do</strong>s pelas suas próprias designações, não sucede assim nasprofecias, nas quais apenas encontramos figuras e enigmas, como se lê no Génesis,em que sete bois gor<strong>do</strong>s e sete espigas cheias, depois de sete bois magros e seteespigas secas, significam sete anos de fertilidade e sete anos de esterilidade. E quem,na verdade, se Deus o não houvesse revela<strong>do</strong>, teria entendi<strong>do</strong> que os sete bois e assete espigas queriam dizer anos? Portanto, só muito tènuemente das profecias sepode precisar o tempo futuro. 5) Porque nada mais óbvio na Sagrada Escritura <strong>do</strong>que o tempo representa<strong>do</strong> por horas, dias, semanas, anos e séculos, e com tu<strong>do</strong> istonada mais obscuro, pois frequentemente a hora não significa hora, nem o dia dia.nem os anos anos, como o Autor o mostra com textos dela extraí<strong>do</strong>s. Portanto, égrande temeridade procurar nos textos Sagra<strong>do</strong>s e precisar mais ou menos quan<strong>do</strong>será consuma<strong>do</strong> na terra, com a máxima perfeição, o Reino de Cristo, Senhor nosso.Para o Autor poder tu<strong>do</strong> isto resolver sem qualquer dúvida, expõe pouco a pouco oseu pensamento, dizen<strong>do</strong> I) Que, quan<strong>do</strong> Deus faz qualquer revelação e revela aomesmo tempo quan<strong>do</strong> ela se há-de cumprir, então com certeza pode serprognostica<strong>do</strong> tanto o acontecimento futuro como o tempo em que se realizará, comose deixa ver na própria ressurreição de Cristo, Senhor nosso, revelada como deven<strong>do</strong>dar-se ao terceiro dia. 2) Que, se Deus alguma coisa revela e simultaneamente otempo, não por dias e anos, mas por circunstancias e sinais, então sobre sinais ecircunstâncias se pode prognosticar o tempo futuro da coisa revelada, como aconteceno advento <strong>do</strong> Messias, que só devia surgir depois que o ceptro da Judeia houvessesi<strong>do</strong> transferi<strong>do</strong> a outra nação, ou seja a Herodes, que não era hebreu. 3) Que, seDeus revela alguma coisa futura em tempo não determina<strong>do</strong>, é louvável investigarem que tempo ela se realizará. Prova-o com o louvor que S. Pedro dá aos Profetas:«que fizeram profecias sobre a graça em vós, perscrutan<strong>do</strong> em que tempo e qualtempo ela se manifestaria», (I, IO-II); de maneira que, assim como entre os homensé digno de louvor resolver os seus enigmas, assim também o é, tratan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>senigmas de Deus: 4) Que também é louvável investigação o tempo <strong>do</strong> acontecimentofuturo" mesmo quan<strong>do</strong> Deus declara que se não pode saber; na verdade, postoqueisso determinadamente se não pode saber, quanto ao dia e ano, pode contu<strong>do</strong>moralmente prognosticar-se, com maior ou menor aproximação. Aduz geralmente oAutor o dito de Cristo, Senhor nosso: «Quanto ao dia e à hora ninguém os sabe, nemos Anjos <strong>do</strong> Céu.»Ora Cristo, Senhor nosso,—diz o Autor—únicamente nega poder saber-se odetermina<strong>do</strong> dia <strong>do</strong> Juízo Final; não nega, porém, que, sem precisar dia nem hora, sepossa moralmente indicar com probabilidade, dentro de maior ou menor espaço detempo. E prova este seu asserto, em primeiro lugar, com a resposta dada por Cristo,Senhor nosso, aos Apóstolos que o interrogavam sobre o Dia de Juízo: «Dizei-nosquan<strong>do</strong> acontecerão essas coisas e qual o sinal da vossa vinda e da consumação <strong>do</strong>século»; neste caso Cristo, Senhor nosso, calou o tempo determina<strong>do</strong>, mas deucontu<strong>do</strong> os sinais qua mostravam que tal tempo não era distante. portanto, se bemninguém possa saber em que tempo preciso se deva consumar na terra o Reino deCristo, Senhor nosso, ou aquele em que o Mun<strong>do</strong> se acabará é contu<strong>do</strong> possívelconcluir-se de sinais o tempo aproxima<strong>do</strong>, tal como o médico, sem prognosticar o diacerto da morte, pode com frequência predizê-lo com probabilidade, com maior oumenor aproximação. Prova o mesmo asserto, em segun<strong>do</strong> lugar, com copiosos textos<strong>do</strong>s Santos Padres, que conjecturan<strong>do</strong> próximos o Dia de Juízo e o fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, unsos concebem anuncia<strong>do</strong>s por pestes, outros por guerras, outros por sedições, outrospor outros sinais. To<strong>do</strong>s eles, se bem tenham erra<strong>do</strong> nos prognósticos, contu<strong>do</strong>mostraram com seu exemplo digno de louvor a conjectura. Portanto, se a eles isso foilícito, posto que tanto distassem <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, muito mais a si próprio, diz oAutor, o pode ser, visto que não é a tão grande distância de tal fim.


