TeatroAs feri<strong>da</strong>s sangram por <strong>de</strong>ntro. Aqui,o bem e o mal olham-se nos olhos.Há a culpa e o perdão. Pedro Paivaabraça a sua almofa<strong>da</strong> azul, companheira<strong>de</strong> mais <strong>de</strong> seis anos. “Quandoentramos nesta casa, dão-nos um colchão,uma almofa<strong>da</strong>, uma fronha,dois cobertores, dois lençóis, um copoe talheres”. A casa é a prisão <strong>de</strong>muros brancos com arame farpadoà volta. “No final <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> dia, a almofa<strong>da</strong>é a minha melhor companhia:apaga as minhas mágoas, guar<strong>da</strong> osmeus segredos. Ela, tal como eu, carregao peso <strong>da</strong> minha reclusão”.Pedro está num ensaio e as frasesfarão parte <strong>de</strong> um monólogo <strong>de</strong> “Entrado”,espectáculo que terá estreiana próxima quarta-feira, dia 26, noEstabelecimento Prisional do Porto,em Custóias, É a produção que abrea décima edição do Imaginarius – FestivalInternacional <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong> Rua“Um festivaltem <strong>de</strong> ser umaoportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>para conectaras maiores forças<strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>ao longo do ano”Renzo Barsotti,director do festival<strong>de</strong> Santa Maria <strong>da</strong> Feira, na vésperado arranque oficial. Com repetição a27 e 28 <strong>de</strong> Maio. Sempre às 21h, sempreem Custóias. Trinta presos falamsem ro<strong>de</strong>ios <strong>da</strong>s suas experiências.O corpo também fala. E muito.A música <strong>de</strong> Camané sai do gravador:“Já gastei a Primavera do meutempo e não me entendo”.Os presos levantam os pratos eenchem-nos com a água que <strong>de</strong>spejampela cabeça. Limpam-se. Lentamentelavam a cara e o corpo. Tentamlivrar-se <strong>da</strong> culpa. Há mais históriaspara contar. Francisco Alves tem16 tatuagens no corpo. A última é <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>à filha <strong>de</strong> dois anos e meio.Nas costas: “Eu acredito que preciso<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>r, penso em mu<strong>da</strong>r. Eu jáA partir <strong>de</strong> dia 27, na décima edição do Imaginarius - Festival Internacional <strong>de</strong> Teatro <strong>de</strong>a falar <strong>da</strong> culpa, idosos a voltar ao tempo em que as maçãs ain<strong>da</strong> vinham directamente <strong>da</strong>sUma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> inteira, à conquista do espaço público. Reportagem <strong>de</strong> Sara Dias12 • Sexta-feira 21 Maio 2010 • Ípsilonestou mu<strong>da</strong>do, e <strong>de</strong>scubro que eurealmente não mudo...”. Franciscoé jovem, tem brancas no cabelo, quer<strong>de</strong>scobrir o seu lado bom.Emanuele Muzio vai rasgando asfolhas dos dias que passam. “Aqui<strong>de</strong>ntro não há <strong>de</strong>scanso e o calendárioé uma máquina do tempo. Às vezesé amigo, às vezes inimigo. Aqui<strong>de</strong>ntro é necessária muita calma, maseu continuo à espera do meu dia vermelho,do meu dia <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong>”.Abel Sousa tem uma colher na mãoque lhe traz boas e más recor<strong>da</strong>ções.“Esta é a história <strong>da</strong> minha colher,<strong>da</strong><strong>da</strong> pela minha mãe, com a qualcomi as primeiras papas e a sopa”.Quando a usa ain<strong>da</strong> sente o sabor <strong>de</strong>quando era criança. “Mas é tambéma colher on<strong>de</strong> se faz o chamado caldo,e po<strong>de</strong> ser uma arma”.Crime e castigo“Entrado” é o nome que se dá ao presoque acaba <strong>de</strong> entrar e, por isso, sófazia sentido apresentar este espectáculona prisão. Com ele, o Imaginariusvolta a sair <strong>da</strong> fronteira <strong>de</strong>Santa Maria <strong>da</strong> Feira e, uma vez mais,aposta numa produção própria feitapor gente que nunca esteve num palco.Des<strong>de</strong> Setembro do ano passado,que a PELE_Espaço <strong>de</strong> Contacto Sociale Cultural, o Centro <strong>de</strong> CriaçãoA rua transpira outra vez no Im
No lar <strong>de</strong> valter hugo mãe“A FelizI<strong>da</strong><strong>de</strong>”<strong>de</strong>safiouum grupo <strong>de</strong>idosos entreos 60 e os 87anos a recuarà infância:aparecerampirolitos,pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong>carvalhoe vestidos<strong>de</strong> noiva“Entrado”, que se apresenta a partir <strong>de</strong> quarta-feirano Estabelecimento Prisional <strong>de</strong> Custóias, parte <strong>da</strong>s histórias<strong>de</strong> reclusão dos próprios prisioneiros“A Laura morreu, pegaram emmim e puseram-me aqui no larcom dois sacos <strong>de</strong> roupa e umálbum <strong>de</strong> fotografias”. O senhorSilva está em cima <strong>da</strong> mesa dolar <strong>de</strong> idosos. Acaba <strong>de</strong> ficarviúvo e só. “Só na velhice a mesafica repleta <strong>de</strong> ausências, Só navelhice o vento não ressuscita”.As frases são repeti<strong>da</strong>s <strong>pelo</strong>snovos companheiros. “O lar <strong>da</strong>feliz i<strong>da</strong><strong>de</strong>, assim se chama estematadouro”. A reali<strong>da</strong><strong>de</strong> nua e“[Nos ensaios]falámos <strong>de</strong> comoo <strong>mundo</strong> estádiferente e as famíliasmu<strong>da</strong>ram”Anna Stigsgaard,encenadoracrua. Os resi<strong>de</strong>ntes apresentamse.César Santos encarna osenhor inconformado, quequestiona, que abre o álbum <strong>de</strong>memórias, que não quer morrer.