Download em formato PDF - Faculdade Christus
Download em formato PDF - Faculdade Christus
Download em formato PDF - Faculdade Christus
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
RevistaOpinião JurídicaVERITASET VITA
Ficha CatalográficaOpinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>- n. 06, ano 03, 2005.2© <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>, 2005Opinião Jurídica- [n. 6] –Fortaleza: – <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>.[2005]-v.I. DireitoDados internacionais de catalogação na publicação (CIP).CDD : 340
FACULDADE CHRISTUSREVISTAOPINIÃO JURÍDICAVERITASET VITAFortaleza, 2005
APRESENTAÇÃOPrezado(a) leitor(a):O sexto número da Revista Opinião Jurídica foi elaborado com efusivoespírito de com<strong>em</strong>oração. No mês de nov<strong>em</strong>bro de 2005 fomos brindadoscom o reconhecimento do Curso de Direito da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>, queobteve conceito máximo (CMB) na avaliação do MEC nas três áreas: corpodocente, projeto pedagógico e instalações físicas.Aliás, os últimos dois anos têm sido de magnífico sucesso acadêmicopela <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>: todos os seus cursos que se submeteram à avaliaçãodo MEC foram reconhecidos com tríplice CMB, e o Curso de Medicina,autorizado no final de 2005, traz uma excelente proposta pedagógica, a qualfoi exaltada pelos integrantes da Comissão de avaliação respectiva.Em meio a todo este sucesso, conquistamos uma importante parceriacom a editora Malheiros (de São Paulo), no sentido de publicarmos umaobra <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> a um dos maiores constitucionalistas da atualidade, oProf. J. J. Gomes Canotilho, de Portugal. A obra, que está no prelo, na etapade impressão, conta com a colaboração dos autores desta casa acadêmica ede grandes doutrinadores do Direito Constitucional, entre brasileiros e estrangeiros,dentre os quais destacamos Paulo Bonavides, Friedrich Müller,José Afonso da Silva, Willis Santiago Guerra Filho, Lênio Streck, FláviaPiovesan, Ingo Sarlet, Fábio Konder Comparato, Clémerson Merlin Clève eLuís Roberto Barroso.Uma parcela de todo este sucesso se deveu à qualidade da publicaçãoque você, leitor, ora t<strong>em</strong> <strong>em</strong> mãos, e do trabalho exaustivo da Profa. FaygaBedê, conquista insuperável da Coordenação deste Curso de Direito, naárea de pesquisa. É evidente a qualidade do material apresentado, característicamarcante dos artigos publicados nesta revista, vez que se trata denossa proposta de trabalho primar pela excelência acadêmica.Na nossa Comissão Editorial, da qual mais recent<strong>em</strong>ente faz<strong>em</strong> parteos Professores Doutores Francisco Meton Marques de Lima (UFPI), JoãoMaurício Adeodato (UFPE) e Etienne Picard (Universidade Paris I –Sorbonne), tomou assento o Prof. Dr. Friedrich Müller (Universidade deHeidelberg), que nos brinda com um artigo de sua lavra.Não pod<strong>em</strong>os deixar de agradecer a todos os autores que participamdeste número, notadamente os Professores Luís Roberto Barroso, Heleno
Taveira Tôrres, Hugo de Brito Machado e Gladston Mamede. O nosso agradecimentotambém é dirigido aos autores estrangeiros Michel Verpeaux,Alejandro Altamirano e Eric Millard, que fará o lançamento da Revista <strong>em</strong>Fortaleza, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que formalizará solen<strong>em</strong>ente o convênio internacionalque a <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong> firmou com a Universidade Paris XI.Nossos agradecimentos vão, também e destacamente, para os professorescolaboradores que dignificam a <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>, ora <strong>em</strong> razão dosartigos que elaboraram; b<strong>em</strong> ainda e especialmente, para o Professor PauloHenrique Gonçalves Portela, pela elaboração dos abstracts. Agradec<strong>em</strong>osainda à Angela Barros, pela competente e compromissada diagramação. Eaos Professores que compõ<strong>em</strong> a Comissão Editorial, Profa. M.Sc. Fayga SilveiraBedê (Coordenadora de Pesquisa e de Monografia), Prof. Dr. Nestor EduardoAraruna Santiago, Prof. M. Sc. Ivo César Barreto de Carvalho e Profa.M.Sc. Valeschka e Silva Braga, por mais uma tarefa cumprida magistralmente.Portanto, amigo leitor, partilhe conosco da felicidade de termos umaRevista elaborada com espírito puramente científico, <strong>em</strong> meio à alegria determos obtido tantas vitórias <strong>em</strong> tão pouco t<strong>em</strong>po de existência do Curso deDireito desta Instituição.Até o próximo número e tenha uma excelente leitura.FRANCISCO GÉRSON MARQUES DE LIMACoordenador-Geral do Curso de Direito
SUMÁRIOAPRESENTAÇÃOPRIMEIRA PARTE – DOUTRINA NACIONALConcessão e permissão de serviço público de transporte terrestre ...................... 11coletivo urbanoConcession and permission of public services of urban road transportationConcession et autorisation du service public de transport collectif urbainAnna Luiza Matos CoelhoLineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimesde trânsito ................................................................................................................ 33Outlines on culpability in traffic crimesQuestions sur le dol éventuel et la faute consciente dans les Infractions aucode de la routeBruno Queiroz OliveiraVenda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrênciavertical entre concedente e rede concessionária .................................................... 47Direct sale of motor vehicles by manufacturers: illegality of the so-called “verticalcompetition” between the vehicle producers and the authorized vehicle storesVente directe de vehicules par les fabricants: illegalite de la concurrence verticaleentre concedent et concessionnaireGladston MamedeFontes no Direito Tributário ................................................................................... 92Sources in Tax LawSources du Droit FiscalHeleno Taveira TôrresServiços públicos e tributação .............................................................................. 123Public services and taxationService publique et fiscalitéHugo de Brito MachadoPlanejamento tributário ......................................................................................... 149Taxation planningPlanification fiscaleIvo César Barreto de Carvalho
Histórico da administração da Justiça no Brasil: os arbítrios da JustiçaReal, o contencioso administrativo do Conselho de Estado e a limitaçãodo Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal de conhecer questões de naturezapuramente política ................................................................................................. 289History of administration of Law in Brazil: the discretion of RoyalJustice, the administrative litigation at the State Council and the restrctionsconcerning the judg<strong>em</strong>ent of matters of purely political nature set upon theFederal Supr<strong>em</strong>e CourtHistorique de l’administration de la Justice au Brésil: les choix de la JusticeReellé, le contentieux administratif du Conseil d’État et le refus du Supr<strong>em</strong>eTribunal Federal de connaitre des questions de nature pur<strong>em</strong>ent politiqueVanna Coelho CabralSEGUNDA PARTE – DOUTRINA ESTRANGEIRALa interpretación econômica de la ley tributaria. Apuntes sobre lainfluencia del derecho angolsajón sobre el derecho detradición romanista ............................................................................................... 311Economic interpretation of Tax Law. Notes on the influence of common lawover legal syst<strong>em</strong>s based upon roman lawL’interprétation économique de la norme fiscaleAlejandro C. Altamirano - versão <strong>em</strong> espanholOs discípulos administrativistas de Maurice Hauriou ........................................ 353Maurice Hauriou Administrative Law disciplesEric Millard - versão <strong>em</strong> portuguêsLes disciples administrativistes de Maurice Hauriou .......................................... 373Eric Millard - versão <strong>em</strong> francêsD<strong>em</strong>ocracia e exclusão social <strong>em</strong> face da globalização ....................................... 393D<strong>em</strong>ocracy and social exclusion as related to globalizationDémocratie et exclusion sociale en face de la mondialisationFriedrich Müller - versão <strong>em</strong> portuguêsD<strong>em</strong>okratie und soziale Ausgrenzung angesichts der Globalisierung ................ 404Friedrich Müller - versão <strong>em</strong> al<strong>em</strong>ãoA Emenda Constitucional de 1° de março de 2005, que modificou oTítulo XV da Constituição francesa (ou a revisão suspensa) ............................. 415The Amendment from March 1st 2005, which changed the Title XV ofthe French Constitution (or the so-called suspended Amendment)Michel Verpeaux - versão <strong>em</strong> português
La Loi Constitutionnelle du 1 er mars 2005 modifiant le Titre XV dela Constitution (ou la revision suspendue) .......................................................... 441Michel Verpeaux - versão <strong>em</strong> francêsTERCEIRA PARTE – LEGISLAÇÃO FEDERALEmendas Constitucionais ...................................................................................... 463Ementário de Legislação Federal .......................................................................... 466Instruções para publicação .................................................................................... 485Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores e se encontram por ord<strong>em</strong> alfabéticados articulistas. É permitida a reprodução total ou parcial desta Revista, desde que citada a fonte.
CONCESSÃO E PERMISSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DETRANSPORTE TERRESTRE COLETIVO URBANOAnna Luiza Matos Coêlho*1 Introdução. 2 O Estado e a prestação de serviço público.3 Concessão, permissão e autorização de serviço público: conceitoe noções gerais. 4 Concessão e permissão de serviço público detransporte terrestre coletivo urbano. 5 Conclusão.RESUMOO presente trabalho t<strong>em</strong> por escopo analisar o serviço públicode transporte terrestre coletivo urbano, notadamente no quetange à forma de prestação, vale dizer, se mediante concessão,permissão ou autorização por parte do Estado, efetuando-sea verificação dos conceitos e noções gerais acerca dosmencionados institutos e sua previsão na Constituição Federalde 1988.PALAVRAS-CHAVE: Estado. Serviço público. Concessão.Permissão. Autorização. Transporte terrestre coletivo urbano.1 INTRODUÇÃOTrata o presente trabalho da análise acerca da prestação de serviçopúblico de transporte terrestre coletivo dentro dos grandes centrosurbanos.Com efeito, sabe-se que ao Estado, enquanto ord<strong>em</strong> jurídica soberana,cumpre efetivar as necessidades essenciais de certa coletividade <strong>em</strong> dadoterritório e <strong>em</strong> determinado lugar. Para tanto, através de seus órgãos e entidades,no exercício de suas funções, visa a atingir os objetivos delineadospela Lei Fundamental, e dentre estes, encontra-se o dever do Estado deprestar serviço público.Dentre as inúmeras probl<strong>em</strong>áticas do ser humano, encontra-se a suanecessidade de se transportar para diversos lugares, tendo <strong>em</strong> vista os inúmerospapéis que o hom<strong>em</strong> almeja realizar diariamente. Neste contexto, cabe*Mestre <strong>em</strong> Direito (Universidade Federal do Ceará). Especialista <strong>em</strong> Direito Privado (UniversidadeMogi das Cruzes - SP). Especialista <strong>em</strong> Direito Processual (Universidade Federal do Ceará). Professorado Curso de Direito da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong> (Fortaleza - CE). Advogada. E-mail: anna-coelho@oi.com.br.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA11
Anna Luiza Matos Coêlhoao Estado a prestação de tal incumbência, estabelecendo a ConstituiçãoFederal brasileira a forma como deve referido serviço ser prestado.Visa o estudo a analisar de que forma deve o serviço de transporteterrestre coletivo urbano ser efetuado pelo Estado e a possibilidade deste deexercê-lo de forma direta, vale dizer, por si só, ou na forma indireta, ou seja,mediante delegação a terceiros.Para tanto, faz-se necessário o enfoque da prestação de serviço públicomediante delegação nas modalidades de concessão, permissão e autorização,para ao final responder à questão de qual modalidade de delegaçãodeve o Estado valer-se para determinar seja o serviço de transporte terrestrecoletivo dentro dos grandes centros urbanos efetivado.Tendo <strong>em</strong> vista a existência de poucas obras sobre o t<strong>em</strong>a do transporteterrestre coletivo urbano, percebeu-se que a questão estava a desafiar novosenfrentamentos.2 O ESTADO E A PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICOO Estado, enquanto sociedade política dotada de certas característicastais como a soberania, o território, o povo e a finalidade, surge comomeio para que os indivíduos e as d<strong>em</strong>ais sociedades possam atingir seus respectivosfins particulares, ou seja, t<strong>em</strong> o Estado o desiderato de prover o b<strong>em</strong>comum, no sentido de proporcionar aos indivíduos <strong>em</strong> sociedade todas ascondições de vida social que benefici<strong>em</strong> o desenvolvimento por completo dapersonalidade humana.Buscar o b<strong>em</strong> comum de um povo, situado <strong>em</strong> determinado território,eis como o Estado se identifica. Para tanto, dentre as diversas funções destinadasao Estado para ser<strong>em</strong> cumpridas, encontra-se a tarefa de prestar serviçospúblicos aos m<strong>em</strong>bros da sociedade.Serviço público, no entender de Celso Antônio Bandeira de Mello, étoda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidad<strong>em</strong>aterial destinada à satisfação da coletividade <strong>em</strong> geral, masfruível singularmente pelos administrados, que o Estado assumecomo pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou porqu<strong>em</strong> lhes faça às vezes, sob um regime de Direito Público. 1Eis que se pode conceituar serviço público como a atividade prestadapelo Estado ou por aqueles que faz<strong>em</strong> suas vezes, mediante regime de direitopúblico, de acordo com a lei, cujo fito é exatamente atingir as necessidadesvitais da coletividade.Com efeito, é o serviço público um dos objetivos do Estado, tendo <strong>em</strong>vista que busca atingir interesse público, o que acarreta necessidade de12n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoregulamentação, alteração e controle pelo Poder Público, sendo este, ainda,responsável por sua fiscalização, tudo nos moldes do art. 175 da ConstituiçãoFederal brasileira.Cumpre notar, ainda, que cabe ao Estado, na condição de gestor dosinteresses da coletividade, propiciar aos administrados todo tipo de b<strong>em</strong> estarindispensável para a obtenção das suas necessidades essenciais. Nessesentido, não pode alvitrar objetivos outros que não sejam aqueles previstospelas próprias normas de Direito Público que tratam da matéria.Entretanto, dentre a diversidade de serviços públicos que pod<strong>em</strong> serrealizados pelo Estado <strong>em</strong> razão dos interesses coletivos a ser<strong>em</strong> atingidos,oferece a doutrina a distinção existente entre interesses coletivos primáriosou essenciais, e secundários, ou não essenciais. Essencial é o serviço consideradopor lei ou o que pela sua própria natureza é tido como de necessidadepública, exigindo, desta forma, <strong>em</strong> princípio, execução privativa da AdministraçãoPública. Por outro lado, não essencial é o serviço assim consideradopor lei ou o que, pela própria natureza, é tido como de utilidade pública,podendo aqui sua execução ser exercida por particular.Em resumo, essencial é o serviço que não deve faltar ao administrado,<strong>em</strong> razão de sua importância para a d<strong>em</strong>anda social, vez que são consideradosindispensáveis à vida dos m<strong>em</strong>bros da sociedade. Como ex<strong>em</strong>plo, podesecitar os serviços de segurança pública, segurança externa do Estado, osserviços judiciários, e, ainda, o transporte terrestre dentro dos grandes centrosurbanos. Já serviço público secundário ou não essencial é, conformeapontado pela doutrina, aquele que pode ser efetivado pela iniciativa particular,ou seja, cuja execução é facultada aos particulares, posto não ser deexecução privativa da Administração Pública.Cumpre notar que a Constituição Federal, ao assegurar o direito degreve, estabeleceu que a lei definirá os serviços essenciais, b<strong>em</strong> como disporáacerca do atendimento das necessidades vitais da sociedade. Desta forma,é a Lei 7.783, de 28 de junho de 1989 que, <strong>em</strong> seu art. 9°, define comoserviços essenciais, a saber, o de energia elétrica; água; gás; combustíveis; oserviço de saúde; o de distribuição e comercialização de medicamentos ealimentos; o funerário; o de transporte coletivo; o de captação e tratamentode esgoto e lixo; o de telecomunicações; o relacionado com substâncias radioativas;o de tráfego aéreo; o de compensação bancária e o de processamentode dados ligados a esses serviços, conforme art. 10 da mesma lei.Diógenes Gasparini preleciona que, não obstante os serviços essenciaisser<strong>em</strong> entendidos pela doutrina majoritária como os que pela próprianatureza são tidos como de necessidade pública, os Municípios não possu<strong>em</strong>serviços, que, pela própria natureza, possam ser considerados como tais e, <strong>em</strong>razão disto, de execução exclusiva da Administração Pública municipal;porém aponta uma exceção, notadamente o serviço de transporte coletivo,REVISTA OPINIÃO JURÍDICA13
Anna Luiza Matos Coêlhoque de acordo com o art. 30, inciso V, da Constituição Federal, é de caráteressencial.De outro lado, torna-se imprescindível registrar outra enumeraçãorealizada pela doutrina acerca dos serviços públicos ao classificá-los <strong>em</strong> serviços"uti universi" ou gerais, e serviços "uti singuli" ou individuais.São serviços públicos "uti universi" ou gerais aqueles que a Administraçãopresta não obstante a existência de usuários predeterminados, visandoatender à coletividade como um todo, v.g., os serviços de polícia, iluminaçãopública, pavimentação de ruas, de implantação de serviço de abastecimentode água, de prevenção de doenças e outros. Desse modo, mencionados serviçossão prestados de acordo com as possibilidades da Administração Pública,e, <strong>em</strong> razão disso, não ensejam direito subjetivo próprio aos administradospara sua obtenção.Já os serviços "uti singuli" ou individuais são realizados <strong>em</strong> razão deusuários individualizados, ou seja, predeterminados, podendo, portanto, sermensurável sua utilização por cada um dos indivíduos. São ex<strong>em</strong>plos desseserviço o de energia elétrica domiciliar, de uso de linha telefônica e a água.Esses serviços, desde que implantados, criam direito subjetivo ao indivíduo,uma vez comprovando este que possui condições técnicas para recebê-lo.A Constituição Federal brasileira, ao tratar dos serviços públicos, definiuaqueles que o são por imperativo constitucional: serviço postal e correioaéreo nacional; serviços de telecomunicações, incluindo transmissão dedados; serviços de radiodifusão; a geração e fornecimento de energia elétrica;serviços de transporte, inclusive infra-estrutura portuária e aeroportuária;serviços de estatística, geografia, geologia e cartografia nacional; serviçoslocais de gás canalizado; educação, saúde e previdência social.Muito <strong>em</strong>bora não seja tal enumeração taxativa, ela d<strong>em</strong>arca o âmbito<strong>em</strong> que a atividade de prestação sob o regime de Direito Público seráinequivocamente legítima. A ampliação de tal campo poderá ser procedidatanto por meio da manifestação do poder constituinte derivado como porintervenção do legislador infraconstitucional, que estará, entretanto, nestaúltima hipótese, sujeito ao controle jurisdicional. Tal dilatação não podeinfringir o princípio da livre iniciativa, consagrado reiteradamente pelos artigos1º, inciso, IV; 5º, inciso XIII; e, ainda, 170, caput e parágrafo único daConstituição Federal brasileira, o que obviamente só pode ser aferido à luzdo caso concreto submetido ao aplicador do direito <strong>em</strong> um dado momento.Portanto, são precipuamente as tarefas estatais arroladas que se dirig<strong>em</strong>às disposições da Lei 8.987/95, exceção feita aos serviços de radiodifusão,por vontade expressa da norma, notadamente <strong>em</strong> seu art. 41, e as atividadesnão exclusivamente públicas nos termos da Constituição, tais comoeducação, saúde e previdência social.14n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoNo mesmo sentido, cuida da matéria o Código de Defesa do Consumidor,quando estatui no caput do art. 22 que os órgãos públicos, por si ou suas<strong>em</strong>presas, sejam estas concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outraforma de <strong>em</strong>preendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados,eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.Mister se faz ressaltar, que, de acordo com o art. 3º do Código deDefesa do Consumidor, é considerado fornecedor qualquer pessoa física oujurídica pública ou privada.Fornecedor, para efeito do citado artigo, é o fabricante, o vendedor oumesmo o prestador de serviço. Conforme anteriormente ressaltado, pode serpessoa física ou jurídica, pública ou privada, ficando sujeito inclusive o próprioEstado, através do poder público federal, estadual ou municipal, diretamenteou indiretamente, quer seja por intermédio de autarquias, fundaçõesou <strong>em</strong>presas públicas.Pode-se afirmar, portanto, que cumpre ao Estado efetuar o dever jurídicode exercer as funções públicas, através das quais busca atingir o b<strong>em</strong>comum de dada sociedade, sendo a prestação de serviço público um dosmeios pelos quais realiza tal desiderato. No exercício de tal ofício deve oEstado prestar serviços públicos adequados, eficientes e seguros, b<strong>em</strong> como<strong>em</strong> relação aos serviços considerados essenciais, estes dev<strong>em</strong> ser contínuos.Isto significa que não só as <strong>em</strong>presas ligadas à iniciativa privada, mastambém os órgãos públicos, isto é, os entes administrativos centralizados oudescentralizados, além da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, esuas respectivas autarquias, fundações, sociedades de economia mista, <strong>em</strong>presaspúblicas, incluindo as concessionárias ou permissionárias de serviçospúblicos pod<strong>em</strong>, nos moldes do art. 22 do Código de Defesa do Consumidor,participar da relação jurídica de consumo na qualidade de sujeito passivo,tendo <strong>em</strong> vista a determinação contida no caput do mencionado artigo.3 CONCESSÃO, PERMISSÃO E AUTORIZAÇÃO DE SERVIÇO PÚ-BLICO: CONCEITO E NOÇÕES GERAISO Poder Público pode realizar seus próprios serviços através dos órgãosda Administração direta, na forma centralizada, ou prestá-los por meio dediversos órgãos na forma descentralizada, notadamente por intermédio dasentidades autárquicas, fundacionais e <strong>em</strong>presas estatais que integram aAdministração indireta, ou seja, autarquias, <strong>em</strong>presas públicas, sociedadesde economia mista e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público.Ad<strong>em</strong>ais, resta possível ao ente público prestar seus serviços pormeio de entes paraestatais, vale dizer, órgãos que não compõ<strong>em</strong> a Administraçãodireta ou indireta, tais como os serviços sociais autônomos eoutros, e, por derradeiro, por <strong>em</strong>presas privadas e particulares individu-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA15
Anna Luiza Matos Coêlhoalmente, nas modalidades de concessionários, permissionários eautorizatários do serviço público.A propósito, é a previsão do art. 21, inciso XII, da Constituição Federalbrasileira que assim reza:Art. 21. Compete à União:XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessãoou permissão:a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamentoenergético dos cursos de água, <strong>em</strong> articulação com os Estadosonde se situam os potenciais hidroenergéticos;c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estruturaaeroportuária;d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portosbrasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limitesdo Estado ou Território;e) os serviços de transporte interestadual e internacional depassageiros;f) os portos marítimos, fluviais e lacustres.Convém l<strong>em</strong>brar, ainda que, de acordo com o art. 175 da Lei Maior,incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime deconcessão ou permissão, s<strong>em</strong>pre através de licitação, a prestação de serviçospúblicos. Já o parágrafo único do artigo sob exame determina que alei disporá sobre as seguintes questões: o regime das <strong>em</strong>presas concessionáriase permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seucontrato e de sua prorrogação, b<strong>em</strong> como as condições de caducidade,fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; e, por último, sobre osdireitos dos usuários, a política tarifária e acerca da obrigação de manterserviço adequado.Com efeito, quando a Administração Pública executa os seus própriosserviços o faz na condição de titular; porém, quando os outorga a terceiros,pode transferir-lhes a titularidade ou a própria execução da atividadea ser realizada. Desta forma, a transferência da titularidade do serviço éconcedida por lei e só por meio desta pode ser alterada ou retirada; poroutro lado, a transferência da prestação do serviço ou sua execução é delegadapor meio de ato administrativo, na forma unilateral ou bilateral, epor via da mesma forma pode ser retirada ou mudada, sendo necessáriopara tanto, somente, <strong>em</strong> determinados casos, autorização do PoderLegislativo competente.Assim, no Brasil, prevalece o critério da outorga de serviços administrativosou de utilidade pública às autarquias, fundações públicas e às16n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbano<strong>em</strong>presas estatais, <strong>em</strong> razão de um motivo bastante simples: a lei, quandoas cria, já lhes transfere a titularidade dos serviços a ser<strong>em</strong> prestados.No que tange à execução de serviços por intermédio de particulares,faz-se necessário o instrumento da delegação, meio este, regulamentado econtrolado pelo Poder Público, podendo este ser feito sob as modalidades deconcessão, permissão ou autorização. Aponta a doutrina ser a delegação indispensávelpara a caracterização da legalidade quando da realização deserviços de natureza pública pelos particulares.Mas qual a distinção existente entre concessão, permissão e autorização?Veja-se preliminarmente o instituto da concessão. Derivado do latimconcessio, de concedere, designa o ato de conceder. Ensina De Plácido eSilva que no domínio do Direito Público possui o vocábulo um tríplice aspecto,a saber, inicialmente t<strong>em</strong> a acepção mais comum de autorização, envolvendoigualmente a significação de licença ou permissão para que se pratiquecerta soma de atos ou de negócios; num segundo momento traz a idéiade liberalidade, <strong>em</strong> virtude da qual o Poder Público beneficia a pessoa ou ainstituição com auxílios de várias espécies, como por ex<strong>em</strong>plo, a isenção deimpostos; e, por último, indica o contrato realizado pelo Poder Público e umapessoa, física ou jurídica, pelo que concede o direito de explorar determinadaord<strong>em</strong> de serviços públicos ou de utilidade pública. 2O Estado, para atingir seus fins de administração da res publica, tendo<strong>em</strong> vista o crescente aumento de suas atribuições, delega uma parcela deseu poder, b<strong>em</strong> como de direitos e vantagens para o particular, fazendo comque este se utilize da parcela de b<strong>em</strong> público, na execução de um serviçopúblico ou de obra pública. Eis o instituto da concessão.Há divergência entre os doutrinadores sobre a natureza jurídica daconcessão, visto que se pode analisar o instituto sob vários prismas. A priori,para os defensores da teoria unilateral, exist<strong>em</strong> duas subdivisões, a saber, aprimeira defende existir na concessão um ato unilateral do Poder Público,visto que cabe a este estabelecer as cláusulas do contrato; e, num segundoplano, entende que exist<strong>em</strong> na concessão dois atos unilaterais, um da Administração,fixando as condições e um outro do particular, declarando a suavontade; no que tange à teoria bilateral, há o entendimento de que a concessãoé um contrato de direito privado, e aqui se encontram os defensoresde que o instituto da concessão não difere de outros contratos regidos pelodireito comum; um outro entendimento surge para aqueles que vê<strong>em</strong> naconcessão um contrato de direito público; e, ainda, aqueles que acreditamser a concessão um contrato de direito misto, isto é, parcialmente de direitopúblico e parcialmente de direito privado; por fim, a teoria mista, que vê naconcessão um ato unilateral do Poder Público, visto que estabelece as condiçõesda concessão, e um contrato, <strong>em</strong> razão do equilíbrio econômico-financeirodas partes envolvidas.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA17
Anna Luiza Matos CoêlhoA doutrina dominante atribui à concessão a natureza jurídica decontrato administrativo, e, portanto, sujeito ao regime jurídico de direitopúblico.Para Hely Lopes Meirelles, serviço concedido é aquele que o particularexecuta <strong>em</strong> seu nome, por sua conta e risco, r<strong>em</strong>unerado por tarifa, naforma regulamentar, mediante delegação contratual ou legal do Poder Públicoconcedente, ou seja, serviço concedido é serviço do Poder Público,apenas executado por particular <strong>em</strong> razão da concessão. 3Com efeito, a transferência da titularidade do serviço público a serprestado é concedida por lei e somente por meio desta pode ser retirada ouquiçá mudada. Ad<strong>em</strong>ais, a transferência da prestação do serviço é delegadapor ato administrativo, podendo este ser bilateral ou unilateral, e pela mesmaforma pode ser retirada ou alterada, necessitando somente, <strong>em</strong> determinadassituações, da competente autorização do Poder Legislativo.No Brasil, a outorga de serviço público ou de utilidade pública se faznotadamente às autarquias, às fundações públicas e às <strong>em</strong>presas do Estado,pois que a lei, no momento que as gera, já efetua a transferência de titularidadedos mencionados serviços, sendo a delegação utilizada para a passag<strong>em</strong> daexecução de serviços a entes particulares, através da regulamentação e controledo Poder Público.Nesse sentido, verifica-se que a delegação se torna imprescindívelpara que se configure a legalidade da prestação do serviço efetivada porente particular, uma vez que, s<strong>em</strong> a devida regulamentação do Poder Público,pode ocorrer que esta se torne clandestina, a saber, s<strong>em</strong> a participação docontrole público.Na lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro, pode-se definir concessãocomo "contrato administrativo pelo qual a Administração confere ao particulara execução r<strong>em</strong>unerada de serviço público ou de obra pública, ou lhecede o uso de b<strong>em</strong> público, para que o explore por sua conta e risco, peloprazo e nas condições regulamentares e contratuais". 4Por sua vez, para Celso Antônio Bandeira de Mello, define-se concessãode serviço público como o instituto através do qual o Estado atribui oexercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo <strong>em</strong> nomepróprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmentepelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro,r<strong>em</strong>unerando-se pela própria exploração do serviço, <strong>em</strong>geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários doserviço. 5E, ainda, para Marcello Caetano, chama-se concessão, no sentido próprioe técnico, a transferência, t<strong>em</strong>porária ou resolúvel, por uma pessoa coletivade direito público, de poderes que lhe compet<strong>em</strong> para outra pessoa18n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanosingular ou coletiva a fim de esta os exercer por sua conta e risco, mas nointeresse geral; quando os poderes transferidos são os de explorar um serviçopúblico que a pessoa coletiva instituiu ou quer instituir, dá-se a concessãode serviço público. 6Por seu turno, de acordo com Hely Lopes Meirelles, concessão é adelegação contratual da execução do serviço, na forma autorizada e regulamentadapelo Executivo. O contrato de concessão é ajuste de Direito Administrativo,bilateral oneroso, comutativo e realizado intuitu personae. Comisto, se afirma que é um acordo administrativo (e não um ato unilateral daAdministração), com vantagens e encargos recíprocos, no qual se fixam ascondições de prestação do serviço, levando-se <strong>em</strong> consideração o interessecoletivo na sua obtenção e as condições pessoais de qu<strong>em</strong> se propõe a executálopor delegação do poder concedente. Sendo um contrato administrativo,como é, fica sujeito a todas as imposições da Administração necessárias àformalização do ajuste, dentre as quais a autorização governamental, a regulamentaçãoe a licitação. 7Luiz Antonio Rolim afirma que concessão é uma das primeiras modalidadesde transferência da execução de serviços públicos a particulares. Porela o Poder Público (concedente), ao invés de executar diretamente, porseus próprios meios e pessoal, determinado serviço ou obra, transfere suaexecução a terceiros (concessionários) que, mediante ajuste especial, secompromet<strong>em</strong> a executá-lo <strong>em</strong> seu nome próprio e por sua conta e risco. 8Na lição de Diógenes Gasparini, concessão é o ato administrativo,discricionário ou vinculado, mediante o qual a Administração Pública outorgaaos administrados um status, uma honraria ou, ainda, faculta-lhes oexercício de uma atividade material. 9Assim, o instituto da concessão estatal pode ocorrer mediante, v.g., aconcessão da cidadania brasileira, na modalidade "status", através da concessãode uma comenda, na modalidade "honraria", e, ainda, por meio deconcessão de lavra, esta última, como um exercício de atividade material.Ressalte-se, ainda, que o termo "concessão" também é usado comoindicador de ato jurídico de natureza contratual, como ocorre, por ex<strong>em</strong>plo,na concessão de uso de b<strong>em</strong> público.Com efeito, de acordo com o disposto no art. 2º da Lei 8.987, de 13 defevereiro de 1995 (Lei de Concessões), concessão e poder concedente sãoconsiderados o seguinte:Art. 2º. Para os fins do disposto nesta lei, considera-se:I - poder concedente: a União, o Estado, o Distrito Federal ou oMunicípio, <strong>em</strong> cuja competência se encontre o serviço público,precedido ou não da execução de obra pública, objeto deconcessão ou permissão;REVISTA OPINIÃO JURÍDICA19
Anna Luiza Matos CoêlhoII - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação,feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidadede concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de <strong>em</strong>presas qued<strong>em</strong>onstre capacidade para seu des<strong>em</strong>penho, por sua conta erisco e por prazo determinado;III - concessão de serviço público precedida da execução deobra pública: a construção, total ou parcial, conservação,reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras deinteresse público, delegada pelo poder concedente, mediantelicitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídicaou consórcio de <strong>em</strong>presas que d<strong>em</strong>onstre capacidade para asua realização, por sua conta e risco, de forma que oinvestimento da concessionária seja r<strong>em</strong>unerado e amortizadomediante a exploração do serviço ou da obra por prazodeterminado.Conforme estatui o art. 2°, o contrato de concessão será celebrado porprazo determinado. Tal espaço de t<strong>em</strong>po há de ser expressamente indicadono edital, conforme preceitua o art. 18, I, do mesmo diploma legal.No que diz respeito à prorrogação do contrato, determina a citadalegislação que conste no referido documento, enquanto cláusula especial,as condições para a prorrogação, que poderá ser menor, igual ou inclusiv<strong>em</strong>aior do que o prazo inicialmente avençado entre as partes.É fato incontroverso que o concessionário executa e explora o serviçopúblico que lhe foi repassado <strong>em</strong> seu nome e por sua conta e risco, nos moldesdo inciso II do art. 2° da Lei 8.987/95. Em razão disso, cumpre ao concessionárioresponder pelos danos que vier a causar a terceiro ou ao próprioPoder Público concedente. Com efeito, a responsabilidade do concessionáriopelos danos causados a outr<strong>em</strong>, decorrentes dos serviços públicos queexecuta e explora é objetiva, tudo com esteio no art. 37, § 6°, da Carta deDireitos brasileira.Cumpre falar, ainda, que a Lei 8.987/95, <strong>em</strong> seu art. 26, trata dasubconcessão. Logo, faz-se necessário verificar o que v<strong>em</strong> a ser tal instituto.Nesse sentido, dispõe o art. 26 da Lei das Concessões:Art. 26. É admitida a subconcessão, nos termos previstos nocontrato de concessão, desde que expressamente autorizada pelopoder concedente.§ 1º. A outorga de subconcessão será s<strong>em</strong>pre precedida deconcorrência.§ 2º. O subconcessionário se sub-rogará todos os direitos eobrigações da subconcedente dentro dos limites dasubconcessão.20n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoDesse modo, a subconcessão v<strong>em</strong> a ser um contrato celebrado entre otitular da concessão de serviço público e um terceiro escolhido mediantelicitação, com o objetivo de transferir parte dos direitos e obrigações quedetém nessa espécie de contrato administrativo. Aquele que é titular daconcessão e elege o terceiro é denominado subconcedente, já a segundaparte do referido contrato é denominada subconcessionário.Desta forma, para que seja possível a subconcessão, faz-se necessáriosua previsão e regulamentação no contrato, b<strong>em</strong> como o dever de ser precedidade autorização do Poder Público e realização mediante concorrência.Na verdade, aponta a doutrina, na pessoa de Diógenes Gasparini, nãoser a subconcessão uma nova concessão, não obstante a lei determine a subrogaçãodo subconcessionário a todos os direitos e obrigações dosubconcedente. Para o referido autor, "é, isto sim, o ajuste, calcado no editale na proposta vencedora, celebrado entre o subconcedente e osubconcessionário". 10A seguir, passa-se à análise do instituto da permissão. Vale ressaltar,que as constituições passadas só falavam <strong>em</strong> concessão, posto que silenciavama respeito da permissão. A Constituição Federal brasileira de 1988 trouxeambos os institutos do Direito Administrativo, colocando-lhes lado a lado.Torna-se imperioso l<strong>em</strong>brar, que além dos serviços concedidos, há,ainda, os serviços permitidos e os serviços autorizados, todos fazendo parteda modalidade de serviços públicos delegados ao particular, diferenciandose,uns dos outros, apenas com formas e garantias distintas. Nesse sentido, aconcessão é forma de delegação mediante contrato; entendendo a doutrinaque a permissão e a autorização são constituídas de delegação por ato unilateralda Administração; ou seja, a concessão garante à Administração umamaior formalidade e estabilidade para o serviço; por outro lado, a permissãoe a autorização constitu<strong>em</strong>-se numa forma mais simples e precária na execuçãodo serviço.Os serviços permitidos são aqueles <strong>em</strong> que a Administração Pública,mediante ato unilateral, ou seja, através de termo de permissão, confere aexecução a entes particulares que possuam capacidade para des<strong>em</strong>penharos serviços necessários, estabelecendo os requisitos para a sua prestação peloparticular.Alerta Hely Lopes Meirelles que "a permissão é, <strong>em</strong> princípio, discricionáriae precária, mas admite condições e prazos para exploração do serviço,a fim de garantir rentabilidade e assegurar a recuperação do investimentodo permissionário visando a atrair a iniciativa privada". 11Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello,permissão de serviço público é ato unilateral e precário, intuitupersonae, através do qual o Poder Público transfere a alguém oREVISTA OPINIÃO JURÍDICA21
Anna Luiza Matos Coêlhodes<strong>em</strong>penho de um serviço de sua alçada, proporcionando, àmoda do que faz na concessão, a possibilidade de cobrança detarifas dos usuários. 12A outorga da permissão se faz por licitação, nos moldes do art. 175 daConstituição Federal, podendo ser de forma gratuita ou onerosa, isto é, podeseexigir do permissionário o pagamento como forma de contraprestação.Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao comentar o citado artigo, assinalaqueposta de lado a prolixidade de certos administrativistas, a diferençaessencial entre concessão ou permissão está <strong>em</strong> que esta éunilateral e precária, podendo ser extinta a qualquer momentopelo Poder Público, enquanto aquela é contrato administrativobilateral, portanto com prazo certo. 13O instituto da permissão encontra-se previsto no parágrafo único doart. 40 da Lei 8.987/95. Com efeito, o Estado utiliza-se da permissão justamentequando não possui interesse <strong>em</strong> constituir o particular <strong>em</strong> direitoscontra a sua pessoa, mas somente <strong>em</strong> face de terceiros.Inegável, portanto, que são atributos da permissão a unilateralidadee a discricionariedade. É unilateral, pois deriva somente de ato por parte daAdministração; discricionário, uma vez que é permitido ao poder públicotraçar os limites que determinam o conteúdo do ato, tudo mediante a avaliaçãodos el<strong>em</strong>entos que constitu<strong>em</strong> critérios administrativos.Cumpre salientar que a doutrina mais conservadora acrescenta umterceiro atributo relacionado à permissão, a saber, a precariedade. Com efeito,serviço precário é aquele que não se mostra <strong>em</strong> caráter efetivo, ou permanente,podendo ser revogável pela Administração Pública quando estadesejar. Celso Antônio Bandeira de Mello expressamente declara quedita precariedade significa, afinal, que a Administração dispõede poderes para, flexivelmente, estabelecer alterações ou encerrála,a qualquer t<strong>em</strong>po, desde que fundadas razões de interessepúblico o aconselh<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> obrigação de indenizar opermissionário. 14Em face disto, utiliza-se o Poder Público da permissão geralmente quandohá possibilidade de revogação unilateral a qualquer t<strong>em</strong>po, <strong>em</strong> razão dasua transitoriedade, b<strong>em</strong> como quando não é cabível qualquer forma deindenização, pelo que deixa de trazer ao ente público conseqüências econômicasgravosas.22n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoNo entanto, apesar de a maioria da doutrina ver no instituto dapermissão um ato unilateral do Poder Público, há qu<strong>em</strong> defenda ser o institutodesprovido de precariedade, ou seja, a Constituição Federal, <strong>em</strong> seuart. 175, parágrafo único, ao tratar da prestação dos serviços públicos medianteconcessão ou permissão, impõe à lei dispor sobre o caráter especial deseu contrato.Veja-se o disposto no referido artigo, in verbis:Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamenteou sob regime de concessão ou permissão, s<strong>em</strong>pre através delicitação, a prestação de serviços públicos.Parágrafo único. A lei disporá sobre:I - o regime das <strong>em</strong>presas concessionárias e permissionárias deserviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de suaprorrogação, b<strong>em</strong> como as condições de caducidade, fiscalizaçãoe rescisão da concessão ou permissão;II - os direitos dos usuários;III - política tarifária;IV - a obrigação de manter serviço adequado.Desta forma, se a lei deverá dispor sobre o contrato pelo qual o concessionárioe o permissionário efetivarão seu vínculo para com a AdministraçãoPública, está assim afastada a falsa idéia de que a permissão de serviçopúblico não é mais um ato unilateral do serviço público, mas é de se concluirque, tanto a concessão como a permissão, são formalizadas via contrato, umavez que é este um instrumento que concede estabilidade ao negócio jurídicocelebrado entre as partes.Para corroborar o entendimento ora manifestado, cumpre verificar oart. 1°da Lei n. 8.987/95 que reza que as concessões de serviços públicos e deobras públicas e as permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termosdo art. 175 da Constituição Federal, b<strong>em</strong> como pela citada lei, e, ainda,pelas normas legais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis contratos.Por fim, é forçoso reconhecer que o instituto da permissão já não pod<strong>em</strong>ais ser caracterizado como ato administrativo, pelo que com o advento daConstituição Federal de 1988 e com a chegada da Lei n. 8.987/95, que regulamentao citado artigo, a permissão ganhou status de contrato administrativosegundo o qual o Poder Público transfere a um particular a execução decerto serviço público <strong>em</strong> conformidade com as condições estabelecidas <strong>em</strong>normas de direito público.Por derradeiro, cumpre assinalar o que v<strong>em</strong> a ser autorização de serviçopúblico. Quanto à autorização, esta é também forma de transferência deREVISTA OPINIÃO JURÍDICA23
Anna Luiza Matos Coêlhoexecução de serviço público a particulares, mediante ato administrativo discricionárioe precário.Nesse contexto, através da autorização se transfere ao particular, serviçosde execução fácil, vale dizer, serviços que não d<strong>em</strong>andam grandesmontas, de regra s<strong>em</strong> r<strong>em</strong>uneração por tarifas, como por ex<strong>em</strong>plo, a autorizaçãopara conservação de praças, jardins ou canteiros de avenidas, podendo aAdministração Pública, <strong>em</strong> contrapartida, autorizar a afixação de placa comoo nome da <strong>em</strong>presa.Assevera Lúcia Valle Figueiredo que "a autorização, sim, é ato administrativo,unilateral e precário, que se presta para serviços públicos<strong>em</strong>ergenciais, não constantes". 15Atente-se que a autorização se manifesta mediante ato administrativo,e não na forma de contrato, de conteúdo parcialmente discricionário,unilateral e precário, tendo <strong>em</strong> vista que pode ser revogado, quando necessário,de acordo com o interesse do Poder Público.A doutrina aponta, ainda, como ex<strong>em</strong>plo de autorização o caso de<strong>em</strong>presas de turismo que, durante greves, prestam serviços de transporte àpopulação, b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> relação a qualquer acontecimento relevante, s<strong>em</strong>natureza constante, que seja prestado por particular, cuja necessidade sejaabsolutamente aleatória ou passageira.No que tange à r<strong>em</strong>uneração dos serviços autorizados, cabe à AdministraçãoPública determinar, mediante tarifa, o quantum a ser pago, dentrodas possibilidades de medida para oferecimento aos usuários. O serviço,por sua vez, deverá ser executado de forma pessoal e intransferível aterceiros, podendo o Poder Público, <strong>em</strong> razão de ser uma delegação discricionária,valer-se de qualquer tipo de seleção para a escolha do melhorautorizatário, desde que o faça de forma vinculada aos termos do edital deconvocação.A contratação de serviços autorizados com o usuário é s<strong>em</strong>pre umarelação de Direito Privado, vale dizer, s<strong>em</strong> qualquer participação ou responsabilidadepor parte do Poder Público. Diante disso, na ocorrência de qualquerirregularidade, há de comunicar a Administração Pública autorizantepara que, tendo conhecimento da falta cometida pelo autorizatário, possa,caso assim deseje, aplicar a sanção cabível, podendo, inclusive, efetuar acassação da autorização.Aponta a doutrina, na pessoa de José dos Santos Carvalho Filho, quenão há que se falar <strong>em</strong> serviços públicos autorizados. Como argumento, r<strong>em</strong>eteo citado autor à leitura do art. 175 da Constituição Federal, alegandoque o legislador pátrio, ao referir-se à prestação indireta de serviços públicos,só fez menção aos institutos da concessão e da permissão, pelo que o atode autorização não pode consentir o des<strong>em</strong>penho de serviços públicos.24n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoAssim, a atividade a ser desenvolvida na forma de autorização é deinteresse exclusivo ou predominante de seu titular, vale dizer, há interess<strong>em</strong>eramente privado, independent<strong>em</strong>ente do fato de trazer a um determinadogrupo de pessoas algum tipo de comodidade.Celso Antônio Bandeira de Mello, ao tratar do t<strong>em</strong>a, explica que aresposta se encontra no art. 175 da Carta Fundamental brasileira, uma vezque é no mencionado artigo, que o legislador constitucional tratou daprestação de serviços públicos por sujeitos titulados pelo Estado. Por suavez, a expressão autorização, mencionada pelo legislador constitucional noart. 21, incisos XI e XII, possui dois fins: inicialmente, uma delas quecorresponde à hipótese <strong>em</strong> que há prestação de serviço de telecomunicação,como, por ex<strong>em</strong>plo, o serviço de radioamador ou mesmo de interligação de<strong>em</strong>presas por cabos de fibras óticas, que não se configuram propriamente <strong>em</strong>serviço público, mas <strong>em</strong> uma forma de serviço de interesse privado; e, <strong>em</strong> umsegundo momento, a de abranger casos <strong>em</strong> que efetivamente há serviço público,mas trata-se de uma situação onde o Poder Público, <strong>em</strong> razão do caráterde <strong>em</strong>ergência da situação, o faz mediante o instituto da autorização atéa adoção dos procedimentos da concessão ou da permissão, sendo o caso,v.g., do art. 223 da Constituição Federal, que trata da competência do PoderExecutivo de outorga e renovação, mediante concessão, permissão e autorização,para o serviço de radiofusão sonora e de sons e imagens.4 CONCESSÃO E PERMISSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO DE TRANS-PORTE TERRESTRE COLETIVO URBANOBastante já se falou acerca das atividades materiais que o Estado assumecomo próprias a fim de satisfazer as necessidades do corpo social. Sãoos serviços públicos efetivados pela Administração Pública tendo <strong>em</strong> vistaque reputados como fundamentais para a existência e convivência humana<strong>em</strong> sociedade.Falou-se, ainda, que muitas vezes o Estado presta tais serviços de formadireta, noutros casos, o faz mediante delegação a particulares. Em relaçãoà delegação, pode esta ser efetivada mediante concessão ou permissãodo serviço público.Nos termos do art. 175 da Constituição Federal brasileira, incumbe aoPoder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão oupermissão, s<strong>em</strong>pre através de licitação, a prestação de serviços públicos.A Constituição Federal brasileira manteve para si a tarefa de definirquais são os serviços públicos. Nesse sentido, determina que a União, osEstados e os Municípios prestarão serviços públicos <strong>em</strong> conformidade com ascompetências por ela estabelecidas. Compete à União a execução de formadireta ou mediante autorização, concessão ou permissão das atividades previstasno art. 21, inciso XII, alíneas a, b, c, d, e, e, por último, alínea f. AosREVISTA OPINIÃO JURÍDICA25
Anna Luiza Matos CoêlhoEstados, estatui <strong>em</strong> seu art. 25, § 2°, ser cabível a exploração de forma direta,ou mediante concessão, dos serviços locais de gás canalizado, na formada lei, vedada a edição de medida provisória para sua regulamentação. E,por derradeiro, estabelece ser competência dos Municípios a organização e aprestação de serviços públicos de interesse local, incluído o de transportecoletivo.Veja-se que aos Estados e aos Municípios é dada a possibilidade decriação, ou definição por lei, de serviços públicos, desde que o serviço instituídoesteja dentro das competências da pessoa jurídica instituidora, b<strong>em</strong>como sejam respeitados os limites do art. 173 da Carta Magna, vale dizer, oslimites de intervenção do Estado no domínio econômico.Desta forma, o serviço público essencial de transporte terrestre coletivodentro dos grandes centros urbanos é prestado mediante concessão oupermissão, de acordo com o art. 30, inciso V, da Constituição Federal Brasileira,que estatui o seguinte:Art. 30. Compete aos Municípios:V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessãoou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o detransporte coletivo, que t<strong>em</strong> caráter essencial.Verifica-se, pois, que cabe ao Município, enquanto gestor dos interessescoletivos da sociedade local das cidades, a delegação, mediante concessãoou permissão, do serviço de transporte urbano.Dentre os serviços públicos municipais encontram-se os de transportede passageiros por meio de ônibus ou táxi, que pod<strong>em</strong> se realizar, inclusive,no interior do próprio território municipal, os funerários e os do c<strong>em</strong>itério.Como se sabe, a Administração Pública, s<strong>em</strong>pre que almeja transferira execução de certa atividade ou mesmo de serviço público que lhe foi outorgadopelo ordenamento jurídico, utiliza-se de pessoas jurídicas criadas,de acordo com o Direito Privado, pelos particulares ou pelo próprio PoderPúblico, isto é, as primeiras são as permissionárias ou concessionárias de serviçopúblico; e as segundas são as <strong>em</strong>presas públicas e as sociedades de economiamista.Nesse sentido, regulamenta o disposto no art. 175 da ConstituiçãoFederal Brasileira, no que diz respeito aos institutos da concessão e da permissãodo serviço público, a Lei n. 8.987/95, que dispõe <strong>em</strong> seu art. 1° oseguinte:Art. 1º. As concessões de serviços públicos e de obras públicas eas permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termos doartigo 175 da Constituição Federal, por esta Lei, pelas normaslegais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis contratos.26n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoParágrafo único. A União, os Estados, o Distrito Federal e osMunicípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias desua legislação às prescrições desta Lei, buscando atender àspeculiaridades das diversas modalidades dos seus serviços.O serviço de transporte terrestre coletivo no Município de Fortaleza,Estado do Ceará, rege-se pelo instituto de permissão, de acordo com oart. 3°, da Lei n. 7.163, de 30 de junho de 1992, que assim dispõe:Art. 3°. A operação de serviço público de transporte coletivo seráfeita diretamente pelo Município, ou por delegação, a <strong>em</strong>presasparticulares ou públicas, sob o regime de permissão.Já no Município de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, o serviçode transporte coletivo encontra-se regulamentado pelo segundo termo deacordo para o ajustamento de procedimento t<strong>em</strong>porário na execução doscontratos de subconcessão de prestação de serviços de transporte coletivode passageiros por ônibus, celebrado entre a <strong>em</strong>presa de transportes e trânsitode Belo Horizonte S/A - BHTRANS, e subconcessionárias dos serviços,mediante procedimento licitatório identificado no edital de concorrênciapública n. 003/97.Por sua vez, no Município de Blumenau, Estado de Santa Catarina,referido serviço público é operado mediante permissão, nos moldes do anexoII da Lei n. 4.120, de 23 de dez<strong>em</strong>bro de 1992.Como se vê, pode o serviço de transporte coletivo ser executado mediantepermissão ou concessão. Compete à Administração Pública, quando dacelebração do negócio jurídico com o particular, estabelecer se efetivará adelegação do serviço público mediante concessão ou permissão com o fito deproceder ao atendimento das d<strong>em</strong>andas da coletividade ou do próprio Estado,conforme decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, inverbis:TRANSPORTE COLETIVO REMUNERADO -COMPETÊNCIA MUNICIPAL PARA ORGANIZÁ-LO EIMPOR SANÇÕES AOS INFRATORES - INTELIGÊNCIADO ARTIGO 30, INCISO V, DA "LEI MAIOR" - "PERUEIROS"- De conformidade com o disposto no art. 30, inciso V, da LeiMagna, aos Municípios cabe disciplinar o serviço de transportecoletivo r<strong>em</strong>unerado. Logo, não há de se ter por inconstitucionala Lei Municipal que, ao organizar o transporte coletivo, prevê apenalidade a ser imposta aos que a descumprir<strong>em</strong>, sob pena de secondenar a Lei à condição de simples letra morta, s<strong>em</strong> nenhumimpacto nas relações a que visa regulamentar. 16REVISTA OPINIÃO JURÍDICA27
Anna Luiza Matos CoêlhoNos moldes do art. 30, inciso V, da Constituição Federal, o transportecoletivo ganha o status de serviço público essencial, vale dizer, indispensávelpara a sobrevivência do corpo social. Nesse sentido, é a decisão doTribunal de Justiça de Minas Gerais, in verbis:MANDADO DE SEGURANÇA - Transporte coletivo. Serviçopúblico. Concessão ou permissão. Clandestinidade. Apreensãodo veículo. Multa. Afigura-se inadmissível a realização dotransporte coletivo clandestino de passageiros, uma vez que oMunicípio dispõe de competência para "organizar e prestar,diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviçospúblicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, quet<strong>em</strong> caráter essencial" (CF, art. 30, V), incumbindo-lhe a aplicaçãode sanções administrativas, consoante permissivo do art. 24 doCódigo de Trânsito Brasileiro. 17No mesmo sentido é a decisão do Superior Tribunal de Justiça, inverbis:MANDADO DE SEGURANÇA. Recurso ordinário. Transportecoletivo. Serviço público de interesse local. Competência dosMunicípios. Constituição Federal, art. 30, V. - A CartaConstitucional reserva aos municípios a competência paraorganizar e prestar diretamente, ou sob regime de concessão oupermissão, os serviços públicos de interesse local, incluindo o detransporte coletivo, que t<strong>em</strong> caráter essencial. Sendo assim, osprobl<strong>em</strong>as relacionados à circulação dos coletivos, às áreas paraestacionamento, aos pontos de parada, aos horários, à concessãoe ao itinerário das linhas, ficam compreendidos entre as atribuiçõesdas autoridades municipais, s<strong>em</strong> que importe invasão dacompetência estadual ou federal. 18Por último, a atividade de transporte de passageiros implica na obrigaçãode transportar pessoas, da <strong>em</strong>presa concessionária e permissionária deserviço público, mediante r<strong>em</strong>uneração, de um lugar para outro, tudo deacordo com o art. 730 do Código Civil pátrio.Ad<strong>em</strong>ais, estabelece o art. 736 do mesmo diploma legal que não sesubordina às normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, poramizade ou cortesia, pelo que não se considera gratuito o serviço de transportequando, <strong>em</strong>bora feito s<strong>em</strong> r<strong>em</strong>uneração, aufere ao transportador vantagensindiretas.5 CONCLUSÃOSabe-se que o ser humano participa de duas dimensões, vale dizer, éum ser individual e, por outro lado, é também um ser social. Para que possa28n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanosobreviver <strong>em</strong> sociedade organiza-se, visando atender às suas necessidadesessenciais, uma vez que só aos loucos ou insanos é concedida a possibilidadede viver fora do seio social.Para tanto, cria o Estado, vale dizer, uma sociedade politicamente organizada,que t<strong>em</strong> como fito efetivar as necessidades primordiais dos m<strong>em</strong>brosda sociedade, o que faz mediante a prestação dos chamados serviçospúblicos, ou seja, é a prestação que a Administração Pública efetua, seja naforma direta ou indireta, com o objetivo de satisfazer interesses gerais dacoletividade.Enquanto gestor da prestação de serviço público, nos moldes doart. 175, parágrafo único, e 37, § 3º, da Constituição Federal, compete aoPoder Público, por si só ou através de terceiros, de acordo com a lei, a execuçãode tais serviços, tudo com o desiderato de satisfazer às necessidadesessenciais da coletividade ou simples conveniências do Estado.Os serviços públicos propriamente ditos são aqueles prestados diretamentepela própria Administração Pública à comunidade; já os serviços deutilidade pública são os que o Poder Público presta-os diretamente ou concordaque sejam prestados por terceiros, nas condições regulamentadas esob seu controle, mas devendo os prestadores, arcar com quaisquer riscos resultantesde tais atividades, exigindo, portanto, r<strong>em</strong>uneração dos usuários.Eis que tal delegação se faz mediante concessão, permissão e autorizaçãodo serviço público. Nesse sentido, a concessão se realiza mediante contrato,garantindo à Administração Pública maior estabilidade e formalidadepara o serviço. Por sua vez, a permissão também é precedida por contrato,uma vez que com a chegada da Constituição Federal de 1988 e com o adventoda Lei 8.987/95, que regulamenta o citado artigo, a permissão ganhoustatus de contrato administrativo segundo o qual o Poder Público transfere aum particular a execução de certo serviço público <strong>em</strong> conformidade com ascondições estabelecidas <strong>em</strong> normas de direito público. E por derradeiro, aautorização, que se consubstancia <strong>em</strong> ato administrativo unilateral e precário,que se presta para serviços públicos <strong>em</strong> caráter de <strong>em</strong>ergência e de formanão constante.No que tange à prestação de serviço de transporte terrestre coletivodentro dos grandes centros urbanos, resta sufragado pelo legislador constituintea competência dos Municípios para a organização e a prestação de taisserviços, sob o regime de concessão ou permissão.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi eIvone Castilho Benedetti. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA29
Anna Luiza Matos CoêlhoBANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio (coord.) Direito administrativo naConstituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.______. Curso de direito administrativo. 14. ed. ampl. e atual. São Paulo:Malheiros, 2002.BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários àConstituição do Brasil: promulgada <strong>em</strong> 05 de outubro de 1988. São Paulo:Saraiva, 1988-1989, v. 3.BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. 2. ed. São Paulo:Saraiva, 1996.BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. rev. e atual. São Paulo:Malheiros, 1997.CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Lisboa: Coimbra Editora,1965CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 13.ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 18. ed. rev. e atual.Rio de Janeiro: Forense, 2003.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo:Atlas, 2002.______. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia,terceirização e outras formas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileirade 1988. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999.FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 7. ed. rev., atual.e ampl. São Paulo: Malheiros, 2004.FRIEDE, Reis. Curso de direito administrativo. 2. ed., rev., atual. e ampl. Riode Janeiro: Forense Universitária, 1996.GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo:Saraiva, 2004.GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor:comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2001.MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8. ed. rev. e atual. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2004.MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo:Malheiros, 2001.30n. 6 - 2005.2
Concessão e permissão de serviço público de transporte terrestre coletivo urbanoMORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da administração pública.São Paulo: Dialética, 1999.MUKAI, Toshio. Estudos e pareceres de direito administrativo. São Paulo: Atlas,1997.PONTES, Valmir. Programa de direito administrativo. 4. ed. rev. e atual. SãoPaulo: Sugestões Literárias S/A, 1975.PONTES FILHO, Valmir. Curso fundamental de direito constitucional. São Paulo:Dialética, 2001.ROLIM, Luiz Antonio. A Administração direta, as concessionárias epermissionárias <strong>em</strong> juízo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao código de defesa do consumidor: Lein. 8.078, de 11.9.90. São Paulo: LTr, 1991.SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1978.SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo das concessões. 5. ed.rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.WALD, Arnoldo; DE MORAES, Luiza Rangel; WALD, Alexandre de M. Odireito de parceria e a lei de concessões: (análise das leis n. 8.987/95 e 9.074/95e legislação subsequente). 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004.1BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo.14. ed. São Paulo: Malheiros,2002, p. 600.2SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 380.3MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 358.4DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 2775BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, op. cit., p. 631.6CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Lisboa: Coimbra Editora, 1965, p. 559.7MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 358.8ROLIM, Luiz Antonio. A Administração direta, as concessionárias e permissionárias <strong>em</strong> juízo. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2004, p. 223.9GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 85.10GASPARINI, Diógenes, op. cit., p. 301.11MEIRELLES, Hely Lopes, op. cit., p. 373.12BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, op. cit., p. 680.13FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2. ed. atual. SãoPaulo: Saraiva, 1999, p. 185.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA31
Anna Luiza Matos Coêlho14BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, op. cit., p. 682.15FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:Malheiros, 2004, p. 112.16Apelação cível n. 000.238.390-9/00/TJMG. 4ª Câmara Cível. Rel. Des. Hyparco Immesi. J. 28.11.2002.17Mandado de segurança n. 000.237.186-2/00/TJMG. 4ª Câmara.Cível. Rel. Des. Célio César Paduani.J. 14.11.2002.18STJ, ROMS n. 575/RJ. Rel. Min. Helio Mosimann. 2ª Turma. Publ. 24.6.1992, RSTJ, v. 42, p. 114. DJUI, 17.8.1992, p. 12493.CONCESSION AND PERMISSION OF PUBLICSERVICES OF URBAN ROADTRANSPORTATIONABSTRACTThis paper aims to assess the public services of urbanroad transportation, especially as regards the legalframe related to the offering of such services, whichmay be rendered through concession, permission orauthorization from the State. In the article, the authorwill examine the general notions on theafor<strong>em</strong>entioned legal possibilities, including theirruling in the 1988 Federal Constitution.KEYWORDS: State. Public service. Concession.Permission. Authorization. Public urban roadtransportation.CONCESSION ET AUTORISATION DUSERVICE PUBLIC DE TRANSPORTCOLLECTIF URBAINRÉSUMÉIl s’agit d’un article qui analyse le service public detransport terrestre collectif urbain, notamment en cequi concerne: la forme de prestation, c’est à dire, parles voies de la concession, de la permission ou del’autorisation pour l’État. Ce sont vérifiés leurs conceptset leurs notions générales, ainsi que sa prévision dansla Constitution fédérale de 1988.MOTS-CLÉS: État. Service public. Concession.Permission. Autorisation. Transport terrestre collectifurbain.32n. 6 - 2005.2
LINEAMENTOS SOBRE O DOLO EVENTUAL E A CULPACONSCIENTE NOS CRIMES DE TRÂNSITOBruno Queiroz Oliveira*1 Introdução. 2 Dolo eventual e culpa consciente. 3 Dodesvirtuamento da culpa consciente para o dolo eventual noscrimes de trânsito. 4 Conclusão.RESUMOEstudo breve sobre o el<strong>em</strong>ento subjetivo nos crimes de trânsito,com o objetivo de esclarecer as diferenças entre o doloeventual e a culpa consciente, especialmente tendo comoparâmetro decisões judiciais que entend<strong>em</strong> haver doloeventual <strong>em</strong> alguns crimes de trânsito que produz<strong>em</strong> oresultado morte.PALAVRAS-CHAVE: Crimes de trânsito. Dolo eventual.Culpa consciente.1 INTRODUÇÃOÉ cada vez mais freqüente a discussão <strong>em</strong> torno das estatísticas alarmantesque assombram a sociedade brasileira <strong>em</strong> matéria de acidentes detrânsito com vítimas fatais. De fato, a situação do trânsito, no Brasil, é consideradapor muitos especialistas um verdadeiro caso de calamidade pública.Os dados, entretanto, não ficam apenas no elevado número de mortesno trânsito. Os el<strong>em</strong>entos estatísticos ainda revelam outra grave mazela:aqueles que comet<strong>em</strong> tais delitos são mantidos na impunidade, muitas vezes,<strong>em</strong> razão da falta de mecanismos viáveis de repressão. Tal realidadesomente estimula o desrespeito à lei e compromete a segurança jurídica necessáriaao bom convívio social.Nesse contexto, depois de longa tramitação legislativa, no dia 23 deset<strong>em</strong>bro de 1997, foi concebido o novo Código de Trânsito Brasileiro. Trata-*Mestre <strong>em</strong> Direito Público pela Universidade Federal do Ceará. Especialista <strong>em</strong> Direito Penal eProcesso Penal pela Universidade Estácio de Sá. Graduado <strong>em</strong> Direito pela Universidade Federal doMaranhão. Professor de Direito Penal do Curso de Direito da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>. CoordenadorJurídico na Unidade Jurídica Regional da Caixa Econômica Federal <strong>em</strong> Fortaleza/CE. Advogadocriminalista.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA33
Bruno Queiroz Oliveirase da Lei n. 9.503/97, que, <strong>em</strong>bora trazendo algumas incoerências, surgiucom o firme objetivo de reprimir o infrator das normas de trânsito.Esse diploma normativo, além de consagrar importantes alterações,busca imprimir tratamento adequado à probl<strong>em</strong>ática dos crimes de trânsito,punindo com maior rigor tais delitos, cont<strong>em</strong>plando ainda, <strong>em</strong> capítulo próprio,várias novidades atinentes à criminalização de condutas, até entãodesconhecidas no ordenamento jurídico. Dentre elas, destacamos os crimesde homicídio culposo no trânsito e lesão corporal culposa no trânsito.Por outro lado, as ditas estatísticas, cada vez mais chocantes, constitu<strong>em</strong>prato cheio para a elaboração de reportagens sensacionalistas que infestama mídia brasileira. Nossos jornalistas, que por sinal pouco entend<strong>em</strong>sobre política de trânsito, costumeiramente incitam os tribunais a adotar<strong>em</strong>uma posição mais rigorosa <strong>em</strong> termos de punição criminal aos infratores,tudo como forma de resposta aos clamores da sociedade.Em resposta aos adeptos do Movimento da Lei e Ord<strong>em</strong>, muitos condutoressão condenados pelo crime de homicídio doloso, isto porque a penacominada ao crime de homicídio culposo no trânsito não é considerada obastante para a repressão necessária ao combate desse tipo de criminalidade.Nessa perspectiva, Alexandre Wunderlich, <strong>em</strong> belíssimo artigo sobre o t<strong>em</strong>a,destacou que o dolo eventual nos crimes de trânsito é uma ficção jurídicautilizada de maneira ilegítima para compensar uma legislação inadequada eatender aos reclamos da mídia. 1Em outras palavras, atualmente, existe um movimento no sentido dese levar os casos de homicídios ocorridos no trânsito para julgamento noâmbito do tribunal do júri popular, <strong>em</strong> completo desprestígio aos postuladosdas teorias que norteiam o estudo do dolo eventual e da culpa consciente.O Promotor de Justiça Rogério Greco, ao comentar os casos de uso deálcool ao volante, nesta mesma senda, assevera que ninguém está autorizadoa concluir que <strong>em</strong> todos os casos nos quais ficasse constatado excesso develocidade aliado a indícios de <strong>em</strong>briaguez o motorista agiu com dolo eventual.Segundo ele, não se pode admitir esse tipo de raciocínio cartesiano naCiência Jurídica, de modo a concluir que todos aqueles que dirig<strong>em</strong> <strong>em</strong>briagadose com velocidade excessiva são indiferentes à vida humana. 2É b<strong>em</strong> verdade que uma das questões mais intrigantes no âmbito dateoria do crime reside na diferenciação entre essas duas figuras. Tal dificuldadeestá na necessária descoberta do el<strong>em</strong>ento volitivo do agente. A distinçãoentre dolo eventual e culpa consciente é algo muito sutil, situado exclusivamenteno interior da psique humana, no assentimento ou não do resultado.Daí a grande divergência doutrinária e jurisprudencial que existe nessa seara.No presente artigo, objetivamos efetivar estudo sobre a subjetividadenos crimes de trânsito e seu reflexo <strong>em</strong> nossa sociedade. Para tanto, trilhare-34n. 6 - 2005.2
Lineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsitomos o debate acerca do el<strong>em</strong>ento subjetivo <strong>em</strong> tais delitos, com ênfase nosjulgados que tratam da matéria e na melhor doutrina especializada no assunto.Partir<strong>em</strong>os do genérico, analisando os institutos correlatos, para, apartir daí, iniciarmos nossa explanação de modo mais incisivo, enfocando oscrimes de trânsito e sua repercussão sobre a sociedade, s<strong>em</strong> a pretensão, poróbvio, de esgotamento do assunto.2 DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTEO professor gaúcho Cezar Roberto Bitencourt, <strong>em</strong> sua obra sobre aParte Geral do Código Penal, afirma s<strong>em</strong> rodeios que “os limites fronteiriçosentre o dolo eventual e a culpa consciente constitu<strong>em</strong> um dos probl<strong>em</strong>asmais tormentosos da Teoria do Delito.” 3A referida constatação está presente no pensamento de vários autoresde nomeada. O próprio Hans Welzel, também com acerto, declarou que umdos probl<strong>em</strong>as mais difíceis e discutidos no Direito Penal, por tratar-se defenômeno anímico, reside na diferença entre dolo eventual e culpa consciente.4 Tradicionalmente, a doutrina classifica o dolo <strong>em</strong> três categorias: direto,indireto (eventual) e dolo de conseqüências necessárias. Há dolo diretoquando o agente deseja a realização do resultado, ou seja, quando elet<strong>em</strong> plena consciência do fato que quer realizar, e por sua vontade o realiza.O dolo de conseqüências necessárias é aquele <strong>em</strong> que, <strong>em</strong>bora o agentenão tenha vontade plena de atingir primordialmente determinado resultado,t<strong>em</strong>-se como certa e irr<strong>em</strong>ediável a ocorrência deste. Sucede quando o agente,pretendendo matar seu desafeto, coloca uma bomba no carro da vítima paramatá-la e <strong>em</strong> razão de sua conduta, mata também o motorista do veículo.Em se tratando do dolo eventual, não se pode olvidar que o DireitoPenal brasileiro adotou a denominada teoria do consentimento, <strong>em</strong> detrimentoda teoria da probabilidade. 5 Pela primeira teoria, ficará caracterizadoo dolo eventual quando o agente representar a possibilidade de ocorrênciado resultado e manifestar sua indiferença <strong>em</strong> relação a ela, ou seja, haverádolo eventual, quando o agente representa o resultado e anui <strong>em</strong> relação àsua ocorrência.A teoria da probabilidade exige do autor apenas que ele tenha decididopraticar um determinado ato, que poderá implicar lesão a um b<strong>em</strong> jurídicotutelado pelo ordenamento jurídico. Assim, para esta teoria, se o resultadoé previsto como possível, configurar-se-á culpa consciente; caso o resultadotenha sido antevisto como provável, estar<strong>em</strong>os diante do dolo eventual.Como se vê, a diferença entre uma figura e outra reside num detalhe.Sobre a teoria da probabilidade, traz<strong>em</strong>os a lição do professor FranciscoMuñoz Conde:REVISTA OPINIÃO JURÍDICA35
Bruno Queiroz OliveiraA teoria da probabilidade parte do el<strong>em</strong>ento intelectivo do dolo.Como é difícil d<strong>em</strong>onstrar no dolo eventual o el<strong>em</strong>ento volitivode querer o resultado, a teoria da probabilidade admite aexistência de dolo eventual quando o autor representa o resultadocomo de muito provável produção e, apesar disso, atua, admitindoou não essa produção. Se a probabilidade for muito r<strong>em</strong>ota oumais longínqua, haverá culpa consciente ou negligência comrepresentação. 6Em desfavor dessa teoria afirma-se que ela deixa s<strong>em</strong> valorar um aspectoessencial do dolo, ou seja, o el<strong>em</strong>ento volitivo. Ad<strong>em</strong>ais disso, n<strong>em</strong>s<strong>em</strong>pre a elevada probabilidade de ocorrência do resultado danoso levará omagistrado a imputá-lo a título de dolo. É justamente o caso das intervençõescirúrgicas de alto risco. Muitas vezes, a cirurgia faz-se absolutamentenecessária e, mesmo ocorrendo lesão grave ou morte, o resultado não poderáser imputado a título de dolo eventual.É comezinha a afirmação doutrinária de que se o agente visualiza oresultado e sinceramente acredita que ele não irá ocorrer, estamos diante daculpa consciente. Ao revés, se o autor do fato antevê o resultado e aindaassim prossegue na realização da conduta, sendo indiferente, vale dizer, poucolhe importando as conseqüências maléficas de sua atitude, haverá doloeventual.Para o professor Francisco Muñoz Conde, é preferível a teoria da vontade,porque, <strong>em</strong> última instância, todo o probl<strong>em</strong>a do dolo des<strong>em</strong>boca amplamentena d<strong>em</strong>onstração do querer do resultado, sendo insuficiente a simplesrepresentação de sua produção provável. A d<strong>em</strong>onstração desse querersuscita, na prática, certamente, probl<strong>em</strong>as de prova, mas n<strong>em</strong> por isso delase prescinde. 7Na culpa consciente o agente, <strong>em</strong>bora prevendo a possibilidade daocorrência do sinistro, acredita verdadeiramente, com base na sua perícia,que o resultado não irá ocorrer. Assim diz-se que o agente praticou o ato d<strong>em</strong>odo leviano, mas não por egoísmo ou por insensibilidade moral. Dess<strong>em</strong>odo, na culpa consciente, logo após a antevisão do resultado danoso, háuma previsão de caráter negativo, no sentido de que este não se concretizará.Na figura do dolo eventual, após a previsão do resultado, sucede outra,de índole ao menos parcialmente positiva, de que o dito infausto efetivamentepoderá se concretizar.Ney Moura Teles estabelece a distinção de maneira bastante didática,trazendo as seguintes hipóteses: se o agente, prevendo um resultado lesivo,resolve prosseguir na conduta perigosa, na certeza de que, com sua habilidade,com sua destreza, irá apenas e tão somente assustar um colega, convictode que não ocorrerá qualquer lesão, que ele, sinceramente, acreditaque não acontecerá, e por isso, não a admite, não a aceita, nela não consen-36n. 6 - 2005.2
Lineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsitote, estar<strong>em</strong>os diante da culpa consciente; por sua vez, se o agente prevê oresultado lesivo e pratica a conduta com o pensamento: “se pegar, pegou”,“se matar, matou”; nessa hipótese estar<strong>em</strong>os diante do dolo eventual.No dolo eventual, para melhor explicitar, o resultado não é querido,mas é tolerado, o que, de per si, revela a depravação moral do agente <strong>em</strong>razão do desvalor de sua conduta. 8Acerca das características do dolo eventual, vale citar o pensamentodo professor Luiz Regis Prado:No dolo eventual, o agente presta anuência, concorda com oadvento do resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo arenunciar à ação. Ao contrário, na culpa consciente, o agenteafasta ou repele, <strong>em</strong>bora inconsideradamente, a hipótese desuperveniência do evento e <strong>em</strong>preende a ação na esperança deque este não venha ocorrer (prevê o resultado como possível,mas não o aceita, n<strong>em</strong> o consente). O ponto nodal <strong>em</strong> matériade dolo assenta no fato de que s<strong>em</strong>pre há uma vontade de lesardeterminado b<strong>em</strong> jurídico. Para afirmar-se a existência de doloeventual é necessário que o autor tenha consciência de que,com sua conduta pode efetivamente lesar ou pôr <strong>em</strong> perigo umb<strong>em</strong> jurídico e que atue com indiferença diante de talpossibilidade, de modo que implique aceitação desse resultado.Para se caracterizar a indiferença não basta a mera decisão sobrea diretriz a ser seguida, mas é preciso que o autor tenhaconsciência de que sua forma de agir vai no sentido da possibilidadeconcreta de lesão ou colocação do b<strong>em</strong> <strong>em</strong> perigo. 9Cr<strong>em</strong>os que a observação de Luiz Regis Prado é absolutamente pertinente,eis que a mera decisão acerca da prática da conduta não é o bastantepara caracterizar o dolo eventual. Se assim o fosse, para a caracterização daassunção do risco da produção do resultado, bastaria assumir a direção doveículo automotor, o que revela interpretação absurda.Aliás, é de bom alvitre esclarecer que o legislador pátrio, mediante aLei n. 9.503/97, optou por tipificar os crimes de homicídio culposo no trânsitoe lesão corporal culposa no trânsito. 10 Significa isso que o nosso legisladornão adotou o dolo eventual como regra geral, pelo menos nos crimes detrânsito.Ainda sobre as dess<strong>em</strong>elhanças entre dolo eventual e culpa consciente,é de bom alvitre trazer à baila a lição do jurista Heleno Cláudio Fragoso:O dolo eventual aproxima-se da culpa consciente e dela sedistingue porque nesta o agente, <strong>em</strong>bora prevendo o resultadocomo possível ou provável, não o aceita n<strong>em</strong> consente. Não basta,portanto, a dúvida, ou seja a incerteza a respeito de certo evento,s<strong>em</strong> implicação e natureza volitiva. O dolo eventual põe-se naREVISTA OPINIÃO JURÍDICA37
Bruno Queiroz Oliveiraperspectiva da vontade, e não da representação, pois está últimapode conduzir também a culpa consciente. 11De tudo isso, deflui-se que as características essenciais ao dolo, valedizer, os el<strong>em</strong>entos cognitivo e volitivo, também se faz<strong>em</strong> presentes na figurado dolo eventual. E n<strong>em</strong> poderia ser diferente, pois o dolo como el<strong>em</strong>entosubjetivo significa a vontade e consciência de realizar uma conduta paraatingir um resultado. A diferença reside <strong>em</strong> que no dolo eventual essa vontad<strong>em</strong>anifesta-se de maneira indireta pela constatação idônea do risco deprodução do resultado. 123 DO DESVIRTUAMENTO DA CULPA CONSCIENTE PARA ODOLO EVENTUALO Direito Penal brasileiro passa, hodiernamente, por profunda crisede identidade. De um lado, o ordenamento jurídico positivou, com acerto,os consagrados princípios penais humanísticos, tais como o da presunção deinocência, da personalidade da pena, da reserva legal e da humanidade,todos de viés garantista. De outra banda, a partir da Lei 8.072/90, o legisladorpassou a adotar uma política penal mais conservadora e voltada para asidéias puramente repressivas atinentes ao Movimento da Lei e da Ord<strong>em</strong>.O próprio Código de Trânsito Brasileiro, Lei n. 9.503/97, aumentouconsideravelmente as penas do crime de homicídio e da lesão corporal, quandopraticados na condução de veículo automotor, até mesmo <strong>em</strong> descompassoao princípio da proporcionalidade, na medida <strong>em</strong> que a pena do crime delesão corporal culposa no trânsito se tornou superior à pena prevista para ocrime de lesão corporal dolosa, o que merece reproche por parte da melhordoutrina.Nesta senda, muitos condutores foram levados ao Tribunal do Júri,ante a ocorrência de acidentes automobilísticos com resultado morte, mormentequando ficaram constatados registros de <strong>em</strong>briaguez ou excesso develocidade. Essa realidade encontra guarida na manipulação do fenômenocriminal pelos meios de comunicação, aliado ao espírito de vindita dos familiaresdas vítimas de trânsito, que clamam por penas mais severas e pelo fimda chamada “impunidade”.A forte inclinação para enquadramento dos motoristas envolvidos <strong>em</strong>acidentes com resultado morte na figura do dolo eventual foi tratada pelojurista Carlos Biasotti. Para ele, a asserção de que o autor de morte no trânsito- que dirigia <strong>em</strong>briagado ou com excesso de velocidade - deve ser julgadopelo Júri, porque praticou o crime dolosamente, contém uma pr<strong>em</strong>issafalsa, isto porque, no mais das vezes, não foi o dolo que deu causa ao acidente,n<strong>em</strong> mesmo o dolo eventual, mas sim a culpa, ainda que consciente, naqual o desvalor da conduta é maior. 1338n. 6 - 2005.2
Lineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsitoSome-se a isso o fato de que, não raro, prisões preventivas são decretadas,não mais pela sua real necessidade, como medida cautelar, mas pelaalternativa que o magistrado t<strong>em</strong> ao decretá-la para suposta garantia daord<strong>em</strong> pública, <strong>em</strong> virtude do apelo da imprensa. Para nós, <strong>em</strong> casos dessejaez, a prisão deixa de ser medida intraprocessual, passando a ser medidapenal antecipada. O recurso à ex<strong>em</strong>plaridade constitui, certamente, a maisgrave mácula ao princípio da presunção de inocência e de outros de cunhogarantista. Significa justamente a admissão inicial da culpabilidade e culminapor atribuir ao processo uma função <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente formal de atribuiçãode legitimidade de uma decisão tomada a priori.Para melhor compreensão da matéria, trar<strong>em</strong>os ao conhecimento doleitor algumas decisões adotadas no âmbito dos tribunais brasileiros acercado objeto <strong>em</strong> estudo, todas fazendo o reconhecimento do dolo eventual noscrimes de trânsito.O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considera que o agente<strong>em</strong>briagado, que deu causa ao resultado morte, deve ser julgado pelo Tribunaldo Júri. O raciocínio seria o seguinte: ninguém, nos dias atuais, podealegar desconhecimento acerca dos efeitos deletérios do álcool, conformeamplamente d<strong>em</strong>onstrado pelas campanhas educativas que tornam evidentea incompatibilidade entre a bebida e a direção de automóveis.Transcrev<strong>em</strong>os abaixo o dito julgamento:RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIO –TRÂNSITO – EMBRIAGUEZ – DOLO EVENTUAL –PRONÚNCIA – O motorista que dirige veículo automotor<strong>em</strong>briagado causando a morte de outr<strong>em</strong> assume o risco deproduzir o resultado danoso, restando caracterizado o doloeventual. Em delitos desta natureza, neste momento processualimpõe-se a pronúncia, cabendo ao tribunal do júri julgar a causa.(TJRS – RSE 70003230588 – 3ª C.Crim. – Rel. Des. DanúbioEdon Franco – J. 18.04.2002). 14Também quando o agente desenvolve velocidade incompatível com olocal, por ex<strong>em</strong>plo, nas proximidades de escolas, hospitais, estações de <strong>em</strong>barqueou des<strong>em</strong>barque e outros, muitos julgados consideraram tal circunstânciao bastante para caracterizar o dolo eventual. O fundamento, nessahipótese, para a caracterização do dolo eventual, é que, imprimindo velocidadeexcessiva, o agente t<strong>em</strong> ciência de que o t<strong>em</strong>po de reação da vítimafica significativamente diminuído, o que torna mais improvável a não-ocorrênciado acidente.O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, <strong>em</strong> acórdão relatadopelo Des<strong>em</strong>bargador Geraldo Xavier, considerou suficiente para a configuraçãodo dolo eventual o fato de o agente haver imprimido velocidade nãocompatível ao local.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA39
Bruno Queiroz OliveiraHOMICÍDIO DOLOSO – PRONÚNCIA – PRETENDIDADESCLASSIFICAÇÃO PARA A FORMA CULPOSA –INADMISSIBILIDADE – ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO– RÉU QUE IMPRIMIA EXCESSIVA VELOCIDADE AOVEÍCULO QUE CONDUZIA – RISCO ASSUMIDO DEPRODUZIR O RESULTADO LESIVO – DOLO EVENTUAL– DECISÃO MANTIDA – Recurso não provido. Qu<strong>em</strong>desenvolve velocidade excessiva <strong>em</strong> seu veículo, não obstanteadvertido para o perigo, na melhor das hipóteses, assume o riscode produzir o resultado lesivo. (TJSP – RSE 249.097-3 – SãoPaulo – 2ª C.Crim. – Rel. Des. Geraldo Xavier – J. 28.04.1999 –v.u.) 15Outros acórdãos, nessa linha, determinaram o julgamento do autor dofato pelo Tribunal do Júri porque estava dirigindo s<strong>em</strong> a devida habilitação.Assim sendo, para esses julgados, se o agente dirigiu, s<strong>em</strong> possuir autorizaçãolegal para tanto, ciente de sua inaptidão para a condução do automóvel,por certo assumiu o risco da ocorrência do resultado, sendo portanto, absolutamenteindiferente ao b<strong>em</strong> jurídico vida humana.A Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande doSul reconheceu o dolo eventual <strong>em</strong> caso no qual o agente dirigia <strong>em</strong>briagado,s<strong>em</strong> portar a Carteira Nacional de Habilitação:DELITO DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. Deficientefísico que dirige automóvel não adaptado à sua condição, <strong>em</strong>borainabilitado, e, <strong>em</strong> alta velocidade, após derrapag<strong>em</strong>, colhe criançanas proximidades do cordão da calçada, assume alto risco doresultado morte produzido. Apelo improvido. 16Caso o agente conduza o veículo de forma perigosa, por ex<strong>em</strong>plo, ultrapassandopela direita, dirigindo com cansaço físico, invadindo preferencial,conduzindo na contramão ou realizando derrapagens propositais, algunstribunais já reconhec<strong>em</strong> o dolo eventual por estes el<strong>em</strong>entos de prova,<strong>em</strong>bora admitindo que os acidentes de trânsito <strong>em</strong> regra são culposos.RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – DELITO NOTRÂNSITO – DOLO EVENTUAL – CIRCUNSTÂNCIASEXCEPCIONAIS – PRONÚNCIA – JUÍZO ACUSATÓRIAS– ADMISSIBILIDADE – Delitos causados por veículos nas viaspúblicas, <strong>em</strong> regra são culposos, não se excluindo o dolo eventualquando as circunstâncias indicar<strong>em</strong> conduta de risco queextrapola os limites da inobservância das normas de segurançado trânsito. Admissível o dolo eventual quando o condutor, <strong>em</strong>completo estado de <strong>em</strong>briaguez (27dg álcool por litro de sangue),dirige caminhão que transporta toras de eucalipto e, ciente dedefeito nos freios, imprime velocidade inadequada, realiza40n. 6 - 2005.2
Lineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsitoultrapassag<strong>em</strong> arriscada invadindo a pista contrária e colhe ocoletivo, causando a morte de 14 pessoas. Pronúncia e juízo deadmissibilidade da acusação; só se afasta a classificação pelodolo eventual se os el<strong>em</strong>entos probatórios for<strong>em</strong> sólidos econtundentes no sentido de que, <strong>em</strong>bora previsível o resultado,o agente acreditou que poderia evitá-lo (culpa consciente).Recurso improvido. 17Por aí se vê que os tribunais de justiça conced<strong>em</strong> uma interpretaçãobastante ampla para a configuração do dolo eventual. Praticamente, da análisedos julgados supra, perceb<strong>em</strong>os uma zona de identidade entre as infraçõesadministrativas de trânsito e o dolo eventual. Melhor explicando, paraos nossos des<strong>em</strong>bargadores, aquele que dirige <strong>em</strong>briagado, com excesso develocidade, praticando manobras incompatíveis ao local ou s<strong>em</strong> portar permissãoou habilitação para dirigir, está assumindo o risco da ocorrência doresultado morte e, portanto, deverá responder pelo crime de homicídio doloso.Será, porém, que s<strong>em</strong>pre que o agente pratica a conduta diante deuma dessas particularidades estamos autorizados a elaborar tal raciocínio?Cr<strong>em</strong>os que não!Primeiro, como já expresso no início deste artigo, porque o Direito nãoé uma ciência cartesiana, na qual diante de uma dada fórmula estar<strong>em</strong>oss<strong>em</strong>pre diante de um mesmo resultado. Em segundo plano porque, se assim ofosse, assumir a direção do volante já seria o bastante para a caracterizaçãodo dolo, estando o agente naquelas condições.Afora isso, não basta a mera representação da possibilidade de ocorrênciado resultado. É preciso que o agente a ele seja indiferente. Esclarec<strong>em</strong>osque o presente escrito não t<strong>em</strong> por objetivo a defesa dos agentes causadoresde acidentes de trânsito, tampouco quer que seja declarada a impunidadedesses condutores. Nosso objetivo é apenas que não se desvirtu<strong>em</strong> pr<strong>em</strong>issasbásicas da Ciência Penal, no enquadramento da conduta dos causadoresdestes delitos.O grande probl<strong>em</strong>a para os aplicadores do Direito que consideramessas condutas crimes dolosos contra a vida é que, nesses casos a penaimposta a título de culpa é ínfima e, portanto, desarrazoada, <strong>em</strong> cotejo àlesão causada. Tudo não passa de mais uma manifestação do Movimento deLei e Ord<strong>em</strong>, voltado para o endurecimento do sist<strong>em</strong>a repressivo. T<strong>em</strong>-sevisto, no entanto, que na maioria dos casos, os aumentos de pena nuncafuncionaram como forma de evitar a criminalidade. Noutras vezes, a leiincide apenas <strong>em</strong> determinados casos, de acordo com os próprios meios decontrole social.André Luís Callegari, <strong>em</strong> excelente artigo publicado na Revista Brasileirade Ciências Criminais, oferece-nos boa alternativa para oequacionamento dessa probl<strong>em</strong>ática.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA41
Bruno Queiroz OliveiraO nosso direito penal é da culpabilidade e, culpabilidade nadamais é do que censurabilidade, reprovabilidade, juízo de puracensura e reprovação sobre a conduta do réu. Então, quantomais censurável for a conduta do réu (<strong>em</strong>briaguez, excesso develocidade, número de vítimas), maior poderá ser a reprimendapenal imposta pelo juiz ao aplicar a pena, dentro do delitoculposo, ou seja, se a conduta do réu for extr<strong>em</strong>amentecensurável, aplica-se a pena máxima do delito culposo, não sefalando, nesse caso, <strong>em</strong> dolo eventual. A pena aplicada é dodelito culposo, devendo ser dosada de acordo com aculpabilidade do acusado. 18Não se deve, por influência da mídia, reconhecer qualquer alteraçãosignificativa na estrutura da teoria do crime, apenas para mandar alguém ajúri. 19 É bom rel<strong>em</strong>brar que o Direito Penal, durante muito t<strong>em</strong>po, serviucomo puro instrumento de vingança e terror. Pouco importava para a configuraçãodo crime o el<strong>em</strong>ento subjetivo, se o agente agiu com dolo ou culpa,bastando para tanto que tivesse dado causa ao resultado danoso. A duraspenas, durante o período iluminista, a Ciência Penal ganhou contornoshumanísticos, dos quais não pod<strong>em</strong>os abrir mão.Cr<strong>em</strong>os que o raciocínio ora desenvolvido encontra plena consonânciacom a doutrina do garantismo penal, elaborada pelo professor LuigiFerrajoli, na sua obra Direito e Razão, <strong>em</strong> especial quando trata do DireitoPenal mínimo e máximo. Para o professor italiano, está claro que o DireitoPenal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado, não apenas ao grau máximode tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mastambém a um ideal de racionalidade e de certeza.Assim, deverá resultar afastada a imputação de responsabilidadepenal, s<strong>em</strong>pre que sejam vagos ou indeterminados seus pressupostos.Um Direito Penal é racional e correto à medida que suas intervençõessão previsíveis. Para esse jusfilósofo, uma norma de limitação do modelopenal minimalista informada pela certeza e pela razão é o critério dofavor rei. Este princípio não apenas permite, mas exige intervençõespotestativas e valorativas de excluir ou de atenuar a imputação penal,nas hipóteses <strong>em</strong> que subsista incerteza quanto aos pressupostoscognitivos da pena. O mesmo se diga da presunção de inocência doacusado até a sentença definitiva, do ônus da prova a cargo da acusação,do princípio in dubio pro reo, da absolvição <strong>em</strong> caso de incertezaacerca da verdade fática e por outro lado, da analogia in bonam part<strong>em</strong>,da interpretação restritiva de tipos penais e da extensão das circunstânciaseximentes ou atenunantes <strong>em</strong> caso de dúvida acerca da verdadejurídica. 20 Em face do exposto, tratando-se de questão puramentesubjetiva, <strong>em</strong> caso de dúvida, o agente deverá ser enquadrado no crimede homicídio culposo no trânsito.42n. 6 - 2005.2
Lineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsitoPor seu turno, o paradigma do Direito Penal máximo, ou seja,incondicionado, ilimitado e imprevisível, caracteriza-se, além de sua excessivaseveridade, pela incerteza das condenações e das penas. Configura-secomo um sist<strong>em</strong>a de poder não controlável racionalmente, <strong>em</strong> face da ausênciade parâmetros pré-determinados de convalidação ou anulação. 214 CONCLUSÃOJá é chegado o momento dos nossos tribunais adotar<strong>em</strong> atitude maisautônoma e coerente <strong>em</strong> matéria de crimes de trânsito. O papel da mídia éimportante para mostrar à sociedade que o probl<strong>em</strong>a existe e precisa ser b<strong>em</strong>equacionado. O que não se admite é que as decisões judiciais sejam adotadascomo forma de atender os reclamos da imprensa sensacionalista, <strong>em</strong> completodescompasso aos postulados da teoria do crime.O legislador precisa tomar conhecimento de que se dependêss<strong>em</strong>osapenas de leis para o desenvolvimento do Brasil, já estaríamos noPrimeiro Mundo. O índice de mortes no trânsito não diminuirá apenascom a adoção dessa gama de normas de maior rigor punitivo. Para tal,faz-se necessário um conjunto de ações do Poder Executivo, no sentidode proporcionar a educação no trânsito para todos, por intermédio d<strong>em</strong>edidas eficazes.Outrossim, como vimos, a distinção entre dolo eventual e culpa conscientereside num aspecto puramente subjetivo, e que depende do contextoda análise probatória. Em caso de incerteza sobre a indiferença ou não doagente <strong>em</strong> relação à ocorrência do resultado, caberá ao tribunal enquadraro agente no homicídio culposo, fazendo valer, desse modo, o beneficio dadúvida: in dubio pro reo.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBIASOTTI, Carlos. Morte no trânsito: homicídio doloso? São Paulo: Etina,1996. (T<strong>em</strong>as atuais de advocacia criminal.)BITENCOURT, Cesar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 6. ed.São Paulo: Saraiva, 2000, v. I.CALLEGARI, André Luís. Dolo eventual, culpa consciente e acidentes detrânsito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 4, n. 13, p.191-197, jan./mar. 1996.FERRAJOLI. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana PaulaZomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2002.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA43
