Portugal e Brasil,isto não é uma hiLuiz Ruffato, um dos mais relevantes escritoresbrasileiros <strong>da</strong> actuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, fez um livro em <strong>Lisboa</strong> elembrou-se <strong>de</strong> nós, portugueses. Nós, diz, nem semprenos lembramos <strong>de</strong>les. Alexandra Lucas CoelhoFOTOGR EVR ENRIC VIVES-RUBIO AFOLivrosNasceu em 1961, na pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> Cataguases (Minas Gerais), filho<strong>de</strong> analfabeta e semi-analfabeto, comofaz questão <strong>de</strong> dizer. Foi operárioe hoje é um dos escritores mais relevantesdo Brasil. O seu anti-romance“Eles Eram Muitos Cavalos” (publicadoem Portugal pela enigmáticaeditora Quadrante, sem que Ruffatotenha recebido direitos) foi eleito umdos <strong>de</strong>z livros <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> passa<strong>da</strong> noBrasil. É um gran<strong>de</strong> texto veloz, ágil,orgânico, sobre São Paulo, através <strong>de</strong><strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> vozes, arraia-miú<strong>da</strong>.Os operários são o universo queRuffato traz para a escrita brasileiracontemporânea, com um notável trabalho<strong>de</strong> linguagem, a prosseguir naambiciosa pentalogia “Inferno Provisório”,com quatro volumes já publicadosDepois, talvez seja “o fim <strong>de</strong>um ciclo”, e ele não sabe o que seseguirá.Entretanto, saiu “Estive em <strong>Lisboa</strong>e Lembrei-me <strong>de</strong> Ti” (título portuguêsna Quetzal, o original é “Estive em<strong>Lisboa</strong> e Lembrei <strong>de</strong> Você). Uma encomen<strong>da</strong>para o projecto AmoresExpressos, que levou 17 escritoresbrasileiros a 17 ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Ruffato veioem Junho <strong>de</strong> 2007 e ficou um mês.Deu uma novela <strong>de</strong> 80 páginas, queé a fala <strong>de</strong> Serginho, um imigrantebrasileiro em <strong>Lisboa</strong>.Chegou a <strong>Lisboa</strong> sem i<strong>de</strong>ia?Inicialmente, queria escrever algo arespeito <strong>da</strong>quela tentativa <strong>de</strong> golpeem Angola, em 1977. Mas ao chegar<strong>de</strong>sisti, achei que era uma i<strong>de</strong>ia muitocomplexa. Então, <strong>de</strong>ixei que a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>me oferecesse uma história.Qual foi o método?Não ter método! Todos os dias saía<strong>de</strong> manhã cedo e caminhava muito.Adoro caminhar. Encontrava algumaspessoas que conhecia, e ia para lugareson<strong>de</strong> nunca tinha ido, Amadora,Buraca, para tentar tropeçar na história.Ouviu histórias <strong>de</strong> imigrantesbrasileiros?Ouvia as pessoas na rua, mas nuncacomo entrevista, ou interessa<strong>da</strong>mente.Conversava sem nenhuma intenção,<strong>de</strong>ixava que as coisas acontecessem.E curiosamente tive muito contactocom imigrantes angolanos,cabo-verdianos, do Leste europeu,mas poucos brasileiros.O Serginho é o resultado <strong>de</strong>ssasconversas?Vou a Portugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1998 quase todosos anos. Conheci muitos imigrantes,ou gente que estava morando aí,ou gente que estava voltando para oBrasil, um monte <strong>de</strong> Serginhos. Sempreestiveram ao meu redor. Entãofoi uma síntese.Mas a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fazer isso sóaconteceu seis meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>voltar ao Brasil. Foi difícil fazerum livro <strong>de</strong> encomen<strong>da</strong>?Não. Vivo como escritor há sete anos.A encomen<strong>da</strong> não sufoca necessariamentea criação. A <strong>de</strong>mora se <strong>de</strong>umais em função <strong>de</strong> outras urgências.Quando recebi a encomen<strong>da</strong>, haviadois pontos obrigatórios. Escreversobre aquela ci<strong>da</strong><strong>de</strong> – e fui eu que escolhi<strong>Lisboa</strong> – e uma história <strong>de</strong> amor.Escrever sobre <strong>Lisboa</strong> era mais queuma encomen<strong>da</strong>, era um prazer. Einterpretei a história <strong>de</strong> amor comoalgo flexível, mais amplo. Deixei quea história <strong>de</strong> amor fosse mais umacriação do leitor.O amor <strong>de</strong> Serginho porCataguases...Tem gente que fala que é a históriacom a moça [uma prostituta brasileira].Ou mesmo com Portugal.Com Portugal é mais difícil <strong>de</strong>acreditar, porque é tão tristeaquilo que ele passa cá.Mas o amor envolve frustração, sacrifício.Para mim, o final é o começo<strong>da</strong> história <strong>de</strong>le em Portugal. Se vaiser boa ou ruim, não sei. Mas é <strong>de</strong>envolvimento.Nas conversas que foi tendosentiu que esses brasileiros rosse sentiam invisíveis para osportugueses?Quando cheguei a primeira ra vez emPortugal, a minha impressão foi queeram irritantemente visíveis. Necessários,mão <strong>de</strong> obra importante parao país, mas a invasão <strong>de</strong> um precon-ceito, <strong>de</strong> um estereótipo. Genericamente,para os portugueses, es, sentavam prostitutas, e os homensrepre-eram malandros ou pessoas <strong>de</strong>squalifica<strong>da</strong>s.Essa visão passou por umaaceitação maior, no sentido <strong>de</strong> que,sendo uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>, não <strong>de</strong>viahaver irritação. E a minha última pressão é <strong>de</strong> que voltou a haver umim-certo <strong>de</strong>sânimo com os brasileirospor outro motivo: hoje a situação <strong>de</strong>Portugal é preocupante, e portantoto<strong>da</strong>s aquelas pessoas que representama possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o empregocomeçam novamente a serrepudia<strong>da</strong>s.Ao mesmo tempo a relação dosbrasileiros com Portugal também foimu<strong>da</strong>ndo. Hoje, os brasileiros emPortugal, <strong>pelo</strong> menos os que ço, têm uma visão bem mais preconceituosa:“Nós trabalhamos, aju<strong>da</strong>-conhemoso país, o Brasil é muito melhorque vocês, e vocês ficam enchendoo saco.” É uma relação muito flituosa. Na superfície é uma tensãoaceitável. Mas à profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>é muito séria.con-Não existe respeito <strong>de</strong>parte a parte?A relação passa mais <strong>pelo</strong> quetemos <strong>de</strong> diferente do que“Quando chegueia Portugal, a minhaimpressão foi que[os imigrantesbrasileiros] eramirritantementevisíveis. Necessários,mão <strong>de</strong> obraimportante, mas (...),para os portugueses,representavamprostitutas, e (...)malandros. A relaçãodos brasileiros comPortugal também foimu<strong>da</strong>ndo: ‘O Brasil émuito melhor quevocês, e vocês ficamenchendo o saco’”<strong>pelo</strong> que temos <strong>de</strong> comum.A construção doimaginário é: nós, Brasile Portugal, somosmuito parecidos, porquetemos a mesma língua, amesma cultura, as mesmaspreocupações. Mas na relaçãopessoal as diferençassão mais importantes.E o caminho não tem sidopara melhorar?É, <strong>de</strong> parte a parte. A questãodo Brasil, inclusive, é mais séria.Porque é um país que não pertenceà América Latina – construímosuma nação <strong>de</strong> costas paraos países hispano-americanos.Também nãosomos euro-“Estive em <strong>Lisboa</strong>e Lembrei-me<strong>de</strong> Ti” acompanhaum imigrante em Portugal:a escrita <strong>de</strong> Luiz Ruffato é“a tentativa <strong>de</strong> reconstruira história do proletariadobrasileiro a partir<strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 50”20 • Sexta-feira 21 Maio 2010 • Ípsilon
istória <strong>de</strong> amorfacul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora [Minas Gerais]fui fazer o curso <strong>de</strong> jornalismo.Mas <strong>de</strong>correram mais <strong>de</strong> 15 anos, porquetinha <strong>de</strong> preencher lacunas <strong>da</strong>minha formação. Como a minha famíliato<strong>da</strong> era <strong>de</strong> operários, e eu trabalheicomo operário, pensei escreversobre isso, um projecto em que o trabalhadorurbano fosse a personagemprincipal. Mas eu achava que seria estranhoescrever sobre proletariadousando a forma do romance burguês.Então tentei mapear ao longo <strong>da</strong> históriaos escritores do anti-romance.Começa no século XVIII com o [Laurence]Sterne, o “Tristram Shandy”,passa <strong>pelo</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, <strong>pelo</strong>próprio Almei<strong>da</strong> Garrett, pela literatura<strong>de</strong> vanguar<strong>da</strong> francesa, por Joyce.Tentei pegar carona nesse anti-romance.Foram 15 anos construindo umai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> romance, <strong>de</strong> personagem.Há aí um sentido políticotambém.Exactamente. É um projecto pensadoantes <strong>de</strong>ste período, mas por uma série<strong>de</strong> coincidências mostra as mu<strong>da</strong>nçasno país. O “Inferno Provisório”[conjunto <strong>de</strong> cinco romances] é a tentativa<strong>de</strong> reconstruir a história do proletariadobrasileiro a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong><strong>de</strong> 50, porque até aí era um país essencialmenteagrário. A i<strong>de</strong>ia era escreveruma história alternativa doBrasil, mostrar a rapi<strong>de</strong>z <strong>da</strong> passagempara um país urbano na cabeça <strong>de</strong>quem estava em baixo na pirâmi<strong>de</strong>.E nesse país, o Luiz Ruffato, nãosendo autor <strong>de</strong> “best-sellers”,vive há sete anos como escritor.