<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>file://D:\Backup\Estudenet\e-Books\Barroco\Pe. Antônio Vieira\<strong>História</strong> <strong>do</strong> <strong>Futuro</strong>\T...Página 169 de 16927/08/2011Resolve os argumentos opostos, dizen<strong>do</strong> que aquilo que algum tempo é inútil, podenão o ser noutra ocasião. Quan<strong>do</strong> Cristo disse aos Apóstolos: Não nos pertence sabero tempo, então era-lhes inútil, até mesmo pernicioso saber o que havia decreta<strong>do</strong>acerca <strong>do</strong> reino israelítico; se dissesse que nunca mais seria restabeleci<strong>do</strong>, ou que onão seria senão depois da última conversão <strong>do</strong>s Hebreus à Fé Cristã teriam fica<strong>do</strong>imensamente tristes; e por isso assim como Cristo, Senhor nosso, aos <strong>do</strong>is filhos déZebedeu, que Ihe pediam participação no reina<strong>do</strong>, respondeu: «Não me pertence odar-vos», assim aos discípulos: «Não vos pertence conhecer o tempo»Admiràvelmente responde ao arqumento da paridade da cronologia <strong>do</strong>s tempospretéritos com a que ele deduz. Afirma, na verdade: Os Autores são nela discordes,porque são em discordancia quanto à computação <strong>do</strong>s anos desde o começo <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> até o Dilúvio, <strong>do</strong> Dilúvio a Moisés, de Moisés à edificação <strong>do</strong> Templo; portanto,não é de admirar — conclui — que seja muito incerta a cronologia <strong>do</strong> tempo passa<strong>do</strong>.Pelo contrário, não o é a <strong>do</strong> tempo futuro, porque ele não começa desde a criação <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong>, para deste saber o fim, antes procede retrogradan<strong>do</strong>, ou seja, desde o fim <strong>do</strong>Mun<strong>do</strong> até o advento <strong>do</strong> Anti-Cristo, e à propagação <strong>do</strong> Evangelho a to<strong>do</strong>s os povos econversão <strong>do</strong>s Hebreus à Fé Cristã, e deste mo<strong>do</strong> algum tanto se pode prognosticarcom muita probabilidade e maior segurança a respeito <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.Eis, por suas mesmas palavras, a admirável cogitação <strong>do</strong> Autor: ``Nós, pelocontrário, encontran<strong>do</strong> caminho novo proceden<strong>do</strong> <strong>do</strong> fim para o princípio (para desdejá começar o meu raciocinio), seguiremos <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> até o Anticristo, <strong>do</strong>Anticristo até a universal pregação e aceitação <strong>do</strong> Evangelho, regressan<strong>do</strong> até anossa idade e em triplice meta estabelecida ao longo <strong>do</strong>s tempos futuros, sem fazertropeçar o leitor, vamos para Cristo, ao mesmo tempo que tu<strong>do</strong> iremosdemonstran<strong>do</strong> em seu lugar. Baste por agora tu<strong>do</strong> apontar com o de<strong>do</strong> para que aforça da argumentação não detenha suspenso o leitor.»Note-se: tu<strong>do</strong> iremos demonstran<strong>do</strong>, não tu<strong>do</strong> é demonstra<strong>do</strong>. Assm, pois,ostrata<strong>do</strong>s Da paz <strong>do</strong> Messias, Da conversão universal <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, Do templo deEzequiel, ou não pertencem ao II Livro, pois escreveria—tu<strong>do</strong> é demonstra<strong>do</strong> — oucumprirá dizer que o autor, para conjecturar sobre o fim <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, regressa atrata<strong>do</strong>s já expostos no mesmo Livro II.Conclui o Cap. I dizen<strong>do</strong>: «Mas entremos desde já, guia<strong>do</strong>s pelo verbo <strong>do</strong> Senhor, noCapítulo I.» E este I Capítulo termina, sem que se lhe sigam quaisquer outros.LOUVOR A DEUS

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