Bruno Queiroz OliveiraFRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1991.GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005.MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Bookseller,1997.MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Tradução e notas JuarezTavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.SHECAIRA, Sérgio Salomão. Dolo eventual e culpa consciente. Revista Brasileirade Ciências Criminais. São Paulo, ano 10, n. 38, p. 143-153, abr./jun.2002.PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, v. 1.WELZEL, Hans. Derecho penal al<strong>em</strong>án: parte general. Traducción del al<strong>em</strong>ánpor Juan Bustos Ramírez y Sergio Yánez Pérez. 11.ed. Santiago de Chile:Editorial Jurídica, 1970.WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito: umatentativa frustrada. Disponível <strong>em</strong> www.jusnavigandi.com.br/doutrina.Acesso <strong>em</strong> 07.11.2005.ZAFFARONI, Raúl Eugenio; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direitopenal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2004.1WUNDERLICH, Alexandre. O dolo eventual nos homicídios de trânsito: uma tentativa frustrada. Disponível<strong>em</strong> Acesso <strong>em</strong> 07/11/2005.2GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2005, p. 230.3BITENCOURT, Cesar Roberto. Manuel de direito penal: parte geral, volume1. 6. ed. São Paulo: Saraiva,2000, p. 229.4WELZEL, Hans. Derecho penal al<strong>em</strong>án: parte general. Traducción del al<strong>em</strong>án por Juan Bustos Ramírezy Sergio Yánez Pérez. 11.ed. Santiago de Chile: Editorial Jurídica, 1970, p. 93.5“Art. 18. Diz-se o crime:I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. ”6MUÑOZ CONDE, Francisco. Teoria geral do delito. Tradução e notas Juarez Tavares e Luiz Regis Prado.Porto Alegre, Fabris, 1988, p.61.7Ibid., p. 61.8José Frederico Marques esclarece, com a argúcia que lhe é peculiar, que no dolo eventual o agenteprevê o resultado como possível e o admite como conseqüência de sua conduta, muito <strong>em</strong>bora nãoqueira propriamente atingi-lo. O dolo eventual está nos limites <strong>em</strong> que se confina com a culpa; por isso,44n. 6 - 2005.2
Lineamentos sobre o dolo eventual e a culpa consciente nos crimes de trânsitomuita s<strong>em</strong>elhança e pontos de contato exist<strong>em</strong> entre dolo eventual - ponto extr<strong>em</strong>o do dolo nadegradação volitiva – e a culpa consciente - forma avançada da culpa na gradação da previsibilidade.MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 259.9PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2002, v. 1, p. 306.10“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:Penas - detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou ahabilitação para dirigir veículo automotor.Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotorPenas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obterá permissão ou ahabilitação para dirigir veículo automotor. ”11FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 173.12O Professor Eugenio Raúl Zaffaroni, ao discorrer sobre dolo eventual, cita vários casos para esclarecero assunto. Segundo o mestre argentino, qu<strong>em</strong> incendeia um campo para cobrar um seguro, sabendo queneste local mora uma família, e fazendo a representação da possibilidade da morte deles, aceita a suaocorrência e, portanto, age com dolo eventual, ainda que não deseje o resultado. Também o condutorde um caminhão que o deixa estacionado numa estrada, sobre a pista de rolamento, <strong>em</strong> uma noite denevoeiro e s<strong>em</strong> iluminação, age à custa da produção de um resultado lesivo, com dolo eventual dehomicídios e danos. Para ele, o limite entre o dolo eventual e a culpa consciente é um terreno movediço,<strong>em</strong>bora mais do campo processual do que no penal. Conclui que o limite dessa distinção é dado pelaaceitação ou rejeição da possibilidade de produção do resultado. S<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo do brilhantismo do autor,entend<strong>em</strong>os que, para a caracterização do dolo eventual, pelo menos segundo a legislação pátria, alémda aceitação da possibilidade do resultado, faz-se necessária a anuência do agente. (ZAFFARONI,Raúl Eugenio; PIERANGELLI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. SãoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 475).13BIASOTTI, Carlos. Morte no trânsito: homicídio doloso?. T<strong>em</strong>as atuais de advocacia criminal. SãoPaulo:Etina, 1996, p. 96.14TJRS – RSE 70003230588 – 3ª C.Crim. – Rel. Des. Danúbio Edon Franco – J. 18.04.2002.15TJSP – RSE 249.097-3 – São Paulo – 2ª C.Crim. – Rel. Des. Geraldo Xavier – J. 28.04.1999.16TJRS. Apelação Crime n. 694038860. 3ª Câmara Criminal. Rel. Des. Aristides Pedroso de AlbuquerqueNeto. J. <strong>em</strong> 29.09.94.17TJRS. RSE 70003504610. 3ª C.Crim. Rel. Desª. Elba Aparecida Nicolli Bastos. J. 14.03.2002.18CALLEGARI, André Luís. Dolo eventual, culpa consciente e acidentes de trânsito. Revista Brasileirade Ciências Criminais, São Paulo, ano 4, n. 13, jan./mar. 1996, p. 197.19SHECAIRA, Sérgio Salomão. Dolo eventual e culpa consciente. Revista Brasileira de Ciências Criminais,São Paulo, ano 10, n. 38, abr./jun. 2002, p. 148.20FERRAJOLI. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução Ana Paula Zomer, Fauzi HassanChoukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 83-84.21Ibid., p. 84.OUTLINES ON CULPABILITY IN TRAFFICCRIMESABSTRACTBrief study on the subjective el<strong>em</strong>ent in traffic crimes,aiming at clarifying the differences between theREVISTA OPINIÃO JURÍDICA45
Bruno Queiroz Oliveiradifferent degrees of culpability, mainly taking intoaccount judg<strong>em</strong>ents defining that persons actknowingly in some traffic crimes which result in thedeath of someone.KEYWORDS: Traffic crimes. Intention andknowingness. Recklessness and negligence.QUESTIONS SUR LE DOL ÉVENTUEL ET LAFAUTE CONSCIENTE DANS LESINFRACTIONS AU CODE DE LA ROUTERÉSUMÉIl s’agit d’une brève étude sur l’élément subjectif dansles contraventions au code de la route. L’objectif estd’éclaircir les différences entre le dol éventuel et lafaute consciente, surtout en ayant comme paramètresles décisions judiciaires ayant comme fond<strong>em</strong>entl’intention dans certains infractions au code de la routequi produisent comme résultat la mort.MOTS-CLÉS: Infractions au code de la route. Doléventuel. Faute consciente.46n. 6 - 2005.2
VENDA DIRETA DE VEÍCULOS PELOS FABRICANTES:ILEGALIDADE DA CONCORRÊNCIA VERTICAL ENTRECONCEDENTE E REDE CONCESSIONÁRIAGladston Mamede*1 O automóvel no Brasil. 2 Contrato de concessão comercial dedistribuição de veículos. 3 Especialização e tipificação. 4 Lei n.6.729, de 28 de nov<strong>em</strong>bro de 1979. 5 Contratos coletivos. 6 Padrãohermenêutico. 7 Canais de distribuição. 8 Cessão onerosa devantag<strong>em</strong> mercantil. 9 Concorrência entre distribuidor e produtor.10 Conclusão.RESUMOA Lei n. 6.729/79, com as alterações efetuadas pela Lei n.8.132/90, tipifica o contrato de concessão comercial dedistribuição de veículos, aqui analisado como base para oestudo de uma situação específica: a possibilidade de oprodutor concorrer com os concessionários que compõ<strong>em</strong> asua rede distribuidora (concorrência vertical), destacandoseos efeitos deletérios dessa prática sobre as <strong>em</strong>presasconcessionárias.PALAVRAS-CHAVE: Lei 6.729/79. Lei n. 8.132/90. Contratode concessão comercial de distribuição de veículos.Concorrência vertical. Empresa. Estabelecimento<strong>em</strong>presarial.1 O AUTOMÓVEL NO BRASILO primeiro veículo automotor chegou ao Brasil no final do século XIX:um carro movido a vapor, para dois lugares, que trazia fornalha, caldeira echaminé, fora importado por Henrique Santos Dumont (irmão de Alberto,inventor do avião): um Daimler inglês, de patente al<strong>em</strong>ã, que atraía a atençãode multidões na cidade de São Paulo, <strong>em</strong> 1893. Em 1897, no Rio deJaneiro, era José do Patrocínio, famoso abolicionista, qu<strong>em</strong> surpreendia atodos dirigindo um outro veículo a vapor, este francês. Em Petrópolis, já <strong>em</strong>*Bacharel e doutor <strong>em</strong> Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular do CentroUniversitário Newton Paiva (Belo Horizonte-MG). M<strong>em</strong>bro do Instituto Histórico e Geográfico deMinas Gerais. Autor do Manual de Direito Empresarial e da coleção Direito Empresarial Brasileiro (5volumes), pela Editora Atlas.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA47
Gladston Mamede1900, Fernando Guerra Duval fez circular o primeiro veículo com motor aexplosão: um Decauville de 6 cavalos, movido a benzina. 1 São, porém, ex<strong>em</strong>plosisolados. Somente a partir de 1904, o Brasil passou a importar veículosautomotores <strong>em</strong> volume representativo. Aliás, importação que foi crescendoprogressivamente, ao ponto de, <strong>em</strong> 1919, Henry Ford, fundador da Ford MotorCompany, ter-se decidido pela criação de uma filial no Brasil, com capitalinicial de US$25.000,00. As atividades começaram <strong>em</strong> 1 o de maio, num prédioalugado na rua Florêncio de Abreu, São Paulo, onde <strong>em</strong>pregados montavamautomóveis Modelo T, que eram importados dos Estados Unidos <strong>em</strong> caixotes.O sucesso do <strong>em</strong>preendimento foi imediato, forçando uma prontamudança para um novo endereço (um antigo ringue de patinação na Praçada República, <strong>em</strong> São Paulo) e, logo <strong>em</strong> seguida, à construção de uma sedeprópria, localizada na Rua Sólon, 809, Bairro Bom Retiro, <strong>em</strong> São Paulo.Inaugurada já <strong>em</strong> 1921, a fábrica seguia o modelo de linha de produçãoidealizado por Henry Ford, com capacidade de produção de 4.700 automóveise 360 tratores por ano. Mais uma vez, um sucesso. Em 1924, foramcomercializadas quase 17 mil unidades; <strong>em</strong> 1925, 24.250 unidades do ModeloT, vendidas por agentes instalados nas principais cidades do país. Estesucesso chamou a atenção de outra montadora norte-americana, a GeneralMotors – GM, que se instalou no país <strong>em</strong> 1925, num prédio alugado noBairro Ipiranga, também <strong>em</strong> São Paulo, iniciando, <strong>em</strong> 1927, a construção deuma fábrica na cidade paulista de São Caetano do Sul, concluída <strong>em</strong> 1930. 2A crise econômica dos anos 1930, <strong>em</strong> primeiro lugar, e a II GrandeGuerra, nos anos 1940, <strong>em</strong> segundo, abalam o mundo e o mercado de automóveis,mas os anos 1950 experimentam uma retomada significativa de crescimento.No Brasil, foi criada uma <strong>em</strong>presa estatal, a Fábrica Nacional deMotores – FNM (ou, como se popularizou, Fen<strong>em</strong>ê), para produção de caminhõespesados. Em 1953, Volkswagen, Mercedes-Benz e Willys-Overland instalavam-seno país, sendo que, <strong>em</strong> 1955, a produção brasileira já respondia por25% dos 2,7 milhões de veículos que estavam, então, <strong>em</strong> circulação. Essepercentual ampliou-se no governo de Juscelino Kubitscheck de Oliveira quefechou o mercado à importação por meio da fixação de taxa de câmbio e deracionamento cambial para produtos automotivos, além de exigir que asmontadoras aqui instaladas atingiss<strong>em</strong> um percentual de 95% de nacionalizaçãodos veículos produzidos, o que as tornaria aptas a merecer incentivosfinanceiros. 3Essa tendência de expansão será cadenciada nos anos 60, quando avitória do golpe militar de 1964 levou à impl<strong>em</strong>entação de um plano deausteridade econômica, agravado por um controle de preços estabelecido<strong>em</strong> 1965. Nesse quadro, muitas montadoras simplesmente sucumbiram: aV<strong>em</strong>ag, que disputou a terceira colocação <strong>em</strong> volume de vendas com a Fordentre 1963 e 1965, foi incorporada pela Volkswagen <strong>em</strong> 1967; a InternationalHarvester e a Simca foram incorporadas pela Chrysler do Brasil (<strong>em</strong> 1978, aprópria Chrysler do Brasil foi absorvida pela Volkswagen); a Willys-Overland,48n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaque produzia veículos com tecnologia Renault, foi adquirida pela Ford doBrasil <strong>em</strong> 1969; a Fábrica Nacional de Motores – FNM foi incorporada pelaAlfa Romeo, <strong>em</strong> 1968, e esta, por seu turno, absorvida pela Fiat, <strong>em</strong> 1976, ano<strong>em</strong> que a montadora italiana inaugurou sua fábrica <strong>em</strong> Minas Gerais. Algunsanos depois, as <strong>em</strong>presas que restaram beneficiaram-se do chamadomilagre econômico dos anos 1970. Mas foi movimento de pequena duração.A artificialidade do fenômeno econômico engendrado pela ditadura militarfez com que o país, e o mercado fornecedor automobilístico enfrentass<strong>em</strong>,uma década depois, a crise dos anos 1980. Para se ter uma adequada dimensãodessa crise, a produção nacional de veículos chegou a cair assustadores30,7% entre 1979 e 1980. 4Nos anos 1990, todavia, novo quadro de expansão se verifica, com aadoção do Regime Automotivo Brasileiro, voltado para alterar e ampliar oparque automotivo nacional, descentralizando-o, com instalação de unidadesprodutivas <strong>em</strong> São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, RioGrande do Sul, Bahia e Goiás. As <strong>em</strong>presas instaladas no país multiplicamse:Agrale S/A, Fiat Automóveis S/A, Ford Motor Company Brasil Ltda, GeneralMotors do Brasil Ltda, Honda Automóveis do Brasil Ltda, International Caminhõesdo Brasil Ltda, Iveco Mercosul Ltda, Karmann-Guia do Brasil Ltda, Daimler-Chrysler do Brasil Ltda, Peugeot Citroën do Brasil S/A, Renault do Brasil S/A,Scania Latin America Ltda, SC – John Deere S/A, Toyota do Brasil Ltda,Volkswagen do Brasil Ltda, Volvo do Brasil Veículos Ltda. Em 1997, o volumeanual de veículos produzidos alcança 2,069 milhões (126% a mais que <strong>em</strong>1990) e, <strong>em</strong> 2000, o Brasil estava respondendo por 2,9% da produção anualde veículos automotores (1,671 milhões de veículos produzidos; inferior, portanto,à produção de 1997). Um percentual de participação na produção,aliás, ass<strong>em</strong>elhado ao percentual da participação dos veículos existentes nopaís (20,754 milhões, no final dos anos 90) na frota mundial, estimada <strong>em</strong>715 milhões de unidades. Isso conduz a uma média de um veículo para cada8,2 habitantes no país, média muito inferior à norte-americana, que é de umveículo para cada 1,3 habitante. Nesse contexto, quatro grandes <strong>em</strong>presasdominam o mercado nacional: Fiat Automóveis S/A, Ford Motor CompanyBrasil Ltda, General Motors do Brasil Ltda e Volkswagen do Brasil Ltda. Para seter uma idéia, <strong>em</strong> 2000, seu volume conjunto de vendas representou aproximadamente83% do total, restando 17% para as d<strong>em</strong>ais montadoras. 5Luiz José Pimenta ainda faz um interessante levantamento sobre ahistória daqueles que se encarregaram da venda de veículos no país, chegandoà conclusão de que “a história da rede de concessionários no Brasil seconfunde com a da indústria automobilística”, sendo que, “apesar de a redede concessionários de automóveis ter-se consolidado somente com o inícioda produção de veículos”, que ocorreu na segunda metade da década de1950, “desde 1904 os automóveis que des<strong>em</strong>barcavam no país já eramcomercializados por agentes, localizados nos centros urbanos mais desenvolvidos”:REVISTA OPINIÃO JURÍDICA49
Gladston MamedeOs agentes eram nomeados pelos fabricantes localizados noexterior, com a finalidade de comercialização de seus automóveis,nascendo daí a figura do concessionário autorizado. Elesfuncionavam como representantes das fábricas, recebendopedidos, agilizando documentação, oferecendo garantia no atoda compra e atendendo à d<strong>em</strong>anda no ritmo possível. 6Esses agentes concessionários foram se avolumando. Em 1966, quandofoi criada a Associação Brasileira dos Distribuidores de Veículos Automotores– ABRAVE, eram filiados 2.183 revendedores autorizados <strong>em</strong> todo o país,cobrindo todos os estados da Federação. Como se não bastasse, havia umgrande número de <strong>em</strong>presas paralelas, estabelecendo uma competição predatória,<strong>em</strong> muito justificada pelas vantagens ilícitas da informalidade, oque conduziu à aprovação da Lei 6.729/79, chamada Lei Renato Ferrari, estabelecendonormas de conduta para os revendedores concessionários. 7Para os revendedores de automóveis, os anos 1990 marcam alteraçõessignificativas, narra Grande; até então, a indústria tivera pouca preocupaçãocom a distribuição de seus produtos, o que se explica <strong>em</strong> partepela d<strong>em</strong>anda maior que a oferta. Todavia, a partir de meados daqueladécada, mudanças no mercado intensificaram a competição, nomeadamente<strong>em</strong> face do surgimento de um maior número de marcas, a retraçãoda d<strong>em</strong>anda de carros novos, além do surgimento de novos atores, a ex<strong>em</strong>plodas cadeias especializadas <strong>em</strong> serviços de manutenção, sites de vendade veículos. Como se não bastasse, ainda há que se considerar “o aumentoda confiabilidade dos veículos que se reflete na menor necessidade d<strong>em</strong>anutenção”, 8 o que também se traduz numa dificuldade extra para osconcessionários, na manutenção de seu negócio e na realização de seupapel estratégico e fundamental para a indústria automobilística e para asociedade <strong>em</strong> geral.Considerando somente as redes de concessionárias de automóveisnovos, há cerca de 2.200 concessionárias, <strong>em</strong> sua maioriapequenas e médias <strong>em</strong>presas de atuação local. Segundo aFederação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores(FENABRAVE) a venda de carros novos foi, e ainda é, a principalfonte de lucro das concessionárias. [...] As redes de concessionáriasenfrentam probl<strong>em</strong>as financeiros. Devido ao aumento daconcorrência no mercado de automóveis no país, as redes deconcessionárias têm sido pressionadas para reduzir<strong>em</strong> as margensde lucro na comercialização de carros novos, sua principal fontede receita. Além disso, o nível de conflito horizontal na rede éalto: existe muita competição entre as revendas da mesma marca,o que acaba aprofundando a descapitalização de pequenas <strong>em</strong>édias revendas. Junte-se a isso o fato de que os concessionáriossofr<strong>em</strong> forte concorrência das oficinas e do setor de reposiçãoindependentes. Segundo Arbix e Veiga (2000) a rentabilidade50n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriado setor v<strong>em</strong> diminuindo e já atingiu índices inferiores ao daprópria cadeia automotiva. 9É este o contexto social e econômico do presente estudo.2 CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL DE DISTRIBUIÇÃODE VEÍCULOSA existência de conflitos e probl<strong>em</strong>as no sist<strong>em</strong>a de distribuição deveículos levou o Estado a editar, <strong>em</strong> nov<strong>em</strong>bro de 1979, a Lei n. 6.729, quedispõe sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículosautomotores de via terrestre. Para a elaboração do anteprojeto foiconvidado o jurista Renato Ferrari, razão pela qual a norma passou a serconhecida como Lei Renato Ferrari ou, simplesmente, Lei Ferrari. Essa normadetermina que a distribuição efetive-se por meio de concessão comercial entreprodutores e distribuidores, concessão esta que é disciplinada pela própriaLei n. 6.729/79, com as alterações nela inseridas pela Lei n. 8.132/90, b<strong>em</strong>como por convenções estabelecidas entre produtores e distribuidores, no quenão contrari<strong>em</strong> a lei.O contrato de concessão comercial de distribuição de veículos é espéciejurídica do contrato de distribuição que é nomeado no Capítulo XII (DaAgência e Distribuição) do Título V (Dos Contratos <strong>em</strong> Geral) da Parte Especialdo Código Civil. Apenas nomeado, creio e friso. Os artigos 710 a 721,que compõ<strong>em</strong> o citado Capítulo XII, tipificam, a b<strong>em</strong> da precisão jurídica, ocontrato de agência, gênero negocial do qual a representação comercial, reguladopela Lei n. 4.866/65 (com as alterações feitas pela Lei n. 8.420/92) éuma espécie. 10 A diferença essencial está na definição do contrato de agência(e apenas deste), colocada no artigo 710 do Código Civil:Pelo contrato de agência, uma pessoa assume, <strong>em</strong> caráter nãoeventual e s<strong>em</strong> vínculos de dependência, a obrigação depromover, à conta de outra, mediante retribuição, a realizaçãode certos negócios, <strong>em</strong> zona determinada, caracterizando-se adistribuição quando o agente tiver à sua disposição a coisa a sernegociada.Note que o legislador referiu-se exclusivamente ao contrato de agência,omitindo-se na definição do contrato de distribuição. A diferença essencialestá no fato de que o agente (e, via de conseqüência, o representantecomercial) é pessoa que atua à conta de outra, o proponente (o representado).A atuação à conta de outr<strong>em</strong> opõe-se, por óbvio, à atuação por contaprópria, quando a pessoa assume, <strong>em</strong> sua <strong>em</strong>presa, todos os el<strong>em</strong>entos daoperação mercantil: estabelecimento mercantil (o complexo organizado parao exercício da <strong>em</strong>presa, na dicção do artigo 1.142 do Código Civil), pessoal,REVISTA OPINIÃO JURÍDICA51
Gladston Mamedecompra da mercadoria para revenda (na prestação de serviços, compra dosinsumos para prestar, ele próprio, o serviço).No contrato de agência (e de representação mercantil) há atuação àconta de outr<strong>em</strong>. Já no contrato de distribuição, essa atuação à conta deoutr<strong>em</strong> é facultativa, sendo que o habitual é haver atuação <strong>em</strong> conta própria,como ex<strong>em</strong>plificam as relações entre distribuidores e revendedores decombustíveis, b<strong>em</strong> como o contrato de concessão comercial de distribuição deveículos, ora examinado. Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça, <strong>em</strong>diversos precedentes, recusou compreender o contrato de concessão comercialde distribuição de veículos como espécie de contrato de representação comercial(ou contrato de agência, tomando-o pelo gênero). O Ministro José Delgado,no voto proferido no julgamento do Recurso Especial 739.201/RS, julgadopela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, 11 reiterou a posiçãoconstante de diversos precedentes da Primeira Seção daquela Corte, no sentidode que “na atividade da concessionária ocorre duas vendas, uma damontadora para ela e outra desta ao consumidor final.” Mais especificamente,os magistrados frisaram que o concessionário “adquire os produtos da concedentee os revende, obtendo uma marg<strong>em</strong> de lucro, com a qual atende suas despesasoperacionais.” O voto ainda supl<strong>em</strong>enta: “Com efeito, t<strong>em</strong>os a transmissãoeconômica do produto da fabricante à concessionária, sendo que esta assumetodos os riscos inerentes ao negócio próprio, inclusive o de não conseguir venderos carros – e não há cláusula prevendo a devolução. Típica operação derevenda, portanto.” Não foi só. Entre os fundamentos elencados para tal conclusão,ressaltou-se a real posição do concessionário frente a seus clientes:Estes, como consumidores, firmam contrato com a concessionária,cabendo a esta responder por todos os seus termos, como prazosde entrega, atributos dos veículos, garantias, orientações, e outros.[...] Portanto, a concessionária posta-se <strong>em</strong> tudo como averdadeira responsável pela mercadoria vendida. Podendo, sefor o caso, agir regressivamente contra a fábrica, <strong>em</strong> hipótese deresponsabilidade desta.De outra face, é preciso reconhecer que, na sua condição de espéciedo gênero contrato de distribuição, o contrato de concessão comercial de distribuiçãode veículos, ora examinado, avizinha-se muito ao contrato de franquia<strong>em</strong>presarial (franchising), que merece uma tipificação incipiente pela Lei n.8.955/94. Aliás, os autores que cuidam da franquia <strong>em</strong>presarial comumentelistam entre os precedentes do instituto a política de distribuição adotadapela General Motors, no ano de 1889, utilizando de um processo de autorizaçãodo uso da marca e de distribuição dos produtos como forma de expansãodos negócios. 12 Tanto assim que Gabrich destaca que tal iniciativa concessãocomercial de venda com exclusividade, originária do direito europeu, e queteria, por seu turno, raízes históricas nas cidades italianas do Medievo. 13Esse quadro é reconhecido, aliás, por Grande:52n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaGrosso modo, o sist<strong>em</strong>a de distribuição de veículos ocorre atravésde redes de franquias independentes e exclusivas de cada marcaque integram, num mesmo lugar, as funções de vendas de carrosnovos, vendas de carros usados, distribuição de peças de reposição,serviços de assistência técnica e financiamento. 14A percepção de tratar-se de uma rede de franquias é essencial parasublinhar um aspecto relevante do negócio. Em primeiro lugar, não se podedesprezar o aspecto conceitual, fort<strong>em</strong>ente atrelado à formação etimológicada palavra franquia. 15 Traduz uma relação entre dois pólos, um dos quaistendo determinado poder (um direito, uma faculdade) que ao outro interessa;o franqueador, destarte, dá ao franqueado uma licença, uma autorização,uma permissão. O instituto, portanto, traz implícita a idéia de uma concessão,de um licenciamento, de uma permissão. Mais do que isso, uma cessãode vantag<strong>em</strong> mercantil (goodwill of trade); é esse o objeto específico que,estando no poder do franqueador, t<strong>em</strong> o seu acesso franqueado a um terceiro;têm-se relações econômicas e jurídicas cujo pano de fundo é a busca poruma vantag<strong>em</strong> comercial, o acesso a uma vantag<strong>em</strong> comercial, acesso esseque é franqueado pela montadora, que sobre ela exerce titularidade, masque passa a estar contratualmente – e legalmente, <strong>em</strong> face da Lei n. 6.729/79 – a garantir o seu gozo (ius fruendi) pelo distribuidor.3 ESPECIALIZAÇÃO E TIPIFICAÇÃOEmbora seja correto afirmar ser uma espécie do gênero contrato dedistribuição, o contrato de concessão comercial de distribuição de veículos t<strong>em</strong>não apenas expressão própria, mas tipificação exclusiva, inscrita na Lei n.6.729/79. O tipo, no Direito, é uma estrutura conceitual de um fato hipotético.O legislador desenha tal estrutura com o objetivo de limitar os casosque corresponderão a determinada previsão. Assim, os tipos penais são comportamentoshipotéticos previstos <strong>em</strong> lei (a essa previsão, dá-se o nome detipificação) que, uma vez verificando-se num fato <strong>em</strong> concreto, dá azo àaplicação da conseqüência legalmente estabelecida. Trata-se, portanto, deum paradigma dado <strong>em</strong> abstrato, um molde ou modelo, cuja função é dar umlimite de aplicação jurídica: submet<strong>em</strong>-se às conseqüências legais aquelesatos e fatos que correspond<strong>em</strong> à estrutura conceitual hipotética, o que permitetanto orientar as pessoas para a realização de seus atos (mantendo-oslícitos, antevendo suas conseqüências, reconhecendo-se aqui a segurançaque é inerente à previsibilidade jurídica), assim como permitindo a soluçãode controvérsias havida entre as partes envolvidas no fato, mormente noâmbito do Direito Contratual.O tipo, nesta direção, é uma baliza, uma referência, para o intérprete/aplicador, considerando-se que a determinação legal pressupõe um fato específico,que é previsto, <strong>em</strong> abstrato, na norma jurídica. Essa minha defini-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA53
Gladston Mamedeção t<strong>em</strong>, por certo, o defeito de ser excessivamente ampla; mas justifico odefeito pela necessidade de não adentrar <strong>em</strong> preciosismos teóricos que serãoaqui inúteis, como, igualmente, atender às necessidades de exploração daspossibilidades do dispositivo ora comentado. Seria o caso de distinguir, comofaz Vasconcelos, o tipo legal do conceito geral abstrato, seja ele classificatório(possibilitam o juízo de inclusão ou de exclusão da situação na previsão) ouordenador (permite a ponderação das qualidades do objeto). 16 Assim, é umconceito geral abstrato classificatório (e não um tipo) a expressão sociedade quedependa de autorização do Poder Executivo, anotada no artigo 1.123 do CódigoCivil: a partir deste, inclu<strong>em</strong>-se algumas pessoas jurídicas, exclu<strong>em</strong>-se outras.Já o artigo 1.184 do Código Civil, ao referir-se à clareza como requisitoda escrituração contábil, utiliza-se de um conceito geral abstrato ordenador; omesmo, viu-se há pouco, passa-se com o artigo 423 do mesmo Código, <strong>em</strong>relação aos conceitos ambíguo e contraditório, cuja aferição no caso concretoimplica a aplicação da regra do favor adhaerentis: a interpretação mais favorávelao aderente no contrato de adesão.Havendo um tipo legal, a operação de interpretação/aplicação do direitopassa pela verificação de dois pontos específicos: subsunção e isomorfia.A subsunção é operação prejudicial, traduzindo a investigação sobre aaplicabilidade, ou não, de uma norma a um determinado fato; é a primeirapreocupação do intérprete/aplicador: verificar que norma se aplica ao caso.Identificada a norma (subsumindo-se o fato à determinada norma jurídica),passa-se à verificação da existência, ou não, de isomorfia, o que implicaaferir se os el<strong>em</strong>entos essenciais do fato <strong>em</strong> concreto (o núcleo da ação ouda ocorrência) mantém relações biunívocas com uma previsão normativatípica. 17 Se há isomorfia, aplica-se a determinação legal correspondente aotipo; se não há isomorfia, não se aplica.No âmbito do Direito Privado, mais especificamente, do DireitoContratual, consideram-se contratos típicos (também chamados de contratosnominados) aqueles cuja estrutura está legalmente desenhada, ou seja,aqueles que mereceram do legislador uma tradução normativa, desenhandoum paradigma jurídico positivado para orientar a realização, <strong>em</strong> concreto,dos negócios, b<strong>em</strong> como para referenciar a solução de controvérsias quesurjam entre as partes. Os ex<strong>em</strong>plos são muitos, como a compra e venda,cuja estrutura está anotada nos artigos 481 a 532 do Código Civil, o mandato,tipificado pelos artigos 653 a 692 do mesmo Código Civil, ou o contratode franquia, cujo modelo abstrato foi tipificado pela Lei n. 8.955/94. Atípicos,<strong>em</strong> contraste, são os contratos que não encontram regência legal específica,a ex<strong>em</strong>plo do contrato de faturização (factoring). Note-se que a tipificaçãocontratual pressupõe uma definição ampla do contorno, in abstracto, do negóciojurídico. Seus el<strong>em</strong>entos centrais e fundamentais são, assim, dispostos<strong>em</strong> lei, como se pode verificar nos ex<strong>em</strong>plos citados, pelas respectivas referênciaslegislativas. Não há tipificação quando se tenha mera nominaçãolegal de um contrato, ou seja, quando o legislador simplesmente se refira a54n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaele, s<strong>em</strong> se ocupar dos el<strong>em</strong>entos que definam uma estrutura conceitualhipotética que lhe corresponda, a ex<strong>em</strong>plo da locação <strong>em</strong> shopping centerque, não obstante seja mencionada pela Lei n. 8.245/91 (Lei do Inquilinato),<strong>em</strong> seus artigos 52 e 54, não foi ali tipificada. A referência ali feita interpreta-secomo um conceito geral abstrato classificatório.Obviamente, a tipificação reflete um processo de análise dos fenômenosparticulares que se reiteram, para deles retirar um núcleo comum, geral,um modelo que, repetindo-se, permite aproveitamento jurídico, mormentediante da ocorrência de dúvidas e controvérsias. Não me passa despercebidoque tipificar pode ser um processo artificial, uma cunhag<strong>em</strong> meramenteconceitual de modelos hipotéticos s<strong>em</strong> reflexo na realidade; o legislador pode,sim, criar por lei um tipo contratual que jamais se viu, desenvolvido porespecialistas visionários, almejando determinados resultados. Não é o quecomumente acontece, todavia. Habitualmente, o processo de cunhag<strong>em</strong> dostipos contratuais se faz como uma tradução da experiência reiterada, permitindoapurar os el<strong>em</strong>entos que, sendo usuais, orientarão a solução de probl<strong>em</strong>asque se apresent<strong>em</strong> nas relações jurídicas dadas <strong>em</strong> concreto. Como senão bastasse, é um processo de estabilização jurídica que, por certo, retiradas relações jurídicas negociais de sua dinamicidade para submetê-las a umareferência estática (inscrita <strong>em</strong> lei); mas é justamente o princípio hospedadopelo artigo 425 que garante a preservação de um espaço de dinamicidadecontratual, pois a licença para a atipicidade, no contorno que se estudaráabaixo, implica permissão para variações e inovações (diriam os romanistas,espaço para interpolações), fazendo com que haja na realidade negocial umapars nova, tradutora do impulso humano - individual e social - <strong>em</strong> busca dodesenvolvimento.Todavia, compreender a estabilização da estrutura contratual usual,pela legiferação de um tipo correspondente, como mero processo de traduçãodo usual <strong>em</strong> lei, não dá ao fenômeno uma descrição fidedigna. A construçãodo tipo legal não é mera conversão do consuetudo <strong>em</strong> ius scripitum(direito escrito); não é simples positivação conforme a tradição jurídica dospaíses que segu<strong>em</strong> o direito latino. É b<strong>em</strong> mais. O consuetudo, sabe-se, é oconjunto dos costumes, isto é, dos usos velhos (usus vetus) aos quais se atribuio valor e a prática social de regras jurídicas, mesmo s<strong>em</strong> haver norma(<strong>em</strong> sentido estrito: lei); é o longo decurso do t<strong>em</strong>po, permitindo aferir queaquela prática corresponde à vontade da sociedade, mesmo que para tantonão haja lei, que lhe dá forma (quod voluntate omnium sine lege vetustascomprobavit). Não é apenas o que é costumeiro, portanto, mas o que, ad<strong>em</strong>ais,é tido como devido numa tipicidade social ou num conceito genéricoabstrado s<strong>em</strong> existência social. Não é, portanto, uma norma meramente moral(mos), mas um núcleo específico dessa moral (mores maiorum) que não podeser desconhecido pelo legislador. A legiferação de um tipo pode traduzir,igualmente, intervenção estatal no domínio dos costumes, da prática social(a praxis - ðñÜæéò), alterando pontos específicos, no exercício da soberaniaREVISTA OPINIÃO JURÍDICA55
Gladston Mamededo Estado e na busca da obtenção das metas ordenadoras que permit<strong>em</strong> odesenvolvimento econômico e social do país. Tipificar, portanto, pode significarordenar, classificar, disciplinar.De qualquer sorte, não se pode negar à tipificação – à edição de normastipificadoras – o caráter de manifestação da soberania social e, ad<strong>em</strong>ais,de intervenção pública (estatal) no domínio privado. Essa intervenção podedar-se pela edição de normas de respeito obrigatório, determinações quevisam disciplinar os negócios, exigindo-lhes determinadas características,detalhes; o artigo 757, parágrafo único, do Código Civil, por ex<strong>em</strong>plo, principiaa tipificação do contrato de seguro estabelecendo que somente pode serparte, como segurador, entidade para tal fim legalmente autorizada. Já oartigo 841 do mesmo Código, ao tipificar a transação, só lhe permite quantoa direitos patrimoniais de caráter privado. Mas essa intervenção pode darse,igualmente, pela simples estipulação da regra geral, aquela que será aplicávelquando as partes não disponham de outra forma, l<strong>em</strong>brando-se que omais comum são as contratações s<strong>em</strong> instrumento e, portanto, s<strong>em</strong> ressalvasespecíficas. Essa disposição de uma regra geral excepcionável pode dar-se deduas formas, a primeira das quais não oferecendo grandes desafios para ojurista: a expressa previsão legal de que a regra comporta exceção. Ex<strong>em</strong>plificaoo artigo 713 do Código Civil, inscrito no âmbito das normas tipificadoras docontrato de agência e distribuição, estabelecendo que, salvo ajuste, o agenteou distribuidor terá direito à r<strong>em</strong>uneração correspondente aos negócios concluídosdentro de sua zona, ainda que s<strong>em</strong> a sua interferência. Cite-se, ainda,o artigo 530 do Código, inscrito no âmbito das normas tipificadoras docontrato de compra e venda (mais especificamente, da venda sobre documentos),estatuindo que, não havendo estipulação <strong>em</strong> contrário, o pagamento deveser efetuado na data e no lugar da entrega dos documentos.4 LEI N. 6.729, DE 28 DE NOVEMBRO DE 1979O contrato de concessão comercial de distribuição de veículos está tipificadopela Lei n. 6.729/79, alias dicta Lei Ferrari ou Lei Renato Ferrari, com alteraçõesintroduzidas pela Lei n. 8.132/90. De acordo com os artigos 1 o e 2 o daLei n. 6.729/79, são sujeitos do contrato, <strong>em</strong> pólos fixos, o produtor e o distribuidor.Produtor é “a <strong>em</strong>presa industrial que realiza a fabricação ou montag<strong>em</strong>de veículos automotores”; pode também ser chamado, segundo o § 1 o ,“a”, do artigo 2 o , de concedente. Distribuidor é “a <strong>em</strong>presa comercial pertencenteà respectiva categoria econômica, que realiza a comercialização deveículos automotores, impl<strong>em</strong>entos e componentes novos, presta assistênciatécnica a esses produtos e exerce outras funções pertinentes à atividade”; o§ 1 o , “a”, do artigo 2 o permite que seja também chamado de concessionário.Cuidadoso, o legislador ainda trouxe, nos incisos do artigo 2 o da Lei n. 6.729/79, algumas definições compl<strong>em</strong>entares: (1) Veículo automotor de via terrestre:automóvel, caminhão, ônibus, trator, motocicleta e similares. Entende-56n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriase por trator aquele destinado a uso agrícola, capaz também de servir a outrosfins, excluídos os tratores de esteira, as motoniveladoras e as máquinasrodoviárias para outras destinações. (2) Impl<strong>em</strong>ento: máquina ou petrechoque se acopla o veículo automotor, na interação de suas finalidades. (3)Componente: peça ou conjunto integrante do veículo automotor ouimpl<strong>em</strong>ento de série. (4) Máquina agrícola: a colheitadeira, a debulhadora, atrilhadeira e d<strong>em</strong>ais aparelhos similares destinados à agricultura, automotrizesou acionados por trator ou outra fonte externa. (5) Impl<strong>em</strong>ento agrícola: oarado, a grade, a roçadeira e d<strong>em</strong>ais petrechos destinados à agricultura.Excetuam-se da Lei n. 6.729/79 os impl<strong>em</strong>entos e máquinas agrícolas quenão sejam fabricados por qu<strong>em</strong> se amolde à definição legal de produtor ouconcedente, inscrita no inciso I do artigo 2 o e acima transcrita. (6) Serviçoautorizado: <strong>em</strong>presa comercial que presta serviços de assistência a proprietáriosde veículos automotores, assim como a <strong>em</strong>presa que comercializa peçase componentes.Essas definições são essenciais para a compreensão do objeto do contrato,já que, na forma do artigo 3 o da Lei n. 6.729/79, constitui objeto daconcessão (1) a comercialização de veículos automotores, impl<strong>em</strong>entos ecomponentes fabricados ou fornecidos pelo produtor; (2) a prestação de assistênciatécnica a esses produtos, inclusive quanto ao seu atendimento ourevisão; (3) o uso gratuito de marca do concedente, como identificação.T<strong>em</strong>-se, portanto, uma situação muito próxima do contrato de franquia d<strong>em</strong>arca e produto (product and trade name franchising), forma mais el<strong>em</strong>entardo contrato de franquia <strong>em</strong>presarial, no qual a vantag<strong>em</strong> (ou benefício) d<strong>em</strong>ercado (goodwill of trade) cedida pelo concedente ao concessionário é afaculdade de vender determinado ou determinados bens e de prestar determinadoou determinados serviços, além de usar certa ou certas marcas einsígnias. Nada mais do que isso. A rede de franqueados (concessionários)sequer se apresenta com identidade única, além da ostentação da marca:<strong>em</strong>presas diversas, apresentando-se ao público com seus próprios nomes <strong>em</strong>presariaisou títulos de estabelecimento.Fica claro, portanto, que os el<strong>em</strong>entos essenciais do contrato de concessãocomercial de distribuição de veículos são os seguintes: (1) produtor/concedente; (2) distribuidor/concessionário; (3) acordo de vontades(consensus); (4) vantag<strong>em</strong> <strong>em</strong>presarial concedida, que é a prestação devidapelo produtor/concedente. Note-se que a r<strong>em</strong>uneração do produtor/concedente não é el<strong>em</strong>ento essencial do contrato, o que se justifica pelofato de se subentender que ele irá se r<strong>em</strong>unerar de forma indireta, a partirda venda de veículos automotores, impl<strong>em</strong>entos e componentes novos. Noentanto, como se estudará na seqüência, para além desses el<strong>em</strong>entos essenciais,que dev<strong>em</strong> estar presentes <strong>em</strong> todas as contratações, é lícito estipularel<strong>em</strong>entos acidentais que, destarte, marcam determinado negócio certo,<strong>em</strong>bora não devess<strong>em</strong> estar obrigatoriamente presentes para que o ajusteatenda aos requisitos da tipificação legal.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA57
Gladston MamedeTomado por suas partes e pelo consenso, o contrato de concessão comercialde distribuição de veículos não se especializa <strong>em</strong> relação ao contrato dedistribuição, gênero a que pertence. O único el<strong>em</strong>ento conceitual específico,neste nível, é a qualificação subjetiva (adjetivação) obrigatória doconcedente, que deve ser <strong>em</strong>presa industrial que realiza a fabricação ou montag<strong>em</strong>de veículos automotores, segundo o artigo 2 o , I, e do concessionário, quedeve ser <strong>em</strong>presa comercial pertencente à respectiva categoria econômica, querealiza a comercialização de veículos automotores, impl<strong>em</strong>entos e componentesnovos, presta assistência técnica a esses produtos e exerce outras funções pertinentesà atividade. Mas não é marco distintivo que diga respeito à natureza donegócio, sendo incipiente na pretensão de definir uma unidade jurídica.Basta dizer que um contrato de concessão comercial de produtos farmacêuticost<strong>em</strong>, obrigatoriamente, uma indústria farmacêutica na condição de produtor/concedentee uma <strong>em</strong>presa dedicada à comercialização de produtos farmacêuticosna condição de distribuidor/concessionário.A especialidade do contrato de concessão comercial de distribuição deveículos está, vê-se da Lei n. 6.729/79, justamente na minuciosa definição doobjeto da concessão. Em fato, a tipificação legal alcança, aqui, particularidadesdignas de dar-lhe a condição de espécie, distinguindo-o do gênero: ocontrato de distribuição. Essa realidade não se afirma apenas no que diz respeitoao objeto genérico – distribuição de veículos automotores, de via terrestre,além de produtos afins, como anteriormente visto –, o que uma vezmais seria incipiente e não daria unidade e especialidade jurídicas. Paraalém desse objeto genérico, o legislador tomou o cuidado de dar uma conformaçãoprópria à concessão, específica para o universo do mercado de veículosautomotores, sendo certo que seria de todo t<strong>em</strong>erário pretender transporas regras inscritas na Lei n. 6.729/79 para outro mercado (por ex<strong>em</strong>plo, devestuário ou de eletrodomésticos), já que as características e carências dessesetor são absolutamente distintas.Assim, a Lei n. 6.729/79 estipula que a concessão não se faz, <strong>em</strong> todosos casos, para a totalidade do que é produzido pelo concedente. De acordocom o § 1 o do artigo 3 o , a concessão poderá, <strong>em</strong> cada caso, ser estabelecidapara uma ou mais classes de veículos automotores. Uma indústria que produzaautomóveis, caminhões e motocicletas, poderá conceder cada classede veículos para diferentes distribuidores; assim, o concessionário A serádistribuidor apenas de automóveis, não alcançando o contrato por ele celebradoo direito de comercializar os caminhões e motocicletas fabricados peloprodutor/concedente. Reforça-o o conceito inscrito no seu artigo 2 o , § 1 o ,letra c, segundo o qual, para os fins da lei, “caracterizar-se-ão as diversasclasses de veículos automotores pelas categorias econômicas de produtores edistribuidores, e os produtos, diferenciados <strong>em</strong> cada marca, pelo produtor esua rede de distribuição, <strong>em</strong> conjunto.”Em oposição, também não se presume que o concessionário esteja obrigadoà exclusividade na distribuição de produtos do concedente. De acordo58n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriacom o artigo 3 o , § 1 o , b, da Lei 6.729/79, a concessão poderá, <strong>em</strong> cada caso,vedar a comercialização de veículos automotores novos fabricados ou fornecidospor outro produtor. Fica claro, portanto, que a exclusividade não é aregra, mas a exceção, carecendo de previsão específica no contrato estabelecidoentre as partes, interpretando-se, assim, a expressão <strong>em</strong> cada caso,inscrita no dispositivo. Mais do que isso, a lei deixa claro que essa exclusividadena comercialização de veículos automotores fabricados ou fornecidospor outro produtor alcança apenas unidades novas. A propósito, olhe-se novamentepara a disposição: a concessão poderá, <strong>em</strong> cada caso, vedar acomercialização de veículos automotores novos fabricados ou fornecidos por outroprodutor. Não há licença para vedar a comercialização de veículos automotoresusados que tenham sido fabricados ou fornecidos por outro produtor. Não se dizque a concessão poderá, mesmo <strong>em</strong> cada caso, vedar tal prática; como se sónão bastasse, o artigo 4 o , III, da Lei n. 6.729/79, expressamente afirma constituirdireito do concessionário a comercialização de veículos automotores eimpl<strong>em</strong>entos usados de qualquer marca, no que o legislador apenas expressauma percepção das práticas mercantis assentadas e, destarte, dá expressãolegal ao Volksgeist (o espírito do povo), para usar uma expressão de Savigny.No âmbito do que tiver<strong>em</strong> ajustado entre si, as partes, produtor edistribuidor, ou seja, no âmbito definido para a concessão – a classe ou classesde veículos automotores – o contrato se prolonga no t<strong>em</strong>po, independent<strong>em</strong>entede aditivos. Assim, quanto aos produtos lançados pelo concedente,prevê o artigo 3 o , § 2 o , da Lei n. 6.729/79, ficarão automaticamente incluídosna concessão, se for<strong>em</strong> da mesma classe daqueles compreendidos no contrato.Em oposição, se for<strong>em</strong> de classe diversa, o concessionário terá preferência<strong>em</strong> comercializá-los, se atender às condições prescritas pelo concedente paraesse fim. Independent<strong>em</strong>ente do que tenham ajustado as partes, constituidireito do concessionário, por previsão legal (ex vi legis), comercializar (1)impl<strong>em</strong>entos e componentes novos produzidos ou fornecidos por terceiros;(2) mercadorias de qualquer natureza que se destin<strong>em</strong> a veículo automotor,impl<strong>em</strong>ento ou à atividade da concessão; (3) veículos automotores eimpl<strong>em</strong>entos usados de qualquer marca. É a previsão anotada no artigo 4 o daLei n. 6.729/79 que, <strong>em</strong> seu parágrafo único, ainda faculta ao concessionáriocomercializar outros bens e prestar outros serviços, desde que compatíveiscom a concessão.São inerentes à concessão, ex vi do artigo 5 o da Lei n. 6.729/79, áreaoperacional de responsabilidade do concessionário para o exercício de suasatividades, sendo que a área poderá conter mais de um concessionário damesma rede, e distâncias mínimas entre estabelecimentos de concessionáriosda mesma rede, fixadas segundo critérios de potencial de mercado. Noteseque, <strong>em</strong> sua redação original, o artigo 5 o , I, referia-se não a área operacionalde responsabilidade do concessionário, mas a área d<strong>em</strong>arcada para o exercíciodas atividades do concessionário, deixando claro que este não poderia operaralém dos seus limites. Essa reserva geográfica de mercado, agora abolida, in-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA59
Gladston Mamedecluía um mecanismo específico de proteção, inscrito na versão original do §2 o deste mesmo artigo 2 o : “Na eventualidade de venda de veículo automotorou impl<strong>em</strong>entos novos a comprador domiciliado <strong>em</strong> outra área d<strong>em</strong>arcada, oconcessionário que a tiver efetuado destinará parte da marg<strong>em</strong> decomercialização aos concessionários da área do domicílio do adquirente”.Incompatível com o princípio da livre concorrência, inscrito no artigo 170,IV, da Constituição da República, esta norma (b<strong>em</strong> como o texto originaldos §§ 3 o e 4 o , que lhe eram harmônicos) foi revogada, sendo substituída pornovas previsões, consentâneas com o sist<strong>em</strong>a econômico vigente sob o pálioda Constituição de 1988. Assim, verbi gratia, a nova redação do § 3 o do artigo5 o garante que “o consumidor, à sua livre escolha, poderá proceder à aquisiçãodos bens e serviços a que se refere esta lei <strong>em</strong> qualquer concessionário”.O máximo de controle regional da concorrência que se mantém estipulado,encontra-se inscrito na nova redação do artigo 5 o , § 2 o , da Lei n. 6.729/79:O concessionário obriga-se à comercialização de veículosautomotores, impl<strong>em</strong>entos, componentes e máquinas agrícolas,de via terrestre, e à prestação de serviços inerentes aos mesmos,nas condições estabelecidas no contrato de concessão comercial,sendo-lhe defesa a prática dessas atividades, diretamente ou porintermédio de prepostos, fora de sua área d<strong>em</strong>arcada.Na concessão comercial de distribuição de veículos compreende-seuma quota de veículos destinada ao concessionário, estabelecida a partir daestimação da produção do concedente destinada ao mercado interno para operíodo subseqüente, o que se fará por produto diferenciado e consoante aexpectativa de mercado da marca. É previsão anotada no artigo 7 o da Lei n.6.729/79, segundo o qual a quota corresponderá a uma parte da produçãoestimada, compondo-se de produtos diferenciados, e independentes entresi, inclusive quanto às respectivas quantidades, sendo ajustada entreconcedente e concessionário, consoante a respectiva capacidade <strong>em</strong>presariale des<strong>em</strong>penho de comercialização e conforme a capacidade do mercadode sua área d<strong>em</strong>arcada, independent<strong>em</strong>ente dos estoques mantidos peloconcessionário. Para impedir distorções no sist<strong>em</strong>a de quotas de veículos, o§ 3 o do artigo 7 o da Lei n. 6.729/79 estabelece, sob uma perspectiva global,que o atendimento da quota comporta ajustamentos que decorram de umaeventual diferença entre a produção que foi originalmente estimada peloprodutor, no início do exercício, e aquela que foi efetivamente concretizada.Ad<strong>em</strong>ais, sob uma perspectiva individual (unitária), o § 2 o do mesmo dispositivogarante revisão anual da quota, podendo reajustar-se conforme os el<strong>em</strong>entosconstantes dos incisos daquele dispositivo (acima referidos), b<strong>em</strong>como considerando a rotatividade dos estoques do concessionário. Por fim, oparágrafo final (§ 4 o ) faculta sejam incluídos na quota os veículos automotoresque sejam comercializados por meio de modalidades auxiliares de vendaque sejam adotadas pelo concedente, tais como consórcios, sorteios, arren-60n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriadamentos mercantis e planos de financiamento, l<strong>em</strong>brando-se que o artigo3 o , § 3 o , da mesma Lei n. 6.729/79 outorga ao concessionário o direito departicipar de tais modalidades auxiliares.Para além dessa quota, a Lei n. 6.729/79 ainda estabelece como el<strong>em</strong>entointegrante da concessão um índice de fidelidade de compra de componentesdos veículos automotores. Essa previsão encontra-se no artigo 8 oque, com a redação dada pela Lei n. 8.132/90, permite à convenção de marcadeterminar percentuais de aquisição obrigatória pelos concessionários.Todavia, por força do parágrafo único desse artigo 8 o , não estão sujeitas aoíndice de fidelidade de compra ao concedente as aquisições que o concessionáriofizer de acessórios para veículos automotores e de impl<strong>em</strong>entos dequalquer natureza e máquinas agrícolas. Dessa forma, os pedidos do concessionárioe os fornecimentos do concedente deverão corresponder à quota deveículos automotores e enquadrar-se no índice de fidelidade de componentes,como conclui – e prevê – o artigo 9 o , s<strong>em</strong>pre da Lei n. 6.279/79. Cria-se,assim, um sist<strong>em</strong>a de poderes/deveres, isto é, de faculdades contrabalançadascom obrigações, estruturado de forma recíproca, o que, de per se, recomendauma exegese fort<strong>em</strong>ente atada à necessidade de equilibrar as relações entreas partes, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> desconhecer que os pólos não revelam igual potência,como se estudará adiante. Esse sist<strong>em</strong>a de poderes/deveres recíprocos,contrabalançados, está inscrito nos artigos 9 o e 10 da Lei n. 6.729/79. Nessatoada, os fornecimentos do concedente dev<strong>em</strong> se circunscrever a pedidosformulados por escrito e facultando-se ao concessionário limitar seu estoque:(1) de veículos automotores <strong>em</strong> geral a sessenta e cinco por cento e decaminhões <strong>em</strong> particular a trinta por cento da atribuição mensal das respectivasquotas anuais por produto diferenciado; (2) de tratores, a quatro porcento da quota anual de cada produto diferenciado; (3) de impl<strong>em</strong>entos, acinco por cento do valor das respectivas vendas que houver efetuado nosúltimos doze meses; e (4) de componentes, o valor que não ultrapasse opreço pelo qual adquiriu aqueles que vendeu a varejo nos últimos três meses.Para viabilizar a aplicação de tais proporções de limitação de estoques,no alusivo a veículos automotores, caminhões e tratores, a cada seis mesesserá comparada à quota com a realidade do mercado do concessionário,segundo a comercialização por este efetuada, reduzindo-se os referidos limitesna proporção de eventual diferença a menor das vendas <strong>em</strong> relação àsatribuições mensais, consoante os critérios estipulados entre produtor e suarede de distribuição.Ainda no plano desse sist<strong>em</strong>a de poderes/deveres, determina-se que oconcedente deverá atender ao pedido no prazo fixado e, se não o fizer, poderáo concessionário cancelá-lo. Mais do que isso, se o concedente não atenderos pedidos de componentes, o concessionário ficará desobrigado do índicede fidelidade, na proporção do desatendimento verificado. Emcontrapartida, o concedente poderá exigir do concessionário a manutençãode estoque proporcional à rotatividade dos produtos novos, objeto da con-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA61
Gladston Mamedecessão, e adequado à natureza dos clientes do estabelecimento, <strong>em</strong>bora respeitadaa faculdade outorgada ao concessionário de limitar seus estoques,como visto acima. Mais: se o produtor alterar ou deixar de fornecer componentes,está obrigado, pelo artigo 10, § 3 o , da Lei n. 6.729/79, a reparar oconcessionário do valor dos itens constantes do estoque por meio de suarecompra por preço atualizado à rede de distribuição ou substituição pelosucedâneo ou por outros indicados pelo concessionário, devendo a reparaçãodar-se <strong>em</strong> um ano da ocorrência do fato.O exercício da concessão, no que diz respeito ao poder de venda quese outorga ao distribuidor, é também regrado pela Lei n. 6.729/79 que, <strong>em</strong>seu artigo 12, limita a venda de veículos automotores novos diretamente aoconsumidor, vedada a comercialização para fins de revenda, excetuadas asoperações entre concessionários da mesma rede de distribuição que, <strong>em</strong> relaçãoà respectiva quota, não ultrapass<strong>em</strong> quinze por cento quanto a caminhõese dez por cento quanto aos d<strong>em</strong>ais veículos automotores, b<strong>em</strong> como asvendas que o concessionário destinar ao mercado externo. Mais do que isso,com a redação dada pela Lei n. 8.132/90, garante-se liberdade na fixação depreços para bens e serviços objeto da concessão e dela decorrentes, determinando,<strong>em</strong> acréscimo, que os valores do frete, seguro e outros encargos variáveisde r<strong>em</strong>essa da mercadoria ao concessionário e deste ao respectivoadquirente sejam discriminados, individualmente, nos documentos fiscaispertinentes. Entretanto, a marg<strong>em</strong> de comercialização do concessionário nasmercadorias objeto da concessão tenha seu percentual incluído no preço aoconsumidor. Essa liberdade de preços, no entanto, não chega ao extr<strong>em</strong>o delicenciar um tratamento não-isonômico aos distribuidores, cabendo aoconcedente, forte no artigo 13, § 2 o , s<strong>em</strong>pre da Lei n. 6.729/79, fixar o preçode venda aos concessionários, preservando sua uniformidade e condições depagamento para toda a rede de distribuição. Mais não pode fazer: é expressamentevedada, pelo parágrafo único do artigo 14, a redução pelo concedenteda marg<strong>em</strong> percentual de comercialização, salvo casos excepcionais objetode ajuste entre o produtor e sua rede de distribuição.O concessionário apresenta-se ao mercado como m<strong>em</strong>bro da rede dedistribuição do concedente e, destarte, como revendedor e prestador deserviços autorizados, razão pela qual a concessão, como estipulado pelo artigo16, compreende o resguardo de integridade da marca e dos interessescoletivos do concedente e da rede de distribuição. Dessa forma, ficam vedadas(1) a prática de atos pelos quais o concedente vincule o concessionárioa condições de subordinação econômica, jurídica ou administrativa ou estabeleçainterferência na gestão de seus negócios; (2) exigência entreconcedente e concessionário de obrigação que não tenha sido constituídapor escrito ou de garantias acima do valor e duração das obrigações contraídas;(3) diferenciação de tratamento entre concedente e concessionárioquanto aos encargos financeiros e quanto ao prazo de obrigações que sepossam equiparar.62n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaNo alusivo ao instrumento de contrato e suas cláusulas, o legisladorteve particular preocupação <strong>em</strong> definir forma e conteúdo mínimos, inscrevendo-osno artigo 20 da Lei n. 6.729/79. No que tange à forma, prescreveuobrigação de se utilizar documento escrito, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> exigir instrumentopúblico ou registro. Não há concessão, portanto, se tal formalidade não foratendida. Mais do que isso, o legislador fala <strong>em</strong> forma escrita padronizadapara cada marca, deixando claro constituir ônus do concedente (obligatio exvi legis) a elaboração de um instrumento de contrato padrão (contratoestandardizado), adotando-o <strong>em</strong> todas as concessões que celebrar. Cria-se,assim, uma hipótese legal de obrigatoriedade de contratação por adesão, oque não afasta – n<strong>em</strong> reduz, <strong>em</strong> nada – os benefícios hermenêuticos gozadospelo aderente (o distribuidor).Já no que se refere ao conteúdo, o mesmo artigo 20 determina que talcontrato padronizado referente a cada marca deverá especificar produtos,área d<strong>em</strong>arcada, distância mínima e quota de veículos automotores, b<strong>em</strong>como as condições relativas a requisitos financeiros, organização administrativae contábil, capacidade técnica, instalações, equipamentos e mãode-obraespecializada do concessionário. Em função de se tratar de um contratoestandardizado, cria-se, por via indireta, uma isonomia contratual necessáriaentre os concessionários, todos aderindo a uma mesma forma escritapadronizada para cada marca, segundo a expressão da lei. Impede-se, assim,o tratamento discriminatório entre os concessionários, ainda que por viastransversas. Essa mesma forma escrita padronizada para cada marca, portanto,traduz-se numa base normativa comum para toda a rede de distribuição, ouseja, para uma mesma categoria econômica de produtor e distribuidores,considerando-se os el<strong>em</strong>entos identificadores de mesma(s) marca(s) eclasse(s) de veículos automotores.Obviamente, essa obrigatoriedade de estandardização contratual criaum efeito e uma situação jurídicos dignos de atenção. Sob uma perspectivasincrônica (considerado o contrato <strong>em</strong> certo t<strong>em</strong>po, certo momento), háuma única forma escrita padronizada para cada marca. Mas sob uma perspectivadiacrônica, isto é, considerando-se a evolução do conteúdo normativono t<strong>em</strong>po, a inserção, supressão ou alteração de uma cláusula no contratopadrão criará distinções inevitáveis na coletividade dos contratos estabelecidospelo concedente, rompendo, de forma jurídica legítima, com a aludidaisonomia necessária entre os concessionários. Em fato, as modificações (ouinterpolações) no ajuste (na forma escrita padronizada para cada marca), conformeseu conteúdo e sua natureza jurídica, pod<strong>em</strong> não alcançar aquelesque, já estando contratados, beneficiam-se do princípio do aperfeiçoamentodo negócio (ou princípio do negócio aperfeiçoado). Cuida-se de metanormajurídica com foro constitucional (artigo 5 o , XXXVI), elevada à condição degarantia fundamental de preservação do ato jurídico perfeito. O ato jurídicoque se aperfeiçoou, legítima e juridicamente, preserva-se com aquele contorno,até diante de alterações normativas posteriores. Assim, aqueles queREVISTA OPINIÃO JURÍDICA63
Gladston Mamedenas contratações que se aperfeiçoaram anteriormente adquiriram determinadasfaculdades contratuais, têm-nas incorporadas ao respectivo patrimônioativo, podendo exigir o seu adimpl<strong>em</strong>ento e, via de conseqüência, a suamanutenção. Não havendo transação para distratar determinada obrigaçãocontratual (obligatio ex contractu, modalidade que é de obligatio ex voluntate),a alteração no contrato padrão opera-se tão somente para as futurascontratações e, destarte, não alcançará os concessionários que tenham direitoao regramento anterior.No que toca ao t<strong>em</strong>po, a concessão comercial entre produtor e distribuidorde veículos automotores será, <strong>em</strong> regra geral, de prazo indeterminando,pelo teor do artigo 21 da Lei n. 6.729/79, somente cessando nas hipóteseslistadas naquela norma. O parágrafo único deste artigo, no entanto, permiteque o contrato seja inicialmente ajustado por prazo determinado, não inferiora cinco anos, e se tornará automaticamente de prazo indeterminado se nenhumadas partes manifestar à outra a intenção de não prorrogá-lo, antes decento e oitenta dias do seu termo final e mediante notificação por escritodevidamente comprovada. Para além dessa hipótese (expiração do prazodeterminado, s<strong>em</strong> que haja prorrogação por ausência de notificaçãoresolutiva), três outras hipóteses de resolução estão inscritas no artigo seguinte,quais sejam, (1) por acordo entre as partes, (2) por força maior, (3)por iniciativa da parte inocente, <strong>em</strong> virtude de infração a dispositivo da Lein. 6.729/79, das convenções ou do próprio contrato, após aplicação de penalidadesgradativas, considerada infração também a cessação das atividadesdo contraente. Em qualquer caso de resolução contratual, garante o § 2 o doartigo 22 da Lei n. 6.729/79, as partes disporão do prazo necessário à extinçãodas suas relações e das operações do concessionário, nunca inferior a centoe vinte dias, contados da data da resolução.Havendo resolução do contrato por t<strong>em</strong>po determinado, não prorrogadopelo concedente, o artigo 23 lhe define a obrigação de (1) readquirirdo concessionário o estoque de veículos automotores e componentes novos(que deverão estar <strong>em</strong> sua <strong>em</strong>balag<strong>em</strong> original), pelo preço de venda à redede distribuição, vigente na data de reaquisição; (2) comprar do concessionárioos equipamentos, máquinas, ferramenta e instalações à concessão, pelopreço de mercado correspondente ao estado <strong>em</strong> que se encontrar<strong>em</strong> e cujaaquisição o concedente determinara ou dela tivera ciência por escrito s<strong>em</strong>lhe fazer oposição imediata e documentada, excluídos desta obrigação osimóveis pertencentes ao concessionário. Mutatis mutandis, conforme se lê doparágrafo único deste mesmo artigo 23, cabendo ao concessionário a iniciativade não prorrogar o contrato, ficará desobrigado de qualquer indenizaçãoao concedente.Já nas hipóteses de contrato de prazo indeterminado, se o concedenteder causa à rescisão do ajuste, deverá reparar o concessionário da seguinteforma: (1) readquirir-lhe o estoque de veículos automotores, impl<strong>em</strong>entos ecomponentes novos, pelo preço de venda ao consumidor, vigente na data da64n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriarescisão contratual; (2) comprar-lhe os equipamentos, máquinas, ferramentae instalações à concessão, pelo preço de mercado correspondente ao estado<strong>em</strong> que se encontrar<strong>em</strong> e cuja aquisição o concedente determinara oudela tivera ciência por escrito s<strong>em</strong> lhe fazer oposição imediata e documentada,excluídos desta obrigação os imóveis do concessionário; (3) pagar-lheperdas e danos, à razão de quatro por cento do faturamento projetado paraum período correspondente à soma de uma parte fixa de dezoito meses e umavariável de três meses por qüinqüênio de vigência da concessão, devendo aprojeção tomar por base o valor corrigido monetariamente do faturamentode bens e serviços concernentes a concessão que o concessionário tiver realizadonos dois anos anteriores à rescisão; (4) satisfazer-lhe outras reparaçõesque for<strong>em</strong> eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição.Se o concessionário der causa à rescisão do contrato, pagará aoconcedente a indenização correspondente a cinco por cento do valor totaldas mercadorias que dele tiver adquirido nos últimos quatro meses de contrato,por estipulação do artigo 26.5 CONTRATOS COLETIVOSPartindo da disciplina normativa da Lei n. 6.729/79, institui-se umsist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos, produtos e serviços automotivos, comotal compreendida a conformação obrigatória do setor mercantil automotivo.Em fato, <strong>em</strong>bora se tenha regulamentado um tipo contratual específico – ocontrato de concessão comercial de distribuição de veículos –, a lei t<strong>em</strong> porefeito mediato a submissão de todo um importante setor da economia a umamesma lógica de relacionamento entre produtores e distribuidores, uma intervençãono mercado de fornecimento que se faz para correção de distorçõesali verificadas, preservando-se não apenas o interesse dos atores desse mercado– pela garantia de um equilíbrio maior entre os partícipes –, b<strong>em</strong> comovisando o atendimento dos interesses dos consumidores, que são beneficiáriosdiretos da pulverização dos canais de distribuição de bens e serviços destesetor.Uma das características desse sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos,produtos e serviços automotivos, tal como desenhado na Lei n. 6.729/79, éa constituição de um espaço de negociação coletiva para o estabelecimentode normas aplicáveis a todo o sist<strong>em</strong>a (convenção das categorias econômicas)ou a cada categoria econômica de produtor e respectivos distribuidores (convençãode marca). Cria-se, dessa forma, um espaço privado para constituiçãode obrigações jurídicas contratuais. Ora, a obligatio ex contractu – obrigaçãoresultante de contrato –, nada mais é do que uma modalidade de obligatio exvoluntate – obrigação voluntária, cuja validade jurídica sustenta-se sobre a oprincípio da liberdade de agir jurídica e economicamente, princípio quet<strong>em</strong>, aliás, duplo foro constitucional: é fundamento do Estado D<strong>em</strong>ocráticode Direito, ex vi do artigo 1 o , IV, da Constituição da República, além de serREVISTA OPINIÃO JURÍDICA65
Gladston Mamedefundamento da ord<strong>em</strong> econômica, segundo o caput do artigo 170 da mesmaCarta, <strong>em</strong> ambas as oportunidades dividindo tal status com o valor social dotrabalho. No entanto, rompe-se com a lógica comum que orienta tais operaçõesjurídicas (os negócios ou, preferindo-se, os atos jurídicos bilaterais ouplurilaterais). A lógica comum é individual, concretizando-se na esmagadoramaioria dos casos por meio de relações diáticas (ou seja, relação para asquais concorr<strong>em</strong> apenas duas pessoas). Na hipótese dos contratos coletivos,não obstante não se afaste a bilateralidade – certo que são apenas dois póloscontratuais a engendrar as tratativas negociais (fase de formação contratual,incluindo a proposição, também chamada de oferta ou oblação), a celebraçãodo ajuste (a contratação, <strong>em</strong> sentido estrito) e a execução – não há falar<strong>em</strong> relações diáticas ou atos jurídicos diáticos, já que se está diante de umforo coletivo, no qual uma categoria, e não uma pessoa, assume um (convençãode marca) ou ambos os pólos (convenção das categorias econômicas).Os contratos ou convenções coletivas são negócios privados que fog<strong>em</strong>ao comum da qualificação kelseniana de norma individual, expressando-secomo norma coletiva. Mas não chegam a posicionar-se no mesmo patamardas leis (<strong>em</strong> sentido amplo, principiando da Constituição e alcançandonormas regulamentares, como decretos, portarias etc), pois não se t<strong>em</strong>aplicação erga omnes (a todos as pessoas, indistintamente). Justamente porisso, da convenção coletiva não derivam, diretamente (ou seja, para seusatores, para as partes convencionadas), direitos difusos, na mesma toada,mas direitos coletivos, certo que correspond<strong>em</strong> a uma coletividade determinada,<strong>em</strong>bora, no âmbito desta, alcanc<strong>em</strong>, indistintamente, o patrimônio detodos os seus componentes (permitindo ação coletiva), e simultaneamente opatrimônio de cada um desses componentes (permitindo ação individual).No seu processo constitutivo, ad<strong>em</strong>ais, essa distinção das relaçõesdiáticas se mostra ainda mais radical, não se lhe aplicando a compreensãoaugusta do princípio da autonomia da vontade. Nomós (νομος), <strong>em</strong> grego,traduz a idéia de norma, regra; autos (αυτος) corresponde à idéia de a sipróprio. Autonomia (αυτονομια), portanto, como regulamento e governopróprio. 18 No Direito Privado, traduz a vinculação necessária entre a plenaconsciência da realidade e, a partir dessa, a expressão livre, lícita e igualmenteconsciente da vontade como fundamento para a constituição de obrigaçõesque vincul<strong>em</strong> à pessoa e ao seu patrimônio. O fundamento de validadeda obligatio ex voluntate, destarte, é justamente o fato de o devedor (oobrigado) ter voluntariamente constituído, nos limites licenciados pelo Direito(conferir, a propósito, a garantia inscrita no artigo 5 o , II, da Constituiçãoda República), uma obrigação para si e executável sobre o seu patrimônio.Esta lógica – e o respectivo regime jurídico – é subvertida no planodas convenções coletivas, onde o império do arbítrio individual é substituídopelo império da vontade coletiva, forçando a constituição de um foro a partirdo qual se forme a vontade de uma categoria organizada de pessoas. Vontad<strong>em</strong>ultipessoal, portanto, cujo aferição e expressão não é – e não pode ser –66n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriafruto da discricionariedade privada de uma pessoa. Pelo contrário, a legitimidadee juridicidade da expressão coletiva da vontade vinculadora, noâmbito das convenções coletivas, estão justamente no respeito a um processode formação do consenso entre aqueles que comungam de um mesmopólo da relação negocial, ou seja, entre aqueles que participam de uma mesmacategoria.No plano específico da Lei n. 6.279/79, o artigo 17, inaugurando otratamento legislativo da matéria no âmbito do sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuiçãode veículos, produtos e serviços automotivos, estabelece que as relaçõesobjeto daquela legislação serão também reguladas por convenção que, mediantesolicitação do produtor ou de qualquer uma das entidades adianteindicadas, deverão ser celebradas com força de lei, entre (1) as categoriaseconômicas de produtores e distribuidores de veículos automotores, cadauma representada pela respectiva entidade civil ou, na falta desta, por outraentidade competente, qualquer delas s<strong>em</strong>pre de âmbito nacional, designadasconvenções das categorias econômicas; ou (2) cada produtor e a respectivarede de distribuição, esta através da entidade civil de âmbito nacional quea represente, designadas convenções da marca.Está assim desenhada, portanto, a figura de uma convenção coletivacivil, versão que no Direito Privado exibe qualidades genéticas afins com aconvenção coletiva laboral, cujo <strong>em</strong>prego e exercício encontra-se diss<strong>em</strong>inadono âmbito do Direito do Trabalho. Mais do que isso, a leitura atenta dodispositivo deixa mesmo claro que não só se estabeleceu <strong>em</strong> lei um paraleloentre os institutos privado e laboral da convenção coletiva, mas que tambémse previu outra figura de existência <strong>em</strong> paralelo no sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuiçãode veículos, produtos e serviços automotivos: o dissídio coletivo. Afirmooconsiderando exclusivamente o texto legal, no qual destaco a frase convençãoque, mediante solicitação do produtor ou de qualquer uma das entidadesadiante indicadas, deverão ser celebradas com força de lei, inscrita no artigo 17da Lei n. 6.729/79. A solicitação do produtor ou da entidade representativa,portanto, cria uma situação de dissídio; não se trata, nos moldes da teoria daformação dos contratos, de um convite a negociar/contratar, o que permitiriarecusa. O legislador, <strong>em</strong> contraste, criou um elo entre a solicitação e aobrigatoriedade do convencionamento: deverão ser celebradas, diz.Esta posição sustenta-se, ad<strong>em</strong>ais, por exegese sist<strong>em</strong>ática e teleológica,levando-se <strong>em</strong> conta a própria finalidade da convenção coletiva, como seafere do artigo 18 da Lei n. 6.729/79: (1) explicitar princípios e normas deinteresse dos produtores e distribuidores de veículos automotores; (2) declarara entidade civil representativa de rede de distribuição; (3) resolver, pordecisão arbitral, as questões que lhe for<strong>em</strong> submetidas pelo produtor e aentidade representativa da respectiva rede de distribuição; (4) disciplinar,por juízo declaratório, assuntos pertinentes às convenções da marca, por solicitaçãode produtor ou entidade representativa da respectiva rede de distribuição.Emenda o artigo 19, logo adiante: serão celebradas convenções daREVISTA OPINIÃO JURÍDICA67
Gladston Mamed<strong>em</strong>arca para estabelecer normas e procedimentos relativos a: (1) atendimentode veículos automotores <strong>em</strong> garantia ou revisão, conforme determinação,aliás, do artigo 3º, inciso II, da própria Lei n. 6.729/79; (2) uso gratuito damarca do concedente, igualmente atendendo a previsão do artigo 3º, incisoIII, daquela mesma lei; (3) inclusão na concessão de produtos lançados nasua vigência e modalidades auxiliares de venda, atendendo, assim, ao estabelecidono artigo 3º § 2º, a, e § 3º; (4) comercialização de outros bens eprestação de outros serviços, atendendo à norma do artigo 4 o , parágrafo único;(5) fixação de área d<strong>em</strong>arcada e distâncias mínimas, abertura de filiais eoutros estabelecimentos, à sombra do artigo 5º, incisos I e II; § 4º; (6) vendade componentes <strong>em</strong> área d<strong>em</strong>arcada diversa, conforme artigo 5º, § 3º; (7)novas concessões e condições de mercado para sua contratação ou extinçãode concessão existente (artigo 6º, incisos I e II); (8) quota de veículosautomotores, reajustes anuais, ajustamentos cabíveis, abrangência quanto amodalidades auxiliares de venda (artigo 7º, §§ 1º, 2º, 3º e 4º) e incidênciade vendas diretas (artigo 15, § 2º); (9) pedidos e fornecimentos de mercadoria(artigo 9º); (10) estoques do concessionário (artigo 10, caput e §§ 1º e2º); (11) alteração de época de pagamento (artigo 11); (12) cobrança deencargos sobre o preço da mercadoria (artigo 13, parágrafo único); (14)marg<strong>em</strong> de comercialização, inclusive quanto a sua alteração <strong>em</strong> casos excepcionais(artigo 14, caput e parágrafo único), seu percentual atribuído aconcessionário de domicílio do comprador (artigo 5º, § 2º); (14) vendasdiretas, com especificação de compradores especiais, limites das vendas peloconcedente s<strong>em</strong> mediação de concessionário, atribuição de faculdade a concessionáriospara venda à Administração Pública e ao Corpo Diplomático,caracterização de frotistas de veículos automotores, valor de marg<strong>em</strong> decomercialização e de contraprestação de revisões, d<strong>em</strong>ais regras de procedimento(artigo 15, § 1º); (15) regime de penalidades gradativas (artigo 22, §1º); (16) especificação de outras reparações (artigo 24, inciso IV); (17)contratações para prestação de assistência técnica e comercialização de componentes(artigo 28); (18) outras matérias previstas na Lei n. 6.729/79 e asque as partes julgar<strong>em</strong> de interesse comum.A gravidade deste rol deixa claro que a compreensão de um dissídio civilé interpretação perfeitamente conforme ao espírito da Lei n. 6.729/79. A solicitaçãodo produtor ou da entidade representativa convoca a contraparte para adiscussão e o estabelecimento de normas convencionais, na medida exata <strong>em</strong>que tais normas compõ<strong>em</strong>, necessariamente (ex vi legis) a relação jurídica entreas partes, seja no comum do sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos, produtos eserviços automotivos, o que se fará por meio de convenção das categorias econômicas,seja no especial de cada categoria econômica de produtor e distribuidores,considerando-se os el<strong>em</strong>entos identificadores de mesma(s) marca(s) e classe(s)de veículos automotores, o que se fará por meio de convenção de marca.Outro dispositivo que d<strong>em</strong>onstra a importância de tais convenções eindica como adequada a interpretação da possibilidade do dissídio coletivo68n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriacivil, no âmbito do sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos, produtos e serviçosautomotivos, é o § 1 o do artigo 17 da Lei n. 6.729/79 que, certamentereconhecendo a importância da convenção, estatui que qualquer dos signatáriosdos atos referidos neste artigo poderá proceder ao seu registro no Cartóriocompetente do Distrito Federal e à sua publicação no Diário Oficial daUnião, a fim de valer<strong>em</strong> contra terceiros <strong>em</strong> todo território nacional.A análise dessa dimensão normativa privada, <strong>em</strong>bora coletiva, impõeum arr<strong>em</strong>ate obrigatório, qual seja a ênfase na limitação legal do arbítrioprivado. Essencialmente, as partes, mesmo no âmbito dos contratos coletivos,estão limitadas pelas normas jurídicas estatais, assentadas sobre o pilarda soberania nacional, que é fundamento do Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito,como se afere do artigo 1 o , I, da Carta Política de 1988. Portanto, só sepode convencionar no espaço <strong>em</strong> que não se contrari<strong>em</strong> a Constituição e asleis. Não é só. A interpretação das convenções, individuais ou, como nocaso, coletivas deve concretizar-se tendo as normas públicas como referênciaobrigatória. Dessa forma, os princípios jurídicos e hermenêuticos queorientam as normas estatais são os mesmos princípios que orientam – e dev<strong>em</strong>orientar – a redação, a interpretação e a aplicação das normas privadas.Se assim não é, há uma inaceitável subversão jurídica.6 PADRÃO HERMENÊUTICOA coexistência <strong>em</strong> sociedade implica regras, que pod<strong>em</strong> ser el<strong>em</strong>entaresou não, estando presentes <strong>em</strong> todas as sociedades humanas, havendomesmo registro de formas de regramento comportamental, ainda queincipientes, <strong>em</strong> sociedades animais. 19 Esta onipresença jurídica, aliás, já forareconhecida pelos juristas romanos e inscrita na máxima ubi homo ibi societas,ubi societas ibi ius; ergo, ubi homo ibi ius [onde há ser humano, há sociedade,onde há sociedade, há Direito; logo, onde há ser humano, há Direito]. Partindodas formas el<strong>em</strong>entares de regramento social, esses conjuntos normativosforam evoluindo com a própria sociedade, merecendo destaque nesse percursoa chamada invenção da cidade – no sentido de cidade-Estado –, <strong>em</strong>algum ponto entre os IV e III milênios a.C, pelos sumérios, 20 o que ocorreuna região que os gregos chamaram de Mesopotâmia (Måóïðïôáìßá, terra domeio, entre dois rios: Tigre e Eufrates), hoje Iraque.Ao longo dessa evolução jurídica da sociedade, firmou-se a idéia deque é função do Direito engendrar intervenções corretivas nas relações sociais,nomeadamente naquelas de caráter econômico. Essa intervenção justifica-setanto pela necessidade de manutenção de uma ord<strong>em</strong> mínima nasrelações, essencial para otimizá-las, garantindo condições para o desenvolvimentomaterial e humano, mas igualmente para impedir que concentraçõesabruptas de força criass<strong>em</strong> situações desestabilizadoras que, <strong>em</strong> curto, médioou longo prazo, poderiam degradar a existência social.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA69
Gladston MamedeA essência da técnica do Estado passa, obrigatoriamente, pelacontradição imanente entre os ideais da liberdade e daigualdade: utopicamente, a liberdade individual (e, porconseqüência, da <strong>em</strong>presa) é um b<strong>em</strong> sagrado, a que todosaspiramos; socialmente, porém, o sentido da igualdade prevalece(todos os homens nasc<strong>em</strong> iguais, a sociedade é que os fazdiferentes, segundo, equivocadamente, ensinava Jean-JacquesRousseau). A liberdade total, s<strong>em</strong> limites, leva ao regime daforça, <strong>em</strong> que o mais forte domina, submete e explora o maisfraco. A razão de ser do Estado, como mediador, através doordenamento jurídico, há de impor limites à liberdade, para quepossam sobreviver os ideais da igualdade. Cabe ao Estado assegurara justiça social. 21Os cânones, <strong>em</strong>bora sejam limites, sejam padrões, não se opõ<strong>em</strong> àidéia de liberdade <strong>em</strong> sociedade, mas garant<strong>em</strong>-na, na medida <strong>em</strong> que imped<strong>em</strong>a sua descaracterização <strong>em</strong> arbítrio. Daí falar Galvêas <strong>em</strong> “limitar opoder que a liberdade confere ao mais forte, para alcançar e preservar osideais da igualdade”, donde conclui: “É dever do Estado proteger o maisfraco contra o mais forte. A livre competição no mercado t<strong>em</strong> que, necessariamente,levar <strong>em</strong> conta os dois conceitos básicos da liberdade e da igualdade.”22Não se trata de qualquer inovação, friso, mas de reiteração de umapercepção vetusta que, de resto, resume aos primeiros momentos jurídicosda humanidade, o que é d<strong>em</strong>onstrado pelos registros historiográficos maisantigos de que se t<strong>em</strong> notícia. Por volta de 2.400 a.C., Ur-Uinim-Enmgina ou,como se disse no passado, Urukagina, soberano (ensi) de Lagash 23 , inicia umconjunto de reformas, 24 todas narradas <strong>em</strong> documento que chegou até nós.Num primeiro momento, são narrados os abusos que precederam seu reinadoe na segunda os editos que promulgou para r<strong>em</strong>ediar os males vividos pelasociedade. Entre as medidas narradas, listam-se diversas que visam eliminarabusos cometidos por credores contra devedores, além da produção dos operários(se um pobre constrói um tanque, seu peixe não lhe será retirado); arr<strong>em</strong>atao documento: Ur-Uinim-Enmgina baniu dos habitantes de Lagash tudo o queera usura, monopólio, fome, roubos e assaltos e instaurou-lhes a liberdade. 25 Éapenas um ex<strong>em</strong>plo; a mesma preocupação de intervenção estatal no domínioprivado, a fim de evitar abusos e corrigir distorções, está presente nosmais antigos registros legais que se t<strong>em</strong> notícia: as Leis de Ur-Nammu (c.2.050 a.C.), as Leis de Lipt-Ishtar (c. 1930 a.C.), as Leis de Eshnunna (c. 1790a.C.) e as Leis de Hamurabi (c. 1.750 a.C).Em todos esses registros historiográficos, percebe-se um mesmo valor(ou axioma) jurídico: a constatação de que as relações jurídicas pod<strong>em</strong> concretizar-serevelando um desequilíbrio extr<strong>em</strong>ado entre as partes e, via deconseqüência, a sujeição de um pólo (hipossuficiente) ao outro70n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionária(hipersuficiente), de uma pessoa – ou classe de pessoas – a outra (pessoa ouclasse de pessoas). No Direito Romano, por ex<strong>em</strong>plo, falava-se <strong>em</strong> humiliores(hipossuficiente) ou potentiores (hipersuficiente), adotando-se medidas deintervenção corretiva na relação entre ambos, do que é grande ex<strong>em</strong>plo oinstituto da laesio enormis que, no direito brasileiro, inscreve-se na ParteGeral do Código Civil sob o título singelo de lesão, um dos defeitos do atojurídico. 26No âmbito da presente análise, importa observar que a edição da Lein. 6.729/79, b<strong>em</strong> como a sua manutenção no ordenamento jurídico pátrio,expressa-se exatamente como uma intervenção pública no domínio privado,intervenção de todo corretiva, fundada na percepção da sujeição dos distribuidoresaos produtores de veículos automotores de via terrestre.Assim como nos Estados Unidos e na Europa, o relacionamentoentre montadoras e suas respectivas redes de concessionárias noBrasil é marcado pelo conflito (MAIA, 2000; ARBIX; VEIGA,2001). As montadoras impõ<strong>em</strong> certas condições no tocante aocumprimento de cotas de veículos, compra mínima de peças,estrutura física, ferramental de oficina etc. 27Nesta toada, a instituição de uma regulamentação legal para o sist<strong>em</strong>abrasileiro de distribuição de veículos, produtos e serviços automotivos, com a ediçãoda Lei n. 6.729/79, compreende-se como uma intervenção estatal nodomínio privado, concretizada por meio da tipificação do contrato de concessãode distribuição de veículos automotores para, conseqüent<strong>em</strong>ente, reduzir oespaço do arbítrio privado e, assim, determinar regras legais de observânciaobrigatória. Mais do que isso: t<strong>em</strong>-se uma tipificação que se construiu e sesustenta como norma protetiva dos concessionários, o que fica claro de diversaspassagens legais: artigo 3 o , § 2 o (garante que produtos lançados peloconcedente ficam automaticamente incluídos na concessão, se for<strong>em</strong> damesma classe daqueles compreendidos no contrato); artigo 3 o , § 2 o (dá preferênciaao concessionário para comerciar produtos lançados pelo concedenteque sejam de classe diversa daqueles incluídos na concessão, desde queatenda às condições prescritas pelo concedente para esse fim); artigo 3 o , § 3 o(faculta ao concessionário participar das modalidades auxiliares de vendaque o concedente promover ou adotar, tais como consórcios, sorteios, arrendamentosmercantis e planos de financiamento); artigo 4 o , III (garante expressamenteo direito de comercializar veículos usados de qualquer marca);artigo 5 o , § 4 o (garante ressarcimento da concessionária ou serviço autorizadoque prestar serviços obrigatórios de manutenção pela garantia do fabricante,vedando qualquer disposição de limite geográfico para tanto); artigo6 o , II (garante que a contratação de nova concessão não poderá estabelecercondições que de algum modo prejudiqu<strong>em</strong> os concessionários da marca);artigo 7 o , § 2 o (garante a revisão anual da quota de veículos devida ao concessionário,levando-se <strong>em</strong> conta mesmo a rotatividade dos estoques do con-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA71
Gladston Mamedecessionário); artigo 9 o , § 2 o (o concedente deverá atender aos pedidos noprazo fixado e, se não o fizer, poderá o concessionário cancelá-los); artigo 9 o ,§ 3 o (desobriga o concessionário do índice de fidelidade se o concedentenão atender os pedidos de componentes, o que se dará na proporção dodesatendimento verificado); artigo 10, § 3 o (determina que o concedenterepare o concessionário do valor do estoque de componentes que alterar oudeixar de fornecer, além de determinar que tal reparação dê-se <strong>em</strong> um anoda ocorrência do fato); artigo 11 (veda que o pagamento do preço das mercadoriasfornecidas pelo concedente preceda o seu faturamento, salvo ajustediverso entre o concedente e sua rede de distribuição; se preceder, oparágrafo único dispõe que a saída se dará até o sexto dia subseqüente aopagamento); artigo 14, parágrafo único (veda a redução, pelo concedente,da marg<strong>em</strong> percentual de comercialização do concessionário, salvo casosexcepcionais objeto de ajuste entre o produtor e sua rede de distribuição);artigo 16, I (veda a prática de atos pelos quais o concedente vincule o concessionárioa condições de subordinação econômica, jurídica ou administrativaou estabeleça interferência na gestão de seus negócios); artigo 16, II(veda que o concedente exija do concessionário obrigação que não tenhasido constituída por escrito ou de garantias acima do valor e duração dasobrigações contraídas); artigo 16, III (veda o estabelecimento de diferenciaçãode tratamento entre concedente e concessionário quanto a encargosfinanceiros e quanto a prazo de obrigações que se possam equiparar); artigo23 (prevê uma ampla obrigação reparatória, incluindo reaquisição de estoquee compra de instalações, maquinário e instrumental, se o concedentenão prorrogar o contrato ajustado por prazo certo; o parágrafo único exime oconcessionário que não aceita tal prorrogação de qualquer indenização aoconcedente); artigo 24 (estabelece a indenização que é devida peloconcedente ao concessionário na hipótese de dar causa à rescisão do contratode prazo indeterminado; <strong>em</strong> contraste, o artigo 26 limita – e muito – aindenização devida pelo concessionário, na hipótese contrária).Esta vastíssima gama de disposições protetivas do concessionário deixaclaro haver um padrão jurídico para a resolução de conflitos entre produtores edistribuidores, e esse padrão – ou paradigma – é a proteção do concessionário.Conseqüent<strong>em</strong>ente, também na interpretação das normas jurídicas inscritas naLei n. 6.729/79, e mesmo na colmatação de lacunas que sejam identificadas,deve-se buscar uma interpretação favorável à parte hipossuficiente, vale dizer,uma interpretação favorável ao concessionário, cumprindo-se a missão reconhecidae assumida pelo legislador (pelo Estado, enfim) de corrigir as distorçõesverificadas no setor, motivadas por uma brutal distinção de forças.7 CANAIS DE DISTRIBUIÇÃOA instituição de uma política estatal protetiva para o setor automobilísticoe, via de conseqüência, de um sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veícu-72n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionárialos, produtos e serviços automotivos assenta-se sobre uma percepção jurídicade um fenômeno mercadológico óbvio: não basta fabricar, é preciso vender.Vender pode ser algo muito simples: muitos fabricantes de bijuterias vend<strong>em</strong>-nasna mesma calçada <strong>em</strong> que as produz<strong>em</strong>. Mas torna-se algo maiscomplexo no âmbito de grandes operações <strong>em</strong>presariais, onde a produçãositua-se num determinado lugar e a distribuição deve expandir-se por diversosoutros pontos. Num país com dimensões continentais, é ainda maior odesafio de <strong>em</strong>presas que, como a indústria automotiva, trabalh<strong>em</strong> visandotodo o mercado nacional.A história das concessionárias de automóveis no Brasil se confundecom o surgimento da própria indústria automobilística. Essasorganizações já des<strong>em</strong>penhavam o papel de distribuidores deautomóveis na forma de agentes credenciados pelas montadoras,a partir da importação das primeiras unidades para o país. 28Nesse sentido, <strong>em</strong> seus estudos sobre o mercado automobilístico brasileiro,Grande destaca que, uma vez superada a fase <strong>em</strong> que os produtores sevoltam para o montante da cadeia, “buscando o desenvolvimento de fornecedores,com o objetivo de obter redução de custos e qualidade para oscomponentes e serviços necessários para a consecução da produção”, perceb<strong>em</strong>que “as atividades a jusante da cadeia” ficam <strong>em</strong> segundo plano, sendoforçados, pelo aumento da produtividade, a dar “grande atenção às questõesrelativas à distribuição de bens e serviços, especialmente à escolha e gestãodos canais de distribuição.” 29 Las Casas não pensa diferente:Produtos são muitas vezes fabricados <strong>em</strong> determinadas épocas econsumidos <strong>em</strong> outras. Os intermediários facilitam a distribuição,tornando-a mais homogênea ou então permit<strong>em</strong> que os produtoschegu<strong>em</strong> ao consumidor na época que dele necessitam. Estesbenefícios, ou utilidades, relacionam-se com o t<strong>em</strong>po.Intermediários pod<strong>em</strong> aumentar a eficiência da troca mesmoquando os consumidores estão localizados <strong>em</strong> comunidadesseparadas. Este benefício é a utilidade do lugar que permite acomercialização entre fornecedores e consumidoresdistanciados. 30Cite-se, ad<strong>em</strong>ais, Grande, autora que principia o tratamento dos canaisde distribuição a partir da conceituação de Stern, El-Ansary e Coughlan:“um conjunto de organizações interdependentes envolvidas no processo detornar os produtos e serviços disponíveis para o consumo ou uso.” Ela destacaque as funções dos canais distributivos “vão além de colocar os produtos eserviços no lugar certo com quantidade, qualidade e preço adequados parasatisfazer uma d<strong>em</strong>anda existente. Eles dev<strong>em</strong> também estimular a d<strong>em</strong>andarealizando atividades promocionais.” Assim, destaca, “Stern, El-Ansary eCoughlan (1996), Kotler (2000) e Churchill e Peter (2000), Bowersox e CooperREVISTA OPINIÃO JURÍDICA73
Gladston Mamede(1992) advogam que o uso de intermediários no processo de distribuição éjustificado por razões econômicas, pois através de suas especializações, contatose escala de operações, os intermediários oferec<strong>em</strong> aos produtores vantagensque eles não poderiam conseguir sozinhos.” Entre os motivos apontadospor esses autores, e citados por Grande, estão: (1) aumento da eficiênciado processo de troca através da redução do número de transações; (2) reduçãoda distância entre a variedade de mercadorias e serviços oferecida pelofabricante (grande quantidade e baixa variedade) e a d<strong>em</strong>anda dos consumidores(quantidade limitada e grande variedade); (3) rotinização da transação:refere-se à escolha de conjunto de agentes e estabelecimento de relacionamentosde longo prazo, o que permite a construção de um históricode transações, com base <strong>em</strong> normas pré-estabelecidas, evitando a necessidadede negociações a cada nova transação, o que pode reduzir os custos dedistribuição; (4) facilitação do processo de busca: o processo de busca envolveincertezas porque os produtores não estão certos das necessidades dosconsumidores e estes, por sua vez, não têm certeza de que vão encontrar oque desejam. Assim, atacadistas e varejistas se organizam <strong>em</strong> segmentos comodrogarias, supermercados etc., e os produtos pod<strong>em</strong> ser encontrados <strong>em</strong> váriospontos de vendas; (5) especialização: cada agente do canal pode des<strong>em</strong>penhartarefas específicas a um custo unitário menor <strong>em</strong> função da economiade escala alcançada e, assim, obter uma maior eficiência na performancedo canal como um todo. 31Os distribuidores, popularmente chamados de concessionárias de veículos,cumpriram esse papel ao longo de décadas no país e, quando da ediçãoda Lei n. 6.729/79, seu papel e sua atuação já estavam definitivamente assimiladosno imaginário social. A imag<strong>em</strong> do grande salão onde carros novosestão constant<strong>em</strong>ente expostos, na mesma cidade da montadora ou a centenasou milhares de quilômetros de distância polvilha a m<strong>em</strong>ória de todobrasileiro. Nas rodovias, enormes placas (outdoors) anunciam, cidade a cidade,que o proprietário de veículo desta ou daquela marca pode ficar tranqüilo,pois há ali um serviço autorizado para vender-lhe peças ou prestar-lheserviços especializados. Pessoas que sonham <strong>em</strong> adquirir certo veículo, mesmoque ainda não tenham economia suficiente para tal, dirig<strong>em</strong>-se ao concessionáriopara vê-lo, namorando-o <strong>em</strong> constantes visitas, s<strong>em</strong>pre encontrandoum vendedor que, ostentando um sorriso aberto, lhe responde àsdúvidas, da mesma forma que o faz para aficionados por veículos que encontramna autorizada um lugar para o seu culto. Essa multiplicação de contatosé extr<strong>em</strong>amente valiosa e somente é possível, para a indústria automobilística,pelo recurso a uma rede de distribuição.Uma das vantagens que o varejista proporciona é uma reduçãodo número de contatos. Isto representa uma redução dos custosdos fabricantes ou atacadistas que teriam de assumir os custosdeste tipo de distribuição caso não houvesse estes intermediários.Ao transferir funções mercadológicas, a <strong>em</strong>presa obtém vantagens74n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaporque permite que o fabricante se dedique mais ao seu objetivoprincipal de fabricação, ao mesmo t<strong>em</strong>po que cria umaespecialização por parte dos varejistas por exercer<strong>em</strong> eespecializar<strong>em</strong>-se neste tipo de atividade, o que certamenteproporciona redução nos custos operacionais da <strong>em</strong>presa <strong>em</strong>decorrência dessa especialização. 32Não há qualquer dúvida, mesmo para o senso comum, não-técnico,que os distribuidores prestaram e prestam um serviço inestimável para a indústriaautomobilística no Brasil. O concessionário assume a função e oscustos de ser a face da indústria (ou da marca) <strong>em</strong> determinada região. Amultiplicação de distribuidores, por seu turno, traduz uma aproximação doprodutor do mercado consumidor. Nesse sentido, a rede de concessionáriosoferece para o consumidor de veículos um b<strong>em</strong> de valor inestimável: comodidade.Ouça-se McMath e Forbes, que por 30 anos assessorou grandes <strong>em</strong>presasno lançamento de novos produtos no competitivo mercado norte-americanoe dali para o resto do mundo: “Se o consumidor tiver de escolherentre o que é politicamente correto e o que é cômodo, este último ganhará90% das vezes. Embora as pessoas louv<strong>em</strong> da boca para fora o meio ambiente,pagarão um prêmio para um produto que torne suas vidas mais fáceis.” 33Não é só. As <strong>em</strong>presas concessionárias des<strong>em</strong>penham papel fundamentalna gestão de relacionamento com o cliente (customer relationshipmanag<strong>em</strong>ent – CRM), vale dizer, nos esforços de fidelização de uma clientelaque, na avaliação positiva da marca de produtos automotivos, o consumidorleva <strong>em</strong> consideração não apenas o produto <strong>em</strong> si – o veículo, por todos osseus aspectos (desenho – ou, preferindo-se, design –, mecânica, acabamentoetc) –, mas, igualmente, as facilidades de relacionamento com a montadora,para a solução de probl<strong>em</strong>as habituais, como manutenção, compra de acessóriosetc. Ora, “clientes fiéis tend<strong>em</strong> a ser mais conscientes dos benefíciosindiretos que sua marca oferece. É fato comprovado que uma maiorconscientização dos benefícios indiretos gera um impacto positivo na retençãoe no total de negócios de cada cliente.” 34 Essa é uma vantag<strong>em</strong> diretaexperimentada pelas montadoras na atuação de suas concessionárias, certoque a atuação da indústria faz-se num plano macroscópico, ou seja, é atuação<strong>em</strong> atacado, voltada para o mercado como um todo e não para cadaconsumidor <strong>em</strong> especial. Em oposição, seus concessionários entregam-se auma atuação microscópica, isto é, atuação no varejo, interessado a interessado,cliente a cliente. Ora, <strong>em</strong>bora s<strong>em</strong> r<strong>em</strong>unerar os concessionários porisso, as montadoras enriquec<strong>em</strong>-se com tais benefícios indiretos, bastandorecordar que a mercadologia já trabalha, há muito, com o conceito de customerlifetime value ou, simplesmente, lifetime value – LTV, entre nós traduzido comovalor vitalício ou valor real, e que traduz uma quantificação do benefício geradopela fidelidade de seus clientes, permitindo uma projeção de lucro futuropara a companhia, resultado desse retorno do cliente aos seus balcões.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA75