É um dos actores <strong>de</strong> “A FelizI<strong>da</strong><strong>de</strong>”, uma <strong>da</strong>s encomen<strong>da</strong>s<strong>de</strong>ste Imaginarius. Foi <strong>de</strong>safiadoa partilhar memórias, a recuarà infância. “Não sabia que ascoisas que tinha escrito podiamter valor”, confessa. Trouxe umpirolito para lembrar a meninicee um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> carvalho que lherecor<strong>da</strong> o cheiro <strong>da</strong>s cascatasque se faziam na rua.Anna Stigsgaard, <strong>da</strong>companhia dinamarquesaOdin Theatre, pediu o nomeemprestado a valter hugo mãe echamou ao lar e ao espectáculo“A Feliz I<strong>da</strong><strong>de</strong>”. O resultadodo trabalho <strong>de</strong> um ano e meioem residência é apresentadonos claustros do Convento dosLóios, dias 27, 28 e 29, com umgrupo <strong>de</strong> idosos dos 60 aos87 anos, crianças e jovens <strong>de</strong>escolas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, famíliasoriun<strong>da</strong>s <strong>de</strong> bairros sociais ealunos <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Hotelaria eTurismo. Ao longo do processo, aencenadora <strong>de</strong>pressa percebeuque os mais velhos não selimitavam a falar <strong>da</strong> infância.“Falavam <strong>de</strong> como o <strong>mundo</strong> estádiferente, <strong>de</strong> como as maçãsficam a apodrecer nas árvorese ninguém as come, <strong>de</strong> como aestrutura <strong>da</strong>s famílias mudou”,conta. Re<strong>de</strong>finiu o trabalho.“É necessário pensar como searmazenam as pessoas <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>nas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s europeias. Seráque alguém pára para pensarse esta é a melhor solução?”,questiona. O espectáculo <strong>de</strong>dicauma parte às memórias, àsbrinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> crianças, aosvestidos <strong>de</strong> noiva. No final, háum baile no convento, com opúblico a ser convi<strong>da</strong>do para<strong>da</strong>nçar e comer uma sopaservi<strong>da</strong> por 25 empregados <strong>de</strong>mesa vestidos a preceito. S.D.O.para o Teatro e Artes <strong>de</strong> Rua, que agoraassume a direcção artística do festival,e o estabelecimento prisionalestão juntos neste projecto. Não houve“casting”, apareceu quem quis, ea história acabou por ser escolhi<strong>da</strong><strong>pelo</strong>s próprios reclusos. Quiseramolhar para <strong>de</strong>ntro. Mastigar a culpa eo perdão.Tudo começa à entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> prisão.Quatro reclusos segre<strong>da</strong>m ao ouvidodo público as frases que se murmuramquando alguém entra na prisão.“Vais sair <strong>da</strong>qui um homem”. “Estáscá porquê?”. “Quem és?”. “Precisas<strong>de</strong> ligar para alguém?”. “Estás porminha conta”. “Bem-vindo”. A ban<strong>da</strong><strong>da</strong> prisão entra em cena para interpretaruma versão mais pesa<strong>da</strong> <strong>de</strong>António Variações, aquela do corpoque paga quando a cabeça não temjuízo. Os reclusos divertem-se, atéque as sentenças são pronuncia<strong>da</strong>s.“Con<strong>de</strong>nado a três anos e quatro mesesnúmero 874”.Os actores, <strong>de</strong> fato <strong>de</strong> trabalho, t-shirt branca justa ao corpo, calçasazuis escuras, sucumbem ao peso <strong>da</strong>scon<strong>de</strong>nações. Caminham resistentespara a revista. Encostam-se à pare<strong>de</strong>,braços no ar, pernas afasta<strong>da</strong>s. O feirante,o homem que representa osistema, entra com o megafone namão, a balbuciar coisas que não seenten<strong>de</strong>m. Usa a caneta para escrevero número nas mãos dos presos. Maisà frente, escuta-se o som do acor<strong>de</strong>ão,ouve-se um tango. Dois grupos<strong>de</strong> reclusos enfrentam-se, cruzamolhares <strong>de</strong> ameaça e agressivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.Momentos tensos, <strong>da</strong> escolha do grupo,do clã <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> prisão. Entra-seno corredor principal, e há pequenasperformances a acontecer. Um homemdobra camisas na lavan<strong>da</strong>ria erecita Shakespeare: “Como fe<strong>de</strong> omeu crime, o seu cheiro chega até aocéu”. Na biblioteca, constroem-sepássaros <strong>de</strong> papel (e mil pássaros sãonecessários para pedir a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>).Na capela só po<strong>de</strong>m entrar os pe-maginariusRua <strong>de</strong> Santa Maria <strong>da</strong> Feira, haverá presoss árvores e ciganos a apo<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong> Shakespeare.s Oliveira (texto) e Paulo Pimenta (fotos)Ípsilon • Sexta-feira 21 Maio 2010 • 13
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