É um bom sinal.Em 2003 fiz essa opção radical, saído jornal para viver <strong>de</strong> literatura. Masisso significa viver do entorno <strong>da</strong> literatura.Fazer palestras, projectoseditorais, viajar para divulgar. O mercadoliterário brasileiro hoje tem umavivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> tal que eles pagam o queantigamente não se pagava, escreverorelhas [ba<strong>da</strong>nas], prefácios, antologias.Não sou um nababo mas vivo <strong>de</strong>forma <strong>de</strong>cente.No Brasil, por exemplo, otrabalho <strong>de</strong> participar emfestivais é remunerado.Sim. Festivais literários, palestras emuniversi<strong>da</strong><strong>de</strong>s priva<strong>da</strong>s, feiras do livro.Hoje não faço quase na<strong>da</strong> semque me paguem. Temos um calendário<strong>de</strong> festivais <strong>de</strong> dois ou três pormês no país, no mínimo. Sendo quealguns são enormes. E quase todosos estados têm uma bienal do livro.E bolsas e residências.A Petrobás... o estado <strong>de</strong> Minas... oestado <strong>de</strong> São Paulo tem um programaem que pega um escritor e levapara sete ou oito ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interiorpara falar em bibliotecas. E to<strong>da</strong>s essasviagens são bem remunera<strong>da</strong>s. Eé claro que quando você faz isso estáa divulgar o seu trabalho. Eu acho quea literatura brasileira está a viver oseu melhor momento.peus, portanto a gente não pensa emPortugal como essencial no nosso imaginário.Não somos também africanos.E acho que o brasileiro médio gostaria<strong>de</strong> ser americano. O Brasil está numarota divergente <strong>da</strong> <strong>de</strong> Portugal. Enquantoa Europa está convivendo comproblemas económicos seríissimos,nós temos este ano a perspectiva <strong>de</strong>crescimento <strong>de</strong> oito por cento. Há umoptimismo generalizado. Esta administraçãoconseguiu trazer uma massa<strong>de</strong> muito pobres para uma classemédia mais remedia<strong>da</strong>. E esse medo<strong>da</strong> hegemonia brasileira provoca umarelação <strong>de</strong> rejeição ao Brasil. É umasituação preocupante nas relaçõesfuturas entre o Brasil e os PALOP.Que balanço faz dos anos Lula?É um marco. Vamos ter a história brasileiraantes e <strong>de</strong>pois do Lula. Algumascoisas são indiscutíveis. A estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>económica. As bolsas, <strong>de</strong> família, <strong>de</strong>educação: são critica<strong>da</strong>s pela elite,mas no orçamento geral representamuma parcela ínfima, e no entanto conseguiramque circulasse dinheiro on<strong>de</strong>nunca circulou, e isso fez com queos brasileiros não passassem por essacrise. A estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> política: é o períodomais longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> to<strong>da</strong>a história do Brasil. E como o Brasil“Enquanto a Europaestá convivendocom problemaseconómicosseríissimos, [o Brasiltem] a perspectiva<strong>de</strong> crescimento <strong>de</strong> oitopor cento (...).E o medo <strong>da</strong>hegemonia brasileiraprovoca uma relação<strong>de</strong> rejeição ao Brasil.É uma situaçãopreocupante nasrelações futuras entreo Brasil e os PALOP”se inseriu no plano global: nas minhasviagens, as pessoas conversavam comigopensando no Brasil como paísexótico, banana, futebol, mulata; hojevêm conversar sobre política. Issoé uma mu<strong>da</strong>nça extraordinária naimagem do país. E finalmente, nãohaver esses conflitos religiosos, existiruma certa harmonia.Agora, é claro que temos problemasgran<strong>de</strong>s. Na educação, não avançámosmuito: embora hoje seja universaliza<strong>da</strong>,ain<strong>da</strong> é ruim. Temos problemasna saú<strong>de</strong>: a oferta à população é precária,embora a gente tenha conseguidovencer a si<strong>da</strong> <strong>de</strong> maneira que éexemplo para o <strong>mundo</strong>. Na questão<strong>da</strong> segurança, que já não tem mais aver com diferenças sociais, mas como tráfico <strong>de</strong> droga. E o problema <strong>da</strong>corrupção.Então, estou muito optimista, achoque estamos no melhor momento <strong>da</strong>história do Brasil, mas temos <strong>de</strong> resolveresses problemas estruturais.Você tem um projecto <strong>de</strong> escritapara preencher um vazio quesentia na literatura brasileira: ooperário, o trabalhador urbano.A minha mãe era analfabeta, meu paisemi-analfabeto. Eu apenas pensei napossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever quando naDo autor <strong>de</strong> A Tragédia <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l Castro,«Por isso meus carosamigos e amigas, umavez que não fui euquem vos criou, moldouem barro e soprou avi<strong>da</strong>, receio não estar àaltura <strong>da</strong> vossa infi nitamal<strong>da</strong><strong>de</strong> nem ser capaz<strong>de</strong> vos acompanhar nosvossos <strong>de</strong>svarios maissanguinários (ninguém éperfeito). Sabei-lo melhordo que eu, porque,salvo raras excepções,quando a vossa natureza vos impele à matança não é o meunome que invocais.»www.sai<strong>da</strong><strong>de</strong>emergencia.comÍpsilon • Sexta-feira 21 Maio 2010 • 21
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