Gladston MamedeA assunção desses ônus <strong>em</strong>presariais, no âmbito do contrato de concessãocomercial de distribuição de veículos faz-se como benefício indiretodo produtor, que, destarte, beneficia-se da atuação de cada um de seusdistribuidores. Não o faz<strong>em</strong>, obviamente, s<strong>em</strong> razão de ser, mas imbuídospelos reflexos positivos de seu trabalho no âmbito de sua própria atividade.O concessionário trabalha a sua freguesia – e na sua freguesia –, nisto atuandoa b<strong>em</strong> de toda a rede e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a b<strong>em</strong> do distribuidor. Fáloa b<strong>em</strong> de si, na medida <strong>em</strong> que lhe foi transferida, pelo concedente, umavantag<strong>em</strong> de mercado específica: o direito de atuação <strong>em</strong>presária <strong>em</strong> determinadaárea mercantil. A percepção desta particularidade conduz o juristaà solução do probl<strong>em</strong>a que está sub examine neste estudo: o estabelecimentode políticas concorrenciais entre concedente e concessionário, ou seja, oestabelecimento de uma concorrência vertical, que não se dá entre concessionários,mas entre concedente e concessionário, fugindo ao princípio dalivre concorrência justamente <strong>em</strong> virtude da condição pessoal de cada umdesses atores mercantis.8 CESSÃO ONEROSA DE VANTAGEM MERCANTILComo d<strong>em</strong>onstrado na seção 3 deste artigo, o contrato de concessãocomercial de distribuição de veículos, <strong>em</strong>bora seja uma espécie do gênero contratode distribuição, avizinha-se muito do contrato de franquia <strong>em</strong>presarial(franchising), o que, aliás, é reconhecido tanto pelos autores que cuidam dafranquia <strong>em</strong>presarial, l<strong>em</strong>brando entre os precedentes do instituto a políticade distribuição adotada pela General Motors, no ano de 1889, utilizando deum processo de autorização do uso da marca e de distribuição dos produtoscomo forma de expansão dos negócios, 35 assim como pelos autores que abordamespecificamente o sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos, produtos eserviços automotivos. 36T<strong>em</strong>-se aqui um aspecto essencial da concessão comercial: <strong>em</strong>boraseu objeto específico seja a comercialização de veículos automotores,impl<strong>em</strong>entos e componentes novos, assistência técnica a esses produtos eoutras funções pertinentes à atividade, o direito de exercício de tal atividadefaz-se como vantag<strong>em</strong> (benefício) de mercado, isto é, como goodwill oftrade, usando a expressão norte-americana que já se consagrou para o t<strong>em</strong>a.Vale dizer, o direito àquela comercialização é el<strong>em</strong>ento que compõe o aviamento(avviamento, na doutrina italiana) da <strong>em</strong>presa, constituindo um el<strong>em</strong>entointangível que adere ao seu valor mercantil e, mais do que isso, mereceproteção jurídica.O conceito de fundo de comércio foi superado com o abandono, pelovigente Código Civil, da Teoria do Ato de Comércio e a adoção da Teoria daEmpresa. A idéia de fonds de commerce (fundos de comércio ou, como sepreferiu no Brasil, fundo de comércio) surge no direito francês, sob o predomínioda Teoria do Ato de Comércio. Em oposição, o direito italiano, expri-76n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriamindo a Teoria da Empresa, prefere a idéia de avviamento (aviamento, <strong>em</strong>português). A razão dessa conversão é muito simples: não se deve confundiro sujeito (<strong>em</strong>presário ou sociedade <strong>em</strong>presária) com o objeto (a <strong>em</strong>presa). E,no âmbito do vigente Direito Privado, é a <strong>em</strong>presa este somatório de umcomplexo de bens organizado (estabelecimento) e da atividade que é exercida,na qual se espera a manifestação de uma excelência. É essa excelência quedá a uma certa <strong>em</strong>presa vantag<strong>em</strong> sobre a outra, mesmo sendo iguais os seusrespectivos patrimônios. O aviamento é justamente esse el<strong>em</strong>entoorganizacional, imaterial, intangível, que justifica um sobre-valor para a<strong>em</strong>presa, uma capacidade de produzir mais vantagens econômicas e, via deconseqüência, mais lucro. Daí dizer a doutrina anglo-saxônica de um vantag<strong>em</strong>(benefício) de mercado: goodwill of trade.Nenhuma confusão pode haver entre esta dimensão dinâmica, intangível,da <strong>em</strong>presa (este capital intelectual, diz<strong>em</strong> os teóricos da administração<strong>em</strong>presarial e da mercadologia) e a sua dimensão material, tangível, que é oestabelecimento, na forma do artigo 1.142 do Código Civil: “Considera-seestabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da <strong>em</strong>presa,por <strong>em</strong>presário, ou por sociedade <strong>em</strong>presária.” A idéia de fundo decomércio, nos moldes apresentados pela doutrina até 2002, é superada com aadoção da Teoria da Empresa pelo vigente Código Civil. Em fato, é a <strong>em</strong>presa,essa atividade organizada para a produção de vantag<strong>em</strong> financeira que éconstituída sobre o estabelecimento <strong>em</strong>presarial. A <strong>em</strong>presa é o somatóriode estabelecimento e atividade. Aliás, a diferenciação entre o sujeito (<strong>em</strong>presárioou sociedade <strong>em</strong>presária) e o objeto (a <strong>em</strong>presa), b<strong>em</strong> como a diferenciaçãoentre <strong>em</strong>presa e estabelecimento, ficam extr<strong>em</strong>amente claras coma edição da Lei n. 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação de Empresas).Esta norma teve por objetivo a preservação da <strong>em</strong>presa, mesmo apesar do<strong>em</strong>presário ou sociedade <strong>em</strong>presária. Destarte, permite que o estabelecimento<strong>em</strong>presarial <strong>em</strong> funcionamento (a <strong>em</strong>presa, portanto) seja transferidoa outr<strong>em</strong> que, destarte, manterá seu funcionamento e, com ele, atenderá àrespectiva função social, ficando o ex-titular (<strong>em</strong>presário ou sociedade <strong>em</strong>presáriafalido ou <strong>em</strong> recuperação judicial) com o respectivo passivo.Na hipótese focada, a concessão <strong>em</strong> si (ou, como se diz <strong>em</strong> algumasregiões do país, a bandeira) é uma vantag<strong>em</strong> (benefício) de mercado fruto docontrato de concessão comercial de distribuição de veículos, na qual ocupa adupla condição de (1) prestação devida pelo concedente e (2) vantag<strong>em</strong>auferida pelo concessionário que se incorpora ao seu patrimônio intangível,passando a compor o aviamento da <strong>em</strong>presa. Dessa maneira, t<strong>em</strong>-se claroque a preservação da vantag<strong>em</strong>, por comportamentos comissivos (atos defazer) e omissivos (atos de não-fazer, isto é, abstenções voluntárias de ação),é uma obrigação jurídica do distribuidor/concedente (obligatio ex contractu),na mesma toada e proporção que é, para o concessionário, uma faculdade.Ações ou omissões do distribuidor que atent<strong>em</strong> contra essa vantag<strong>em</strong> (benefício)de mercado, constitu<strong>em</strong> atos ilícitos, não importa se concretizadosREVISTA OPINIÃO JURÍDICA77
Gladston Mamedepor dolo ou culpa (nas modalidades de imprudência ou negligência), aplicadoo artigo 186 do Código Civil, sendo alcançadas, igualmente, por força doartigo 187 do mesmo Codex, os casos de abuso de direito. Por todas essassituações, di-lo o artigo 927 do mesmo estatuto civil, o concedente/produtorestará obrigado a indenizar os prejuízos experimentados pelo concessionário/distribuidor.9 CONCORRÊNCIA ENTRE DISTRIBUIDOR E PRODUTORO estabelecimento de concorrência entre concedente e concessionárioé um ato ilícito que atenta contra a faculdade outorgada por aquele (oprodutor) a este (o distribuidor) de incorporar ao aviamento de sua atividadenegocial uma vantag<strong>em</strong> específica de mercado, qual seja a concessãopara atuar <strong>em</strong> determinada área. Não se tenha dúvida, aqui, tratar-se deuma questão de competição e, portanto, de um probl<strong>em</strong>a de DireitoConcorrencial. Num brilhante estudo sobre distribuição de automóveis novos,Grande – lançando mão dos estudos elaborados por autores como Kumar,Stern, El-Ansary, Goughlan, Anderson, Day e Rangan – narra uma “mudançagradativa do foco de poder dentro dos canais de distribuição. Lentamenteo poder está saindo das mãos dos fabricantes e migrando para os varejistas.”Trata-se de uma tendência “que v<strong>em</strong> ocorrendo no varejo <strong>em</strong> geral e a<strong>em</strong>ergência dos mercados de massa têm colocado os varejistas como condutoresdo processo.” Neste contexto, afirmam autores como Stern, El-Ansarye Coughlan, citados por Grande, o interesse dos produtores por “novas estruturasde canais, b<strong>em</strong> como por novas formas de gestão dos canais de distribuição”,a ex<strong>em</strong>plo do encurtamento dos canais distribuidores pela vendadireta de produtos, “assumindo uma função antes relegada aos seus distribuidores”,como uma forma de redefinir, a seu favor, o foco de poder nomercado. 37Não se trata apenas de concorrência ilícita, <strong>em</strong> virtude da situaçãonegocial específica havida entre as partes, tendo <strong>em</strong> vista as bases legais dosist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos, produtos e serviços automotivos, comoestudado nas seções anteriores deste artigo. É também uma hipótese de concorrênciadesleal. A deslealdade das vendas diretas realizadas pelasmontadoras percebe-se na própria diferença de tratamento gerencial –designadamente, de custos – entre tais operações mercantis e as operaçõesrealizadas pelos concessionários. Com efeito, por exigência da própria conformaçãolegal do contrato de concessão comercial de distribuição de veículosautomotores, o revendedor t<strong>em</strong> sua atuação orientada por uma loja, colocadana condição de expressão física de sua atividade, a implicar custosque lhe são próprios, entre imóveis (custo da propriedade ou da locação),mobiliário específico, manutenção (da faxina aos reparos de engenharia),todos representando despesas para a <strong>em</strong>presa. Esse varejo monocanal, na expressãode Eduardo Souza Aranha, 38 é juridicamente obrigatório e contrasta78n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriacom a prática dos múltiplos canais ou multicanais, principalmente pelo estabelecimentode canais diretos, ou seja, canais de relacionamento direto como consumidor, a implicar expressivas vantagens nos custos da operação que,destarte, torna-se muito mais rentável. Para principiar, a montadora – nacondição de vendedora, que assume nas vendas diretas – não experimentaos custos de estoque, que inclu<strong>em</strong> tanto o capital <strong>em</strong>pacado no produto que,na loja, espera por seu consumidor, como também os custos com o estabelecimentoque deve conservar e expor este produto, além de todo o pessoalque, s<strong>em</strong> estar diretamente envolvido com a venda, atua na preservação doestoque <strong>em</strong> condições adequadas. As vendas de pátio ou vendas de produtosvindos diretos da fábrica simplesmente estão assentadas numa lógica de custosdiversa, com peso muito menor no valor total da operação, permitindo umvalor final de venda igualmente menor ou um lucro maior <strong>em</strong> cada operação.Não é preciso haver um staff cotidiano, para atender mesmo àquelesque só quer<strong>em</strong> namorar o veículo. As vendas de pátio são operações essencialmenteconclusivas, isto é, atra<strong>em</strong> justamente àqueles que já namoraram –e muito, por vezes – o produto e para lá se dirig<strong>em</strong> com o objetivo de concluira compra.Desta forma, a montadora, recorrendo às promoções de vendas diretas,não concorre <strong>em</strong> mesmo plano e <strong>em</strong> mesmas condições com suasrevendedoras, que estão obrigadas às vendas de loja. Há uma concorrência<strong>em</strong> estruturas de custos distintas, que privilegiam a montadora. Como se nãobastasse, o gozo desse benefício indevido de mercado, resultante de condiçõesque são artificialmente distintas, a exploração direta do mercado determinauma canibalização do mercado de veículos, o que contraria os termosintrínsecos da contratação estabelecida entre montadora concedente erevendedora concessionária. L<strong>em</strong>bre-se: essa contratação t<strong>em</strong>, como um deseus objetos genéricos e maiores, justamente a cessão de um mercado, ou,preferindo-se, a cessão do direito de exploração do mercado <strong>em</strong> determinadoterritório e a partir de determinada base e canal (monocanal). Essa operaçãoconstante implica contato direto com uma d<strong>em</strong>anda que vai, aos poucos,transformando-se <strong>em</strong> aquisições. O feirão exaure esta d<strong>em</strong>anda habituale deixa aquele território mercantil esgotado por um período, ônus queserá suportado pelo concessionário, caracterizando prejuízo indenizável, naforma do artigo 927 do Código Civil. Não se esqueça, a propósito, que automóveissão bens de consumo durável, vale dizer, que sua aquisição não se fazordinariamente, mas excepcionalmente.De outra face, a deslealdade da concorrência é agravada quando seconsidera o contexto promocional que é inerente aos feirões ou vendas depátio, eventos cuja própria lógica compreende-se de forma antagônica à atuaçãoregular, ordinária, cotidiana, do concessionário, com efeitos deletériossobre a freguesia e, mais, sobre o aviamento concedido. A questãomercadológica e jurídica relevante que está <strong>em</strong> palco, <strong>em</strong> contextos tais,gravita <strong>em</strong> torno da idéia de motivação para a conclusão de negócios. “AsREVISTA OPINIÃO JURÍDICA79
Gladston Mamedenecessidades ativam as motivações, que, por sua vez, mov<strong>em</strong> os indivíduos<strong>em</strong> direção a possíveis formas de satisfazê-las. Entretanto, as motivações encontramresistências, os chamados freios. Os freios são forças que vão nadireção contrária das motivações. Eles pod<strong>em</strong> ser classificados <strong>em</strong> dois tipos:as inibições e os medos. [...] A função dos profissionais de marketing diantedos freios é o de tentar reduzi-los, proporcionando maior segurança e oferecendogarantia aos consumidores. Os freios não pod<strong>em</strong> ser eliminados, somentereduzidos. À medida que são atenuados, a força das motivações sobressai-see vice-versa.” 39Essa particularidade do comportamento do consumidor, aliás, está naraiz de um comportamento colaboracional adotado por alguns distribuidores(de veículos e de outros bens) que realizam eventos promocionais por meiode sua rede de distribuição. Tais <strong>em</strong>presas evitam os efeitos nocivos da concorrênciavertical, isto é, da concorrência entre produtor e distribuidor, atuandode forma conjunta na exploração das possibilidades do mercado, numrateio de ônus e bônus que beneficia aos parceiros negociais. Daí recomendarGrande: “Desenhar, desenvolver e manter relacionamentos efetivos entreos m<strong>em</strong>bros do canal de distribuição, que melhor<strong>em</strong> a coordenação entreos diferentes elos da cadeia produtiva, tornou-se uma questão importantepara as <strong>em</strong>presas que desejam alcançar vantagens competitivas sustentáveis.”Eis por que a autora chama a atenção para a vantag<strong>em</strong> competitiva queé representada por “formas mais cooperativas de relacionamento no canal,com formação de parcerias e alianças estratégicas.” Essas formas cooperativas,aliás, não imped<strong>em</strong> a exploração de novos canais de distribuição, devesefrisar. A própria Grande reconhece, dissertando sobre a venda de veículospela Internet, que:No entanto, a rede de concessionárias é responsável pela maiorparte do volume de carros novos vendidos no país e é nela quegrande parte das vendas iniciadas pela internet se concretiza.Além disso, as concessionárias são os canais de entrega e deserviços dos produtos vendidos pelas montadoras ao consumidorfinal através da internet” 40 .Nestas searas, mesmo o conceito de liberdade de ingressar no mercadoe seus corolários (liberdade de permanecer no mercado e liberdade desair do mercado), precisam ser cadenciados, ou seja, precisam ser compreendidosdentro de contextos maiores, sob pena de se admitir ingresso (1) abusivo,(2) ilegítimo e (3) ilegal. Coloca-se ao jurista, destarte, uma investigaçãoque é rara, mas que é adequada: a licitude e, mais, necessidade de se impediro ingresso de determinado ato no mercado, incluindo aí a sua permanênciano mesmo, face ao perigo de desequilibrar a estrutura de exploraçãoeqüitativa de suas possibilidades, estabelecendo, sob o argumento de livreconcorrência, condições predatórias de competição. Não s<strong>em</strong> razão, a Lei n.6.729/79 limita o ingresso do distribuidor nesse mercado final, <strong>em</strong> seu artigo80n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionária15 que, estabelecendo que “o concedente poderá efetuar vendas diretas deveículos automotores”, limita-a a duas hipóteses: (1) independent<strong>em</strong>enteda atuação ou pedido de concessionário, à Administração Pública, direta ouindireta, ou ao Corpo Diplomático, b<strong>em</strong> como a outros compradores especiais,nos limites que for<strong>em</strong> previamente ajustados com sua rede de distribuição;(2) por meio da rede de distribuição, às pessoas listadas na primeirahipótese, incumbindo o encaminhamento do pedido a concessionário quetenha esta atribuição, a frotistas de veículos automotores, expressamentecaracterizados, cabendo unicamente aos concessionários objetivar vendasdesta natureza, e, finalmente, a outros compradores especiais, facultada aqualquer concessionário a apresentação do pedido.10 CONCLUSÃOComo d<strong>em</strong>onstrado no estudo acima, a edição e a conservação nodireito brasileiro da Lei n. 6.729/79 é, de per se, uma limitação taxativa daatuação das montadoras. Tal norma – nela destacada o artigo 15, transcritoao fim da seção anterior – constitui uma incontestável e legítima intervençãoeconômica no domínio privado, justificada pela proteção especial que oEstado confere ao sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição de veículos, produtos e serviçosautomotivos. Trata-se de norma que se compreende, <strong>em</strong> primeiro lugar,como expressão do dispositivo inscrito no artigo 170, parágrafo único, daConstituição da República que, não obstante assegure “a todos o livre exercíciode qualquer atividade econômica, independent<strong>em</strong>ente de autorizaçãode órgãos públicos”, ressalva os casos previstos <strong>em</strong> lei. Na hipótese focada,t<strong>em</strong>-se igualmente uma limitação legal ao livre exercício de determinadaatividade econômica – vendas diretas de veículos automotores pelo concedente,na expressão do caput do artigo 15 da Lei n. 6.729/79 –, sendo que a ressalvados casos previstos <strong>em</strong> lei, aqui, interpreta-se <strong>em</strong> consonância com a LeiRenato Ferrari, ou seja, nos limites que for<strong>em</strong> previamente ajustados com suarede de distribuição, o que aponta para norma convencional – contrato coletivoprivado.N<strong>em</strong> se fale, aqui, <strong>em</strong> inconstitucionalidade da previsão por vulneraçãoaos princípios da livre iniciativa e livre concorrência, pois tal argumento estarásimplesmente distorcendo a inscrição constitucional dos dispositivos. Scottenfatiza que o conceito constitucional de ord<strong>em</strong> econômica traduz, <strong>em</strong> razãoda complexidade crescente das relações econômicas, um ambiente quecorresponde a um modelo idealizado, composto por uma seleção e inserçãode valores e princípios limitadores, b<strong>em</strong> como mecanismos de controle, incentivose projeções; visa a um funcionamento harmônico dos agentes públicose privados para garantir el<strong>em</strong>entos conformadores de um determinadosist<strong>em</strong>a econômico, ou seja, visa à instituição de uma determinada forma deorganização e funcionamento da economia. 41 A liberdade de concorrer, portanto,não se afirma no amplo universo das possibilidades e impossibilidadesREVISTA OPINIÃO JURÍDICA81
Gladston Mamedefísicas (o plano do poder ser), mas no universo mais reduzido das possibilidadee impossibilidade jurídicas (o plano do dever ser); não se compreendecomo atributo da realidade física (fýóéò: physis), mas da realidade social ejurídica (polis, ou seja, ðüëéò). Em verdade, a colocacão do princípio dalivre concorrência no âmbito do poder ser, da mera capacidade física de fazerou deixar de fazer, determinaria um quadro de anarquia, de ausência deEstado e, via de conseqüência, de predominância do arbítrio individual:práticas como a fixação de preços predatórios, por ex<strong>em</strong>plo, seriam justificadaspela afirmação singela de que o agente está exercendo sua liberdade deconcorrer: os concorrentes, se desejar<strong>em</strong>, que também fix<strong>em</strong> seus preçosabaixo do custo do b<strong>em</strong> ou serviço.Fica claro, portanto, que não se pode compreender liberdade de ação eliberdade de concorrer por uma interpretação meramente lingüística, tomandoas palavras por seus significados comuns. Ambos os princípios significamb<strong>em</strong> mais do que os seus rótulos. Traduz<strong>em</strong> perspectivas essencialmente jurídicas,formadas ao longo de uma evolução histórica, cuja análise (principalmentefocada no ambiente dos três últimos séculos do II milênio d.C.) dálheexegese específica, técnica. Nesta toada, é indispensável ter <strong>em</strong> linha deconsideração que liberdade de ação e, principalmente, liberdade de concorrer,tomam-se tendo por referência um ambiente econômico idealizado, noqual algumas práticas são aceitas e outras são vedadas. A ord<strong>em</strong> econômicae financeira nacional nada mais é do que um paradigma jurídico-econômico,portanto: é um padrão ou conjunto de padrões diversos que dev<strong>em</strong> orientara atuação do Estado, assim como orientam todo o esforço doutrinário dojurista, além do trabalho de interpretação e aplicação de normas e metanormasjurídicas no exercício da iurisdictio, isto é, no exercício da função de dizer odireito que foi constitucionalmente atribuída ao Poder Judiciário. Somenteno espaço expressa e exaustivamente permitido pelo artigo 15 da Lei n. 6.729/79 pod<strong>em</strong> os distribuidores realizar vendas diretas. Os atos praticados fora detal licença legal taxativa são ilícitos.Num segundo plano, como d<strong>em</strong>onstrado na seção 5 deste artigo (contratoscoletivos), uma das características do sist<strong>em</strong>a brasileiro de distribuição deveículos, produtos e serviços automotivos, tal como desenhado na Lei n. 6.729/79, é a constituição de um espaço de negociação coletiva para o estabelecimentode normas aplicáveis a todo o sist<strong>em</strong>a (convenção das categorias econômicas)ou a cada categoria econômica de produtor e respectivos distribuidores(convenção de marca). Afirmou-se assim, por determinação e delegaçãolegais, um espaço privado para constituição de obrigações jurídicascontratuais de foro e aplicabilidade coletivos. Neste contexto, importa observaro texto legal. Excetuada a Administração Pública, direta ou indireta,ou ao Corpo Diplomático (inciso I), o artigo 15 da Lei n. 6.729/79 somentepermite ao concedente efetuar vendas diretas de veículos automotores independent<strong>em</strong>enteda atuação ou pedido de concessionário, “a outros compradoresespeciais, nos limites que for<strong>em</strong> previamente ajustados com sua82n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriarede de distribuição”. E esse ajuste prévio estabelecido com a respectivarede de distribuição faz-se, também, segundo aquela norma jurídica. Afinal,de forma harmônica, o artigo 19, XIV, da mesma Lei Ferrari estatui que secelebrarão convenções da marca para estabelecer normas e procedimentosrelativos a [...] vendas diretas, com especificação de compradores especiais,limites das vendas pelo concedente s<strong>em</strong> mediação de concessionário”.O t<strong>em</strong>a, aliás, foi abordado e disciplinado na Primeira Convenção daCategoria Econômica dos Produtores e da Categoria Econômica dos Distribuidoresde Veículos Automotores, celebrada entre Associação Nacional dosFabricantes de Veículos Automotores – ANFAVEA e a Associação Brasileirados Distribuidores de Veículos Automotores – ABRAVE, <strong>em</strong> obediência àLei n. 6.729/79. Esta convenção coletiva foi celebrada <strong>em</strong> 16 de dez<strong>em</strong>bro de1983 e publicada no Diário Oficial da União de 13 de janeiro de 1984, trazendotodo um capítulo (Capítulo XVII) dedicado ao t<strong>em</strong>a. E tal norma nãotraz autorização para vendas diretas e a varejo para consumidores finais.Cuida-se, portanto, de ato ilícito, desrespeitando não só norma legal (obligatioex leges), como igualmente norma convencional (obligatio ex contractu).A venda direta de veículos pela montadora, fora do âmbito legal econvencional admitido, caracteriza ato ilícito doloso, do qual resulta, inequivocamente,danos econômicos e morais ao distribuidor ou distribuidoresdaquele território e, eventualmente, dos territórios avizinhados. Danos econômicos,pois se têm prejuízos à vantag<strong>em</strong> de mercado (goodwill of trade) quedeve ser transferida ao distribuidor <strong>em</strong> cada contrato de concessão comercialde distribuição de veículos, nos termos analisados nas seções 3, 5 e, principalmente,na seção 9 deste artigo. Já os danos morais decorr<strong>em</strong> das lesõesque são experimentadas pela boa imag<strong>em</strong> mercantil do concessionário ouconcessionários naquela praça, direitos de personalidade que merec<strong>em</strong> proteção<strong>em</strong> face do que se encontra estipulado no artigo 52 do Código Civil,segundo o qual se aplica às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dosdireitos da personalidade.Citando Lazer e Keiley, Las Casas lista como componentes principais dasvariáveis controláveis do varejo: (1) subcompostos de produtos e serviços (decisãode compra, formação de preços, concessão de crédito, nível de produtose serviços), (2) comunicação (propaganda, promoções etc) e (3) distribuição(ponto, depósitos, nível de estoques, canais de distribuição etc).Todo o esforço somente t<strong>em</strong> sentido se o composto de marketingestiver devidamente adaptado ao ambiente de atuação da<strong>em</strong>presa. Deve-se considerar a abordag<strong>em</strong> sistêmica. Segundoesta abordag<strong>em</strong>, o esforço de integração das variáveis é necessáriopara um planejamento coerente. 42A intervenção direta da montadora no mercado da concessionária,todavia, constitui uma variável heterodoxa, aparent<strong>em</strong>ente controlável, poisREVISTA OPINIÃO JURÍDICA83
Gladston Mamedepoderia – e deveria – ser evitada. Trata-se de comportamento que denotaconcorrência ilícita e essencialmente deletéria <strong>em</strong> seus efeitos sobre a administraçãoda atividade da revendedora concessionária. Daí a juridicidade,legitimidade e constitucionalidade da limitação de ingresso dos produtoresno mercado que é destinado aos distribuidores, excetuadas hipóteses angustase específicas, como estudado.Em fato, no plano dos subcompostos de produtos e serviços, a venda direta,antes de mais nada, torna equivocadas, a posteriori, as decisões de compraque foram acertadas, a priori (ao t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que tomadas, ou seja, antes doevento da venda direta), na medida <strong>em</strong> que consideraram um nível correntee normal de d<strong>em</strong>anda. No entanto, a prática do feirão exaure, como visto, essad<strong>em</strong>anda habitual, corrente, que sustenta a atuação regular, cotidiana, ortodoxadas concessionárias. T<strong>em</strong>-se, dessa forma, uma inadmissível canibalizaçãode mercado que, sequer, precisa enquadrar-se no plano genérico das normas doDireito Concorrencial. A Lei n. 6.729/79 já anteviu o cenário desastroso quedela decorreria e o recusou, amputando o amplo acesso de produtores aoscanais diretos de venda, estabelecendo uma absurda concorrência vertical.Como se só não bastasse, a prática dos feirões impacta a percepção depreço do mercado, sua expectativa de crédito, entre outros efeitos diretos eindiretos, com resultado nefasto sobre a imag<strong>em</strong> do revendedor, b<strong>em</strong> comosobre a administração de seu negócio. L<strong>em</strong>bre-se, a propósito, que “os preçossão expressivos componentes do composto de marketing para a formaçãoda imag<strong>em</strong>”. 43 Não é uma afirmação isolada:Os preços promocionais são uma importante forma de induzirpotenciais compradores ao consumo. Estes, de fato, esperam preçosbaixos <strong>em</strong> todas as compras que fizer<strong>em</strong>. Também está fora dequestão que as vendas pod<strong>em</strong> ser muito aumentadas no curtoprazo por meio de reduções de preço ou de cupons de desconto<strong>em</strong> futuras compras. Contudo, preços promocionais pod<strong>em</strong> serperigosos se usados regularmente. Em primeiro lugar, seus efeitossão t<strong>em</strong>porários e limitados à ação retaliatória da concorrência.Além disso, pod<strong>em</strong> induzir os consumidores a estocar e reduzirfuturas compras. Por fim, uma vez iniciados, os preçospromocionais são difíceis de reverter e pod<strong>em</strong> gerar umainterminável retaliação por parte de competidores. 44No plano da comunicação, a prática das vendas de pátio estabelece umamídia universalizadora que destrói os canais fidelizadores que foram legitimamenteestabelecidos pelo concessionário com sua clientela, destruindo apercepção de freguesia que orienta a determinação e manutenção de seuponto <strong>em</strong>presarial. Já no plano da distribuição, a realização das vendas diretasrompe com a lógica da administração de estoques, principalmente na determinaçãode seu nível, o que representa, uma vez mais, um dano ao aviamento<strong>em</strong>presarial do concesssionário. Las Casas, a propósito, diz que84n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaa administração de estoques está intimamente relacionada àsvendas <strong>em</strong>presariais. Uma determinação do nível de estoque aser mantido decorre da previsão de vendas estabelecida paraaquele período. Os estoques estão intimamente relacionados coma expectativa de vendas. Espera-se vender muito e o responsávelpelo nível de estoques irá preparar-se com quantidade suficientepara atender a d<strong>em</strong>anda. Se esta não ocorrer, os custos serãoaltos devido à manutenção de mercadorias desnecessárias. 45S<strong>em</strong> discordar, Inafuco ensina quetodas as decisões envolvendo o mix de produtos repercut<strong>em</strong>diretamente na gestão de estoques. E todas as decisõesenvolvendo o volume de estoques têm impacto financeiro. [...]Assim, o processo de escolha dos produtos que serãocomercializados e toda a negociação de compras desses produtosassum<strong>em</strong> importância cada vez maior nas <strong>em</strong>presas varejistasbrasileiras. 46Observe-se, por ex<strong>em</strong>plo, que uma revendedora que trabalhe comestoque de dois veículos de luxo, considerando que a média mensal de vendasde tal modelo é esta, enfrentará um excesso de estoque se, na realizaçãode um feirão, foi esgotada a d<strong>em</strong>anda local presente para aquela categoriamercadológica. A percepção da segmentação do mercado e seus efeitos sobrea administração da atividade negocial de revenda de automóveis é completamentesubvertida, o que simplesmente destrói, por t<strong>em</strong>po imprevisível,a análise de clientela de cada concessionário, desorientando-o sobre comprase estoques.Para determinar o que comprar, o primeiro passo é a avaliaçãodas necessidades dos consumidores. Para isto, os princípios desegmentação dev<strong>em</strong> ser postos <strong>em</strong> prática, pois auxiliam nodirecionamento das atividades mercadológicas. Determinarsegmentos, selecionando o mercado-alvo, permite uma melhorcondição para compreensão dos hábitos de consumo do grupovisado. Os esforços são concentrados especificamente no grupode interesse. Com a determinação dos seguimentos é possívelavaliar e estimar a d<strong>em</strong>anda. 47Não é outra a opinião de Maurício Gerbaudo Morgado que, ao examinaros desafios mercadológicos do varejo, aborda a segmentação sobre múltiplosaspectos (acessibilidade, lucratividade etc), entre os quais está amensurabilidade: “É necessário que se tenham informações que permitamverificar o valor do segmento, isto é, quantas pessoas se encontram nas condiçõesimaginadas e quando normalmente consom<strong>em</strong> ou consumiriam doproduto ou serviço.” 48REVISTA OPINIÃO JURÍDICA85
Gladston MamedeHá também – ainda no plano da distribuição, uma completa desorganizaçãodas áreas de influência dos concessionários:Área de influência é a área geográfica <strong>em</strong> que a <strong>em</strong>presa varejistaobtém a maior parte de seus clientes. Em outras palavras, é a áreade influência de uma loja para a venda de determinado produto.A partir de certo ponto, os compradores dão preferência a outrosconcorrentes, devido à localização mais próxima. 49Fica claro, portanto, que a prática das vendas diretas, fora do âmbitolegalmente permitido e convencionalmente regulamentado, é ato ilícito doqual, como causa eficiente, decorr<strong>em</strong> danos econômicos e morais diretos aosconcessionários, permitindo-lhes o recurso à ação indenizatória, pela combinaçãodos artigos 186 e 927 do Código Civil, combinados com os dispositivosda Lei n. 6.729/79, nesta destacado o artigo 15. Essa indenização, ad<strong>em</strong>ais,deve ter por referência o artigo 714 do Código Civil: “Salvo ajuste, o agenteou distribuidor terá direito à r<strong>em</strong>uneração correspondente aos negócios concluídosdentro de sua zona, ainda que s<strong>em</strong> a sua interferência”. Para tanto,deve-se ter <strong>em</strong> linha de consideração que o contrato de concessão comercialde distribuição de veículos é espécie jurídica do contrato de distribuição, queé nomeado no Capítulo XII (Da Agência e Distribuição) do Título V (DosContratos <strong>em</strong> Geral) da Parte Especial do Código Civil. Foi o que d<strong>em</strong>onstreina seção 3 deste artigo.Não é só. Considerando-se que, por meio do contrato de concessãocomercial de distribuição de veículos, o produtor concede ao distribuidoruma vantag<strong>em</strong> de mercado (goodwill of trade), el<strong>em</strong>ento que compõe o aviamentode sua <strong>em</strong>presa, o respectivo instrumento de contrato é título quepermite ao concessionário obter, judicialmente, a declaração do direito denão ver realizadas tais vendas diretas.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASARANHA, Eduardo de Souza. A revolução dos canais diretos. In ASSOCI-AÇÃO BRASILEIRA DE MARKETING DIRETO - ABEMD (Org.).Marketing direto no varejo. São Paulo: Makron Books, 2001.DAHAB, Sônia (Coord.). Entendendo o franchising: uma alternativa eficazpara o pequeno e médio <strong>em</strong>preendedor. Salvador: Casa da Qualidade, 1996.DUFFY, Dennis L. Do something!: guia prático para fidelização de clientes.Tradução Frank Edwin Duuvoort. São Paulo: Prentice Hall, 2002.EPSZTEIN, Léon. A justiça social no antigo oriente médio e o povo da Bíblia.Tradução M. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 1990.FERNANDES, Lina. Do contrato de franquia. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.86n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaGABRICH, Frederico de Andrade. Contrato de franquia e direito de informação.Rio de Janeiro: Forense, 2002.GALVÃO, Ramiz. Vocabulário etimológico, ortográfico e prosódico das palavras portuguesasderivadas da língua grega. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Garnier, 1994.GALVÊAS, Ernane. O Direito de concorrência. In COSTA, Marcos da etal. (Org.). Direito concorrencial: aspectos jurídicos e econômicos. Rio de Janeiro:América Jurídica, 2003.GRANDE, Márcia Mazzeo. A distribuição de automóveis novos <strong>em</strong> mudança?Estudo a partir de survey e pesquisa qualitativa <strong>em</strong> concessionárias (Tese deDoutorado). São Paulo: Escola Politécnica da Universidade de São Paulo/Departamento de Engenharia de Produção, 2004.HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Hoauiss da línguaportuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.INAFUCO, Jorge Kenkitsi. Produtos. In MORGADO, Maurício Gerbaudo;GONÇALVES, Marcelo Neves (Org.). Varejo: administração de <strong>em</strong>presascomerciais. São Paulo: Senac/SP, 1997.LAS CASAS, Alexandre Luzzi. Marketing de varejo. São Paulo: Atlas, 1994.LEICKY, Gwendolyn. Mesopotâmia: a invenção da cidade. Tradução ÁlvaroCabral. Rio de Janeiro: Imago, 2003.KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do consumidor. São Paulo: Atlas, 2000.MAMEDE, Gladston. Direito <strong>em</strong>presarial brasileiro: volume 1: <strong>em</strong>presa e atuação<strong>em</strong>presarial. São Paulo: Atlas, 2004.______. _________________________: volume 2: direito societário (sociedadessimples e <strong>em</strong>presárias). São Paulo: Atlas, 2004.______. _________________________: volume 3: títulos de crédito. 2.ed.São Paulo: Atlas, 2005.______. S<strong>em</strong>iologia do direito: um debate referenciado pela animalidade e acultura. 2.ed. Porto Alegre: Síntese, 2.000.McMATH, Robert M.; FORBES, Thom. Onde eles estavam com a cabeça?Tradução Maria Whitaker Ribeiro Nolz. São Paulo: Makron Books, 1999.MIORI, Celso. Preços. In MORGADO, Maurício Gerbaudo; GONÇAL-VES, Marcelo Neves (Org.). Varejo: administração de <strong>em</strong>presas comerciais.São Paulo: Senac/SP, 1997.MORGADO, Maurício Gerbaudo. Marketing e estratégia. In MORGADO,Maurício Gerbaudo; GONÇALVES, Marcelo Neves (Org.). Varejo: administraçãode <strong>em</strong>presas comerciais. São Paulo: Senac/SP, 1997.PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 6.ed. Rio de Janeiro:Forense, 1994.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA87
Gladston MamedePIMENTA, Luiz José. A crise na rede de concessionárias de automóveis no Brasil(Dissertação de Mestrado). Salvador: Universidade de Salvador – UNIFACS/Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, 2002.SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: Estado enormalização da economia. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2000.SIMÃO FILHO, Adalberto. Franchising: aspectos jurídicos e contratuais –comentários à lei de franchising, com jurisprudências. 4.ed. São Paulo: Atlas,2000.VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. Coimbra: Almedina, 1995.1PIMENTA, Luiz José. A crise na rede de concessionárias de automóveis no Brasil (Dissertação de Mestrado).Salvador: Universidade de Salvador – UNIFACS/Departamento de Ciências Sociais Aplicadas, 2002,p. 16.2Ibid., p. 16-17.3Ibid., p. 17-21.4Ibid., p. 21-23.5Ibid., p. 23-30.6Ibid., p. 34.7Ibid., p. 34-36.8GRANDE, Márcia Mazzeo. A distribuição de automóveis novos <strong>em</strong> mudança? Estudo a partir de survey epesquisa qualitativa <strong>em</strong> concessionárias (Tese de Doutorado). São Paulo: Escola Politécnica daUniversidade de São Paulo/Departamento de Engenharia de Produção, 2004, p. 14.9Ibid., p. 15.10MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro: volume 1: <strong>em</strong>presa e atuação <strong>em</strong>presarial. SãoPaulo: Atlas, 2004, p. 334.11Diário do Judiciário da União, 13.06.2005, p. 211.12Cf. SIMÃO FILHO, Adalberto. Franchising: aspectos jurídicos e contratuais – comentários à lei defranchising, com jurisprudências. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 18. FERNANDES, Lina. Do contrato defranquia. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 45.13GABRICH, Frederico de Andrade. Contrato de franquia e direito de informação. Rio de Janeiro:Forense, 2002, p. 9.14GRANDE, op. cit., p. 13.15Na procura das origens históricas do instituto, Dahab afirma que franquia é palavra derivada defranchisage, termo que, no francês, t<strong>em</strong> raiz <strong>em</strong> franc: outorga de um privilégio, de uma autorização;destaca que na Idade Média existiam cidades francas (franche ou franchise), localidades de onde oshabitantes e seus bens podiam circular livr<strong>em</strong>ente, s<strong>em</strong> pagamento de taxas ou impostos ao Estado e/ouà Igreja. O verbo franchiser, neste contexto, traduziria o ato de tornar franco por meio da concessão deuma carta de franquia, o que, <strong>em</strong> inglês, era chamado letter of franchise. Nesta toada, a autora identificao franchising (expressão inglesa derivada de franchisage, no francês) como atos de outorga de direitos(mesmo nobiliárquicos), privilégios, vantagens que, com o passar do t<strong>em</strong>po, assumiram mesmo um88n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriacontorno comercial, como a franquia de rotas comerciais, da qual teria sido beneficiária a Companhiadas Índias Ocidentais. (cf. DAHAB, Sônia [Coord.]. Entendendo o franchising: uma alternativa eficazpara o pequeno e médio <strong>em</strong>preendedor. Salvador: Casa da Qualidade, 1996; p. 13-14.) Próximo, Houaissensina que o antepositivo franc- provém do francês franc, sendo uma derivação de frânc (frank), latinizadofrancus, nome de um povo germânico que invadiu o norte da Gália: os francos, que hoje, aliás, dão nomeao próprio Estado: a França (terra dos francos); o uso do antepositivo franc é atestada já no século XI,na acepção de livre. Franquear, portanto, é fazer franco, ou seja, é permitir, é liberar. (HOUAISS,Antônio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Hoauiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001;p. 1.384; p. 1.387)16VASCONCELOS, Pedro Pais de. Contratos atípicos. Coimbra: Almedina, 1995, p. 24 et. seq.17Cf. MAMEDE, Gladston. S<strong>em</strong>iologia do direito: um debate referenciado pela animalidade e a cultura.2.ed. Porto Alegre: Síntese, 2.000, p. 157 et seq.18GALVÃO, Ramiz. Vocabulário etimológico, ortográfico e prosódico das palavras portuguesas derivadas dalíngua grega. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Garnier, 1994.19Cf. MAMEDE, Gladston. S<strong>em</strong>iologia do Direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidadee pela cultura. 2.ed. Porto Alegre: Síntese, 2000.20Cf. LEICKY, Gwendolyn. Mesopotâmia: a invenção da cidade. Tradução Álvaro Cabral. Rio deJaneiro: Imago, 2003.21GALVÊAS, Ernane. O direito de concorrência. In COSTA, Marcos da et al. (Org.). Direito concorrencial:aspectos jurídicos e econômicos. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 43.22GALVÊAS, loc. cit.23Cidade-Estado localizada no sudeste da Suméria e que teve grande importância no período entre2.300 a 1450 a.C. (Cf. EPSZTEIN, Léon. A justiça social no antigo oriente médio e o povo da Bíblia. TraduçãoM. Cecília de M. Duprat. São Paulo: Paulinas, 1990, p. 13).24Aliás, ele se auto-intitula o primeiro reformador da história; segundo Epsztein, com razão. (EPSZTEIN,Loc. cit.)25EPSZTEIN, op. cit., p. 13-14.26PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.27GRANDE, op. cit., p. 15.28PIMENTA, op. cit., p. 16.29GRANDE, op. cit., p. 12.30LAS CASAS, Alexandre Luzzi. Marketing de varejo. São Paulo: Atlas, 1994, p. 14.31GRANDE, op. cit. p. 21-22.32LAS CASAS, Alexandre Luzzi, op. cit., p. 18.33McMATH, Robert M.; FORBES, Thom. Onde eles estavam com a cabeça? Tradução Maria WhitakerRibeiro Nolz. São Paulo: Makron Books, 1999, p. 31.34DUFFY, Dennis L. Do something! Guia prático para fidelização de clientes. Tradução Frank EdwinDuuvoort. São Paulo: Prentice Hall, 2002, p.15.35SIMÃO FILHO, op. cit., p. 18. FERNANDES, op. cit., p. 9.36GRANDE, op. cit., p. 13.37GRANDE, op. cit., p. 12.38A revolução dos canais diretos. In ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MARKETING DIRETO -ABEMD (Org.). Marketing direto no varejo. São Paulo: Makron Books, 2001, p. 17.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA89
Gladston Mamede39KARSAKLIAN, Eliane. Comportamento do consumidor. São Paulo: Atlas, 2000, p. 33-34.40GRANDE, op. cit., p. 13-15.41SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: Estado e normalização da economia.Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2000, p. 31-32.42LAS CASAS, op. cit., p. 33.43LAS CASAS, op. cit., p. 95.44MIORI, Celso. Preços. In MORGADO, Maurício Gerbaudo. GONÇALVES, Marcelo Neves(organizadores). Varejo: administração de <strong>em</strong>presas comerciais. São Paulo: Senac/SP, 1997, p. 180.45LAS CASAS, op. cit., p. 131.46INAFUCO, Jorge Kenkitsi. Produtos. In MORGADO, Maurício Gerbaudo. GONÇALVES, MarceloNeves (organizadores). Varejo: administração de <strong>em</strong>presas comerciais. São Paulo: Senac/SP, 1997, p. 136.47LAS CASAS, op. cit., p. 78.48MORGADO, Maurício Gerbaudo. Marketing e estratégia. In MORGADO, Maurício Gerbaudo.GONÇALVES, Marcelo Neves (organizadores). Varejo: administração de <strong>em</strong>presas comerciais. SãoPaulo: Senac/SP, 1997, p. 73.49LAS CASAS, op. cit., p. 56.DIRECT SALE OF MOTOR VEHICLES BYMANUFACTURERS: ILLEGALITY OF THE SO-CALLED “VERTICAL COMPETITION”BETWEEN THE VEHICLE PRODUCERS ANDTHE AUTHORIZED VEHICLE STORESABSTRACTThe Law no. 6.729/79, with the changes put into effectby subsequent Law no. 8.132/90, rules the contractssigned between vehicle manufacturers and vehiclestores, aimed at turning these stores into the so-called“authorized sellers” of motor vehicles of a determinedbrand. Here the afor<strong>em</strong>entioned contracts are to beanalyzed as a groundwork for evaluating the legalpossibility of manufacturers to compete with theirnetwork of authorized car stores, generating the socalled“vertical competition”, with negative effects uponthese stores, which are to be highlighted in this paper.KEYWORDS: Law no. 6.729/79. Law no. 8.132/90.Contract of trade concession for the distribution ofmotor vehicles. Vertical competition. Company.90n. 6 - 2005.2
Venda direta de veículos pelos fabricantes: ilegalidade da concorrência vertical entre concedente e rede concessionáriaVENTE DIRECTE DE VEHICULES PAR LESFABRICANTS: ILLEGALITE DE LACONCURRENCE VERTICALE ENTRECONCEDENT ET CONCESSIONNAIRERÉSUMÉLa Loi n. 6.729/79, selon les modifications effectuéespar la Loi n. 8.132/90, ex<strong>em</strong>plifie le contrat deconcession commerciale de distribution de véhicules,ici analysé comme la base pour l’étude d’une situationspécifique : la possibilité du producteur de concouriravec les concessionnaires qui composent leur filetdistributeur (concurrence verticale), en mettant envaleur les effets délétères de cette pratique sur lessociétés concessionnaires.MOTS-CLÉS: Loi 6.729/79. Loi n. 8.132/90. Contratde concession commerciale de distribution devéhicules. Concurrence verticale. Société.Établiss<strong>em</strong>ent.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA91
FONTES NO DIREITO TRIBUTÁRIOHeleno Taveira Tôrres*1 Fontes do Direito Positivo e validade das normas: pr<strong>em</strong>issas aconsiderar. 1.1 Princípio da legalidade na Constituição Federal eno Código Tributário Nacional. 2 O papel da Lei Compl<strong>em</strong>entarno Sist<strong>em</strong>a Constitucional Tributário. 3 Instituição de tributos: aregra-matriz de incidência. 4 O tratado no sist<strong>em</strong>a de fontes doDireito Positivo brasileiro. 5 O papel dos Decretos no DireitoTributário brasileiro. 6 As normas compl<strong>em</strong>entares no DireitoTributário brasileiro.RESUMOO presente ensaio trata de fixar as pr<strong>em</strong>issas da relação entrea noção de fontes do direito positivo e validade das normas,buscando o papel da lei compl<strong>em</strong>entar, dos tratados, dosdecretos e das normas compl<strong>em</strong>entares no Sist<strong>em</strong>a TributárioConstitucional brasileiro.PALAVRAS-CHAVE: Fontes. Direito Tributário. Normas.Lei Compl<strong>em</strong>entar. Tratados. Decretos. NormasCompl<strong>em</strong>entares. Sist<strong>em</strong>a Tributário.1 FONTES DO DIREITO POSITIVO E VALIDADE DAS NORMAS:PREMISSAS A CONSIDERARNa forma de sist<strong>em</strong>a de direito positivo, define-se usualmente o Direitocomo um conjunto de normas válidas, <strong>em</strong> vigor numa dada sociedade e numcerto período histórico; normas estas que são prescrições para a condutahumana, a ser<strong>em</strong> observadas na respectiva comunidade, cuja inobservânciapoderá ser sancionada, na medida que o sist<strong>em</strong>a constitui-se com uma organizaçãopara o <strong>em</strong>prego da coação, como aduz Norberto Bobbio.Nesse sist<strong>em</strong>a, as normas jurídicas são unidades sintaticamenteinter-relacionadas mediante vínculos horizontais (relações de coorde-*Professor de Direito Tributário do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da <strong>Faculdade</strong> deDireito da Universidade de São Paulo (Graduação e Pós-Graduação) e Professor do Programa de Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado da PUC/SP. Livre-Docente, pela USP. Doutor, pela PUC/SP. Mestre<strong>em</strong> Direito Tributário (UFPE). Especializado <strong>em</strong> Direito Tributário Internacional, pela I Universidadede Roma "La Sapienza". Advogado.92n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributárionação) e verticais (relações de subordinação - hierarquia), no qual ainserção de novas regras ocorre a partir de um determinado ato de decisão,cuja atividade deve s<strong>em</strong>pre atender aos critérios de validadeformal (processo adequado para a formação e a autoridade competentepara criar a norma) e material (princípio da compatibilidade vertical como conteúdo das normas de fundamentação – competências – e nos limites desua d<strong>em</strong>arcação).Essa é uma questão de base, qual seja, o estudo da relação entre anoção de “fontes do direito positivo” e “validade das normas” 1 . Assim, ajuridicidade atribuída às normas que participam do ordenamento defluidos respectivos critérios de validade eleitos pelo sist<strong>em</strong>a, para que se possaentão argumentar da existência destas, na medida que tenham atendidoaos rigores formais e materiais de validação. A validade se confunde com aexistência. Dizer que uma norma existe implica o reconhecimento da suavalidade, <strong>em</strong> face de um dado sist<strong>em</strong>a. “Ou a norma existe, está no sist<strong>em</strong>ae é, portanto, válida, ou não existe como norma jurídica”, como afirma LourivalVilanova 2 .O estudo das fontes do direito cumpre necessariamente um papelpreordenado axiologicamente de certeza jurídica sobre a determinaçãoconstitucional dos órgãos e suas competências para a criação e aplicaçãodo direito positivo, ad<strong>em</strong>ais do procedimento que tais órgãos dev<strong>em</strong> adotarpara criação de regras jurídicas (abstratas ou concretas), ou aindasobre as próprias espécies dos chamados “veículos introdutores de normas”(Paulo de Barros Carvalho), que são obtidos ao final de tal procedimento(leis, decretos, resoluções etc), envolvendo-se, destarte, com opróprio estudo dos pressupostos de validade normativa de cada norma postano ordenamento.Nos países de tradição romanística, encontra-se na Constituição areferência técnica aos órgãos produtores de normas jurídicas e respectivascompetências materiais, como ponto de partida para a construção de todoordenamento, de um tal modo que qualquer regra jurídica produzida mantenhas<strong>em</strong>pre compatibilidade formal e material com aquelas que determin<strong>em</strong>seu conteúdo ou os regimes formais de sua produção, como procedimentose outros (publicidade, forma etc).Partindo da idéia segundo a qual a teoria das fontes do direito impõesecomo um estudo da validade do processo, mediante o qual as regras dodireito são postas, diz Miguel Reale:a fonte do direito implica o conjunto de pressupostos de validadeque dev<strong>em</strong> ser obedecidos para que a produção de prescriçõesnormativas possa ser considerada obrigatória, projetando-se navida de relação e regendo momentos diversos das atividades dasociedade civil e do Estado 3 .REVISTA OPINIÃO JURÍDICA93
Heleno Taveira TôrresAinda este mesmo autor:Destarte, uma lei somente pode ser considerada como tal se elaobedece ao devido processo de sua elaboração, exigindo-se, porex<strong>em</strong>plo, que ela seja <strong>em</strong>anada pelo poder competente esancionada e promulgada de acordo com os imperativosconstitucionais 4 .E que mais adiante, compl<strong>em</strong>enta: “o que sobreleva notar é que paracada forma de processo legislativo são indicados os seus pressupostos de validade,atendendo-se a razões de certeza e segurança” 5 .Esse foi o modo encontrado pelo liberalismo para distribuir o poderdecisório e vinculante, por desconcentração, entre distintas unidades dopróprio Estado, como condição para a racionalidade do direito e eliminaçãodo exercício de qualquer domínio, mediante concentração <strong>em</strong> um únicoindivíduo de poder de controle e de decisão. E a deliberação sobre instituiçãode obrigações patrimoniais tributárias quedou-se reservada exclusivamenteà lei, como ato de vontade dos representantes do povo, para garantiada liberdade e dos direitos de propriedade e de autonomia privada.1.1 Princípio da legalidade na Constituição Federal e no Código TributárioNacional (CTN)O princípio de legalidade é uma referência específica para exigir-seque um determinado órgão do sist<strong>em</strong>a jurídico (legislativo), pela sua composiçãoplural e representativa, segundo um procedimento d<strong>em</strong>ocrático deapreciação e votação (processo), seja a fonte única de decisão sobre certasmatérias (competência). Essa legalidade que vincula a todos e aparece sobdistintas formas (lei, lei compl<strong>em</strong>entar, decreto legislativo, etc), pressupõe aqualificação da sua fonte produtora. E como cada aspecto está determinadopor normas constitucionais ou de outras leis, fecha-se o sist<strong>em</strong>a numa autoreferênciaque preserva a autonomia sistêmica de cada ord<strong>em</strong>.Na Constituição brasileira, o princípio da legalidade des<strong>em</strong>penha trêsimportantes papéis 6 (competências), a saber: i) como princípio da “reservade lei” formal, quanto às matérias para as quais a Constituição exige leiespecífica (agregue-se a reserva de lei compl<strong>em</strong>entar); ii) como princípio da“tipicidade”, ou legalidade material, quanto à tipificação exaustiva dos critériosnormativos (ex. art. 150, I, CF); e iii) como princípio da“vinculatividade”, ou como prefere Alberto Xavier, princípio de pre<strong>em</strong>inência7 , a exigir submissão de todos os atos administrativos ao império da vontadelegislativa (ex. art. 37, CF), afinal, a vontade da administração não detémvontade inovadora, salvo <strong>em</strong> caráter <strong>em</strong>ergencial (medida provisória),e s<strong>em</strong>pre dependente da aquiescência legislativa; antes, dá cumprimento àlegalidade, pelo assentimento da representação da vontade do povo.94n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito TributárioA legalidade substantiva condiciona o poder, põe-no dentro de limites,circunscrevendo seu campo de ação material. Todo o probl<strong>em</strong>a datipicidade resolve-se numa questão de disciplina dos poderes públicos (ouprivados). Essa é uma forma de garantia fundamental, pois quanto mais estiverdisciplinado o exercício do poder, menor o espaço para o arbítrio (princípioda interdição da arbitrariedade), ao reduzir o campo de interpretação dosconceitos, institutos e formas do direito. A ação do aplicador queda-se vinculadaà vontade coletiva expedida na lei, exclusivamente.No Brasil, <strong>em</strong> face do conteúdo do art. 150, I, da Constituição, o qualexige, além da legalidade formal, como estipulado pelo art. 5º, II, para aexistência de qualquer obrigação tributária, o atendimento a todos os critériosnecessários e suficientes à verificação da ocorrência do fato jurídico,b<strong>em</strong> como da respectiva obrigação tributária. Corrobora, assim, o máximepreceito d<strong>em</strong>ocrático segundo o qual “instituir tributo” é o mesmo que dizer:criar lei contendo todos os el<strong>em</strong>entos imprescindíveis à constituição válidade uma relação tributária; e “aumentar tributo”, o mesmo que falar na alteraçãode um ou mais dos critérios da norma, porquanto a lei deverá determinar:a hipótese normativa completa, com seus critérios material, espacial et<strong>em</strong>poral; b<strong>em</strong> como os critérios que prescrevam a relação jurídico-tributária,com seus el<strong>em</strong>entos indicados amiúde: sujeito ativo, sujeito passivo, base decálculo e alíquota. A norma geral e abstrata, expressa sob a forma de lei, nacriação de tributos, deverá conter, pois, todos esses el<strong>em</strong>entos, como meio derealizar o princípio maior da certeza do direito, na medida que o preenchimentodesses critérios, outrossim, não poderá ser arbitrário, mas vinculado àrealização dos princípios maiores declarados na Constituição.E afora as obrigações principais, a legalidade 8 material (tipicidade) seráexigida para a determinação das sanções tributárias (art. 5º), concessão de subsídioou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido,anistia ou r<strong>em</strong>issão (150, § 6º), e instituição de obrigações acessórias (art. 5º, II).Essa exigência de tipicidade amplia-se ainda mais quando a Constituiçãoatribui competências exclusivas às pessoas políticas, segundo uma distribuiçãotipológica (arts. 153, 155 e 156), e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, veda qualquerespécie de invasão de competências (art. 146, II), como forma de garantir osvalores de igualdade, propriedade, justiça material e propriedade. Comocorolário dessa ord<strong>em</strong> constitucional, o legislador, dando prosseguimento aoprocesso de positivação do direito, criará leis que guard<strong>em</strong> fidelidade aoconceito-matriz identificado constitucionalmente, à luz dos valores que aConstituição informa, especialmente o princípio da capacidade contributiva,para os fins de identificar os fatos que possam relevar capacidade econômicasuficiente para suportar o encargo fiscal.O Código Tributário Nacional, a respeito da legalidade e usando dereferências as distintas fontes do direito positivo brasileiro, traz algumas regrassobr<strong>em</strong>odo relevantes.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA95
Heleno Taveira TôrresA primeira encontra-se no art. 96, para garantir uma uniformizaçãode sentido, diferençando “lei” de “legislação tributária”, ao admitir que ouso desta última “compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais,os decretos e as normas compl<strong>em</strong>entares que vers<strong>em</strong>, no todo ou <strong>em</strong>parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes”. Com isso, oCTN ganha <strong>em</strong> harmonia, quanto aos limites dos atos compl<strong>em</strong>entares, especialmente,construindo seus limites. É o caso, por ex<strong>em</strong>plo, do art. 106,quando fala <strong>em</strong> retroatividade de “lei interpretativa”, que não pode ter estendidosseus efeitos para as chamadas “normas compl<strong>em</strong>entares”.Em seguida, o art. 97 procura indicar os casos de “reserva de lei <strong>em</strong>matéria tributária”, o que decerto foi útil <strong>em</strong> 1965, à luz da Constituição de1946 (quando instituído), e continua até hoje, com referência às seguinteshipóteses, nas quais somente a lei pode estabelecer:I - a instituição de tributos, ou a sua extinção;II - a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o dispostonos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;III - a definição do fato gerador da obrigação tributária principal,ressalvado o disposto no inciso I do § 3º do artigo 52, e do seusujeito passivo;IV - a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo,ressalvado o disposto nos artigos 21, 26, 39, 57 e 65;V - a cominação de penalidades para as ações ou omissõescontrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações neladefinidas;VI - as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditostributários, ou de dispensa ou redução de penalidades.Como se pode verificar, por coerência sistêmica, são modalidades quejá se poderia dessumir do art. 150, I, da Constituição, pois todos os el<strong>em</strong>entosda regra-matriz são reclamados para uma instituição válida, b<strong>em</strong> comopara as alterações de regimes, pelas modificações de alíquotas ou bases decálculo que impliqu<strong>em</strong> majoração ou redução de tributos (renúncia de receita).E o § 1º não poderia ser mais claro quanto a isso: “equipara-se àmajoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe <strong>em</strong>torná-lo mais oneroso”. Diga-se o mesmo quanto à extinção do crédito tributário,sua suspensão ou concessão de isenções ou anistias.Quanto às sanções, sejam essas administrativas ou penais, a própriaConstituição também cobra legalidade estrita para a tipificação da condutae da sua conseqüência punitiva. Nenhuma novidade, portanto.Apenas para d<strong>em</strong>onstrar que tudo aquilo que não possa inovar o camponormativo deverá ser reservado aos regulamentos e atos administrativos<strong>em</strong> geral, o § 2º, do art. 97 prevê que “não constitui majoração de tributo,96n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriopara os fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetárioda respectiva base de cálculo”, como ocorre com a atualização dasplantes genéricas de valores, na cobrança do IPTU.2 O PAPEL DA LEI COMPLEMENTAR NO SISTEMA CONSTITU-CIONAL TRIBUTÁRIOIngressar num estudo sobre as normas do CTN e seus efeitos cobraque tom<strong>em</strong>os posição sobre o regime típico que o envolve, como norma geral<strong>em</strong> matéria de legislação tributária, cumprindo as funções do art. 146, III, daCF. Para tanto, precisamos cumprir uma diferenciação fundamental entrelegislação federal e legislação nacional, e b<strong>em</strong> assim sobre o papel das leiscompl<strong>em</strong>entares, segundo essa diferenciação.Sab<strong>em</strong>os que todos os Estados, o Distrito Federal e os Municípiospossu<strong>em</strong> suas constituições e leis orgânicas, cada qual regendo os respectivossist<strong>em</strong>as de normas próprios, sob a égide dos princípios do federalismoe autonomia dos municípios. Contudo, para a União, a mesmaConstituição que rege a República Federativa do Brasil (art. 1º, CF),regula também suas atividades, exercidas na qualidade de pessoa jurídicade direito público interno (art. 18, CF). Percebendo essa sobreposição,já Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, <strong>em</strong> 1937, na sua obra: “naturezajurídica do Estado Federal”, fizera a necessária separação entre aquelasnormas que, por se aplicar<strong>em</strong> à República Federativa do Brasil, concentram<strong>em</strong> si eficácia vinculante para todas as pessoas políticas,corporificando a Constituição Nacional; e aquelas normas que se aplicamexclusivamente à União, pessoa autônoma do federalismo, compondo achamada Constituição Federal.Por determinação constitucional, no Brasil, o Congresso Nacional exercetrês funções legislativas distintas: é i) constituinte derivado, ao discutir e votarEmendas à Constituição, e é o legislador ordinário da União, sob duas modalidades:ii) legislador federal, ao exercer as competências típicas da União, naqualidade de pessoa de direito público interno, plenamente autônoma; e iii)legislador nacional, ao dispor sobre normas gerais aplicáveis às quatro pessoaspolíticas, nas matérias previstas no art. 24, da CF, e <strong>em</strong> outras previstas nocorpo da Constituição.Percebe-se, assim, que a Constituição atribuiu funções distintas a ummesmo órgão legislativo, sob a forma de competências típicas: ao exercer opoder de reforma, com poderes para alterar a fisionomia constitucional, criandoou modificando inclusive suas próprias competências e das d<strong>em</strong>ais pessoaspolíticas, desde que não afete as chamadas cláusulas pétreas do art. 60,IV, CF; e como legislador ordinário, a partir das atribuições materiais decompetência, estabelecendo as tipificações das condutas, por lei específica,bipartindo-se <strong>em</strong> legislador federal e legislador nacional 9 .REVISTA OPINIÃO JURÍDICA97
Heleno Taveira TôrresComo dito, o Congresso Nacional é órgão que concentra tríplice função,e os processos exigidos para o exercício de cada uma delas são distintos, nãoapenas por uma questão de necessidade de maior dificuldade, definidora darigidez constitucional, para o exercício das mutações constitucionais, operadospelo Constituinte derivado, mas como razão do exercício de cada umadessas funções. Ao tríplice exercício de funções do órgão, um triplo processo,como critério de legitimação dos atos <strong>em</strong>anados por cada um deles.As leis compl<strong>em</strong>entares são figuras do ordenamento que se diferenciamdos d<strong>em</strong>ais atos legislativos tanto pela matéria (competência), quanto peloprocesso de formação (quorum qualificado de maioria absoluta 10 , art. 69,CF). Diferenciação ontológico-formal, no dizer de José Souto Maior Borges.Assim, as leis compl<strong>em</strong>entares encontram no sist<strong>em</strong>a constitucional o respectivocampo material predefinido (competência), sob a forma de matériassujeitas ao princípio de reserva de lei compl<strong>em</strong>entar (pressuposto material) esão aprovadas por maioria absoluta (pressuposto formal, art. 69, CF). Eis oquanto as difer<strong>em</strong> das leis ordinárias. E só isso.A Constituição, desse modo, como corolário do federalismo (art. 1º e18, CF) e da autonomia dos municípios (art. 18 e 29, CF), fixou todas ascompetências, inclusive as que versam sobre matéria tributária, autorizandoaos legisladores das pessoas de direito público interno a criar<strong>em</strong>, por meio deleis próprias, os tributos que lhes foram reservados, privativamente, de formaa concretizar o federalismo fiscal.Retomando a idéia anterior sobre as funções do legislador ordinário,t<strong>em</strong>os que a lei compl<strong>em</strong>entar tanto é exigida pela Constituição para servirao legislador federal (efetivando competências da União), quanto ao legisladornacional, na função de criar as chamadas “normas gerais”. É dizer, fazparte da d<strong>em</strong>arcação de competências, também, a definição daquelas quesó poderão ser exercidas exclusivamente pelo legislador federal (União) mediantelei compl<strong>em</strong>entar, assim como a competência do legislador nacional,também mediante lei compl<strong>em</strong>entar, para criar as chamadas normas gerais<strong>em</strong> matéria de legislação tributária.Desse modo, apreciando as hipóteses de cabimento de lei compl<strong>em</strong>entar<strong>em</strong> matéria tributária, t<strong>em</strong>os que, no ordenamento constitucional vigente,são matérias de reserva de lei compl<strong>em</strong>entar, <strong>em</strong> duas das funções legislativasdo Congresso Nacional:1) O exercício de competência da União (lei compl<strong>em</strong>entar federal), aqual se subdivide <strong>em</strong>:i) exercício de competências privativas específicas: arts. 148; 153, VII,CF; eii) exercício de competência residual – arts. 154, I; 195, § 6º, CF;2) A criação das normas gerais <strong>em</strong> matéria de legislação tributária (lei98n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriocompl<strong>em</strong>entar nacional – art. 24, I e 146, CF), as quais se encontramexpressas nas seguintes possibilidades:a) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, restritamenteàquelas que exig<strong>em</strong> lei específica para surtir efeitos (ex. art. 146,II; 150, VI, “c”; 195, § 7º, 156, § 3º CF);b) evitar eventuais conflitos de competência entre as pessoas tributantes,quando deverá dispor sobre fatos geradores, bases de cálculo e contribuintesdos “impostos” já identificados na Constituição (ex. art. 146,I e III, “a”; 156, III; 155, § 2º, XII, CF), e só dos impostos, por ser<strong>em</strong>estes os únicos tributos passíveis de conflitos de competências; enos limites do quanto seja suficiente para eliminar tais possibilidadesde conflitos;c) definir os tributos e suas espécies (art. 146, III, “a”, CF);d) harmonizar os procedimentos de cobrança e fiscalização dos tributos,tratando de obrigação, lançamento e crédito (redução de divergências)- art. 146, III, “b”; 155, § 2º, XII, CF;e) uniformizar os prazos de decadência e prescrição - art. 146, III, “b”,CF, b<strong>em</strong> como o tratamento jurídico que se deve oferecer às microe pequenas <strong>em</strong>presas (EC 42/03, art. 146, III, “d”); podendo estipularsuas exceções;f) conferir o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticadopelas sociedades cooperativas, na regulação do quanto possaser necessário para uniformização <strong>em</strong> termos de exceções ou deestímulo, aplicável às quatro unidades do federalismo;g) <strong>em</strong>pregar tratamento diferenciado e favorecido para asmicro<strong>em</strong>presas e para as <strong>em</strong>presas de pequeno porte, inclusive regimesespeciais ou simplificados no caso do ICMS, das contribuiçõesprevidenciárias do <strong>em</strong>pregador, inclusive do PIS, podendo criar regimeúnico de arrecadação dos impostos e contribuições da União,dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;h) e poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivode prevenir desequilíbrios da concorrência, s<strong>em</strong> prejuízo da competênciade a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo(art. 146-A)A primeira função, como assinalado acima, des<strong>em</strong>penhada pelas leiscompl<strong>em</strong>entares no sist<strong>em</strong>a tributário é de ord<strong>em</strong> federal e corresponde aoexercício de competência da União para a criação de seus tributos originariamenteatribuídos. Como se sabe, a competência legislativa tributária equivaleà parcela do poder de tributar, previamente limitada, predisposta àspessoas políticas para criar<strong>em</strong>, por meio de lei, normas jurídicas sobre tributos,quanto à instituição, arrecadação e fiscalização destes. Pois b<strong>em</strong>. A UniãoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA99
Heleno Taveira Tôrresrecebeu competências materiais que somente pod<strong>em</strong> ser exercidas medianteo uso de leis compl<strong>em</strong>entares, como é o caso do <strong>em</strong>préstimo compulsório(art. 148, CF) e do imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII, CF).Além dessa hipótese, a União recebeu, por disposição constitucionalexpressa, a chamada competência residual (art. 154, I; e 195, § 6º CF),para criar novos impostos, desde que sejam não cumulativos e não tenhamfato gerador ou base de cálculo próprios dos já existentes, ou novas contribuições,ao prever que a União poderá instituir outras fontes destinadas agarantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o dispostono art. 154, I.Em ambos os casos, o exercício da competência somente será legítimose acompanhado de lei compl<strong>em</strong>entar, por ser matéria reservada tipicamentepara essa espécie de lei. Da mesma sorte da anterior, exercida a competência,quer dizer, instituído o tributo, sua função cessa, ingressando no sist<strong>em</strong>ajurídico nacional no mesmo plano das leis ordinárias e mantendo-se, assim,<strong>em</strong> relação de coordenação com estas. Nesse caso, não há que se falar <strong>em</strong>qualquer hierarquia entre a lei compl<strong>em</strong>entar e os d<strong>em</strong>ais atos legislativos,porquanto sua função exaure-se com a instituição do tributo, cessando como próprio exercício de competência. Por conseguinte, nada impede que leiordinária modifique ou mesmo ab-rogue lei compl<strong>em</strong>entar com tais funções.Adotamos na concepção de base de nossas investigações a correntedenominada dicotômica, cuja definição das normas gerais de direito tributário,na visão do <strong>em</strong>inente Prof. Paulo de Barros Carvalho, Titular da PUC e daUSP, à luz da Constituição Federal de 1988 continuaria sendo a seguinte:(...) são aquelas que dispõ<strong>em</strong> sobre conflitos de competênciaentre as entidades tributantes e também que regulam as limitaçõesconstitucionais ao poder de tributar. Pronto: o conteúdo estáfirmado. Quanto mais não seja, indica, denotativamente, o campomaterial, fixando-lhe limites. E como fica a dicção constitucional,que desprendeu tanto verbo para dizer algo b<strong>em</strong> mais amplo?Perde-se no âmago de rotunda formulação pleonástica, que nadaacrescenta. 11Pois b<strong>em</strong>, não negamos que assim seja, nos fundamentos, mas preferimosexplicitar suas possibilidades, caso a caso, à luz das teorias da codificação,no que tange às funções representadas nas hipóteses do art. 146, CF.Corolário dessa conclusão, somente lei compl<strong>em</strong>entar, na função de“norma geral”, poderá revogar uma outra “norma geral”. Não basta ser leicompl<strong>em</strong>entar, portanto. É preciso que esteja dirigida para o fim de modificarnorma com essa função no ordenamento. Como ex<strong>em</strong>plo, mesmo que oimposto sobre grandes fortunas seja instituído, pela reserva de lei compl<strong>em</strong>entar,caso esta traga prazos próprios de decadência e prescrição, diversos,100n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributárioportanto, do quanto se encontra no CTN, será inconstitucional nesse particular,por não se verificar o atendimento à função constitucional prefixada.Mencionadas as funções que a lei compl<strong>em</strong>entar poderá des<strong>em</strong>penharpara os fins de introduzir normas gerais no sist<strong>em</strong>a tributário vigente,passamos a cuidar da posição hierárquica que essas normas dev<strong>em</strong> ocuparna escala normativa. A relação hierárquica que eventualmente possa existirentre lei compl<strong>em</strong>entar e as leis ordinárias, ou mesmo outras leis compl<strong>em</strong>entares,dependerá, tão-só, da função que ela exerça no sist<strong>em</strong>a. Eassim, caso a função seja constitutiva de algum fundamento de validade,formal ou material, a lei compl<strong>em</strong>entar s<strong>em</strong>pre terá prevalência sobre qualqueroutra lei.Como dito acima, às normas gerais aplica-se também o primado dareserva de lei compl<strong>em</strong>entar, e pelas funções pertinentes à “Constituição Nacional”,impõe-se a necessária pre<strong>em</strong>inência dessas leis compl<strong>em</strong>entares <strong>em</strong>relação às d<strong>em</strong>ais leis, mesmo que compl<strong>em</strong>entares, quando tenham por objetoo exercício de competência para instituição de tributos. Por conseguinte,prevalecerão, s<strong>em</strong>pre, sobre a legislação federal, estadual distrital oumunicipal, na medida que estas legislações passam a ter que admiti-las (asleis compl<strong>em</strong>entares que veiculam normas gerais) como fundamento de validad<strong>em</strong>aterial.Evidente, pois, que não estando a razão de hierarquia na vigência ouna eficácia da norma, a única posição questionável será aquela do plano davalidade. Por isso mesmo, tomando <strong>em</strong> conta a natural submissão do Códigoaos preceitos constitucionais, independent<strong>em</strong>ente de se tratar de uma leiordinária 12 , a Lei n. 5.172/66, enquanto “lei nacional” que é, naquilo que forfundamento de validade material para a construção da legislação do “sist<strong>em</strong>atributário nacional”, terá pre<strong>em</strong>inência sobre todas as d<strong>em</strong>ais leis, ordináriasou compl<strong>em</strong>entares, não importa, elaboradas por qualquer uma daspessoas políticas.Em resumo, a lei compl<strong>em</strong>entar deverá ser adotada pela União comoinstrumento inafastável para exercer suas respectivas competências na criaçãode “normas gerais”. Numa leitura sist<strong>em</strong>ática do art. 146, que é regratípica de Constituição Nacional, “normas gerais” somente serão aquelas quevenham a ser criadas seguindo tal espírito; quando o legislativo da União,revestindo-se das magnas funções de legislador nacional, as introduzirá noordenamento para: i) regular limitações constitucionais ao poder de tributar, detidamenteàquelas que exig<strong>em</strong> lei específica para surtir seus efeitos; ii) evitarconflitos de competência entre as pessoas tributantes, ao dispor sobre fatosgeradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos já identificados na Constituição;iii) definir os tributos e suas espécies; iv) harmonizar os procedimentosde cobrança e fiscalização dos tributos, tratando de obrigação, lançamentoe crédito; e v) uniformizar prazos de decadência e prescrição; vi) conferir adequadotratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedadesREVISTA OPINIÃO JURÍDICA101
Heleno Taveira Tôrrescooperativas; vii) <strong>em</strong>pregar tratamento diferenciado e favorecido para asmicro<strong>em</strong>presas e para as <strong>em</strong>presas de pequeno porte e viii) estabelecer critériosespeciais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios daconcorrência.3 INSTITUIÇÃO DE TRIBUTOS: A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIAA estrutura da norma tributária foi sumamente estudada por Paulo deBarros Carvalho, desde a sua obra Teoria da norma tributária até os dias dehoje, com o seu recente Direito Tributário: fundamentos da incidência tributária.Nesse seu último trabalho, construído sobre as bases do seu construtivismometodológico, mantendo-se fiel à sua compreensão da norma de condutatributária como um juízo condicional dual, composto de antecedente e conseqüente(homogeneidade sintática) e combinando-se numa duplicidade,norma primária e norma secundária (heterogeneidade s<strong>em</strong>ântica), <strong>em</strong> vistada sanção aplicável. E como método didático de redução de complexidadenormativa, apresenta o conceito da “regra-matriz de incidência”, depuradode tudo quanto não seja imprescindível à identificação do fato jurídico e darelação jurídica.Nada a essa tese t<strong>em</strong>os a acrescentar, pelo grau de precisão que carrega.Limitamo-nos, por esse motivo, a discorrer sobre a estrutura da regramatrizde incidência.A descrição normativa dos el<strong>em</strong>entos caracterizadores do fato jurídico13 aparece no “antecedente” da norma (hipótese), no qual apresenta oconceito jurídico do fato imponível, reduzindo a complexidade do “fato socialbruto”, com as propriedades selecionadas pelo legislador para sua qualificação.Pelo princípio da indecomponibilidade dos conceitos, não seria possívelcindi-lo, o que somente pode ser suplantado pela operação lógica da abstração,para permitir acesso cognoscitivo aos seus el<strong>em</strong>entos. E assim operando,haver<strong>em</strong>os de separar, por três critérios, os aspectos mais relevantes, a saber:i) o critério material, ii) o critério t<strong>em</strong>poral e iii) o critério espacial.O critério material qualifica a ação, a conduta, o comportamento depessoas, físicas ou jurídicas, condicionado a circunstâncias de espaço e det<strong>em</strong>po (critérios espacial e t<strong>em</strong>poral), para que o perfil típico esteja completo,como descrição normativa de um fato. Para melhor compreendê-lo, émister, por abstração, desligá-lo dos seus condicionantes espaço-t<strong>em</strong>porais,para não findar por descrever toda a hipótese de incidência, onde o critériot<strong>em</strong>poral é apenas um dos seus componentes lógicos. Isolado destescondicionantes, ver<strong>em</strong>os que o critério material qualifica a conduta, expressapor um verbo pessoal e de predicação incompleta.O critério espacial, por sua vez, isola o âmbito espacial dentro do qualseja possível verificar-se a ocorrência do fato jurídico. Para esta opção, olegislador poderá eleger um critério que i) venha a se confundir com a vi-102n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriogência da norma no espaço (territorialidade), mas pode também ii) superála(princípio da renda mundial), iii) reduzir-se a uma área do território (áreaurbana, área rural) ou iv) limitar-se a pontos específicos, como postos aduaneirosetc. Descreve, pois, o “lugar do fato”. São quatro as alternativas parao legislador, cuja escolha dependerá das condicionantes da materialidade edo limite constitucional, se houver.E por fim, na tipificação do fato jurídico, a norma deve especificar omarco de t<strong>em</strong>po dentro do qual tomará o fato por ocorrido, o ”t<strong>em</strong>po nofato”. Cuida-se aqui do critério t<strong>em</strong>poral. O marco t<strong>em</strong>poral assinala o átimodo surgimento do direito de a Fazenda Pública constituir formalmente ocrédito tributário; não o direito de crédito. Direito de crédito surgirá, tãosó,quando da formação do lançamento tributário. E caso este não lhe sobrevenha,ter-se-á por expirado o prazo de decadência, que passa a impedir oexercício de competência administrativa para sua constituição.A regra-matriz compõe-se ainda do conseqüente, ligado ao antecedentepelo elo de imputação deôntica (dever-ser neutro), no qual descreve arespectiva relação jurídica, na função prescritiva de linguag<strong>em</strong>. Como sintetizaPaulo de Barros Carvalho, é a “peça do juízo hipotético que estipula aregulação da conduta, prescrevendo direitos e obrigações para as pessoas físicasou jurídicas envolvidas, de alguma forma, no antecedente do fato jurídico”.E assim são identificados os el<strong>em</strong>entos da relação jurídica tributária: i)sujeito ativo, ii) sujeito passivo e iii) prestação (alíquota e base de cálculo).A relação jurídica obrigacional exsurge como vínculo jurídico(obrigacional) formado entre sujeito ativo, que possui o direito subjetivo decrédito, e sujeito passivo, portador do dever jurídico de prestar o objeto, aprestação a título de “tributo” (CTN, art. 3º), tal como determinado pelocálculo entre base de cálculo e alíquota.A base de cálculo é um dos critérios fundamentais do tipo que qualificaa relação jurídica tributária, pelas funções que realiza, como anteviuPaulo de Barros Carvalho. São elas: a) função mensuradora, por prestar-se amedir as proporções reais do fato, estabelecendo o quantum debeatur; b) funçãoobjetiva, ao compor a específica determinação da dívida; e c) funçãocomparativa, para confirmar, infirmar ou afirmar o el<strong>em</strong>ento material do antecedentenormativo, visando a garantir o respeito à classificação constitucionaldos tributos. Com estas funções, t<strong>em</strong>os valores que se vão realizandopor meio da base de cálculo, como capacidade contributiva e igualdade, namensuradora; princípio da tipicidade da hipótese, no caso da objetiva; e princípiosde tipicidade e da competência tributária, naquela comparativa. Comoé fácil perceber, trata-se de um dos fatores de fundamental importância,constituído sob critérios estritamente jurídicos, s<strong>em</strong> qualquer implicação comeconomia. Toda a sua apuração há de ser pautada por critérios jurídicos,como se vê nos casos <strong>em</strong> que se aplica regime de competência contábil, aoinvés do regime de caixa.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA103
Heleno Taveira TôrresNa identificação do fato jurídico, a tipicidade compreende, pois, todosos el<strong>em</strong>entos do tipo da hipótese: materialidade, t<strong>em</strong>poralidade eespacialidade; b<strong>em</strong> como do tipo do conseqüente, isolados mediante criteriosaseleção das propriedades necessárias e suficientes à sua qualificação. Paratanto, o legislador projeta-se para o mundo dos fatos econômicos, recortando,na sua complexa tessitura, as propriedades necessárias para que possaconferir-lhe relevância jurídica, o que faz munido com os parâmetros atribuídospela Constituição, como igualdade, direito de propriedade, justiça materiale igualdade, dentre outros.4 OS TRATADOS NO SISTEMA DE FONTES DO DIREITO POSITI-VO BRASILEIROPrescreve o CTN, no seu art. 98, que “os tratados e as convençõesinternacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serãoobservados pela que lhes sobrevenha”. Afora as regras constitucionais, essa adisposição que rege as relações entre o direito interno e o direito internacional,cuja eficácia é fort<strong>em</strong>ente respeitada pelos tribunais.De imediato, cumpre assinalar que os tratados internacionais paraevitar a dupla tributação internacional sobre a renda e o capital não são asúnicas espécies de acordos internacionais na matéria. T<strong>em</strong>os também os acordospara evitar a dupla tributação sobre a renda <strong>em</strong> sentido específico, como éo caso das <strong>em</strong>presas de transporte marítimo e aéreo, os acordos de comércio(GATT, GATS etc), quanto à previsão de incidência de regimes de nãodiscriminação,de igualdade de tratamento ou eliminação de tributação sobrea importação ou exportação de produtos 14 ; os acordos genéricos sobre tráfegointernacional, ao prever o livre trânsito de aeronaves, transportes terrestres ounavios 15 s<strong>em</strong> o pagamento de tributos (CNUDM); as convenções que contémprevisões quanto às concessões de imunidades e privilégios diplomáticos e asque tratam de cooperação técnica ou científica, dentre outros. Todos essesacordos, mesmo versando sobre matéria própria (comércio, cooperação, tráfegointernacional etc), traz<strong>em</strong> disposições de natureza tributária, como condiçãopara o impl<strong>em</strong>ento do quanto se identifica como seu objeto principal,geralmente mediante a concessão de benefícios fiscais típicos.Para que o tratado ou convenção internacional apresente-se no sist<strong>em</strong>ajurídico de um dado país como veículo introdutor de normas, adquirindoaplicabilidade interna a este, precisa atender aos requisitos de validade típicosdo direito constitucional de cada um dos ordenamentos dos signatários16 , após, preliminarmente, estar<strong>em</strong> atendidos os critérios do direito dasgentes. A formalidade de ratificação, contudo, dependerá do modelo derecepção que tenha sido adotado pelo Estado, que pode ser de três tipos:Reconhecimento automático: as convenções internacionais formam, automaticamente,parte do direito nacional ao entrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> vigor, s<strong>em</strong> neces-104n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriosidade de uma ord<strong>em</strong> de aplicação ou edição de uma lei com o respectivoconteúdo;Incorporação: as convenções internacionais, para que venham a produzirefeitos jurídicos válidos sobre um Estado, dev<strong>em</strong> ser recepcionadas poruma ord<strong>em</strong> legislativa, para a respectiva aplicação, somente entrando <strong>em</strong>vigor com a ratificação;Transformação: as convenções internacionais convert<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> direitointerno pela edição de uma lei com o mesmo conteúdo. Nos termos dess<strong>em</strong>odelo, as convenções, enquanto tais, não têm a possibilidade de produzirefeitos jurídicos, porque esses efeitos derivam das leis nacionais, editadascom o inteiro teor das mesmas.Alega a maioria dos doutrinadores que a Constituição do Brasil nãocontém enunciados expressos que disponham sobre o reconhecimento dodireito internacional, salvo algumas poucas e esparsas referências às formasprocedimentais encontradas no bojo das normas de repartição de competências,como se vê nos arts. 21, I; 49, I; 84, VIII, da CF. Contrariamente, entend<strong>em</strong>osque a Constituição Federal disponibiliza, sim, um conjunto de enunciados,decerto restrito, mas adequados à definição dos critérios de recepçãoe a posição que dev<strong>em</strong> ocupar no direito interno.De início, a Constituição Federal dispõe como sendo competência daUnião, nos termos do art. 21, CF, “manter relações com Estados estrangeirose participar de organizações internacionais”, o que <strong>em</strong> seguida é discriminadopara o órgão próprio, Presidência da República, pelo art. 84, VIII, da CF,a competência privativa para “celebrar tratados, convenções e atos internacionais,sujeitos a referendo do Congresso Nacional”. Como a competênciaatribuída é “privativa”, admite delegação e, por esse motivo, preocupa-se aConstituição <strong>em</strong> investir como autoridade competente o Presidente da Repúblicapara, privativamente, manter relações com Estados estrangeiros e acreditarseus representantes diplomáticos (art. 84, VII). representantes plenipotenciáriosdaquela autoridade (Ministro das Relações Exteriores e Chefe de missãodiplomática) ou os representantes diplomáticos, desde que portadores deCarta de Plenos Poderes.No Brasil, é o Presidente da República, enquanto chefe de Estado,atuando <strong>em</strong> nome da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1ºda Constituição, o órgão dotado de competência para firmar qualquer acordointernacional, sujeito ao controle por parte do Legislativo nos casos queespecifica. Internacionalmente, contudo, trata-se de ato irrelevante, essedo controle parlamentar, desprovido de qualquer influência sobre os interessesdas d<strong>em</strong>ais partes envolvidas no ato internacional, salvo quanto às reservasque possam ser feitas, mesmo se internamente apresente-se como conditiosine qua non para validade do ato de recepção. É o que se dessume do art. 49,I, CF, que prevê como de “competência exclusiva” do Congresso NacionalREVISTA OPINIÃO JURÍDICA105
Heleno Taveira Tôrres“resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais queacarret<strong>em</strong> encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.Nesta ord<strong>em</strong>, o tratado celebrado pelo Presidente da República t<strong>em</strong>que receber, como critério inafastável para adentrar ao sist<strong>em</strong>a, o referendode aprovação <strong>em</strong>itido por Decreto Legislativo do Congresso Nacional, quandoacarret<strong>em</strong> encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, ajuízo do Congresso Nacional, que deve se pronunciar s<strong>em</strong>pre, <strong>em</strong> face d<strong>em</strong>ensag<strong>em</strong> do Presidente da República, acompanhada do texto do tratado,acordo ou ato internacional já autenticado e assinado, e cujo objeto consistirána autorização ao Presidente da República para a respectiva ratificação.O Decreto Legislativo é produto do processo legislativo (art. 59, VI daCF) que t<strong>em</strong> regime célere de aprovação (art. 151, I, “j”, do RegimentoInterno da Câmara dos Deputados, e art. 376, do Regimento Interno doSenado Federal) por maioria simples de votos (art. 47 da CF) e não carecede sanção do Poder Executivo (art.109, II do Regimento Interno da Câmarados Deputados). Quando aprovado, o Presidente do Senado determina suapublicidade, acompanhado do inteiro teor do Tratado ou Convenção, noDiário do Congresso Nacional. Trata-se, o referendo do Poder Legislativo,na espécie, de manifestação jurídica de vontade que faz inserir noordenamento nacional norma autorizativa para o que o órgão Presidência daRepública promova sua ratificação, e, quando assim procedido, obrigacional,para os fins de determinar a vinculação do Estado à observância das suasdisposições, pela garantia de execução na ord<strong>em</strong> interna, nos termos dassuas cláusulas de vigência e denúncia.4.1 O procedimento de recepção dos tratados internacionais na ord<strong>em</strong>internaHavendo o reconhecimento de compatibilidade com a ord<strong>em</strong> internae com os interesses nacionais, mediante referendo do Congresso Nacional, aconvenção internacional poderá ser “ratificada”, ficando ainda sob adiscricionariedade 17 do Presidente da República a decisão sobre o melhormomento e a conveniência para sua efetivação, mediante troca dos instrumentosde ratificação ou o respectivo depósito destes.O ato de ratificação aperfeiçoa-se com a notificação dada ao outropaís signatário ou ao depositário. Destarte, somente com o conhecimentopela outra parte, mediante a troca dos instrumentos de ratificação (ou depósitodas ratificações, quando multilateral), passará o tratado a produzir os seusefeitos entre as partes (pacta non obligant nisi gentes inter quas inita). Quanto ànatureza jurídica, o ato de ratificação não é mais do que uma comunicaçãoformal dirigida à parte depositária das ratificações, quando se trata de acordosmultilaterais, ou ao outro Estado, no caso de acordo bilateral, vinculandoo Estado, nos termos da autorização legislativa (se houver alguma reser-106n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriova). Por isso, o ato de ratificação é irretratável, cabendo apenas a denúnciado tratado, caso o Estado deseje posteriormente afastar-se do compromissoassumido.Após esse ato de ratificação, promulga o Presidente um Decreto, atointeiramente administrativo, pretendendo dar publicidade e executoriedadeao respectivo tratado (aprovado pelo Decreto Legislativo), que segue anexoao mencionado Decreto 18 .Para alguns, o iter procedimental de incorporação dos tratados internacionaisconclui-se com a expedição desse Decreto, do qual decorreriamtrês conseqüências distintas: i) a promulgação do tratado internacional; ii)a publicação oficial de seu texto; e iii) a executoriedade do ato internacional,que passa, a ser vinculante no plano do direito interno. Alberto Xavieradmite esse efeito vinculante para o decreto presidencial, no processo deelaboração dos tratados, quanto ao início da aplicabilidade do conteúdo dasconvenções ratificadas. E seguindo essa opinião há vários outros autores, etambém o próprio Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal, ao decidir que os tratados somenteadquir<strong>em</strong> validade no ordenamento interno após a expedição do respectivoDecreto, como se vê nos fundamentos de recente Acórdão, in verbis:Na realidade, o Protocolo de Medidas Cautelares (MERCOSUL)– que se qualifica como típica Convenção Internacional – nãose incorporou definitivamente à ord<strong>em</strong> jurídica doméstica doEstado Brasileiro, eis que ainda não se concluiu o procedimentoconstitucional de sua recepção pelo sist<strong>em</strong>a normativo brasileiro.(...) Esse entendimento jurisprudencial veio a ser confirmado ereiterado no julgamento da ADIN. nº 1.480 – DF, Rel. Min.Celso de Mello, ocasião <strong>em</strong> que se enfatizou, uma vez mais, queo decreto presidencial, que sucede à aprovação congressual doato internacional e à troca dos respectivos instrumentos deratificação, revela-se – enquanto momento culminante doprocesso de incorporação desse ato internacional ao sist<strong>em</strong>ajurídico doméstico (...). 19Parece não ser aceitável que um tratado, elaborado pelas autoridadescompetentes, segundo a designação constitucional e a aquiescênciainternacional, devidamente autenticado e assinado, reconhecido pelo PoderLegislativo, pelo referendo atribuído pelo Decreto Legislativo, comulterior publicação deste, e ratificado, gerando o compromisso da RepúblicaFederativa do Brasil na ord<strong>em</strong> internacional, perante outra ou váriasnações signatárias, apesar de tudo isso, tenha que ficar a mercê de um atoadministrativo, o Decreto do Presidente da República. A prevalecer essecritério, o tratado, após sua ratificação, vigoraria apenas no plano internacional,s<strong>em</strong> gerar efeitos no plano interno, o que colocaria o Brasil naprivilegiada posição de poder exigir a observância do pactuado pelas outraspartes contratantes, s<strong>em</strong> ficar sujeito à obrigação recíproca, atribuin-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA107
Heleno Taveira Tôrresdo os respectivos direitos aos destinatários do seu conteúdo, ou realizandoos deveres ali estabelecidos.Em resumo, o tratado é recepcionado na ord<strong>em</strong> interna não medianteo ato final – o Decreto do Presidente da República –, mas, quando presenteo Decreto Legislativo oriundo do Congresso Nacional, tenha-se a respectivaratificação. Por isso, o início do prazo de vigência da Convenção, a partir doqual os interessados poderão reclamar os compromissos assumidos pelos Estados-partes,não decorre do ato administrativo que, consuetudinariamente, atítulo de conferir-lhe publicidade e execução, pretende servir como pressupostode validade, pelo procedimento. A vigência do acordo começará a contarexclusivamente a partir do ato de ratificação, marco de comprometimentodo Estado pelas disposições convencionais, como previsto no corpo dotratado, pela aprovação mediante o Decreto Legislativo expedido pelo CongressoNacional.4.2 Relações entre normas de direito internacional e o direito interno, àluz da Constituição da RepúblicaEm vista das disposições de Direito Constitucional, revela-se comoperfeitamente garantido no direito interno o efeito de prevalência deaplicabilidade que as convenções <strong>em</strong> matéria tributária sobre a legislaçãoinfra-constitucional, o que se encontra declarado no art. 98, do Código TributárioNacional, que é lei nacional, com eficácia de Lei Compl<strong>em</strong>entar, nopapel de norma geral, como prescreve o art. 146, III, da Constituição. Najurisprudência dos tribunais, confirma-se esse entendimento, com particularevidência no Superior Tribunal de Justiça – STJ, a qu<strong>em</strong> compete julgar <strong>em</strong>última instância as causas baseadas <strong>em</strong> conflitos entre tratados ou convençõesinternacionais e o direito interno. Todavia, até o presente, o Supr<strong>em</strong>oTribunal Federal ainda insiste na tese de equivalência do tratado à lei ordinária.Resume-se o entendimento do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal basicamenteao quanto ficou decidido na ADI 1480, nos seguintes termos:(...) PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOSINTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTI-TUCIONAIS DE DIREITO INTERNO - Os tratados ouconvenções internacionais, uma vez regularmente incorporadosao direito interno, situam-se, no sist<strong>em</strong>a jurídico brasileiro, nosmesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade <strong>em</strong> quese posicionam as leis ordinárias, havendo, <strong>em</strong> conseqüência, entreestas e os atos de direito internacional público, mera relação deparidade normativa. Precedentes. No sist<strong>em</strong>a jurídico brasileiro,os atos internacionais não dispõ<strong>em</strong> de primazia hierárquica sobreas normas de direito interno. A eventual precedência dos tratadosou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais108n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriode direito interno somente se justificará quando a situação deantinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a soluçãodo conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (‘lexposterior derogat priori’) ou, quando cabível, do critério daespecialidade. Precedentes. (...). 20Qualquer atitude de hermenêutica constitucional nessa específicamatéria, para ser consistente, deve começar pelas disposições do art. 4º, CF,que relaciona os princípios fundamentais – todos princípios consagrados naord<strong>em</strong> jurídica internacional – a ser<strong>em</strong> observados pelo Estado brasileiro nassuas relações internacionais 21 . Como são “princípios fundamentais” que reg<strong>em</strong>a relação entre o Estado brasileiro e os d<strong>em</strong>ais Estados no conserto dasnações, a eficácia de tais fundamentos ficaria severamente prejudicada casoaos tratados e convenções internacionais não fosse atribuída prevalência deaplicabilidade sobre o direito interno infraconstitucional. Eis porque o ConstituinteFederal fez questão de enfatizar o princípio de prevalência do direitointernacional sobre o direito interno.Todo tratado internacional encontra-se hierarquicamente subordinadoà Constituição, devendo o seu conteúdo ser compatível com o texto constitucional,sob pena de seu imediato banimento da ord<strong>em</strong> jurídica; salvo <strong>em</strong>se tratando de direitos humanos, situação na qual outros princípios decorrentesdos tratados internacionais, <strong>em</strong> que a República Federativa do Brasilseja parte, serão incorporados ao próprio texto do art. 5º, não podendo sequerser<strong>em</strong> alcançados por Emenda à Constituição (art. 60, § 4º, IV, CF),subordinando-se apenas à apreciação do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal, quepoderá ser provocado para apreciar a respectiva compatibilidade (art. 102,III, b). Quer dizer, sendo uma convenção <strong>em</strong> matéria de direitos humanosrecepcionada pelo sist<strong>em</strong>a jurídico e ratificada validamente, nos termos dodualismo sistêmico, tal conteúdo passará a ter o mesmo nível hierárquicodos Direitos e Garantias Fundamentais já relacionados na Constituição,mesmo que nunca deixe de ser direito internacional.E essa conclusão não implica aceitar as pr<strong>em</strong>issas adotadas na decisãoacima indicada (ADI 1480), como b<strong>em</strong> entendeu o Ministro Sepúlveda Pertence,in verbis:(...) 4. Prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobrequaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteçãoaos direitos humanos, que impede, no caso, a pretendida aplicaçãoda norma do Pacto de São José: motivação. (...) 2. Assim comonão o afirma <strong>em</strong> relação às leis, a Constituição não precisoudizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita <strong>em</strong>preceitos inequívocos seus, como os que submet<strong>em</strong> a aprovaçãoe a promulgação das convenções ao processo legislativo ditadopela Constituição e menos exigente que o das <strong>em</strong>endas a ela eaquele que, <strong>em</strong> conseqüência, explicitamente admite o controleREVISTA OPINIÃO JURÍDICA109
Heleno Taveira Tôrresda constitucionalidade dos tratados (CF, art. 102, III, b). 3. Alinharseao consenso <strong>em</strong> torno da estatura infraconstitucional, na ord<strong>em</strong>positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não implica assumircompromisso de logo com o entendimento - majoritário <strong>em</strong> recentedecisão do STF (ADInMC 1.480) - que, mesmo <strong>em</strong> relação àsconvenções internacionais de proteção de direitos fundamentais,preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente àsleis ordinárias. (...). 22Quanto aos d<strong>em</strong>ais tratados ou convenções internacionais, firmados<strong>em</strong> matérias distintas, como é o caso da matéria tributária, estes manter-seão,s<strong>em</strong>pre, <strong>em</strong> plano inferior à Constituição Federal, podendo inclusive vir<strong>em</strong>a ser declarados inconstitucionais, no todo ou <strong>em</strong> parte, pelo STF, talqual os que versar<strong>em</strong> sobre direitos humanos, quando incompatíveis com oteor da Constituição. Isso decorre do art. 102, III, b, CF, ao dizer que competeao Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,cabendo-lhe, mediante recurso extraordinário, declarar a inconstitucionalidadede tratado ou lei federal, no controle difuso ou concentrado.Sobre a possibilidade de resolução de conflitos <strong>em</strong> matéria de tratados,a aplicação da regra lex posterior derogat priori, tal como admitida naADI 1480, não se compagina com uma adequada interpretação conforme àConstituição. A esse respeito, a Constituição deixou muito b<strong>em</strong> definida aposição dos tratados <strong>em</strong> face das leis, tal como assentado acima, o que nosimpõe concluir, no quadro atual, apesar da Jurisprudência do STF, que:I - o tratado mantém-se como “direito internacional” na ord<strong>em</strong> interna,como se verifica pelo procedimento de incorporação adotado;II – haja vista a Constituição Federal, para os fins de resolver conflitosde interesses baseados <strong>em</strong> tratados ou convenções, dispor que compete aoSTF “declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”, isto seriadespiciendo se o “tratado” fosse “lei” para o direito interno, cabendo falarapenas <strong>em</strong> declaração de inconstitucionalidade de “leis”; na mesma linha,as distribuições de competências aos juízes federais e tribunais, com exclusividadepara as matérias veiculadas por tratados internacionais, também seriainútil, bastando expressa referência à “lei federal”;III – os tratados firmados pela República mantêm-se, desse modo, nodireito interno, subordinados à Constituição e com prevalência deaplicabilidade sobre qualquer lei, compl<strong>em</strong>entar ou ordinária; federal, estadual,distrital ou municipal; anterior ou posterior ao seu ingresso na ord<strong>em</strong>jurídica, não se podendo aplicar ao caso as regras típicas de antinomia.Estivéss<strong>em</strong>os falando de direito forâneo, de direito estrangeiro propriamentedito, que devesse ser aplicado na ord<strong>em</strong> interna, por determinaçãode uma regra de conflito, como acontece no Direito internacional Privado,110n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributárioentão aí sim, caberia dizermos de uma coordenação hierárquica entre a leiestrangeira e a lei nacional, equiparando-as às leis ordinárias internas; masnão ao direito internacional.E para decidir os conflitos baseados <strong>em</strong> tratados internacionais, prescrevea Constituição Federal, além da possibilidade de declaração deconstitucionalidade, a competência dos juízes federais (art. 109, III, CF) paraprocessar e julgar as causas fundadas <strong>em</strong> tratado ou contrato da União comEstado estrangeiro ou organismo internacional; e, por decorrência, aos TribunaisRegionais Federais (art. 108, II, CF), para julgar, <strong>em</strong> grau de recurso, ascausas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício dacompetência federal da área de sua jurisdição. E ainda, ao Superior Tribunalde Justiça (art. 105, III, “a”, CF), a qu<strong>em</strong> cabe julgar, <strong>em</strong> recurso especial, ascausas decididas, <strong>em</strong> única ou última instância, pelos Tribunais RegionaisFederais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios,quando a decisão recorrida: contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhesvigência.4.3 A vedação constitucional de a União conceder isenções sobre tributosestaduais e municipais e os tratados internacionaisExiste uma espécie de preconceito declarado contra a aplicação dostratados internacionais no direito brasileiro, posto como se houvesse oposiçãoentre a Constituição e aqueles instrumentos normativos, especialmentequando esses acordos institu<strong>em</strong> isenções a tributos estaduais ou municipais.É verdade que na Constituição Federal, dentre as limitações ao poder detributar, existe uma restrição expressa à União quanto à instituição de isençõesde tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dosMunicípios (art. 151, III, CF). Por conta deste dispositivo é que se apresentamtantas celeumas sobre o assunto, com alegações de vedação às “isençõesheterônomas”. Vale refletir melhor sobre esse assunto.A “União”, enquanto representante da República Federativa do Brasil,logo, pessoa jurídica de direito público internacional, constitucionalmentecompetente para comprometer o Estado brasileiro na ord<strong>em</strong> internacional,não se confunde com a “União”, pessoa jurídica de direito públicointerno, que compõe a organização político-administrativa brasileira (art.18, CF), de forma federativa (art. 1º, CF), dotada das atribuições constitucionalmentedistribuídas segundo os interesses do Constituinte.Confirma esse raciocínio José Souto Maior Borges, para qu<strong>em</strong> constitui“equívoco el<strong>em</strong>entar transportar os critérios constitucionais de repartiçãodas competências para o plano das relações interestatais. Essas reclamamparadigma diverso de análise. Nesse campo, como já o fizera dantescom as leis nacionais, a CF dá à União competência para vincular o Estadobrasileiro <strong>em</strong> nome dela e também dos Estados-m<strong>em</strong>bros e Municípios. AREVISTA OPINIÃO JURÍDICA111
Heleno Taveira Tôrresprocedência dessa ponderação é corroborada pelo art. 5º, § 2º, da CF, in fine,ao referir expressamente os ‘tratados internacionais <strong>em</strong> que a República Federativado Brasil (sic: não a União Federal) é parte’. São, pois, áreas diversase autônomas de vinculação jurídica”.Na composição federativa, por rigor, deve-se ter s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> mente adistinção entre ord<strong>em</strong> jurídica global, inerente à República Federativa do Brasil,sujeito de direito público externo, definida como sist<strong>em</strong>a de normas nacionais,e as ordens jurídicas parciais: central (a União) e periféricas (Estados-M<strong>em</strong>bros), que estão submetidas à discriminação constitucional de competências.Entre os entes formadores das ordens jurídicas parciais não há pre<strong>em</strong>inênciaou relação hierárquica de uma sobre a outra, visto ser<strong>em</strong> autônomase isonômicas entre si e diferenciar<strong>em</strong>-se apenas pela distinção das competênciasmateriais pertinentes a cada uma. Mas não se diga o mesmo quantoà relação entre a ord<strong>em</strong> jurídica global e soberana (representante dosinteresses nacionais) e as ordens parciais. A ord<strong>em</strong> global soberana prevalecesobre as ordens parciais autônomas.A União, na qualidade de pessoa de direito público internacional,não está limitada <strong>em</strong> seu poder por efeito do princípio federativo, afinal, incasu, ela exerce exclusivamente a soberania, s<strong>em</strong> conhecer qualquer limitação,a salvo as de direitos humanos ou dos princípios e regras de direitointernacional, seja de ord<strong>em</strong> interna, uma vez que os entes federados sãoapenas autônomos, e não “soberanos”, seja de ord<strong>em</strong> externa, quanto aodireito de estados estrangeiros.As normas constitucionais de “repartição de competência tributária”,e, por corolário, as de “limitações ao poder de tributar”, estão dispostaspara a distribuição de competência entre si, o que não impede que oscompromissos, <strong>em</strong> matéria tributária, internacional e soberanamente assumidospela União, representante da República Federativa do Brasil (quandoatende interesses de cunho nacional), derrogu<strong>em</strong> a prescrições constitucionaispredispostas para a supressão de possíveis conflitos de competência– justo por não haver aqui qualquer conflito de competência, <strong>em</strong> vistada soberania.Seria ilógico pensar que apenas a União (pessoa jurídica de direitopúblico interno – ord<strong>em</strong> parcial autônoma, do mesmo modo com os Estadose Municípios) tivesse que ser a única a sofrer as coarctações ou a beneficiarsedas concessões inerentes às disposições acordadas nas convenções firmadaspela República Federativa do Brasil. O interesse nacional deve prevalecersobre os interesses dos entes federados, s<strong>em</strong>pre, pelo que não se deveconfundir autonomia com sabedoria estatal. Outros fundamentos, tão relevantesquanto o federalismo, como é o caso da presença da Nação na ord<strong>em</strong>internacional com autodeterminação, respeitando a todos os preceitosinsculpidos no art. 4º da Constituição, exig<strong>em</strong> tal postura hermenêutica.112n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito TributárioE dizendo isso estamos afirmando que não há qualquer antinomia entrenormas tributárias de direito interno que tragam na hipótese de incidênciamaterialidade isenta por tratado internacional, pela necessária prevalênciade aplicabilidade que se deve conferir ao direito internacional.Tratando-se de matéria tributária, o artigo 98 do CTN dispõe sobre asuperioridade das normas internacionais, sejam elas anteriores, sejamsupervenientes. Esse dispositivo, apesar da competência do CTN <strong>em</strong> disporacerca de normas gerais <strong>em</strong> matéria de legislação tributária, t<strong>em</strong> caráterdeclarativo, visto que a superioridade das normas internacionais é consagradapela Constituição <strong>em</strong> qualquer esfera normativa.Contudo, esta orientação ainda encontra na jurisprudênciainexplicáveis resistências. Como ex<strong>em</strong>plo, o Superior Tribunal de Justiça queentende ser vedado à União celebrar tratados isentando tributos estaduais,<strong>em</strong> face do princípio federativo e da vedação à União de instituir isençõesheterônomas, nos termos do art. 151, III (Recurso Especial n. 90.871/PE). 23Mas, como nos fala a maior autoridade nacional <strong>em</strong> matéria isencional, JoséSouto Maior Borges,não é a rigor, de isenção heterônoma, senão autônoma, que setrata. Autonomia da pessoa isentante – a Federação – cuja únicapeculiaridade consiste no caráter plurilateral da sua instituição.Sob essa nova óptica, justifica-se o contraste (a) isençõesunilaterais de direito interno (autônomas ou heterônomas), (b)isenções plurilaterais de direito interestatal (autônomas). Asprimeiras são s<strong>em</strong>pre resultantes de atos de direito internoresultantes; as segundas, de atos de direito interestal.Desta feita, qualquer que seja a espécie de benefício fiscal (isenção,deduções, etc.) concedido a imposto estadual ou municipal mediante convençãointernacional, torna-se, tal norma, cogente e plenamente vinculantepara a Fazenda estatal, distrital ou municipal quanto à concessão, conformepactuado. Esta é a interpretação que melhor se coaduna com a realidadenormativa e constitucional brasileira.5 O PAPEL DOS DECRETOS NO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASI-LEIROQuanto aos Decretos, o art. 99, CTN, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos nos quais esses instrumentosnormativos tinham grande força e poder de inovação, assim dispôs:“o conteúdo e o alcance dos decretos restring<strong>em</strong>-se aos das leis <strong>em</strong>função das quais sejam expedidos, determinados com observância das regrasde interpretação estabelecidas nesta Lei”.De início, vale salientar que quando a Constituição atribui competêncianormativa ao Poder Executivo, limita-se à indicação de poucos ins-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA113
Heleno Taveira Tôrrestrumentos de introdução de regras, afora aqueles que compõ<strong>em</strong> o processolegislativo (medida provisória e leis delegadas – vide art. 59, CF), a saber: i)no art. 84, IV, competência para expedir decretos e regulamentos para a fielexecução das leis, referendados, s<strong>em</strong>pre, pelos ministros competentes da respectivaárea de atuação (art. 87, parágrafo único, I, CF); e nos limites dalegalidade, sob pena de ser<strong>em</strong> sustados pelo Congresso Nacional (art. 49,V), quando exorbit<strong>em</strong> tal poder regulamentar. E, ad<strong>em</strong>ais, ii) quando prescreveque compete ao Ministro de Estado “expedir instruções para a execuçãodas leis, decretos e regulamentos” (art. 84, parágrafo único, II, CF).Decretos e Instruções Ministeriais, apenas estes, são os instrumentosnormativos de execução legislativa admitidos. Assim, os “Decretos”, expedidospelo Presidente da República, acompanhados dos referendos dos Ministroscompetentes, sujeitos ao controle posterior do Congresso Nacional; e as“Instruções” (ministeriais) para a execução das leis, decretos e regulamentos”,formam o grupo dos únicos instrumentos normativos previstos pela Constituição<strong>em</strong> favor da competência normativa do Poder Executivo, afora asMedidas Provisórias e Leis Delegadas.Os campos de atuações materiais de ambos os instrumentos assinaladosencontram-se b<strong>em</strong> definidos, s<strong>em</strong> qualquer possibilidade de inversões.Por ex<strong>em</strong>plo, o art. 153, § 1º, CF, ao se referir, <strong>em</strong> sentido lato, ao PoderExecutivo, parece admitir que Decretos ou Instruções (ministeriais) possamdispor a respeito das alíquotas dos impostos ali referidos; ainda mais pelaoutorga de poderes conferida pelo inciso IV, do parágrafo único, do art. 87,CF, para “praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe for<strong>em</strong> outorgadasou delegadas pelo Presidente da República”. Presente o ato de outorgade poderes, então, não haveria razão para justificar a impossibilidade de quetais alíquotas não pudess<strong>em</strong> ser veiculadas por instruções ministeriais.Entretanto, assim não pensamos. Postulamos o entendimento segundoo qual s<strong>em</strong>pre que a Constituição se reporta ao Poder Executivo, <strong>em</strong> sentidoamplo, está a exigir a edição de “Decretos”, porquanto devam ser editadospelo Presidente, na regulamentação das leis, e s<strong>em</strong>pre passíveis de referendopelo Ministro da respectiva pasta competente; a Instrução (ministerial), apesarde depender de ato do outorga de poderes, não se vê subjugada a umcontrole prévio para sua edição. Suplantaria a colaboração exigida para oDecreto, contra a vontade constitucional, portanto, a Instrução ministerialque dispusesse sobre aumento de alíquotas dos impostos relacionados peloart. 153, § 1º, da CF.Grave, por conseguinte, é a utilização de “Instrução Normativa”, editadapelo Secretário da Receita Federal, no papel de veículo regulamentar 24executivo de lei ou tratado internacional, a pretexto de autorização expressado inciso II, do parágrafo único do art. 87, da CF, in verbis: “Expedir instruçõespara a execução das leis, decretos e regulamentos”, por outorga de poderes doMinistro da Fazenda, o que se evidencia como uma corruptela do anseio cons-114n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriotitucional. Ou seja, não se poderia suplantar a mútua colaboração entre Presidenteda República e Ministros, sob amparo de mera atribuição genérica depoderes (inciso IV, do parágrafo único do art. 87, CF) por um dos Ministros deEstado. E isso é mais evidente <strong>em</strong> se tratando de Convenção internacional,cujas disposições geralmente depend<strong>em</strong> de uma série de medidas para suaexecução no âmbito interno, passível de regulamentação.Em apertada síntese, a Instrução Normativa (IN) não participa dosinstrumentos normativos habilitados pela Constituição para regulamentar“leis” ou “tratados internacionais”; ausente de prévio Decreto ou Instrução(ministerial) que regulamente a lei ou tratado, a Instrução Normativa é atonormativo plenamente ilegítimo para determinar a aplicabilidade, no âmbitointerno, dos atos internacionais, a ex<strong>em</strong>plo do Acordo de Valoração Aduaneira,b<strong>em</strong> como dos atos normativos dos órgãos responsáveis pela sua aplicaçãoe <strong>em</strong>prego. Que sejam as “INs” aplicáveis na hipótese de edição docompetente Decreto Presidencial, disso não se cogita; mas que possam pretendersubstituir a posição e função constitucional dos decretos, isso decertonão encontra nenhum amparo constitucional.6 AS NORMAS COMPLEMENTARES NO DIREITO TRIBUTÁRIOBRASILEIROPor fim, o CTN refere-se às chamadas “normas compl<strong>em</strong>entares”, noart. 100, qualificando, como tais, todos os atos administrativos decompl<strong>em</strong>entação, no âmbito de execução, das leis, dos tratados e das convençõesinternacionais e dos decretos, a saber:I - os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas;II - as decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdiçãoadministrativa, a que a lei atribua eficácia normativa;III - as práticas reiteradamente observadas pelas autoridadesadministrativas;IV - os convênios que entre si celebr<strong>em</strong> a União, os Estados, oDistrito Federal e os Municípios.Parágrafo único. A observância das normas referidas neste artigoexclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de morae a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo.Esses instrumentos normativos, denominados por Paulo de Barros Carvalhode instrumentos secundários de introdução de normas, por não ter<strong>em</strong> caráterinovador do ordenamento, operam exclusivamente <strong>em</strong> nível de execuçãode leis, tratados e decretos (mesmo que este carregue também essa funçãoexecutiva). Contudo, não se pode desconhecer o amplo espaço de deliberaçãono campo interpretativo que, <strong>em</strong> muitas ocasiões, promove diversoscasos de conflituosidades na aplicação da lei tributária.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA115
Heleno Taveira TôrresDentre as modalidades acima elencadas, a de maior dificuldade deentendimento repousa sobre as chamadas práticas reiteradamente observadaspelas autoridades administrativas. A jurisprudência do STJ e o STF, ao apreciartal matéria, d<strong>em</strong>onstra firme convicção que o recolhimento de tributosbaseado no entendimento fazendário assim concebido, não implica o pagamentode multa ou juros, nas hipóteses de eventual mudança de entendimentoou mesmo de alteração do ato normativo publicado, porquanto agira,o contribuinte, <strong>em</strong> coerência quanto ao entendimento reconhecido pela própriaFazenda Pública 25 .Sab<strong>em</strong>os que a proibição de venire contra factum proprium foi s<strong>em</strong>preutilizada no direito privado como medida de apreciação moral e de boa-fé,para impedir que uma parte exerça pretensos direitos contra outra <strong>em</strong> contradiçãocom condutas ou opiniões assumidas anteriormente. Firmada umaexpectativa de confiança legítima, <strong>em</strong> virtude de comportamentos indicativosde certa orientação, não pode um sujeito, com surpresa, alterar seus propósitospara obter uma vantag<strong>em</strong> sobre a conduta esperada.Tal reclamo de coerência, tanto mais, exige-se da Administração Pública,que não pode aceitar o teor de um ato normativo <strong>em</strong> diversas situaçõese a outras impor restrições s<strong>em</strong> que incorra <strong>em</strong> contrariedade ao princípioda moralidade administrativa, presente no art. 37 da nossa Constituição,como fundamento para qualquer espécie do agir administrativo, que não sebasta com o formalismo da legalidade, mas que cobra eticidade e proteção àconfiança legítima projetada nos cidadãos.O móvel dos valores que orientam o princípio da confiança legítima visaa resguardar os cidadãos contra incertezas jurídicas, inopinadas mudançasde entendimentos ou de interpretações administrativas. E não é recente noBrasil a aplicação da teoria da confiança legítima ou da proteção contra ovenire contra factum proprium 26 (nulli conceditur) <strong>em</strong> matéria tributária, mesmoque não se tenha quedado expresso o seu <strong>em</strong>prego. Vê-se, por ex<strong>em</strong>plo,no Recurso Extraordinário n. 62.252/SP, de 10.03.1969, quando o STF repeliua legalidade <strong>em</strong> favor da moralidade, não admitindo alteração do critériode lançamento, no mesmo exercício, sobre tributo já notificado e pago pelocontribuinte.Outra questão delicada, ainda nesses domínios, diz respeito aos chamados“atos interpretativos”, que a título de “esclarecer”, criam verdadeirashipóteses de incidências, inovando o sist<strong>em</strong>a; ou mesmo o conflito entre atosde distintas autoridades, como os que ocorr<strong>em</strong> entre decisões de órgãos colegiaisseguidos de atos declaratórios, de nível normativo, com entendimentocontrário ao que fora reconhecido pelos julgadores, <strong>em</strong> sentido favorávelao contribuinte. Pensamos que <strong>em</strong> favor da garantia do princípio de confiançalegítima, também aqui, não há como prosperar mudanças de entendimentocom pretensões retroativas, mesmo que esta seja situação perfeitamente distinta,porquanto se tenha típico caso de conflito entre ato normativo e deci-116n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriosão administrativa <strong>em</strong> caso concreto, que não gera efeito vinculante para aAdministração 27 , a título de norma compl<strong>em</strong>entar, <strong>em</strong> virtude da ausênciade caráter normativo.E não se diga que para o deslinde desse t<strong>em</strong>a aplicam-se as disposiçõesdo art. 106, CTN, segundo o qual “a lei aplica-se a ato ou fato pretérito:I - <strong>em</strong> qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluídaa aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados(...)”. É que aqui somente na hipótese de “lei” mais benigna ou de “lei”expressamente interpretativa, pode-se falar <strong>em</strong> retroatividade das leis tributárias,haja vista a ausência de inovação ao catálogo das situações tributáveisou de obrigação mais gravosa para os sujeitos destinatários. Esse dispositivoaplica-se unicamente à “lei”, e não à “legislação tributária”. E assim, atosadministrativos normativos, a título de ser<strong>em</strong> “interpretativos” (atosdeclaratórios e congêneres), não pod<strong>em</strong> retroagir, modificando tratamentosque tenham sido determinados <strong>em</strong> decisões de órgãos colegiados dejurisdição administrativa, a que a lei atribua eficácia normativa, nos casosde práticas reiteradas da administração ou quando a matéria tenha sidoobjeto de convênios. Valerão, como tais, para o futuro (ex nunc), nuncapara alcançar o passado (ex tunc).REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Anotado por Misabel de AbreuMachado Derzi. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo.Rio de Janeiro: Forense, 1969.BORGES, José Souto Maior. Obrigação tributária: uma introduçãometodológica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.______. Lei compl<strong>em</strong>entar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975BORGES, Antônio de Moura. Convenções sobre dupla tributação internarcional.Teresina: UFPI, 1992.CARRAZZA, Roque Antonio. O regulamento no direito tributário brasileiro.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981.CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 16. ed. São Paulo:Saraiva, 2004.CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos daincidência. São Paulo: Saraiva, 1998.______. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialéticade Direito Tributário, São Paulo, n. 34, jul. 1998.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA117
Heleno Taveira Tôrres______. Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência. 2. ed. SãoPaulo: Saraiva, 1999.COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 7. ed.Rio de Janeiro: Forense, 2004.CRISAFULLI, Vezio. Lezioni di diritto costituzionale. Padova: CEDAM, 1993,t. II.GUASTINI, Riccardo. Legalità (principio di). Digesto delle disciplinepubblicistiche. Torino: UTET, 1987, v. IX.LEAL, Victor Nunes. Probl<strong>em</strong>as de direito público e outros probl<strong>em</strong>as. Brasília:Imprensa Nacional, 1999.MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de direito tributário. 3. ed. Rio deJaneiro: Forense, 1995, v. 2.REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigmahermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994.TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação internacional sobre as rendas de<strong>em</strong>presas. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.______. Tratados e convenções <strong>em</strong> matéria tributária e o federalismo fiscalbrasileiro. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 86, p. 34-49,2002.TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 11. ed. Riode Janeiro: Renovar, 2004.TEUBNER, Gunther. O direito como sist<strong>em</strong>a autopoiético. Lisboa: FundaçãoCalouste Gulbenkian, 1989.VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sist<strong>em</strong>a do direito positivo. SãoPaulo: Max Limonad, 1997.______. Causalidade e relação no direito. Recife: OAB, 1985.XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1978.1“A probl<strong>em</strong>atica delle fonti há riguardo alle ‘fonti di produzioni’: fatti (ed atti), cioè abilitati dall’ordinamento acreare diritto oggettivo, e perciò ‘normativi’, nel senso più ristretto e storicamente relativo – che sollo interessa insede dommatica – avente riferimento alla produzione e modificazione di norme constitutive del diritto positivo. L’ideadi fonte non può, infatti, essere disgiunta dall’idea di norma (del diritto oggettivo). Tra l’una e l’altra sussistecorrelazione logica necessária, poiché chi parla delle fonti, con ciò stesso evoca immancabilmente l’idea di diritto odi norme di diritto, così come chi parla del diritto (in senso oggettivo) o del ordinamento normativo, parla anche –almeno di solito – delle sue fonti”. (cf. CRISAFULLI, Vezio. Lezioni di diritto costituzionale. Padova: CEDAM,1993, T. II, p. 4). “O Direito retira sua própria validade dessa auto-referência pura, pela qual qualquer118n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributáriooperação jurídica reenvia para o resultado de operações jurídicas. Significa isto que a validade dodireito não pode ser importada do exterior do sist<strong>em</strong>a jurídico, mas apenas obtida a partir do seuinterior”. (TEUBNER, Gunther. O direito como sist<strong>em</strong>a autopoiético. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1989, p. 2). Para outras considerações sobre a teoria das fontes do direito, veja-seespecialmente: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984; ROSS, Alf.El concepto de validez y otros ensayos. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina, 1969; BOBBIO,Norberto. Dalla strutura alla funzione – nuove studi de teoria del diritto. Verona: Edizioni di Comunità, 1976.;BOBBIO, Norberto. Teoria della norma giuridica, Torino: Giappichelli, 1960; ALEXY, Robert. El conceptoy la validez del derecho. Barcelona: Gedisa, 1984, p. 37; GUASTINI. Riccardo. Dalle fonti alle norme. Torino:Giappichelli, 1992, p. 205-277.2VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sist<strong>em</strong>a do direito positivo. São Paulo: Max Limonad,1997, p. 104; No mesmo sentido: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicosda incidência. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 49-52; BORGES, José Souto Maior. Obrigação tributária: umaintrodução metodológica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 62.3REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva,1994, p. 14.41994, p. 13.51994, p. 19.6Guastini confirma essa feição trípice da legalidade, ao formular a seguinte relação: “1) ‘È invalido ogniatto dei pubblici poteri che sai in contrasto com la legge’ (...); 2) ‘È invalido ogni atto dei pubblici poteri che non siaespressamente autorizzato dalla legge’. Si parla a questo proposito di ‘principio di legalità in senso formale’. 3) ‘Èinvalida (costituzionalmente illegittima) ogni legge che conferisca un potere senza disciplinarlo compiutamente’. Siparla a questo proposito di ‘principio di legalità in senso sostanziale’. GUASTINI, Riccardo. Legalità (principiodi). Digesto delle discipline pubblicistiche. Torino: UTET, 1987, v. IX, p. 87.7XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dosTribunais, 1978, p. 14.8Como diz Paulo de Barros Carvalho, o princípio da tipicidade tributária define-se <strong>em</strong> duas dimensões:“i) no plano legislativo, como a estrita necessidade de que a lei adventícia traga no seu bojo, de modoexpresso e inequívoco, os el<strong>em</strong>entos descritores do fato jurídico e os dados prescritores da relaçãoobrigacional; e ii) no plano da facticidade, como exigência da estrita subsunção do evento aos preceitosestabelecidos na regra tributária que o prevê, vinculando-se, obviamente, à adequada correspondênciaestabelecida entre a obrigação que adveio do fato protocolar e a previsão genérica constante da normaabstrata, conhecida como regra-matriz de incidência. Corolário inevitável da aplicação desse princípio é anecessidade de que os agentes da Administração, no exercício de suas funções de gestão tributária,indiqu<strong>em</strong>, pormenorizadamente, todos os el<strong>em</strong>entos do tipo normativo existentes na concreção do fato que sepretende tributar e, b<strong>em</strong> assim, dos traços jurídicos que apontam uma conduta como ilícita.”. CARVALHO,Paulo de Barros. A prova no procedimento administrativo tributário. Revista Dialética de Direito Tributário,São Paulo, n. 34, jul. 1998, p. 105; Cf, ainda: CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentosjurídicos da incidência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direitotributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 116.9“O processo crescente de complexidade da evolução social impõe a divisão do trabalho, a especializaçãode funções. Já as funções F’, F”, F’”, não são comportáveis num único órgão O. Fragmenta-se o exclusivoórgão, destacando-se outros, cada um com função específica”. VILANOVA, Lourival. Causalidade erelação no direito. Recife: OAB, 1985, p. 192.10BORGES, José Souto Maior. Lei compl<strong>em</strong>entar tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 80-81; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 206.11CARVALHO, 2003, op. cit., p. 208.12BORGES, 1975, op. cit., p. 54 et seq.13Como b<strong>em</strong> alerta Paulo de Barros Carvalho: “Convém advertir, portanto, que essas orações conotativasnão abrigam propriamente fatos, mas el<strong>em</strong>entos caracterizadores de eventuais ocorrências fácticas, peloque, <strong>em</strong> termos rigorosos, não dev<strong>em</strong>os dizer que o fato jurídico esteja contido na hipótese”. (CARVALHO,1999, op. cit. p. 100).REVISTA OPINIÃO JURÍDICA119
Heleno Taveira Tôrres14Cf. TÔRRES, Heleno Taveira. Pluritributação internacional sobre as rendas de <strong>em</strong>presas. 2. ed. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2001, p. 532 et seq.15Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CNUDM), de 10.12.1982, de Montego Bay,art. 26.16Como b<strong>em</strong> entende o STF: “(...) A Constituição brasileira não consagrou, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>a de convençõesinternacionais ou de tratados de integração, n<strong>em</strong> o princípio do efeito direto, n<strong>em</strong> o postulado daaplicabilidade imediata. Isso significa, de jure constituto, que, enquanto não se concluir o ciclo de suatransposição, para o direito interno, os tratados internacionais e os acordos de integração, além de nãopoder<strong>em</strong> ser invocados, desde logo, pelos particulares, no que se refere aos direitos e obrigações nelesfundados (princípio do efeito direto), também não poderão ser aplicados, imediatamente, no âmbitodoméstico do Estado brasileiro (postulado da aplicabilidade imediata). (...)”. CR 8279 AgR/Argentina.Min. Celso de Mello, DJ: 10-08-00. Para uma análise mais d<strong>em</strong>orada do t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> apreço cf. TORRES,Heleno Taveira. Tratados e convenções <strong>em</strong> matéria tributária e o federalismo fiscal brasileiro. RevistaDialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 86, p. 34-49, 2002.17Como diz Antônio de Moura Borges: “A ratificação é ato discricionário. O chefe de Estado é livre,juridicamente, para proceder ou não a ratificação – mesmo que o Poder Legislativo já tenha aprovado oprojeto de tratado -, assim como para realizá-la no momento que lhe seja ou pareça oportuno, a não serque as partes tenham fixado prazo para tal”. (BORGES, Antônio de Moura. Convenções sobre duplatributação internarcional. Teresina: UFPI, 1992, p. 120.)18A promulgação do Decreto Presidencial não é determinada pelo subsist<strong>em</strong>a constitucional, decorrede costume iniciado com o Tratado de Reconhecimento da Independência e do Império, assinado entreBrasil e Portugal, <strong>em</strong> 29.08.1826, que, após ratificado pelas partes, foi promulgado por Decreto datado de10.04.1826, cf. RODAS, João Grandino. A publicidade dos tratados internacionais, p. 200. REZEK, JoséFrancisco. Direito internacional público: curso el<strong>em</strong>entar, p. 79.19Carta Rogatória n. 8.279, <strong>em</strong> 4 de maio de 1998; veja-se, ad<strong>em</strong>ais, a seguinte Ementa: “O exame davigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a suaincorporação à ord<strong>em</strong> jurídica interna decorr<strong>em</strong>, no sist<strong>em</strong>a adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamentecomplexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, queresolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais(CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direitointernacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe - enquanto Chefe de Estado que é - da competênciapara promulgá-los mediante decreto”. (STF. ADI 1480 MC/DF. Rel. Min. Celso de Mello. DJU I,18.05.2001.)20STF. ADI 1480 MC/DF. Rel. Min. Celso de Mello. DJU I, 18.05.2001.21Art. 4.º: “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintesprincípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminaçãodos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - soluçãopacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para oprogresso da humanidade; X - concessão de asilo político”.22STF. RHC 79785/RJ. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJU I, 22.11.2002. Grifos nossos.23“TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO. ICMS. TRATADO INTERNACIONAL. 1 – O sist<strong>em</strong>a tributárioinstituído pela CF/88 vedou a União Federal de conceder isenções a tributos de competência dosEstados, do Distrito Federal e Municípios (art. 151, III). 2 – Em conseqüência, não pode a União firmartratados internacionais isentando o ICMS de determinados fatos geradores, se inexiste lei estadual <strong>em</strong>tal sentido. 3 – A amplitude da competência outorgada à União para celebrar tratados sofre os limitesimpostos pela própria Carta Magna. 4 – O art. 98 do CTN há de ser interpretado com base no panoramajurídico imposto pelo novo Sist<strong>em</strong>a Tributário Nacional”. Resp. Nº 90.871/PE. Rel Min. José AugustoDelgado. (96/0017825-9), 17/07/97. Também: “O mandamento contido no art. 98 do CTN não atribuiascendência às normas de direito internacional <strong>em</strong> detrimento do direito positivo interno, conferindolhesefeitos s<strong>em</strong>elhantes. O art. 98 do CTN, ao preceituar que tratado ou convenção não são revogadospor lei tributária interna, refere-se aos acordos firmados pelo Brasil a propósito de assuntos específicose só é aplicável aos tratados de natureza contratual”. (STJ. REsp. n. 41.147-5-PR (930033045-4). 1ªTurma. Rel. Min. D<strong>em</strong>ócrito Reinaldo).120n. 6 - 2005.2
Fontes no Direito Tributário24Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, “Os regulamentos são regras jurídicas gerais, abstratas,impessoais, <strong>em</strong> desenvolvimento da lei, referentes à organização e ação do Estado, enquanto poderpúblico. Eles são <strong>em</strong>anados pelo Poder Executivo, mediante decreto”. (Princípios gerais de direito administrativo.Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 303). Nas abalizadas palavras de Roque Carrazza: “Como se sabe, umadas funções mais importantes do Direito é conferir certeza à incerteza das relações sociais, subtraindodo campo de atuação do Estado e dos particulares, qualquer resquício de arbítrio. O regulamentotambém contribui para que se alcance esta meta, na medida <strong>em</strong> que, por meio dele, o Executivo reduz,discricionariamente, o campo de ação que a lei lhe traça, dando a todos um maior grau de certeza,quanto às providências que adotará, <strong>em</strong> cada caso concreto”. (CARRAZZA, Roque Antonio. Oregulamento no direito tributário brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 137.) Cf. ainda oartigo “Lei e Regulamento”, no clássico: LEAL, Victor Nunes. Probl<strong>em</strong>as de direito público e outrosprobl<strong>em</strong>as. Brasília: Imprensa Nacional, 1999, p. 56-91.25“Tributário. Práticas administrativas. Se o contribuinte recolheu o tributo a base de pratica administrativaadotada pelo fisco, eventuais diferenças devidas só pod<strong>em</strong> ser exigidas s<strong>em</strong> juros de mora e s<strong>em</strong>atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo (CTN, art. 100, III c/c parágrafo único).Recurso especial conhecido e provido, <strong>em</strong> parte”. (RESP 98703/SP. STJ. 2ª Truma. Ministro Ari Pargendler.Data do julgamento: 18/06/1998). “Tributário. Imposto de renda. Não incidência sobre verbas recebidas a títulode ajuda de custo. Cobrança apenas do imposto, <strong>em</strong> situações idênticas. Prática reiteradamente adotada pelaautoridade fazendária (artigo 100, inciso iii, do código tributário nacional). Legitimidade da pretensão do impetrante.Negativa de vigência a lei não d<strong>em</strong>onstrada. Recurso especial não conhecido. “Se, <strong>em</strong> várias situações idênticas,a autoridade fazendária afastou os acréscimos legais do tributo, cobrando apenas o imposto de rendadevido, o procedimento se caracteriza como prática reiterada na aplicação da legislação tributária,tornando legítima a pretensão do contribuinte. Embora afirme o recorrente a existência de lei expressa,que teria sido desrespeitada, <strong>em</strong> momento algum declinou qual seria a legislação pertinente, levandotambém à conclusão pelo não conhecimento do recurso especial”. (STJ. REsp n. 142280/SC. 2ª Turma.Rel. Min. Hélio Mosimann. Data de julgamento: 23/03/1999). “Constitucional. Tributário. Ipi. Insumos.Isenção. Creditamento. Princípio da não cumulatividade. Lei nº 9.779/99. “1. Até que seja totalmenteimpl<strong>em</strong>entada a reforma tributária e criado o IVA– Imposto sobre o Valor Agregado (o que ocorrerásomente <strong>em</strong> 2007), valerá a regra da não-cumulatividade, que encontra assento constitucional. 2. A Lein. 9.779/99, por força do assento constitucional do princípio da não-cumulatividade, t<strong>em</strong> carátermeramente elucidativo e explicitador. Apresenta nítida feição interpretativa, podendo operar efeitosretroativos para atingir a operações anteriores ao seu advento, <strong>em</strong> conformidade com o que preceitua oartigo 106, inciso I, do Código Tributário Nacional, segundo o qual ‘a lei se aplica a ato ou fato pretérito’s<strong>em</strong>pre que apresentar conteúdo interpretativo. 3. Se a Lei n. 9.779/99 apenas explicita uma normaconstitucional que é auto-aplicável (princípio da não-cumulatividade) não há razão lógica, n<strong>em</strong> jurídica,que justifique tratamento diferenciado entre situações fáticas absolutamente idênticas, só porqueconcretizada uma antes e outra depois da lei. 4. Recurso especial improvido”. (STJ. REsp n. 435783/AL.2ª Turma. Rel Min. Castro Meira. Data do julgamento: 19/02/2004). “Tributário. Pratica reiterada de atospela administração. Penalidade inaplicavel. Inteligência do art. 100, inc. III, parágrafo único, do CTN. 1. Restandoconfigurada a pratica constante de atos pela administração, há de se aplicar o preceito insculpido no art.100, III, parágrafo único, do CTN, que exclui o contribuinte da imposição de penalidades, da cobrançade juros de mora e a atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo”. (STJ. REsp n. 162616/CE. 1ª Turma. Rel. Min. José Delgado. Data do julgamento: 02/04/1998.)26O Superior Tribunal de Justiça, <strong>em</strong> voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar (Resp nº 95539-SP),também já se pronunciou a esse respeito, como se pode apreciar: “Havendo real contradição entre doiscomportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática doprimeiro, <strong>em</strong> prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior (...)”. Ecompl<strong>em</strong>enta, assinalando que o sist<strong>em</strong>a jurídico nacional, “(...) deve ser interpretado e aplicado de talforma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento daeficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a partesurpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos,inspiradores do sist<strong>em</strong>a”. E inclusive com aplicação às relações com a Administração Pública (Resp. nº47.015–SP, Min. Adh<strong>em</strong>ar Maciel).27Com opinião contrária ao caso <strong>em</strong> apreço, veja-se Bernardo Ribeiro de Moraes: “O mesmo não se podedizer das decisões do Conselho de Contribuintes da Administração Federal que não constitu<strong>em</strong> normascompl<strong>em</strong>entares da legislação tributária porquanto não existe lei que lhes consagre efeito normativo”.MORAES, Bernardo Ribeiro. Compêndio de Direito Tributário. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, vol.2, p. 60.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA121
Heleno Taveira TôrresSOURCES IN TAX LAWABSTRACTThis paper aims to set the pr<strong>em</strong>ises of the relationbetween the sources of positive law and the legal forceof rules, probing to limit the role of the compl<strong>em</strong>entarylaw, treaties, decrees and other sorts of legal rules atthe Brazilian Constitutional Taxation Syst<strong>em</strong>.KEYWORDSSources. Tax law. Laws. Compl<strong>em</strong>entary law. Treaties.Decrees. Compl<strong>em</strong>entary rules. Taxation syst<strong>em</strong>.SOURCES DU DROIT FISCALRÉSUMÉIl s’agit d’un essai pour fixer les lieux de la relationentre la notion des sources du droit positif et la validitédes normes, en recherchant le rôle de la loicomplémentaire, de traités, des décrets et des normescomplémentaires dans le système fiscal constitutionnelbrésilien.MOTS-CLÉSSources. Droit Fiscal. Normes. Loi Complémentaire.Traités. Décrets. Normes Complémentaires. SystèmeFiscal.122n. 6 - 2005.2
SERVIÇOS PÚBLICOS E TRIBUTAÇÃOHugo de Brito Machado*1 INTRODUÇÃO. 2 SERVIÇO PÚBLICO. 2.1 El<strong>em</strong>entoessencial. 2.2 Modicidade das tarifas. 2.3 Espécies. 2.3.1Especificidade e divisibilidade. 2.3.2 O prestador do serviço. 2.3.3Regime jurídico da utilização. 3 OS TRIBUTOS. 3.1 Poder detributar. 3.2 Finalidade essencial do tributo. 3.3 Espécies de tributo.3.4 Tributo oculto. 3.4.1 Conceito de tributo oculto. 3.4.2 Valorda outorga e outros ex<strong>em</strong>plos de tributo oculto. 4 IMPOSTOS ESERVIÇOS PÚBLICOS. 4.1 Serviços públicos e imunidadetributária. 4.2 Razão da imunidade do serviço público. 4.3 Olimite da imunidade. 4.4 Delegação de serviços públicos. 5REMUNERAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS. 5.1 Tributoou tarifa. 5.2 Tarifa de energia elétrica. 6 TRIBUTAÇÃO DASOBRAS PÚBLICAS. 6.1 Distinção entre obra e serviço. 6.2Cobrança do ISS sobre obras públicas. 6.3 Imunidade tributáriade obras e serviços públicos. 6.4 Regulação e tributação.RESUMONo presente estudo, examina-se a questão da tributação dosserviços públicos diante da ord<strong>em</strong> jurídica brasileira o que,para tanto, requer a análise do conceito e el<strong>em</strong>entosessenciais do serviço público, das modalidades de tarifas, daprestação e do prestador desses serviços e, por fim, do regimejurídico de sua utilização. Em seguida, passa-se à análise dopoder de tributar como aspecto da soberania estatal, examinaseas finalidades e espécies dos tributos, a fim de se chegarao conceito de tributo oculto e à idéia de valor da outorga.Posteriormente, traça-se parâmetros dos serviços públicos eda imunidade tributária dos entes públicos, b<strong>em</strong> como darazão da imunidade daqueles e o limite dessa imunidade.São tecidos comentários sobre as formas de r<strong>em</strong>uneração dosserviços públicos, se mediante taxa ou tarifa. Por fim, trataseda tributação das obras públicas, mormente quanto àcobrança de ISS sobre obras públicas, a imunidade tributáriadessas obras, b<strong>em</strong> como a regulação e tributação nesse setor.PALAVRAS-CHAVE: Serviços Públicos. Valor da outorga.Especificidade. Divisibilidade. Tarifa. Tributos. Imunidade.R<strong>em</strong>uneração. Obras públicas.*Juiz aposentado do TRF da 5a Região. Professor Titular de Direito Tributário da UFC. Presidente doInstituto Cearense de Estudos Tributários.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA123
Hugo de Brito Machado1 INTRODUÇÃONo exercício do cargo de Presidente da ARCE (Agência Reguladora deServiços Públicos Delegados do Estado do Ceará), tiv<strong>em</strong>os de examinar algumasquestões atinentes à prestação de serviços públicos, entre as quais as licitaçõespara concessão de serviços públicos no bojo das quais nos deparamos com afigura do denominado valor da outorga, que nos pareceu verdadeiramente absurdo,não obstante tratado com certa naturalidade pelos administrativistas.T<strong>em</strong>os meditado bastante a respeito da tributação de serviços públicos,que nos parece ser uma flagrante incoerência, na medida que se tratade atividade desenvolvida para atender necessidades coletivas consideradasessenciais. Preconiza-se a modicidade das tarifas exatamente porque oatendimento dessas necessidades deve implicar o mínimo sacrifício para osseus destinatários, e ao mesmo t<strong>em</strong>po admite-se que o Estado, o grandebenfeitor da coletividade, considere a utilização de serviços públicos comofato signo presuntivo de capacidade contributiva, utilizando a prestação dessesserviços como canal para a arrecadação de tributos.A nosso ver, a idéia de custo mínimo possível para o usuário não seharmoniza com a oneração desse custo com tributos, salvo situações excepcionais.Em princípio, o Estado deve contribuir para a redução do custo dos serviçospúblicos. Jamais para a elevação destes, com a inserção de custo adicional,vale dizer, com a cobrança de tributos, a pretexto de atender a necessidade derecursos financeiros destinados ao financiamento de outras atividades.Contra nossa tese t<strong>em</strong>os ouvido o argumento de que <strong>em</strong> quase todosos países do mundo os serviços públicos são tributados. Não nos parece, porém,que devamos incorrer <strong>em</strong> erro apenas porque outros o praticam. Reconhec<strong>em</strong>osque geralmente coisas ruins são imitadas mais facilmente do quecoisas boas, mas não pod<strong>em</strong>os concordar com tais imitações. N<strong>em</strong> aceitamoso argumento de que o fato de muitos outros fazer<strong>em</strong> algo significa que algo ébom. A ilicitude t<strong>em</strong> sido praticada <strong>em</strong> todo o mundo, durante toda a históriada humanidade, e n<strong>em</strong> por isto vamos defender as práticas ilícitas.Exist<strong>em</strong> também práticas admitidas <strong>em</strong> países do primeiro mundo, paísesos mais destacados, como é o caso da prisão de menores, que no Brasil éfort<strong>em</strong>ente rejeitada. Logo, o argumento de que <strong>em</strong> outros países existe atributação dos serviços públicos não é suficiente para que a aceit<strong>em</strong>os s<strong>em</strong>questionamentos. Está a merecer análise crítica. Está a exigir que se faça oteste da coerência. Se o serviço é público exatamente porque se destina aatender necessidades essenciais, como se justifica que seja a sua prestaçãoonerada com tributos que b<strong>em</strong> pod<strong>em</strong> ser cobrados <strong>em</strong> outras situações, onerandooutros aspectos da atividade econômica?Mesmo nos casos <strong>em</strong> que um serviço público constitui verdadeiroinsumo <strong>em</strong> atividade industrial, ou instrumento utilizado <strong>em</strong> apoio de atividadescomerciais, não sendo nesses casos destinado ao atendimento de ne-124n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãocessidades coletivas das pessoas <strong>em</strong> geral, mas destinado a satisfazer necessidades<strong>em</strong>presariais, necessidades de entidades lucrativas, mesmo nesses casosnão se justifica a sua oneração com o tributo. Pode e deve este incidirsobre os lucros dessas atividades. Não, porém, sobre os seus custos.Não desconhec<strong>em</strong>os que <strong>em</strong> nosso sist<strong>em</strong>a jurídico exist<strong>em</strong> previsõeslegais expressas de tributação de serviços públicos. Ex<strong>em</strong>plo disto t<strong>em</strong>os naLei Compl<strong>em</strong>entar n. 116, de 31 de julho de 2003, que autoriza a cobrança,pelos Municípios, do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza sobrediversos serviços públicos. Outro ex<strong>em</strong>plo é a cobrança do ICMS sobre energiaelétrica e sobre telefonia. É difícil, portanto, sustentarmos que no planodo nosso direito positivo não incid<strong>em</strong> tributos sobre serviços públicos. Difícilespecialmente porque já não buscamos a razão de ser das coisas e geralmentenos satisfaz<strong>em</strong>os com o que se v<strong>em</strong> afirmando ser correto.Não t<strong>em</strong>os dúvida de que a tributação dos serviços públicos prestadospor <strong>em</strong>presas privadas, sob controle, inclusive tarifário, do Poder Público,somente se explica diante do que Alfredo Augusto Becker denominou sist<strong>em</strong>ade fundamentos óbvios. 1 Justifica-se o tributo porque a <strong>em</strong>presa t<strong>em</strong>finalidade lucrativa. Não se investiga mais nada. É óbvio que <strong>em</strong> se tratandode uma <strong>em</strong>presa, que t<strong>em</strong> finalidade lucrativa, deve pagar tributo.Mesmo assim, com este pequeno estudo pretend<strong>em</strong>os d<strong>em</strong>onstrar que constituigrave incoerência a tributação de serviços públicos, ainda que prestados por<strong>em</strong>presas privadas. E que a rigor essa tributação contraria o princípio da razoabilidade,podendo, portanto, ser considerado inconstitucional. Inconstitucionalidade quese mostra mais evidente, ainda, quando se trata de tributação oculta, como acontece,por ex<strong>em</strong>plo, com o denominado “valor da outorga.”2 SERVIÇO PÚBLICO2.1 El<strong>em</strong>ento essencialO conceito de serviço público t<strong>em</strong> sido controvertido na doutrina. Arigor, esse conceito depende da postura ideológica de qu<strong>em</strong> o formula, podendoser mais amplo, como vê<strong>em</strong> os que defend<strong>em</strong> um Estado totalitário,ou b<strong>em</strong> restrito, como vê<strong>em</strong> os partidários do liberalismo. Seja como for, todosestão de acordo quanto a um el<strong>em</strong>ento essencial do conceito de serviçopúblico, que na qualificação das prestações que o consubstanciam comoimprescindíveis ou correspondentes a conveniências básicas da sociedade.Reportando-se ao substrato material da noção de serviço público, doutrinaCelso Antônio:Quanto ao primeiro el<strong>em</strong>ento – seu substrato material – cumpreobservar que a atividade estatal denominada serviço público é aprestação consistente no oferecimento, aos administrados <strong>em</strong>REVISTA OPINIÃO JURÍDICA125
Hugo de Brito Machadogeral, de utilidades ou comodidades materiais (como água, luz,gás, telefone, transporte coletivo etc.) singularmente fruíveis pelosadministrados que o Estado assume como próprias, por ser<strong>em</strong>reputadas imprescindíveis, necessárias ou apenas correspondentesa conveniências básicas da sociedade, <strong>em</strong> dado t<strong>em</strong>po histórico.Aliás, é por isto que o presta sob regime de Direito Público,diretamente ou através de alguém por ele qualificado para tanto.Esta oferta é feita aos administrados <strong>em</strong> geral. Daí falar-se, comrazão, no princípio da generalidade ou universalidade do serviçopúblico, pois o serviço diz respeito a necessidades ou comodidadesbásicas da sociedade. 2Pode-se afirmar, com apoio na doutrina dos mais <strong>em</strong>inentesadministrativistas, que o Estado assume o ônus de des<strong>em</strong>penhar as atividadesque tenha qualificado como serviços públicos. Por isto mesmo se diz quediante da distinção entre serviço público e atividade econômica “claramenteconfigura-se a obrigatoriedade imposta pelo legislador constituinte deque os serviços públicos sejam prestados pelo Poder Público.” 3 E se diz tambémque mesmo ocorrendo delegação, “a responsabilidade pela prestaçãodos serviços permanecerá com o Poder Público.” 4Na verdade o Estado é, s<strong>em</strong>pre, o titular do dever de prestar os serviçospúblicos. É a lição autorizada de Juarez Freitas:A titularidade do serviço público, <strong>em</strong> última instância, pertenceirrenunciavelmente ao Poder Público, ainda que nãonecessariamente <strong>em</strong> caráter privativo, nas exceções constitucionais(por ex<strong>em</strong>plo, educação e saúde). A execução tanto pode serrealizada pela Administração direta como, por lei, ser conferida àsautarquias, fundações, <strong>em</strong>presas públicas e sociedades de economiamista, assim como delegada a entes privados por contrato(concessão ou permissão, nos termos do art. 175 da CF) ou por atoadministrativo (autorização, nos termos de outros dispositivosconstitucionais, tais como o art. 21), pressuposta a subordinação aregime dos princípios de Direito Público, ainda quando privados osmétodos e riscos de gestão. Em outros termos, propõe-se a superação(não a simples negação, que seria absurda) da dicotomia rígidaentre serviços tipicamente administrativos – executados pelaAdministração – e atípicos – serviços comerciais ou industriais quevisariam a produzir renda, que poderiam ser prestados pelaAdministração ou por terceiros –, pois somente existe a categoriauna de serviços públicos, independent<strong>em</strong>ente de a contraprestaçãoexistir ou não, assim como de qu<strong>em</strong> quer que seja o executor. 5As divergências <strong>em</strong> torno do conceito de serviço público derivam dedivergências <strong>em</strong> torno da definição do papel do Estado. Assim também asdivergências <strong>em</strong> torno da questão de saber quais serviços públicos dev<strong>em</strong> ser126n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãoprestados diretamente pelo Estado, e quais os serviços públicos cuja prestaçãopode ser objeto de delegação a <strong>em</strong>presas privadas. Neste sentido, reportando-seao Direito brasileiro vigente, ensina Vitor Rhein Schirato com inteirapropriedade:A partir da disciplina constitucional dos serviços públicos (que,aliás, é consideravelmente s<strong>em</strong>elhante com as disciplinasconstitucionais anteriores), verifica-se claramente a existênciade dois posicionamentos do Estado brasileiro, variantes conformeas ideologias político-econômicas vigentes.Em um primeiro momento, compreendido desde o Estado novoaté a primeira metade da década de 90, o Poder Público reservapara si a obrigação de prestar os serviços públicos diretamente,s<strong>em</strong> se valer da possibilidade de outorgar concessões oupermissões. Havia forte controle sobre o meio de prestação dosserviços públicos, posto que o próprio Poder Público obrigava-se aprestar tais serviços.A partir da segunda metade da década de 90, entretanto,verifica-se profunda alteração na postura estatal relacionada coma prestação de serviços públicos na medida <strong>em</strong> que se passa aadotar, com cada vez maior freqüência, a utilização da outorgade concessões (sobretudo) e permissões para que terceiros prest<strong>em</strong>os serviços públicos, sob os auspícios de <strong>em</strong>endas constitucionaise legislações novas editadas para tal mister (por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong>âmbito federal, Lei n. 8.987/95, Lei n. 9.074/95, entre outras). Omeio pelo qual o serviço público é prestado perde importânciapara um controle de sua efetiva prestação (finalidade precípuaconstitucionalmente estabelecida).Tal alteração é devida, principalmente, a uma revisão das funçõesdo Estado e à falta de recursos por parte do Poder Público pararealizar investimentos necessários à modernização, à atualizaçãoe à universalização dos serviços públicos, b<strong>em</strong> como à constanterestrição da capacidade do Poder Público de captar os recursosnecessários para tanto, sendo conseqüência de tais falta derecursos e restrições de endividamento uma redução cada vezmaior do aparelhamento estatal, promovida por meio de processose privatização (Lei Federal n. 9.491, de 9 de set<strong>em</strong>bro de 1997,por ex<strong>em</strong>plo) e reduções no número de cargos e <strong>em</strong>pregospúblicos.Todavia, a transferência da prestação dos serviços públicos àiniciativa privada não implicou, de forma alguma, o afastamentodo Estado de seus deveres frente à prestação dos serviços públicos. 6Definido o serviço público pela ord<strong>em</strong> jurídica, pode-se considerar pacíficaa idéia segundo a qual as atividades por essa ord<strong>em</strong> jurídica reservadas aoEstado são consideradas essenciais para a comunidade, de sorte que não pod<strong>em</strong>ficar a depender da iniciativa privada, n<strong>em</strong> ser fonte de lucros dimensionadosREVISTA OPINIÃO JURÍDICA127
Hugo de Brito Machadosimplesmente pelas leis do mercado. A importância que a ord<strong>em</strong> jurídica atribuiàs atividades que define como serviços públicos, que justifica essa definição,é que faz com que o Estado assuma o ônus de prestá-las à comunidade.Precisamente por isto é que, mesmo <strong>em</strong> se tratando de serviços públicosprestados por <strong>em</strong>presas privadas mediante delegação do Poder Público, aeste fica reservado o poder de fixar o valor da retribuição que pode ser cobradodos respectivos usuários. Poder que é apenas a outra face do dever doEstado de assegurar à comunidade não apenas a existência do serviço, masassegurar também que este seja desfrutado pelo menor custo possível.2.2 Modicidade das tarifasCorolários indiscutíveis da natureza essencial dos serviços públicospara a coletividade são os princípios jurídicos que reg<strong>em</strong> a respectiva prestação,entre os quais no âmbito deste estudo merece destaque o princípio damodicidade das tarifas, “segundo o qual a tarifa cobrada dos usuários pelafruição dos serviços deverá ser a menor possível para a adequada r<strong>em</strong>uneraçãodo prestador dos serviços.”. 7Nesse sentido a autorizada lição de Celso Antônio afirmando, cominteira propriedade, que:... se o Estado atribui tão assinalado relevo à atividade a queconferiu tal qualificação, por considerá-lo importante para oconjunto de m<strong>em</strong>bros do corpo social, seria r<strong>em</strong>atado dislate queos integrantes desta coletividade a que se destinam devess<strong>em</strong>,para desfrutá-lo, pagar importâncias que os onerass<strong>em</strong>excessivamente e, pior que isto, que os marginalizass<strong>em</strong>Destarte, <strong>em</strong> um país como o Brasil, no qual a esmagadora maioriado povo vive <strong>em</strong> estado de pobreza ou miserabilidade, é óbvioque o serviço público, para cumprir sua função jurídica natural,terá de ser r<strong>em</strong>unerado por valores baixos, muitas vezes subsidiados.Tal circunstância – que não ocorre <strong>em</strong> países desenvolvidos –,dificulta ou impossibilita a obtenção de resultados b<strong>em</strong> sucedidoscom o impropriamente chamado movimento das “privatizações”,isto é, da concessão de tais serviços a terceiros para que os explor<strong>em</strong>com evidentes e naturais objetivos de lucro. 8Os que defend<strong>em</strong> as privatizações, todavia, o faz<strong>em</strong> por entender<strong>em</strong>que a prestação de serviços por <strong>em</strong>presas privadas termina sendo menos onerosado que essa mesma prestação levada a efeito pelo Estado, ao qual deresto caberá o controle, se não dos meios utilizados na atividade prestacional,ao menos da qualidade dos serviços e das tarifas correspondentes.Não cabe aqui o exame da questão de saber com qu<strong>em</strong> está a razãoquanto à conveniência das privatizações, mas é importante considerarmos128n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãoque tanto os que a elas são contrários, como os que as defend<strong>em</strong>, estão todosde acordo <strong>em</strong> que as tarifas cobradas como r<strong>em</strong>uneração pelos serviços públicosdev<strong>em</strong> ser s<strong>em</strong>pre as menores possíveis.2.3 EspéciesOs serviços públicos pod<strong>em</strong> ser classificados por diversos critérios. Nocontexto do presente estudo far<strong>em</strong>os três classificações. Na primeira adotar<strong>em</strong>oso critério da especificidade e divisibilidade, classificando os serviçospúblicos <strong>em</strong> duas espécies, a saber, (a) a dos serviços de interesse geral, eindivisíveis, e (b) a dos serviços específicos e divisíveis. Na segunda classificaçãoadotar<strong>em</strong>os o critério do prestador, classificando os serviços públicostambém <strong>em</strong> duas espécies, a saber, (a) a dos prestados diretamente peloPoder Público, e (b) a dos prestados por pessoas jurídicas de direito privadomediante concessão ou permissão. E finalmente, na terceira classificaçãoadotar<strong>em</strong>os o critério da compulsoriedade do uso do serviço, e também aquiclassificar<strong>em</strong>os os serviços públicos <strong>em</strong> duas espécies, a saber, (a) os de usocompulsórios e (b) os de uso facultativo.Vejamos <strong>em</strong> linhas gerais cada uma dessas espécies, estabelecendoassim os pressupostos que nos permitirão adiante examinar a inserção dotributo <strong>em</strong> cada uma delas.2.3.1 Especificidade e divisibilidadePelo critério da especificidade e divisibilidade os serviços pod<strong>em</strong> ser,repita-se, gerais e indivisíveis ou então específicos e divisíveis. Os primeirossão aqueles prestados à comunidade <strong>em</strong> geral, s<strong>em</strong> que seja possível a identificaçãoou individualização de seus usuários e s<strong>em</strong> que se possa dividir aprestação <strong>em</strong> unidades para dimensionar a correspondente utilização. Já osespecíficos e divisíveis são aqueles que pod<strong>em</strong> ser destacados <strong>em</strong> unidadesautônomas de atividade prestacional, de sorte a tornar possível a atribuiçãodessas unidades autônomas a cada usuário. No que importa diretamente aoassunto aqui estudado, tom<strong>em</strong>os um ex<strong>em</strong>plo que t<strong>em</strong> sido colocado <strong>em</strong>questão perante o Judiciário, que é o da coleta de lixo.Depois de muitas disputas chegou-se à conclusão de que esse serviçodeve ser dividido, para fins da classificação de que se cuida, <strong>em</strong> duas atividadesdistintas, a saber, o serviço de limpeza urbana, que compreende a limpezade ruas, praças e outros logradouros públicos, e a coleta domiciliar de lixo.O serviço de limpeza pública pertence à primeira das duas espéciesreferidas. É um serviço geral e indivisível, e o seu custeio, portanto, nãopode ser imputado diretamente aos usuários, cabendo ao Estado providenciaresse custeio utilizando-se dos recursos dos quais dispõe, geralmente provindosda arrecadação de impostos.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA129
Hugo de Brito Machado2.3.2 O prestador do serviçoConsiderando-se qu<strong>em</strong> seja o prestador, o serviço publico pode ser classificado<strong>em</strong> duas espécies que são, como já afirmado, os prestados diretamentepelo Estado e os que têm a respectiva prestação delegada a particulares.Há qu<strong>em</strong> sustente que sendo o serviço público prestado por <strong>em</strong>presaconcessionária ou permissionária a correspondente r<strong>em</strong>uneração cobrada dousuário t<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre natureza contratual, qualificando-se como preço ou tarifa.Jamais como taxa, vale dizer, tal r<strong>em</strong>uneração não t<strong>em</strong> natureza tributária.Não nos parece, porém, que seja assim. A nosso ver o que define se anatureza da r<strong>em</strong>uneração pela prestação de serviços públicos é taxa, ou tarifa,é o regime jurídico da utilização do serviço.Em princípio, o custeio dos serviços cuja prestação é delegada a particularespode ser feito diretamente pelos usuários do mesmo, mediante o pagamentode preço público, ou tarifa. Não é certo, todavia, que o custeio deum serviço público cuja prestação seja delegada a <strong>em</strong>presas privadas tenhade ocorrer, s<strong>em</strong>pre, dessa forma. Pode dar-se a delegação da atividadeprestacional e com a r<strong>em</strong>uneração a cargo do próprio Poder Público, quepoderá para tanto utilizar recursos derivados de impostos, ou recursos derivadosde taxas cobradas dos correspondentes usuários, desde que se trate deserviços específicos e divisíveis, como definidos no it<strong>em</strong> precedente.O critério que define a r<strong>em</strong>uneração cobrada do usuário como tributo(taxa) ou como tarifa, é o do regime jurídico da utilização do serviço, comose passa a explicar.2.3.3 Regime jurídico da utilizaçãoOs serviços públicos pod<strong>em</strong> ser de uso facultativo e de uso compulsório.É a terceira das classificações referidas há pouco, que se presta, repitase,para definir a natureza jurídica da correspondente r<strong>em</strong>uneração cobradapelo prestador do serviço do respectivo usuário.Volt<strong>em</strong>os ao ex<strong>em</strong>plo do serviço de limpeza pública.Em alguns países o usuário paga por um vasilhame no qual deposita olixo. O tamanho do vasilhame, do qual depende o valor por ele cobrado,define a quantidade de lixo produzido pelo usuário do serviço. Por razões deord<strong>em</strong> cultural esse critério talvez não seja de utilização viável no Brasil.Pode ser que no futuro venha a ser.Seja como for, a divisão do ônus do custo do serviço é possível. É certoque o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de dispositivosde lei municipal relativos a taxa para o custeio de serviços de limpezapública, conceito no qual se inclui o serviço de varrição e r<strong>em</strong>oção do lixode ruas e logradouros público, que na verdade é indivisível. 9 Entretanto, oMunicípio do Rio de Janeiro 10 e o Município de São Carlos (<strong>em</strong> São Paulo),130n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãotiveram reconhecida a constitucionalidade de leis instituidoras de taxa parao custeio dos serviços de coleta, r<strong>em</strong>oção, tratamento e disposição final dolixo domiciliar, que colocam como el<strong>em</strong>ento básico para a definição do valorda taxa <strong>em</strong> questão a área do imóvel. 11T<strong>em</strong>-se hoje como ponto pacífico, portanto, que a área do imóvel pode serconsiderada na determinação do valor da taxa de coleta de lixo domiciliar. Assim,um dos critérios válidos para a determinação do valor dessa taxa pode ser ocusto total do serviço, que se pode determinar pela r<strong>em</strong>uneração paga peloMunicípio à <strong>em</strong>presa executora do mesmo, dividido pelo número de contribuintescadastrados no Município, considerada a área do imóvel de cada um.Seja como for, importante no âmbito deste estudo é a consideração deque o serviço público de uso compulsório não pode ensejar a cobrança depreço ou tarifa, e sim de taxa, e por isto mesmo essa r<strong>em</strong>uneração há de serestabelecida <strong>em</strong> lei, que estabelecerá a base de cálculo desse tributo e assimos critérios úteis na determinação do valor a ser cobrado de cada usuário.3 OS TRIBUTOS3.1 Poder de tributarO poder de tributar é um aspecto da soberania do Estado. A esterespeito já escrev<strong>em</strong>os:Como se sabe, o Estado é entidade soberana. No planointernacional representa a nação <strong>em</strong> suas relações com as outrasnações. No plano interno t<strong>em</strong> o poder de governar todos osindivíduos que se encontr<strong>em</strong> no seu território. Caracteriza-se asoberania como a vontade superior às vontades individuais, comoum poder que não reconhece superior.No exercício de sua soberania o Estado exige que os indivíduoslhe forneçam os recursos de que necessita. Institui o tributo. Opoder de tributar nada mais é que um aspecto da soberania estatal,ou uma parcela desta.Importante, porém, é observar que a relação de tributação não ésimples relação de poder como alguns têm pretendido que seja. Érelação jurídica, <strong>em</strong>bora o seu fundamento seja a soberania doEstado. Sua orig<strong>em</strong> r<strong>em</strong>ota foi a imposição do vencedor sobre ovencido. Uma relação de escravidão, portanto. E essa orig<strong>em</strong>espúria, infelizmente, às vezes ainda se mostra presente <strong>em</strong> nossosdias, nas práticas arbitrárias de autoridades da AdministraçãoTributária. Autoridades ainda desprovidas da consciência de quenas comunidades civilizadas a relação tributária é relação jurídica,e que muitas vezes ainda contam com o apoio de falsos juristas,que usam o conhecimento e a inteligência, infelizmente, <strong>em</strong>defesa do autoritarismo. 12REVISTA OPINIÃO JURÍDICA131
Hugo de Brito Machado3.2 Finalidade essencial do tributoA finalidade essencial do tributo é suprir o Estado dos recursos financeirosde que necessita para exercer suas atividades, e entre estas se destacacomo de suma importância, precisamente, a prestação de serviços públicos.Na prestação de alguns serviços públicos, que classificamos como específicose divisíveis, o Estado pode obter e geralmente obtém dos própriosusuários os recursos destinados ao custeio de sua atividade prestacional.Para grande parte dos serviços prestados pelo Estado, todavia, essa fonte decusteio não se mostra viável.Pudesse o Estado obter dos usuários de serviços públicos todos os recursosfinanceiros dos quais necessita para o custeio desses serviços, de b<strong>em</strong>pouco mais haveria de necessitar. Ocorre que muitos serviços públicos sãoprestados pelo Estado a pessoas praticamente s<strong>em</strong> nenhuma capacidadecontributiva, e por isto mesmo não t<strong>em</strong> como haver destas a r<strong>em</strong>uneraçãopelos serviços que presta.Daí a necessidade dos impostos, que são tributos que somos obrigados apagar independent<strong>em</strong>ente de qualquer atividade estatal específica a cada umde nós destinada. Dos impostos é que originam os recursos destinados ao custeiodas atividades estatais desenvolvidas no interesse geral da coletividade.3.3 Espécies de tributoRealmente, os tributos são classificados <strong>em</strong> três espécies distintas, asaber, os impostos, as taxas e as contribuições. No âmbito do presente estudoimporta-nos apenas cuidar dos impostos e das taxas. Pod<strong>em</strong>os, entretanto,afirmar que <strong>em</strong> nosso sist<strong>em</strong>a jurídico as contribuições caracterizam-se pelafinalidade específica a que se destinam e, assim, porque existe um vínculoentre essa espécie de tributo e as atividades estatais que dev<strong>em</strong> ser por elacusteadas, ficam elas, ao menos para os fins deste estudo, equiparadas àstaxas. Poderíamos desenvolver outras considerações, especialmente a respeitoda contribuição de melhoria, mais nos parece impertinente aprofundaro t<strong>em</strong>a das contribuições no âmbito deste estudo.Diz-se que um tributo é qualificado como imposto quando a obrigaçãode fazer o respectivo pagamento t<strong>em</strong> como fato gerador uma situação independentede qualquer atividade estatal específica relativa ao contribuinte. 13Diz-se que um tributo é taxa quando a obrigação de fazer o respectivopagamento t<strong>em</strong> como fato gerador uma atividade estatal específica, relativaao contribuinte. Essa atividade estatal, no ordenamento jurídico brasileiro,pode ser o exercício do poder de polícia, ou a prestação de serviços públicosespecíficos e divisíveis prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.Assim, não há dúvida de que os serviços públicos pod<strong>em</strong> gerar recursospara o Estado pela via da tributação quando se trate de taxas, que cons-132n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãotitu<strong>em</strong> a própria r<strong>em</strong>uneração paga pelo usuário pelo serviço efetiva ou potencialmentepor ele utilizado. E não se pode esquecer que o valor das taxasdeve ser apenas o correspondente ao custo da atividade estatal que a justifica,dimensionado com a possível aproximação, mas s<strong>em</strong>pre respeitando aidéia de que o Estado não se pode valer das taxas para arrecadar recursosalém dos necessários para o custeio da atividade à qual se vinculam essestributos.A questão que se coloca, então, é a de saber se pode o Estado obterrecursos financeiros utilizando o seu poder de tributar, pela via dos impostos,onerando serviços públicos r<strong>em</strong>unerados mediante preços públicos outarifas.3.4 TRIBUTO OCULTO3.4.1 Conceito de tributo ocultoConhecido o conceito de tributo na Teoria Geral do Direito Tributário,resta fácil a dedução do que se deve entender por tributação oculta.Chega-se a esse conceito por exclusão. A prestação pecuniária compulsóriaque não constitui sanção de ato ilícito, e que é instituída e cobrada s<strong>em</strong>obediência aos padrões que o ordenamento jurídico estabelece para a instituiçãoe cobrança dos tributos pode ser considerada um tributo oculto.Tributo disfarçado ou oculto, então, é aquela prestação pecuniáriaque, não obstante albergue todos os el<strong>em</strong>entos essenciais do conceito detributo na Teoria Geral do Direito, é exigida pelo Estado s<strong>em</strong> obediência àsnormas e princípios que compõ<strong>em</strong> o regime jurídico do tributo.Para instituir e cobrar tributo oculto o Estado se vale de sua soberania,impõe a prestação fazendo-a compulsória por via oblíqua.O tributo disfarçado ou oculto caracteriza-se como tal <strong>em</strong> nossoordenamento jurídico pelo fato de não ser instituído com obediência às normase princípios que, <strong>em</strong> nosso Direito, reg<strong>em</strong> a instituição e cobrança de tributo. Eleé instituído e cobrado disfarçadamente, <strong>em</strong>butido no preço de bens ou de serviçosprestados pelo Estado, através de <strong>em</strong>presas suas ou de concessionárias, asalvo das leis do mercado e, portanto, preços fixados de forma unilateral e s<strong>em</strong>qualquer possibilidade de controle <strong>em</strong> face do conluio que se estabelece entre oEstado e a <strong>em</strong>presa vendedora do b<strong>em</strong> ou prestadora do serviço.3.4.2 Valor da outorga e outros ex<strong>em</strong>plos de tributo ocultoT<strong>em</strong> sido freqüente essa forma de tributação oculta, que t<strong>em</strong> passado s<strong>em</strong>ser percebida até por juristas <strong>em</strong>inentes. Ao licitar a concessão de um serviçopúblico, o Estado coloca entre os itens a ser<strong>em</strong> avaliados na licitação o denomi-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA133
Hugo de Brito Machadonado valor da outorga. Uma quantia a ser paga pela <strong>em</strong>presa vencedora da licitaçãoao Poder Concedente, vale dizer, ao Estado outorgante da concessão.O serviço público caracteriza-se como tal por ser um serviço essencial.Por isto o Estado não deixa a sua prestação a cargo das <strong>em</strong>presas. Assume oônus de prestá-lo. Entretanto, como não dispõe de meios adequados ou suficientespara tanto, concede a uma <strong>em</strong>presa a atribuição para esse fim. Fazum contrato de concessão do serviço público, e nesse contrato é estabelecidoque o preço a ser cobrado do usuário do serviço, denominado tarifa, seráfixado pelo Poder Concedente, <strong>em</strong> face de uma planilha dos custos da atividadedesenvolvida na prestação do serviço.Como a <strong>em</strong>presa vai pagar ao Poder Concedente aquele valor da outorga,ela naturalmente o inclui como custo de sua atividade. E assim esse valoré considerado na fixação da tarifa correspondente, cobrada do usuário doserviço que, por essa via paga o tributo oculto na mesma.Ressalte-se que o Estado, ou Poder Concedente, nada faz para o usuáriodo serviço. O denominado valor da outorga, portanto, não é umacontraprestação por qualquer utilidade que deva ser ofertada pelo Estado. Écobrado simplesmente porque o poder de decidir qu<strong>em</strong> vai prestar o serviçoé um poder estatal. Parcela da soberania estatal. Poder de tributar, portanto.Outra forma de tributo oculto é a parcela do preço cobrado pelas <strong>em</strong>presasestatais no caso de atividades monopolizadas. O preço é fixado unilateralmentepelo Estado <strong>em</strong>presário, a partir dos custos da atividade. Acrescentaa esses custos a marg<strong>em</strong> de lucro que deseja para a sua <strong>em</strong>presa e,ainda, uma parcela que pretende arrecadar. Essa parcela, tenha o nome quetiver, é um verdadeiro tributo, porque cobrada dos adquirentes do b<strong>em</strong> comfundamento exclusivamente na soberania estatal.Ex<strong>em</strong>plo disto entre nós era a denominada PPE, cobrada por intermédioda PETROBRÁS, depois substituída por contribuição de intervenção nodomínio econômico, cuja validade pode ser questionada, mas não é pertinenteno âmbito deste estudo.Mais um ex<strong>em</strong>plo de tributo oculto é a contraprestação de serviços deutilização compulsória. Realmente, se um serviço público é de utilização compulsória,a contrapestação por ele paga pelo usuário não é tarifa, mas taxa.Ex<strong>em</strong>plo de serviço que se t<strong>em</strong> colocado como de utilização compulsóriaé o de esgotamento sanitário. No Município de Fortaleza existe uma leimunicipal dizendo que é obrigatória a ligação à rede pública de esgoto sanitário.Em sendo assim, a contrapestação correspondente a tal serviço será umataxa. E assim só poderá ser cobrada pelo próprio município, e nos termos da leique a instituir, dentro dos padrões constitucionais próprios para os tributos.O valor cobrado pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará –CAGECE configura típico tributo oculto. Ilegal e abusivamente cobrado.134n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãoMais um ex<strong>em</strong>plo de tributação oculta t<strong>em</strong>os nos encargos com SEDEXou outras formas de fazer chegar documentos à repartição, tendo-se <strong>em</strong> vistaque o contribuinte t<strong>em</strong> indiscutível direito de entregá-los pessoalmente, oupelo meio que entender de sua conveniência.A propósito, o Juiz Federal da 2ª Vara de Chepecó (SC), Narciso LeandroXavier Baez, concedeu medida liminar <strong>em</strong> ação civil pública promovidapelo Ministério Público Federal, garantindo aos contribuintes de todo opaís o direito de entregar diretamente nas repartições da DRF documentoscomo pedidos de inscrição no CNPJ. Com isto declarou a nulidade de umit<strong>em</strong> da Instrução Normativa 35 da SRF que impunha o uso do SEDEX.4 IMPOSTOS E SERVIÇOS PÚBLICOS4.1 Serviços públicos e imunidade tributáriaHá qu<strong>em</strong> considere que os serviços públicos são tributáveis, posto queimunes são os entes públicos. Nessa linha de pensamento, Cristina LinoMoreira afirma que:O serviço público só é tributável enquanto concedido (oupermitido) a pessoa privada ou ente autárquico que não o exerçacomo finalidade essencial ou como decorrência dessa finalidade.Assim, se concessionárias de serviço público, sociedades deeconomia mista e <strong>em</strong>presas públicas são tributáveis... 14Mesmo os que pensam nessa linha e adotam postura estritamente positivistanormativista,admit<strong>em</strong> que um serviço é público independent<strong>em</strong>ente de qu<strong>em</strong> opresta. Admit<strong>em</strong> que o serviço é público porque assim a ord<strong>em</strong> jurídica o definiu,submetendo sua prestação ao regime do Direito Administrativo. Assim,Cristina Moreira, à luz da Constituição anterior, sustentou que... na concessão ocorre apenas a transferência do exercício doserviço público (e não de sua titularidade) a uma pessoageralmente privada; daí decorre que o concessionário não seassenhoreia do serviço, mas presta-o <strong>em</strong> nome do Estado (<strong>em</strong>sentido lato) concedente. O mesmo se diga, nesse aspecto, quantoà permissão, a fortiori, <strong>em</strong>bora não mencionada no textoconstitucional.Aqui se evidencia com nitidez a distinção entre titularidade eexercício de serviço público e por que sustentamos que o serviçopúblico não é imune, mas apenas intributável (de regra) se eenquanto exercido por pessoa pública; de modo que intributávelse exercido por pessoa política, ainda que sob a forma de concessãoou permissão, uma vez que o art. 19, III, “a”, não contém qualquercláusula restritiva ou quantificadora da subjetividade daimunidade recíproca. 15REVISTA OPINIÃO JURÍDICA135
Hugo de Brito Machado4.2 Razão da imunidade do serviço públicoA razão da imunidade tributária dos serviços públicos é a própria naturezapública desses serviços. Na medida <strong>em</strong> que o ordenamento jurídicoqualifica um serviço como público, pela mesma razão que o faz deve tambémimunizar a atividade de prestação respectiva.A mesma razão pela qual a entidade estatal, ou entidade política, ésubjetivamente imune à tributação, justifica plenamente que os serviços públicossejam, objetivamente, imunes à tributação. A entidade política é subjetivamenteimune porque existe para servir ao público. Da mesma forma, osserviços públicos dev<strong>em</strong> ser objetivamente imunes porque exist<strong>em</strong> para atenderàs necessidades essenciais do público.4.3 O limite da imunidadeÉ certo que o § 3º, do art. 150, da vigente Constituição Federal, estabeleceum limite à imunidade tributária ao dizer que as limitações da regraimunizante “não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionadoscom a exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveisa <strong>em</strong>preendimentos privados, ou <strong>em</strong> que haja contraprestação ou pagamentode preços ou tarifas pelo usuário.” Essa norma da Constituição, todavia,precisa ser adequadamente interpretada.Em primeiro lugar, no que se refere à exploração de atividades econômicasregidas pelas normas aplicáveis a <strong>em</strong>preendimentos privados, arazão é muito clara: não se pode pretender que o Estado se valha de suacondição para, gozando de imunidade tributária, desenvolva atividades<strong>em</strong> regime de direito privado, competindo com as <strong>em</strong>presas que pagamtributos. N<strong>em</strong> é preciso desenvolver qualquer argumentação para d<strong>em</strong>onstraressa tese.A questão mais delicada diz respeito a atividades que alguns qualificamcomo atividades econômicas enquanto para outros constitu<strong>em</strong>serviços públicos. E essa questão há de ser resolvida a partir do regimejurídico ao qual o des<strong>em</strong>penho dessas atividades esteja submetido. Emse tratando de atividades desenvolvidas sob controle direto do Estado,inclusive quanto à fixação das tarifas, a nosso ver existe a imunidade. Éuma evidente falácia o argumento segundo o qual sendo o agente daatividade uma <strong>em</strong>presa privada, que visa o lucro, deve ser afastada aimunidade. Falácia porque na verdade o tributo nada t<strong>em</strong> a ver com olucro que pode ser auferido, vez que a lei garante o ajuste da tarifa,para menos e para mais, s<strong>em</strong>pre que ocorre alteração no ônus tributário,o que deixa fora de qualquer dúvida não ser a <strong>em</strong>presa o destinatáriodesse ônus que, que <strong>em</strong> qualquer caso é suportado pelos usuários doserviço.136n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributação4.4 Delegação de serviços públicosA delegação da atividade de prestação de serviços públicos deve ocorrersimplesmente para que se faça a prestação mais conveniente ao público.Assim, deve ocorrer somente como forma pela qual se torna possível a prestaçãode serviço melhor e a custo menor. Apenas na medida que se reconheceque uma entidade, organizada nos moldes privados, organizada como<strong>em</strong>presa, agindo segundo os princípios próprios do agir das entidades <strong>em</strong>presariais,mas sob o controle do Estado, t<strong>em</strong> condições de servir melhor e acusto mais baixo.A delegação deve ocorrer s<strong>em</strong>pre mediante licitação. Não para que oEstado possa auferir um maior valor da outorga, evident<strong>em</strong>ente, pois isto iriasimplesmente onerar mais o custo da prestação dos serviços. Mas, isto sim,para que se possa obter o serviço para o público pelo menor custo possível.Na licitação, portanto, deveriam ser colocados como critérios decisivoso técnico e o financeiro. O primeiro consubstanciado na qualidade doserviço. Terá mais pontos na licitação a <strong>em</strong>presa que d<strong>em</strong>onstrasse estarmelhor aparelhada para prestar o serviço de melhor qualidade. E o segundo,consubstanciado na menor tarifa a ser cobrada do usuário.Mesmo prestado por <strong>em</strong>presas, mediante delegação, o serviço público nãodeveria ser onerado por impostos. Na verdade, constitui brutal incoerência falarsede modicidade de tarifas, com isto pretendendo afirmar que os serviços públicosdev<strong>em</strong> ser oferecidos a seus usuários pelo menor preço possível, e ao mesmot<strong>em</strong>po admitir-se a oneração desses preços com a incidência de impostos.E não se venha argumentar que a imunidade é subjetiva, vez quepertence apenas ao prestador dos serviços enquanto entidade política, valedizer, enquanto pessoa jurídica de Direito Público. O que na verdade deveprevalecer é a razão de ser da imunidade. Esta, enquanto imunidade recíprocaa impedir que um ente público tribute outro ente público, presta-separa preservar o equilíbrio federativo, impedindo que uma entidade públicapossa destruir outras, pois o poder de tributar envolve o poder de destruir, e<strong>em</strong> última análise toda e qualquer imunidade tributária no que diz respeitoà prestação de serviços públicos existe para favorecer os destinatários doserviço, e estes são s<strong>em</strong>pre os seus usuários.Diz-se, é certo, que a imunidade não pode favorecer <strong>em</strong>presas privadas,que estas atuam visando lucros. Tal argumento, porém, é inteiramentefalacioso, posto que a lei determina a tais <strong>em</strong>presas prestadoras de serviçospúblicos que repass<strong>em</strong> aos usuários dos serviços todas as vantagens, e todosos ônus tributários, estabelecendo expressamente que:Serão transferidos integralmente aos usuários os ganhoseconômicos que não decorram diretamente da eficiência<strong>em</strong>presarial, <strong>em</strong> casos como os de diminuição de tributos ouencargos legais e de novas regras sobre os serviços. 16REVISTA OPINIÃO JURÍDICA137
Hugo de Brito MachadoE ainda, que:A oneração causada por novas regras sobre os serviços, pela áleaeconômica extraordinária, b<strong>em</strong> como pelo aumento dos encargoslegais ou tributos, salvo o imposto sobre a renda, implicará revisãodo contrato. 17Por isto mesmo é que se preconiza o denominado reequilíbrio econômicofinanceiro do contrato. Nas palavras de Juarez Freitas:Em matéria de reequilíbrio econômico-financeiro, a revisão datarifa poderá ser para mais ou para menos? O equilíbrio econômicofinanceiroé direito intangível do concessionário? Sim, nos termosdo mesmo art. 9º da Lei n. 8.987/95, os contratos poderão-deverãoprever mecanismos de revisão, a fim de manter o equilíbrioeconômico-financeiro. Ressalvados os impostos sobre a renda, acriação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargoslegais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seuimpacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos,conforme o caso. 18Logo se vê, muito facilmente, aliás, que os encargos tributários pesamsobre os usuários e são absolutamente indiferentes para as <strong>em</strong>presas prestadorasdos serviços públicos. É uma falácia, portanto, repetimos, dizer-se que <strong>em</strong> sendoprestados por <strong>em</strong>presas privadas, mediante delegação, os serviços públicosdev<strong>em</strong> ser tributados, posto que tais prestadoras, como <strong>em</strong>presas que são, visamo lucro, e que a não tributação resultaria <strong>em</strong> indevido benefício destas.É da maior evidência que <strong>em</strong> se tratando de serviços r<strong>em</strong>uneradosmediante tarifas controladas pelo Poder Público, não submetidas às leis domercado, onerar o custo dos serviços com a incidência de tributos é oneraros usuários desses serviços. Só o preconceito gerado pela ignorância é quepode sustentar tamanha falácia, que a rigor somente se presta para permitirque se ponha <strong>em</strong> prática os princípios da máxima arrecadação e da comodidadearrecadatória. A rigor, a delegação da atividade de prestação de serviçospúblicos só justifica mesmo a incidência do imposto de renda, com o qualo Estado busca arrecadar uma parcela do proveito alcançado pela <strong>em</strong>presaprestadora do serviço ao valer-se de metodologia mais eficiente no des<strong>em</strong>penhoda atividade e da álea ordinariamente presente nessa atividade.5 REMUNERAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS5.1 Tributo ou tarifaA r<strong>em</strong>uneração dos serviços públicos pode dar-se mediante tributo,da espécie taxa, ou mediante tarifas.138n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãoAs taxas são a forma de r<strong>em</strong>uneração de serviços públicos de uso compulsório.Não se pode dizer que oneram o serviço porque são na verdade opreço destes. São quantias pagas pelo usuário ao prestador do serviço, quedev<strong>em</strong> corresponder tão aproximadamente quanto possível ao custo dos serviços.Como já explicado <strong>em</strong> it<strong>em</strong> anterior deste estudo, as taxas constitu<strong>em</strong>a r<strong>em</strong>uneração por serviços específicos e divisíveis, prestados ao contribuinteou postos à disposição deste, e não se pode dizer – repita-se – que oneramo custo dos serviços públicos porque na verdade constitu<strong>em</strong> a r<strong>em</strong>uneraçãopaga pelo usuário – efetivo ou potencial.Já as tarifas são a r<strong>em</strong>uneração paga pelos usuários de serviços públicosprestados por <strong>em</strong>presas privadas que ag<strong>em</strong> na condição de delegadas doPoder Público. E estas, sim, têm sido indevidamente oneradas pela cobrançade impostos. Pondo <strong>em</strong> prática o princípio da máxima arrecadação, e o princípioda comodidade arrecadatória, os poderes públicos val<strong>em</strong>-se de sua soberaniapara extorquir os particulares, que não pod<strong>em</strong> prescindir dos serviçospúblicos, exatamente porque eles são necessários ao atendimento denecessidades essenciais, e portanto são forçados a se submeter<strong>em</strong> ao ônustributário.5.2 Tarifa de energia elétricaA tarifa de energia elétrica é um dos ex<strong>em</strong>plos mais eloqüentes decomo o Poder Público se vale de sua soberania para por <strong>em</strong> prática aquelesdois princípios extr<strong>em</strong>amente perversos, a saber, o princípio da máxima arrecadaçãoe o princípio da comodidade arrecadatória, aos quais <strong>em</strong>prestam amáxima efetividade, mesmo <strong>em</strong> prejuízo de importantes princípios constitucionais.Realmente, a Constituição diz que o ICMS poderá ser seletivo <strong>em</strong>função da essencialidade das mercadorias e dos serviços. 19 Isto quer dizerque as alíquotas do ICMS poderão ser diferentes, sendo menores quando oimposto incida sobre mercadorias, ou sobre serviços essenciais. E maiores,quanto o imposto incida sobre mercadorias ou serviços não essenciais. Comoassevera, com razão, Hugo de Brito Machado Segundo, a seletividade éfacultativa, mas o critério da seletividade é impositivo. Em suas palavras:Na verdade, o ICMS poderá ser seletivo. Se o for, porém, essaseletividade deverá ocorrer de acordo com a essencialidade dasmercadorias e serviços, e não de acordo com critérios outros,principalmente se inteiramente contrário ao preconizado pelaCarta Magna.Em outros termos, a Constituição facultou aos Estados a criaçãode um imposto proporcional, que representaria ônus de percentualidêntico para todos os produtos e serviços por ele alcançados, ouREVISTA OPINIÃO JURÍDICA139
Hugo de Brito Machadoa criação desse mesmo imposto com caráter seletivo, opção que,se adotada, deverá guiar-se obrigatoriamente pela essencialidadedos produtos e serviços tributados. A seletividade é facultativa.O critério da seletividade é obrigatório. 20Ocorre que os governos estaduais puseram <strong>em</strong> prática os dois princípiosmais importantes para os governantes de todo o Mundo, vale dizer, o princípioda máxima arrecadação e o princípio da comodidade arrecadatória, e assiminverteram o critério da seletividade do ICMS, que t<strong>em</strong> alíquota mais elevadapara a energia elétrica do que para as mercadorias e serviços <strong>em</strong> geral.Aliás, a d<strong>em</strong>onstrar a absoluta incoerência com que ag<strong>em</strong> os governosestaduais nesse particular basta que se veja o que ocorreu com fundamentona Emenda Constitucional que criou o Fundo Nacional de Combate eErradicação da Pobreza 21 . Autorizados a criar “adicional de até dois pontospercentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços– ICMS, ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre os produtos eserviços supérfluos,” os Estados elevaram a alíquota do ICMS sobre produtoscomo a gasolina e a energia elétrica, pondo <strong>em</strong> prática mais uma vez osprincípios da máxima arrecadação e da comodidade arrecadatória.5.3 Conseqüência da natureza tributária da r<strong>em</strong>uneração do serviçoÉ curioso observarmos que da definição da natureza tributária da r<strong>em</strong>uneraçãodo serviço público pode decorrer a imunidade. Uma vez admitidoque o valor cobrado como contraprestação de um serviço público t<strong>em</strong> anatureza jurídica de taxa t<strong>em</strong>-se como conseqüência automática a não incidênciade tributos, seja sobre a receita (COFINS e etc.) seja sobre o lucrodecorrente.Neste sentido veja-se o acórdão proferido pelo TRF da 4ª Região noMandado de Segurança impetrado pela SEMASA – SERVIÇO MUNICI-PAL DE ÁGUA, SANEAMENTO BÁSICO E INFRA-ESTRUTURA (deSanta Catarina), com a seguinte <strong>em</strong>enta:TRIBUTÁRIO – IMUNIDADE RECÍPROCA – EXCLUSÃO– ART. 150, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.As pessoas jurídicas de direito público interno que cobram, pelosserviços prestados, tarifa aos usuários, estão expressamenteexcluídas da imunidade do inc. VI, do art. 150 da ConstituiçãoFederal, nos termos do seu § 3º. Em matéria de exclusão,suspensão e dispensa de obrigações tributárias, interpretam-seliteralmente as normas de regência. (fls. 87).A impetrante recorreu ao Superior Tribunal de Justiça. Sustentou queé uma autarquia e presta serviços públicos típicos, não se regendo por nor-140n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãomas aplicáveis a <strong>em</strong>preendimentos privados. Assim, seja taxa ou tarifa o valorcobrado dos usuários prevalece a sua imunidade.O STJ deu provimento ao recurso proferindo o acórdão que porta aseguinte <strong>em</strong>enta:CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DERENDA. AUTARQUIA. FORNECIMENTO DE ÁGUA.TAXA. IMUNIDADE.1. São passíveis de cobrança de taxa os serviços públicos dotadosde obrigatoriedade, como o fornecimento de água e esgoto,atividade inerente à função essencial do Estado de promoção dahigiene e saúde.2. Os valores percebidos por autarquia a título de taxa, decorrentesda prestação de serviços públicos vinculado à sua atividadeessencial, são imunes à incidência do imposto de renda.3. Recurso ordinário provido. 22Como se vê, o Superior Tribunal de Justiça adotou a tese segundo aqual a definição da r<strong>em</strong>uneração do serviço público como tributo t<strong>em</strong> comoconseqüência o reconhecimento da imunidade.Ressalte-se que o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal já afirmou a imunidadetributária da Empresa dos Correios e Telégrafos, por considerar que a mesmapresta um serviço público essencial, independent<strong>em</strong>ente da natureza da r<strong>em</strong>uneraçãocobrada dos usuários. Tal entendimento, todavia, não nos pareceaceitável porque implica admitir que o Poder Público cobre tarifas pelaprestação de serviços públicos essenciais s<strong>em</strong> submeter-se às limitações constitucionaisao poder de tributar, entre as quais se destaca o princípio dalegalidade.6 TRIBUTAÇÃO DAS OBRAS PÚBLICAS6.1 Distinção entre obra e serviçoSab<strong>em</strong>os todos que enquanto a taxa está ligada à idéia de serviçopúblico, a contribuição de melhoria liga-se à idéia de obra pública. Assim,ao estudarmos a diferença entre taxa e contribuição de melhoria,afirmamos:Resta, pois, a distinção entre obra e serviço, que tentar<strong>em</strong>osestabelecer, do modo o mais simples possível, dizendo apenas que(a) na obra pública há o des<strong>em</strong>penho de atividade estatal quetermina quanto fica pronto o b<strong>em</strong> público correspondente; (b)no serviço público, pelo contrário, a atividade é permanente, nãotermina, pois se deixa de ser exercitada o serviço deixará deREVISTA OPINIÃO JURÍDICA141
Hugo de Brito Machadoexistir. A construção de uma avenida, por ex<strong>em</strong>plo, é uma obrapública; já a limpeza e conservação desta constitu<strong>em</strong> serviçopúblico. 23Realmente, a obra pública t<strong>em</strong> por objetivo a produção de um b<strong>em</strong>público e este é que se destina a atender a necessidade pública. Enquantoatividade a obra não atende necessidade pública e às vezes até prejudica ointeresse do público, causando-lhe alguns transtornos. Cessada a atividade,vale dizer, concluída a obra, o b<strong>em</strong> público da mesma resultante, este sim, éque atende as necessidades públicas. Já o serviço público atende as necessidadespúblicas enquanto atividade.Tal diferença entre obra e serviço, todavia, não t<strong>em</strong> sido respeitada natributação.6.2 Cobrança do ISS sobre obras públicasRealmente, a lista dos serviços de qualquer natureza, tributáveis pelosmunicípios, inclui expressamente atividades que a rigor não constitu<strong>em</strong>serviços, mas obras públicas. A Lei Compl<strong>em</strong>entar n. 116, de 31 de julho de2003, aliás, cuidando da incidência do ISS refere-se mais de uma vez, expressamente,a obra pública. Assim, diz que o imposto é devido no local doestabelecimento prestador, e ressalva que o imposto será devido no local daexecução da obra, no caso dos serviços descritos nos itens da lista, que indica.Nesses itens estariam descritos serviços, ou obras?No it<strong>em</strong> 7.02 da referida lista, por ex<strong>em</strong>plo, está indicada como serviçotributável “execução, por administração, <strong>em</strong>preitada ou sub<strong>em</strong>preitada, de obrasde construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras s<strong>em</strong>elhantes”.O imposto é sobre serviço de qualquer natureza, mas incide também sobreobras públicas. Ignora-se a distinção e se distorce inteiramente a função dotributo, que no caso funciona como simples instrumento de transposição de recursosfinanceiros de um para outros segmentos do próprio Estado. Em vez se serutilizado como um instrumento de transposição de recursos do setor privadopara o setor público, o tributo, nesse caso, é um instrumento de transferência derecursos da entidade pública realizadora da obra, para os cofres do Municípioarrecadador do ISS. Pode ocorrer até um simples passeio de recursos financeirosque sa<strong>em</strong> dos cofres de um Município sob a forma de pagamento da obra contratadae e retornam aos mesmos cofres municipais sob a forma de ISS.6.3 Imunidade tributária de obras e serviços públicosPor tudo isto é que sustentamos, como medida de coerência e de racionalizaçãode nosso sist<strong>em</strong>a tributário e de finanças públicas a imunidadeobjetiva das obras e dos serviços públicos.142n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributaçãoNessa, <strong>em</strong>bora ainda timidamente, t<strong>em</strong> decidido o Superior Tribunalde Justiça, sendo ex<strong>em</strong>plo dessa orientação jurisprudencial o acórdão noqual afirmou a não incidência do ISS no contrato de franquia. Merec<strong>em</strong>transcrição os trechos da <strong>em</strong>enta respectiva, onde se lê:5. O conceito constitucional de serviço tributável somenteabrange: ‘a) as obrigações de fazer e nenhuma outra; b) os serviçossubmetidos ao regime de direito privado não incluindo, portanto,o serviço público (porque este, além de sujeito ao regime dedireito público, é imune a imposto, conforme o art. 150, VI, a, daConstituição); c) que revelam conteúdo econômico, realizados<strong>em</strong> caráter negocial – o que afasta, desde logo, aqueles prestadosa si mesmo, ou <strong>em</strong> regime familiar ou desinteressadamente(afetivo, caritativo, etc.); d) prestados s<strong>em</strong> relação de <strong>em</strong>prego –como definida pela legislação própria – excluído, pois, o trabalhoefetuado <strong>em</strong> regime de subordinação (funcional ou <strong>em</strong>pregatício)por não estar in comércio’. (Aires Fernandino Barreto, ISS –Não incidência sobre Franquia”, in Rev. Direito Tributário,Malheiros Editores, v. 64, p. 216/221).6. O contrato de franquia é de natureza híbrida, <strong>em</strong> face de serformado por vários el<strong>em</strong>entos circunstanciais, pelo que nãocaracteriza para o mundo jurídico uma simples prestação deserviço, não incidindo sobre ele o ISS. Por não ser serviço, nãoconsta de modo identificado, no rol das atividades especificadaspela Lei n. 8.955/94, para fins de tributação do ISS. 24Na verdade, para sermos coerentes, t<strong>em</strong>os de entender que todo equalquer serviço prestado ao Estado, vale dizer, toda e qualquer atividadeque deva ser custeada pelo Estado, é imune, goza de plena imunidade tributária,pois não se justifica tributar alguém que presta serviço ao Estado, mesmoque seja na construção de uma obra pública, pague tributo cujo valor éincluído no custo da atividade, a final suportado pelo Estado.A tributação de serviços prestados ao Estado significa simples complicaçãodos controles orçamentários, que contribui para a distorção dos valoresexpressos no orçamento. Eleva o custo das obras e eleva a arrecadação nomontante necessário ao pagamento da elevação do custo. E mesmo quandose trate, como acontece com a tributação de obras públicas pelos municípios,a transposição de recursos de uma para outra entidade pública integrantesdo Estado brasileiro, s<strong>em</strong> nenhum proveito efetivo para a comunidade.6.4 Regulação e tributaçãoCom certeza se o Estado t<strong>em</strong> condições de exercer eficazmente a atividadede regulação das atividades de prestação de serviços públicos, e aexerce, não t<strong>em</strong> porque tributar essas atividades, <strong>em</strong>bora possa e deva tributara renda que das mesmas resulta.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA143
Hugo de Brito MachadoEm excelente estudo a respeito da regulação dos serviços públicos,<strong>em</strong>bora não se refira expressamente à questão da tributação, Vitor Schiratonos oferece importantes subsídios para d<strong>em</strong>onstrarmos que esta é inteiramenteinadequada, representando mesmo uma distorção do conceito de serviçopúblico. Diz ele, entre outras coisas importantes, que:No Brasil, é bastante rara a concessão de subsídios na prestaçãode serviços concedidos ou permitidos, sendo, inclusive,expressamente vedada <strong>em</strong> determinados casos. Isso ocorre, pois,na grande maioria dos casos das privatizações das <strong>em</strong>presas estataisprestadoras de serviços públicos ou das concessões de serviçospúblicos, o objetivo fundamental da Administração não foi outroque não o de arrecadar fundos para a cobertura de déficitsorçamentários, o que configura total distorção das finalidade eda função do instituto da concessão de serviços públicos. 25A nosso ver, essa distorção t<strong>em</strong> sido ainda muito maior com a tributaçãodos serviços públicos, que eleva o valor das tarifas correspondentes, ecom a tributação de obras públicas, que eleva o preço destas, pago peloEstado às <strong>em</strong>presas, que a rigor deveriam ser tributadas exclusivamente <strong>em</strong>razão de seus lucros.7 SERVIÇO PÚBLICO E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA7.1 Utilização de serviços públicos como indicador de capacidadecontributivaPara Maffezzoni a capacidade contributiva deve ser determinada nãoapenas pela capacidade econômica mas também pelo fato indicativo do gozode vantagens decorrentes dos serviços públicos. Sustenta ele que a capacidadecontributiva não pode ser identificada na pura e simples capacidadeeconômica do sujeito passivo da tributação. Para ele é probl<strong>em</strong>ática a determinaçãoda capacidade econômica, tanto porque é impreciso o conceito derenda, como porque a capacidade econômica não pode ser dimensionadaapenas pela renda, seja qual for a noção desta que se tenha adotado. Acapacidade contributiva, no seu entender, há de envolver fato indicativo dogozo de vantagens decorrentes dos serviços públicos. 26A tese de Maffezzoni, todavia, parece pressupor a gratuidade dos serviçospúblicos. Na verdade, portanto, não pode ser invocada <strong>em</strong> relação aosserviços públicos pelos quais o usuário para a correspondente r<strong>em</strong>uneração.Por outro lado os serviços públicos, especialmente os gratuitos, destinam-seespecialmente aos menos dotados de capacidade econômica. Logo,não é razoável admitir-se que a utilização dos mesmos possa ser tomada comoindicador de capacidade contributiva.144n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributação7.2 Serviços públicos e redistribuição da riquezaPreferimos considerar que o melhor indicador da capacidadecontributiva, se não a simples capacidade econômica, é esta somada ao deverde solidariedade que há de ser identificado pela forma de utilização dariqueza <strong>em</strong> relação às necessidades coletivas.Com efeito, buscando justificar os incentivos fiscais, ou mais exatamente,isenções de tributos, <strong>em</strong> face do art. 53 da Constituição da RepúblicaItaliana, Moschetti formula uma distinção entre capacidade contributivae capacidade econômica. Para ele, a capacidade econômica é apenas umacondição necessária para a existência de capacidade contributiva, posto queesta é a capacidade econômica qualificada por um dever de solidariedade,quer dizer, por um dever orientado e caracterizado por um prevalecente interessecoletivo, não se podendo considerar a riqueza do indivíduo separadamentedas exigências coletivas. Assim, se, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> face de umaexigência do desenvolvimento econômico conforme as normas e princípiosda Constituição, uma determinada fonte patrimonial não deve ser gravada<strong>em</strong> determinada região durante um certo período, falta a ela o el<strong>em</strong>entoqualificante da capacidade contributiva: a aptidão para realizar o interessepúblico. Mais ainda, precisamente para realizar tal interesse, essa fonte nãopode ser considerada manifestação de capacidade contributiva. 27Em outras palavras, t<strong>em</strong>-se que a capacidade contributiva éconsubstanciada pela capacidade econômica qualificada pela aplicação dariqueza de forma diversa daquela que realiza o interesse público.Assim, se uma pessoa dotada de considerável riqueza utiliza intensamenteum serviço público, pagando a r<strong>em</strong>uneração correspondente, que cobretodos os custos da prestação deste e assim contribui para que o Estado opreste gratuitamente, ou mediante r<strong>em</strong>uneração menor, a qu<strong>em</strong> não t<strong>em</strong>capacidade econômica, estará alcançada a finalidade do serviço público queé, <strong>em</strong> última análise, a redistribuição eqüitativa da riqueza.Não se justifica, assim, a incidência de impostos sobre os serviços públicos,que dev<strong>em</strong> ser prestados pelo menor custo possível aos que por elepod<strong>em</strong> pagar, e gratuitamente aos não dotados de capacidade econômica.Assim ele terá, como deve ter, a qualidade de instrumento de redistribuiçãoda riqueza para a realização da justiça social.REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICASBANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14.ed. São Paulo: Malheiros, 2002.BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Saraiva,1963.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA145
Hugo de Brito MachadoFREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais.3. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.MAFFEZZONI, Federico. Il principio di capacità contributiva nel dirittofinanziario. Turim: UTET, 1970.MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo:Malheiros, 2005.MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A tributação da energia elétricae a seletividade do ICMS. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n.62, nov. 2000.MOREIRA, Cristina Lino. Tributabilidade do serviço público. São Paulo: Revistados Tribunais, 1985.MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidade contributiva. Madri: Institutode Estudios Fiscales, 1980.SCHIRATO, Vitor Rhein Schein. A regulação dos serviços públicos comoinstrumento para o desenvolvimento. Interesse Público, Porto Alegre, n. 30,mar./abr. 2005.1BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 10.2, p. 602-603.3SCHIRATO, Vitor Rhein Schein. A regulação dos serviços públicos como instrumento para odesenvolvimento. Interesse Público, Porto Alegre, n. 30, mar./abr. 2005, p. 81.4SCHIRATO, 2005, loc. cit.5FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 3. ed. São Paulo:Malheiros, 2004, p. 314.6SCHIRATO, op. cit., p. 81-82.. É nosso o destaque <strong>em</strong> negrito, das expressões: obrigação de prestar,obrigava-se a prestar, e seus deveres frente à prestação.7SCHIRATO, op. cit., p. 80.8BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 605.9STF, Plenário, RE 188.391-0/SP, rel. Ministro Ilmar Galvão, julgado <strong>em</strong> 15/06/2000, DJU de 1º/06/2001,pág. 89. Íntegra na RDDT n. 71, agosto de 2001, p. 208-210.10STF, 2ª Turma, Embargos de Declaração no RE 256.588-1, rel. Ministro Carlos Velloso, julgado <strong>em</strong> 09/10/2001, DJU 1 de 09/11/2001. Íntegra na RDDT n. 76, p. 183-184.11STF, Plenário, RE 232.393-1/SP, rel. Ministro Carlos Velloso, julgado <strong>em</strong> 12/08/99, DJU 1 de 05/04/2002, pág. 55 e RDDT nº 81, págs. 239/240. Íntegra na RDDT n. 83, p. 195-201.12MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 49.13Código Tributário Nacional, art. 16.14MOREIRA, Cristina Lino. Tributabilidade do serviço público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 81.146n. 6 - 2005.2
Serviços públicos e tributação15MOREIRA, op. cit., p. 64.16Lei n. 9.472, 16 de julho de 1997, art. 108, § 3º.17Lei n. 9.472, 16 de julho de 1997, art. 108, § 4º.18FREITAS, op. cit., p. 336.19Constituição Federal de 1988, art. 155, § 2º, inciso III.20MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. A tributação da energia elétrica e a seletividade do ICMS.Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 62, nov. 2000, p. 72.21Emenda Constitucional n. 31, de 14 de dez<strong>em</strong>bro de 2000.22Recurso <strong>em</strong> Mandado de Segurança nº 18.411-SC.23MACHADO, op. cit., p. 438.24STJ, 1ª Turma, AgRg no Agravo de Instrumento nº 581.593 – MG (2004/0007503-4), rel. Min. JoséDelgado, DJU 1 de 03.11.2004, pág. 143, e RDDT nº 112, janeiro de 2005, pág. 170.25SCHIRATO, op. cit., p. 77 et seq.26MAFFEZZONI, Federico. Il principio di capacità contributiva nel diritto finanziario. Turim: UTET, 1970, p.28-34, passim.27MOSCHETTI, Francesco. El principio de capacidade contributiva. Madri: Instituto de Estudios Fiscales,1980, p. 279.PUBLIC SERVICES AND TAXATIONABSTRACTIn this paper, the author examines the issue of taxationupon public services according to Brazilian law, whichrequires the analysis of the concept and essentialel<strong>em</strong>ents of public services, kinds of rates paid for thoseservices, the way the service is rendered, theinstitutions offering the services and the juridicalruling referring to th<strong>em</strong>. Afterwards, the authorassesses the power of charging taxes as an aspect ofState sovereignty and the purposes and kinds of taxes,in order to understand the concept of “concealed tax”and the idea of “grant value”. Subsequently, the authoroutlines patterns of public services and the taximmunity of public institutions, as well as the reasonof the afor<strong>em</strong>entioned immunity and its limits.Comments are made on the ways public services arepaid. Finally, the article deals with the issue of thetaxation of public works, mainly concerning the taxcharged upon services in general, the tax immunityconcerning such work and the regulation in this sector.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA147
Hugo de Brito MachadoKEYWORDS: Public services. Specificity. Divisibility.Rates. Taxes. Immunity. Payment. Public Works.SERVICE PUBLIQUE ET FISCALITÉRÉSUMÉDans la présente étude, il s’agit de traiter la questiondel’imposition des impôts sur les services publics dansl’ordre juridique brésilien. Cela exige, d’abord, l’analysedu concept et des éléments essentiels du service public,des modalités de tarifs, de la prestation et duresponsable de ces services et, final<strong>em</strong>ent, de sonrégime juridique. Ensuite,il d<strong>em</strong>andel’analyse dupouvoir d’imposition en tant qu’aspect de lasouveraineté étatique, l’examen des finalités et desespèces d’impôts, ainsi que le concept d’impôts occultéset à l’idée de valeur de l’attribution. Ultérieur<strong>em</strong>ent,cet article trace des paramètres des services publics etde l’immunité tributaire des entités publiques, ainsique de la raison d’être de cette l’immunité et de seslimites. L’auteur fait aussi des commentaires sur lesformes de pay<strong>em</strong>ent des services publics, si par voiedes taux ou des tarife. Final<strong>em</strong>ent, il s’agit de préciserles conditions d’imposition sur des travaux publics -notamment sur l’imposition de l’ «impôt sur les services» (ISS) sur ces travaux-, l’immunité tributaire de cestravaux, ainsi que la régulation et l’imposition incidentesur ce secteur.MOTS-CLÉS: Services Publics. Spécificité.Divisibilité. Tarif. Impôts. Immunité. Pay<strong>em</strong>ent. Travauxpublics.148n. 6 - 2005.2
PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIOIvo César Barreto de Carvalho*RESUMOO presente artigo trata do planejamento tributário, no intuitode traçar sua noção geral, conceito, natureza jurídica,finalidade, operacionalização e procedimento, enfocando paratanto estes parâmetros no âmbito dos princípiosconstitucionais pátrios.PALAVRAS-CHAVE: Planejamento tributário. Elisão fiscal.Economia fiscal. Princípio da legalidade. Propriedade privada.Não-confisco.Inicialmente, releva traçarmos uma noção de planejamento tributário.Quais são o seu conceito, a sua natureza jurídica, a sua finalidade, a suaoperacionalização e o seu procedimento?O planejamento tributário é a atividade desenvolvida por pessoa físicaou jurídica, pública ou privada, de forma estritamente preventiva e transparente,a fim de alcançar licitamente a economia tributária.A Professora Maria de Fátima Ribeiro conceitua planejamento tributárioda seguinte forma:[...] é a técnica de organização preventiva de negócios, visandoa uma legítima economia de tributos, independent<strong>em</strong>ente dequalquer referência aos atos posteriormente praticados. Estaeconomia de tributos pode ser total ou parcial, reduzindo-se acarga tributária incidente sobre os negócios jurídicos celebradosou diferindo-a no espaço durante o ciclo operacional. 1Outro conceito importante de planejamento tributário, para elucidaçãodos estudos ora desenvolvidos, é trazido por Láudio Camargo Fabretti, a saber:O planejamento tributário se define como a atividade preventivaque estuda “a priori” os atos e negócios jurídicos que o agenteeconômico (<strong>em</strong>presa, instituição financeira, cooperativa,associação etc.) pretende realizar. Sua finalidade é obter a maioreconomia fiscal possível, reduzindo a carga tributária para o valorrealmente devido por lei. 2 (destaque no original)*Professor do Curso de Direito da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>. Mestre <strong>em</strong> Direito pela Universidade Federaldo Ceará. Especialista <strong>em</strong> Direito Tributário pela PUC-SP. Advogado licenciado junto à OAB-CE.Assessor de Des<strong>em</strong>bargador do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA149
Ivo César Barreto de CarvalhoNota-se, assim, numa primeira análise, que a natureza jurídica doplanejamento tributário é de prevenção. É um procedimento estritamentepreventivo, sendo, portanto, essencial a identificação do período <strong>em</strong> que foiimpl<strong>em</strong>entado. A dimensão t<strong>em</strong>poral assume um fator muito importante naanálise do instituto do planejamento tributário. Assim, este deve ser realizadoantes da ocorrência do fato jurídico tributário, pois apenas nesse períodoé possível escolher, entre as opções legais disponíveis, a menos onerosa.A transparência do procedimento também é uma característica fundamentalno planejamento tributário, o que o distingue da fraude tributária.Ambas tend<strong>em</strong> a reduzir, retardar ou impedir a ocorrência do fato jurídicotributário, sendo que a fraude ocorre por ação ou omissão ilícita (dolosa),enquanto o planejamento tributário ocorre de forma lícita e transparente.O procedimento adotado decorrerá de avaliações feitas no âmbito doordenamento jurídico, ou seja, analisando-se as opções legais dos caminhosa ser<strong>em</strong> tomados, no intuito de evitar o procedimento mais oneroso do pontode vista fiscal. Portanto, a tarefa do responsável pelo planejamento tributário– por parte de um contador ou de um advogado tributarista – de uma pessoafísica ou de uma pessoa jurídica é prever uma situação de fato que, casoocorresse, acarretaria uma conseqüência jurídica mais onerosa, ou seja, farianascer uma obrigação tributária perfeitamente evitável.Segundo Gilberto Luiz do Amaral, a operacionalização da elisão fiscalou planejamento tributário pode se dar da seguinte forma:a) No âmbito da própria <strong>em</strong>presa, através de medidas gerenciaisque possibilit<strong>em</strong> a não ocorrência do fato gerador do tributo, quediminua o montante devido ou que adie o seu vencimento. Ex:para possibilitar o adiamento do tributo na prestação de serviços,o contrato deve estabelecer o momento da realização da receita;b) No âmbito da esfera administrativa que arrecada o tributo,buscando a utilização dos meios previstos <strong>em</strong> lei que lhe garantamuma diminuição legal do ônus tributário. Ex: para possibilitar oenquadramento de um produto numa alíquota menor de IPI,deve a <strong>em</strong>presa adequá-lo tecnicamente e requerer a novaclassificação junto à Receita Federal;c) No âmbito do Poder Judiciário, através da adoção de medidasjudiciais, com o fim de suspender o pagamento (adiamento),diminuição da base de cálculo ou alíquota e contestação quantoà legalidade da cobrança. Ex: como a ânsia do poder público <strong>em</strong>arrecadar é enorme e urgente, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o legislador toma ascautelas devidas, instituindo ou majorando exaçõesinconstitucionais e ilegais. Outro fator favorável é relativo àquantidade de normas tributárias, ocorrendo, muitas vezescontradição entre elas. Como no Direito Tributário vige o princípioda dúvida <strong>em</strong> favor do contribuinte, compete a ele, então,descobrir estas contradições. 3150n. 6 - 2005.2
Planejamento tributárioNota-se, portanto, que a economia legal de tributos pode seroperacionalizada nas três esferas: administrativa, judiciária e da própria<strong>em</strong>presa.Para João Eloi Olenike, três são as finalidades do planejamento tributário:a) evitar a incidência do tributo: tomam-se providências com ofim de evitar a ocorrência do fato gerador do tributo. Ex: no casoda tomada de <strong>em</strong>préstimos do exterior, se o prazo médio for deaté 90 dias a alíquota do IOF é de 5%, se o prazo for superior a 90dias o IOF será zero;b) reduzir o montante do tributo: as providências são no sentidode reduzir alíquota ou a base de cálculo do tributo. Ex: Empresacomercial estabelecida no Paraná, <strong>em</strong> que a maior parte das suasvendas são estaduais (alíquota de 17% de ICMS), pode transferirsua sede para um Estado vizinho e então fazer operaçõesinterestaduais de ICMS, <strong>em</strong> que a alíquota é 12%;c) retardar o pagamento do tributo: o contribuinte adota medidasque têm por fim postergar (adiar) o pagamento do tributo, s<strong>em</strong> aocorrência de multa. Ex: nos contratos de prestação de serviços,as partes pod<strong>em</strong> estabelecer várias formas pelas quais serárealizada a prestação dos serviços e diversos critérios para aexigência do pagamento do preço. Assim, é o contrato quedefinirá o momento da realização do serviço e da conseqüenterealização da receita. Portanto, pode ser acordado que a realizaçãoda receita se dê no exercício ou período-base posterior, desdeque baseados <strong>em</strong> critérios técnicos. 4Dentre as diversas classificações feitas pela doutrina do planejamentotributário, alguns dos critérios trazidos por Pablo Andrez Pinheiro Gubert sãobastante interessantes, merecendo destaque:De acordo com a conduta do agente, pode ser: comissivo, com autilização de expedientes técnico-funcionais, e.g. a triangulaçãono ICMS; ou omissivo, pela simples não realização da condutadescrita na norma, e.g. não comprar a mercadoria.Pelo critério das áreas de atuação, pode ser: administrativo, atravésde intervenções diretamente no sujeito ativo, e.g., a consultafiscal; judicial, através do pleito de tutela jurisdicional, como <strong>em</strong>ação declaratória de inexistência de débito fiscal; ou interno, osatos realizados dentro da própria <strong>em</strong>presa, como o comitê deplanejamento tributário.Considerando o objetivo, pode ser: anulatório, <strong>em</strong>pregando-seestruturas e formas jurídicas a fim de impedir a concretização dahipótese de incidência da norma; redutivo, utilizando-se formase estruturas que concretiz<strong>em</strong> hipótese de incidência menosonerosa, como na norma de cobertura ou na isenção parcial; epostergativo, visando ao deslocamento da ocorrência do fatoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA151
Ivo César Barreto de Carvalhogerador ou procrastinação do lançamento ou pagamento doimposto, e.g. denúncia espontânea.Do prisma dos expedientes utilizados, o planejamento pode ser:• Indireto: interpor outra relação jurídica entre o negócioobjetivado; e.g.: o negócio jurídico indireto.• Omissivo: ou evasão imprópria, a simples abstinência darealização da hipótese de incidência, e.g.: importação proibitivade mercadorias de altas alíquotas, como carros importados;• Induzido: quando a própria lei favorece (por razões extrafiscais)a escolha de uma forma de tributação, através de incentivosfiscais e isenções, e.g.: a compra de mercadorias importadasatravés da Zona Franca de Manaus;• Optativo: elegendo-se melhor fórmula elisiva entre as opçõesdadas pelo legislador, e.g.: opção entre a tributação do IR pelolucro real ou presumido;• Interpretativo: ou lacunar, <strong>em</strong> que o agente utiliza-se daslacunas e imprevisões do legislador, e.g.: não incidência do ISSsobre transportes intermunicipais; ou,• Metamórfico: ou transformativo, forma atípica que utiliza-seda transformação ou mudança dos caracteres do negóciojurídico a fim de alterar o tributo incidente ou aproveitar-se de umbenefício legal, e.g.: transformação da sociedade comercial <strong>em</strong>cooperativa (menor ônus tributário no regime jurídico pátrio). 5O planejamento tributário t<strong>em</strong> fundamento constitucional no enunciadodo “preâmbulo” da Carta da República de 1988, que, ao instituir umEstado D<strong>em</strong>ocrático, destinou-se a assegurar, entre outros, a liberdade, asegurança e o desenvolvimento. Ad<strong>em</strong>ais, o planejamento tributário é permitidoconstitucionalmente, mediante outras garantias elencadas na ConstituiçãoFederal, basicamente no princípio da legalidade geral (art. 5°, II) eda legalidade tributária estrita (art. 150, I).Um particular que celebra um negócio jurídico de forma que não sejatributado ou que seja tributado de maneira menos onerosa não pratica qualquerilícito. Atua dentro do campo da licitude, pois escolhe, dentre várioscaminhos, aquele que lhe é menos custoso. Trata-se apenas de um planejamentotributário feito licitamente, no intuito de reduzir os custos daqueleparticular, seja pessoa física ou jurídica. Ninguém é obrigado a administrarseu negócio com o objetivo de proporcionar ao Governo a maior soma possívelde impostos.Acerca do polêmico t<strong>em</strong>a, Rutnéa Navarro Guerreiro assim expressouseu entendimento:No que diz respeito ao planejamento tributário, é quaseindispensável reafirmar ser esta uma atividade lícita que busca152n. 6 - 2005.2
Planejamento tributárioidentificar, com a indispensável antecedência, a alternativa legalmenos onerosa para alcançar um determinado objetivo negocialou patrimonial. Tal atividade é possível, principalmente, comodecorrência da adoção, pelo legislador tributário brasileiro, dosprincípios tributários chamados de estrita reserva legal e detipificação cerrada da hipótese de incidência que, materializada,caracteriza o fato gerador da obrigação tributária. Esses princípiosfaz<strong>em</strong> com que a forma jurídica de impl<strong>em</strong>entação, por ex<strong>em</strong>plo,de um negócio <strong>em</strong>presarial, se sobreponha à substância econômicadesse mesmo negócio. Assim sendo, observado o caráter preventivodo planejamento tributário, é absolutamente legítima a escolha daopção menos onerosa para realização da atividade <strong>em</strong>presarial. Defato, diante da lei societária, constitui mesmo obrigação doadministrador <strong>em</strong>presarial zeloso e responsável, planejar seusnegócios com vistas à redução de seus custos tributários. 6É dever do bom administrador adotar medidas menos onerosas na conduçãode seus negócios, o que repercute inclusive na incr<strong>em</strong>entação de suaprodução ou melhoria na prestação de seus serviços. Tal fato apenas contribuipara maior oferta de <strong>em</strong>pregos, como também para um impulso na economialocal, regional e nacional. A adoção de medidas fiscalmente menos onerosasé uma questão de sobrevivência das próprias <strong>em</strong>presas. A diminuiçãoou a ausência de <strong>em</strong>presas ocasiona a diminuição ou ausência de <strong>em</strong>pregos,que acarreta na diminuição ou ausência de geração de riquezas, b<strong>em</strong> comode tributos, e estes pod<strong>em</strong> acarretar a extinção do próprio Estado. A qu<strong>em</strong>isso interessaria? A resposta é simples e clara: a ninguém.Mais contundentes ainda são as lições de João Damasceno Borges deMiranda e Alexandre Marques Andrade L<strong>em</strong>os, que consideram a elisãofiscal como prática necessária da gestão <strong>em</strong>presarial:O exercício da atividade <strong>em</strong>presarial no contexto do sist<strong>em</strong>ajurídico-tributário brasileiro – cujos equívocos, contradições eincertezas avolumam-se continuamente, restando tão-somentea certeza do tendente avanço voraz do Estado sobre as riquezasproduzidas no país – reclama necessariamente atenção especialpara o conjunto de normas que integram o que se define comodireito-custo.Não por outra razão é que perceb<strong>em</strong>os a prática do planejamentotributário no Brasil como alternativa necessária e essencial àotimização dos resultados dos <strong>em</strong>preendimentos negociais ou,<strong>em</strong> não raros casos, como condição sine qua non de sobrevivênciadas organizações.No setor de serviços, frente às recentes e substanciais alteraçõesdo peso da tributação de competência federal, o planejamentotributário se revela imprescindível para evitar o confisco doresultado líquido do exercício da atividade <strong>em</strong>presarial. 7REVISTA OPINIÃO JURÍDICA153
Ivo César Barreto de CarvalhoÉ evidente que a vida <strong>em</strong>presarial dos contribuintes é pautada poresta conduta de redução de custos, obviamente dentro do campo da licitude.Conforme preleciona Lais Vieira Cardoso:É, portanto, prática usual dos contribuintes, sujeitos passivos darelação jurídica tributária, principalmente dos <strong>em</strong>presários,planejar<strong>em</strong> os seus negócios de modo a atender<strong>em</strong> os princípiosda organização, da profissionalidade e da economicidade s<strong>em</strong>,porém, deixar<strong>em</strong> de cumprir as exigências legais. 8A questão da legalidade da opção de conduta a ser tomada peloscidadãos é sucintamente defendida por Ives Gandra da Silva Martins e PauloLucena de Menezes, da seguinte forma:Os contribuintes dispõ<strong>em</strong> de liberdade para pautar as suascondutas e os seus negócios da forma menos onerosa possível,não existindo regras que lhes imponham a obrigação de, entreduas ou mais realidades s<strong>em</strong>elhantes, optar por aquela que implicao maior recolhimento de tributos. 9O planejamento tributário, principalmente das <strong>em</strong>presas, é perfeitamentelícito, pois consiste <strong>em</strong> indicar o caminho menos oneroso ao administradorde uma <strong>em</strong>presa. Não se está, mediante tal prática, induzindo o particularou a <strong>em</strong>presa a uma simulação tendente à sonegação de tributos (evasãofiscal), mas tão-somente a diminuir, postergar ou evitar a incidênciatributária (elisão fiscal). Sonegar tributos é crime, mas fazer um planejamentotributário não configura nenhum tipo penal, portanto é ato lícito praticadopela <strong>em</strong>presa.A prática de atos ou negócios jurídicos com a finalidade de economizartributos não pode ser tida como ilícita. O Poder Público não pode tolherum caminho validamente escolhido por uma pessoa, seja física ou jurídica,<strong>em</strong> que esta optou por não adentrar as situações legalmente definidas <strong>em</strong> leicomo hipóteses de incidência de um determinado tributo. Existe, sim, a possibilidadeválida de se evitar tornar-se devedor da Fazenda Pública, e mesmoassim praticar atos ou negócios jurídicos que não constituam fatos jurídicostributáveis.No que tange ao t<strong>em</strong>a economia de imposto, assim preconiza o professorRuy Barbosa Nogueira:É preciso não confundir com infração a hipótese conhecida comode economia de imposto ou impropriamente de evasão legal (queos norte-americanos chamam de tax planning e os al<strong>em</strong>ães deSteuereinsparung, <strong>em</strong> que o contribuinte escolhe legalmente assituações menos onerosas).Não é pelo fato de se encontrar<strong>em</strong>, às vezes, dois contribuintesexercendo atividades s<strong>em</strong>elhantes e pagando, um, menor imposto154n. 6 - 2005.2
Planejamento tributárioque o outro, que fatalmente haverá infração por parte do quepaga menos.Às vezes pode estar errado o que v<strong>em</strong> pagando mais <strong>em</strong>conseqüência de má organização, de errôneas classificações oupela falta de se enquadrar <strong>em</strong> vantagens fiscais, isenções oumesmo incentivos fiscais.Uma <strong>em</strong>presa pode ser organizada de forma a evitar excessos deoperações tributadas e conseqüent<strong>em</strong>ente diminuir a ocorrênciade fatos geradores para ela e perante a lei desnecessários, comopoderá procurar funcionar por modalidades legais menostributadas.Fica ao contribuinte a faculdade de escolha ou de planejamentofiscal.Se é exato que o fisco t<strong>em</strong> direito de exigir os tributos, entretanto,ele somente pode exigi-los dentro dos limites legais traçados. Alei tributária, mesmo quando entra <strong>em</strong> relação com as leis doDireito Privado, não vai a ponto de dispor ou interferir no direitosubstantivo privado, nas relações entre particulares, posto que alei tributária disciplina outro tipo de relação, a relação entre fiscoe contribuinte.Daí, desde que o contribuinte tenha estruturado os seus<strong>em</strong>preendimentos, as suas relações privadas, mediante as formasnormais, legítimas do Direito Privado e com essa estruturaçãoincida <strong>em</strong> menor tributação, ele estará apenas se utilizando defaculdades asseguradas pela ord<strong>em</strong> jurídica. O fisco não podeinfluir na estruturação jurídico-privada dos negócios docontribuinte para provocar ou exigir maior tributação. 10Ad<strong>em</strong>ais, o direito à economia fiscal t<strong>em</strong> fundamento constitucional,derivado do direito individual à propriedade privada (art. 5°, inciso XXII,da Constituição Federal de 1988), devendo este ser entendido conjuntamentecom o direito contra o confisco (art. 150, inciso IV, da Lei Magna).Hermes Marcelo Huck, porém, entende de forma diferente a questãodo âmbito de aplicação do planejamento tributário, devendo este ficar limitadoaos princípios da capacidade contributiva e da isonomia tributária, inverbis:Nada deve impedir o indivíduo de, dentro dos limites da lei,planejar adequadamente seus negócios, ordenando-os de formaa pagar menos impostos. Não lhe proíbe a lei, n<strong>em</strong> tampouco selhe opõ<strong>em</strong> razões de ord<strong>em</strong> social ou patriótica. Entretanto, essafórmula de liberdade não pode ser levada ao paroxismo,permitindo-se a simulação ou o abuso de direito. A elisão abusivadeve ser coibida, pois o uso de formas jurídicas com a únicafinalidade de fugir ao imposto ofende a um sist<strong>em</strong>a criado sobreas bases constitucionais da capacidade contributiva e da isonomiaREVISTA OPINIÃO JURÍDICA155
Ivo César Barreto de Carvalhotributária. [...] uma relação jurídica s<strong>em</strong> qualquer objetivoeconômico, cuja única finalidade seja de natureza tributária,não pode ser considerada como comportamento lícito. Seriafechar os olhos à realidade e desconsiderar a presença do fatoeconômico da racionalidade da norma tributária. Umainterpretação jurídica atenta à realidade econômica subjacenteao fato ou negócio jurídico, para efeitos de tributação, é a respostajusta, eqüitativa e pragmática. Nesse ponto, é da maior utilidadea análise do business purpose test do direito norte-americano, queaceita como lícita a economia fiscal quando decorrente de umaformulação jurídica que, além da economia de imposto, tenhaum objetivo negocial explícito. [...] Países definitivamentecomprometidos com as liberdades individuais, como os EstadosUnidos e a França, não toleram a elisão abusiva, reprimindo-aseveramente. Espanha e a Al<strong>em</strong>anha editaram normas genéricas,que autorizam ao Estado desconsiderar a forma jurídica para irbuscar o objetivo econômico do ato ou negócio e, se for o caso,sujeitá-lo à tributação. N<strong>em</strong> abuso de direito pelo contribuinten<strong>em</strong> abuso de poder pelo Fisco é a resposta moderna que ofereceo direito comparado. 11Neste ponto, acompanhamos as lições de Rubens Gomes de Souza arespeito do planejamento tributário, da evasão e elisão fiscais. O jurista propôsuma pr<strong>em</strong>issa inquestionável para distinguir a economia lícita do tributoda evasão fiscal, afirmando que, para se aclarar de uma vez por todas asdúvidas, basta indagar se os atos ou negócios praticados evitaram a ocorrênciado fato gerador ou ocultaram o fato gerador ocorrido. No primeiro caso,teríamos a figura da economia fiscal (lícita); no segundo caso, estaria a evasãofiscal (ilícita).Outro ponto de vista interessante a respeito do planejamento tributárioé trazido pelo professor Roberto Wagner Lima Nogueira, ao traçar oslimites do instituto na ética fiscal:Insistimos que há no direito tributário duas éticas: uma éticafiscal privada e outra ética fiscal pública. A ética privada é umaética de condutas que norteia o cidadão-contribuinte que t<strong>em</strong> odever fundamental de pagar tributos segundo a sua capacidadecontributiva. Ao cidadão-contribuinte não é ético contribuir amenos para o montante da riqueza social, <strong>em</strong> proporção ao quesuas faculdades lhe permitiam pagar, o que não deixa de ser umaexigência aristotélica na teoria da justiça tributáriacont<strong>em</strong>porânea. Portanto, não pode o contribuinte valer-se doplanejamento tributário para efetuar pagamento de tributoaquém de sua capacidade contributiva.Já a ética fiscal pública é informada por quatro valores superiores,a saber, a liberdade, que consiste na aceitação da opção fiscal aser adotada pelo contribuinte, desde que respeitada a sua156n. 6 - 2005.2
Planejamento tributáriocapacidade contributiva; a igualdade, no sentido de que todosque estiver<strong>em</strong> na mesma situação haverão de sofrer a mesmatributação; a segurança, que pugna pela não tributação desurpresa, irracional etc.; e finalmente, a solidariedade, ápice deefetivação da ética fiscal pública. Fazer justiça tributária é dentrevárias coisas, ser solidário com os carentes que têm direito subjetivoà solidariedade, é garantir aos credores desta solidariedade aoferta de bens primários intributáveis, porquanto os pobres,des<strong>em</strong>pregados, e os assalariados não pod<strong>em</strong> suportar o ônustributário do Estado, mas, sim, hão que ser suportados pelo Estadovia ética tributária da solidariedade mediante a arrecadação edistribuição de riquezas oriundas do pagamento de tributos doscidadãos-contribuintes. 12O particular, ao procurar pagar menos tributos, atua licitamente dentrodo planejamento tributário elaborado para sua <strong>em</strong>presa. Ao contrário,atua de má-fé e incide <strong>em</strong> tipo penal aquele que sonega tributos.B<strong>em</strong> faz essa indagação, analisando a norma tributária <strong>em</strong> comento doparágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, o professor EdvaldoBrito: “Afinal: pagar menos imposto é crime ou é, nas circunstâncias dosnegócios jurídicos indiretos, um planejamento tributário?” 13 . Ora, evident<strong>em</strong>ente,não há crime algum <strong>em</strong> fazer um planejamento tributário, desdeque não se verifique a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.A norma geral antielisiva <strong>em</strong> comento não pode ser assim admitida,segundo entendimento de Sidney Saraiva Apocalypse:Isto porque a se entender que o tributo é s<strong>em</strong>pre devido, quer serealize, ou não, a hipótese descrita <strong>em</strong> lei como suficiente parafazer nascer a obrigação de pagar tributo, conclusão inevitável éa de que diante de duas ações possíveis (consentidas no sist<strong>em</strong>a),ao cidadão resta o inexorável: pagar tributo. 14É preciso, portanto, diferenciar a obrigação ex lege da declaração devontade das partes. A obrigação tributária – porque deriva da lei – somentenascerá com subsunção do fato à norma, ou seja, com a ocorrência do “fatogerador”. Antes disso, cabe ao particular escolher sua conduta, praticar ounão determinado ato de vontade, realizar ou não um negócio jurídico. Segueesta mesma linha de raciocínio Ricardo Mariz de Oliveira:A obrigação de pagar tributo, realmente, não deriva da vontadeindividual, eis que promana de comandos legais imperativos.Não obstante. A obrigação tributária somente t<strong>em</strong> a característicade ser “ex lege” a partir de sua existência, a qual, como já vimos,somente surge com a ocorrência do fato gerador, isto é, da situaçãonecessária e suficiente a ela, prevista <strong>em</strong> lei. Logo, antes dessaREVISTA OPINIÃO JURÍDICA157
Ivo César Barreto de Carvalhoocorrência não há sequer obrigação para ser qualificada como“ex lege” ou não. [...]Por esta razão é que, após a ocorrência do fato gerador, háobrigação “ex lege” e qualquer tentativa do já contribuinte paraescapar do cumprimento da obrigação é ilegal e é acoimada deevasão fiscal. 15Cabe, sim, ao particular escolher a conduta a ser por ele tomada, ouseja, se realiza um ato tributável ou não tributável. De outro modo, o particularpode preferir realizar um negócio jurídico cujo tributo nele incidenteseja mais vantajoso do que se realizasse o mesmo negócio por outra forma,incidindo sobre este tributo mais oneroso. Enfim, o cidadão é livre para escolhera conduta menos onerosa, do ponto de vista fiscal.A impossibilidade de o administrador público exigir a conduta maisonerosa pelo particular foi a fundamentação do então juiz federal SachaCalmon Navarro Coelho, <strong>em</strong> um dado caso judicial:[...] <strong>em</strong> Direito Tributário, tão marcado pelo princípio dalegalidade, não deve o intérprete aplicador, mesmo diante decasos de elisão, superpor-se á lei. A função de reprimir a evasão<strong>em</strong> razão de lacunas é do legislador nunca do administrador.[...] penso que as lacunas da lei, os ‘loopholes’ como diz<strong>em</strong> osamericanos, só dev<strong>em</strong> ser suprimidos pela lei, para o b<strong>em</strong> detodos. Ainda que alguns estejam levando vantag<strong>em</strong> é preferívelmanter o princípio da legalidade do que estender aoAdministrador poderes que amanhã se tornariam muito difíceisde controlar, além de impor ao Judiciário como poder revisor doato administrativo, a obrigação de estar a verificar, caso a caso, arazoabilidade fiscal dos contratos. Haveria, neste caso, grandesdivérbios, pois cada juiz julgaria com seu próprio subjetivismo assituações e os interesses dos justiçáveis. 16Corroborando esse entendimento, a jurisprudência administrativa tambémressalta a possibilidade de o particular realizar o planejamento tributário,s<strong>em</strong> que isto caracterize uma conduta evasiva tributariamente (nestecaso entendendo-a como ilícita), mas apenas um caso de elisão fiscal (entendendo-acomo lícita). Neste ponto, é oportuno transcrever a <strong>em</strong>enta dosacórdãos seguintes:Uma <strong>em</strong>presa pode ser organizada de forma a evitar excessosde operações tributadas e conseqüent<strong>em</strong>ente evitar aocorrência de fatos geradores por ela e perante a leidesnecessários, como poderia funcionar por modalidades legaismenos tributadas. Fica ao contribuinte a faculdade de escolha oude planejamento fiscal. 17158n. 6 - 2005.2
Planejamento tributárioIRPJ – Simulação na Incorporação – Para que se possamaterializar é indispensável que o ato praticado não pudesseser realizado, fosse por vedação legal ou por qualquer outrarazão. Se não existir impedimento para a realização daincorporação tal como realizada e o ato praticado não é denatureza diversa daquele que de fato aparenta, isto é, sede fato e de direito não ocorreu ato diverso da incorporação,não há como qualificar-se a operação simulada. Os objetivosvisados como a prática do ato não interfer<strong>em</strong> na qualificaçãodo ato praticado, portanto, se o ato praticado era lícito, aseventuais conseqüências contrárias ao Fisco dev<strong>em</strong> serqualificadas como casos de elisão fiscal e não de evasãoilícita. 18A despeito de a norma <strong>em</strong> questão se tratar ou não de uma normaantielisão, mesmo assim, caso seja aplicada pela autoridade administrativa,está ela vedando o planejamento tributário. Isto porque o agente fiscal podeentender que a aplicação de certas condutas <strong>em</strong> uma <strong>em</strong>presa, por ex<strong>em</strong>plo,tendentes a pagar menos tributos ou a não pagá-los, dev<strong>em</strong> ser interpretadascomo uma dissimulação de negócio jurídico e, portanto, devendo ser tributadas.Corrobora este mesmo liame de pensamento Marciano Seabra de Godoi,a respeito da postura do Estado frente à elisão e à evasão:O planejamento ou elisão tributária não é senão uma expressãoconcreta de autonomia patrimonial dos indivíduos e <strong>em</strong>presasnum contexto constitucional cuja ord<strong>em</strong> econômica se fundana livre iniciativa e protege a propriedade privada (art. 170 daCF). Seria totalmente inconstitucional (e até mesmo estapafúrdia)uma norma que ordenasse aos contribuintes, ao considerar<strong>em</strong> osdiversos meios através dos quais pod<strong>em</strong> atingir seus objetivoseconômicos, que escolhess<strong>em</strong> os caminhos que rendess<strong>em</strong> maisarrecadação tributária. Contudo, isso não significa que o Estadonão possa ou não deva reagir frente ao planejamento tributário,pois mesmo não configurando uma infração à legislação tributária,a elisão reflete imperfeições do sist<strong>em</strong>a tributário consideradosob os cânones da igualdade e da capacidade contributiva. Aprimeira forma de combater a elisão tributária, a qual não encontracrítica n<strong>em</strong> mesmo nos mais ardosos defensores da autonomia davontade e da liberdade contratual, é o estabelecimento, pelolegislador, de normas pontuais voltadas a comportamentosespecíficos dos contribuintes. Com efeito, à medida que a elisãotributária vai sendo praticada e pouco a pouco vai se massificandoentre os contribuintes, a legislação tributária geralmente émodificada para incorporar previsões específicas impedindo queaquela elisão continue a ser exercitada. Estas providências legaispod<strong>em</strong> ser operadas através de hipóteses de incidência supletóriasREVISTA OPINIÃO JURÍDICA159
Ivo César Barreto de Carvalhoou supl<strong>em</strong>entares às já existentes, através de presunções legaisabsolutas ou ficções jurídicas. [...] O segundo grupo de medidasantielisão é composto pelas chamadas ‘normas gerais antielisão’.Através dessas normas, os aplicadores do direito tributário(administração tributária e juízes) têm a prerrogativa dedesconsiderar<strong>em</strong>, para efeitos tributários, a forma artificiosa edistorcida pela qual o contribuinte concatena determinados atose negócios jurídicos com a finalidade de, chegando aos mesmosresultados econômicos, obter uma vantag<strong>em</strong> fiscal. As normasgerais antielisão, apesar de sua difusão generalizada nos paísesmais desenvolvidos do mundo há algumas décadas, encontramcríticos que as consideram desrespeitosas aos princípios dasegurança jurídica, da legalidade e da tipicidade tributárias.Segundo tal corrente de pensamento, somente seria compatívelcom o Estado de Direito a estipulação das normas específicasantielisão, através das quais o próprio legislador colmatapaulatinamente as lacunas do ordenamento tributário impositivo.As normas gerais antielisão, ao contrário, estariam reprimindoindevidamente a liberdade contratual e a autonomiapatrimonial dos indivíduos e <strong>em</strong>presas, conduzindo ao arbítrioda interpretação econômica das normas tributárias e suaintegração por analogia, e por conseguinte fulminando asegurança jurídica. 19Em suma, sendo o planejamento tributário a expressão mais legítimados princípios constitucionais da legalidade geral (art. 5°, inciso II), do direitoindividual à propriedade privada (art. 5°, inciso XXII), da legalidadetributária estrita (art. 150, I) e do princípio que assegura o direito ao nãoconfisco(art. 150, inciso IV), restam claras a legalidade e aconstitucionalidade de tal procedimento adotado pelas pessoas físicas e jurídicas.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAMARAL, Gilberto Luiz do. A nova ótica do planejamento tributário <strong>em</strong>presarial.Artigo disponível <strong>em</strong> http://www.tributarista.org.br/content/estudos/novaotica.html.Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004.APOCALYPSE, Sidney Saraiva. A regra antielisiva. Apenas uma dissimuladaintenção. In ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Planejamento tributárioe a lei compl<strong>em</strong>entar n. 104. São Paulo: Dialética, 2001.BRITO, Edvaldo. Interpretação econômica da norma tributária. In ROCHA,Valdir de Oliveira (coord.). Planejamento tributário e a lei compl<strong>em</strong>entar n.104. São Paulo: Dialética, 2001.160n. 6 - 2005.2
Planejamento tributárioCARDOSO, Lais Vieira. Atos de gestão elisivos e abuso de direito. In PEI-XOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Planejamento tributário. São Paulo:Quartier Latin, 2004.FABRETTI, Láudio Camargo. Normas antielisão. Artigo disponível <strong>em</strong> http:// www.tributarista.org.br/content/estudos/anti-elisao.htm. Acesso <strong>em</strong>31.07.2004.GODOI, Marciano Seabra de. A figura da “fraude à lei tributária” previstano art. 116, parágrafo único, do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário,São Paulo, n. 68, p.101-123, maio 2001.GUBERT, Pablo Andrez Pinheiro. Planejamento tributário: análise jurídica eética. Artigo disponível <strong>em</strong> http://www.tributarista.org.br/content/estudos/etica.html. Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004.GUERREIRO, Rutnéa Navarro. Planejamento tributário: os limites delicitude e de ilicitude. In ROCHA, Valdir de Oliveira. Planejamento fiscal:teoria e prática. São Paulo: Dialética, 1998, v. 2.HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais.São Paulo: Saraiva, 1997.MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal.Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 63, dez./2000.MIRANDA, João Damasceno Borges de; LEMOS, Alexandre MarquesAndrade. Planejamento tributário para <strong>em</strong>presas prestadoras de serviços<strong>em</strong> face das recentes alterações legislativas. In PEIXOTO, MarceloMagalhães (coord.). Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin,2004.NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Limites éticos e jurídicos ao planejamentotributário. In PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Planejamentotributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004.NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 15. ed. atual. São Paulo:Saraiva, 1999.OLENIKE, João Eloi. Planejamento tributário e a lei compl<strong>em</strong>entar n. 104/2001.Artigo disponível <strong>em</strong> http://www.tributarista.org.br/content/estudos/lei-104-2001.html. Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004.OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Reinterpretando a norma antievasão do parágrafoúnico do art. 116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética deDireito Tributário, São Paulo, n. 76, 2002, p. 81-101.RIBEIRO, Maria de Fátima. Tributação e comércio eletrônico: consideraçõessobre planejamento tributário. In PEIXOTO, Marcelo Magalhães(coord.). Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA161
Ivo César Barreto de Carvalho1RIBEIRO, Maria de Fátima. Tributação e comércio eletrônico: considerações sobre planejamentotributário. In PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Planejamento tributário. São Paulo: QuartierLatin, 2004, p. 555.2FABRETTI, Láudio Camargo. Normas antielisão. Artigo disponível <strong>em</strong> http:// www.tributarista.org.br/content/estudos/anti-elisao.htm. Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004. Grifo no original.3AMARAL, Gilberto Luiz do. A nova ótica do planejamento tributário <strong>em</strong>presarial. Artigo disponível <strong>em</strong>http://www.tributarista.org.br/content/estudos/nova-otica.html. Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004. Grifos nooriginal.4OLENIKE, João Eloi. Planejamento tributário e a lei compl<strong>em</strong>entar 104/2001. Artigo disponível <strong>em</strong> http://www.tributarista.org.br/content/estudos/lei-104-2001.html. Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004.5GUBERT, Pablo Andrez Pinheiro. Planejamento tributário: análise jurídica e ética. Artigo disponível<strong>em</strong> http://www.tributarista.org.br/content/estudos/etica.html. Acesso <strong>em</strong> 31.07.2004. Grifos nooriginal.6GUERREIRO, Rutnéa Navarro. Planejamento tributário: os limites de licitude e de ilicitude. InROCHA, Valdir de Oliveira. Planejamento fiscal: teoria e prática. São Paulo: Dialética, 1998, v. 2, p. 147.7MIRANDA, João Damasceno Borges de; LEMOS, Alexandre Marques Andrade. Planejamentotributário para <strong>em</strong>presas prestadoras de serviços <strong>em</strong> face das recentes alterações legislativas.In PEIXOTO, Marcelo Magalhães. Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p.577.8CARDOSO, Lais Vieira. Atos de gestão elisivos e abuso de direito. In PEIXOTO, Marcelo Magalhães.Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 214.9MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENEZES, Paulo Lucena de. Elisão fiscal. Revista Dialética de DireitoTributário, São Paulo, n. 63, dez./2000, p.159.10NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 15. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 200-201.11HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais. São Paulo: Saraiva, 1997,p. 328-331.12NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Limites éticos e jurídicos ao planejamento tributário. In PEIXOTO,Marcelo Magalhães. Planejamento tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 31-32. Grifos e destaquesno original.13BRITO, Edvaldo. Interpretação econômica da norma tributária. Planejamento tributário e a leicompl<strong>em</strong>entar n° 104. São Paulo: Dialética, 2001, p. 69.14APOCALYPSE, Sidney Saraiva. A regra antielisiva. Apenas uma dissimulada intenção. PlanejamentoTributário e a Lei Compl<strong>em</strong>entar n° 104, São Paulo: Dialética, 2001, p. 308.15OLIVEIRA, Ricardo Mariz. Reinterpretando a norma antievasão do parágrafo único do art.116 do Código Tributário Nacional. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 76, p. 86-87, 2002.16COELHO, Sacha Calmon Navarro apud APOCALYPSE, Sidney Saraiva, op. cit., p. 317.17Ementa do Acórdão nos Embargos Infringentes n° 313.840-SP, 7ª Câmara do 1° Tribunal de AlçadaCível-SP, publicada no Boletim AASP, de 28 de agosto de 1985.18Acórdão da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Conselho de Contribuintes n° 01-01.874, de15.05.94, Processo n. 13067/000.015/89-36.19GODOI, Marciano Seabra de. A figura da “fraude à lei tributária” prevista no art.116,parágrafo único, do CTN. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 68, maio/2001, p.102-103.162n. 6 - 2005.2
Planejamento tributárioTAXATION PLANNINGABSTRACTThis paper deals with the issue of taxation planning,aiming to outline its general idea, definition, juridicalnature, purpose, accomplishment and proceduresrelated, connecting all these features with Brazilianconstitutional principles.KEYWORDS: Taxation planning. Tax elusion.Economics of taxation. Legality Principle. Privateproperty. Non-confiscation.PLANIFICATION FISCALERÉSUMÉLe présent article traite de la planification fiscale. Sonintention est de délimiter cette notion générale, sonconcept, sa nature juridique, sa finalité, son modeopératoire et procédure, en se focalisant sur cesparamètres dans lê contexte des principesconstitutionnels brésiliens.MOTS-CLÉS: Planification fiscale. Élision fiscale.Économie fiscale. Principe de la légalité. Propriétéprivée. Non- confiscation.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA163
DA NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO POLICIALJeovânia Maria Cavalcante Holanda*1 O dever de punir no Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito. 2Incidência do inquérito policial nos direitos individuais. 3 Análiseda natureza jurídica do inquérito policial. 3.1 Ato discricionárioou vinculado? 3.2 Procedimento ou Processo? 3.3 Sigiloso? 4Conclusão.RESUMOAnálise da natureza jurídica do Inquérito Policial, a partirdas alterações impostas pelo Estatuto da Ord<strong>em</strong> dosAdvogados do Brasil e pela Lei n. 10.792/2003, aquelerevogando o caráter sigiloso e esta o caráter inquisitorial, aoregulamentar a garantia constitucional do contraditório eda ampla defesa a partir do Inquérito Policial.PALAVRAS-CHAVE: Polícia Judiciária. Inquérito Policial.Natureza Jurídica.1 O DEVER DE PUNIR NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITONum Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito o ordenamento jurídico limitapoderes através da divisão de atribuições e de um sist<strong>em</strong>a de tutela dasliberdades. Nele, deve-se obediência às normas, e, ao cumprir o dever depunir, o Estado não pode aplicar sanções s<strong>em</strong> dar ao acusado os direitos egarantias estabelecidos no referido sist<strong>em</strong>a.Em sua Constituição as normas estão dispostas de forma a que umpoder limite o outro; e é essa distribuição um instituto eficaz na harmonizaçãoentre a liberdade e o poder, com leis conciliando a independência do indivíduoe a obediência às normas, viabilizando assim uma convivência mais segurae harmônica.Para evitar arbítrios, as prescrições jurídicas defin<strong>em</strong>, previamente, oscomportamentos legais, com normas claras e precisas, não deixando, a critérioda autoridade, o modo de cumprir suas atribuições. A Carta Magna impõelimites ao jus puniendi pelos princípios e regras estabelecidos. Havendo a*Delegada da Polícia Judiciária do Estado do Ceará. Professora de Direito Penal da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>.Mestre <strong>em</strong> Direito Constitucional e Especialista <strong>em</strong> Direito Penal pela Universidade de Fortaleza.Especialista <strong>em</strong> Processo pela Escola Superior de Magistrados do Ceará.164n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policialinfração penal, tal qual o particular, o Estado deve dirigir-se ao Poder Judiciárioe dele exigir a aplicação da sanção penal.Dentre os valores da sociedade brasileira, foi positivado como normafundamental da República do Brasil, o respeito à dignidade da pessoa humana,protegendo-a de outros indivíduos e do próprio Estado. Mas, sabe-se quea plena positivação dos direitos não garante, por si só, sua concretização,fazendo-se necessário, para tanto, a eficiente prestação judicial. As restriçõesà liberdade e ao patrimônio de possíveis transgressores só serão legítimasse obedecer<strong>em</strong> às regras materiais e formais do ordenamento jurídico,impostas pelos princípios fundamentais da d<strong>em</strong>ocracia, dentre eles o princípioda legalidade.O Direito Penal t<strong>em</strong> a missão de promover a paz social, através daprevenção geral, onde elenca e divulga as condutas delituosas e suas respectivassanções, b<strong>em</strong> como, através da concretização da punição, caso a prevençãogeral reste insuficiente. Contudo, os princípios que fundamentam osist<strong>em</strong>a das liberdades e a atividade punitiva do Estado impõ<strong>em</strong> aos seusagentes públicos, no exercício do poder de punir, o dever de agir restritamenteno campo delimitado pela legalidade.O Estado, por meio do Poder Judiciário, mormente nos processos criminais,<strong>em</strong> que vigoram os princípios do in dubio pro reo, da verdade real e oprincípio da presunção de inocência, só poderá decidir pela condenação doacusado caso existam provas da autoria e materialidade que extermin<strong>em</strong>qualquer resquício de dúvida. Do contrário, a sentença deverá absolver oacusado, julgando improcedente a acusação.A pesquisa dessa verdade ocorre primeiramente na Polícia Judiciária,e t<strong>em</strong> por fim provar o fato e suas circunstâncias, fornecendo, às autoridadesincumbidas do dever de punir os fundamentos necessários ao des<strong>em</strong>penhode suas atribuições.O inquérito policial é o resultado formalizado do cumprimento, pelaautoridade policial, destas atribuições que lhe foram incumbidas, de formaprivativa, pela Constituição Federal de 1988, ou seja, o Delegado de Policiaé constitucionalmente o responsável pela apuração e prova das infraçõespenais e da respectiva autoria, como determina o art. 144, § 4º da atualCarta Política.2 INCIDÊNCIA DO INQUÉRITO POLICIAL NOS DIREITOS INDI-VIDUAISHoje, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 permite quatro espéciesde prisões: a penal, a processual, a civil e a disciplinar. Dentre as prisõesprocessuais estão a prisão <strong>em</strong> flagrante, a preventiva, a t<strong>em</strong>porária, a prisãoresultante da pronúncia e da sentença condenatória não transitada <strong>em</strong> jul-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA165
Jeovânia Maria Cavalcante Holandagado. Das cinco, três delas geralmente ocorr<strong>em</strong> na fase da instrução provisória,que é materializada pelo inquérito policial.Constata-se, pois, a estrita relação entre o direito de liberdade de ir evir e o inquérito policial, a partir da prisão <strong>em</strong> flagrante. Esta é medidacautelar que restringe a liberdade do indivíduo no momento <strong>em</strong> que consumouou acabara de consumar o crime ou contravenção. Ela independe deord<strong>em</strong> judicial; o fato delituoso é analisado cautelosamente pela autoridadepolicial que, convicta da tipicidade e da reunião de todos os el<strong>em</strong>entos doestado de flagrância, determina a lavratura do auto de prisão.Outra espécie de prisão processual, como antedito, é a t<strong>em</strong>porária.Sua base legal está na Lei n. 7.960, de 21 de dez<strong>em</strong>bro de 1989, e só ocorrena fase do inquérito policial, pois objetiva possibilitar as investigações noscasos de crimes graves, assim caracterizados pela própria lei.É o Delegado de Polícia qu<strong>em</strong> avalia e comprova a necessidade dedecretação da prisão t<strong>em</strong>porária, pois o legislador pretendeu colocar o suspeito,não identificado ou de difícil localização, diante da autoridade policial,e assim viabilizar a realização de vários atos necessários à pesquisa daverdade sobre o crime e seu autor, atos como o interrogatório, acareação ereconhecimento de pessoas e coisas.Assim, caso um indivíduo seja suspeito de ter tentado matar alguémpor motivo considerado fútil, poderá, a requerimento do Delegado de Políciae das provas constantes no inquérito policial, ter a prisão decretada peloprazo de 30 dias, prorrogável por mais 30. Dessa forma, poderá passar até 60dias recluso, tudo com base nas provas do inquérito policial.A prisão preventiva também é prisão cautelar, diferindo da prisão t<strong>em</strong>porária,que é decretada exclusivamente na fase do inquérito policial. Aprisão preventiva t<strong>em</strong> natureza cautelar <strong>em</strong> razão de sua finalidade, que égarantir a eficácia de uma futura decisão judicial. Como as d<strong>em</strong>ais prisõescautelares, a preventiva é medida excepcional, só podendo ser determinadase comprovada a existência de um crime e indícios suficientes de autoria.Mas, o processo penal é instrumento legal utilizado não tão-somentepara o Estado executar a pretensão punitiva. Também viabiliza a reparaçãodo dano patrimonial causado à vítima, <strong>em</strong> conseqüência do delito. Pois hácrimes <strong>em</strong> que a recomposição material é de maior interesse da vítima que aprópria aplicação da sanção penal.Para tanto, a lei processual penal brasileira prevê medidas cautelaresassecuratórias da eficácia de futura decisão judicial quanto à reparação dodano decorrente do crime.O seqüestro é uma delas. Medida de natureza cautelar, destina-se aevitar que o acusado se desfaça dos proventos que auferiu com as condutascriminosas de sua autoria, inviabilizando o cumprimento de futura sentença166n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policialcondenatória para a compensação patrimonial, <strong>em</strong> prol da vítima. O fim é aconstrição dos bens imóveis ou móveis, adquiridos com os proventos do crime.Sua previsão legal está nos artigos 125 e 132 do CPP.Para melhor compreensão das medidas assecuratórias, importante sublinharque os proventos do crime difer<strong>em</strong> dos produtos do crime. Produto éa vantag<strong>em</strong> diretamente obtida com o ato criminoso, como a jóia, no crimede furto. O produto do crime é a própria jóia, objeto material do delito.Provento do crime é o b<strong>em</strong> adquirido pelo autor da infração, como conseqüênciaindireta de seu comportamento ilícito, por ex<strong>em</strong>plo, o carro compradocom o dinheiro resultante da venda da jóia furtada. A lei não prevêseqüestro para o produto do crime, pois, sobre ele, incide a medida debusca e apreensão.Ao Delegado de Polícia a lei atribui o dever de colher e comprovar osindícios que apontam o autor da infração e a orig<strong>em</strong> ilícita de seu patrimônio,b<strong>em</strong> como o poder de requerer à autoridade judicial o seqüestro destes.A hipoteca legal, também de natureza cautelar, é medida assecuratóriacom fim s<strong>em</strong>elhante ao do seqüestro, ou seja, garantir futura reparação civildo dano resultante do delito, mas cuja restrição recai sobre o patrimôniolícito do indiciado ou do réu. Prevista no Código Civil brasileiro <strong>em</strong> favor doofendido ou de seus herdeiros, recai sobre os imóveis necessários para satisfaçãodo dano causado pelo delito; pode ser requerida <strong>em</strong> qualquer fase doprocesso, mas para tanto, o pedido deve ser fundamentado com a prova inequívocada materialidade do crime e dos indícios de autoria. Aqui, a políciajudiciária também atua fornecendo as provas exigidas.Outra destas medidas é o arresto, denominado indevidamente peloCPP, <strong>em</strong> seu art. 137, como seqüestro. T<strong>em</strong> as mesmas características dahipoteca legal, diferindo desta, por recair sobre bens móveis. O arresto visaimpossibilitar que o autor do crime disponha de seus bens móveis de orig<strong>em</strong>lícita, para que estes garantam a futura reparação do dano causadopelo delito.Por fim, com o ato de indiciamento que ocorre no inquérito policial, umapessoa é apontada como provável autor do crime apurado, e, apesar de saber queas decisões administrativas não faz<strong>em</strong> coisa julgada, não é menos certo que játêm o condão de perpetrar graves lesões a direitos individuais, cuja reparação,muitas vezes, é de difícil operacionalização perante o Judiciário.E mesmo nos crimes <strong>em</strong> que a lei admite a liberdade provisória medianteo pagamento de fiança, arbitrada esta pela autoridade policial ou judiciária,o indiciado será obrigado a comparecer perante a autoridade toda vezque for intimado para atos do inquérito ou da instrução criminal.O indiciado também fica proibido de mudar de residência s<strong>em</strong> apermissão da autoridade processante, ou de ausentar-se por mais de oitodias, s<strong>em</strong> prévia comunicação àquela autoridade do lugar onde poderá serREVISTA OPINIÃO JURÍDICA167
Jeovânia Maria Cavalcante Holandaencontrado, tudo por determinação dos artigos 327 e 328 do Código deProcesso Penal.Daí as razões para que o Estado proteja constitucionalmente o acusadoa partir do processo administrativo, pois, quanto melhor a decisãoalcançada no nascedouro da instrução penal provisória, menores as chancesde lesão à dignidade da pessoa humana, evitando-se, ainda, nulidades e odescumprimento dos prazos da instrução definitiva, entusiasta contumaz daimpunidade.3 ANÁLISE DA NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO POLICIALA natureza jurídica do inquérito policial, na teoria predominante, édefinida como mera peça de informação, tendo <strong>em</strong> vista seu caráter discricionário,procedimental, inquisitorial e sigiloso, o que consideramos um errodogmatizado, fundamentado nas falsas características que lhe são atribuídas.Definir a natureza jurídica do inquérito policial, ou de qualquer institutoda ciência do Direito, exige o uso de palavras precisas que o identifiqu<strong>em</strong>e distingam, determinando sua extensão. Dizer que a peça probatóriaque fundamenta inicialmente a persecução penal é meramente informativalimita de forma superficial o instituto e desconsidera seu reflexo nos direitosindividuais, pois, mais que informar, o inquérito policial coleciona as provasque fundamentam a aplicação da lei penal.Ele é o resultado formalizado do cumprimento, pela autoridade policial,das atribuições que lhe foram incumbidas, de forma privativa, pela ConstituiçãoFederal de 1988. Simples peça de informação é uma revista, umjornal, um panfleto ou algo do gênero, e, nesse contexto científico, seriaimpróprio usar os termos informação e prova como sinônimos. Informar é dara notícia de algo; provar é d<strong>em</strong>onstrar a verdade sobre algo.É óbvio que toda prova contém uma informação, mas n<strong>em</strong> toda informaçãopode ser classificada como prova para o Direito Processual Penal.Sendo assim mais preciso classificar o inquérito policial como peça probatóriado que como peça informativa.O inquérito policial reúne as provas que instru<strong>em</strong> os pedidos de prisãot<strong>em</strong>porária, preventiva, medidas restritivas do patrimônio e da privacidade,a saber: busca e apreensão, arresto, seqüestro, hipoteca legal, quebra dosigilo telefônico, bancário; além de fundamentar a denúncia e a sentença -peças que, respectivamente, iniciam e encerram a persecução criminal nafase judicial.O inquérito policial, na condição de peça processual que sintetiza aapuração e a comprovação imparcial de fatos delituosos, prova; sendo certo,outrossim, que não se destina pontualmente, n<strong>em</strong> à parte que acusa, n<strong>em</strong> àparte que se defende. Seu fim é servir à aplicação da lei penal, afirmação168n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policialque encontra fundamento nos artigos 6º, 7º, 8º e do 155 ao 250, todos doCódigo de Processo Penal, b<strong>em</strong> como no princípio da comunhão das provas eda livre convicção ou persuasão racional.Os autores que compartilham do entendimento de que o inquéritopolicial é mera peça de informação têm argumentos s<strong>em</strong>elhantes, e para nãoser repetitiva, selecionei os expostos pelo autor Júlio Fabbrini Mirabete, ex-Procurador de Justiça do Estado de São Paulo, professor de Direito Penal,m<strong>em</strong>bro da Acad<strong>em</strong>ia Paulista de Direito, do Instituto Manoel Pedro Pimentele do Departamento de Direito Penal da Universidade de São Paulo.Em sua obra “Processo Penal” 1 , referido autor expõe, que “o inquéritopolicial não é indispensável ao oferecimento da denúncia ou da queixa”, eque, à critério do Ministério Público, elas pod<strong>em</strong> ser oferecidas s<strong>em</strong> obrigatóriafundamentação nos autos de investigação oficial. Acrescenta que o art. 27do CPP dispõe que qualquer um pode provocar a iniciativa do MinistérioPúblico (MP), fornecendo-lhe, por escrito, informações sobre o fato, autoria,t<strong>em</strong>po, lugar e os meios de convicção sobre o crime, e que os artigos 39, § 5 o e46, § 1º, ambos do CPP, sublinham o poder do MP de dispensar o inquérito.O autor trata da dispensa do inquérito policial, a critério do Promotorde Justiça, como se este caso fosse a regra da lei processual penal, como se alei não tivesse criado esta hipótese apenas de forma excepcional.O que consta na lei processual penal acerca da dispensa do inquéritopolicial pelo Ministério Público, e como exceção, está no art. 38, § 5º, CPP,o qual faculta ao Promotor de Justiça, nos crimes de ação penal públicacondicionada à autorização da vítima ou de seu representante legal, oferecerdenúncia s<strong>em</strong> inquérito, caso a vítima, além da autorização, forneçael<strong>em</strong>entos que possibilit<strong>em</strong> o oferecimento da denúncia. Mas é só!O Código de Processo Penal não traz nenhuma outra hipótese de dispensado inquérito policial por qualquer autoridade, n<strong>em</strong> mesmo pela autoridadepolicial. O autor selecionou o texto que trata da situação excepcional,abordando-a como se fosse regra e transmitindo a idéia de que a leiadmite como regra, o que é exceção.Nos crimes de ação penal pública incondicionada não é facultado aoDelegado de Polícia promover ou não o inquérito policial; os princípios constitucionaisincidentes nesse campo obrigam as autoridades da Polícia Judiciáriaa agir, são os princípios da obrigatoriedade e oficialidade.O fim do processo criminal é a aplicação da lei penal e, para tanto, ainstrução criminal é indispensável e compreende todas as formalidades necessáriaspara se pôr uma causa <strong>em</strong> estado de ser julgada. 2O inquérito policial é uma das peças que compõ<strong>em</strong> a instrução daação penal, eis que por ele restam apuradas as provas das circunstâncias e daautoria das infrações penais, ou seja, é “a pesquisa da verdade e dos meiosREVISTA OPINIÃO JURÍDICA169
Jeovânia Maria Cavalcante Holandade prová-la eventualmente <strong>em</strong> juízo, é o objeto claro que o legislador lhereconheceu”. 3No inquérito policial são reunidas as prova colhidas logo após o fato,algumas delas impossíveis de repetição perante o Poder Judiciário, como oauto de flagrante delito, o exame do local de crime e as provas periciais. Háoutras cuja repetição é factível ante o Judiciário, é b<strong>em</strong> verdade, porém s<strong>em</strong>o alcance existente quando tais provas restam colhidas próximas ao momentodo fato, <strong>em</strong> que o t<strong>em</strong>po atua como aliado.Tal qual as tintas de uma aquarela, as provas, com o passar do t<strong>em</strong>po,vão perdendo a nitidez, suas cores se tornam opacas, ao ponto de comprometero reconhecimento da figura. A Polícia Judiciária t<strong>em</strong>, como nenhuma outrainstituição encarregada da persecução penal, as melhores condições paravisualizar e provar a materialidade e autoria do fato criminoso, justamentepela oportunidade de olhar o quadro ainda com a tinta fresca.Considerando esses fatos - e que os princípios são normas sobrepostasàs regras - defend<strong>em</strong>os, com base nos princípios da obrigatoriedade, oficialidadee indisponibilidade do processo, a exigência legal do inquérito policial,de forma absoluta, nos crimes de ação penal pública incondicionada.Divergimos, portanto, do referido autor, quando este afirma que asatribuições concedidas à polícia, no inquérito policial, são de caráter discricionário,sigiloso e inquisitorial.3.1 Discricionário ou vinculado?As infrações penais não pod<strong>em</strong> ficar s<strong>em</strong> punição e, no momento <strong>em</strong>que são consumadas ou tentadas, é dever do Estado promover o jus puniendi,não tendo os órgãos encarregados da persecução penal o poder discricionáriopara optar entre agir ou não agir. O princípio da obrigatoriedade fixanormas contrárias àquelas baseadas no princípio da oportunidade quecondiciona a vontade da vítima à promoção, ou não, do jus puniendi.O princípio da oficialidade, compl<strong>em</strong>entando o da obrigatoriedade,preceitua que, como a repressão ao crime é atribuição do Estado, esta deveser realizada por seus órgãos, ou seja, os órgãos encarregados e incumbidosde executar a pretensão punitiva dev<strong>em</strong> ser oficiais. No Brasil, como antesvisto, a Constituição Federal delegou à Polícia Judiciária, de forma privativa,a apuração das infrações penais e ao Ministério Público, a promoção darespectiva ação penal.Do princípio da obrigatoriedade decorre o da indisponibilidade doprocesso, que vigora inclusive na fase do inquérito policial, porquanto, instauradoeste, não pode ser paralisado ou arquivado. Como reflexo desta normafica proibido também ao Ministério Público desistir da ação penal instauradaou do recurso interposto.170n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policialA experiência d<strong>em</strong>onstra que, na prática, não se deve dispensar oinquérito policial, mesmo nos casos <strong>em</strong> que a lei processual penal assim oadmita. Neste particular concordamos com a opinião de Heleno CláudioFragoso, no sentido de que “convém que se faça s<strong>em</strong>pre o inquérito policial,de modo a permitir que se apure a existência do delito, <strong>em</strong> todas as suascaracterísticas fundamentais”. 4Convém, então, questionar se a discricionariedade realmente caracterizao ato administrativo que é o inquérito policial. O Estado, parades<strong>em</strong>penhar suas atribuições, dentre elas o dever de punir, delega à AdministraçãoPública poderes que possibilitam a execução de seu fim. Essespoderes, necessariamente, põ<strong>em</strong> os representantes do Estado <strong>em</strong> posiçãode supr<strong>em</strong>acia sobre o particular. Contudo, num Estado D<strong>em</strong>ocrático deDireito, <strong>em</strong> que os princípios constitucionais têm como essência o respeitoà dignidade da pessoa humana, tais poderes são limitados por esses princípiose suas regras, tudo objetivando impedir abusos e arbitrariedades queocorr<strong>em</strong> quando as autoridades não observam os limites que a lei traçapara cada ato.Os atos administrativos são classificados <strong>em</strong> vinculados e discricionários.Os atos vinculados são aqueles <strong>em</strong> que - por existir prévia e objetiva tipificaçãolegal do único possível comportamento da Administração, <strong>em</strong> face de certasituação também prevista <strong>em</strong> termos de objetividade absoluta - a AdministraçãoPública, ao expedi-los, não interfere com apreciação subjetiva alguma. 5Aqui a lei não deixa espaço para que o servidor público opte. Diante dedeterminados requisitos, a Administração deve agir. A partir desta obrigaçãolegal nasce, para o particular, o direito de exigir da autoridade a realização doato legalmente determinado, sob pena de responder judicialmente por suaomissão. Havendo flagrante de delito, por ex<strong>em</strong>plo, o delegado de polícia nãopode optar entre autuar, ou não, o acusado. É a lei que o obriga a agir!Maria Silvia Zanella Di Pietro 6 , descrevendo os atos administrativosespecificamente na análise da discricionariedade do ato, afirma que essacaracterística está presente se houver uma possibilidade de escolha para asautoridades entre o agir e o não agir; se diante de certa situação a Administraçãoestiver obrigada a adotar determinada providência, sua atuação évinculada; se, no entanto, puder escolher entre atuar ou não, existediscricionariedade. Sirva-se de ex<strong>em</strong>plo o caso da ocorrência de ilícito administrativo:a Administração é obrigada a apurá-lo e a punir os infratores,sob pena de condescendência criminosa (art. 320 do Código Penal).Ora, se a Administração Pública está vinculada à apuração de ilícitosadministrativos; com muito mais razão se vincula à apuração de ilícitos penais,cuja maior gravidade ensejou até mesmo a sua tipificação.O ex<strong>em</strong>plo supra já chama a atenção para a questão da existência docontraditório <strong>em</strong> qualquer processo administrativo, pois, se é assegurada amplaREVISTA OPINIÃO JURÍDICA171
Jeovânia Maria Cavalcante Holandadefesa ao indivíduo que comete a irregularidade administrativa de ultrapassarsinal vermelho, cuja sanção máxima é pecuniária; seria então paradoxal,se esse mesmo indivíduo, ao ser acusado de cometer um ilícito penal, comtodas as conseqüências que ocorr<strong>em</strong> na fase prévia da persecução penal, nãopudesse, administrativamente, exercer o direito de defesa.No inquérito policial o acusado poderá ser privado de sua liberdadepor meio de prisão <strong>em</strong> flagrante, assim como ter decretada a prisão t<strong>em</strong>poráriapor até 60 dias, ou s<strong>em</strong> prazo previamente determinado nos casos deprisão preventiva, além de poder ficar com seu patrimônio bloqueado e serindiciado.Celso Antônio Bandeira de Melo, na obra citada alhures, nas páginas205 e 206, analisando de forma mais criteriosa a matéria, revela que no atodiscricionário a norma reguladora carece de precisão porque não descreve,antecipadamente, a situação <strong>em</strong> vista da qual será aplicável o comportamentoadministrativo.No inquérito policial o Delegado de Polícia analisa se a ação ouomissão está tipificada no Código Penal ou <strong>em</strong> leis extravagantes comocrime ou contravenção. Estando tipificada a conduta, o Delegado dePolícia avalia se estão presentes os el<strong>em</strong>entos configuradores para qualqueruma das espécies de flagrante previstas pelo Código de ProcessoPenal e, se todos esses requisitos estiver<strong>em</strong> presentes, a autoridade policialt<strong>em</strong> a obrigação legal, como já foi dito, de prender e autuar <strong>em</strong>flagrante o indiciado.As normas que fundamentam esta fase da persecução penal não deixamespaços para a discricionariedade, l<strong>em</strong>brando que o princípio da legalidade,incidente no Direito Penal, determina que todas as condutas e sançõescriminais dev<strong>em</strong> ser criadas por lei ordinária, impossibilitando assimque outras espécies normativas cri<strong>em</strong> tipos penais e sanções.Essa lei deve ser anterior ao fato, não podendo, pois, retroagir paraalcançar fatos que antecederam a sua vigência; e deve ser escrita, impossibilitandoque os costumes ou a moral cri<strong>em</strong> infrações penais; deve, outrossim,ser certa e restrita, para que as ações e omissões classificadas comocriminosas venham descritas de forma clara e precisa, s<strong>em</strong> termos ambíguosou vagos.O Código de Processo Penal, por sua vez, disciplina os estados deflagrância <strong>em</strong> delito, ou seja, existindo a conduta criminosa e o estado deflagrância, a autoridade policial não pode decidir se autua, ou não, <strong>em</strong> flagrante,pois o ato é vinculado.E a Lei n. 4.898, de 1965, <strong>em</strong> seu art. 3º, indica como abuso de autoridadeos atentados à liberdade de locomoção, englobando dentre estas violações,qualquer forma de prisão ilegal. Em seu art. 4º estende o rol dos fatostipificados como crime de abuso de autoridade, e inclui o ato de ordenar, ou172n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policialexecutar medida privativa de liberdade, s<strong>em</strong> as formalidades legais ou comabuso.3.2 Procedimento ou Processo?Mirabete afirma que o inquérito policial é um procedimento e nãoum processo, por nele não existir o contraditório. Nélson Nery Jr. 7 , porsua vez, afirma que o princípio do contraditório não é aplicável nessaprimeira fase, porquanto o inquérito policial, no seu entender, não é umprocesso administrativo e sim um procedimento inquisitório.Aqui, novamente, ousamos divergir dos prestigiosos autores.Resta necessária, pois, uma análise mais ampla que identifique: 1) oque os princípios constitucionais determinam; 2) qual a distinção entre processoe procedimento e; 3) quais as características de um processo inquisitivoe de um processo acusatório. Só então, mediante tais el<strong>em</strong>entos, poder<strong>em</strong>osanalisar a real natureza jurídica do inquérito policial e avaliar se a ConstituiçãoFederal determina a aplicação do contraditório nessa fase.A Constituição de 1988 é b<strong>em</strong> clara: “Aos litigantes, <strong>em</strong> processo judicialou administrativo, e aos acusados <strong>em</strong> geral são assegurados o contraditórioe ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV).E, como se não bastasse tanta clareza, acentua: “Ninguém será privadoda liberdade ou de seus bens s<strong>em</strong> o devido processo legal” (CF, art. 5º, LIV).A Carta Magna vigente, <strong>em</strong> seu artigo 5º, inciso LV, não restringe oprincípio do contraditório apenas aos litigantes <strong>em</strong> processo judicial ou administrativo.Se essa fosse a intenção do legislador, o texto teria encerradopor aí; haveria um ponto final após referir-se ao processo administrativo.Contudo, o legislador, expressamente, estendeu essa garantia aos acusados<strong>em</strong> geral, quando se utilizou da conjunção aditiva “e”. Estendeu, pois,os regramentos do contraditório e da ampla defesa, com todos os meios erecursos a eles inerentes, aos acusados <strong>em</strong> geral; e de forma cautelosa, e nointuito de evitar que esta garantia fosse transformada numa utopia, determinoua imediata comunicação da prisão e do local onde o preso se encontra,ao juiz competente e à família, ou pessoa pelo preso indicada; assim comoassegurou-lhe a indicação clara de seus direitos, especialmente no tocanteao silêncio e à assistência de advogado.A atual lei processual penal ratifica o entendimento de que esta atuaçãoda defesa, para atender aos desígnios do legislador constituinte, há deser efetiva, balizada no contraditório, com o exercício da defesa técnica <strong>em</strong>sua maior amplitude.E consubstanciada a atuação do defensor, a atividade defensiva préviaganha maior dimensão, ao ponto de propiciar o contraditório no inquéri-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA173
Jeovânia Maria Cavalcante Holandato policial, pois a necessidade de se chegar à verdade está acima do excessode rituais. Trata-se, enfim, de um direito fundamental do acusado que nãopode ser transformado, <strong>em</strong> nenhuma hipótese, <strong>em</strong> inconsistente formalidade;e cuja observância se impõe, sob pena de nulidade dos atos praticadoss<strong>em</strong> a efetiva assistência do defensor constituído pelo indiciado, ou público(cf., também, arts. 5º, LXXIV, e 134 da CF).Comunga deste entendimento o autor Agapito Machado 8 , professorde Processo Penal e Juiz Federal, que também faz referência a váriosoutros autores que tratam e defend<strong>em</strong> a incidência do princípio do contraditóriono inquérito policial, como garantia assecuratória dos direitosfundamentais:Há qu<strong>em</strong> entenda, portanto, que o inquérito policial hoje é umprocesso administrativo (e não mero procedimento) <strong>em</strong> quedeve ser assegurado o contraditório, como é o caso de RogérioLauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci no livro “Devidoprocesso legal e tutela jurisdicional”, RT, 1993, pg 25/27;“Contraditoriedade no inquérito policial” – Outro t<strong>em</strong>a queclama pela atenção do analista é o referente à contraditoriedadeno inquérito policial.Explica que uma confusão terminológica, e até mesmo conceitual,entre processo e procedimento se tradicionalizou no Brasil. Fala-se <strong>em</strong> um,quando se cogita do outro, ao ponto de a Constituição Federal expressar“processo administrativo”, quando se está querendo aludir a procedimento administrativo.Ada Pellegrini Grinover 9 enfatiza a imprescindibilidade da efetivadefesa do acusado a partir do interrogatório da prisão <strong>em</strong> flagrante, sob penade nulidade deste:Finalmente, cabe realçar que se o interrogatório é essencial paraa validade do ato processual – como ocorre, por ex<strong>em</strong>plo, com aprisão <strong>em</strong> flagrante: art.304 do CPP – não há dúvidas de que anulidade se comunica <strong>em</strong> qualquer caso ao ato processual<strong>em</strong>basado no interrogatório viciado. Caberá à autoridade policialzelar para que todas as garantias sejam asseguradas ao preso nointerrogatório, e ao juiz aferir se realmente se deu seu efetivocumprimento.Como visto, os princípios constitucionais, que têm como centro o respeitoà dignidade da pessoa humana, não poderiam admitir que <strong>em</strong> nenhumafase da persecução penal o Estado tivesse o poder de tratar a pessoasuspeita como mero objeto de investigação.174n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policial3.3 Sigiloso?O sigilo também não pode ser citado como el<strong>em</strong>ento que fundamentea natureza jurídica inquisitorial do inquérito, pois, com o Estatuto da Ord<strong>em</strong>dos Advogados do Brasil, houve uma revogação tácita do art. 20 doCódigo de Processo Penal. Essas duas normas são incompatíveis; não há comoassegurar sigilo ao inquérito policial se o Estatuto dos Advogados determinaque qualquer um de seus m<strong>em</strong>bros, mesmo s<strong>em</strong> procuração, pode consultaros autos e copiar as peças, a qualquer momento.Assim, por tudo até agora estudado e principalmente pelo acatamentoque dev<strong>em</strong>os aos princípios da legalidade, presunção de inocência, in dubiopro reo, obrigatoriedade, indisponibilidade, oficialidade, publicidade, contrariedadee defesa, conclui-se que o inquérito policial, fase antecedente doprocesso definitivo, t<strong>em</strong> natureza jurídica diversa da que lhe v<strong>em</strong> imputandoboa parte da doutrina.4 CONCLUSÃOResta inconsistente, pois, a tese de que o inquérito policial é mero procedimentoinquisitorial, haja vista ser um ato administrativo vinculado, não sigiloso,com direito ao contraditório e defesa, a partir do auto da prisão <strong>em</strong> flagrante.Concluimos que sua natureza jurídica é de processo administrativo de instruçãocriminal. E, como todos os atos instrutórios deste processo administrativo sãoobrigatoriamente repetidos no processo judicial, sob o fundamento da revogadainexistência de defesa no inquérito, questionamos a constitucionalidade destaimposição incondicional, pois, a repetição desprovida de critérios gera uma instruçãocriminal redundante e morosa, onde o ordinário descumprimento dosprazos instrutórios do processo judicial apadrinha a impunidade.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALMEIDA JÚNIOR, João Mendes. O processo criminal brasileiro. 4. ed. SãoPaulo: Editora Freitas Bastos, 1959.ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. A contrariedade na instrução criminal.São Paulo: Livraria Acadêmica, 1937.______. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: RT, 1973.BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 5.ed. São Paulo: Malheiros, 1994.GRINOVER, Ada Pellegrini. O interrogatório como meio de defesa. RevistaOpinião Jurídica, Fortaleza, n. 4, ano II, p. 9-21, 2004.2.MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2002.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA175
Jeovânia Maria Cavalcante HolandaMACHADO, Agapito. Prisões: legalidade, ilegalidade e instrumentos jurídicos.Fortaleza: Edição Universidade de Fortaleza, 1999.NERY JÚNIOR, Nélson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo:Atlas, 1999.TORNAGHI, Hélio. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 2.1MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 266.2ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: RT, 1973,p. 5; p. 8.3Ibid., p. 62.4PIMENTEL, Manuel Pedro. Direito penal econômico. São Paulo: RT, 1973, p. 227.5BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros,1994, p. 203.6PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 197.7NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5. ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 1999, p.133.8MACHADO, Agapito. Prisões: legalidade, ilegalidade e instrumentos jurídicos. Fortaleza: Universidadede Fortaleza, p. 178-182.9GRINOVER, Ada. O interrogatório como meio de defesa. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 2, n. 4,p. 19, 2004.2.ON THE JURIDICAL NATURE OFINVESTIGATIONABSTRACTAnalysis of the juridical nature of investigation, takinginto account the changes d<strong>em</strong>anded by the lawsregulating the activity of lawyers in Brazil, whichrevoked the secrecy in investigation, and the Law10.792/2003, which cancels the inquisitorial featuresit had, as the constitutional guarantees from the dueprocess of law inside investigation were object of newregulation.KEYWORDS: Bureau of investigation. Investigation.Juridical nature.176n. 6 - 2005.2
Da natureza jurídica do inquérito policialDE LA NATURE JURIDIQUE DE L’ENQUÊTEPOLICIÈRERÉSUMÉAnalyse de la nature légale de l’enquête policière,depuis les chang<strong>em</strong>ents imposés par le statut desavocats du Brésil et par la loi n. 10.792/2003. Celui-làretira le caractère non-public et celle-ci, le caractèreinquisiteur de cette enquête, au moment de larégl<strong>em</strong>entation des garanties constitutionnelles ducontradictoire et du droit de la défense.MOTS-CLÉS: Police judiciaire. Enquête policière.Nature juridique.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA177
RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL: DIFI-CULDADES TEÓRICAS E PRÁTICASJuliana Sombra Peixoto*1 Apresentação do t<strong>em</strong>a. 2 Segurança jurídica e justiça no EstadoD<strong>em</strong>ocrático de Direito. 3 “Coisa julgada inconstitucional”:enfoque crítico. 3.1 Denominação esdrúxula. 3.2 Fundamentospara a relativização. 3.3 Justiça como um valor absoluto: pósmodernidadeou retrocesso? 3.4 Perpetuação dos litígios. 3.5Propostas de lege lata e de lege ferenda. 4 Conclusão.RESUMOA doutrina da “coisa julgada inconstitucional” – que propõea “relativização” do instituto da coisa julgada quando oconteúdo da sentença for injusto ou inconstitucional – émerecedora de uma minuciosa análise crítica, à luz do sist<strong>em</strong>aprocessual pátrio forjado <strong>em</strong> um Estado D<strong>em</strong>ocrático deDireito cujo primado consiste na harmonização de valoresessenciais à vida <strong>em</strong> sociedade: a segurança e a justiça.PALAVRAS-CHAVE: Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito.Segurança. Justiça. Coisa Julgada. Relativização.1 APRESENTAÇÃO DO TEMAT<strong>em</strong>a que v<strong>em</strong> suscitando muitas controvérsias na modernaprocessualística nacional é o da relativização da coisa julgada material, sobr<strong>em</strong>aneiranos casos <strong>em</strong> que ocorre ofensa direta ao texto constitucional. Anovel doutrina da “coisa julgada inconstitucional” é merecedora de umacuidadosa análise crítica, mormente <strong>em</strong> relação aos seus fundamentos teóricos,que ora são insuficientes, ora sequer existentes.Dentre os trabalhos escritos derredor desse t<strong>em</strong>a, cabe destacar, dentreoutros, o Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, de Paulo Otero, e Contributopara uma teoria da inconstitucionalidade, de Jorge Miranda, ambos da doutrinalusitana. Vale salientar igualmente, no âmbito nacional, as contribuições de*Mestranda <strong>em</strong> Direito Constitucional (UFC). Pós-graduanda <strong>em</strong> Direito e Processo do Trabalho(<strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>). Advogada. Professora universitária.178n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasJosé Augusto Delgado, Cândido Rangel Dinamarco, Carlos Valder do Nascimento,Paulo Roberto de Oliveira Lima, Teresa Arruda Alvim Wambier e JoséMiguel Garcia Medina, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro deFaria, Ros<strong>em</strong>iro Pereira Leal, e, <strong>em</strong> especial, a recente tese de doutoramentodo professor Eduardo Talamini, intitulada Coisa julgada e sua revisão.Não obstante o brilhantismo de seus defensores, as teses propagadorasda “coisa julgada inconstitucional” não resist<strong>em</strong> a um exame mais detido daquestão, conforme será d<strong>em</strong>onstrado ao longo deste texto, que apresentaidéias iniciais com vistas a formar contra-reflexões à onda de relativizaçãoque v<strong>em</strong> assolando o instituto da coisa julgada material.Não se pretende com este breve enfoque crítico chegar-se a uma abordag<strong>em</strong>profunda do t<strong>em</strong>a, mas tão somente delinear contra-argumentações<strong>em</strong> face da tese que v<strong>em</strong> tomando cada vez mais espaço na doutrina e najurisprudência pátrias.Especial atenção é dedicada ao confronto de dois valores de sumaimportância para todo e qualquer sist<strong>em</strong>a processual: a segurança jurídica ea justiça. O primeiro será representado pelo instituto da coisa julgada comogarantia material, enquanto o segundo servirá de fundamento para as propostasde relativização da coisa julgada.Do Estado de Direito, de orig<strong>em</strong> liberal, ao Estado D<strong>em</strong>ocrático deDireito, a segurança jurídica e a justiça – como valores que são – passarampor constantes modificações. Essa mudança de paradigmas (segurança x justiça)consiste <strong>em</strong> um contexto facilitador do debate acerca da relativizaçãoda coisa julgada, uma vez que a justiça é o fim último do processo, mas nãohá justiça s<strong>em</strong> segurança jurídica.Tendo <strong>em</strong> vista que esse confronto de valores é de difícil ponderação,porquanto ambos são essenciais à vida <strong>em</strong> sociedade, buscam-se soluçõesquer de lege lata, quer de lege ferenda, no intuito de harmonizá-los, <strong>em</strong> cotejocom a ord<strong>em</strong> jurídica constitucional vigente.2 SEGURANÇA JURÍDICA E JUSTIÇA NO ESTADO DEMOCRÁTI-CO DE DIREITOConforme defend<strong>em</strong> alguns adeptos da famigerada tese da “coisajulgada inconstitucional”, <strong>em</strong> sendo a sentença transitada <strong>em</strong> julgado desconformecom a Constituição Federal, ainda que ultrapassado o prazo deajuizamento da ação rescisória, deverá essa ser desconstituída porquantoalbergue o mais grave dos vícios: a inconstitucionalidade. Segundo esta tese,o valor segurança deverá ceder espaço ao valor Justiça, tido este últimocomo absoluto e soberano, a justificar sua prevalência. 1Deste modo, faz-se necessária uma breve análise da evolução das formasde organização do Estado – do Estado de Direito ao Estado D<strong>em</strong>ocráticoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA179
Juliana Sombra Peixotode Direito – no des<strong>em</strong>penho de uma das suas principais funções: a tentativade harmonização desses valores (segurança x justiça), consubstanciados nadicotomia legalidade x legitimidade.Observa-se, ao longo da formação do Estado moderno, o aperfeiçoamentocontínuo das diversas formas de organização estatal, com vistas aacompanhar a expansão crescente dos direitos fundamentais, b<strong>em</strong> como aconquista de novos direitos.De um Estado absolutista, <strong>em</strong> que todo o poder se concentrava nasmãos de um monarca, evolui-se para um Estado de Direito, no qual o poderjá não é mais de pessoas, mas de leis, sendo a legalidade a máxima de valorsupr<strong>em</strong>o, conferindo segurança jurídica <strong>em</strong> detrimento da arbitrariedadedos que governavam o ordenamento social e político.Uma das principais características do Estado Liberal de Direito consistena submissão ao império da lei. A legalidade como princípio maior doEstado Liberal, com apogeu no direito positivo da Constituição mexicana (1917)e da Constituição de Weimar (1919), constitui o marco da conversão do EstadoAbsoluto (caracterizado pela célebre frase: “O estado sou Eu” de Luís XIV,o “Rei Sol”) no Estado Constitucional. No Estado Liberal, a legitimidade estásubsumida à legalidade, ou muitas vezes com esta se confunde. 2O Estado de Direito de orig<strong>em</strong> liberal, caracterizado pela conquistados direitos de primeira geração, é superado por um Estado Social, com ênfasenos direitos de segunda geração. Aqui, não mais a legalidade, e sim, alegitimidade se fez paradigma dos Estatutos Fundamentais.Há, portanto, a superação do modelo liberal, de um Estado nãointervencionista,passando-se a exigir, por parte do Estado, determinadasprestações materiais. A respeito da superação do modelo Liberal e do adventodo Estado Social, preceitua Pablo Lucas Verdú 3 :Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se comoliberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se desua neutralidade, integrar, <strong>em</strong> seu seio, a sociedade, s<strong>em</strong> renunciarao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade, deixoude ser formal, neutro e individualista, para transformar-se <strong>em</strong>Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática epretende realizar a justiça social.De um Estado Social, superado por não atingir seu intuito de assegurara justiça social, chega-se ao Estado D<strong>em</strong>ocrático, com o objetivo de estabelecera efetiva participação d<strong>em</strong>ocrática do povo nas decisões políticas doEstado, a fim de atender às exigências da legitimidade de caráter substancial,<strong>em</strong> que se compreend<strong>em</strong> princípios materiais de justiça.Enquanto no Estado de Direito preza-se pela legalidade e no EstadoD<strong>em</strong>ocrático pela legitimidade, Francisco Gérson Marques de Lima esclare-180n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasce que “no Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito, legitimidade e legalidade entrelaçam-se,preench<strong>em</strong>-se, uma dando sustentáculo e justificação política àoutra”. 4 Caberá, pois, ao Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito a difícil missão de conciliaros ideais de legalidade e legitimidade, promovendo a conjugação harmônicade fundamentos tão aparent<strong>em</strong>ente distintos, como a segurança e a justiça.Porque a coisa julgada representa verdadeiro corolário do Estado D<strong>em</strong>ocráticode Direito, é nessa conjugação harmônica de valores que se devebuscar uma solução razoável para o fenômeno da “coisa julgadainconstitucional”.3 “COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL”: ENFOQUE CRÍTICOÉ fundamento do Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito a segurança e a estabilidadedas relações jurídicas por meio da imutabilidade das decisões judiciais.Neste sentido, o princípio da segurança jurídica t<strong>em</strong> por escopo agarantia dos direitos regularmente constituídos, que já integram a esferapatrimonial do titular da tutela judicial garantida.A coisa julgada consiste <strong>em</strong> um atributo indispensável à efetividadedo direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário, sendo que de nadaadiantaria falar-se <strong>em</strong> direito de acesso à justiça, s<strong>em</strong> dar ao cidadão o direitode ver o seu conflito solucionado definitivamente. 5Nesta perspectiva, Teori Albino Zavascki preconiza que a Constituiçãodotou a tutela jurisdicional de dois institutos garantidores da pacificaçãosocial: “a) o da cognição exauriente, como instrumento para potencializara justiça das decisões, e b) o da coisa julgada, para conferir estabilidade àssentenças, alcançando, assim, a solução final das controvérsias”. 6Não obstante a necessidade inolvidável de um instrumento garantidorde segurança e estabilidade às prestações jurisdicionais, é tambéminquestionável a importância do valor justiça a guiar todo sist<strong>em</strong>a processualque seja forjado à luz de um Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito. Contudo,ainda nos parece inviável a garantia absoluta, e de certa forma utópica, deque o processo s<strong>em</strong>pre conduzirá a um resultado justo.Diante disto, a falta de critérios seguros e racionais para a “relativização”da coisa julgada poderá conduzir a um estado de grande incerteza e injustiça,gerando uma situação insustentável para o Estado, já que as sentenças proferidasnos seus tribunais não terão valor algum, podendo ser invalidadas e tornadasinúteis, s<strong>em</strong> maiores dificuldades, ao bel-prazer da parte prejudicadaque se sentir injustiçada por uma decisão judicial desfavorável.Não se pode prescindir, portanto, de uma análise sucinta e cautelosada doutrina da “coisa julgada inconstitucional”, com exame pormenorizadoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA181
Juliana Sombra Peixotodas pr<strong>em</strong>issas tidas como sustentáculo desta tese, que defende a relativizaçãodo instituto da coisa julgada como meio hábil a garantir a justiça dos provimentosjudiciais finais.3.1 Denominação esdrúxulaCoisa julgada, efeitos da sentença e conteúdo do decisum, conquantoestejam vinculadamente conjurados e fundamentalmente ligados, são aspectosdistintos, havendo a necessidade imperiosa de diferenciá-losontologicamente, à medida que se busca conceituar o primeiro.A coisa julgada foi tida por muito t<strong>em</strong>po, na visão tradicionalromanística, como o próprio b<strong>em</strong> julgado (res judicata), ou seja, a res in iudiciumdeducta, confundindo-se com o próprio b<strong>em</strong> da vida (pedido mediato) reconhecidoou desconhecido <strong>em</strong> juízo. Sob esta perspectiva consistiria a coisajulgada <strong>em</strong> um dos efeitos produzidos pela sentença, identificando-se muitasvezes com o seu próprio efeito declaratório.Chiovenda, ao tratar dos limites subjetivos da coisa julgada, esboçauma modesta superação das idéias até então dominantes, tentando diferenciaros efeitos do julgado da autoridade da coisa julgada. Sobre o primeiroafirma que “como todo ato jurídico relativamente às partes entre as quaisintervém, a sentença existe e vale com respeito a todos”. Quanto ao segundo,consigna: “O julgado [giudicato] é restrito às partes e só vale como julgadoentre elas”. Contudo, a diferenciação adequada dos institutos só viriamais tarde. 7Reformulando a visão prevalecente até meados do século passado –que provocou grave confusão entre os efeitos da sentença e a coisa julgada –Enrico Tullio Liebman constata que a sentença produz todos os seus efeitosindependent<strong>em</strong>ente do seu trânsito <strong>em</strong> julgado, pelo que a coisa julgadaseria não um efeito da sentença, mas uma qualidade que se agrega aos seusefeitos. Nas exatas palavras do autor:(...) a autoridade da coisa julgada não é efeito da sentença,como postula a doutrina unânime, mas, sim, modo de manifestarsee produzir-se dos efeitos da própria sentença, algo que a essesefeitos se ajunta para qualificá-los e reforça-los <strong>em</strong> sentido b<strong>em</strong>determinado. 8No entanto, apesar de aparent<strong>em</strong>ente correta e prevalecente na doutrinaprocessual brasileira, alguns doutrinadores, como José Carlos BarbosaMoreira 9 e Ovídio Baptista da Silva 10 , impugnam com ve<strong>em</strong>ência a formulaçãofeita pelo autor italiano com espeque, basicamente, no seguinte motivo:sejam quais for<strong>em</strong> os efeitos do provimento, eles se submet<strong>em</strong> à livre disposiçãodas partes, sujeitando-se a inúmeras modificações.182n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasSegundo a crítica feita à teoria de Liebman, a coisa julgada não consistepropriamente na imutabilidade dos efeitos da sentença, mas naimutabilidade do conteúdo do comando da sentença, ante a possibilidadede modificação dos seus efeitos. Ex<strong>em</strong>plo disto seria a possibilidade de reconciliaçãodo casal, a despeito do trânsito <strong>em</strong> julgado da sentença quedecretou o divórcio, e o perdão pelo credor da quantia devida pelo devedor,ainda que este tenha sido condenado ao pagamento da dívida <strong>em</strong> provimentojudicial final.Em que pese o fato de ser plausível a modificação dos efeitos da sentençatransitada <strong>em</strong> julgado, <strong>em</strong> função de um negócio jurídico celebradoespontaneamente pelas partes, resta clara a impossibilidade da obtenção deum novo provimento jurisdicional, junto a qualquer juiz, acerca do mesmoobjeto antes decidido pela sentença revestida da cosia julgada. 11A esse respeito, afirma Eduardo Talamini:Por sua vez, a “imperatividade” da sentença – aquilo queLiebman chamou de “eficácia natural” -, além de não se confundircom a coisa julgada, tampouco impede as partes de abrir mão desuas posições jurídicas disponíveis. Significa apenas que asentença, como ato estatal, impõe-se mesmo contra a vontadedaquele que sofre os seus efeitos. (Destaques do autor) 12Destaque-se que, no direito brasileiro, a possibilidade de acordo,mesmo depois de transitada <strong>em</strong> julgado a decisão – desde que se trate desituação jurídica disponível –, é ratificada pela regra do art. 850 do CódigoCivil: “apenas se algum dos transatores não tinha ciência da anterior coisajulgada é que será nula a transação”.Em arr<strong>em</strong>ate, conclui-se ser a coisa julgada a qualidade deimutabilidade que recai sobre o comando contido na parte dispositiva dasentença, não se confundindo com o próprio conteúdo do decisum, n<strong>em</strong>,muito menos, com os seus efeitos.Feitas as devidas distinções resta claro o equívoco da esdrúxula denominação“coisa julgada inconstitucional” porquanto o que se apresenta eivadoda pecha de inconstitucionalidade não é, n<strong>em</strong> poderia ser, a coisa julgada<strong>em</strong> si, mas o conteúdo da sentença, denominado por Eduardo Talamini 13 de“núcleo essencial da coisa julgada” que está <strong>em</strong> desacordo com os preceitosconstitucionais, sendo que a coisa julgada só faz perpetuar esse conteúdo.Some-se a isto o fato de ser a coisa julgada instituto por si só “constitucional”,aludida no art. 5.º, XXXVI, da Contituição Federal de 1988 (CF/88), como garantia material fundamental, sendo deveras inadequado adjetiválacomo “inconstitucional”.Atento à impropriedade da referida denominação, alerta-nos Ros<strong>em</strong>iroPereira Leal 14 :REVISTA OPINIÃO JURÍDICA183
Juliana Sombra PeixotoAssim, a coisa julgada, ao perder as conotações primitivas de resjudicata advinda da res in judicium deducta como objeto mediatodo pedido, torna estéril o debate sobre se a coisa julgada meritalé impeditiva do exercício de direito-de-ação assegurado no art.5º, XXXIV e XXXV, da CB/88, como público autônomo eabstrato, ainda que sobre lide pré-decidida. Por igual fundamento,afiguram-se excêntricas e impróprias as expressões: coisa julgadainconstitucional, coisa julgada relativa e relativização da coisajulgada. (Grifos do autor).Por conseguinte, o fenômeno a que se denomina “coisa julgadainconstitucional” trata-se, na realidade, de sentença transitada <strong>em</strong> julgadocujo comando pressupõe, veicula ou gera uma afronta à Constituição, ouseja, malfere normas (regras e princípios) constitucionais.O jurista português Paulo Otero 15 assim classifica as três possibilidadesde inconstitucionalidade do caso julgado, a saber: (1) decisão judicialaplicadora de norma inconstitucional; (2) decisão judicial direta e imediatamentevioladora da Constituição e (3) decisão judicial desaplicadora denorma constitucional.Acrescenta-se, ainda, à tipologia do jurista português a sentença quedá à lei interpretação incompatível com a Constituição Federal, porquantohaja previsão expressa no art. 741, parágrafo único do Código de ProcessoCivil (CPC), como causa de inexigibilidade do título judicial, estar este“fundado <strong>em</strong> lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supr<strong>em</strong>oTribunal Federal”, ou, ainda, “<strong>em</strong> aplicação ou interpretação incompatíveiscoma a Constituição Federal”.3.2 Fundamentos para a relativizaçãoConforme preconiza a tese da “coisa julgada inconstitucional”, haverá arelativização dos efeitos conferidos pelo trânsito <strong>em</strong> julgado da decisão de mérito,independent<strong>em</strong>ente do <strong>em</strong>prego de ação rescisória ou de seu prazodecadencial, nas seguintes hipóteses: a) sentenças de mérito cujo comando sejade cumprimento materialmente impossível, e b) sentenças proferidas <strong>em</strong> hipotéticodesacordo com valores humanos, éticos e políticos da Constituição 16 .As primeiras são tidas como sentenças que albergu<strong>em</strong> comandos absurdos,como, por ex<strong>em</strong>plo, a determinação da escravidão. Sucede, porém,que os argumentos ad absurdum dev<strong>em</strong> ser rebatidos com soluções tambémabsurdas. Em um caso teratogênico, como a mencionada sentença sobre aescravidão, esta simplesmente não poderá ser cumprida, por impossibilidad<strong>em</strong>aterial, social e cultural da modernidade.Cuida-se aí de questão muito mais fática, de não se poder cumprir asentença, do que jurídica. Posto o probl<strong>em</strong>a além do Direito, é também além184n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasdele que se deverá buscar a solução. Porque o Direito não responde a tudo,a resposta a tais questões deve ser buscada nos fatos sociais, econômicos,políticos, etc., visto que possu<strong>em</strong> inevitável importância no cumprimentodas decisões.A segunda hipótese diz respeito às sentenças definitivas (com trânsito<strong>em</strong> julgado) que ofend<strong>em</strong> a Constituição da República. A doutrina descrevedois principais casos <strong>em</strong> que se deverá impor a relativização da coisajulgada: quando da revisão do julgado <strong>em</strong> investigação de paternidade, graçasao advento de nova prova técnica 17 , e, no caso de modificação do valorda desapropriação, tornado iníquo por transcurso de t<strong>em</strong>po 18 .Há teses que, para sustentar as hipóteses aqui enumeradas derelativização da coisa julgada, apegam-se ao argumento do valor Justiça comofim último do Direito, a justificar sua prevalência <strong>em</strong> detrimento da segurançajurídica, esta representada pelo caso julgado.Merece registro a afirmação de José Augusto Delgado, para qu<strong>em</strong> assentenças que ofend<strong>em</strong> a Constituição “nunca terão força de coisa julgada”e poderão, a qualquer t<strong>em</strong>po, ser desconstituídas “no seu âmago mais consistenteque é a garantia da moralidade, da legalidade, do respeito à Constituiçãoe da entrega da justiça”. 19Feitas estas considerações, cabe aqui o seguinte questionamento: Afinal,o fundamento da relativização da coisa julgada é o da igualdade, o dainconstitucionalidade ou o da injustiça?Parece-nos que os defensores da “coisa julgada inconstitucional“ aose arvorar<strong>em</strong> da idéia de que uma suposta “justiça” deverá prevalecer s<strong>em</strong>pre<strong>em</strong> detrimento do valor “segurança”, esquec<strong>em</strong>-se de que toda teoriaque se preze deve ser pautada <strong>em</strong> pr<strong>em</strong>issas e fundamentos convincentes,sendo inadmissível que não chegu<strong>em</strong> a um consenso sequer quanto ao fundamentoque deverá justificar a relativização da coisa julgada.D<strong>em</strong>ais disso, que justiça é essa que desejam propagar à custa de umainjustiça ainda maior: a insegurança das relações jurídicas?É, pois, inconteste a ausência de fundamentos teóricos substancialmenteválidos no que se refere à supr<strong>em</strong>acia da Justiça como um valor quese intenta absoluto – pr<strong>em</strong>issa que serve de supedâneo à desconsideração docaso julgado quando eivado de inconstitucionalidade.3.3 Justiça como um valor absoluto: pós-modernidade ou retrocesso?Se a relativização da coisa julgada é fundamentada na injustiça que asentença possa espelhar, então é imprescindível uma discussão filosófica, jurídica,política e social do que seja, de fato, justo. De que justiça se trata,afinal? Social, processual, distributiva, econômica, política ou divina?REVISTA OPINIÃO JURÍDICA185
Juliana Sombra PeixotoNeste sentido, é bastante pertinente a crítica de Luiz GuilhermeMarinoni 20 , para qu<strong>em</strong>:A “tese da relativização” contrapõe a coisa julgada material aovalor justiça, mas surpreendent<strong>em</strong>ente não diz o que entendepor “justiça” e sequer busca amparo <strong>em</strong> uma das modernascontribuições da filosofia do direito sobre o t<strong>em</strong>a.Justiça de qu<strong>em</strong>? Do Estado, enquanto representante dos interessesdos cidadãos? Infelizmente, não. Justiça do Estado sim, mas enquanto pessoajurídica de direito público que, na prática, não raramente se opõe ao cidadãoe ao próprio ordenamento jurídico – garantia do cidadão contra os arbítriosdo poder do Estado. Prova disto é a natureza destrutiva, e não construtivada tese defensora da “relativização” da coisa julgada, uma vez que visamuito mais a retirar direitos do que a concedê-los.Ou ainda, justiça do governante, cercado de toda uma carga ideológica,política? Neste caso, referida tese seria anacrônica, tendo servido <strong>em</strong>outros t<strong>em</strong>pos de fundamento político-ideológico à implantação do regimefascista, sendo que só era justo aquilo que o Reich al<strong>em</strong>ão considerava comotal, conforme destaca Nelson Nery Júnior 21 :Adolf Hitler assinou, <strong>em</strong> 15.7.1941, a Lei para a Intervenção doMinistério Público no Processo Civil, dando poderes ao parquetpara dizer se a sentença seria justa ou não, se atendia aosfundamentos do Reich al<strong>em</strong>ão e aos anseios do povo al<strong>em</strong>ão.(...)Se o Ministério Público al<strong>em</strong>ão entendesse que a sentença erainjusta, poderia propor ação rescisória (Wiederaufnahme desVerfahrens) para que isso fosse reconhecido.A injustiça da sentença representava uma das hipóteses de cabimentoda ação rescisória na Al<strong>em</strong>anha nazista. Desconsiderar a coisa julgada combase no argumento axiológico da justiça é, pois, instrumento tipicamentetotalitário, não tendo qualquer pertinência com o princípio fundamental doEstado D<strong>em</strong>ocrático de Direito.José Ignácio Botelho de Mesquita 22 , ao classificar a tese defensora darelativização da coisa julgada de “movimento juridicamente retrógrado epoliticamente anacrônico” tece o seguinte comentário:Da tese <strong>em</strong> análise, portanto, é lícito dizer que, a despeito dosforos de modernidade que se arroga, é mais velha do que a Sé deBraga, obra monumental cuja construção data do ano 1070 daera cristã. Não se desprega do absolutismo da velha tradiçãomonárquica, que fez a glória dos totalitarismos europeus do séculopassado.186n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasSeria então a justiça do próprio cidadão? Em se admitindo uma respostaafirmativa, estar-se-ia pondo por terra todo o sist<strong>em</strong>a processual pátrio,produzido que fora com vistas a garantir ao cidadão a pacificação heterônomade suas d<strong>em</strong>andas, retroagindo-se aos mecanismos autônomos de soluçãodos conflitos, com o <strong>em</strong>prego da força física. Voltaríamos, pois, aos t<strong>em</strong>posdas cavernas?Ora, mas a doutrina da “coisa julgada inconstitucional” se julga devanguarda, alegando como fonte principal do seu nascedouro o inconformismosocial advindo com a pós-modernidade, que sugeriu a quebra de paradigmascientíficos tidos como verdadeiros dogmas <strong>em</strong> nossa sociedade, vindo os estudiososdo Direito a questionar idéias postas como absolutas e intangíveiscomo o instituto da coisa julgada. Pós-modernidade ou retrocesso?Ad<strong>em</strong>ais, admitir-se a justiça como a do próprio cidadão, individualmenteconsiderado, traria consigo um outro probl<strong>em</strong>a de igual gravidade: aperpetuação dos litígios, consubstanciada na possibilidade de qualquer cidadão,ao sentir-se injustiçado pela prolação de uma decisão judicial desfavorável,propor a revisão do julgado, independent<strong>em</strong>ente da possibilidadeou não de ajuizamento da ação rescisória, por vias atípicas de desconstituiçãoda coisa julgada.Há ainda qu<strong>em</strong> entenda a “justiça” como o respeito à própria Constituição,sendo, portanto, um valor absoluto a justificar sua prevalência diantede eventual conflito entre este e a “segurança”, representada pela observânciada coisa julgada. 23 Assim sendo, reside aí grave contradição, porquea norma constitucional n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre é justa. Logo, o verdadeiro valor tidocomo parâmetro por referidas teses que sustentam a relativização da coisajulgada não é a justiça, mas a constitucionalidade das decisões, que nadamais é do que a segurança do ordenamento jurídico, representada pela hierarquianormativa e pela supr<strong>em</strong>acia da Constituição.3.4 Perpetuação dos litígiosOs que sustentam a possibilidade de declarar, a qualquer t<strong>em</strong>po, anulidade da sentença proferida contra a Constituição, mesmo após o prazoda rescisória não atentaram para uma das hipóteses de rescisão previstas nosist<strong>em</strong>a processual pátrio: a simples razão de uma sentença ter sido dada <strong>em</strong>ofensa à coisa julgada é causa autônoma de rescindibilidade.Assim, segundo a doutrina da “relativização” da coisa julgada, adesconsideração de uma sentença transitada <strong>em</strong> julgado, por ser consideradoseu conteúdo injusto ou inconstitucional, dará ensejo a uma nova sentença,com vistas a corrigir a suposta injustiça ou inconstitucionalidade ocorridana primeira. Sucede que essa segunda sentença, cuja justiça será umaincógnita, poderá ser desconstituída por meio de ação rescisória, na hipótesedo inciso IV, do art. 485 do CPC, porque proferida contra a coisa julgada.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA187
Juliana Sombra PeixotoHaveria, assim, uma sucessão indefinida de discutibilidade dos julgados,sendo decisivamente inaceitável a infindável intercalação de decisões tidaspor justas ou injustas.Admitida que seja a “relativização da coisa julgada” ir<strong>em</strong>os deparartotal insegurança jurídica causada pela constante possibilidade de revisãodos julgados, perdendo a prestação jurisdicional do Estado sua principal característica:a garantia de imutabilidade das decisões transitadas <strong>em</strong> julgado.Feito isto, aí, sim, se terá a maior das injustiças, consubstanciada naausência de termo final para os já tão longos, enfadonhos e desgastantesprocessos que se desenrolam <strong>em</strong> nossos tribunais.Chaim Perelman, preocupado com as conseqüências advindas da perpetuaçãodos litígios, adverte: “contestar ilimitadamente uma decisão judiciária,porque não conforme a justiça ou à vontade do legislador, os processopoderiam continuar infindavelmente, com os distúrbios, o cansaço e as despesasque daí resultam.” 24À luz da recente Reforma do Judiciário, que destaca no título dosDireitos e Garantias Fundamentais a duração razoável do processo (art. 5º,LXXVIII, CF), não há se admitir seja posto <strong>em</strong> cheque instituto tão importantepara a segurança das relações jurídicas como é a garantia material dacoisa julgada. Neste sentido, preceitua Araken de Assis 25 :Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princípiosda Carta Política, comprometidos pela indiscutibilidade doprovimento judicial, não se revela difícil prever que todas asportas se escancararão às iniciativas do vencido. O vírus dorelativismo contaminará, fatalmente, todo o sist<strong>em</strong>a judiciário.A simples possibilidade de revisão do julgado, s<strong>em</strong> que sejam obedecidasas regras atinentes à ação rescisória, por si só, multiplicará os litígios nosórgãos do judiciário. Além do aumento desenfreado do número de d<strong>em</strong>andas,haverá ainda a renovação constante e infindável dos litígios, sob o pretextode malferimento deste ou daquele princípio constitucional.Então, para garantir a observância de determinados princípios constitucionaisque viabilizam a “justiça” das decisões judiciais (respeito à igualdade,à moralidade, etc.), propõe-se mecanismos que se chocam com umoutro princípio não menos importante, qual seja, a duração razoável do processo.De acordo com este raciocínio, seria justo, portanto, a perpetuaçãodos litígios? E a efetividade dos provimentos jurisdicionais, corolário da duraçãorazoável do processo, restaria prejudicada <strong>em</strong> prol da “justiça” dasdecisões?D<strong>em</strong>ais disso, <strong>em</strong> nome do argumento da justiça, também se podederrogar todo e qualquer preceito de segurança (prescrição, direito adquirido,ato jurídico perfeito etc.)?188n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasCerto é que a insegurança nas relações jurídicas é das maiores injustiças,sendo necessário compatibilizar os valores da segurança e da justiça,ambos imprescindíveis à tão almejada paz social.3.5 Propostas de lege lata e de lege ferendaMuitas são as soluções apontadas pela doutrina para o probl<strong>em</strong>a da”coisa julgada inconstitucional”. De lege lata propõe-se a utilização dos seguintesinstrumentos processuais para a desconstituição do caso julgado eivadode inconstitucionalidade: a) Querela Nulitatis – se, decorrido in albis oprazo para a propositura da rescisória, resta o ajuizamento desta ação ordinárias<strong>em</strong> prazo, aceita pela doutrina e pela jurisprudência para alegação devício inconvalidável; b) Ação declaratória de nulidade absoluta da sentença;c) Embargos à execução – por inexigibilidade do título, nos termos doart. 741, parágrafo único, do CPC; c) Exceção de pré-executividade – vistaa inconstitucionalidade da sentença como questão de ord<strong>em</strong> pública; d)Mandado de segurança – direito líquido e certo a uma prestação jurisdicional<strong>em</strong> consonância com as normas constitucionais, e e) aplicação dos princípiosda proporcionalidade e da razoabilidade. 26Todos os meios processuais acima indicados como hábeis àdesconsideração da “coisa julgada inconstitucional” merec<strong>em</strong> a ve<strong>em</strong>entecrítica de que seria muito mais fácil – se comparados aos exigentes requisitospara a propositura de ação rescisória – impugnar-se uma sentençatransitada <strong>em</strong> julgado cujo comando fosse inconstitucional, o maisgrave vício existente, do que a rescisão da mesma, com base no art. 485do CPC.Destarte, o ordenamento jurídico vigente permitiria a relativizaçãoda coisa julgada pelos diversos mecanismos citados, permitindo que umadecisão judicial inconstitucional proferida por um órgão superior sejadesconsiderada por órgão inferior, o que não é razoavelmente aceitável.Em sendo admitida a eterna revisão dos julgados, sob o argumento deofensa aos princípios encartados na Constituição Federal, s<strong>em</strong> observância,ao menos, dos critérios processuais formais exigidos para o ajuizamento daação rescisória (julgamento por órgão colegiado, prazo decadencial, hipótesestaxativas, etc.), implantar-se-á total insegurança jurídica.Diante disto, propõe-se, de lege ferenda, a intervenção do legisladorcom o fito de estabelecer, previamente, as situações <strong>em</strong> que a eficácia decoisa julgada não se deve operar, e o r<strong>em</strong>édio processual hábil a retratá-laquando da inconstitucionalidade do seu conteúdo.Não seriam suficientes os inúmeros instrumentos processuais engendradosno sist<strong>em</strong>a pátrio com vistas ao esgotamento de discussões acerca daconstitucionalidade e justiça das decisões?REVISTA OPINIÃO JURÍDICA189
Juliana Sombra PeixotoNas palavras de Pontes de Miranda 27 : “O sist<strong>em</strong>a processual brasileiromerece louvor e o orgulho do povo que o recebeu e o manteve, s<strong>em</strong> que hajaoutro sist<strong>em</strong>a que a ele se iguale”.A doutrina sugere, ainda, a possibilidade de adequação da via rescisóriacom algumas adaptações, mormente no que diz respeito à inobservância, nocaso de inconstitucionalidade, do prazo decadencial de dois anos para apropositura da ação. Neste sentido, propõe Alexandre Freitas Câmara 28 :A meu sentir, deve-se acrescentar um novo inciso ao art. 485 doCódigo de Processo Civil. Através deste novo dispositivo,estabelecer-se-ia que a sentença de mérito transitada <strong>em</strong> julgadopoderia ser rescindida quando ofendesse norma constitucional.(...)Para completar o sist<strong>em</strong>a, porém, seria necessário acrescentar-seum parágrafo ao art. 495 do CPC, o qual estabeleceria que “sendoa ‘ação rescisória’ fundada <strong>em</strong> violação de norma constitucional,o direito à rescisão pode ser exercido a qualquer t<strong>em</strong>po, nãoficando sujeito ao prazo decadencial previsto neste artigo”.Outra proposta de lege ferenda refere-se ao caso específico de ações deinvestigação de paternidade, proposta por Nelson Nery Jr 29 , dentre outros :Existindo casos específicos identificados pela doutrina, qu<strong>em</strong>ereçam tratamento diferenciado no que pertine à coisa julgada– por ex<strong>em</strong>plo, investigação de paternidade secundum eventumprobationis –, somente com a modificação da lei, nela incluindoa hipótese de exceção, é que poderão ser abrandados os rigoresda coisa julgada.Além dos instrumentos internos, cogita-se da possibilidade de possíveismecanismos “externos” ser<strong>em</strong> considerados aptos a discutir comandos jáacobertados pela coisa julgada, como o exame da coisa julgada interna portribunais supranacionais.O Estado brasileiro, através de sua adesão à Convenção Americanade Direitos Humanos, reconhece inclusive a jurisdição da CorteInteramericana para o julgamento de denúncias de violação do Pacto deSan José da Costa Rica. Referida Corte t<strong>em</strong>-se ocupado primordialmente decasos <strong>em</strong> que as violações reca<strong>em</strong> sobre os mais essenciais dos direitos humanos,tais como a vida, a integridade física e a liberdade, e ocorr<strong>em</strong> à marg<strong>em</strong>de qualquer procedimento institucionalizado. 30 Porém, a tendência é que aCorte Interamericana possa ampliar seu foco de atenção, incluindo outrosdireitos e garantias fundamentais. Nessa evolução, assumirá extr<strong>em</strong>a relevânciaa tutela supranacional do Processo Civil, nos moldes do que ocorreuna Europa. 31190n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasQuestiona-se acerca da dificuldade de aplicação da sentençainteramericana pela ausência de um instrumento jurisdicional específico.Eduardo Talamini 32 sustenta que, mesmo na ord<strong>em</strong> hoje vigente, constituiprovidência com expresso respaldo no ordenamento que a impl<strong>em</strong>entaçãodesta sentença externa venha a implicar a retirada total ou parcial de eficáciade uma sentença interna revestida da coisa julgada.4 CONCLUSÃONenhum sist<strong>em</strong>a processual é perfeito. Admit<strong>em</strong>-se falhas <strong>em</strong> nome de umdeterminado valor que a sociedade elege como fundamental. No caso do sist<strong>em</strong>aprocessual pátrio, esse valor fundamental consiste na segurança jurídica. Destarte,nos casos de conflitos judiciais é ela (segurança jurídica) que deve prevalecer.Contudo, a oportunidade de se discutir a constitucionalidade dasdecisões e sua justeza é deveras ampla: há muitos prazos processuais, muitosrecursos, ações incidentais, ações rescisórias, impugnações na execução, etc.Já não será suficiente toda a complexidade procedimental atualmente existente,destinada à solução dos conflitos?A coisa julgada como garantia material essencial ao direito fundamentalà segurança jurídica no Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito deve serpreservada, porque realiza também a justiça, essa considerada como a necessidadede que, após anos de discussão, chegue-se a um termo. A buscapela justiça não pode ser tanta a ponto de causar uma injustiça ainda maior:a perpetuação dos litígios e a completa insegurança das relações jurídicas.Há um momento <strong>em</strong> que a justiça precisa de segurança, sob pena detransmutar-se <strong>em</strong> verdadeira injustiça. Às vezes, é muito mais injusta a revisãode uma sentença injusta, que acarretou situações já consolidadas, doque deixá-la intocável pela necessidade de segurança.Os erros existentes são excepcionais e, portanto, não justificam a revisãode todo o sist<strong>em</strong>a. É preciso, pois, contentar-se com suas falhas. Não écriando novas possibilidades (infinitas, por sinal) de revisão de sentençasque se assegurará a justiça. Daí concluir-se que a única coisa que nos permiteaquiescermos com uma teoria errônea é a ausência de uma melhor.Analogicamente, uma injustiça é tolerada tão somente quando necessáriapara se evitar uma injustiça ainda maior.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASASSIS, Araken de. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: DIDIERJÚNIOR, Fredier (coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico.Salvador: Jus Podivm, 2004.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA191
Juliana Sombra PeixotoBONAVIDES. Paulo. Teoria do estado. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada material. In:DIDIER JÚNIOR, Fredier (coord.). Relativização da coisa julgada: enfoquecrítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004.CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O sist<strong>em</strong>a interamericano deproteção dos direitos humanos no limiar do novo século: recomendaçõespara o fortalecimento de seu mecanismo de proteção. In: GOMES, Luiz Flávio;PIOVESAN, Flávia (coord.). O Sist<strong>em</strong>a interamericano de proteção dosdireitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000.CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual Civil. Tradução PaoloCapitano. Campinas (SP): Bookseller, 2000, v. I. (Tradução de Instituzionidi diritto processuale civile.)DELGADO, José Augusto. Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro:América Jurídica, 2002.DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. SãoPaulo: Malheiros, 2001. v. 3.GALLI, Maria Beatriz. A comissão interamericana de direitos humanos e oseu papel central no sist<strong>em</strong>a interamericano de proteção dos direitos humanos.In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (coord.). O Sist<strong>em</strong>ainteramericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo:RT, 2000.LEAL, Ros<strong>em</strong>iro Pereira. A relativização inconstitucional da coisa julgada:t<strong>em</strong>ática processual e reflexões jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.LIEBMAN, Enrico Tulio. Eficácia e autoridade da sentença. 3. ed. Rio de Janeiro:Forense, 1984.LOPES FILHO, Juraci Mourão. Noções teóricas fundamentais sobre a coisajulgada material. Revista Opinião Jurídica. Fortaleza, ano III, n. 5, p. 160-175,2005.1.MARINONI, Luis Guilherme. O princípio da segurança dos atosjurisdicionais (A questão da relativização da coisa julgada material). In:DIDIER JÚNIOR, Fredier (coord.). Relativização da coisa julgada: enfoquecrítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004.MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. O Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal nacrise institucional brasileira. Fortaleza: ABC Editora, 2001.MESQUITA, Ignácio Botelho de. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense,2005.PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado da ação rescisória.Rio de Janeiro: Forense, 1976.192n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasMOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e s<strong>em</strong>pre a coisa julgada. Revista dosTribunais, São Paulo, n. 416, p. 9-15, jun. 1970.NASCIMENTO, Caros Valder do. Por uma teoria da coisa julgadainconstitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.NERY JUNIOR, Nelson. A polêmica sobre a relativização (desconsideração)da coisa julgada e o Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito. In: DIDIER JÚNIOR,Fredier (coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador:JUS PODIVM, 2004.OTERO, Paulo Manuel Cunha da Costa. Ensaio sobre o caso julgadoinconstitucional. Lisboa: Lex, 1993.PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G.Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1966.SILVA, Ovídio A. Baptista da Silva. Curso de processo civil. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 1987.TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005.VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho. Bologna: PublicacionesDel Real Colégio de España, 1975.ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.1DELGADO, José Augusto. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. In: NASCIMENTO,Carlos Valder do. (Org.) Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 95.Afirma o autor: “A segurança jurídica imposta pela coisa julgada há de imperar quando o ato que agerou, a expressão sentencial, não esteja contaminada por desvios graves que afront<strong>em</strong> o ideal dejustiça.”2BONAVIDES. Paulo. Teoria do estado. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 31.3VERDÚ, Pablo Lucas. La lucha por el estado de derecho. Bologna: Publicaciones Del Real Colégio deEspaña, 1975, p. 94.4MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. O Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal na crise institucional brasileira.Fortaleza: ABC Editora, 2001, p. 43.5MARINONI, Luis Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (A questão darelativização da coisa julgada material). In: DIDIER JÚNIOR, Fredier (coord.). Relativização da coisajulgada: enfoque crítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004, p. 162-163.6ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dosTribunais, 2001, p. 122-123.7CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Tradução Paolo Capitano. Campinas(SP): Bookseller, 2000, v. I, p. 447.8LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. 3. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 39-40.9MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ainda e s<strong>em</strong>pre a coisa julgada. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.416, p. 10-11, jun. 1970.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA193
Juliana Sombra Peixoto10SILVA. Ovídio A. Baptista da Silva. Curso de processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio FabrisEditor, 1987.11LOPES FILHO. Juraci Mourão. Noções teóricas fundamentais sobre a coisa julgada material. RevistaOpinião Jurídica, Fortaleza, a. III, n. 5, 2005.1, p. 165.12TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005, p. 42.13Ibid., p. 32.14LEAL, Ros<strong>em</strong>iro Pereira. A relativização inconstitucional da coisa julgada: t<strong>em</strong>ática processual e reflexõesjurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 4.15OTERO, Paulo Manuel Cunha da Costa. Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Lisboa: Lex, 1993,p. 65-75, passim.16DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2001, v.3, p. 306-307.17STJ, 4.ª T. REsp 226.436-PR, 28.06.01, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 04.02.02, p. 370.18STF, 1.ª T. RE 105.012-RN, 09.02.88, Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 01.07.88, p. 16.904.19DELGADO, op. cit., p. 10320MARINONI, Luiz Guilherme. O princípio da segurança dos atos jurisdicionais (a questão darelativização da coisa julgada material). In: DIDIER JÚNIOR., Fredier (coord.). Relativização da coisajulgada: enfoque crítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004, p. 182.21NERY JÚNIOR, Nelson. A polêmica sobre a relativização (desconsideração) da coisa julgada e oEstado D<strong>em</strong>ocrático de Direito. In: DIDIER JÚNIOR., Fredier (coord.). Relativização da coisa julgada:enfoque crítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004, p. 197.22MESQUITA, Ignácio Botelho de. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 94.23CÂMARA, Alexandre Freitas. Relativização da coisa julgada material. In: DIDIER JÚNIOR, Fredier(coord.). Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004, p. 26.24PERELMAN, Chaim. Ética e direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Fontes,1966, p. 558.25ASSIS, Araken de. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: DIDIER JÚNIOR., Fredier (coord.).Relativização da coisa julgada: enfoque crítico. Salvador: JUS PODIVM, 2004, p. 38.26NASCIMENTO, Caros Valder do. Por uma teoria da coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2005, p. 165-186, passim.27PONTES DE MIRANDA. Tratado da ação rescisória. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 631.28CÂMARA, op. cit., p. 27-28.29NERY JÚNIOR, op. cit., p.211.30GALLI, Maria Beatriz. A comissão interamericana de direitos humanos e o seu papel central nosist<strong>em</strong>a interamericano de proteção dos direitos humanos. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia(coord.). O Sist<strong>em</strong>a interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000,p.79.31CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O sist<strong>em</strong>a interamericano de proteção dos direitoshumanos no limiar do novo século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo de proteção.In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (coord.). O Sist<strong>em</strong>a interamericano de proteção dos direitoshumanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 149-150.32TALAMINI, op. cit., p. 560.194n. 6 - 2005.2
Relativização da coisa julgada material: dificuldades teóricas e práticasRELATIVIZATION OF MATERIAL RESJUDICATA: THEORETICAL AND PRACTICALDIFFICULTIESABSTRACTThe doctrine of the “unconstitutional res judicata” –which proposes the relativization of the res judicatawhen the content of the sentence is unfair orunconstitutional – needs a detailed critical assessmentas referred to the Brazilian Procedure Law, which isshaped under the Rule of Law, whose primacy consistsin harmonizing essential values to life in society: safetyand justice.KEYWORDS: Rule of law. Safety. Justice. Resjudicata. Relativization.RELATIVITË DE LA CHOSE JUGÉEMATÉRIELLE: DIFFICULTÉS THÉORIQUES ETPRATIQUESRÉSUMÉLa doctrine de la “chose jugée inconstitutionnelle” -que propose la “relativité” de l’institut de la chose jugéeselon l’injustice ou l’inconstitutionnalité du contenudu jug<strong>em</strong>ent - mérite une minutieuse analyse critique.Ici, cela se fait à la lumière du système processuelbrésilien, forgé dans un État démocratique de droit,dont le primat consiste à l’harmonisation des valeursessentielles à la vie dans société : la sécurité et lajustice.MOTS-CLÉS: État démocratique de droit. Sécurité.Justice. Chose jugée. Relativité.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA195
DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS: GARANTIASPROCESSUAIS E GARANTIAS MATERIAISJuraci Mourão Lopes Filho*1 Introdução. 2 Direitos fundamentais: direitos subjetivos e suadimensão objetiva. 3 Direitos fundamentais e sua definição. 4 Asgarantias fundamentais. 5 Espécies de garantias fundamentais. 6Garantias processuais e garantias materiais. 7 Conclusões. 8Bibliografia.RESUMOO presente artigo investiga os direitos e garantiasfundamentais, destacando suas distinções e classificações edando destacado enfoque às garantias processuais.PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais. Garantiassubstanciais e processuais.1 INTRODUÇÃOÉ sabido que as constituições ocidentais modernas possu<strong>em</strong> <strong>em</strong> seutexto três t<strong>em</strong>as principais: Estado, indivíduo e sociedade. Os dois primeiroseram os únicos abordados pelas constituições liberais, sendo o último típicodas constituições de Estados sociais. No disciplinamento de tais t<strong>em</strong>as avultaa relevância dos direitos fundamentais, que, neste momento inicial, pod<strong>em</strong>osdelinear como os direitos inatacáveis e imodificáveis dos indivíduos eda sociedade que permeiam a própria conformação constitucional dessastrês realidades.Tais direitos – <strong>em</strong> sua fase inicial quando ainda eram apenas direitosde liberdades – eram apenas declarados. São ex<strong>em</strong>plos disto as “Declaraçõesdo Hom<strong>em</strong> e do Cidadão” e a “Declaração da Filadélfia”. No entanto, odiuturno trato da matéria evidenciou que não bastava para umdisciplinamento juridicamente eficaz a simples declaração de direitos fundamentais,era preciso se estabelecer proteções e meios para propiciar ou melhorara consecução e o fomento dos direitos declarados.*Mestre <strong>em</strong> Direito Constitucional (UFC). Pós-graduado <strong>em</strong> Direito Processual Civil (UFC). ProfessorUniversitário (Graduação e Pós-graduação). Coordenador-Geral Adjunto do Curso de Direito da<strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>. Assessor do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.196n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaisA dogmática jurídica, então, vislumbra dentro da mesma rubrica “DireitosFundamentais” dois institutos jurídicos distintos: direitos fundamentais(que pod<strong>em</strong>os chamar de stricto sensu) e garantias fundamentais. Sãocoisas diferentes, <strong>em</strong>bora guard<strong>em</strong> similitudes por ser<strong>em</strong> ambas espécies domesmo gênero.O presente texto t<strong>em</strong> o intuito de apresentar os contornos básicosdessas duas figuras jurídicas mediante uma abordag<strong>em</strong> dogmática do assunto.De forma alguma se quer aqui encerrar verdades, mas apenas apresentaralgumas considerações que julgamos úteis para compreensão de tão relevantet<strong>em</strong>a.A importância da análise do t<strong>em</strong>a evidencia-se pelo fato de quantomais se conhecer, investigar e estudar uma matéria, mais arraigada estará napré-compreensão jurídica dos artífices do direito, irradiando-se para outroscampos do Direito, sendo que nenhum outro t<strong>em</strong>a mereça mais esta diss<strong>em</strong>inaçãodo que os direitos fundamentais, pautas essenciais para uma sociedadejuridicamente organizada.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITOS SUBJETIVOS E SUA DI-MENSÃO OBJETIVADentre as clássicas figuras da ciência jurídica t<strong>em</strong>os os chamadosdireitos subjetivos. Muita tinta já foi gasta para defini-los, sendo históricoo debate entre Savigny e Ihering, este considerando-os um interesse juridicamenteprotegido; aquele, uma faculdade juridicamente protegida. Paraos fins do presente trabalho é despiciendo adentrar nas minúcias do t<strong>em</strong>a,é bastante aqui definir direito subjetivo como uma posição subjetiva devantag<strong>em</strong>.Considerando, pois, direito subjetivo como uma posição subjetiva devantag<strong>em</strong> que um indivíduo t<strong>em</strong> sobre outro, de qu<strong>em</strong> pode exigir umaprestação (direito subjetivo a uma prestação) ou uma sujeição (direitopotestativo), vê-se que os direitos fundamentais (lato sensu) são sim direitossubjetivos, pois colocam os indivíduos, por sua própria condição humana,<strong>em</strong> uma posição de vantag<strong>em</strong> sobre outro (via de regra, mas não s<strong>em</strong>pre,o Estado).É certo que pairam algumas dúvidas sobre poder<strong>em</strong> as garantias fundamentaisensejar diretamente comportamentos dos indivíduos. No entanto,não pod<strong>em</strong>os compartilhar desse entendimento. Os direitos fundamentais,no sentido lato que abrange as garantias fundamentais, s<strong>em</strong>pre autorizamum certo comportamento ou exigência. E não é só. Tais direitos possu<strong>em</strong>uma dimensão objetiva, ou seja, não apenas autorizam o comportamento doparticular como conformam a própria maneira de ser do Estado. Neste sentidoWillis Santiago Guerra Filho b<strong>em</strong> coloca queREVISTA OPINIÃO JURÍDICA197
Juraci Mourão Lopes Filhoos direitos fundamentais não têm apenas uma dimensão subjetiva,mas também, uma outra, objetiva, donde se fala <strong>em</strong> seu ‘duplocaráter’, preconizando-se a figura do status como mais adequadado que a do direito subjetivo para caracterizá-los. A dimensãoobjetiva é aquela <strong>em</strong> que os direitos fundamentais se mostramcomo princípios conformadores do modo como o Estado que osconsagra deve organizar-se e atuar. 1A noção dessa dimensão objetiva dos direitos fundamentais teve orig<strong>em</strong><strong>em</strong> julgamento histórico do Tribunal Federal Al<strong>em</strong>ão <strong>em</strong> 1949, o qued<strong>em</strong>onstra quão tardia é, no Brasil, a matéria, porquanto há não mais quequinze anos passou-se a discuti-la nas acad<strong>em</strong>ias, sendo ainda desconhecidaqualquer manifestação mais evidente por parte de nossos pretórios. Ocaso originário ficou conhecido como o caso Lüth, no qual, segundo LuizRoberto Barroso,os fatos subjacentes eram os seguintes. Erich Lüth, presidentedo Clube de Imprensa de Hamburgo, incitava ao boicote deum filme dirigido por Veit Harlan, cineasta que havia sidoligado ao regime nazista no passado. A produtora e adistribuidora do filme obtiveram, na jurisdição ordinária,decisão determinando a cessão de tal conduta, por considerála<strong>em</strong> violação ao §826 do Código Civil (BGB) ( ‘qu<strong>em</strong>, deforma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outr<strong>em</strong>,está obrigado a reparar os danos causados’). O TribunalConstitucional Federal reformou a decisão, <strong>em</strong> nome do direitofundamental à liberdade de expressão, que deveria pautar ainterpretação do direito civil. 2Assim, restou consagrado que os direitos fundamentais, além deensejar<strong>em</strong> uma posição subjetiva de vantag<strong>em</strong>, institu<strong>em</strong> uma ord<strong>em</strong> objetivade valores. Tal concepção é reforçada quando se pensa os direitosfundamentais como princípios que são mandados de otimização que dev<strong>em</strong>ser observados principalmente pelo Estado s<strong>em</strong>pre que for fática ejuridicamente possível. Robert Alexy escreve que “los principios son mandatosde optimización, que están caracterizados por el hecho de que puedenser cumplidos en diferente grado y que la m<strong>em</strong>dida debida de sucumplimiento no sólo dependente de las posibilidades reales sino tambiénde las jurídicas 3 .”Portanto, os direitos fundamentais, incluídas as garantias, são direitossubjetivos, no sentido de propiciar<strong>em</strong> aos indivíduos uma situação subjetivade vantag<strong>em</strong>. Ad<strong>em</strong>ais, possu<strong>em</strong> uma dimensão objetiva, porquanto conformama atividade do Estado que deve observá-los e fomentá-los s<strong>em</strong>pre quefor fática e juridicamente possível. Esta dimensão objetiva é de tal formarelevante que faz autores, como Willis Guerra, entender<strong>em</strong> que sua existên-198n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaiscia impede que se consider<strong>em</strong> os direitos fundamentais apenas como direitossubjetivos.3 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA DEFINIÇÃOAté o momento já tec<strong>em</strong>os várias linhas sobre direitos fundamentais.Mas, afinal, o que são eles? V<strong>em</strong>os que são direitos com dimensão subjetivae objetiva, tomados como mandados de otimização. Mas o que faz com queum direito seja um direito fundamental?Carl Schmitt, b<strong>em</strong> ao modo, diz que direito fundamental é aquilo quea Constituição trata como tal, independent<strong>em</strong>ente do conteúdo. Há, <strong>em</strong>contrapartida, qu<strong>em</strong> confunda direito fundamental com os direitos dos homens,como os direitos ínsitos à própria condição humana. Ambos os modosde entender, no entanto, pecam pelos extr<strong>em</strong>os.Gregorio Robles dá a resposta à pergunta sobre o que torna um direito<strong>em</strong> fundamental, partindo da diferenciação entre direitos humanos edireitos fundamentais. Aqueles são pautas morais internacionais que seexige sejam reconhecidas e postas <strong>em</strong> práticas 4 . Na mesma linha de idéias,Willis Santiago Guerra Filho entende os direitos humanos como pautasético-políticas, situados <strong>em</strong> uma dimensão supra-positiva, deonticamentediversa daquela <strong>em</strong> que se situam as normas jurídicas. Por sua vez, o autorespanhol entende direito fundamental diferenciando-os dos direitos humanosquando afirma quelos llamados derechos humanos no son verdaderos derechos, sinotan sólo uma forma de hablar para referirse a criterios morales, losderechos fundamentales son auténticos derechos subjetivos a losque el ordenamiento jurídico distingue de los derechos subjetivosordinários mediante um tratamiento normativo y procesalprivilegiado. Los derechos fundamentales son derechos subjetivosprivilegiados 5 .Dessa primeira abordag<strong>em</strong> pod<strong>em</strong>os concluir alguns el<strong>em</strong>entosdefinidores dos direitos fundamentais: a) são direitos positivados; b)gozamde tratamento normativo diferenciado.Para b<strong>em</strong> definir direitos fundamentais é preciso entender que é necessáriose ter <strong>em</strong> mente critérios de ord<strong>em</strong> material e formal. É nesse sentidoque J.J. Gomes Canotilho escreve que “a ‘fundamentalidade’ (Alexy)aponta para especial dignidade de proteção dos direitos num sentido formale num sentido material”. 6Vê-se, pois, que não é somente um dado material ou formal que caracterizaum direito como direito fundamental, mas a conjugação de ambos. A ausênciade um deles infirma a caracterização de um direito como fundamental.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA199
Juraci Mourão Lopes FilhoSobre o aspecto formal dos direitos fundamentais escreve o autor português:A fundamentalidade formal, geralmente associada àconstitucionalização, assinala quatro dimensões relevantes: (1)as normas consagradoras de direitos fundamentais, enquantonormas fundamentais, são normas colocadas no grau superior daord<strong>em</strong> jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-sesubmetidas aos procedimentos agravados de revisão; (3) comonormas incoporadoras de direitos fundamentais passam, muitasvezes, a constituir limites materiais da própria revisão (cfr. CRP,art. 288º/ d e e); (4) como normas dotadas de vinculatividadeimediata dos poderes públicos constitu<strong>em</strong> parâmetros materiaisde escolhas, decisões, acções e controlo, dos órgãos legislativos,administrativos e jurisidicionais 7 .Diante disso, percebe-se que, para ser fundamental, um direito nãobasta possuir certo conteúdo, mas também receber um disciplinamento diferenciadodo ordenamento jurídico positivo. É preciso que desfrute deuma pro<strong>em</strong>inência <strong>em</strong> relação aos d<strong>em</strong>ais consagrados pela ord<strong>em</strong> jurídica,que não é dada pela simples enunciação da constituição neste sentido– como entende Carl Schmitt -, mas uma séria de formalidades, dentre asquais destacamos a superioridade hierárquica e a modificação limitada ouaté mesmo inviabilizada pelo legislador ordinário ou pelo constituinte derivado.Quanto ao aspecto material dos direitos fundamentais, este é de definiçãomais dificultosa. Varia ao sabor das concepções acerca do que é ínsitoe indispensável ao ser humano <strong>em</strong> cada sociedade. Varia, igualmente, asteorias que os fundamentam. Robert Alexy 8 ex<strong>em</strong>plifica essa pluralidadedogmática falando da existência da teoria institucional dos direitos fundamentais,da teoria axiológica, da teoria do Estado burguês ou teoria liberal,da teoria d<strong>em</strong>ocrático-funcional e da teoria do Estado social.O autor critica muitas dessas teorias por apresentar<strong>em</strong> hodiernamentedois probl<strong>em</strong>as, sendo o mais relevante se fundamentar<strong>em</strong> absolutamente<strong>em</strong> uma tese básica. As críticas, segundo Alexy 9 , têm como razão a consideraçãogeral segundo a qual seria surpreendente, dada a variedade e complexidadedaquilo que regulam os direitos fundamentais e a experiência segundoa qual as questões práticas de alguma importância s<strong>em</strong>pre há que levar<strong>em</strong> conta um feixe de pontos de vistas opostos entre si, que justamente osdireitos fundamentais poderiam ser resumidos <strong>em</strong> um único princípio.No entanto, o autor al<strong>em</strong>ão ressalva dessas críticas a teoria unipontualque coloca como fim último a dignidade da pessoa humana, sendo essa concepçãoque v<strong>em</strong> prevalecendo na ord<strong>em</strong> jurídica brasileira. Willis SantiagoGuerra Filho a este propósito escreve:200n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaisDentre os ‘princípios fundamentais gerais’, enunciados no art.1º da Constituição de 88, merece destaque especial aqueleque impõe respeito à dignidade da pessoa humana. O princípiomerece formulação clássica kantiana, precisamente namáxima que determina aos homens, <strong>em</strong> suas relaçõesinterpessoais, não agir<strong>em</strong> jamais de molde que o outro sejatratado como objeto, e não como igualmente um sujeito. Esseprincípio d<strong>em</strong>arcaria o que a doutrina constitucional al<strong>em</strong>ã,considerando a disposição do art. 19, II, da Lei Fundamental,denomina de ‘núcleo essencial intangível’ dos direitosfundamentais. Entre nós, ainda antes de entrar <strong>em</strong> vigor aatual Constituição, a melhor doutrina já enfatizava que ‘onúcleo essencial dos direitos humanos reside na vida e nadignidade da pessoa’. Os direitos fundamentais, portanto,estariam consagrados objetivamente <strong>em</strong> ‘princípiosconstitucionais especiais’, que seriam a ‘densificação’(Canotilho) ou ‘concretização’ (<strong>em</strong>bora ainda <strong>em</strong> nívelextr<strong>em</strong>amente abstrato) daquele ‘princípio fundamentalgeral’, de respeito à dignidade humana. 10Destaque-se que os direitos fundamentais, a fim de preservar adignidade humana, tiveram como centro de preocupação inicial o indivíduoisoladamente considerado (direitos fundamentais de primeira geração),sendo gradativamente ampliados para abranger direitos atinentesa determinados grupos e, finalmente, ter como objeto de cuidado a própriasociedade.Outra importante evolução por que passaram os direitos fundamentaisfoi a constatação de que não são só direitos postos <strong>em</strong> favor do particularfrente ao Estado, mas do particular frente a qualquer outro sujeito de direito,especialmente contra aqueles que pod<strong>em</strong> de alguma forma interferir unilateralmentena esfera jurídica de outro, ou seja, contra qu<strong>em</strong> pode exerceralguma forma de poder sobre outro.Assim, os direitos fundamentais deixam de ter como centro o Estado(sendo definidos como os limites intangíveis mínimos que o Estado não podeultrapassar) para ter como ponto convergente o indivíduo sujeito desses direitos,que passam a ser oponíveis não somente ao ente estatal, mas a qualqueroutro sujeito de direitos.Portanto, para finalizar este tópico, t<strong>em</strong>os que os direitos fundamentaissão aqueles direitos positivados <strong>em</strong> uma determinada ord<strong>em</strong> jurídica eque possu<strong>em</strong> formalmente pro<strong>em</strong>inência frente aos d<strong>em</strong>ais, tendo como núcleoe fim último a dignidade da pessoa humana e que é ligada ao próprioindivíduo que pode opô-los a qualquer outro sujeito de direito, seja públicoou particular.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA201
Juraci Mourão Lopes Filho4 AS GARANTIAS FUNDAMENTAISComo muito apropriadamente coloca Gérson Marques 11 , reconheceuse,ao longo do desenvolvimento dos direitos humanos, que não basta paraefetivação destes direitos simples declarações. É indispensável que haja, também,instrumentos de defesa do indivíduo frente ao Estado. Somente assimpoder-se-á falar <strong>em</strong> efetivação dos direitos individuais e segurança jurídica.Surg<strong>em</strong>, <strong>em</strong> razão disto, as garantias como instrumentos assecuratórios dedireitos.Em razão dessa função preservativa das garantias fundamentaiscom relação aos direitos fundamentais é que des<strong>em</strong>penhamrelevantíssimo papel na ord<strong>em</strong> jurídica de um Estado, pois, juntamentecom Paulo Bonavides, entend<strong>em</strong>os que “s<strong>em</strong> as garantias constitucionaisos direitos contidos e declarações formais cairiam no vazio dasesferas abstratas, ou perderiam o fio institucional de contato com arealidade concreta, aquela que deverá propiciar <strong>em</strong> termos de eficáciaa fruição completa das liberdades humanas 12 ”. Logo <strong>em</strong> seguidaarr<strong>em</strong>ata:De nada valeriam os direitos ou as declarações de direitos senão houvess<strong>em</strong> pois as garantias constitucionais para fazerreais e efetivos esses direitos. A garantia constitucional é,por conseguinte, a mais alta das garantias de umordenamento jurídico, ficando acima das garantias legaisou ordinárias , <strong>em</strong> razão da superioridade hierárquica dasregras da Constituição, perante as quais se curva, tanto olegislador comum, como os titulares de qualquer dos Poderes,obrigados ao respeito e acatamento de direitos que a normasupr<strong>em</strong>a protege 13 .É nesse momento que a doutrina constitucionalista se apercebe dadistinção entre direitos e garantias fundamentais. Paulo Bonavides escreveque a garantia existe s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> face de um direito que d<strong>em</strong>anda proteção ede um perigo que deve esconjurar. Isto porque são direitos que pod<strong>em</strong> serafetados pela atuação unilateral de um terceiro (seja o próprio Estado, sejaum particular). B<strong>em</strong> coloca o autor:Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinamsea assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, asgarantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas (ainda quepossam ser objeto de um regime constitucional substantivo); osdireitos permit<strong>em</strong> a realização das pessoas e inser<strong>em</strong>-se direta eimediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, asgarantias só nelas se projetam pelo nexo que possu<strong>em</strong> com osdireitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaramse,as garantias estabelec<strong>em</strong>-se 14 .202n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaisDiante dessas considerações, pode-se traçar o seguinte quadrodiferenciador entre direitos e garantias fundamentais:DireitosGarantias- São bens <strong>em</strong> si mesmos- São instrumentais <strong>em</strong> relação aosdireitos- Os direitos são principais - As garantias são acessórias- Os direitos se assentam nosindivíduos independent<strong>em</strong>ente doEstado- Reportam-se, via de regra, aoEstado <strong>em</strong> atividade de relaçãocom os direitos- Os direitos de liberdade são formada pessoa agir- As garantias são modos de oEstado e instituições sociais seorganizar<strong>em</strong> e agir<strong>em</strong>- As garantias têm valor- Os direitos fundamentais val<strong>em</strong>instrumental e derivado dospor aquilo que vale o indivíduodireitos- Os direitos são declarados - As garantias são estabelecidas- Os direitos se inser<strong>em</strong>imediatamente na esfera jurídicados indivíduos- As garantias se inser<strong>em</strong>mediatamente na esfera jurídicados indivíduosDiante disso pod<strong>em</strong>os colocar que as garantias são meios de proteçãoou de fomento de direitos que com elas não se confund<strong>em</strong>. São veiculadaspor normas positivadas que proteg<strong>em</strong> ou criam campo para melhor atuar<strong>em</strong>direitos subjetivos ou objetivos.Impende destacar que, como já adiantado, as garantias fundamentaissão direitos fundamentais se tomados estes <strong>em</strong> seu sentido lato (como aquelesque dotados de privilégios formais e ligados à dignidade da pessoa humana).A distinção aqui traçada é entre garantias fundamentais e direitos fundamentaisstrito sensu.Assim, como os direitos, as garantias fundamentais passaram por umaevolução entre indivíduo, liberdade e instituições. Com efeito, no seunascedouro liberal – como seria esperado – as garantias fundamentais tiveramseu foco centrado no indivíduo isoladamente considerado, a fim de assegurar-lheo status libertatis colocado como valor último do Estado Liberal.Posteriormente, passou-se a não só mais se buscar uma proteção ao indivíduo,mas também a dadas realidades sociais, cuja permanência se faz necessária,o que qualifica as garantias neste aspecto como garantias institucionais,que serão mais b<strong>em</strong> analisadas a seguir.No atual estágio evolutivo dos estudos das garantias t<strong>em</strong>-se que asgarantias não são só oponíveis ao Estado, sendo também levadas para o âmbitodas relações privadas.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA203
Juraci Mourão Lopes FilhoPara uma perfeita definição do que venham a ser as garantias constitucionaisval<strong>em</strong>o-nos, mais uma vez das lições de Paulo Bonavides para com eleasseverar que “chegamos, portanto, à seguinte conclusão: a garantia constitucionalé uma garantia que disciplina, tutela o exercício dos direitos fundamentais,ao mesmo passo que rege, com proteção adequada, nos limites da Constituição,o funcionamento de todas as instituições existentes no Estado 15 .”5 ESPÉCIES DE GARANTIAS FUNDAMENTAISÉ possível se estabelecer as seguintes espécies de garantias fundamentais:a) garantias de direitos subjetivos e garantias de direitos objetivos; b)garantias qualificadas e garantias simples; c) garantias individuais e garantiasinstitucionais; d) garantias materiais e garantias processuais.A primeira classificação das garantias, descritas acima no it<strong>em</strong> “a”, dizrespeito ao objeto da proteção feita pelas garantias. Com efeito, as garantiasde direito objetivo, especialmente da Constituição Federal, têm o escopo dedefender a eficácia e permanência da ord<strong>em</strong> constitucional, assegurandosua aplicação e conservação contra fatores desestabilizantes. Já as garantiasde direito subjetivo conduz<strong>em</strong> à capacidade de os indivíduos exigir<strong>em</strong> dospoderes públicos ou institucionais a proteção de seus direitos.Por sua vez a qualificação entre garantias simples e garantias qualificadas,indicada acima <strong>em</strong> “b”, diz respeito àqueles a qu<strong>em</strong> é oponível agarantia, se exclusivamente ao legislador ordinário, será uma garantia simples.No entanto, se a garantia também for oponível ao constituinte derivadoserá um garantia qualificada.As duas últimas classificações, indicadas nos itens “c” e “d” são asmais relevantes.Com efeito, viu-se que a incorporação nos ordenamentos jurídicos dosEstados ocidentais de garantias não estreitamente ao indivíduo isoladamentetomado e sim a realidades sociais que se visa a preservar, saltou-se para umanova concepção de garantias fundamentais, sendo intimamente ligadas aosdireitos fundamentais de segunda geração, típicos do Estado social surgido noséculo XX com a Constituição mexicana de 1917 e de Weimar de 1919.Paulo Bonavides 16 – que aqui citamos reiteradamente dado obrilhantismo de sua exposição sobre o t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong> paralelo na doutrina nacional– b<strong>em</strong> coloca que “uma das maiores novidades constitucionais do séculoXX é o reconhecimento das garantias institucionais, tão importante paraa compreensão dos fundamentos do Estado social quanto as clássicas garantiasconstitucionais do direito natural e do individualismo o foram para oEstado liberal”. Logo <strong>em</strong> seguida arr<strong>em</strong>ata o autor: “a garantia institucionalnão pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumasinstituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, b<strong>em</strong>204n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaiscomo a certos direitos fundamentais providos de um componente institucionalque os caracteriza”.As garantias individuais, as primeiras a ser<strong>em</strong> concebidas já pelas constituiçõesliberais, têm por precípua preocupação a liberdade, a segurançaindividual e a propriedade. Eram, pois, nos termos de Rui Barbosa, solenidadestutelares que circundam alguns direitos contra o abuso do Poder. Atéhoje tais garantias possu<strong>em</strong> inegável e relevante serventia.Por fim, a classificação entre garantias materiais e processuais, dadasua alta relevância para este texto, serão tratadas <strong>em</strong> tópico específico.6 GARANTIAS PROCESSUAIS E GARANTIAS MATERIAISSegundo Gérson Marques 17 , as garantias materiais ass<strong>em</strong>elham-se àschamadas garantias limites que formam o sist<strong>em</strong>a de proteção organizadapara a defesa tanto de instituições (realidades sociais objetivamente consideradas)como de posições subjetivas de vantagens (direitos subjetivos). Sãoespécies destas garantias materiais a proibição de censura e a vedação aoconfisco. Pod<strong>em</strong>os perceber que as garantias materiais criam posições subjetivasde vantag<strong>em</strong> contra o Estado ou particulares, ensejando um espaço(surgindo pela restrição da atuação de ambos) <strong>em</strong> que se permite a práticamais eficaz de uma outra posição de vantagens, ou impondo ao Estado quecrie esse espaço para atuação dos direitos garantidos.Escreve ainda o dileto professor queao lado das garantias materiais, há as garantias processuais.As garantias processuais são aquelas que diz<strong>em</strong> respeito aoprocesso <strong>em</strong> si, assegurando os direitos das partes pela viaprocessual, qualquer que seja o tipo de processo: civil, penal,trabalhista... algumas dessas garantias alcançam asmodalidades de processo não-judicial, exatamente porque sevoltam a assegurar o acesso do cidadão à tutela estatal de seusdireitos <strong>em</strong> geral. Constitu<strong>em</strong> garantias processuais o direitoao devido processo legal (feição processual), à ampla defesa,o direito de prova, à imparcialidade das decisões, ao juiznatural, ao justo processo, à recursividade, à prova lícita, àigualdade de tratamento no âmbito do processo. 18Especialmente as garantias processuais vêm ganhando importância nosmais recentes estudos do direito, especialmente com as doutrinas de ElioFazzalari (com seu específico conceito de processo e a processualidade ampla)e Niklas Luhmann (com sua legitimação pelo procedimento).Partindo de estudos dos atos administrativos, Fazzalari percebeu umarealidade própria distinta dos atos simples, compostos ou complexos, a qualdenominou de procedimento. Para ele,REVISTA OPINIÃO JURÍDICA205
Juraci Mourão Lopes Filhogli amministrativisti hanno elaborato la disciplina e il concettodel ‘procedimento’ proprio patendo dal modello delle attività digiutizia, come a ovvio archetipo; senza però, pervenire allaconstatazione Che tale modello non é esclusivo della giustizia,sibbene é um sch<strong>em</strong>a di teoria generale, utilizzabile e utilizzato alde là della giurisdizione, in qualsiasi settore dell’ordinamento, ecosi, in quello della pubblica mministrazione. 19Caracteriza o procedimento um conjunto de atos prévios, coordenadose concatenados entre si, distinto do ato final. Quando este procedimentoprevir a possibilidade de participação daqueles indivíduos afetados peloato final, mediante contraditório e ampla defesa, ele configurará o processopropriamente dito. Escreve ele:il ‘processo’ è um procedimento in cui partecipano (sono abilitatia participare) coloro nella cui sfera giuridica l’atto finale èdestinato a svolgere effetti: in contradittorio, e in modo Chel’autore dell’atto non possa obliterare le loro attività 20 .Nessa linha de raciocínio, Fazzalari proclama que toda utilização depoder, ou seja, a prática de um ato que unilateralmente afete a esfera jurídicade um indivíduo, seja pelo Estado ou por instituição particular, deverá serprecedida de um processo no sentido acima descrito. A garantia do devidoprocesso legal, pois, é oponível amplamente s<strong>em</strong>pre que o sujeito possa serafetado por um ato unilateral de outro sujeito. O processo administrativodisciplinar, prévio à aplicação da pena de d<strong>em</strong>issão, e o processo dentro deum partido, antes da expulsão de um de seus m<strong>em</strong>bros, pod<strong>em</strong> ser utilizadoscomo ex<strong>em</strong>plo de incidência da garantia processual ampla ao devido processolegal, que é a mais fundamental das garantias processuais.A necessidade desse manejo do processo – ou até mesmo de um procedimento– previamente ao exercício de poder que afetará a esfera de umparticular também se justifica ao se analisar sob o enfoque da teoria de NiklasLuhmann sobre a legitimação pelo procedimento. Para este doutrinador astomadas de decisões e o exercício do poder serão mais b<strong>em</strong> aceitos pelosindivíduos se eles participar<strong>em</strong> ativamente do conjunto de atos prévios aeles. Já no prefácio de sua obra, escreve:Ao pensamento liberal sobre direito, estado e sociedade, que sevai liberando do tesouro da antiga tradição européia, pertence ahipótese de que os procedimentos legalmente organizados pod<strong>em</strong>contribuir ou mesmo levar à legitimação de opções obrigatóriasdo ponto de vista jurídico. Consciente ou inconscient<strong>em</strong>ente,esta tese foi concebida para substituir o antigo modelo europeuduma ord<strong>em</strong> hierárquica de fontes e matérias jurídicas. Parecedeixar entrever mais sinceridade para o estabelecimento denormas, maior elasticidade e adaptabilidade do direito e um206n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaispotencial mais elevado para transformações estruturais dasociedade. Tal como a categoria do contrato para o âmbito da‘sociedade’, assim a categoria do procedimento para o âmbito do‘estado’ parece apresentar aquela fórmula mágica que combinaa mais alta medida de segurança e liberdade que se pode praticarconcretamente no dia-a-dia e que transmite, enquantoinstituição, todas as resoluções do futuro. Contrato eprocedimento parec<strong>em</strong>, numa perspectiva evolucionária,aquisições improváveis que permit<strong>em</strong> à época atual estabelecersobre a variabilidade e eliminar qualquer futuro possível 21 .Como se vê, as garantias constitucionais processuais desfrutam nosdias presentes de <strong>em</strong>inentes cuidados por parte da doutrina, seja para permitirum controle sobre os atos de poder (atos que unilateralmente praticadostêm o condão de afetar validamente a esfera jurídica de outro), seja paraensejar a legitimidade dos mesmos atos (que são considerados como queconsentidos). A relação entre processo e constituição, mediante o fio condutor,que são as garantias ora tratadas, v<strong>em</strong> se intensificando a cada dia, aponto de se falar de uma Teoria Processual da Constituição, sobre a qualdeixamos de tecer aqui maiores comentários por não condizer com os finsdeste trabalho. Convém, porém, assentar que a relação entre processo e constituição,segundo Cândido Rangel Dinamarco,revela ao estudioso dois sentidos vetoriais <strong>em</strong> que elas sedesenvolv<strong>em</strong>, a saber: a) no sentido Constituição-processo, t<strong>em</strong>setutela constitucional deste e dos princípios que dev<strong>em</strong> regê-lo,alçados a nível constitucional; b) no sentido processo-Constituição, a chamada jurisdição constitucional, voltada aocontrole da constitucionalidade das leis e atos administrativos eà preservação de garantias oferecidas pela Constituição(‘jurisdição constitucional das liberdades’), mais toda a idéia deinstrumentalidade processual <strong>em</strong> si mesma, que apresenta oprocesso como sist<strong>em</strong>a estabelecido para a realização da ord<strong>em</strong>jurídica, constitucional inclusive. 227 CONCLUSÃODe todo o exposto até aqui, exsurg<strong>em</strong> as seguintes conclusões:a) os direitos fundamentais, incluídas as garantias, são direitos subjetivos,no sentido de propiciar<strong>em</strong> aos indivíduos uma situação subjetiva devantag<strong>em</strong>. Ad<strong>em</strong>ais, possu<strong>em</strong> uma dimensão objetiva, porquanto conformama atividade do Estado que deve observá-los e fomentá-los s<strong>em</strong>pre que forfática e juridicamente possível;b) os direitos fundamentais são aqueles direitos positivados <strong>em</strong> umadeterminada ord<strong>em</strong> jurídica e que possu<strong>em</strong> formalmente pro<strong>em</strong>inência frenteaos d<strong>em</strong>ais, tendo como núcleo e fim último a dignidade da pessoa huma-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA207
Juraci Mourão Lopes Filhona e que é ligada ao próprio indivíduo que pode opô-los a qualquer outrosujeito de direito, seja público ou particular;c) a garantia constitucional é uma garantia que disciplina, tutela oexercício dos direitos fundamentais, ao mesmo passo que rege, com proteçãoadequada, nos limites da Constituição, o funcionamento de todas as instituiçõesexistentes no Estado;d) É possível se estabelecer as seguintes espécies de garantias fundamentais:d.1.) garantias de direito subjetivo e garantias de direitos subjetivos;d.2.) garantias qualificadas e garantias simples; d.3.) garantias individuais egarantias institucionais; d.4.) garantias materiais e garantias processuais;e) as garantias de direito objetivo, especialmente da Constituição Federal,têm o escopo de defender a eficácia e permanência da ord<strong>em</strong> constitucional,assegurando sua aplicação e conservação contra fatoresdesestabilizantes. Já as garantias de direito subjetivo conduz<strong>em</strong> à capacidadede os indivíduos exigir<strong>em</strong> dos poderes públicos ou institucionais a proteçãode seus direitos;f) as garantias qualificadas são aquelas oponíveis ao legislador ordinárioe ao constituinte derivado, enquanto as garantias simples são oponíveisapenas àquele;g) as garantias individuais, típicas do Estado liberal, têm como preocupaçõesprincipais a liberdade, o patrimônio e a segurança, sendo centradasnos indivíduos isoladamente considerados. Por sua vez, as garantiasinstitucionais ligam-se a dadas realidades sociais as quais se quer preservar;h) segundo Gérson Marques, as garantias materiais ass<strong>em</strong>elham-se àschamadas garantias limites que formam o sist<strong>em</strong>a de proteção organizadapara a defesa dos direitos. As garantias processuais são aquelas que diz<strong>em</strong>respeito ao processo <strong>em</strong> si, assegurando os direitos das partes pela via processual,qualquer que seja o tipo de processo;i) as teorias de Elio Fazzalari (com seu específico conceito de processo e aprocessualidade ampla) e de Niklas Luhmann (com sua legitimação pelo procedimento)contribuíram grand<strong>em</strong>ente para o fortalecimento das garantias processuais.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro deEstudios Constitucionales, 1997.BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização dodireito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de DireitoAdministrativo, Rio de Janeiro, n. 240, p.1-42, abr/jun. 2005.208n. 6 - 2005.2
Direitos e garantias fundamentais: garantias processuais e garantias materiaisBONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo:Malheiros, 2000.CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição.3. ed. Coimbra: Almeidina, 1999.DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed.São Paulo: Malheiros, 2003.FAZZALARI, Elio. Instituizioni di diritto processuale. 4. ed. Padova: Cedam,1986.GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. SãoPaulo: Celso Bastos Editor, 2000.LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidadede Brasília, 1980.MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Fundamentos constitucionais do processo.São Paulo: Malheiros, 2002.ROBLES, Gregório. Los derechos fundamentales y la ética <strong>em</strong> la soiedad actual.Madrid: Editorial Civitas S.A., 1995.1GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor,2000, p. 46.2BARROSO, Luiz Roberto. “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardiodo direito constitucional no Brasil)”. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 240, abr/jun.2005.3ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,1997, p.86.4ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética <strong>em</strong> la sociedad actual. Madrid: Editoral CivitasS.A., 1995, p. 18-19.5ROBLES, op.cit., p.21-22.6CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almeidina, 1999,p. 354.7Ibid., p. 355.8ALEXY, op.cit., p.36.9ALEXY, op.cit., p.37.10GUERRA FILHO, op.cit., p.163-164.11MARQUES DE LIMA, Francisco Gérson. Fundamentos constitucionais do processo. São Paulo: Malheiros,2002, p. 33-34.12BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 488.13Ibid., p. 488.14Ibid., p.484.15Ibid.,p. 493.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA209
Juraci Mourão Lopes Filho16Ibid., p.492.17MARQUES DE LIMA, op.cit., p. 56.18MARQUES DE LIMA, op.cit., p. 57.19FAZZLARI, Elio. Instituizioni di diritto processuale. 4. ed. Padova: Cedam, 1986, p. 72-73.20Ibid., p. 77.21LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.22DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003,p. 27.FUNDAMENTAL RIGHTS AND FREEDOMSAND THEIR PROTECTIONABSTRACTThis article examines the fundamental rights andfreedoms and the juridical possibilities for theirprotection, highlighting their differences and,especially, the assurances found in legal proceedings.KEYWORDS: Fundamental Rights and Freedoms.Assurances in general and in legal proceedings.DROITS ET GARANTIES FUNDAMENTAUX –GARANTIES PROCÉDURALES ETGARANTIES MATÉRIELLESRÉSUMÉIl s’agit d’un article sur les droits et garantiesfondamentaux dont soulève à la fois leurs distinctionset leurs classifications. Aussi il est en question de mettreen évidence les garanties procédurales.MOTS-CLÉS: Droits fondamentaux. Garantiessubstantielles et processuelles.210n. 6 - 2005.2
NEOCONSTITUCIONALISMO ECONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO(O TRIUNFO TARDIO DO DIREITO CONSTITUCIONALNO BRASIL)Luís Roberto Barroso* **Introdução. Parte I Neoconstitucionalismo e transformações dodireito constitucional cont<strong>em</strong>porâneo. I Marco histórico. II Marcofilosófico. III Marco teórico. 1 A força normativa da Constituição.2 A expansão da jurisdição constitucional. 3 A nova interpretaçãoconstitucional. Parte II A constitucionalização do Direito. IGeneralidades. II Orig<strong>em</strong> e evolução do fenômeno. III Aconstitucionalização do Direito no Brasil. 1 O direitoinfraconstitucional na Constituição. 2 A constitucionalizaçãodo direito infraconstitucional. 3 Constitucionalização do Direitoe seus mecanismos de atuação prática. IV Alguns aspectos daconstitucionalização do Direito. 1 Direito Civil. 2 DireitoAdministrativo. 3 Direito Penal. V Constitucionalização ejudicialização das relações sociais. ConclusãoRESUMOBusca-se analisar as rupturas paradigmáticas que o novodireito constitucional v<strong>em</strong> sofrendo sob os auspícios do póspositivismo,cujos efeitos se pode sentir <strong>em</strong> termos denormatividade, jurisdição e interpretação constitucional.PALAVRAS-CHAVE: Neoconstitucionalismo. Póspositivismo.Interpretação constitucional. Constitucionalizaçãodo Direito.“Chega de ação. Quer<strong>em</strong>os promessas”.Anônimo*Professor Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Mestre <strong>em</strong> Direito pela Yale LawSchool e Doutor Livre-Docente pela UERJ.**Este trabalho foi escrito, <strong>em</strong> sua maior parte, durante minha estada na Universidade de San Francisco(USFCA). Sou grato a Jack Garvey pelo convite e por ter tornado a vida mais fácil durante minhaestada por lá. Sou igualmente grato a Nelson Diz, Ana Paula de Barcellos e Cláudio Pereira de SouzaNeto por haver<strong>em</strong> lido os originais e formulado críticas e sugestões valiosas, b<strong>em</strong> como a EduardoMendonça, Teresa Melo e Danielle Lins pela ajuda inestimável na pesquisa e na revisão do texto.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA211
Luís Roberto BarrosoINTRODUÇÃOAssim protestava o grafite, ainda <strong>em</strong> tinta fresca, inscrito no muro deuma cidade, no coração do mundo ocidental. A espirituosa inversão da lógicanatural dá conta de uma das marcas dessa geração: a velocidade da transformação,a profusão de idéias, a multiplicação das novidades. Viv<strong>em</strong>os aperplexidade e a angústia da aceleração da vida. Os t<strong>em</strong>pos não andampropícios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rápido. Para jingles,e não para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegueentregar os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos.De fato, a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes 1 e a insegurança éa característica da nossa era 2 .Na aflição dessa hora, imerso nos acontecimentos, não pode o intérpretebeneficiar-se do distanciamento crítico <strong>em</strong> relação ao fenômeno que lhe cabeanalisar. Ao contrário, precisa operar <strong>em</strong> meio à fumaça e à espuma. Talvez estaseja uma boa explicação para o recurso recorrente aos prefixos pós e neo: pósmodernidade,pós-positivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo. Sabe-seque veio depois e que t<strong>em</strong> a pretensão de ser novo. Mas ainda não se sabe b<strong>em</strong>o que é. Tudo é ainda incerto. Pode ser avanço. Pode ser uma volta ao passado.Pode ser apenas um movimento circular, uma dessas guinadas de 360 graus.O artigo que se segue procura estudar as causas e os efeitos das transformaçõesocorridas no Direito Constitucional cont<strong>em</strong>porâneo, lançando sobreelas uma visão positiva e construtiva. Procura-se oferecer consolo e esperança.Alguém dirá que parece um texto de auto-ajuda. Não adianta: ninguémescapa do seu próprio t<strong>em</strong>po.PARTE INEOCONSTITUCIONALISMO E TRANSFORMAÇÕES DO DI-REITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEONos três tópicos que se segu<strong>em</strong>, <strong>em</strong>preende-se o esforço de reconstituir,de maneira objetiva, a trajetória percorrida pelo Direito Constitucional nasúltimas décadas, na Europa e no Brasil, levando <strong>em</strong> conta três marcos fundamentais:o histórico, o teórico e o filosófico. Neles estão contidas as idéiase as mudanças de paradigma que mobilizaram a doutrina e a jurisprudêncianesse período, criando uma nova percepção da Constituição e de seu papelna interpretação jurídica <strong>em</strong> geral.I Marco históricoO marco histórico do novo direito constitucional, na Europa continental,foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na Al<strong>em</strong>anhae na Itália. No Brasil, foi a Constituição de 1988 e o processo de212n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)red<strong>em</strong>ocratização que ela ajudou a protagonizar. A seguir, breve exposiçãosobre cada um desses processos.A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a II GrandeGuerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar daConstituição e a influência do Direito Constitucional sobre as instituiçõescont<strong>em</strong>porâneas. A aproximação das idéias de constitucionalismo e de d<strong>em</strong>ocraciaproduziu uma nova forma de organização política, que atende pornomes diversos: Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito, Estado Constitucional dedireito, Estado Constitucional D<strong>em</strong>ocrático. Seria mau investimento de t<strong>em</strong>poe energia especular sobre sutilezas s<strong>em</strong>ânticas na matéria.A principal referência no desenvolvimento do novo direito constitucionalé a Lei Fundamental de Bonn (Constituição al<strong>em</strong>ã 3 ), de 1949, e, especialmente,a criação do Tribunal Constitucional Federal, instalado <strong>em</strong> 1951.A partir daí teve início uma fecunda produção teórica e jurisprudencial,responsável pela ascensão científica do Direito Constitucional no âmbitodos países de tradição romano-germânica. A segunda referência de destaqueé a da Constituição da Itália, de 1947, e a subseqüente instalação daCorte Constitucional, <strong>em</strong> 1956. Ao longo da década de 70, a red<strong>em</strong>ocratizaçãoe a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha (1978) agregaramvalor e volume ao debate sobre o novo Direito Constitucional.No caso brasileiro, o renascimento do Direito Constitucional se deu,igualmente, no ambiente de reconstitucionalização do país, por ocasião dadiscussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da Constituição de1988. S<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo de vicissitudes de maior ou menor gravidade no seutexto, e da compulsão com que t<strong>em</strong> sido <strong>em</strong>endada ao longo dos anos, aConstituição foi capaz de promover, de maneira b<strong>em</strong> sucedida, a travessia doEstado brasileiro de um regime autoritário, intolerante e, por vezes, violentopara um Estado d<strong>em</strong>ocrático de direito.Mais que isso: a Carta de 1988 t<strong>em</strong> propiciado o mais longo período deestabilidade institucional da história republicana do país. E não foram t<strong>em</strong>posbanais. Ao longo da sua vigência, destituiu-se por impeachment um Presidenteda República, houve um grave escândalo envolvendo a Comissão deOrçamento da Câmara dos Deputados, foram afastados Senadores importantesno esqu<strong>em</strong>a de poder da República, foi eleito um Presidente de oposiçãoe do Partido dos Trabalhadores, surgiram denúncias estridentes envolvendoesqu<strong>em</strong>as de financiamento eleitoral e de vantagens para parlamentares,<strong>em</strong> meio a outros episódios. Em nenhum desses eventos houve a cogitaçãode qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional.Nessa matéria, percorr<strong>em</strong>os <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po todos os ciclos do atraso 4 .Sob a Constituição de 1988, o Direito Constitucional no Brasil passouda desimportância ao apogeu <strong>em</strong> menos de uma geração. Uma Constituiçãonão é só técnica. T<strong>em</strong> de haver, por trás dela, a capacidade de simbolizarconquistas e de mobilizar o imaginário das pessoas para novos avanços. OREVISTA OPINIÃO JURÍDICA213
Luís Roberto Barrososurgimento de um sentimento constitucional no País é algo que merece sercelebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido, mas real e sincero, d<strong>em</strong>aior respeito pela Lei Maior, a despeito da volubilidade de seu texto. É umgrande progresso. Superamos a crônica indiferença que, historicamente, s<strong>em</strong>anteve <strong>em</strong> relação à Constituição. E, para os que sab<strong>em</strong>, é a indiferença,não o ódio, o contrário do amor.II Marco filosóficoO marco filosófico do novo Direito Constitucional é o pós-positivismo.O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duasgrandes correntes de pensamento que oferec<strong>em</strong> paradigmas opostos para oDireito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmentecompl<strong>em</strong>entares. A quadra atual é assinalada pela superação – ou,talvez, sublimação – dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangentede idéias, agrupadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo 5 .O jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do século XVI, aproximoua lei da razão e transformou-se na filosofia natural do Direito. Fundadona crença <strong>em</strong> princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustíveldas revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritase as codificações. Considerado metafísico e anticientífico, o Direito Naturalfoi <strong>em</strong>purrado para a marg<strong>em</strong> da história pela ascensão do PositivismoJurídico, no final do século XIX. Em busca de objetividade científica, opositivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussõescomo legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeirametade do século XX. Sua decadência é <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>aticamente associada àderrota do Fascismo na Itália e do Nazismo na Al<strong>em</strong>anha, regimes que promoverama barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da II Guerra, aética e os valores começam a retornar ao Direito 6 .A superação histórica do Jusnaturalismo e o fracasso político doPositivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado dereflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O póspositivismobusca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direitoposto; procura <strong>em</strong>preender uma leitura moral do Direito, mas s<strong>em</strong> recorrer acategorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídicohão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não pod<strong>em</strong> comportarvoluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéiasricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma <strong>em</strong> construçãoinclu<strong>em</strong>-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição desuas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentaçãojurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; eo desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobreo fundamento da dignidade humana. Nesse ambiente, promove-se umareaproximação entre o Direito e a Filosofia 7 .214n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)III Marco teóricoNo plano teórico, três grandes transformações subverteram o conhecimentoconvencional relativamente à aplicação do Direito Constitucional:a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão dajurisdição constitucional; c) o desenvolvimento de uma nova dogmática dainterpretação constitucional. A seguir, a análise sucinta de cada uma delas.1 A força normativa da ConstituiçãoUma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do séculoXX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se,assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado,no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político,um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostasficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legisladorou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconheciaqualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição.Com a reconstitucionalização que sobreveio à II Guerra Mundial, estequadro começou a ser alterado. Inicialmente na Al<strong>em</strong>anha 8 e, com maiorretardo, na Itália 9 . E, b<strong>em</strong> mais à frente, <strong>em</strong> Portugal 10 e na Espanha 11 . Atualmente,passou a ser pr<strong>em</strong>issa do estudo da Constituição o reconhecimentode sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições.Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade,que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagraros mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado. A propósito,cabe registrar que o desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial na matérianão eliminou as tensões inevitáveis que se formam entre as pretensões denormatividade do constituinte, de um lado, e, de outro lado, as circunstânciasda realidade fática e as eventuais resistências do status quo.O debate acerca da força normativa da Constituição só chegou ao Brasil,de maneira consistente, ao longo da década de 80, tendo enfrentado as resistênciasprevisíveis 12 . Além das complexidades inerentes à concretização de qualquerord<strong>em</strong> jurídica, padecia o país de patologias crônicas, ligadas ao autoritarismo e àinsinceridade constitucional. Não é surpresa, portanto, que as Constituições tivess<strong>em</strong>sido, até então, repositórios de promessas vagas e de exortações ao legisladorinfraconstitucional, s<strong>em</strong> aplicabilidade direta e imediata. Coube à Constituiçãode 1988, b<strong>em</strong> como à doutrina e à jurisprudência que se produziram a partir de suapromulgação, o mérito elevado de romper com a posição mais retrógrada.2 A expansão da jurisdição constitucionalAntes de 1945, vigorava na maior parte da Europa um modelo de supr<strong>em</strong>aciado Poder Legislativo, na linha da doutrina inglesa de soberania doREVISTA OPINIÃO JURÍDICA215
Luís Roberto BarrosoParlamento e da concepção francesa da lei como expressão da vontade geral.A partir do final da década de 40, todavia, a onda constitucional trouxe nãoapenas novas constituições, mas também um novo modelo, inspirado pela experiênciaamericana: o da supr<strong>em</strong>acia da Constituição. A fórmula envolvia aconstitucionalização dos direitos fundamentais, que ficavam imunizados <strong>em</strong>relação ao processo político majoritário: sua proteção passava a caber ao Judiciário.Inúmeros países europeus vieram a adotar um modelo próprio de controlede constitucionalidade, associado à criação de tribunais constitucionais.Assim se passou, inicialmente, na Al<strong>em</strong>anha (1951) e na Itália (1956),como assinalado. A partir daí, o modelo de tribunais constitucionais se irradioupor toda a Europa continental. A tendência prosseguiu com Chipre(1960) e Turquia (1961). No fluxo da d<strong>em</strong>ocratização ocorrida na década de70, foram instituídos tribunais constitucionais na Grécia (1975), na Espanha(1978) e <strong>em</strong> Portugal (1982). E também na Bélgica (1984). Nos últimos anosdo século XX, foram criadas cortes constitucionais <strong>em</strong> países do leste europeu,como Polônia (1986), Hungria (1990), Rússia (1991), República Tcheca(1992), Romênia (1992), República Eslovaca (1992) e Eslovênia (1993).O mesmo se passou <strong>em</strong> países africanos, como Argélia (1989), África do Sul(1996) e Moçambique (2003). Atualmente na Europa, além do Reino Unido,somente a Holanda e Lux<strong>em</strong>burgo ainda mantêm o padrão de supr<strong>em</strong>aciaparlamentar, s<strong>em</strong> adoção de qualquer modalidade de judicial review. Ocaso francês será objeto de menção à parte.No Brasil, o controle de constitucionalidade existe, <strong>em</strong> moldeincidental, desde a primeira Constituição republicana, de 1891. A denominadaação genérica (ou, atualmente, ação direta), destinada ao controlepor via principal – abstrato e concentrado –, foi introduzida pela EmendaConstitucional n. 16, de 1965. Nada obstante, a jurisdição constitucionalexpandiu-se, verdadeiramente, a partir da Constituição de 1988. A causadeterminante foi a ampliação do direito de propositura 13 . A ela somou-se acriação de novos mecanismos de controle concentrado, como a açãodeclaratória de constitucionalidade 14 e a regulamentação da argüição dedescumprimento de preceito fundamental 15 .No sist<strong>em</strong>a constitucional brasileiro, o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal (STF)pode exercer o controle de constitucionalidade (i) <strong>em</strong> ações de sua competênciaoriginária (CF, art. 102, I), (ii) por via de recurso extraordinário (CF,art. 102, III) e (iii) <strong>em</strong> processos objetivos, nos quais se veiculam as açõesdiretas 16 . De 1988 até abril de 2005 já haviam sido ajuizadas 3.469 AçõesDiretas de Inconstitucionalidade (ADIn), 9 Ações Declaratórias deConstitucionalidade (ADC) e 69 Argüições de Descumprimento de PreceitoFundamental (ADPF). Para conter o número implausível de recursos extraordináriosinterpostos para o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal, a Emenda Constitucionaln. 45, que procedeu a diversas modificações na disciplina do PoderJudiciário, criou a figura da repercussão geral da questão constitucionaldiscutida, como requisito de admissibilidade do recurso 17 .216n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)3 A nova interpretação constitucionalA interpretação constitucional é uma modalidade de interpretaçãojurídica. Tal circunstância é uma decorrência natural da força normativa daConstituição, isto é, do reconhecimento de que as normas constitucionaissão normas jurídicas, compartilhando de seus atributos. Porque assim é, aplicam-seà interpretação constitucional os el<strong>em</strong>entos tradicionais de interpretaçãodo Direito, de longa data definidos como o gramatical, o histórico,o sist<strong>em</strong>ático e o teleológico. Cabe anotar, neste passo, para adiante voltarseao t<strong>em</strong>a, que os critérios tradicionais de solução de eventuais conflitosnormativos são o hierárquico (lei superior prevalece sobre a inferior), o t<strong>em</strong>poral(lei posterior prevalece sobre a anterior) e o especial (lei especial prevalecesobre a geral).S<strong>em</strong> prejuízo do que se v<strong>em</strong> de afirmar, o fato é que as especificidadesdas normas constitucionais (v. supra) levaram a doutrina e a jurisprudência,já de muitos anos, a desenvolver ou sist<strong>em</strong>atizar um elenco próprio de princípiosaplicáveis à interpretação constitucional. Tais princípios, de naturezainstrumental, e não material, são pressupostos lógicos, metodológicos oufinalísticos da aplicação das normas constitucionais. São eles, na ordenaçãoque se afigura mais adequada para as circunstâncias brasileiras: o da supr<strong>em</strong>aciada Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas eatos do Poder Público, o da interpretação conforme a Constituição, o daunidade, o da razoabilidade e o da efetividade 18 .Antes de prosseguir, cumpre fazer uma advertência: a interpretaçãojurídica tradicional não está derrotada ou superada como um todo. Pelocontrário, é no seu âmbito que continua a ser resolvida boa parte das questõesjurídicas, provavelmente a maioria delas. Sucede, todavia, que os operadoresjurídicos e os teóricos do Direito se deram conta, nos últimos t<strong>em</strong>pos,de uma situação de carência: as categorias tradicionais da interpretaçãojurídica não são inteiramente ajustadas para a solução de um conjuntode probl<strong>em</strong>as ligados à realização da vontade constitucional. A partir daídeflagrou-se o processo de elaboração doutrinária de novos conceitos e categorias,agrupados sob a denominação de nova interpretação constitucional,que se utiliza de um arsenal teórico diversificado, <strong>em</strong> um verdadeirosincretismo metodológico 19 . Procede-se, a seguir, a uma breve comparaçãoentre os dois modelos.A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandespr<strong>em</strong>issas: (i) quanto ao papel da norma, cabe a ela oferecer, no seurelato abstrato, a solução para os probl<strong>em</strong>as jurídicos; (ii) quanto ao papel dojuiz, cabe a ele identificar, no ordenamento jurídico, a norma aplicável aoprobl<strong>em</strong>a a ser resolvido, revelando a solução nela contida. Vale dizer: aresposta para os probl<strong>em</strong>as está integralmente no sist<strong>em</strong>a jurídico e o intérpretedes<strong>em</strong>penha uma função técnica de conhecimento, de formulação dejuízos de fato. No modelo convencional, as normas são percebidas como re-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA217
Luís Roberto Barrosogras, enunciados descritivos de condutas a ser<strong>em</strong> seguidas, aplicáveis mediantesubsunção 20 .Com o avanço do Direito Constitucional, as pr<strong>em</strong>issas ideológicas sobreas quais se erigiu o sist<strong>em</strong>a de interpretação tradicional deixaram de serintegralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificouseque a solução dos probl<strong>em</strong>as jurídicos n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se encontra no relatoabstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a respostaconstitucionalmente adequada à luz do probl<strong>em</strong>a, dos fatos relevantes, analisadostopicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenasuma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contidano enunciado normativo. O intérprete torna-se co-participante do processode criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazervalorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entresoluções possíveis.Estas transformações noticiadas acima, tanto <strong>em</strong> relação à norma quantoao intérprete, são ilustradas de maneira eloqüente pelas diferentes categoriascom as quais trabalha a nova interpretação. Dentre elas inclu<strong>em</strong>-se ascláusulas gerais, os princípios, as colisões de normas constitucionais, a ponderaçãoe a argumentação. Abaixo uma breve nota sobre cada uma delas.As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminadoscontêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade,que fornec<strong>em</strong> um início de significação a ser compl<strong>em</strong>entado pelo intérprete,levando <strong>em</strong> conta as circunstâncias do caso concreto. A norma <strong>em</strong>abstrato não contém integralmente os el<strong>em</strong>entos de sua aplicação. Ao lidarcom locuções como ord<strong>em</strong> pública, interesse social e boa fé, dentreoutras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivospresentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcanceda norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciadonormativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém;ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própriaavaliação 21 .O reconhecimento de normatividade aos princípios e sua distinçãoqualitativa <strong>em</strong> relação às regras é um dos símbolos do pós-positivismo (v.supra). Princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivosde condutas específicas, mas sim normas que consagram determinadosvalores ou indicam fins públicos a ser<strong>em</strong> realizados por diferentes meios. Adefinição do conteúdo de cláusulas como dignidade da pessoa humana,razoabilidade, solidariedade e eficiência também transfere para o intérpreteuma dose importante de discricionariedade. Como se percebe claramente, amenor densidade jurídica de tais normas impede que delas se extraia, no seurelato abstrato, a solução completa das questões sobre as quais incid<strong>em</strong>.Também aqui, portanto, impõe-se a atuação do intérprete na definição concretade seu sentido e alcance 22 .218n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)A existência de colisões de normas constitucionais, tanto as de princípioscomo as de direitos fundamentais 23 , passou a ser percebida como um fenômenonatural – até porque inevitável – no constitucionalismo cont<strong>em</strong>porâneo.As Constituições modernas são documentos dialéticos, que consagrambens jurídicos que se contrapõ<strong>em</strong>. Há choques potenciais entre a promoçãodo desenvolvimento e a proteção ambiental, entre a livre-iniciativa e a proteçãodo consumidor. No plano dos direitos fundamentais, a liberdade religiosade um indivíduo pode conflitar-se com a de outro, o direito de privacidadee a liberdade de expressão viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> tensão contínua, a liberdade dereunião de alguns pode interferir com o direito de ir e vir dos d<strong>em</strong>ais 24 .Quando duas normas de igual hierarquia colid<strong>em</strong> <strong>em</strong> abstrato, é intuitivoque não possam fornecer, pelo seu relato, a solução do probl<strong>em</strong>a. Nestescasos, a atuação do intérprete criará o Direito aplicável ao caso concreto.A existência de colisões de normas constitucionais leva à necessidadede ponderação 25 . A subsunção, por óbvio, não é capaz de resolver o probl<strong>em</strong>a,por não ser possível enquadrar o mesmo fato <strong>em</strong> normas antagônicas. Tampoucopod<strong>em</strong> ser úteis os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos –hierárquico, cronológico e da especialização – quando a colisão se dá entredisposições da Constituição originária. Neste cenário, a ponderação de normas,bens ou valores (v. infra) é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, porvia da qual ele (i) fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximopossível de cada um dos interesses <strong>em</strong> disputa ou, no limite, (ii) procederá àescolha do direito que irá prevalecer, <strong>em</strong> concreto, por realizar mais adequadamentea vontade constitucional. Conceito-chave na matéria é o princípioinstrumental da razoabilidade.Chega-se, por fim, à argumentação 26 , à razão prática, ao controle daracionalidade das decisões proferidas, mediante ponderação, nos casos difíceis,que são aqueles que comportam mais de uma solução possível e razoável.As decisões que envolv<strong>em</strong> a atividade criativa do juiz potencializam odever de fundamentação, por não estar<strong>em</strong> inteiramente legitimadas pelalógica da separação de Poderes – por esta última, o juiz limita-se a aplicar, nocaso concreto, a decisão abstrata tomada pelo legislador. Para assegurar alegitimidade e a racionalidade de sua interpretação nessas situações, o intérpretedeverá, <strong>em</strong> meio a outras considerações: (i) reconduzi-la s<strong>em</strong>pre aosist<strong>em</strong>a jurídico, a uma norma constitucional ou legal que lhe sirva de fundamento– a legitimidade de uma decisão judicial decorre de sua vinculaçãoa uma deliberação majoritária, seja do constituinte ou do legislador; (ii)utilizar-se de um fundamento jurídico que possa ser generalizado aos casosequiparáveis, que tenha pretensão de universalidade: decisões judiciais nãodev<strong>em</strong> ser casuísticas; (iii) levar <strong>em</strong> conta as conseqüências práticas quesua decisão produzirá no mundo dos fatos 27 .Em suma: o Neoconstitucionalismo ou novo Direito Constitucional,na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformaçõesocorridas no Estado e no Direito Constitucional, <strong>em</strong> meio às quais po-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA219
Luís Roberto Barrosod<strong>em</strong> ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado Constitucionalde Direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais doséculo XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidadedos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e Ética; e (iii)como marco teórico, o conjunto de mudanças que inclu<strong>em</strong> a força normativada Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimentode uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjuntode fenômenos resultou um processo extenso e profundo deconstitucionalização do Direito.PARTE IIA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITOI GeneralidadesA locução constitucionalização do Direito é de uso relativamente recentena terminologia jurídica e, além disso, comporta múltiplos sentidos. Porela se poderia pretender caracterizar, por ex<strong>em</strong>plo, qualquer ordenamentojurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de supr<strong>em</strong>acia. Comoeste é um traço comum de grande número de sist<strong>em</strong>as jurídicos cont<strong>em</strong>porâneos,faltaria especificidade à expressão. Não é, portanto, nesse sentido queestá aqui <strong>em</strong>pregada. Poderia ela servir para identificar, ad<strong>em</strong>ais, o fato de aConstituição formal incorporar <strong>em</strong> seu texto inúmeros t<strong>em</strong>as afetos aos ramosinfraconstitucionais do Direito. Trata-se de fenômeno iniciado, de certaforma, com a Constituição portuguesa de 1976, continuado pela Constituiçãoespanhola de 1978 e levado ao extr<strong>em</strong>o pela Constituição brasileirade 1988. Embora esta seja uma situação dotada de características próprias,não é dela, tampouco, que se estará cuidando 28 .A idéia de constitucionalização do Direito aqui explorada está associadaa um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo materiale axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sist<strong>em</strong>a jurídico29 . Os valores, os fins públicos e os comportamentos cont<strong>em</strong>plados nosprincípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentidode todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, aconstitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive enotadamente nas suas relações com os particulares. Porém, mais originalainda: repercute, também, nas relações entre particulares. Veja-se como esteprocesso, combinado com outras noções tradicionais, interfere com as esferasacima referidas.Relativamente ao Legislativo, a constitucionalização (i) limita suadiscricionariedade ou liberdade de conformação na elaboração das leis <strong>em</strong>geral e (ii) impõe-lhe determinados deveres de atuação para realização dedireitos e programas constitucionais. No tocante à Administração Pública,220n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)além de igualmente (i) limitar-lhe a discricionariedade e (ii) impor a eladeveres de atuação, ainda (iii) fornece fundamento de validade para a práticade atos de aplicação direta e imediata da Constituição, independent<strong>em</strong>enteda interposição do legislador ordinário. Quanto ao Poder Judiciário,(i) serve de parâmetro para o controle de constitucionalidade por ele des<strong>em</strong>penhado(incidental e por ação direta), b<strong>em</strong> como (ii) condiciona ainterpretação de todas as normas do sist<strong>em</strong>a. Por fim, para os particulares,estabelece limitações à sua autonomia da vontade, <strong>em</strong> domínios como aliberdade de contratar ou o uso da propriedade privada, subordinando-a avalores constitucionais e ao respeito a direitos fundamentais.II Orig<strong>em</strong> e evolução do fenômenoO estudo que se v<strong>em</strong> <strong>em</strong>preendendo até aqui relata a evolução doDireito Constitucional na Europa e no Brasil ao longo das últimas décadas.Este processo, que passa pelos marcos históricos, filosóficos e teóricos acimaexpostos, conduz ao momento atual, cujo traço distintivo é aconstitucionalização do Direito. A aproximação entre constitucionalismo ed<strong>em</strong>ocracia, a força normativa da Constituição e a difusão da jurisdiçãoconstitucional foram ritos de passag<strong>em</strong> para o modelo atual 30 . O leitor atentojá terá se dado conta, no entanto, de que a seqüência histórica percorridae as referências doutrinárias destacadas não são válidas para três experiênciasconstitucionais marcantes: as do Reino Unido, dos Estados Unidos e daFrança. O caso francês será analisado um pouco mais à frente. Um brevecomentário é pertinente sobre os outros dois.No tocante ao Reino Unido, os conceitos não se aplicam. Embora tenhasido o Estado precursor do modelo liberal, com limitação do poder absolutoe afirmação do rule of the law, falta-lhe uma Constituição escrita e rígida,que é um dos pressupostos, como o nome sugere, da constitucionalizaçãodo Direito. Poder-se-ia argumentar, é certo, que há entre os britânicos umaConstituição histórica e que ela é, inclusive, mais rígida que boa parte dasCartas escritas do mundo. Ou reconhecer o fato de que o Parlamento inglêsadotou, <strong>em</strong> 1998, o “Human Rights Act”, incorporando ao direito interno aConvenção Européia de Direitos Humanos 31 . Mas mesmo que se concedessea esses argumentos, não seria possível superar um outro: a inexistência docontrole de constitucionalidade e, mais propriamente, de uma jurisdiçãoconstitucional no sist<strong>em</strong>a inglês 32 . No modelo britânico vigora a supr<strong>em</strong>aciado Parlamento, e não da Constituição.Já quanto aos Estados Unidos, a situação é exatamente oposta. Berçodo constitucionalismo escrito e do controle de constitucionalidade, a Constituiçãoamericana – a mesma desde 1787 – teve, desde a primeira hora, ocaráter de documento jurídico, passível de aplicação direta e imediata peloJudiciário. De fato, a normatividade ampla e a judicialização das questõesconstitucionais têm base doutrinária <strong>em</strong> O Federalista e precedenteREVISTA OPINIÃO JURÍDICA221
Luís Roberto Barrosojurisprudencial firmado desde 1803, quando do julgamento do caso Marburyv. Madison pela Supr<strong>em</strong>a Corte. Por esta razão, a interpretação de todo odireito posto à luz da Constituição é característica histórica da experiênciaamericana, e não singularidade cont<strong>em</strong>porânea 33 . O grande debate doutrinárionos Estados Unidos é acerca da legitimidade e dos limites da atuaçãodo Judiciário na aplicação de valores substantivos e no reconhecimento dedireitos fundamentais que não se encontr<strong>em</strong> expressos na Constituição (v.infra).Há razoável consenso de que o marco inicial do processo deconstitucionalização do Direito foi estabelecido na Al<strong>em</strong>anha. Ali, sob oregime da Lei Fundamental de 1949 e consagrando desenvolvimentos doutrináriosque já vinham de mais longe, o Tribunal Constitucional Federalassentou que os direitos fundamentais, além de sua dimensão subjetiva deproteção de situações individuais, des<strong>em</strong>penham uma outra função: a deinstituir uma ord<strong>em</strong> objetiva de valores 34 . O sist<strong>em</strong>a jurídico deve protegerdeterminados direitos e valores, não apenas pelo eventual proveito que possamtrazer a uma ou a algumas pessoas, mas pelo interesse geral da sociedadena sua satisfação. Tais normas constitucionais condicionam a interpretaçãode todos os ramos do Direito, público ou privado, e vinculam os Poderesestatais. O primeiro grande precedente na matéria foi o caso Lüth 35 , julgado<strong>em</strong> 15 de janeiro de 1958 36 .A partir daí, baseando-se no catálogo de direitos fundamentais daConstituição al<strong>em</strong>ã, o Tribunal Constitucional promoveu uma verdadeira“revolução de idéias” 37 , especialmente no Direito Civil. De fato, ao longodos anos subseqüentes, a Corte invalidou dispositivos do BGB, impôs a interpretaçãode suas normas de acordo com a Constituição e determinou a elaboraçãode novas leis. Assim, por ex<strong>em</strong>plo, para atender ao princípio daigualdade entre homens e mulheres, foram introduzidas mudanças legislativas<strong>em</strong> matéria de regime matrimonial, direitos dos ex-cônjuges após o divórcio,poder familiar, nome de família e Direito Internacional Privado. De igualsorte, o princípio da igualdade entre os filhos legítimos e naturais provocoureformas no direito de filiação 38 . De parte isso, foram proferidos julgamentosinteressantes <strong>em</strong> t<strong>em</strong>as como uniões homossexuais (homoafetivas) 39 e direitodos contratos 40 .Na Itália, a Constituição entrou <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong> 1º de janeiro de 1948. Oprocesso de constitucionalização do Direito, todavia, iniciou-se apenas nadécada de 60, consumando-se nos anos 70. Rel<strong>em</strong>bre-se que a Corte Constitucionalitaliana somente veio a se instalar <strong>em</strong> 1956. Antes disso, o controlede constitucionalidade foi exercido, por força da Disposição ConstitucionalTransitória VII, pela jurisdição ordinária, que não lhe deu vitalidade.Pelo contrário, r<strong>em</strong>onta a esse período a formulação, pela Corte de Cassação,da distinção entre normas preceptivas, de caráter vinculante e aplicáveispelos tribunais, e normas de princípio ou programáticas, dirigidas apenasao legislador e não aplicáveis diretamente pelo Judiciário. Assim, pelos nove222n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)primeiros anos de vigência, a Constituição e os direitos fundamentais nelaprevistos não repercutiram sobre a aplicação do direito ordinário 41 .Somente com a instalação da Corte Constitucional – e, aliás, desde asua primeira decisão – as normas constitucionais de direitos fundamentaispassaram a ser diretamente aplicáveis, s<strong>em</strong> intermediação do legislador. ACorte desenvolveu um conjunto de técnicas de decisão 42 , tendo enfrentado,durante os primeiros anos de sua atuação, a arraigada resistência das instânciasordinárias e, especialmente, da Corte de Cassação, dando lugar a umadisputa referida, <strong>em</strong> certa época, como “guerra das cortes” 43 . A ex<strong>em</strong>plo doocorrido na Al<strong>em</strong>anha, a influência da constitucionalização do Direito e daprópria Corte Constitucional se manifestou <strong>em</strong> decisões deinconstitucionalidade, <strong>em</strong> convocações à atuação do legislador e nareinterpretação das normas infraconstitucionais <strong>em</strong> vigor.De 1956 a 2003, a Corte Constitucional proferiu 349 decisões <strong>em</strong> questõesconstitucionais envolvendo o Código Civil, das quais 54 declararam ainconstitucionalidade de dispositivos seus, <strong>em</strong> decisões da seguinte natureza:8 de invalidação, 12 interpretativas e 34 aditivas 44 (sobre as característicasde cada uma delas, v. nota ao parágrafo anterior). Foram proferidos julgados<strong>em</strong> t<strong>em</strong>as que incluíram adultério 45 , uso do nome do marido 46 e direitossucessórios de filhos ilegítimos 47 , <strong>em</strong> meio a outros. No plano legislativo,sob influência da Corte Constitucional, foram aprovadas, ao longo dos anos,modificações profundas no direito de família, inclusive <strong>em</strong> relação ao divórcio,no direito à adoção e no direito do trabalho. Estas alterações, levadas aefeito por leis especiais, provocaram a denominada “descodificação” do direitocivil 48 .Na França, o processo de constitucionalização do Direito teve iníciomuito mais tarde e ainda vive uma fase de afirmação. A Constituição de1958, como se sabe, não previu o controle de constitucionalidade, quer nomodelo europeu, quer no americano, tendo optado por uma fórmula diferenciada:a do controle prévio, exercido pelo Conselho Constitucional <strong>em</strong> relaçãoa algumas leis, antes de entrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> vigor 49 . De modo que não há nosist<strong>em</strong>a francês, a rigor técnico, uma verdadeira jurisdição constitucional.Não obstante, alguns avanços significativos e constantes vêm ocorrendo, acomeçar pela decisão de 16 de julho de 1971 50 . A ela seguiu-se a Reformade 29 de outubro de 1974, ampliando a legitimidade para suscitar-se a atuaçãodo Conselho Constitucional 51 . Aos poucos, começam a ser incorporadosao debate constitucional francês t<strong>em</strong>as como a impregnação da ord<strong>em</strong> jurídicapela Constituição, o reconhecimento de força normativa às normas constitucionaise o uso da técnica da interpretação conforme a Constituição 52 .Tal processo de constitucionalização do Direito, cabe advertir, enfrenta avigorosa resistência da doutrina mais tradicional, que nele vê ameaças diversas,b<strong>em</strong> como a usurpação dos poderes do Conselho de Estado e da Cortede Cassação 53 .REVISTA OPINIÃO JURÍDICA223
Luís Roberto BarrosoIII A constitucionalização do Direito no Brasil1 O direito infraconstitucional na ConstituiçãoA Carta de 1988, como já consignado, t<strong>em</strong> a virtude supr<strong>em</strong>a desimbolizar a travessia d<strong>em</strong>ocrática brasileira e de ter contribuído decisivamentepara a consolidação do mais longo período de estabilidade política dahistória do país. Não é pouco. Mas não se trata, por suposto, da Constituiçãoda nossa maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias.Por vício e por virtude, seu texto final expressa uma heterogênea misturade interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categoriasfuncionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e privilégioscorporativos. A euforia constituinte – saudável e inevitável após tantos anosde exclusão da sociedade civil – levaram a uma Carta que, mais do queanalítica, é prolixa e corporativa 54 .Quanto ao ponto aqui relevante, é b<strong>em</strong> de ver que todos os principaisramos do direito infraconstitucional tiveram aspectos seus, de maior ou menorrelevância, tratados na Constituição. A catalogação dessas previsões vaidos princípios gerais às regras miúdas, levando o leitor do espanto ao fastio.Assim se passa com o direito administrativo, civil, penal, do trabalho, processualcivil e penal, financeiro e orçamentário, tributário, internacional <strong>em</strong>ais além. Há, igualmente, um título dedicado à ord<strong>em</strong> econômica, no qualse inclu<strong>em</strong> normas sobre política urbana, agrícola e sist<strong>em</strong>a financeiro. Eoutro dedicado à ord<strong>em</strong> social, dividido <strong>em</strong> numerosos capítulos e seções,que vão da saúde até os índios.Embora o fenômeno da constitucionalização do Direito, como aquianalisado, não se confunda com a presença de normas de direitoinfraconstitucional na Constituição, há um natural espaço de superposiçãoentre os dois t<strong>em</strong>as. Com efeito, na medida que princípios e regras específicosde uma disciplina ascend<strong>em</strong> à Constituição, sua interação com asd<strong>em</strong>ais normas daquele subsist<strong>em</strong>a muda de qualidade e passa a ter umcaráter subordinante. Trata-se da constitucionalização das fontes do Direitonaquela matéria. Tal circunstância, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre desejável 55 , interferecom os limites de atuação do legislador ordinário e com a leitura constitucionala ser <strong>em</strong>preendida pelo Judiciário <strong>em</strong> relação ao t<strong>em</strong>a que foiconstitucionalizado.2 A constitucionalização do direito infraconstitucionalNos Estados de d<strong>em</strong>ocratização mais tardia, como Portugal, Espanhae, sobretudo, o Brasil, a constitucionalização do Direito é um processo maisrecente, <strong>em</strong>bora muito intenso. Verificou-se, entre nós, o mesmo movimentotranslativo ocorrido inicialmente na Al<strong>em</strong>anha e <strong>em</strong> seguida na Itália: a224n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)passag<strong>em</strong> da Constituição para o centro do sist<strong>em</strong>a jurídico. A partir de1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituiçãopassou a desfrutar já não apenas da supr<strong>em</strong>acia formal que s<strong>em</strong>pre teve, mastambém de uma supr<strong>em</strong>acia material, axiológica, potencializada pela aberturado sist<strong>em</strong>a jurídico e pela normatividade de seus princípios. Com grandeímpeto, exibindo força normativa s<strong>em</strong> precedente, a Constituição ingressouna paisag<strong>em</strong> jurídica do país e no discurso dos operadores jurídicos.Do centro do sist<strong>em</strong>a jurídico foi deslocado o velho Código Civil. Vejaseque o Direito Civil des<strong>em</strong>penhou no Brasil – como alhures – o papel deum direito geral, que precedeu muitas áreas de especialização, e que conferiacerta unidade dogmática ao ordenamento. A própria Teoria Geral doDireito era estudada dentro do Direito Civil, e só mais recent<strong>em</strong>ente adquiriuautonomia didática. No caso brasileiro, deve-se registrar, o Código Civiljá vinha perdendo influência no âmbito do próprio direito privado. É que, aolongo do t<strong>em</strong>po, na medida que o Código envelhecia, inúmeras leis específicasforam editadas, passando a formar microssist<strong>em</strong>as autônomos <strong>em</strong> relaçãoa ele, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>as como alimentos, filiação, divórcio, locação, consumidor, criançae adolescente, sociedades <strong>em</strong>presariais. A ex<strong>em</strong>plo do que se passou naItália, também entre nós deu-se a “descodificação” do Direito Civil 56 , fenômenoque não foi afetado substancialmente pela promulgação de um novoCódigo Civil <strong>em</strong> 2002, com vigência a partir de 2003 57 .Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong>si – com a sua ord<strong>em</strong>, unidade e harmonia – mas também um modo de olhare interpretar todos os d<strong>em</strong>ais ramos do Direito. Este fenômeno, identificadopor alguns autores como filtrag<strong>em</strong> constitucional, consiste <strong>em</strong> que toda a ord<strong>em</strong>jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, d<strong>em</strong>odo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, aconstitucionalização do direito infraconstitucional não t<strong>em</strong> como sua principalmarca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios,mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional58 .À luz de tais pr<strong>em</strong>issas, toda interpretação jurídica é também interpretaçãoconstitucional. Qualquer operação de realização do direito envolvea aplicação direta ou indireta da Lei Maior. Aplica-se a Constituição:a) Diretamente, quando uma pretensão se fundar <strong>em</strong> uma norma dopróprio texto constitucional. Por ex<strong>em</strong>plo: o pedido de reconhecimento deuma imunidade tributária (CF, art. 150, VI) ou o pedido de nulidade deuma prova obtida por meio ilícito (CF, art. 5º, LVI);b) Indiretamente, quando uma pretensão se fundar <strong>em</strong> uma normainfraconstitucional, por duas razões:(i) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela écompatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA225
Luís Roberto BarrosoEsta operação está s<strong>em</strong>pre presente no raciocínio do operador do Direito,ainda que não seja por ele explicitada;(ii) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido ealcance à realização dos fins constitucionais.Em suma: a Constituição figura hoje no centro do sist<strong>em</strong>a jurídico, deonde irradia sua força normativa, dotada de supr<strong>em</strong>acia formal e material.Funciona, assim, não apenas como parâmetro de validade para a ord<strong>em</strong>infraconstitucional, mas também como vetor de interpretação de todas asnormas do sist<strong>em</strong>a.3 A constitucionalização do Direito e seus mecanismos de atuação práticaA constitucionalização do Direito, como já antecipado, repercute sobreos diferentes Poderes estatais. Ao legislador e ao administrador, impõedeveres negativos e positivos de atuação, para que observ<strong>em</strong> os limites epromovam os fins ditados pela Constituição. A constitucionalização, no entanto,é obra precípua da jurisdição constitucional, que no Brasil pode serexercida, difusamente, por juízes e tribunais, e concentradamente pelo Supr<strong>em</strong>oTribunal Federal, quando o paradigma for a Constituição Federal.Esta realização concreta da supr<strong>em</strong>acia formal e axiológica da Constituiçãoenvolve diferentes técnicas e possibilidades interpretativas, que inclu<strong>em</strong>:a) o reconhecimento da revogação das normas infraconstitucionaisanteriores à Constituição (ou à <strong>em</strong>enda constitucional), quando com elaincompatíveis;b) a declaração de inconstitucionalidade de normas infraconstitucionaisposteriores à Constituição, quando com ela incompatíveis;c) a declaração da inconstitucionalidade por omissão, com a conseqüenteconvocação à atuação do legislador 59 ;d) a interpretação conforme a Constituição, que pode significar:(i) a leitura da norma infraconstitucional da forma que melhor realizeo sentido e o alcance dos valores e fins constitucionais a ela subjacentes;(ii) a declaração de inconstitucionalidade parcial s<strong>em</strong> redução dotexto, que consiste na exclusão de uma determinada interpretação possívelda norma – geralmente a mais óbvia – e a afirmação de uma interpretaçãoalternativa, compatível com a Constituição 60 .Aprofunde-se um pouco mais o argumento, especialmente <strong>em</strong> relaçãoà interpretação conforme a Constituição. O controle de constitucionalidadeé uma modalidade de interpretação e aplicação da Constituição. Independent<strong>em</strong>entede outras especulações, há consenso de que cabe ao Judiciáriopronunciar a invalidade dos enunciados normativos incompatíveis com o226n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)texto constitucional, paralisando-lhes a eficácia. De outra parte, na linhado conhecimento convencional, a ele não caberia inovar na ord<strong>em</strong> jurídica,criando comando até então inexistente. Em outras palavras: o Judiciárioestaria autorizado a invalidar um ato do Legislativo, mas não a substituí-lopor um ato de vontade própria 61 .Pois b<strong>em</strong>. As modernas técnicas de interpretação constitucional – comoé o caso da interpretação conforme a Constituição – continuam vinculadasa esse pressuposto, ao qual agregam um el<strong>em</strong>ento inexorável. A interpretaçãojurídica dificilmente é unívoca, seja porque um mesmo enunciado, aoincidir sobre diferentes circunstâncias de fato, pode produzir normas diversas62 , seja porque, mesmo <strong>em</strong> tese, um enunciado pode admitir várias interpretações,<strong>em</strong> razão da poliss<strong>em</strong>ia de seus termos. A interpretação conformea Constituição, portanto, pode envolver (i) uma singela determinação desentido da norma, (ii) sua não incidência a uma determinada situação defato ou (iii) a exclusão, por inconstitucional, de uma das normas que pod<strong>em</strong>ser extraídas do texto. Em qualquer dos casos, não há declaração deinconstitucionalidade do enunciado normativo, permanecendo a norma noordenamento. Por esse mecanismo se reconciliam o princípio da supr<strong>em</strong>aciada Constituição e o princípio da presunção de constitucionalidade. Naturalmente,o limite de tal interpretação está nas possibilidades s<strong>em</strong>ânticas dotexto normativo 63 .IV Alguns aspectos da constitucionalização do Direito1 Direito Civil 64As relações entre o Direito Constitucional e o Direito Civil atravessaram,nos últimos dois séculos, três fases distintas, que vão da indiferença àconvivência intensa. O marco inicial dessa trajetória é a Revolução Francesa,que deu a cada um deles o seu objeto de trabalho: ao Direito Constitucional,uma Constituição escrita, promulgada <strong>em</strong> 1791; ao Direito Civil, oCódigo Civil napoleônico, de 1804. Apesar da cont<strong>em</strong>poraneidade dos doisdocumentos, Direito Constitucional e Direito Civil não se integravam n<strong>em</strong>se comunicavam entre si. Veja-se cada uma das etapas desse processo deaproximação lenta e progressiva:1 a . fase: Mundos apartadosNo início do constitucionalismo moderno, na Europa, a Constituiçãoera vista como uma Carta Política, que servia de referência para as relaçõesentre o Estado e o cidadão, ao passo que o Código Civil era o documentojurídico que regia as relações entre particulares, freqüent<strong>em</strong>ente mencionadocomo a “Constituição do direito privado”. Nessa etapa histórica, o papelREVISTA OPINIÃO JURÍDICA227
Luís Roberto Barrosoda Constituição era limitado, funcionando como uma convocação à atuaçãodos Poderes Públicos, e sua concretização dependia, como regra geral, daintermediação do legislador. Destituída de força normativa própria, não desfrutavade aplicabilidade direta e imediata. Já o Direito Civil era herdeiroda tradição milenar do direito romano. O Código napoleônico realizava adequadamenteo ideal burguês de proteção da propriedade e da liberdade decontratar, dando segurança jurídica aos protagonistas do novo regime liberal:o contratante e o proprietário. Esse modelo inicial de incomunicabilidadefoi sendo progressivamente superado.2 a . fase: Publicização do Direito PrivadoO Código napoleônico e os modelos que ele inspirou – inclusive obrasileiro – baseavam-se na liberdade individual, na igualdade formal entreas pessoas e na garantia absoluta do direito de propriedade. Ao longo doséculo XX, com o advento do Estado social e a percepção crítica da desigualdad<strong>em</strong>aterial entre os indivíduos, o Direito Civil começa a superar oindividualismo exacerbado, deixando de ser o reino soberano da autonomiada vontade. Em nome da solidariedade social e da função social de instituiçõescomo a propriedade e o contrato, o Estado começa a interferir nas relaçõesentre particulares, mediante a introdução de normas de ord<strong>em</strong> pública.Tais normas se destinam, sobretudo, à proteção do lado mais fraco da relaçãojurídica, como o consumidor, o locatário, o <strong>em</strong>pregado. É a fase do dirigismocontratual, que consolida a publicização do direito privado 65 .3 a . fase: Constitucionalização do Direito Civil“Ont<strong>em</strong> os Códigos; hoje as Constituições. A revanche da Grécia contraRoma” 66 . A fase atual é marcada pela passag<strong>em</strong> da Constituição para o centrodo sist<strong>em</strong>a jurídico, de onde passa a atuar como o filtro axiológico peloqual se deve ler o Direito Civil. Há regras específicas na Constituição, impondoo fim da supr<strong>em</strong>acia do marido no casamento, a plena igualdade entreos filhos, a função social da propriedade. E princípios que se difund<strong>em</strong>por todo o ordenamento, como a igualdade, a solidariedade social, arazoabilidade. Não é o caso de se percorrer<strong>em</strong> as múltiplas situações de impactodos valores constitucionais sobre o Direito Civil, especificamente, esobre o direito privado <strong>em</strong> geral 67 . Mas há dois desenvolvimentos que merec<strong>em</strong>destaque, pela dimensão das transformações que acarretam.O primeiro deles diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humanana nova dogmática jurídica. Ao término da II Guerra Mundial, t<strong>em</strong> inícioa reconstrução dos direitos humanos 68 , que se irradiam a partir da dignidadeda pessoa humana 69 , referência que passou a constar dos documentosinternacionais e das Constituições d<strong>em</strong>ocráticas 70 , tendo figurado na Cartabrasileira de 1988 como um dos fundamentos da República (art. 1º, III). A228n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)dignidade humana impõe limites e atuações positivas ao Estado, no atendimentodas necessidades vitais básicas 71 , expressando-se <strong>em</strong> diferentes dimensões72 . No t<strong>em</strong>a específico aqui versado, o princípio promove umadespatrimonialização 73 e uma repersonalização 74 do Direito Civil, com ênfase<strong>em</strong> valores existenciais e do espírito, b<strong>em</strong> como no reconhecimento e desenvolvimentodos direitos da personalidade, tanto <strong>em</strong> sua dimensão física quantopsíquica.O segundo desenvolvimento doutrinário que comporta uma nota especialé a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas 75 . O debater<strong>em</strong>onta à decisão do caso Lüth (v. supra), que superou a rigidez dadualidade público-privado ao admitir a aplicação da Constituição às relaçõesparticulares, inicialmente regidas pelo Código Civil. O t<strong>em</strong>a envolvecomplexidades e não será aprofundado aqui. As múltiplas situações suscetíveisde ocorrer<strong>em</strong> no mundo real não comportam solução unívoca 76 . Nadaobstante, com exceção da jurisprudência norte-americana (e, mesmo assim,com atenuações), há razoável consenso de que as normas constitucionais seaplicam, <strong>em</strong> alguma medida, às relações entre particulares. A divergêncianessa matéria reside, precisamente, na determinação do modo e da intensidadedessa incidência. Doutrina e jurisprudência divid<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> duas correntesprincipais:a) a da eficácia indireta e mediata dos direitos fundamentais, medianteatuação do legislador infraconstitucional e atribuição de sentidoàs cláusulas abertas;b) a da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, medianteum critério de ponderação entre os princípios constitucionais dalivre iniciativa e da autonomia da vontade, de um lado, e o direitofundamental <strong>em</strong> jogo, do outro lado.O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigura-se maisadequado para a realidade brasileira e t<strong>em</strong> prevalecido na doutrina. Naponderação a ser <strong>em</strong>preendida, como na ponderação <strong>em</strong> geral, deverão serlevados <strong>em</strong> conta os el<strong>em</strong>entos do caso concreto. Para esta específica ponderaçãoentre autonomia da vontade versus outro direito fundamental <strong>em</strong> questão,merec<strong>em</strong> relevo os seguintes fatores: a) a igualdade ou desigualdad<strong>em</strong>aterial entre as partes (e.g., se uma multinacional renuncia contratualmentea um direito, tal situação é diversa daquela <strong>em</strong> que um trabalhadorhumilde faça o mesmo); b) a manifesta injustiça ou falta de razoabilidade docritério (e.g., escola que não admite filhos de pais divorciados); c) preferênciapara valores existenciais sobre os patrimoniais; d) risco para a dignidadeda pessoa humana (e.g., ninguém pode se sujeitar a sanções corporais) 77 .O processo de constitucionalização do Direito Civil, no Brasil, avançoude maneira progressiva, tendo sido amplamente absorvido pela jurisprudênciae pela doutrina, inclusive civilista. Aliás, coube a esta, <strong>em</strong> grand<strong>em</strong>edida, o próprio fomento da aproximação inevitável 78 . Ainda se levantam,REVISTA OPINIÃO JURÍDICA229
Luís Roberto Barrosoaqui e ali, objeções de naturezas diversas, mas o fato é que as resistências,fundadas <strong>em</strong> uma visão mais tradicionalista do Direito Civil, dissiparam-se<strong>em</strong> sua maior parte. Já não há qu<strong>em</strong> negue abertamente o impacto da Constituiçãosobre o Direito Privado 79 . A sinergia com o direito constitucionalpotencializa e eleva os dois ramos do Direito, <strong>em</strong> nada diminuindo a tradiçãosecular da doutrina civilista.2 Direito Administrativo 80O Direito Constitucional e o Direito Administrativo têm orig<strong>em</strong> eobjetivos comuns: o advento do liberalismo e a necessidade de limitação dopoder do Estado. Nada obstante, percorreram ambos trajetórias b<strong>em</strong> diversas,sob influência do paradigma francês. De fato, o Direito Constitucionalpassou o século XIX e a primeira metade do século XX associado às categoriasda política, destituído de força normativa e aplicabilidade direta e imediata(v. supra). O direito administrativo, por sua vez, desenvolveu-se comoramo jurídico autônomo e arrebatou a disciplina da Administração Pública.A existência de uma jurisdição administrativa dissociada da atuação judiciale o prestígio do Conselho de Estado francês deram ao Direito Administrativouma posição destacada no âmbito do Direito Público 81 , associando-o àcontinuidade e à estabilidade das instituições 82 . Somente após a II GuerraMundial, com o movimento de constitucionalização, esta situação de pre<strong>em</strong>inênciairia se modificar.Não se vai reconstituir o histórico da relação entre o direito constitucionale o Direito Administrativo, que é feito pelos administrativistas <strong>em</strong>geral 83 e desviaria o foco da análise que aqui se quer <strong>em</strong>preender. Na quadrapresente, três conjuntos de circunstâncias dev<strong>em</strong> ser considerados noâmbito da constitucionalização do Direito Administrativo: a) a existênciade uma vasta quantidade de normas constitucionais voltadas para a disciplinada Administração Pública; b) a seqüência de transformações sofridas peloEstado brasileiro nos últimos anos; c) a influência dos princípios constitucionaissobre as categorias do Direito Administrativo. Todas elas se somampara a configuração do modelo atual, no qual diversos paradigmas estãosendo repensados ou superados.A presença de dispositivos sobre a Administração Pública nas Constituiçõesmodernas t<strong>em</strong> início com as Cartas italiana e al<strong>em</strong>ã, <strong>em</strong> precedentesque foram ampliados pelos Textos português e espanhol. A Constituição brasileirade 1988 discorre amplamente sobre a Administração Pública (v. supra),com censurável grau de detalhamento e contendo um verdadeiro estatutodos servidores públicos. Nada obstante, contém algumas virtudes, comoa dissociação da função administrativa da atividade de governo 84 e aenunciação expressa de princípios setoriais do Direito Administrativo, quena redação original eram os da legalidade, impessoalidade, moralidade epublicidade. A Emenda Constitucional nº 19, de 4.06.98, acrescentou ao230n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)elenco o princípio da eficiência 85 . A propósito, a tensão entre a eficiência,de um lado, e a legitimidade d<strong>em</strong>ocrática, de outro, é uma das marcas daAdministração Pública na atualidade 86 .De parte isso, deve-se assinalar que o perfil constitucional do Estadobrasileiro, nos domínios administrativo e econômico, foi alterado por um conjuntoamplo de reformas econômicas, levadas a efeito por <strong>em</strong>endas e porlegislação infraconstitucional, e que pod<strong>em</strong> ser agrupadas <strong>em</strong> três categorias:a extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro, aflexibilização de monopólios estatais e a desestatização. Tais transformaçõesmodificaram as bases sobre as quais se dava a atuação do Poder Público,tanto no que diz respeito à prestação de serviços públicos como à exploraçãode atividades econômicas. A diminuição expressiva da atuação <strong>em</strong>preendedorado Estado transferiu sua responsabilidade principal para o campo daregulação e fiscalização dos serviços delegados à iniciativa privada e dasatividades econômicas que exig<strong>em</strong> regime especial. Foi nesse contexto quesurgiram as agências reguladoras, via institucional pela qual se consumou amutação do papel do Estado <strong>em</strong> relação à ord<strong>em</strong> econômica 87 .Por fim, mais decisivo que tudo para a constitucionalização do DireitoAdministrativo, foi a incidência no seu domínio dos princípios constitucionais– não apenas os específicos, mas sobretudo os de caráter geral, que seirradiam por todo o sist<strong>em</strong>a jurídico. Também aqui, a partir da centralidadeda dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais, alterousea qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superaçãoou reformulação de paradigmas tradicionais 88 . Dentre eles é possíveldestacar:a) a redefinição da idéia de supr<strong>em</strong>acia do interesse público sobre ointeresse privadoEm relação a este t<strong>em</strong>a, deve-se fazer, <strong>em</strong> primeiro lugar, a distinçãonecessária entre interesse público (i) primário – isto é, o interesse da sociedade,sintetizado <strong>em</strong> valores como justiça, segurança e b<strong>em</strong>-estar social – e(ii) secundário, que é o interesse da pessoa jurídica de direito público (União,Estados e Municípios), identificando-se com o interesse da Fazenda Pública,isto é, do erário 89 . Pois b<strong>em</strong>: o interesse público secundário jamais desfrutaráde uma supr<strong>em</strong>acia a priori e abstrata <strong>em</strong> face do interesse particular. Seambos entrar<strong>em</strong> <strong>em</strong> rota de colisão, caberá ao intérprete proceder à ponderaçãodesses interesses, à vista dos el<strong>em</strong>entos normativos e fáticos relevantespara o caso concreto 90 .b) a vinculação do administrador à Constituição e não apenas à leiordináriaSupera-se, aqui, a idéia restrita de vinculação positiva do administradorà lei, na leitura convencional do princípio da legalidade, pela qual suaatuação estava pautada por aquilo que o legislador determinasse ou autori-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA231
Luís Roberto Barrosozasse. O administrador pode e deve atuar tendo por fundamento direto aConstituição e independent<strong>em</strong>ente, <strong>em</strong> muitos casos, de qualquer manifestaçãodo legislador ordinário. O princípio da legalidade transmuda-se, assim,<strong>em</strong> princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, <strong>em</strong>princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituiçãoe à lei, nessa ord<strong>em</strong>.c) a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativoO conhecimento convencional <strong>em</strong> matéria de controle jurisdicionaldo ato administrativo limitava a cognição dos juízes e tribunais aos aspectosda legalidade do ato (competência, forma e finalidade) e não do seu mérito(motivo e objeto), aí incluídas a conveniência e oportunidade de sua prática.Já não se passa mais assim. Não apenas os princípios constitucionais geraisjá mencionados, mas também os específicos, como moralidade, eficiênciae, sobretudo, a razoabilidade-proporcionalidade permit<strong>em</strong> o controle dadiscricionariedade administrativa (observando-se, naturalmente, a contençãoe a prudência, para que não se substitua a discricionariedade do administradorpela do juiz) 91 .Um último comentário se impõe nesse passo. Há autores que se refer<strong>em</strong>à mudança de alguns paradigmas tradicionais do Direito Administrativocomo caracterizadores de uma privatização do Direito Público, que passa aestar submetido, por ex<strong>em</strong>plo, a algumas categorias do direito das obrigações.Seria, de certa forma, a mão inversa da publicização do Direito Privado.Na verdade, é a aplicação de princípios constitucionais que leva determinadosinstitutos de Direito Público para o Direito Privado e, simetricamente,traz institutos de Direito Privado para o Direito Público. O fenômeno <strong>em</strong>questão, portanto, não é n<strong>em</strong> de publicização de um, n<strong>em</strong> de privatização deoutro, mas de constitucionalização de ambos. Daí resulta uma diluição dorigor da dualidade direito público-direito privado, produzindo áreas de confluênciae fazendo com que a distinção passe a ser antes quantitativa do quequalitativa 92 .3 Direito PenalA repercussão do Direito Constitucional sobre a disciplina legal doscrimes e das penas é ampla, direta e imediata, <strong>em</strong>bora não tenha sido exploradade maneira abrangente e sist<strong>em</strong>ática pela doutrina especializada. AConstituição t<strong>em</strong> impacto sobre a validade e a interpretação das normas deDireito Penal, b<strong>em</strong> como sobre a produção legislativa na matéria. Em primeirolugar, pela previsão de um amplo catálogo de garantias, inserido no art. 5º(v. supra). Além disso, o texto constitucional impõe ao legislador o dever decriminalizar determinadas condutas 93 , assim como impede a criminalizaçãode outras 94 . Adicione-se a circunstância de que algumas tipificações previamenteexistentes são questionáveis à luz dos novos valores constitucionais232n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)ou da transformação dos costumes 95 , assim como pod<strong>em</strong> ser excepcionadas<strong>em</strong> algumas de suas incidências concretas, se provocar<strong>em</strong> resultado constitucionalmenteindesejável 96 .A constitucionalização do Direito Penal suscita um conjunto instigantee controvertido de idéias, a ser<strong>em</strong> submetidas ao debate doutrinário e àconsideração da jurisprudência. Boa parte do pensamento jurídico descrêdas potencialidades das penas privativas de liberdade, que somente deveriamser <strong>em</strong>pregadas <strong>em</strong> hipóteses extr<strong>em</strong>as, quando não houvesse meios alternativoseficazes para a proteção dos interesses constitucionalmente relevantes97 . Os bens jurídicos constitucionais obedec<strong>em</strong> a uma ordenação hierárquica,de modo que a gravidade da punição deve ser graduada <strong>em</strong> funçãodessa lógica 98 . A disciplina jurídica dada a determinada infração ou apena aplicável não deve ir além n<strong>em</strong> tampouco ficar aquém do necessário àproteção dos valores constitucionais <strong>em</strong> questão. No primeiro caso, haveráinconstitucionalidade por falta de razoabilidade ou proporcionalidade 99 ; nosegundo, por omissão <strong>em</strong> atuar na forma reclamada pela Constituição 100 .Uma hipótese específica de constitucionalização do Direito Penal suscitoucandente debate na sociedade e no Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal: a dalegitimidade ou não da interrupção da gestação nas hipóteses de fetoanencefálico. Na ação constitucional ajuizada pediu-se a interpretação conformea Constituição dos dispositivos do Código Penal que tipificam o crimede aborto, para declarar sua não incidência naquela situação de inviabilidadefetal. A grande questão teórica <strong>em</strong> discussão era a de saber se, ao declarar anão incidência do Código Penal a uma determinada situação, porque issoprovocaria um resultado inconstitucional, estaria o STF interpretando aConstituição – que é o seu papel – ou criando uma nova hipótese de nãopunibilidade do aborto, <strong>em</strong> invasão da competência do legislador 101 .Não é propósito desse estudo, voltado para uma análise panorâmica,percorrer caso a caso o impacto da Constituição sobre os diferentes segmentosdo Direito. A constitucionalização, como já observado, manifesta-se d<strong>em</strong>aneira difusa pelos diferentes domínios, ainda que <strong>em</strong> graus variados. Asidéias gerais apresentadas são válidas, portanto, para todos os ramos, aí incluídoso Direito do Trabalho, o Direito Comercial, o Direito Ambiental, oDireito Processual e assim por diante.V Constitucionalização e judicialização das relações sociaisA constitucionalização, na linha do argumento aqui desenvolvido,expressa a irradiação dos valores constitucionais pelo sist<strong>em</strong>a jurídico. Estadifusão da Lei Maior pelo ordenamento se dá por via da jurisdição constitucional,que abrange a aplicação direta da Constituição a determinadas questões;a declaração de inconstitucionalidade de normas com ela incompatíveis;e a interpretação conforme a Constituição, para atribuição de sentidoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA233
Luís Roberto Barrosoàs normas jurídicas <strong>em</strong> geral. No caso brasileiro, deve-se enfatizar, a jurisdiçãoconstitucional é exercida amplamente: do juiz estadual ao Supr<strong>em</strong>o TribunalFederal, todos interpretam a Constituição, podendo, inclusive, recusaraplicação à lei ou outro ato normativo que consider<strong>em</strong> inconstitucional 102 .Ao lado desse exercício amplo de jurisdição constitucional, há umoutro fenômeno que merece ser destacado. Sob a Constituição de 1988, aumentoude maneira significativa a d<strong>em</strong>anda por justiça na sociedade brasileira.Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientizaçãodas pessoas <strong>em</strong> relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstânciade haver o texto constitucional criado novos direitos, introduzido novas açõese ampliado a legitimação ativa para tutela de interesses, mediante representaçãoou substituição processual. Nesse ambiente, juízes e tribunais passarama des<strong>em</strong>penhar um papel simbólico importante no imaginário coletivo.Isso conduz a um último desenvolvimento de natureza política, que é consideradono parágrafo abaixo.Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosaascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdadesd<strong>em</strong>ocráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram deser um departamento técnico especializado e passaram a des<strong>em</strong>penhar umpapel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal circunstânciaacarretou uma modificação substantiva na relação da sociedadecom as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questõescomplexas acerca da extensão de seus poderes.Pois b<strong>em</strong>: <strong>em</strong> razão desse conjunto de fatores – constitucionalização,aumento da d<strong>em</strong>anda por justiça e ascensão institucional do Judiciário –,verificou-se no Brasil uma expressiva judicialização de questões políticas esociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final 103 .Vejam-se abaixo, ilustrativamente, alguns dos t<strong>em</strong>as e casos que foram objetode pronunciamento do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal ou de outros tribunais,<strong>em</strong> período recente:(i) Políticas públicas: a constitucionalidade de aspectos centrais daReforma da Previdência (contribuição dos inativos) e da Reforma do Judiciário(criação do Conselho Nacional de Justiça);(ii) Relações entre Poderes: determinação dos limites legítimos deatuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebra de sigilose decretação de prisão) e do papel do Ministério Público na investigaçãocriminal;(iii) Direitos fundamentais: legitimidade da interrupção da gestação<strong>em</strong> certas hipóteses de inviabilidade fetal;(iv) Questões do dia-a-dia das pessoas: legalidade da cobrança de assinaturastelefônicas, a majoração do valor das passagens de transporte coletivo ou afixação do valor máximo de reajuste de mensalidade de planos de saúde.234n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)Os métodos de atuação e de argumentação dos órgãos judiciais são,como se sabe, jurídicos, mas a natureza de sua função é inegavelmente política,aspecto que é reforçado pela ex<strong>em</strong>plificação acima. S<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo dedes<strong>em</strong>penhar um poder político, o Judiciário t<strong>em</strong> características diversas dasdos outros Poderes. É que seus m<strong>em</strong>bros não são investidos por critérios eletivosn<strong>em</strong> por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dospaíses do mundo reserva uma parcela de poder para que seja des<strong>em</strong>penhadopor agentes públicos selecionados com base no mérito e no conhecimentoespecífico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidircom imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder dejuízes e tribunais, como todo poder <strong>em</strong> um Estado d<strong>em</strong>ocrático, é representativo.Vale dizer: é exercido <strong>em</strong> nome do povo e deve contas à sociedade.Nesse ponto se coloca uma questão que só mais recent<strong>em</strong>ente v<strong>em</strong>despertando o interesse da doutrina no Brasil, que é a da legitimidade d<strong>em</strong>ocráticada função judicial, suas possibilidades e limites. Relativamenteao controle de constitucionalidade das normas, já há alguma literatura recente104 . No tocante ao controle de constitucionalidade de políticas públicas,o t<strong>em</strong>a só agora começa a ser desbravado 105 . Vale a pena investir umaenergia final nessa matéria.Em sentido amplo, a jurisdição constitucional envolve a interpretaçãoe aplicação da Constituição, tendo como uma de suas principais expressões ocontrole de constitucionalidade das leis e atos normativos. No Brasil, estapossibilidade v<strong>em</strong> desde a primeira Constituição republicana (controleincidental e difuso), tendo sido ampliada após a Emenda Constitucional nº16/65 (controle principal e concentrado). A existência de fundamentonormativo expresso, aliada a outras circunstâncias, adiou o debate no paísacerca da legitimidade do des<strong>em</strong>penho pela corte constitucional de um papelnormalmente referido como contra-majoritário 106 : órgãos e agentes públicosnão eleitos têm o poder de afastar ou conformar leis elaboradas por representantesescolhidos pela vontade popular.Ao longo dos últimos dois séculos, impuseram-se doutrinariamenteduas grandes linhas de justificação desse papel das supr<strong>em</strong>as cortes/tribunaisconstitucionais. A primeira, mais tradicional, assenta raízes na soberaniapopular e na separação de Poderes: a Constituição, expressão maior davontade do povo, deve prevalecer sobre as leis, manifestações das maioriasparlamentares. Cabe assim ao Judiciário, no des<strong>em</strong>penho de sua função deaplicar o Direito, afirmar tal supr<strong>em</strong>acia, negando validade à leiinconstitucional. A segunda, que lida com a realidade mais complexa danova interpretação jurídica, procura legitimar o des<strong>em</strong>penho do controle deconstitucionalidade <strong>em</strong> outro fundamento: a preservação das condições essenciaisde funcionamento do Estado d<strong>em</strong>ocrático. Ao juiz constitucionalcabe assegurar determinados valores substantivos e a observância dos procedimentosadequados de participação e deliberação 107 .REVISTA OPINIÃO JURÍDICA235
Luís Roberto BarrosoA questão do controle das políticas públicas envolve, igualmente, ad<strong>em</strong>arcação do limite adequado entre matéria constitucional e matéria aser submetida ao processo político majoritário. Por um lado, a Constituiçãoprotege os direitos fundamentais e determina a adoção de políticas públicasaptas a realizá-los. Por outro, atribuiu as decisões sobre o investimento derecursos e as opções políticas a ser<strong>em</strong> perseguidas a cada t<strong>em</strong>po aos PoderesLegislativo e Executivo. Para assegurar a supr<strong>em</strong>acia da Constituição, masnão a heg<strong>em</strong>onia judicial, a doutrina começa a voltar sua atenção para odesenvolvimento de parâmetros objetivos de controle de políticas públicas 108 .O papel do Judiciário, <strong>em</strong> geral, e do Supr<strong>em</strong>o Tribunal, <strong>em</strong> particular,na interpretação e na efetivação da Constituição, é o combustível de umdebate permanente na teoria/filosofia 109 constitucional cont<strong>em</strong>porânea, pelomundo afora. Como as nuvens, o t<strong>em</strong>a t<strong>em</strong> percorrido trajetórias variáveis,<strong>em</strong> função de ventos circunstanciais, e t<strong>em</strong> assumido formas as mais diversas:ativismo versus contenção judicial; interpretativismo versus nãointerpretativismo;constitucionalismo popular versus supr<strong>em</strong>acia judicial. Aterminologia acima deixa trair a orig<strong>em</strong> do debate: a discussão existentesobre a matéria nos Estados Unidos, desde os primórdios do constitucionalismonaquele país. A seguir uma palavra sobre a experiência americana.A atuação pró-ativa da Supr<strong>em</strong>a Corte, no início da experiência constitucionalamericana, foi uma bandeira do pensamento conservador. Não hásurpresa nisso: ali se encontrou apoio para a política da segregação racial 110e para a invalidação das leis sociais <strong>em</strong> geral 111 , culminando no confrontoentre o Presidente Roosevelt e a Corte 112 . A situação se inverteu completamentea partir da década de 50, quando a Supr<strong>em</strong>a Corte, nas presidênciasWarren e Burger, produziu jurisprudência progressista <strong>em</strong> matéria de direitosfundamentais 113 , incluindo negros, presos e mulheres, b<strong>em</strong> como questõesrelativas a privacidade e aborto 114 .Pelos anos seguintes, o debate central na teoria constitucional norteamericanacontrapôs, de um lado, liberais (ou progressistas), favoráveis aojudicial review e a algum grau de ativismo judicial, e, de outro, conservadores,favoráveis à auto-contenção judicial e a teorias como originalismo enão-interpretativsimo 115 . De algum t<strong>em</strong>po para cá, <strong>em</strong> razão do amplo predomíniorepublicano e conservador, com reflexos na jurisprudência da Supr<strong>em</strong>aCorte, alguns juristas liberais vêm questionando o que denominam“supr<strong>em</strong>acia judicial” e defendendo um ainda impreciso constitucionalismopopular, com a “retirada da Constituição dos tribunais” 116 .O debate, na sua essência, é universal e gravita <strong>em</strong> torno das tensõese superposições entre constitucionalismo e d<strong>em</strong>ocracia. É b<strong>em</strong> de ver, noentanto, que a idéia de d<strong>em</strong>ocracia não se resume ao princípio majoritário,ao governo da maioria. Há outros princípios a ser<strong>em</strong> preservados e há direitosda minoria a ser<strong>em</strong> respeitados. Cidadão é diferente de eleitor; governodo povo não é governo do eleitorado 117 . No geral, o processo político majori-236n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)tário se move por interesses, ao passo que a lógica d<strong>em</strong>ocrática se inspira <strong>em</strong>valores. E, muitas vezes, só restará o Judiciário para preservá-los 118 . O deficitd<strong>em</strong>ocrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contra-majoritária, nãoé necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estarafetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa,o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação119 .O papel do Judiciário e, especialmente, das cortes constitucionais esupr<strong>em</strong>os tribunais deve ser o de resguardar o processo d<strong>em</strong>ocrático e promoveros valores constitucionais, superando o deficit de legitimidade dos d<strong>em</strong>aisPoderes, quando seja o caso. S<strong>em</strong>, contudo, desqualificar sua própria atuação,o que ocorrerá se atuar abusivamente, exercendo preferências políticas<strong>em</strong> lugar de realizar os princípios constitucionais 120 . Além disso, <strong>em</strong> paísesde tradição d<strong>em</strong>ocrática menos enraizada, cabe ao tribunal constitucionalfuncionar como garantidor da estabilidade institucional, arbitrando conflitosentre Poderes ou entre estes e a sociedade civil. Estes os seus grandespapéis: resguardar os valores fundamentais e os procedimentos d<strong>em</strong>ocráticos,assim como assegurar a estabilidade institucional.No Brasil, só mais recent<strong>em</strong>ente se começam a produzir estudos acercado ponto de equilíbrio entre supr<strong>em</strong>acia da Constituição, interpretaçãoconstitucional pelo Judiciário e processo político majoritário. O texto prolixoda Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidadeque envolve o Executivo e o Legislativo tornam a tarefa complexa. Os diversosoutros ingredientes da vivência brasileira espantam os riscos de tédio oumarasmo, <strong>em</strong>bora provoqu<strong>em</strong> sustos paralisantes. A difícil tarefa de construiras instituições de um país que se atrasou na História exige energia,idealismo e imunização contra a amargura. Não adianta: ninguém escapa doseu próprio t<strong>em</strong>po.CONCLUSÃOO novo Direito Constitucional ou Neoconstitucionalismo desenvolveu-sena Europa, ao longo da segunda metade do século XX, e, no Brasil,após a Constituição de 1988. O ambiente filosófico <strong>em</strong> que floresceu foi o dopós-positivismo, tendo como principais mudanças de paradigma, no planoteórico, o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão dajurisdição constitucional e a elaboração das diferentes categorias da novainterpretação constitucional.Fruto desse processo, a constitucionalização do Direito importa na irradiaçãodos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição portodo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional,<strong>em</strong> seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituiçãoa diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatí-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA237
Luís Roberto Barrosoveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normasinfraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lheso sentido e o alcance. A constitucionalização, o aumento da d<strong>em</strong>andapor justiça por parte da sociedade brasileira e a ascensão institucionaldo Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização dasrelações políticas e sociais.Tal fato potencializa a importância do debate, na teoria constitucional,acerca do equilíbrio que deve haver entre supr<strong>em</strong>acia constitucional,interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário. Ascircunstâncias brasileiras, na quadra atual, reforçam o papel do Supr<strong>em</strong>oTribunal Federal, inclusive <strong>em</strong> razão da crise de legitimidade por que passamo Legislativo e o Executivo, não apenas como um fenômeno conjuntural,mas como uma crônica disfunção institucional.1Bertold Brecht, Elogio da dialética. In: Antologia poética, 1977.2John Kenneth Galbraith, A era da incerteza, 1984.3A Constituição al<strong>em</strong>ã, promulgada <strong>em</strong> 1949, t<strong>em</strong> a designação originária de “Lei Fundamental”, quesublinhava seu caráter provisório, concebida que foi para uma fase de transição. A Constituiçãodefinitiva só deveria ser ratificada depois que o país recuperasse a unidade. Em 31 de agosto de 1990 foiassinado o Tratado de Unificação, que regulou a adesão da República D<strong>em</strong>ocrática Al<strong>em</strong>ã (RDA) àRepública Federal da Al<strong>em</strong>anha (RFA). Após a unificação não foi promulgada nova Constituição.Desde o dia 3 de outubro de 1990 a Lei Fundamental vigora <strong>em</strong> toda a Al<strong>em</strong>anha.4V. Luis Roberto Barroso, Doze anos da Constituição brasileira de 1988: uma breve e acidentadahistória de sucesso. In: T<strong>em</strong>as de direito constitucional, t. I, 2002.5Autores pioneiros nesse debate foram: John Rawls, A theory of justice, 1980; Ronald Dworkin, Takingrights seriously, 1977; Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1993. V. Albert Calsamiglia,Postpositivismo, Doxa 21:209, 1998, p. 209: “En un cierto sentido la teoría jurídica actual se pudedenominar postpositivista precisamente porque muchas de las enseñanzas del positivismo han sidoaceptadas y hoy todos en un cierto sentido somos positivistas. (...) Denominaré postpositivistas a lasteorías cont<strong>em</strong>poráneas que ponen el acento en los probl<strong>em</strong>as de la indeterminación del derecho y lasrelaciones entre el derecho, la moral y la política”.6Para um estudo mais aprofundado do t<strong>em</strong>a, com referências bibliográficas, v. Luís Roberto Barroso,Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. In: T<strong>em</strong>as de direito constitucional,t. III.7V. Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: Valores e princípiosconstitucionais tributários, 2005, p. 41: “De uns trinta anos para cá assiste-se ao retorno aos valorescomo caminho para a superação dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de ‘viradakantiana’ (kantische Wende), isto é, a volta à influência da filosofia de Kant, deu-se a reaproximaçãoentre ética e direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e com a busca da justiçafundada no imperativo categórico. O livro A Theory of Justice de John Rawls, publicado <strong>em</strong> 1971,constitui a certidão do renascimento dessas idéias”.8Trabalho s<strong>em</strong>inal nessa matéria é o de Konrad Hesse, La fuerza normativa de la Constitución. In:Escritos de derecho constitucional, 1983. O texto, no original al<strong>em</strong>ão, correspondente à sua aula inauguralna cátedra da Universidade de Freiburg, é de 1959. Há uma versão <strong>em</strong> língua portuguesa: A forçanormativa da Constituição, 1991, trad. Gilmar Ferreira Mendes.238n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)9V. Ricardo Guastini, La “constitucionalización” del ordenamiento jurídico. In: Miguel Carbonnel,Neoconstitucionalismo(s), 2003.10V. J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 43 e ss..11Sobre a questão <strong>em</strong> perspectiva geral e sobre o caso específico espanhol, vejam-se, respectivamente,dois trabalhos preciosos de Eduardo García de Enterría: La Constitución como norma y el TribunalConstitucional, 1991; e La constitución española de 1978 como pacto social y como norma jurídica, 2003.12Luís Roberto Barroso, A efetividade das normas constitucionais: por que não uma Constituição paravaler?. In: Anais do Congresso Nacional de Procuradores de Estado, 1986; e tb. A força normativa daConstituição: El<strong>em</strong>entos para a efetividade das normas constitucionais, 1987, tese de livre-docência apresentadana Universidade do Estado do Rio de Janeiro, publicada sob o título O direito constitucional e a efetividadede suas normas, 1990 (data da 1 a . edição). Na década de 60, <strong>em</strong> outro contexto e movido por preocupaçõesdistintas, José Afonso da Silva escreveu sua célebre tese Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968.13Desde a sua criação até a configuração que lhe foi dada pela Constituição de 1969, o direito depropositura da “representação de inconstitucionalidade” era monopólio do Procurador-Geral daRepública. A Constituição de 1988 rompeu com esta heg<strong>em</strong>onia, prevendo um expressivo elenco delegitimados ativos no seu art. 103.14Introduzida pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993. V, ainda, Lei nº 9.868, de 10.11.1999.15V. Lei nº 9.882, de 3.12.99. Antes da lei, prevalecia o entendimento de que o mecanismo não eraaplicável.16As ações diretas no direito constitucional brasileiro são a ação direta de inconstitucionalidade (art.102, I, a), a ação declaratória de constitucionalidade (arts. 102, I, a, e 103, § 4º) e a ação direta deinconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º). Há, ainda, duas hipóteses especiais de controleconcentrado: a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º) e a ação diretainterventiva (art. 36, III). Sobre o t<strong>em</strong>a do controle de constitucionalidade no direito brasileiro, v.dentre muitos: Gilmar Ferreira Mendes, Controle de constitucionalidade, 1990; Clèmerson Merlin Clève,A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro, 2000; Ronaldo Poletti, Controle daconstitucionalidade das leis, 2001; Lênio Luiz Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, 2002; ZenoVelloso, Controle jurisdicional de constitucionalidade, 2003; e Luís Roberto Barroso, O controle deconstitucionalidade no direito brasileiro, 2004.17A EC nº 45/2004 introduziu o § 3º do art. 102, com a seguinte dicção: “§ 3º. No recurso extraordinárioo recorrente deverá d<strong>em</strong>onstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso,nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lopela manifestação de dois terços de seus m<strong>em</strong>bros”.18V. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003.19No caso brasileiro, como no de outros países de constitucionalização recente, doutrina e jurisprudênciaainda se encontram <strong>em</strong> fase de elaboração e amadurecimento, fato que potencializa a importância dasreferências estrangeiras. Esta é uma circunstância histórica com a qual precisamos lidar, evitando doisextr<strong>em</strong>os indesejáveis: a subserviência intelectual, que implica na importação acrítica de fórmulasalheias e, pior que tudo, a incapacidade de reflexão própria; e a soberba intelectual, pela qual se rejeitaaquilo que não se t<strong>em</strong>. Nesse ambiente, não é possível utilizar modelos puros, concebidos alhures, e seesforçar para viver a vida dos outros. O sincretismo – desde que consciente e coerente – resulta sendoinevitável e desejável. Em visão aparent<strong>em</strong>ente diversa, v. Virgílio Afonso da Silva, Intepretaçãoconstitucional e sincretismo metodológico. In: Virgílio Afonso da Silva (org.), Interpretação constitucional,2005.20Identificada a norma aplicável, procede-se ao enquadramento do fato no relato da regra jurídica,pronunciando-se a conclusão. Um raciocínio, portanto, de natureza silogística, no qual a norma é apr<strong>em</strong>issa maior, o fato relevante é a pr<strong>em</strong>issa menor e a conclusão é a sentença.21As cláusulas gerais não são uma categoria nova no Direito – de longa data elas integram a técnicalegislativa – n<strong>em</strong> são privativas do direito constitucional – pod<strong>em</strong> ser encontradas no direito civil, nodireito administrativo e <strong>em</strong> outros domínios. Não obstante, elas são um bom ex<strong>em</strong>plo de como ointérprete é co-participante do processo de criação do Direito. Um ex<strong>em</strong>plo real, amplamente divulgadopela imprensa: quando da morte da cantora Cássia Eller, disputaram a posse e guarda do seu filho, àREVISTA OPINIÃO JURÍDICA239
Luís Roberto Barrosoépoca com cinco anos, o avô materno e a companheira da artista. O critério fornecido pela Constituiçãoe pela legislação ao juiz era o de atender ao “melhor interesse do menor”. S<strong>em</strong> o exame dos el<strong>em</strong>entosdo caso concreto e sua adequada valoração, não era possível sequer iniciar a solução do probl<strong>em</strong>a.22Tome-se, como ex<strong>em</strong>plo, o princípio da dignidade da pessoa humana e veja-se a divergência quantoà sua interpretação, manifestada por dois juristas da nova geração, criados no mesmo ambiente acadêmico.Ana Paula de Barcellos situa o mínimo existencial no âmbito da dignidade humana e dele extrai osdireitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e ao acesso àjustiça (A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p.305). Dessa posição diverge Daniel Sarmento, por entender inadequada a escolha de algumas prestaçõessociais, com exclusão de outras que, a seu ver, são igualmente direitos fundamentais, como o direito à“saúde curativa” (Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 114).23Note-se que há direitos fundamentais que assum<strong>em</strong> a forma de princípios (liberdade, igualdade) eoutros a de regras (irretroatividade da lei penal, anterioridade tributária). Ad<strong>em</strong>ais, há princípios quenão são direitos fundamentais (livre-iniciativa).24Sobre o t<strong>em</strong>a das restrições aos direitos fundamentais, v. Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitosfundamentais e interpretação constitucional: Uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentaisna perspectiva da teoria dos princípios, 2004, tese de doutoramento apresentada ao programa de Pósgraduação<strong>em</strong> Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.25Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997; Robert Alexy: Teoria de los derechos fundamentales, 1997,Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição Federal, 2000.26Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação: A nova retórica,1996 (1 a . edição do original Traité de l’argumentation: La nouvelle rhétorique, 1958); Robert Alexy, Teoria dela argumentación jurídica, 1989 (1 a . edição do original Theorie der juristischen Argumentation, 1978); ManuelAtienza, As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica, 2002; Margarida Maria Lacombe Camargo,Hermenêutica e argumentação, 2003; Antônio Carlos Cavalcanti Maia, Notas sobre direito, argumentaçãoe d<strong>em</strong>ocracia. In: Margarida Maria Lacombe Camargo (org.), 1988-1998: uma década de Constituição,1999.27Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade judicial, 2005. V. tb. NeilMaccormick, Legal reasoning and legal theory, 1978.28Embora não se possa negar que a presença, na Constituição, de normas cujo conteúdo pertence aoutros ramos do Direito (civil, administrativo, penal) influencie a interpretação do direitoinfraconstitucional correspondente. Votar-se-á ao ponto mais à frente.29Alguns autores têm utilizado os termos impregnar e impregnação, que <strong>em</strong> português, no entanto, pod<strong>em</strong>assumir uma conotação depreciativa. V. Louis Favoreu – notável divulgador do direito constitucionalna França, falecido <strong>em</strong> 2004 –, La constitutionnalization du droit. In: Bertrand Mathieu e MichelVerpeaux, La constitutionnalisation des branches du droit, 1998, p. 191: “Quer-se designar aqui, principalmente,a constitucionalização dos direitos e liberdades, que conduz a uma impregnação dos diferentes ramos dodireito, ao mesmo t<strong>em</strong>po que levam à sua transformação”. E, também, Ricardo Guastini, La“constitucionalización” del ordenamiento jurídico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel,Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 49: “Por ‘constitucionalización del ordenamiento jurídico’ propongoentender um proceso de transformación de um ordenamiento al término del qual el ordenamiento encuestión resulta totalmente ‘impregnado’ por las normas constitucionales. Un ordenamiento jurídicoconstitucionalizado se caracteriza por una Constitución extr<strong>em</strong>amente invasora, entrometida (pervasiva,invadente), capaz de condicionar tanto la legislación como la jurisprudencia y el estilo doctrinal, laacción de los actores políticos, así como las relaciones sociales”.30Alguns autores procuraram elaborar um catálogo de condições para a constitucionalização do Direito.É o caso de Ricardo Guastini, La “constitucionalización” del ordenamiento jurídico: El caso italiano. In:Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 50 e ss., que inclui entre elas: (i) uma Constituiçãorígida; (ii) a garantia jurisdicional da Constituição; (iii) a força vinculante da Constituição; (iv) a“sobreinterpretação” da Constituição (sua interpretação extensiva, com o reconhecimento de normasimplícitas); (v) a aplicação direta das normas constitucionais; (vi) a interpretação das leis conforme aConstituição; (vii) a influência da Constituição sobre as relações políticas.31A nova lei somente entrou <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong> 2000.240n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)32A propósito, e <strong>em</strong> desenvolvimento de certo modo surpreendente, deve ser registrada a aprovação doConstitutional Reform Act, de 2005, que previu a criação de uma Supr<strong>em</strong>a Corte (In: www.opsi.gov.uk/acts/acts2005/20050004.htm, visitado <strong>em</strong> 8 ago. 2005). Assinale-se a curiosidade de, não existindo umaConstituição escrita, ter sido aprovado, não obstante, um ato que a reforma.33Veja-se, a este propósito, ex<strong>em</strong>plificativamente, a jurisprudência que se produziu <strong>em</strong> matéria dedireito processual penal, pela submissão do common law dos Estados aos princípios constitucionais. EmMapp v. Ohio, 367 U.S. 643, 1961, considerou-se ilegítima a busca e apreensão feita s<strong>em</strong> mandado, comoexigido pela 4 a . Emenda. Em Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335, 1963, entendeu-se que a 6 a . <strong>em</strong>endaassegurava a todos os acusados <strong>em</strong> processo criminal o direito a um advogado. Em Miranda v. Arizona,384 U.S. 436, 1966, impôs-se à autoridade policial, na abordag<strong>em</strong> de um suspeito, que comunique a eleque a) t<strong>em</strong> o direito de permanecer calado; b) tudo que disser poderá e será usado contra ele; c) t<strong>em</strong>direito a consultar-se com um advogado antes de depor e que este poderá estar presente ao interrogatório;d) caso não tenha condições financeiras para ter um advogado, um poderá ser-lhe designado. V. KermitL. Hall, The Oxford guide to United States Supr<strong>em</strong>e Court decisions, 1999; Paul C. Bartholomew e Joseph F.Menez, Summaries of leading cases on the Constitution, 1980; Duane Lockard e Walter F. Murphy, Basiccases in constitutional law, 1992. Para uma análise objetiva e informativa sobre este e outros aspectos, <strong>em</strong>língua portuguesa, v. José Alfredo de Oliveira Baracho Júnior, Interpretação dos direitos fundamentaisna Supr<strong>em</strong>a Corte dos EUA e no Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal. In: José Adércio Leite Sampaio, Jurisdiçãoconstitucional e direitos fundamentais, 2003.34Sobre a questão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais na literatura <strong>em</strong> língua portuguesa,v. José Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 2001, p. 149,Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 214, e DanielSarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 371.35Os fatos subjacentes eram os seguintes. Erich Lüth, presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo,incitava ao boicote de um filme dirigido por Veit Harlan, cineasta que havia sido ligado ao regimenazista no passado. A produtora e a distribuidora do filme obtiveram, na jurisdição ordinária, decisãodeterminando a cessação de tal conduta, por considerá-la <strong>em</strong> violação do § 826 do Código Civil (BGB)(“Qu<strong>em</strong>, de forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outr<strong>em</strong>, está obrigado a reparar osdanos causados”). O Tribunal Constitucional Federal reformou a decisão, <strong>em</strong> nome do direito fundamentalà liberdade de expressão, que deveria pautar a intepretação do Código Civil.36BverfGE 7, 198. Tradução livre e editada da versão da decisão publicada <strong>em</strong> Jürgen Schwabe,Cincuenta años de jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal al<strong>em</strong>án, 2003, p. 132-37: “Os direitosfundamentais são antes de tudo direitos de defesa do cidadão contra o Estado; s<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo, nasdisposições de direitos fundamentais da Lei Fundamental se incorpora também uma ord<strong>em</strong> objetiva devalores, que como decisão constitucional fundamental é válida para todas as esferas do direito. (...) Essesist<strong>em</strong>a de valores – que encontra seu ponto central no seio da comunidade social, no livredesenvolvimento da personalidade e na dignidade da pessoa humana... – oferece direção e impulso parao legislativo, a administração e o judiciário, projetando-se, também, sobre o direito civil. Nenhumadisposição de direito civil pode estar <strong>em</strong> contradição com ele, devendo todas ser interpretadas deacordo com seu espírito. (...) A expressão de uma opinião, que contém um chamado para um boicote, nãoviola necessariamente os bons costumes, no sentido do § 826 do Código Civil. Pode estar justificadaconstitucionalmente pela liberdade de opinião, ponderadas todas as circunstâncias do caso”.Esta decisão é comentada por inúmeros autores nacionais, dentre os quais: Gilmar Ferreira Mendes,Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998, p. 220-2, onde descreve brev<strong>em</strong>ente outros doiscasos: “Blinkfüer” e “Wallraff”; Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 141 ess.; Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretação constitucional: Uma contribuição aoestudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios, p. 416 e ss.; e WilsonSteinmetz, A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, 2004, p. 105 e ss..37Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de l’Al<strong>em</strong>agne. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s),2005, p. 85.38Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de l’Al<strong>em</strong>agne. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s),2005, p. 87-8, com identificação de cada uma das leis. A jurisprudência referida na seqüência doparágrafo foi localizada a partir de referências contidas nesse texto.39Em um primeiro momento, <strong>em</strong> nome do princípio da igualdade, uma lei de 16 de fevereiro de 2001disciplinou as uniões homossexuais, pondo fim à discriminação existente. Em um segundo momento,REVISTA OPINIÃO JURÍDICA241
Luís Roberto Barrosoesta lei foi objeto de argüição de inconstitucionalidade, sob o fundamento de que afrontaria o art. 6º,I da Lei Fundamental, pelo qual “o casamento e a família são colocados sob proteção particular doEstado”, ao legitimar um outro tipo de instituição de direito de família, paralelo ao casamento heterossexual.A Corte não acolheu o argumento, assentando que a nova lei n<strong>em</strong> impedia o casamento tradicional n<strong>em</strong>conferia à união homossexual qualquer privilégio <strong>em</strong> relação à união convencional (1 BvF 1/01, de 17jul. 2002, com votos dissidentes dos juízes Papier e Hass, v. sítio www.bverfg.de, visitado <strong>em</strong> 4 ago. 2005).40Um contrato de fiança prestada pela filha, <strong>em</strong> favor do pai, tendo por objeto quantia muitas vezessuperior à sua capacidade financeira foi considerado nulo por ser contrário à moral (BverfGE t. 89, p.214, apud Sabine Corneloup, Table ronde: Le cas de l’Al<strong>em</strong>agne. In: Michel Verpeaux, Code civil econstitution(s), 2005, p. 90); um pacto nupcial no qual a mulher, grávida, renunciou a alimentos <strong>em</strong> nomepróprio e <strong>em</strong> nome da criança foi considerado nulo, por não poder prevalecer a liberdade contratualquando há dominação de uma parte sobre a outra (1 BvR 12/92, de 6 fev 2001, unânime, v. sítiowww.bverfg.de, visitado <strong>em</strong> 4 ago. 2005); um pacto sucessório que impunha ao filho mais velho doimperador Guilherme II o dever de se casar com uma mulher que preenchesse determinadas condiçõesali impostas foi considerado nulo por violar a liberdade de casamento (1 BvR 2248/01, de 22 mar 2004,unânime, v. sítio www.bverfg.de visitado <strong>em</strong> 4 ago. 2005).41Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Vezio Crisafulli, La Costituzione e le sue disposizione di principio, 1952; José Afonso daSilva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1968; Ricardo Guastini, La “constitucionalización” delordenamiento jurídico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003; e TherryDi Manno, Code Civil e Constituion en Italie. In: Michel Verpeaux (org.), Code Civil e Constitution(s),2005.42Além das decisões declaratórias de inconstitucionalidade, a Corte utiliza diferentes técnicas, queinclu<strong>em</strong>: 1) decisões interpretativas, que correspond<strong>em</strong> à interpretação conforme a Constituição, podendoser (a) com recusa da argüição de inconstitucionalidade, mas afirmação da interpretação compatível ou(b) com aceitação da argüição de inconstitucionalidade, com declaração de inconstitucionalidade dainterpretação que vinha sendo praticada pela jurisdição ordinária, <strong>em</strong> ambos os casos permanecendo <strong>em</strong>vigor a disposição atacada; 2) decisões manipuladoras, nas quais se dá a aceitação da argüição deinconstitucionalidade e, além da declaração de invalidade do dispositivo, a Corte vai além, proferindo(a) sentença aditiva, estendendo a norma à situação nela não cont<strong>em</strong>plada, quando a omissão importar <strong>em</strong>violação ao princípio da igualdade; e b) sentença substitutiva, pela qual a Corte não apenas declara ainconstitucionalidade de determinada norma, como também introduz no sist<strong>em</strong>a, mediante declaraçãoprópria, uma norma nova. Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Ricardo Guastini, La “constitucionalización” del ordenamientojurídico: El caso italiano. In: Miguel Carbonnel, Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 63-7.43Thierry Di Manno, Table ronde: Le cas de l’Italie. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s),2005, p. 107.44Thierry Di Manno, Table ronde: Le cas de l’Italie. In: Michel Verpeaux, Code civil e constitution(s),2005, p. 103.45Sentença 127/1968, j. 16 dez 1968, Rel. Bonifácio, v. sítio www.cortecostituzionale.it, visitado <strong>em</strong> 4ago. 2005. A Corte invalidou o artigo do Código Civil (art. 151, 2) que tratava de maneira diferente oadultério do marido e o da mulher. O da mulher s<strong>em</strong>pre seria causa para separação, ao passo que o dohom<strong>em</strong> somente <strong>em</strong> caso de “injúria grave à mulher”.46Sentença 128/1970, j. 24 jun 1970, Rel. Mortati, v. sítio www.cortecostituzionale.it, visitado <strong>em</strong> 4 ago.2005. A Corte proferiu sentença aditiva para permitir à mulher retirar o nome do marido após aseparação (ocorrida por culpa do marido), o que não era previsto pelo art. 156 do Código Civil.47Sentença 55/1979, j. 15 jun 1979, Rel. Amadei, v. sítio www.cortecostituzionale.it, visitado <strong>em</strong> 4 ago.2005. A Corte declarou a inconstitucionalidade do art. 565 do Código Civil, na parte <strong>em</strong> que excluía dobenefício da sucessão legítima os filhos naturais reconhecidos.48N. Irti, L’etá della decodificzione, 1989. V., tb., Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 5.49Na sua concepção original, o Conselho Constitucional destinava-se, sobretudo, a preservar ascompetências de um Executivo forte contra as invasões do Parlamento. Suas funções principais eramtrês: a) o controle dos regimentos de cada uma das câmaras (Ass<strong>em</strong>bléia Nacional e Senado), paraimpedir que se investiss<strong>em</strong> de poderes que a Constituição não lhes atribui, como ocorrido na III e na IVRepúblicas; b) o papel de “justiça eleitoral”, relativamene às eleições presidenciais, parlamentares e aosreferendos; c) a delimitação do domínio da lei, velando pela adequada repartição entre as competências242n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)legislativas e regulamentares. Esta última função se exercia <strong>em</strong> três situações: a do art. 41, relacionadaà invasão pela lei parlamentar de competência própria do governo; a do art. 61, alínea 2, que permitia aoprimeiro-ministro provocar o controle acerca da inconstitucionalidade de uma lei, após sua aprovação,mas antes de sua promulgação; e a do art. 37, alínea 2, relativamente à modificabilidade, por via dedecreto, de leis que possuíss<strong>em</strong> caráter regulamentar. Com a reforma constitucional de 1974, o controlede constitucionalidade das leis passou a ser a atividade principal do Conselho, aproximando-o de umacorte constitucional. V. Louis Favoreu, La place du Conseil Constitutionnel dans la Constitution de1958. In: www.conseil-constitutionnel.fr, visitado <strong>em</strong> 26 jul. 2005; François Luchaire, Le ConseilConstitutionnel, 3 vs., 1997; John Bell, French constitutional law, 1992.50Objetivamente, a decisão nº 71-44 DC, de 16.07.71 (In: www.conseil-constitutionnel.fr/decision/1971/7144dc.htm, visitado <strong>em</strong> 26 jul. 2005), considerou que a exigência de autorização prévia,administrativa ou judicial, para a constituição de uma associação violava a liberdade de associação. Suaimportância, todavia, foi o reconhecimento de que os direitos fundamentais previstos na Declaração deDireitos do Hom<strong>em</strong> e do Cidadão, de 1789, e no preâmbulo da Constituição de 1946, incorporavam-seà Constituição de 1958, por força de referência constante do preâmbulo desta, figurando, portanto,como parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis. Esta decisão reforçou o prestígio doConselho Constitucional, que passou a des<strong>em</strong>penhar o papel de protetor dos direitos e liberdadesfundamentais. Além disso, consagrou o “valor positivo e constitucional” do preâmbulo da Constituiçãoe firmou a idéia de “bloco de constitucionalidade”. Essa expressão significa que a Constituição não selimita às normas que integram ou se extra<strong>em</strong> do seu texto, mas inclui outros textos normativos, que nocaso eram a Declaração de Direitos do Hom<strong>em</strong> e do Cidadão, de 1789, e o Preâmbulo da Constituiçãode 1946, b<strong>em</strong> como os princípios fundamentais das leis da República, aos quais o referido preâmbulo faziareferência. Sobre a importância dessa decisão, v. Léo Hamon, Contrôle de constitutionnalité et protectiondes droits individuels, Dalloz, 1974, p. 83-90; G. Haimbowgh, Was it France’s Marbury v. Madison?, OhioState Law Journal 35:910, 1974; J.E.Beardsley, The Constitutional council and Constitutional liberties inFrance, American Journal of Comparative Law, 1972, p. 431-52. Para um comentário detalhado da decisão,v. L. Favoreu e L. Philip, Les grandes décisions du Conseil Constitutionnel, 2003. Especificamente sobre blocode constitucionalidade, v. Michel de Villiers, Dictionaire du droit constitutionnel, 2001; e Olivier Duhamele Yves Mény, Dictionnaire constituionnel, 1992.51A partir daí, o direito de provocar a atuação do Conselho Constitucional, que antes recaía apenassobre o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, o Presidente da Ass<strong>em</strong>bléia Nacional e o Presidentedo Senado estendeu-se, também, a sessenta Deputados ou sessenta Senadores. O controle deconstitucionalidade tornou-se um importante instrumento de atuação da oposição parlamentar. Entre1959 e 1974, foram proferidas apenas 9 (nove) decisões acerca de leis ordinárias (por iniciativa doPrimeiro-Ministro e do Presidente do Senado) e 20 (vinte) acerca de leis orgânicas (pronunciamentoobrigatório). De 1974 até 1998 houve 328 provocações (saisine) ao Conselho Constitucional. Os dadosconstam de Louis Favoreu, La place du Conseil Constitutionnel dans la Constitution de 1958. In:www.conseil-constitutionnel.fr, visitado <strong>em</strong> 26 jul.2005.52V. Louis Favoreu, La constitutionnalisation du droit. In: Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux, Laconstitutionnalisation des branches du droit, 1998, p. 190-2.53Veja-se a discussão do t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> Guillaume Drago, Bastien François e Nicolas Molfessis (org.), Lalégitimité de la jurisprudence du Conseil Constitutionnel, 1999. Na conclusão do livro, que documenta oColóquio de Rennes, de set<strong>em</strong>bro de 1996, François Terré, ao apresentar o que corresponderia àconclusão do evento, formulou crítica áspera à ascensão da influência do Conselho Constitucional: “Lesperpétuelles incantations que suscitent l’État de droit, la soumission de l’État à des juges, sousl’influence conjugée du kelsénisme, de la mauvaise conscience de l’All<strong>em</strong>agne Fédérale et del’americanisme planétaire sont lassantes. Des contrepoids s’imposent. Puisque le Conseil constituionnelest une juridiction, puisque la règle du double degré de juridiction e le droit d’appel sont devenusparoles d’evangile, il est naturel et urgent de faciliter le recours au referendum afin de permettre plusfacil<strong>em</strong>ent au peuple souverain de mettre, lê cãs échéant, un terme aux errances du Conseilconstitutionnel” (p. 409).54Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Luís Roberto Barroso, Doze anos da Constituição brasileira de 1988. In: T<strong>em</strong>as dedireito constitucional, t. I, 2002.55Tanto a doutrina como a jurisprudência, no plano do direito penal, têm condenado, por ex<strong>em</strong>plo, aconstitucionalização da figura dos “crimes hediondos” (art. 5º, XLIII). V., por todos, João José Leal,Crimes hediondos – A Lei 8.072 como expressão do direito penal da severidade, 2003.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA243
Luís Roberto Barroso56Sobre o caso italiano, v. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: “O Código Civil certamenteperdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sist<strong>em</strong>a, tanto nos seus aspectos maistradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é des<strong>em</strong>penhado de maneiracada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional”. Sobre o caso brasileiro, vejam-se, dentre outros:Maria Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitucional, Revista de Direito Civil65:21; e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados microssist<strong>em</strong>as e a Constituição: Pr<strong>em</strong>issas para umareforma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.), Probl<strong>em</strong>as de direito civil-constitucional, 2001.57O novo Código Civil, com início de vigência <strong>em</strong> 2003, foi duramente criticado por setores importantesda doutrina civilista. Gustavo Tepedino referiu-se a ele como “retrógrado e d<strong>em</strong>agógico” acrescentando:“Do Presidente da República, espera-se o veto; do Judiciário que t<strong>em</strong>pere o desastre”(Revista trimestralde dirieto civil 7, 2001, Editorial). Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, consideraraminconstitucional o projeto de Código Civil, <strong>em</strong> parecer publicado sob o título Um projeto de CódigoCivil na contramão da Constituição, Revista trimestral de direito civil 4:243, 2000, por não traduzir asupr<strong>em</strong>acia da dignidade humana sobre os aspectos patrimoniais e por violar o princípio da vedação doretrocesso. Em sentido contrário, v. Judith Martins Costa, O direito privado como um “sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong>construção”. In: www.jus.com.br, visitado <strong>em</strong> 4 ago. 2005; e Miguel Reale, Visão geral do novo Código Civil.In: www.jus.com.br, visitado <strong>em</strong> 4 ago. 2005 e O novo Código Civil e seus críticos. In: www.jus.com.br,visitado <strong>em</strong> 4 ago. 2005.58J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 45: “A principal manifestaçãoda pre<strong>em</strong>inência normativa da Constituição consiste <strong>em</strong> que toda a ord<strong>em</strong> jurídica deve ser lida à luz delae passada pelo seu crivo”. V. também, Paulo Ricardo Schier, Filtrag<strong>em</strong> constitucional, 1999.59Isso quando não prefira o Supr<strong>em</strong>o Tribunal produzir uma decisão integrativa, a ex<strong>em</strong>plo da sentençaaditiva do direito italiano. Esta atuação envolve a s<strong>em</strong>pre controvertida questão da atuação comolegislador positivo (v. infra).60Relativamente a esta segunda possibilidade, v. Luís Roberto Barroso, Interpretação e aplicação daConstituição, 2004, p. 189.61Nesse sentido, v. STF, DJU 15 abr. 1988, Rp 1.417-DF, Rel. Min. Moreira Alves: “Ao declarar ainconstitucionalidade de uma lei <strong>em</strong> tese, o STF – <strong>em</strong> sua função de Corte Constitucional – atua comolegislador negativo, mas não t<strong>em</strong> o poder de agir como legislador positivo, para criar norma jurídicadiversa da instituída pelo Poder Legislativo”. Passa-se ao largo, nesta instância, da discussão maisminuciosa do t<strong>em</strong>a, que abriga inúmeras complexidades, inclusive e notadamente <strong>em</strong> razão doreconhecimento de que juízes e tribunais, <strong>em</strong> múltiplas situações, des<strong>em</strong>penham uma atividade de coparticipaçãona criação da norma.62A doutrina mais moderna t<strong>em</strong> traçado uma distinção entre enunciado normativo e norma, baseadana pr<strong>em</strong>issa de que não há interpretação <strong>em</strong> abstrato. Enunciado normativo é o texto, o relato contido nodispositivo constitucional ou legal. Norma, por sua vez, é o produto da aplicação do enunciado a umadeterminada situação, isto é, a concretização do enunciado. De um mesmo enunciado é possível extrairdiversas normas. Por ex<strong>em</strong>plo: do enunciado do art. 5º, LXIII da Constituição – o preso t<strong>em</strong> direito depermanecer calado – extra<strong>em</strong>-se normas diversas, inclusive as que asseguram o direito à não autoincriminaçãoao interrogado <strong>em</strong> geral (STF, DJU 14 dez. 2001, HC 80.949, Rel. Min. Sepúlveda Pertence)e até ao depoente <strong>em</strong> CPI (STF, DJU 16 fev. 2001, HC 79.812, Rel. Min. Celso de Mello) . Sobre o t<strong>em</strong>a,v. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 270 e ss.; Friedrich Müller, Métodos de trabalhodo direito constitucional, Revista da <strong>Faculdade</strong> de Direito da UFRGS, Edição especial com<strong>em</strong>orativa dos 50anos da Lei Fundamental da República Federal da Al<strong>em</strong>anha, 1999, p. 45 e ss.; Riccardo Guastini, Distinguendo.Studi di teoria e metateoria del diritto, 1996, p. 82-3; e Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 2003, p. 13.63Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal al<strong>em</strong>ão: “Ao juiz não é permitido mediante‘interpretação conforme a Constituição’ dar um significado diferente a uma lei cujo teor e sentidoresulta evidente” (1 BvL 149/52-33, 11 jun. 1958); na do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal brasileiro: “se a únicainterpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívocoque o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme aConstituição, que implicaria, <strong>em</strong> verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legisladorpositivo” (STF, DJU 15 abr. 1988, Rp 1.417-7/DF, Rel. Min. Moreira Alves).64Pietro Perlingieri, Perfis de direito civil, 1997; Maria Celina Bodin de Moraes: A caminho de um direitocivil constitucional, Revista de Direito Civil 65:23, 1993; A constitucionalização do direito civil, Revista deDireito Comparado Luso-brasileiro 17:76, 1999; Danos à pessoa humana: Uma leitura civil-constitucional dos244n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)danos morais, 2003; Conceito de dignidade humana: Substrato axiológico e conteúdo normativo. In:Ingo Wolfgang Sarlet, Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003; Gustavo Tepedino: T<strong>em</strong>asde direito civil, 2004; Probl<strong>em</strong>as de direito civil constitucional (coord.), 2000; O direito civil e a legalidadeconstitucional. In: Revista Del Rey Jurídica 13:23, 2004; Luiz Edson Fachin: Repensando fundamentos dodireito civil brasileiro cont<strong>em</strong>porâneo (coord.), 1998; Teoria crítica do direito civil, 2000; Heloísa HelenaBarboza, Perspectivas do direito civil brasileiro para o próximo século, Revista da <strong>Faculdade</strong> de Direito,UERJ, 1998-99; Teresa Negreiros: Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé,1998; Teoria do contrato: Novos paradigmas, 2002; Judith Martins Costa (org.), A reconstrução do direitoprivado, 2002; Paulo Luiz Neto Lobo, Constitucionalização do direito civil, Revista de Direito ComparadoLuso-brasileiro 17:56, 1999; Renan Lotufo, Direito civil constitucional, cad. 3, 2002; Michel Verpeaux (org.),Code Civil et Constitution(s), 2005.65Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 1999, p. 26; e Caio Mário da Silva Pereira,Instituições de direito civil, v. I, 2004, p. 18.66A primeira parte da frase (“Ont<strong>em</strong> os Códigos; hoje as Constituições”) foi pronunciada por PauloBonavides, ao receber a medalha Teixeira de Freitas, no Instituto dos Advogados Brasileiros, <strong>em</strong> 1998.O compl<strong>em</strong>ento foi feito por Eros Roberto Grau, ao receber a mesma medalha, <strong>em</strong> 2003, <strong>em</strong> discursopublicado <strong>em</strong> avulso pelo IAB: “Ont<strong>em</strong>, os códigos; hoje, as Constituições. A revanche da Grécia sobreRoma, tal como se deu, <strong>em</strong> outro plano, na evolução do direito de propriedade, antes justificado pelaorig<strong>em</strong>, agora legitimado pelos fins: a propriedade que não cumpre sua função social não mereceproteção jurídica qualquer”.67Para este fim, v. Gustavo Tepedino (org.), Probl<strong>em</strong>as de direito civil constitucional, 2000, obra coletiva naqual se discute a constitucionalização do direito civil <strong>em</strong> domínios diversos, incluindo o direito dasobrigações, as relações de consumo, o direito de propriedade e o direito de família. Sobre o t<strong>em</strong>aespecífico da boa-fé objetiva, vejam-se Judith Martins-Costa, A boa-fé no direito privado, 1999; e TeresaNegreiros, Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé, 1998.68Este é o título do celebrado trabalho de Celso Lafer, A reconstrução dos direitos humanos, 1988. Sobreo t<strong>em</strong>a, v. tb. Antônio Augusto Cançado Trindade, A proteção internacional dos direitos humanos: Fundamentosjurídicos e instrumentos básicos, 1991.69O conteúdo jurídico da dignidade humana se relaciona com a realização dos direitos fundamentaisou humanos, nas suas três dimensões: individuais, políticos e sociais. Sobre o t<strong>em</strong>a, vejam-se Ana Paulade Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios: O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002; Ingo Sarlet,Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2004; José Afonso da Silva, Dignidade da pessoahumana como valor supr<strong>em</strong>o da d<strong>em</strong>ocracia, Revista de Direito Administrativo 212:89, 1998; Carmen LúciaAntunes Rocha, O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Revista Interesse Público4:2, 1999. Vejam-se dois excertos representativos do entendimento dominante: José Carlos Vieira deAndrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa, 1998, p. 102: “[O] princípio da dignidade dapessoa humana está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos eliberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadorese direitos a prestações sociais”; e Daniel Sarmento, A ponderação de interesses na Constituição brasileira,2000, p. 59-60, “O princípio da dignidade da pessoa humana representa o epicentro axiológico da ord<strong>em</strong>constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atosestatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolv<strong>em</strong> no seio da sociedade civile do mercado”.70Como, e.g., na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, na Constituição italiana de1947, na Constituição al<strong>em</strong>ã de 1949, na Constituição portuguesa de 1976 e na Constituição espanholade 1978.71Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Ana Paula de Barcellos, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio dadignidade da pessoa humana, 2002, p. 305: “O conteúdo básico, o núcleo essencial do princípio dadignidade da pessoa humana, é composto pelo mínimo existencial, que consiste <strong>em</strong> um conjunto deprestações materiais mínimas s<strong>em</strong> as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra <strong>em</strong> situaçãode indignidade. (...) Uma proposta de concretização do mínimo existencial, tendo <strong>em</strong> conta a ord<strong>em</strong>constitucional brasileira, deverá incluir os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistênciano caso de necessidade e ao acesso à justiça”.72Em denso estudo, Maria Celina Bodin de Moraes, Conceito de dignidade humana: Substratoaxiológico e conteúdo normativo. In: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição, direitos fundamentais eREVISTA OPINIÃO JURÍDICA245
Luís Roberto Barrosodireito privado, 2003, decompõe o conteúdo jurídico da dignidade humana <strong>em</strong> quatro princípios: igualdade,integridade física e moral (psicofísica), liberdade e solidariedade.73O termo foi colhido <strong>em</strong> Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 33. Aparent<strong>em</strong>ente, o primeiroa utilizá-lo foi Carmine Donisi, Verso la ‘depatrimonializzazione’ del diritto privato. In: Rassegna di dirittocivile 80, 1980 (conforme pesquisa noticiada <strong>em</strong> Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas,2004, p. 115).74Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, Um projeto de Código Civil na contramão daConstituição, Revista trimestral de direito civil 4:243, 2000: “(A) aferição da constitucionalidade de umdiploma legal, diante da repersonalização imposta a partir de 1988, deve levar <strong>em</strong> consideração a prevalênciada proteção da dignidade humana <strong>em</strong> relação às relações jurídicas patrimoniais”. A respeito darepersonalização do direito civil, v. também Adriano de Cupis, Diritti della personalità, 1982.75Sobre este t<strong>em</strong>a, v. duas teses de doutorado desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-graduação<strong>em</strong> Direito Público da UERJ, ambas aprovadas com distinção e louvor e publicadas <strong>em</strong> edição comercial:Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004; e Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitosfundamentais e interpretação constitucional, 2005. Aliás, trabalhos de excelente qualidade têm sido produzidossobre a matéria, dentre os quais Wilson Steinmetz, A vinculação dos particulares a direitos fundamentais,2004; Ingo Wolfgang Sarlet (org.), Constituição, direitos fundamentais e direito privado, 2003; RodrigoKaufmann, Dimensões e perspectivas da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, 2003 (dissertação d<strong>em</strong>estrado apresentada à Universidade de Brasília); Luís Virgílio Afonso da Silva, A constitucionalizaçãodo direito: Os direitos fundamentais nas relações entre particulares, 2004, mimeografado, tese de livredocênciaapresentada na Universidade de São Paulo – USP; André Rufino do Vale, Eficácia dos direitosfundamentais nas relações privadas, 2004; e Thiago Luís Santos Sombra, A eficácia dos direitos fundamentaisnas relações jurídico-privadas, 2004.76Vejam-se, ex<strong>em</strong>plificativamente, algumas delas: a) pode um clube de futebol impedir o ingresso <strong>em</strong>seu estádio de jornalistas de um determinado veículo de comunicação que tenha feito críticas ao time(liberdade de trabalho e de imprensa)?; b) pode uma escola judaica impedir o ingresso de crianças nãojudias (discriminação <strong>em</strong> razão da religião)?; c) pode o <strong>em</strong>pregador prever no contrato de trabalho da<strong>em</strong>pregada a d<strong>em</strong>issão por justa causa <strong>em</strong> caso de gravidez (proteção da mulher e da procriação)?; d)pode o locador recusar-se a firmar o contrato de locação porque o pretendente locatário é muçulmano(de novo, liberdade de religião)?; e) pode um jornalista ser d<strong>em</strong>itido por ter <strong>em</strong>itido opinião contráriaà do dono do jornal (liberdade de opinião)?77Para um aprofundamento do t<strong>em</strong>a, v. Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004;e Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretação constitucional, 2005.78No caso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, esta é uma das principais linhas do Programade Pós-graduação <strong>em</strong> Direito Civil, onde foram pioneiros doutrinadores como Gustavo Tepedino, MariaCelina Bodin de Moraes e Heloísa Helena Barbosa. Na Universidade Federal do Paraná, destacam-seos trabalhos do Professor Luiz Edson Fachin. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, daProfessora Judith Martins Costa. Na PUC de São Paulo, do Professor Renan Lotufo. Na UniversidadeFederal de Alagoas, Paulo Netto Lôbo.79Gustavo Tepedino, O direito civil e a legalidade constitucional, Revista Del Rey Jurídica 13:23, 2004:“Ao contrário do cenário dos anos 80, não há hoje civilista que negue abertamente a eficácia normativada Constituição e sua serventia para, ao menos de modo indireto, auxiliar na interpretação construtivada norma infraconstitucional”. Em seguida, <strong>em</strong> preciosa síntese, identifica o autor as quatro objeçõesmais freqüentes à aplicação da Constituição às relações de direito civil: a) não cabe ao constituinte, masao legislador, que constitui uma instância mais próxima da realidade dos negócios, a regulação daautonomia privada; b) a baixa densidade normativa dos princípios constitucionais propiciaria excessivadiscricionariedade aos magistrados; c) a estabilidade milenar do direito civil restaria abalada pelainstabilidade do jogo político-constitucional; d) o controle axiológico das relações de direito civil, paraalém dos limites claros do lícito e do ilícito, significaria desmesurada ingerência na vida privada.80Sobre as transformações do direito administrativo na quadra atual, v. Diogo de Figueiredo MoreiraNeto: Sociedade, Estado e administração pública, 1996; Mutações do direito administrativo, 2000; e Direitoregulatório, 2003; Caio Tácito, O retorno do pêndulo: Serviço público e <strong>em</strong>presa privada. O ex<strong>em</strong>plobrasileiro, Revista de direito administrativo 202:1, 1995; Eros Roberto Grau, A ord<strong>em</strong> econômica na Constituiçãode 1988, 1990; Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 1998; Maria Sylvia di Pietro, Parcerias naAdministração Pública, concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, 1999; Carlos Ari Sundfeld,246n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)Direito administrativo ordenador, 2003; Patrícia Batista, Transformações do direito administrativo, 2003;Marcos Juruena, Desestatização, privatização, concessões e terceirizações, 2000; Paulo Modesto, A reformada previdência e a definição de limites de r<strong>em</strong>uneração e subsídio dos agentes públicos no Brasil. In:Direito público: estudos <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao professor Adilson Abreu Dallari, 2004; Humberto Ávila, Repensandoo “princípio da supr<strong>em</strong>acia do interesse público sobre o particular”. In: O direito público <strong>em</strong> t<strong>em</strong>os de crise– Estudos <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> a Ruy Rub<strong>em</strong> Ruschel, 1999; Alexandre Aragão, Agências Reguladoras, 2002;Gustavo Binenbojm, Da supr<strong>em</strong>acia do interesse público ao dever de proporcionalidade: Um novoparadigma para o direito administrativo, Revista de direito administrativo 239:1, 2005. V. tb. Luís RobertoBarroso: Modalidades de intervenção do Estado na ord<strong>em</strong> econômica. Regime jurídico das sociedadesde economia mista. In: T<strong>em</strong>as de direito constitucional, t. I, 2002; A ord<strong>em</strong> econômica constitucional e oslimites à atuação estatal no controle de preços. In: T<strong>em</strong>as de direito constitucional, t. II, 2003; Regimeconstitucional do serviço postal. Legitimidade da atuação da iniciativa privada. In: Id<strong>em</strong>; Agênciasreguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade d<strong>em</strong>ocrática. In: Id<strong>em</strong>; Para aformação da doutrina administravista no Brasil, preste-se a homenag<strong>em</strong> devida e merecida a MiguelSeabra Fagundes, O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, 1 a edição de 1957, e Hely LopesMeirelles, Curso de direito administrativo brasileiro, 1 a edição de 1964. Caio Tácito, além de escritos einúmeros pareceres, dirige desde 1993 a Revista de Direito Administrativo, a mais antiga e prestigiosapublicação na matéria. Celso Antônio Bandeira de Mello, El<strong>em</strong>entos de direito administrativo, 1 a edição de1980, e, depois, Curso de direito administrativo, teve influência decisiva no desenvolvimento de um direitoadministrativo na perspectiva da cidadania e não da Administração.81Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Patrícia Batista, Transformações do direito administrativo, 2003, p. 36-7.82A propósito, v. o célebre artigo de Georges Vedel, Discontinuité du droit constituionnel et continuitédu droit administratif. In: Mélanges Waline, 1974. Sobre o t<strong>em</strong>a, v. também Louis Favoreu, Laconstitutionnalisation du droit. In: Bertrand Mathieu e Michel Verpeaux, La constitutionnalisation desbranches du droit, 1998, p. 182.83V. por todos, Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 1993, p. 31. Para uma visãoseveramente crítica da orig<strong>em</strong> e evolução do direito administrativo, v. Gustavo Binenbojm, Da supr<strong>em</strong>aciado interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo,Revista de Direito Administrativo 239:1, 2005.84V. Patrícia Batista, Transformações do direito administrativo, 2003, p. 74.85A Lei nº 9.784, de 29.01.99, que regula o processo administrativo no plano federal, enuncia comoprincípios da Administração Pública, dentre outros, os da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade,proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público eeficiência.86V. Luís Roberto Barroso, Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidaded<strong>em</strong>ocrática. In: T<strong>em</strong>as de direito constitucional, t. II, 2003, p. 303-4.87As agências reguladoras, como categoria abstrata, não receberam disciplina constitucional. O textoda Constituição, todavia, faz menção a duas delas: a de telecomunicações (art. 21, XI) e a de petróleo(art. 177, § 2º, III).88Sobre este t<strong>em</strong>a específico, v. os projetos de doutoramento de Gustavo Binenbojm, Direitos fundamentais,d<strong>em</strong>ocracia e Administração Pública, 2003, e de Arícia Corrêa Fernandes, Por uma releitura do princípio dalegalidade administrativa e da reserva de Administração, 2003, ambos apresentados ao Programa de Pósgradução<strong>em</strong> Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob minha orientação. V. tb.V. Patrícia Batista, Transformações do direito administrativo, 2003; e Gustavo Binenbojm, Da supr<strong>em</strong>aciado interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo,Revista de Direito Administrativo 239:1, 2005.89Esta classificação, de orig<strong>em</strong> italiana, é pouco diss<strong>em</strong>inada na doutrina e na jurisprudência brasileiras.V. Renato Alessi, Sist<strong>em</strong>a Istituzionale del diritto administrativo italiano, 1960, p. 197, apud Celso AntônioBandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 2003, p. 57. Depois de Celso Antônio, outros autoresutilizaram esta distinção. V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Curso de direito administrativo, 1997, p.429 e ss..90Para um aprofundamento dessa discussão, v. meu prefácio ao livro de Daniel Sarmento (org.),Interesses públicos versus interesses privados: Desconstruindo o princípio de supr<strong>em</strong>acia do interesse público,2005. V. tb., naturalmente, o próprio livro, do qual constam textos de grande valia sobre o t<strong>em</strong>a, escritosREVISTA OPINIÃO JURÍDICA247
Luís Roberto Barrosopor Humberto Ávila, Paulo Ricardo Schier, Gustavo Binenbojm, Daniel Sarmento e Alexandre Aragão.O texto de Humberto Ávila foi pioneiro na discussão da matéria. Sob outro enfoque, merece referênciao trabalho de Fábio Medina Osório, Existe uma supr<strong>em</strong>acia do interesse público sobre o privado nodireito brasileiro?, Revista de Direito Administrativo 220:107, 2000.91Sobre princípios constitucionais da Administração Pública, v. Carmen Lúcia Antunes Rocha, Princípiosconstitucionais da Administração Pública, 1994; Romeu Bacellar, Princípios constitucionais do processoadministrativo disciplinar, 1998; Juarez Freitas, O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais,1999; Ruy Samuel Espíndola, Princípios constitucionais e atividade jurídico-administrativa: Anotações<strong>em</strong> torno de questões cont<strong>em</strong>porâneas, Interesse Público 21:57, 2003.92Não é possível aprofundar o t<strong>em</strong>a, que é rico e intrincado, s<strong>em</strong> um desvio que seria inevitavelmentelongo e descabido nas circunstâncias. Vejam-se, sobre a questão: Pietro Perlingieri, Perfis de direito civil,1997, p. 17; Maria Celina Bodin de Moraes, A caminho de um direito civil constitucional, Revista deDireito Civil 65:23, 1993, p. 25; e Gustavo Tepedino, Pr<strong>em</strong>issas metodológicas para a constitucionalizaçãodo direito civil. In: T<strong>em</strong>as de direito civil, 2004, p. 19: “Daí a inevitável alteração dos confins entre o direitopúblico e o direito privado, de tal sorte que a distinção deixa de ser qualitativa e passa a ser quantitativa,n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre se podendo definir qual exatamente é o território do direito público e qual o território dodireito privado. Em outras palavras, pode-se provavelmente determinar os campos do direito público oudo direito privado pela prevalência do interesse público ou do interesse privado, não já pela inexistênciade intervenção pública nas atividades de direito privado ou pela exclusão da participação do cidadãonas esferas da administração pública. A alteração t<strong>em</strong> enorme significado hermenêutico, e é preciso quevenha a ser absorvida pelos operadores”.93Como, por ex<strong>em</strong>plo, nos casos de racismo, tortura, ação de grupos armados contra a ord<strong>em</strong> constitucional,crimes ambientais e violência contra a criança, dentre outras referências expressas. V. arts. 5º, XLI,XLII, XLIII, XLIV, 7º, X, 225, § 3º e 227, § 4º.94Como por ex<strong>em</strong>plo: “Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, porquaisquer de suas opiniões, palavras e votos”; “Art. 5º. (...) XVI – todos pod<strong>em</strong> reunir-se pacificamente,s<strong>em</strong> armas, <strong>em</strong> locais abertos ao público, independent<strong>em</strong>ente de autorização (...); XVII – é plena aliberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.95É o caso de tipos previstos no Código Penal (CP), como os de sedução (art. 217), adultério (art. 240)ou de escrito obsceno, assim descrito: “Art. 234. Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob suaguarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura,estampa ou qualquer objeto obsceno: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa”.96Duas decisões do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal ex<strong>em</strong>plificam o argumento. Na primeira, concedeu-sehabeas corpus <strong>em</strong> favor de um jov<strong>em</strong> acusado de estupro, por haver mantido relação sexual com umamenina de 12 anos. Por maioria, decidiu a Corte que a presunção de violência do art. 224 do CP érelativa e que o crime não se configurava, à vista de el<strong>em</strong>entos do caso concreto – consentimento davítima e sua aparência de ter mais de 14 anos – que tornariam extr<strong>em</strong>amente injusta a aplicação literaldo dispositivo do Código Penal (STF, DJU 20 set. 1996, HC 73662-MG, Rel. Min. Marco Aurélio). Numoutro caso, a Corte trancou a ação penal promovida contra ex-Prefeita Municipal, pela contratação deboa-fé, mas s<strong>em</strong> concurso público, de um único gari. O fundamento utilizado foi a insignificância jurídicado ato apontado como delituoso, gerando falta de justa causa para a ação penal (STF, DJU 11 set. 1998, HC77003-4, Rel. Min. Marco Aurélio). Sobre o t<strong>em</strong>a da interpretação conforme a eqüidade, de modo aevitar a incidência iníqua de determinada regra, v. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade eatividade jurisdicional, 2005.97O presente parágrafo beneficia-se da discussão de idéias trazidas por Valéria Caldi de Magalhães,Constitucionalização do direito e controle de constitucionalidade das leis penais: Algumas considerações,mimeografado, 2005, trabalho de final de curso apresentado na disciplina Interpretação Constitucional, doPrograma de Pós-graduação <strong>em</strong> Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.Averbou a autora: “Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o funda e autoriza, a Constituição reduz e limita o direitopenal, na medida <strong>em</strong> que só autoriza a criminalização de condutas que atinjam de modo sensível umb<strong>em</strong> jurídico essencial para a vida <strong>em</strong> comunidade. Este é o papel do direito penal: atuar como últimaratio, quando seja absolutamente necessário e não haja outros mecanismos de controle social aptos aimpedir ou punir aquelas lesões”.98Lênio Luiz Streck e Luciano Feldens, Crime e Constituição, 2003, p. 44-5: “No campo do Direito Penal,<strong>em</strong> face dos objetivos do Estado D<strong>em</strong>ocrático de Direito estabelecidos expressamente na Constituição248n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)(erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regionais, direito à saúde, proteção domeio-ambiente, proteção integral à criança e ao adolescente, etc.), os delitos que dev<strong>em</strong> ser penalizadoscom (maior) rigor são exatamente aqueles que, de uma maneira ou outra, obstaculizam/dificultam/imped<strong>em</strong> a concretização dos objetivos do Estado Social e D<strong>em</strong>ocrático. Entend<strong>em</strong>os ser possível, assim,afirmar que os crimes de sonegação de tributos, lavag<strong>em</strong> de dinheiro e corrupção (para citar apenasalguns) merec<strong>em</strong> do legislador um tratamento mais severo que os crimes que diz<strong>em</strong> respeito às relaçõesmeramente interindividuais (desde que cometidos s<strong>em</strong> violência ou grave ameaça)”.99É o caso da disciplina penal dada pela Lei nº 9.677/98 (Lei dos R<strong>em</strong>édios) à adulteração de cosméticos.O delito é equiparado à adulteração de medicamentos que, por sua vez, prevê penas mínimas superioresà do crime de homicídio para a falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinadoa fins terapêuticos ou medicinais (CP, art. 273 e § 1º, a). Sobre o t<strong>em</strong>a, v. Miguel Reale Júnior, Ainconstitucionalidade da Lei dos R<strong>em</strong>édios, Revista dos Tribunais 763:415, 1999. Outro ex<strong>em</strong>plo é o da Leinº 9.437/97, que <strong>em</strong> seu art. 10 pune com penas idênticas o porte de arma de fogo e o porte de arma debrinquedo. Sobre a proporcionalidade no âmbito do direito penal, v. Ingo Sarlet, Constituição eproporcionalidade: O direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência,Revista de Estudos Criminais 12:86, 2003.100Valéria Caldi de Magalhães, Constitucionalização do direito e controle de constitucionalidade das leis penais:algumas considerações, mimeografado, 2005, p. 15, considera de “duvidosa constitucionalidade” a previsãolegal de extinção da punibilidade de crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária, <strong>em</strong> razão do pagamento dotributo antes e, até mesmo, após o recebimento da denúncia. A matéria é disciplinada pelo art. 34 da Leinº 9.249/95 e pelo art. 9º da Lei nº 10.684/2003.101STF, ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio. Por 7 votos a 4, o STF decidiu conhecer da ação eapreciar-lhe o mérito. Alguns dos argumentos apresentados pela autora da ação, a ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores na Saúde foram os seguintes: (i) atipicidade do fato: pelo direito positivobrasileiro, a vida se extingue pela morte encefálica; o feto anencefálico não chega sequer a ter vidacerebral (princípio da legalidade); (ii) exclusão da punibilidade: o Código Penal determina a nãopunição nos casos de risco de morte para a mãe e de estupro; tais situações, por envolver<strong>em</strong> feto compotencialidade de vida, são mais drásticas do que a da anencefalia, que só não foi prevista expressamentepor inexistir<strong>em</strong> recursos tecnológicos de diagnóstico, quando da elaboração do Código Penal, <strong>em</strong> 1940(interpretação evolutiva); (iii) violação do princípio da dignidade da pessoa humana, tanto na versão daintegridade física quanto psíquica, pela imposição de sofrimento imenso e inútil à mulher, obrigando-aa levar a termo uma gestação inviável.102A Constituição de 1988 manteve o sist<strong>em</strong>a eclético, híbrido ou misto, combinando o controle por viaincidental e difuso (sist<strong>em</strong>a americano), que vinha desde o início da República, com o controle por viaprincipal e concentrado, implantado com a EC n° 16/65 (sist<strong>em</strong>a continental europeu). V. Luís RobertoBarroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro, 2004.103O t<strong>em</strong>a é ainda pouco explorado na doutrina. V., no entanto, o trabalho-pesquisa elaborado por LuizWerneck Vianna, Maria Alice de Carvalho, Manuel Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, Ajudicialização da política e das relações sociais no Brasil, 1999. E também, para duas visões diversas, LuizWerneck Vianna (org.), A d<strong>em</strong>ocracia e os três Poderes no Brasil, 2002, e Rogério Bastos Arantes,Ministério Público e política no Brasil, 2002. Para uma análise crítica desses dois trabalhos, v. Débora AlvesMaciel e Andrei Koerner, Sentidos da judicialização da política: Duas análises, Lua Nova 57:113, 2002.104No direito comparado, no qual o t<strong>em</strong>a é discutido de longa data, v., ex<strong>em</strong>plificativamente: Hamilton,Madison e Jay, The federalist papers, 1981 (a publicação original foi entre 1787 e 1788), especialmente OFederalista n° 78; John Marshall, voto <strong>em</strong> Marbury v. Madison [5 U.S. (1 Cranch)], 1803; Hans Kelsen,Quién debe ser el defensor de la Constitución, 1931; Carl Schmitt, La defensa de la constitución, 1931; JohnHart Ely, D<strong>em</strong>ocracy and distrust, 1980; Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986; RonaldDworkin, A matter of principle, 1985; John Rawls, A theory of justice, 1999; Jürgen Habermas, Direito ed<strong>em</strong>ocracia: Entre facticidade e validade, 1989; Bruce Ackerman, We the people: Foundations, 1993; CarlosSantiago Nino, La Constitución de la d<strong>em</strong>ocracia deliberativa, 1997. Na literatura nacional mais recente,vejam-se: Bianca Stamato Fernandes, Jurisdição constitucional, 2005; Gustavo Binenbojm, A nova jurisdiçãoconstitucional brasileira, 2004; Cláudio de Souza Pereira Neto, Jurisdição constitucional, d<strong>em</strong>ocracia e racionalidadeprática, 2002; José Adércio Leite Sampaio, A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional, 2002.105V. Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticaspúblicas, Revista de direito administrativo 240, 2005; e Marcos Maselli Pinheiro Gouvêa, O controle judicialdas omissões administrativas, 2003. Abordagens iniciais da questão pod<strong>em</strong> ser encontradas <strong>em</strong> LuísREVISTA OPINIÃO JURÍDICA249
Luís Roberto BarrosoRoberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003; e Ingo Wolfgang Sarlet, Aeficácia dos direitos fundamentais, 2004.106A expressão “dificuldade contra-majoritária” (the counter-majoritarian difficulty) foi cunhada porAlexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16, cuja 1 a . edição é de 1962.107Sobre o t<strong>em</strong>a, vejam-se Cláudio Pereira de Souza Neto, Jurisdição, d<strong>em</strong>ocracia e racionalidade prática,2002; José Adércio Leite Sampaio, A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional, 2002; BiancaStamato, Jurisdição constitucional, 2005.108V., especialmente, Ana Paula de Barcellos, Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controledas políticas públicas, Revista de direito administrativo 240, 2005. Em duas passagens, sintetiza a autora, d<strong>em</strong>aneira feliz, os dois pólos da questão: “Em um Estado d<strong>em</strong>ocrático, não se pode pretender que aConstituição invada o espaço da política <strong>em</strong> uma versão de substancialismo radical e elitista, <strong>em</strong> que asdecisões políticas são transferidas, do povo e de seus representantes, para os reis filósofos da atualidade:os juristas e operadores do direito <strong>em</strong> geral”. Porém de outra parte: “Se a Constituição contém normasnas quais estabeleceu fins públicos prioritários, e se tais disposições são normas jurídicas, dotadas desuperioridade hierárquica e de centralidade no sist<strong>em</strong>a, hão haveria sentido <strong>em</strong> concluir que a atividadede definição das políticas públicas – que irá ou não realizar esses fins – deve estar totalmente infensaao controle jurídico. Em suma: não se trata da absorção do político pelo jurídico, mas apenas dalimitação do primeiro pelo segundo” (grifos no original).109Os conceitos de teoria e de filosofia constitucional não se confund<strong>em</strong>, mas vêm se aproximando,como notou Cláudio Pereira de Souza Neto, A teoria constitucional e seus lugares específicos: Notassobre o aporte reconstrutivo. In: Direito constitucional cont<strong>em</strong>porâneo: estudos <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao professorPaulo Bonavides, 2005, p. 87 e ss.: “Tradicionalmente, a teoria da constituição se destinava à identificação,análise e descrição do que ‘é’ uma constituição. Hoje, contudo, abrange também o campo das indagaçõesque vers<strong>em</strong> sobre o que a constituição ‘deve ser’, i. e., incorpora dimensões racional-normativas, as quaisse situam na seara do que se v<strong>em</strong> denominando ‘filosofia constitucional’”.110Em Dred Scott vs. Sandford [60 U.S. (10 How.) 393], julgado <strong>em</strong> 1857, a Supr<strong>em</strong>a Corte considerouser<strong>em</strong> inconstitucionais tanto as leis estaduais como as federais que pretendess<strong>em</strong> conferir cidadaniaaos negros, que eram vistos como seres inferiores e não tinham proteção constitucional. Na maiscondenada decisão do constitucionalismo americano, a Supr<strong>em</strong>a Corte alinhou-se com a defesa daescravidão. Muitos anos se passaram até que o Tribunal recuperasse sua autoridade moral e política. V.Nowack, Rotunda e Young, Constitutional law, 2000, p. 687.111A partir do final do século XIX, a Supr<strong>em</strong>a Corte fez-se intérprete do pensamento liberal, fundadona idéia do laissez faire, pelo qual o desenvolvimento é melhor fomentado com a menor interferênciapossível do Poder Público. A decisão que melhor simbolizou esse período foi proferida <strong>em</strong> 1905 no casoLochner vs. New York (198 U.S. 45), na qual, <strong>em</strong> nome da liberdade de contrato, considerou-seinconstitucional uma lei de Nova York que limitava a jornada de trabalho dos padeiros. Sob o mesmofundamento, a Supr<strong>em</strong>a Corte invalidou inúmeras outras lei. Esse período ficou conhecido como eraLochner.112Eleito <strong>em</strong> 1932, após a crise de 1929, Franklin Roosevelt deflagrou o New Deal, programa econômicoe social caracterizado pela intervenção do Estado no domínio econômico e pela edição de amplalegislação social. Com base na doutrina desenvolvida na era Lochner, a Supr<strong>em</strong>a Corte passou a declararinconstitucionais tais leis, gerando um confronto com o Executivo. Roosevelt chegou a enviar umprojeto de lei ao Congresso, ampliando a composição da Corte – Court-packing plan –, que não foiaprovado. A Supr<strong>em</strong>a Corte, no entanto, veio a mudar sua orientação e abdicou do exame do mérito dasnormas de cunho econômico e social, tendo por marco a decisão proferida <strong>em</strong> West Coast vs. Parrish(300 U.S. 379), datada de 1937.113Veja-se o registro dessa mudança <strong>em</strong> Larry D. Kramer, Popular constitutionalism, circa 2004,California Law Review 92:959, 2004, p. 964-5: “(The Warren Court), for the first time in Americanhistory, gave progressives a reason to see the judiciary as a friend rather than a foe. This had never beena probl<strong>em</strong> for conservatives. Going all the way back to the Federalist era, conservatives had always<strong>em</strong>braced an idea of broad judicial authority, including judicial supr<strong>em</strong>acy, and they continued to doso after Chief Justice Warren took over. For th<strong>em</strong>, the probl<strong>em</strong> with the Warren Court was simply thatits decisions were wrong. (…) Beginning with Robert Bork’s 1968 attack on the Court in FortuneMagazine, many conservatives started to assail the Court using the traditionally liberal rhetoric ofcountermajoritarianism”.250n. 6 - 2005.2
Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil)114Earl Warren presidiu a Supr<strong>em</strong>a Corte de 1953 a 1969; Warren Burger, de 1969 a 1986. Algumasdecisões <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>áticas desses períodos foram: Brown vs. Board of Education (1954), que considerouinconstitucional a política de segregação racial nas escolas públicas; Griswold vs. Connecticut (1965),que invalidou lei estadual que incriminava o uso de pílula anticoncepcional, reconhecendo um direitoimplícito à privacidade; e Roe vs. Wade (1973), que considerou inconstitucional lei estadual quecriminalizava o aborto, mesmo que antes do terceiro mês de gestação. No domínio do processo penal,foram proferidas as decisões marcantes já mencionadas (v. supra), <strong>em</strong> casos como Gideon vs. Wainwright(1963) e Miranda vs. Arizona (1966)115A crítica de viés conservador, estimulada por longo período de governos republicanos, veio <strong>em</strong>baladapor uma corrente doutrinária denominada de originalismo, defensora da idéia pouco consistente de quea interpretação constitucional deveria ater-se à intenção original dos criadores da Constituição. Sobreo t<strong>em</strong>a, v. Robert Bork, The t<strong>em</strong>pting of América, 1990, e William Rehnquist, The notion of a livingConstitution, Texas Law Review 54:693, 1976. Em sentido oposto, v. Morton J. Horwitz, Foreword: theConstitution of change: legal fundamentality without fundamentalism, Harvard Law Review 107:30,1993, e Laurence Tribe, American constitutional law, 2000, p. 302 e s. Para uma análise ampla dessat<strong>em</strong>ática <strong>em</strong> língua portuguesa, v. Bianca Stamato, Jurisdição constitucional, 2005.116Vejam-se alguns textos escritos nos últimos anos. Em favor do “popular constitutionalism”, v.: LarryD. Kramer, The people th<strong>em</strong>selves: Popular constitutionalism and judicial review, 2004; Mark Tushnet, Takingthe Constitution away from the courts, 1999; Jer<strong>em</strong>y Waldron, The dignity of legislation, 1999; Richard D.Parker, “Here the people rule”: A popular constitutionalist manifest, 1994. Em defesa do “judicial review”, v.:Cristopher L. Eisgruber’s, Constitutional self-government, 2001; Erwin Ch<strong>em</strong>erinsky, In defense of judicialreview: A reply to professor Kramer, California Law Review 92:1013, 2004; Frederick Schauer, Judicialsupr<strong>em</strong>acy and the modest Constitution, Californa Law Review 92: 1045.117Christopher L. Eisgruber, Constitutional self-government and judicial review: A reply to five critics,University of San Francisco Law Review 37:115, 2002, p. 119-31.118A jurisdição constitucional legitimou-se, historicamente, pelo inestimável serviço prestado às duasidéias centrais que se fundiram para criar o moderno Estado d<strong>em</strong>ocrático de direito: constitucionalismo(i.e., poder limitado e respeito aos direitos fundamentais) e d<strong>em</strong>ocracia (soberania popular e governo damaioria). O papel da corte constitucional é assegurar que todos estes el<strong>em</strong>entos convivam <strong>em</strong> harmonia,cabendo-lhe, ad<strong>em</strong>ais, a atribuição delicada de estancar a vontade da maioria quando atropele oprocedimento d<strong>em</strong>ocrático ou vulnere direitos fundamentais da minoria. Um bom ex<strong>em</strong>plo foi a decisãodo STF reconhecendo o direito público subjetivo, assegurado às minorias legislativas, de ver instauradaComissão Parlamentar de Inquérito (CPI dos Bingos). Diante da inércia dos líderes partidários <strong>em</strong>indicar representantes de suas agr<strong>em</strong>iações, a Corte concedeu mandado de segurança para que opróprio Presidente do Senado designasse os nomes faltantes. V. Inf. STF 393, MS 24.831, Rel. Min. Celsode Mello, j. 22 jun. 2005.119V. Vital Moreira, O futuro da Constituição. In: Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho,Estudos <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> a Paulo Bonavides, 2001, p. 323: “Na fórmula constitucional primordial, ‘todo poderreside no povo’. Mas a verdade é que, na reformulação de Sternberger, ‘n<strong>em</strong> todo o poder v<strong>em</strong> do povo’.Há o poder econômico, o poder mediático, o poder das corporações sectoriais. E por vezes estes poderessobrepõ<strong>em</strong>-se ao poder do povo”.120Luís Roberto Barroso, Disciplina legal dos direitos do acionista minoritário e do preferencialista.Constituição e espaços de atuação legítima do Legislativo e do Judiciário. In: T<strong>em</strong>as de direito constitucional,t. III, 2005, p. 314-5: “Como já referido, porém, a Constituição não ocupa, n<strong>em</strong> pode pretender ocupartodos os espaços jurídicos dentro do Estado, sob pena de asfixiar o exercício d<strong>em</strong>ocrático dos povos <strong>em</strong>cada momento histórico. Respeitadas as regras constitucionais e dentro do espaço de sentido possíveldos princípios constitucionais, o Legislativo está livre para fazer as escolhas que lhe pareçam melhorese mais consistentes com os anseios da população que o elegeu.A disputa política entre diferentes visões alternativas e plausíveis acerca de como dardesenvolvimento concreto a um princípio constitucional é própria do pluralismo d<strong>em</strong>ocrático. A absorçãoinstitucional dos conflitos pelas diversas instâncias de mediação, com a conseqüente superação da forçabruta, dá o toque de civilidade ao modelo. Mas não é possível pretender derrotar a vontade majoritária,<strong>em</strong> espaço no qual ela deva prevalecer, pela via oblíqua de uma interpretação jurídica s<strong>em</strong> lastroconstitucional. Ao agir assim, o intérprete estaria usurpando tanto o papel do constituinte quanto dolegislador”.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA251
Luís Roberto BarrosoNEW CONSTITUTIONALISM AND THECONSTITUTIONALIZATION OF LAW (THELATE TRIUMPH OF CONSTITUTIONAL LAWIN BRAZIL)ABSTRACTThis article deals with the new point of view imposedby the post-positivism on the paradigms ofConstitutional Law, whose main effects can be seenon legalism, jurisdiction and Constitutional Lawinterpretation.KEYWORDS: New constitutionalism. Post-positivism.Constitutional Law interpretation. Constitutionalismof Law.NÉO-CONSTITUTIONNALISME ETCONSTITUTIONNALISATION DU DROIT - LETRIOMPHE TARDIF DU DROITCONSTITUTIONNEL AU BRÉSIL.RÉSUMÉNous recherchons à analyser les rupturesparadigmatiques que le nouveau droit constitutionnelsubit, sous les auspices du post-positivisme, dont lesprincipaux effets peuvent se ressentir en matière denormativité, juridiction et interprétationconstitutionnelle.MOTS-CLÉS: Neo-constitutionnalisme. Postpositivisme.Interprétation constitutionnelle.Constitutionnalisation du droit.252n. 6 - 2005.2
BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DECLARAÇÃODE CONSTITUCIONALIDADE NA AÇÃO DIRETA DEINCONSTITUCIONALIDADENagibe de Melo Jorge Neto*1 Delimitação do t<strong>em</strong>a. 2 A inesgotabilidade do sentido. 3 Agarantia de acesso à Justiça. 4 Conclusão.RESUMOO artigo critica a declaração de constitucionalidade na AçãoDireta de Inconstitucionalidade face à inesgotabilidade dosentido inerente às normas jurídicas e à garantia de amploacesso à jurisdição.PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalidade. Controle.Declaração. Norma. Sentido. Jurisdição. Acesso. Garantia.Judiciário. Independência.1 DELIMITAÇÃO DO TEMAO art. 24 da Lei n. 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamentoda Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) e da Ação Declaratóriade Constitucionalidade (ADC) perante o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal (STF),fixou a ambivalência da Ação Direta de Inconstitucionalidade ao estabelecerque proclamada a constitucionalidade da norma, será julgada improcedentea ADIn ou procedente eventual Ação Declaratória. Já o art. 28, parágrafoúnico, da mesma Lei estabelece a eficácia erga omnes e o efeitovinculante dessa decisão <strong>em</strong> relação aos órgãos do Poder Judiciário e à AdministraçãoPública federal, estadual e municipal.O caráter ambivalente da ADIn t<strong>em</strong> sido admitido ao argumento principalde que a Ação Declaratória de Constitucionalidade nada mais é queuma ADIn com sinal trocado. Assim se posicionou o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal,no julgamento da Reclamação 1880/SP. Na mesma oportunidade, o*Mestrando <strong>em</strong> Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professor de DireitoConstitucional da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>. Juiz Federal Substituto do Tribunal Regional Federal da 5.ªRegião.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA253
Nagibe de Melo Jorge NetoTribunal assentou a constitucionalidade do art. 28, da Lei n. 9.868/99, quefixa o efeito vinculante, vencidos os Ministros Moreira Alves, Ilmar Galvãoe Marco Aurélio, que votaram pela inconstitucionalidade do efeito vinculantepor ofensa ao princípio da separação de poderes.A matéria, que t<strong>em</strong> importantes reflexos na distribuição de poder e nalegitimidade das decisões proferidas pela Supr<strong>em</strong>a Conte, está longe, contudo,de alcançar o consenso, seja na doutrina nacional, seja na doutrina estrangeira.Lenio Streck afirma que <strong>em</strong> países como Portugal, Espanha, Itália,Bélgica, Irlanda e Áustria “os provimentos denegatórios <strong>em</strong> ação direta deinconstitucionalidade são simplesmente caracterizados como ‘negação deprovimento’ da ação ou recurso”. 1 Os tribunais constitucionais não pronunciamuma declaração de constitucionalidade nesses casos.Gilmar Mendes, ao comentar as decisões no controle abstrato denormas perante a Corte Constitucional Al<strong>em</strong>ã (Bundesverfassungsgericht),afirmaque a Lei Orgânica da Corte Constitucional não disciplinaespecialmente a sentença que declara a constitucionalidade dalei. Fundamentalmente exist<strong>em</strong> duas decisões possíveis: aargüição é declarada inadmissível, isto é, t<strong>em</strong> a suainadmissibilidade declarada, ou o Tribunal constata, na partedispositiva, que a lei é válida ou compatível com a LeiFundamental. 2Mais adiante o autor esclarece os efeitos da declaração deconstitucionalidade:Enquanto a declaração de nulidade importa na cassação da lei,não dispõe a declaração de constitucionalidade de efeito análogo.A validade da lei não depende da declaração judicial e a leivige, após a decisão, tal como vigorava anteriormente.A força de lei (Gesetzeskraft) da decisão da Corte Constitucionalque confirma a constitucionalidade revelar-se-ia probl<strong>em</strong>áticase o efeito vinculante geral, que se lhe reconhece, impedisse queo Tribunal se ocupasse novamente da questão.Por isso, sustenta Vogel que a aplicação do disposto no § 31, (2),da Lei Orgânica do Tribunal, às decisões confirmatórias somentet<strong>em</strong> significado para o dever de publicação, uma vez que a leinão pode atribuir efeitos que não foram previstos pela própriaConstituição.Do contrário, ter-se-ia a possibilidade de que outras pessoas nãovinculadas pela coisa julgada ficass<strong>em</strong> impedidas de questionara constitucionalidade da lei, o que acabaria por atribuir à chamadaeficácia erga omnes (força de lei) o significado de autêntica normaconstitucional. 3254n. 6 - 2005.2
Breves considerações acerca da declaração de constitucionalidade na ação direta de inconstitucionalidadeLenio Streck, citando J.J. Gomes Canotilho, destaca que a Ação Diretade Inconstitucionalidade, quando julgada procedente, retira do mundojurídico a norma impugnada. 4 Com efeito, basta uma incompatibilidade formalou material, dentre as muitas que <strong>em</strong> tese poderiam existir, entre o textonormativo impugnado e o texto constitucional para que seja declarada anulidade da norma. Declarada a inconstitucionalidade, a normainconstitucional, nas palavras de Streck, se nadifica, não podendo mais gerarefeitos.Julgada improcedente a Ação Direta, ao revés, a norma permanece<strong>em</strong> vigor. O estabelecimento de eficácia contra todos e o efeito vinculantedessa decisão importam <strong>em</strong> algumas dificuldades, duas das quais pretend<strong>em</strong>osdestacar. A primeira e mais relevante delas diz respeito ao estabelecimentode um único sentido possível à interpretação da lei, ou, o que é maisgrave, à declaração de constitucionalidade da lei s<strong>em</strong> o estabelecimento dequalquer sentido à norma impugnada. O segundo ponto, intimamente relacionadoao primeiro, diz respeito à legitimação desta decisão dentro do sist<strong>em</strong>ade organização e divisão de poderes estabelecido pela Constituição daRepública Federativa do Brasil de 1988.Dada a brevidade à qual limita-se o presente artigo, limitar-nos-<strong>em</strong>osa analisar esses aspectos exclusivamente com referência à declaração deconstitucionalidade na ADIn. Muito <strong>em</strong>bora os argumentos que serão a seguirapresentados possam também ser opostos à própria Ação Declaratóriade Constitucionalidade, incluí-la como objeto deste estudo tornaria indispensávelo alargamento da discussão para outros tópicos.2 A INESGOTABILIDADE DO SENTIDOO Direito é um objeto cultural e, enquanto tal, prenhe de sentido. Odesvelamento do sentido acontece pelo ato interpretativo <strong>em</strong> uma espiralhermenêutica ao infinito, que parte da pré-compreensão para chegar a umanova compreensão e daí partir novamente 5 . O sentido posto na norma éinesgotável e evolui a partir da própria compreensão dos sujeitos <strong>em</strong> umprocesso dialético infinito. 6 Já para Kelsen,o Direito a aplicar forma [...] uma moldura dentro da qual exist<strong>em</strong>várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direitotodo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, quepreencha esta moldura <strong>em</strong> qualquer sentido possível.[...] Sendo assim, a interpretação de uma lei não devenecessariamente conduzir a uma única solução como sendo aúnica correta, mas possivelmente a várias soluções que – namedida <strong>em</strong> que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têmigual valor, se b<strong>em</strong> que apenas uma delas se torne Direito positivono ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal,especialmente. 7REVISTA OPINIÃO JURÍDICA255
Nagibe de Melo Jorge NetoInocêncio Mártires Coelho também destaca a inesgotabilidade do sentidodas normas jurídicas. Depois de classificar a lei e a Constituição comofenômenos culturais, afirma queos objetos culturais, porque são ontologicamente valiosos, exig<strong>em</strong>para o seu conhecimento um método específico e adequado,<strong>em</strong>pírico-dialético, que se constitui pelo ato gnosiológico dacompreensão, através do qual, no ir e vir ininterrupto damaterialidade do substrato à vivência do seu sentido espiritual,procuramos descobrir o significado das ações ou das criaçõeshumanas. 8Dentro desta perspectiva, a proclamação da constitucionalidade detexto normativo pela decisão que julga improcedente a Ação Direta deInconstitucionalidade t<strong>em</strong> importantes conseqüências. A proclamação daconstitucionalidade importa <strong>em</strong> afirmar que o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federalesquadrinhou todos os sentidos da norma e constatou a sua compatibilidade,<strong>em</strong> todos os casos, com a Constituição Federal. É dizer, o Supr<strong>em</strong>o Tribunal,<strong>em</strong> tais casos, fixa a moldura normativa e nela pretende encarcerar todos osd<strong>em</strong>ais aplicadores do direito.Mas as possibilidades interpretativas da norma, como vimos de ver, sãomúltiplas e o seu sentido, inesgotável. É possível e mesmo provável que, <strong>em</strong>um momento posterior, venham os poderes públicos a dar à norma declaradaconstitucional uma interpretação incompatível com a Constituição. Ness<strong>em</strong>omento, o Poder Judiciário, chamado a atuar, estaria de mãos atadas pelopronunciamento anterior do STF.Um ex<strong>em</strong>plo do que acabamos de expor deu-se com a apreciação daMedida Cautelar na ADC-4/DF. O Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal suspendeuliminarmente, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamentoda Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC-4/DF, a prolaçãode qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a FazendaPública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ouinconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/97. Posteriormente, na Reclamação1136, a mesma Corte viu-se obrigada a decidir que sua decisão anteriornão se aplica à matéria de natureza previdenciária 9 . Ainda que a decisãotenha sido proferida <strong>em</strong> ADC, que não é objeto de nossa análise, e aindaque tenha sido proferida <strong>em</strong> sede liminar, pod<strong>em</strong>-se perceber as dificuldadesque decorr<strong>em</strong> de se atrelar as possibilidades hermenêuticas da Constituiçãoà constitucionalidade de uma norma infraconstitucional.As mesmas objeções que são aqui lançadas contra a declaração deconstitucionalidade <strong>em</strong> sede de ADIn seriam pertinentes contra a declaraçãode constitucionalidade na ADC, mas obt<strong>em</strong>pere-se que a Lei n. 9.868/99, <strong>em</strong> seu art. 14, inc. III, fixou como requisitos para a propositura da ADCa existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição ob-256n. 6 - 2005.2
Breves considerações acerca da declaração de constitucionalidade na ação direta de inconstitucionalidadejeto da ação declaratória. Ainda que n<strong>em</strong> mesmo esse requisito seja capaz deimpedir os danos advindos da fixação de um pretenso sentido unívoco paraqualquer norma que seja, sobreleva notar que, na ADIn, a declaração dosentido único t<strong>em</strong> uma agravante, eis que a ADC pode ser proposta quandoa discussão acerca da norma ainda é muito incipiente, quando a matériaainda não teve oportunidade de ser amplamente debatida quer pela sociedade,quer pela comunidade jurídica.3 A GARANTIA DE ACESSO À JUSTIÇAO art. 5.º, inc. XXXV, da Constituição da República estabelece que“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça adireito”. A garantia do acesso à justiça se restringe aos aspectos formais.Encerra a garantia de ver o pleito apreciado por um juiz imparcial, de acordocom as normas constitucionais e o ordenamento jurídico. Trata-se, ad<strong>em</strong>ais,de princípio que garante a apreciação de lesão ou ameaça a direito subjetivodo cidadão, lesão ocorrida no caso concreto, a qual, <strong>em</strong> muitos casos podenão se conformar com a declaração de constitucionalidade in abstracto deuma lei, proferida pelo Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal.A garantia da jurisdição depende intrinsecamente da liberdade dejulgamento, da inexistência de peias ao livre convencimento do julgador.Estabelecida uma interpretação constitucional abstrata a qual o juiz estariaobrigado a seguir, vê-se malferida a garantia do cidadão a um pronunciamentojudicial imparcial. Como adverte Canotilho, a obrigação de seguir oentendimento de um órgão jurisdicional, ainda que seja o Supr<strong>em</strong>o TribunalFederal, equivaleria à consagração entre nós da stare decisis, o que é estranhoà nossa tradição jurídica romano-germânica. 10Aqui se deve notar a diferença essencial que existe entre a declaraçãode inconstitucionalidade e declaração de constitucionalidade, considerandoque ambas têm eficácia erga omnes e efeito vinculante. Na declaraçãode inconstitucionalidade, a norma é retirada do mundo jurídico, eis quedeclarada a sua nulidade. A retirada da norma do mundo jurídico por ato doSupr<strong>em</strong>o Tribunal Federal é poder que lhe foi atribuído pela própria Constituição.Na declaração de constitucionalidade, a norma preserva-se intactae mais, adquire um status superior ao das d<strong>em</strong>ais normas jurídicas, eis queestá excluída do controle difuso por parte de outros órgãos do Poder Judiciário.Essa nova condição da norma declarada constitucional pelo STF, alémde limitar os poderes do juiz, contraria a tradição que nos filia ao controledifuso desde a primeira Constituição republicana de 1891.Observe-se ad<strong>em</strong>ais que, com a retirada na norma inconstitucionaldo mundo jurídico, o texto constitucional preserva-se intacto. Já a declaraçãode constitucionalidade de algum modo condiciona o texto constitucional,retirando-lhe algo de sua vida e de sua força normativa. A declaraçãoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA257
Nagibe de Melo Jorge Netode constitucionalidade, por sobre vincular os d<strong>em</strong>ais órgãos do Poder Judiciárioe da Administração Pública, acaba por vincular a norma declarada constitucionalao próprio texto constitucional de modo a alterar-lhe definitivamenteou, pelo menos, direcionar-lhe o conteúdo. Pois, declarada constitucionaluma lei, é imperativo que a Constituição seja interpretada de modo aconformar-se a essa lei, e a lei, de modo a conformar-se à Constituição. Assucessivas declarações de constitucionalidade acabariam, desse modo, porenrijecer a Constituição e poderiam levar, <strong>em</strong> última análise, a um enfis<strong>em</strong>aconstitucional.Nessa linha de raciocínio, a declaração de constitucionalidadeass<strong>em</strong>elha-se, pelo menos quanto aos efeitos, ao disposto no art. 96,parágrafo único, da Constituição de 1937. Calha l<strong>em</strong>brar que essa cartaconstitucional, chamada Polaca, serviu de suporte ao Estado Novo,sendo-lhe conveniente o enfraquecimento do Poder Judiciário e a supressãoda garantia de amplo acesso à justiça. Assim dispunha o comandonormativo:Art. 96. No caso de ser declarada a inconstitucionalidade deuma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessáriaao b<strong>em</strong>-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacionalde alta monta, poderá o Presidente da República submetê-lanovamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar pordois terços de votos <strong>em</strong> cada uma das Câmaras, ficará s<strong>em</strong> efeitoa decisão do Tribunal.A comparação pode ser tomada por grosseira, eis que, no caso da declaraçãode constitucionalidade, não há interferência do Poder Legislativo.A independência do Poder Judiciário, entretanto, s<strong>em</strong>pre foi e deve ser entendidacomo a independência de consciência de cada julgador tomado deper si, e não como a independência somente dos órgãos superiores do PoderJudiciário ou do Poder Judiciário tomado como um todo. Essa postura decorredo princípio d<strong>em</strong>ocrático, do princípio do devido processo legal e da garantiade amplo acesso ao Judiciário. É inadmissível, por essa razão, que osórgãos superiores possam ditar aos inferiores a decisão correta, tanto que épor todos rechaçada a censura de qualquer tribunal aos aspectos jurídicosda decisão do juízo singular.Na declaração de constitucionalidade, contudo, o Supr<strong>em</strong>o TribunalFederal veda qualquer interpretação que negue aplicação à normadeclarada constitucional, o que implica <strong>em</strong> elevá-la ao status da próprianorma constitucional. A fixação de uma diretriz interpretativa pelo STF,no caso da declaração de constitucionalidade na ADIn, encontra, contudo,alguns obstáculos. Dentre os mais relevantes pod<strong>em</strong>os destacar quenão é necessária a existência de uma controvérsia judicial relevante sobre oobjeto da ação.258n. 6 - 2005.2
Breves considerações acerca da declaração de constitucionalidade na ação direta de inconstitucionalidadeO processo judicial <strong>em</strong> suas milhares de ações, com suas sucessivasdecisões e debates, e o amadurecimento da jurisprudência ao longo do t<strong>em</strong>po,até sua pacificação, dev<strong>em</strong> ser vistos como instrumentos de d<strong>em</strong>ocracia<strong>em</strong> que o cidadão, no papel de parte, t<strong>em</strong> ampla e direta participação. Emverdade, uma das precípuas funções dos tribunais pátrios é uniformizar ajurisprudência, mas para tanto não pod<strong>em</strong> ser desconsideradas as inúmerasdecisões dos juízos singulares e os argumentos dos milhares de cidadãos queatuam como parte. A declaração de constitucionalidade na ADIn interrompeesse processo dialético <strong>em</strong> busca da melhor interpretação da norma eimpõe a aplicação de uma norma infraconstitucional, mesmo que, no casoconcreto, esteja o julgador convencido de sua incompatibilidade com o textoconstitucional.4 CONCLUSÃOFaz-se necessário um reexame dos efeitos da declaração deconstitucionalidade no controle abstrato de normas, máxime <strong>em</strong> sede daAção Direta de Inconstitucionalidade. O estabelecimento prévio daconstitucionalidade de uma norma desconsidera a multiplicidade einesgotabilidade do sentido, limita a independência do juiz e fere o princípioa garantia individual à prestação jurisdicional adequada. Além disso, inovao texto constitucional na medida <strong>em</strong> que vincula a norma objeto da declaraçãoao próprio texto constitucional, enrijecendo-o.A declaração de constitucionalidade torna unívoca a interpretaçãoda norma objeto da ação e vincula todo o Poder Judiciário. Essa vinculaçãodeve ser interpretada, quando menos, de modo a não impedir a evolução dotexto constitucional <strong>em</strong> compasso com a realidade social. Uma solução possível,mas ainda assim não completamente adequada, seria a declaração deconstitucionalidade com explicitação de sentido, fazendo com que o efeitovinculante da decisão incidisse apenas sobre o sentido expressamente indicadopelo Supr<strong>em</strong>o Tribunal.A matéria, que não é nova, comporta muitas reflexões. É inegável quea declaração de constitucionalidade pode trazer alguns benefícios à rápidasolução dos litígios, mas é imperativo que esse poderoso instrumento sejamanejado de modo a não ferir os princípios constitucionais da d<strong>em</strong>ocracia edo amplo acesso ao Poder Judiciário e, mais importante, de modo a preservara força viva do texto constitucional, para que não se perca nada da suaincomensurável possibilidade interpretativa.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCOELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 2. ed. Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA259
Nagibe de Melo Jorge NetoFALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997.HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretesda constituição: contribuição para a interpretação pluralista e“procedimental” da constituição Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. PortoAlegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar FerreiraMendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.MARQUES DE LIMA, Francisco Meton. O resgate dos valores na interpretaçãoconstitucional: por uma hermenêutica reabilitadora do hom<strong>em</strong> como “sermoralmente-melhor”.Fortaleza: ABC Editora, 2001.MENDES, Gilmar. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas noBrasil e na Al<strong>em</strong>anha. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998.NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 20. ed. SãoPaulo: Malheiros, 2002.STREK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova críticado direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.1STREK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio deJaneiro: Forense, 2004, p. 762.2MENDES, Gilmar. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Al<strong>em</strong>anha. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 2423MENDES, op. cit., p. 245.4STRECK, op. cit., p. 769-7705Idéia de círculo hermenêutico foi introduzida por Heidegger e desenvolvida por Gadamer, que o viacomo uma espiral, dada a inesgotabilidade do sentido. Cf. a esse respeito MAGALHÂES FILHO,Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. 3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos,2004, p. 31-42, passim.6Acerca do t<strong>em</strong>a, cf. FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997.7KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 6. ed. São Paulo: MartinsFontes, 1998, p 390-391.8COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio FabrisEditor, 2003, p. 36-37.9Informativo STF n. 24810Apud STRECK, op. cit., p. 770.260n. 6 - 2005.2
Breves considerações acerca da declaração de constitucionalidade na ação direta de inconstitucionalidadeBRIEF ANALYSIS ON THE STATEMENT OFCONSTITUTIONALITY AT THE DIRECTUNCONSTITUTIONALITY LAWSUITABSTRACTThe article evaluates the stat<strong>em</strong>ent of constitutionalityat the so-called Direct Unconstitutionality Lawsuitas confronted to the large amount of meanings inherentto laws and to the assurance of wide access tojudicature.KEYWORDS: Constitutionality. Control. Stat<strong>em</strong>ent.Laws. Meaning. Jurisdiction. Access. Assurance.Judicature. Independence.BRÈVES CONSIDÉRATIONS CONCERNANTLA DÉCLARATION DECONSTITUTIONNALITÉ FAITE DANSL’ACTIONDIRECTED’INCONSTITUTIONNALITÉRÉSUMÉL’article critique la déclaration de constitutionnalitéfaite dans l’action directe d’inconstitutionnalité enraison de l’inépuis<strong>em</strong>ent du sens inhérent aux normesjuridiques et à la garantie d’accès à la justice.MOTS-CLÉS: Constitutionnalité. Contrôle.Déclaration. Norme. Sens. Justice. Accès. Garantie.Judiciaire. Indépendance.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA261
CRIMINALIDADE ECONÔMICA, DENÚNCIA GENÉRICAE DEVIDO PROCESSO LEGALNestor Eduardo Araruna Santiago*RESUMOAnálise do art. 41 do Código de Processo Penal e a denúnciagenérica. Conceito de denúncia genérica e sua interpretaçãopela doutrina. Denúncia genérica e criminalidade econômica.Denúncia genérica e violação dos princípios constitucionaisdo processo penal: presunção do estado de inocência, princípioda isonomia, princípio da ampla defesa. Ofensa ao princípioda segurança jurídica. Desrespeito ao princípio da dignidadeda pessoa humana, observado por Tratados Internacionais,notadamente o Pacto de San José da Costa Rica.Posicionamento do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal e do SuperiorTribunal de Justiça sobre a denúncia genérica.PALAVRAS-CHAVE: Denúncia genérica. Devido processolegal. Contraditório e ampla defesa. Princípio da dignidadeda pessoa humana. Criminalidade econômica. Princípiosconstitucionais do processo penal.Ninguém pode ser levado a juízo s<strong>em</strong> uma acusação: esta frase, que sintetizao sist<strong>em</strong>a acusatório, garante ao acusado a certeza de estar sendoprocessado por fatos certos, determinados e limitados, a fim de que possaexercitar com propriedade o contraditório e a ampla defesa. E esta certezada acusação é feita pela denúncia, que deve ser proposta pelo titular daação penal de iniciativa pública, ou seja, o Ministério Público. 1A denúncia, peça vestibular da ação penal pública, dá o conteúdo daacusação que se quer ver procedente contra o acusado e que será devidamenteanalisada pelo magistrado no momento de seu recebimento <strong>em</strong> juízo.*Doutor <strong>em</strong> Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Especialista<strong>em</strong> Ciências Penais pela UFMG. Professor 40 horas do Curso de Direito da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>.Professor da <strong>Faculdade</strong> Integrada do Ceará (FIC). Professor Adjunto da Universidade Federal doCeará (UFC). Professor de Cursos de Pós-Graduação e Cursos Preparatórios para concursos públicos.M<strong>em</strong>bro da Comissão de Estudos Tributários da OAB-CE. Advogado criminalista. E-mail:nestorsantiago@bol.com.br.262n. 6 - 2005.2
Criminalidade econômica, denúncia genérica e devido processo legalPor meio dela, estabelece-se a proposta de trabalho do representante doMinistério Público, d<strong>em</strong>onstrando, ainda, que o Estado, por meio dele, estáciente dos limites da d<strong>em</strong>anda por meio da acusação. Trata-se, desta forma,de importante instrumento de controle da legalidade dos atos do Estado,concretizando o princípio da segurança jurídica na acusação.A imputação decorre, necessariamente, da narração que é feita nadenúncia. Não pode o Ministério Público, a seu talante, decidir o que ecomo acusar. O seu poder discricionário não é tamanho a ponto de permutarilegalidades. E como o Ministério Público é fiscal da lei, ele deve ser o primeiroa respeitar o texto constitucional.Há que se salientar que o processo penal é extr<strong>em</strong>amente constrangedorao acusado, por ser meio utilizado pelo Estado para restringir a sua liberdade;por isso, todos os esforços dev<strong>em</strong> ser envidados para que se evite aomáximo a exposição do acusado a acusações indevidas e disformes.O art. 41 do Código de Processo Penal (CPP) estipula os el<strong>em</strong>entos quedev<strong>em</strong> estar contidos na denúncia para o seu recebimento pelo magistrado,quais sejam: a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias; aqualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo,a classificação do crime e, quando necessário, o rol de test<strong>em</strong>unhas.L<strong>em</strong>bra Guilherme de Souza Nucci que a exposição do fato criminosocom todas as suas circunstâncias e características diz respeito à narrativafática concernente ao tipo básico (figura fundamental do delito) e ao tipoderivado (circunstâncias que envolv<strong>em</strong> o delito na forma de qualificadorasou causas de aumento de pena). As circunstâncias genéricas de elevação depena não necessariamente precisam fazer parte da denúncia, mesmo porquesão provadas no decorrer da instrução criminal. 2Renato Martins Prates revela que o art. 41 do CPP não é específico<strong>em</strong> relação às circunstâncias absolutamente imprescindíveis para oajuizamento da ação penal. Mas l<strong>em</strong>bra que o mais importante, antes detudo, é que o fato seja típico, não importando, num primeiro momento, ascircunstâncias que influirão somente na dosag<strong>em</strong> da pena, pois estas nãofaz<strong>em</strong> parte do fato típico. Entretanto, é necessário que o acusador descrevaa conduta pormenorizadamente, a fim de possibilitar o exercício do direitode defesa do acusado. 3Com estas pr<strong>em</strong>issas, pass<strong>em</strong>os à análise do aspecto conceitual da denúnciagenérica.Com o avanço da Ciência do Direito, novos institutos jurídicos surg<strong>em</strong>.Com eles, surge também a necessidade de conceituá-los, determinandoseu papel e seu alcance, para que haja segurança jurídica.Face à crescente criminalidade econômica, <strong>em</strong> que os crimes se apresentamcom uma estrutura organizacional muitas vezes complexa, <strong>em</strong> razãoREVISTA OPINIÃO JURÍDICA263
Nestor Eduardo Araruna Santiagodo grande número de pessoas envolvidas, buscou-se construir um conceitoque, de certa forma, facilitasse ao Ministério Público o dever de denunciar.Cabe salientar que a elaboração do conceito não necessariamenteadvém do recrudescimento da criminalidade econômica. Contudo, fato éque a elaboração do conceito passa, necessariamente, pela análise dacriminalidade econômica, também chamada de criminalidade de <strong>em</strong>presa,que normalmente apresenta uma estrutura complexa no que diz respeito àpluralidade de pessoas envolvidas na prática criminosa, no modus operandi ena aparente indefinição de papéis. 4Leonardo Coelho do Amaral notou que “a chamada criminalidade de<strong>em</strong>presa [...] exige uma legislação processual mais adequada, conquantocerta e considerável parte da jurisprudência brasileira já venha flexibilizandoalgumas regras da lei <strong>em</strong> vigor, como se dá com a chamada denúncia genérica”.5 Renato Martins Prates diz que “a acusação genérica, <strong>em</strong> breve definição,é aquela <strong>em</strong> que não se imputa individualmente, com as circunstânciasnecessárias, uma conduta criminosa ao acusado”. 6Hugo de Brito Machado, por sua vez, diz que denúncia genérica é adenúncia nos crimes de autoria plural ou cometidos por pessoa jurídica, naqual não se pode individualizar a conduta de cada um dos denunciados. 7Para Andreas Eisele, denúncia genérica é a denúncia elaborada s<strong>em</strong> aindicação específica da conduta de cada um dos autores <strong>em</strong> crimes cometidos<strong>em</strong> concurso de pessoas. Ressalta a importância da denúncia como el<strong>em</strong>entode publicidade da acusação, possibilitando ao acusado a elaboraçãoda sua ampla defesa e o exercício do contraditório. 8Pod<strong>em</strong>os notar que, com pequenas variações, o conceito de denúnciagenérica envolve dois el<strong>em</strong>entos comuns, quais sejam:a) o concurso de pessoas; eb) a falta de individualização da conduta a ser imputada a cada umdos acusados.Com base nestes dados, pod<strong>em</strong>os conceituar denúncia genérica comoa denúncia ofertada contra vários acusados <strong>em</strong> situações caracterizadoras doconcurso de pessoas, s<strong>em</strong> que haja individualização da conduta imputada acada um deles.A doutrina é vacilante <strong>em</strong> aceitar a denúncia genérica.Andreas Eisele salienta que se a conduta é estabelecida de formagenérica, não determinando os limites fáticos da acusação, não atende aosrequisitos da denúncia correspondentes à publicidade da acusação. 9 Assim,para ele, viola-se o princípio da publicidade se a denúncia não aborda comclareza as situações fáticas, atribuindo-as aos autores determinados.264n. 6 - 2005.2
Criminalidade econômica, denúncia genérica e devido processo legalPara Vicente Greco Filho, na denúncia, “a dúvida é impertinente”.Mas salienta que a individualização da conduta na denúncia é desnecessária,desde que “todos tenham participado igualmente da ação criminosa oua conduta de todos tenha sido difusa ou multifária, como, por ex<strong>em</strong>plo, numcrime praticado por intermédio de sociedade <strong>em</strong> que não seja possível distinguira atuação de cada uma”. 10Segundo Luiz Flávio Gomes, viola-se frontalmente o art. 41 do Códigode Processo Penal quando a fundamentação é genérica, pois não se dá aoportunidade aos denunciados de fazer a sua defesa. 11Fernando da Costa Tourinho Filho manifesta-se contrariamente à denúnciagenérica e l<strong>em</strong>bra que a descrição circunstanciada, como el<strong>em</strong>entoda denúncia, conforme diz o art. 41 do Código de Processo Penal, se tornaainda mais importante se a acusação é feita contra várias pessoas que estãoreunidas pela circunstância de exercer<strong>em</strong> cargos de direção ou ser<strong>em</strong> sóciasde uma <strong>em</strong>presa. 12Fernando Capez aceita a denúncia genérica, mas ressalta que, ante aimpossibilidade de descrever a conduta de cada um dos co-autores e partícipes,é necessário que o autor da ação penal deixe b<strong>em</strong> clara a existência dasel<strong>em</strong>entares do concurso de agentes. Contudo, “a atenuação do rigorismodo art. 41 do CPP não implica admitir-se a denúncia que n<strong>em</strong> de longed<strong>em</strong>onstre a ação ou omissão praticada pelos agentes, o nexo de causalidadecom o resultado danoso ou qualquer el<strong>em</strong>ento indiciário de culpabilidade”.13 Roberto dos Santos Ferreira l<strong>em</strong>bra a importância crucial de uma peçaacusatória b<strong>em</strong> narrada, possibilitando o exercício da ampla defesa. Deve,ainda, “[...] estar lastreada <strong>em</strong> conjunto probatório mínimo que sirva desupedâneo à pretensão do Estado manifestada na denúncia, [...]. Em outraspalavras, é mister que haja justa causa para a imputação genericamenteformulada na denúncia”. 14A lição de Hélio Tornaghi sobre a narração dos fatos na denúncia écrucial para o entendimento (e cabimento) da denúncia genérica:Refere-se o Código à exposição minuciosa, não somente do fatoinfringente da lei, como também de todos os acontecimentosque o cercaram, não apenas de seus acidentes, mais ainda dascausas, efeitos, condições, ocasião, antecedentes e conseqüentes.A narrativa circunstanciada ministra ao juiz el<strong>em</strong>entos que ohabilitam a formar um juízo de valor. Para que o ato humano sejaconsiderado bom, força é que o seja tanto no essencial quanto noacidental. No terreno do direito punitivo a circunstância por si sónão determina a punibilidade, exatamente por não ser essencial. Masa consideração dela permite uma retribuição jurídica mais perfeitaporque adequada à gravidade do delito. 15REVISTA OPINIÃO JURÍDICA265
Nestor Eduardo Araruna SantiagoA jurisprudência dos tribunais superiores espelha esta divergênciadoutrinária.Em alguns julgamentos de habeas corpus, o Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal(STF) decidiu que a denúncia genérica, face ao grau de comprometimentocom a narração fática, t<strong>em</strong> merecido especial atenção, notadamente peloprejuízo existente ao direito de defesa. E apontou interessante aspecto, quenão pode deixar de ser abordado: os postulados básicos do Estado de Direitosão ofendidos com a aceitação da denúncia genérica, b<strong>em</strong> como há totalviolação do princípio da dignidade da pessoa humana. 16 Em razão disso, hánulidade absoluta e insanável, <strong>em</strong> razão do sacrifício do contraditório e daampla defesa, garantias constitucionais do devido processo legal. 17Noutra decisão, o STF decidiu que nos crimes societários, a denúncianão pode ser genérica, pois ela deve estabelecer o vínculo do administradorao ato ilícito que lhe está sendo imputado, de forma direta e objetiva. Docontrário, ofende os requisitos do CPP, art. 41 e os Tratados Internacionais,notadamente a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de SanJosé da Costa Rica), e é, por conta desta omissão, inepta. E l<strong>em</strong>bra o Relator:O princípio da responsabilidade penal adotado pelo sist<strong>em</strong>ajurídico brasileiro é o pessoal (subjetivo). A autorização pretorianade denúncia genérica para os crimes de autoria coletiva não podeservir de escudo retórico para a não descrição mínima da participaçãode cada agente na conduta delitiva. 18Entretanto, este entendimento do STF somente se solidificou recent<strong>em</strong>ente,vez que julgados mais antigos não enxergavam qualquerinconstitucionalidade na denúncia genérica. 19No Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, vigora o entendimentode que a denúncia genérica é admissível, notadamente <strong>em</strong> crimes societários,pois a denúncia somente poderá ser inepta se for inequivocamente deficientee, deste modo, prejudicar o direito de defesa dos acusados. Assim, sendodifícil a individualização de cada um dos participantes, havendo fortes indíciosde materialidade e autoria, é possível a denúncia “mais ou menos genérica”,interpretando-se o art. 41 do CPP. 20 Em outra decisão, o MinistroRelator ressalta que o momento adequado para a definição dos papéis naprática da infração penal é a instrução criminal. 21Do próprio conceito de denúncia genérica aqui proposto, pugna-sepelo seu reconhecimento <strong>em</strong> situações fáticas para afastar o recebimento dapeça vestibular acusatória.A denúncia genérica afeta o princípio do contraditório e da ampladefesa. Esses princípios, que são vinculados diretamente ao devido processolegal, ficam bastante feridos quando a denúncia não individualiza as condutaspraticadas, pois, para que o exercício da defesa seja amplo, é necessário266n. 6 - 2005.2
Criminalidade econômica, denúncia genérica e devido processo legalo amplo conhecimento do fato que está sendo imputado aos agentes. Emoutras palavras: a defesa do acusado somente será ampla se os fatos estiver<strong>em</strong>corretamente e exaustivamente descritos na denúncia. Amplitude dedefesa envolve amplitude de acusação. Deve-se olvidar o entendimento deque o importante é a tipificação feita pelo representante do Ministério Públicona petição inicial acusatória, mesmo porque esta tarefa – a tipificação– é feita pelo juiz na sentença (art. 383, CPP).Aponta Suzane de Farias Machado Moraes que “imputação é atribuiçãode um fato típico, criminoso e culpável a uma determinada pessoa. Nãopode ser conseqüência da vontade pessoal e arbitrária do Ministério Público”.Salienta, ainda, que “a imputação vaga, deficiente ou omissa, além deconstituir abuso do poder de denúncia configura afronta à garantia constitucionaldo direito de defesa ampla”. Rechaça, por sua vez, o caráter depraticidade que é atribuído à denúncia genérica, pois ela, “por não conter aexposição do fato criminoso, deve ser repudiada”, pois sua admissão “podeparecer eficaz num exame superficial, onde a preocupação primeira seria apunição dos criminosos, mas significaria na verdade, mais uma violação aosprincípios e direitos fundamentais”. 22Outro ponto que deve ser salientado sobre o t<strong>em</strong>a é que a denúnciagenérica t<strong>em</strong> também o terrível e indesejável poder de criar insegurança jurídicano meio social por meio de acusações infundadas. Como se disse acima,sua eficácia é incontestável, pois relega para o último plano o respeito aosprincípios constitucionais. Mas o resultado dessa praticidade sob o ponto devista processual encerra verdadeiro desrespeito ao devido processo legal, poiso acusado que não saiba a extensão da acusação não poderá fazer a defesa acontento. Conseqüent<strong>em</strong>ente, o contraditório também sairá prejudicado.Não há como aceitar o fato de alguém, por ser sócio ou exercer atividadede administração, seja responsável pela conduta criminosa praticada.A denúncia é peça essencialmente narrativa, na qual se narra a condutapraticada pelo acusado. Se essa narrativa é deficiente ou se a prova da condutacriminosa de cada um dos acusados v<strong>em</strong> a lume somente durante ainstrução criminal, é imperioso dizer que não há ação penal, por total faltade justa causa para a propositura da ação penal, implicando a inépcia dadenúncia. Há que se l<strong>em</strong>brar que a falta de descrição pelo menos sumáriade cada conduta dos diretores e gerentes de <strong>em</strong>presas, no delito praticadopor intermédio de pessoas jurídicas, não possibilita o estabelecimento dovínculo de causalidade entre o comportamento de cada um e o resultadoantijurídico.Acusação genérica é uma falha da acusação, tanto formal quantomaterial. Como se sabe, a precisão na acusação é que transmite ao julgadora certeza de estar julgando b<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> que haja a necessidade de condenar<strong>em</strong> todo e qualquer caso. O que importa é que o acusado tenha a certeza deestar se defendendo de fatos certos e determinados, e não de qualquer fato.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA267
Nestor Eduardo Araruna SantiagoE não é só. A denúncia “genérica” também fere de morte o princípioda presunção do estado de inocência, vez que o mandamento constitucionaltraz como conseqüência processual a obrigação de o órgão acusador comprovara culpabilidade dos acusados. A acusação deficiente vai inverter o ônusda prova: a defesa é que terá que comprovar a sua inocência, o que poderáresultar no ferimento ao princípio da segurança jurídica no tocante ao indubio pro reo. O devido processo legal, mais uma vez, será desrespeitado.Ad<strong>em</strong>ais, trata-se da admissão da presunção de culpa, absolutamenteincabível, pois o Direito Penal moderno adota a responsabilidade subjetiva,devidamente comprovada no âmbito do processo penal tributário: é o DireitoPenal da Culpabilidade.As presunções no processo penal, principalmente para o oferecimentoda denúncia nos crimes societários, revelam que a atribuição de funçõespelo estatuto ou contrato social e o proveito pessoal que o agente aufeririacom o delito são presuntivos fortes de autoria, mas dev<strong>em</strong> ser s<strong>em</strong>pre acompanhadasde outras provas igualmente contundentes. Ou seja, a prova daacusação ainda deve ser necessariamente desincumbida pelo MinistérioPúblico, não durante a instrução criminal, mas sim na denúncia, <strong>em</strong> que oórgão acusador vai comprovar o nexo de causalidade entre a conduta praticadae o resultado lesivo, imputando-o a autores determinados, com condutastambém determinadas e especificadas no texto da petição inicial.É importante que a denúncia venha b<strong>em</strong> definida, com seus delineamentoslegais b<strong>em</strong> preenchidos, pois somente assim o contraditório e a ampladefesa, como princípios constitucionais, estarão inteiramente garantidos. OMinistério Público, hoje, t<strong>em</strong> poderes quase ilimitados, mas legais, respaldadospor autorizações judiciais que pod<strong>em</strong> ir fundo no funcionamento de umapessoa jurídica s<strong>em</strong> a violação a direitos fundamentais do cidadão. Assim, odéficit investigatório não pode legitimar a denúncia genérica: cabe ao Parquetser atuante e ele próprio pugnar pelo Estado de Direito D<strong>em</strong>ocrático, preservandoas garantias constitucionais conseguidas depois de muita luta e sofrimento.A produção de provas durante a instrução criminal somente será válidapara corroborar a acusação que se faça perfeita <strong>em</strong> seus indícios de autoriae materialidade. Ora, se o órgão acusador deseja ter o período da instruçãocriminal para a reunião de provas, deve fazê-lo durante o inquérito policial,que é procedimento administrativo utilizado para esse fim. Se acriminalidade econômica é complexa, também deve ser a estruturainvestigatória. Os princípios constitucionais não pod<strong>em</strong> ser negociados sobnenhuma hipótese, pois eles não têm exceção. Somente assim será garantidoo devido processo legal. Aliás, a impraticabilidade da individualização decada conduta no texto da denúncia é perniciosa ao próprio Ministério Público,pois terá dificuldades maiores no momento da instrução criminal. A acusaçãodeficiente compromete não só o exercício do direito de defesa, comotambém o próprio jus accusationis.268n. 6 - 2005.2
Criminalidade econômica, denúncia genérica e devido processo legalA denúncia genérica é a materialização, do ponto de vista processual,de um modo de pensar tipificante, que abre mão dos princípios constitucionais,notadamente da segurança jurídica, <strong>em</strong> prol de um resultado mais célere.Entretanto, como o princípio da segurança jurídica encerra um conceito,não pode ser relativizado.L<strong>em</strong>bra Renato Martins Prates que o compromisso do juiz não é com oêxito da repressão penal, pois assim estaria agindo como parte processualmenteinteressada no desfecho da d<strong>em</strong>anda. Sua responsabilidade é com a ord<strong>em</strong> jurídica,observada a primazia das normas constitucionais. 23 E continua dizendo quenão é a arbitrariedade ou a quebra das garantias constitucionaisque resolv<strong>em</strong> o probl<strong>em</strong>a da má-formação e da poucafamiliaridade da Polícia, MP e Magistratura, com os meandrosdo funcionamento da vida <strong>em</strong>presarial, do mercado de capitais,da contabilidade oficial e paralela, da informática e de seustruques. É preciso, antes de tudo, conhecer para poder agir. 24É lógico que tais modificações refletirão nas normas processuais penais,com sua especialização no que tange aos crimes econômicos. A conseqüênciadessa balbúrdia legislativa e do cochilo do legislador no tocante àcriminalidade moderna levou à adoção da tese da denúncia genérica, verdadeirabarbaridade cometida contra o devido processo legal. E nunca éd<strong>em</strong>ais l<strong>em</strong>brar que o acusado se defende da imputação que contra ele éapresentada. Se ela for difusa, incerta ou genérica, não poderá exercer seudireito constitucional de defesa ampla.Conclui-se, portanto, que da admissão da denúncia genérica restarãodiretamente violados a segurança jurídica, uma vez que a acusação é incerta;o princípio da proteção da confiança, por não haver, por parte do Estado-Acusação, a d<strong>em</strong>arcação initio litis do objeto da denúncia; e o princípio dadignidade da pessoa humana, pelo desrespeito ao devido processo legal e osprincípios que lhes são corolários.Para finalizar, resta l<strong>em</strong>brar que, se efetivamente desejamosconstruir um modelo processual d<strong>em</strong>ocrático, as (meta)regrasdev<strong>em</strong> ser vinculantes e cumpridas por todos os sujeitosprocessuais, <strong>em</strong> que pese tenham(os) trabalho redobrado. Masqu<strong>em</strong> disse que a luta pela d<strong>em</strong>ocracia processual é fácil e isentade custos e riscos? 25REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAMARAL, Leonardo Coelho do. Crimes socioeconômicos e crimes fiscais:algumas características. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo,ano 11, n. 43, p. 187-225, abr./jun. 2003.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA269
Nestor Eduardo Araruna SantiagoCAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre. Criminalidade econômicae denúncia genérica: uma prática inquisitiva. In: BONATO, Gilson(Org.) Garantias constitucionais e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,2002. p. 203-222.EISELE, Andreas. Crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária. 2. ed. rev. atual. ampl.São Paulo: Dialética, 2002.FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária. São Paulo:Malheiros, 1996. 80 p.GOMES, Luiz Flávio. ______. Acusações genéricas, responsabilidade penalobjetiva e culpabilidade nos crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária. Revista Brasileirade Ciências Criminais, São Paulo, ano 3, n. 11, p. 245-51, jul./set. 1995.GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva,1999MACHADO, Hugo de Brito. A denúncia genérica nos crimes contra a ord<strong>em</strong>tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 12, p. 27-36, março 1998.______. Estudos de direito penal tributário. São Paulo: Atlas, 2002.MORAES, Suzane de Farias Machado. Denúncia genérica nos crimes contraa ord<strong>em</strong> tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 89, p. 85-91,fev. 2003.NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2005.PRATES, Renato Martins. Acusação genérica <strong>em</strong> crimes societários. Belo Horizonte:Del Rey, 2000. 93 p.SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna Santiago. Processo penal nos crimestributários: a formação do devido processo legal penal tributário. Belo Horizonte:UFMG, 2004. 290 p. (Tese de doutorado.)TORNAGHI, Helio. Curso de processo penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva,1997.TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 26. ed. São Paulo:Saraiva, 2004, v. 1.1Não se deve olvidar, contudo, que a queixa também dá início à ação penal de iniciativa privada.Entretanto, face à especificidade do t<strong>em</strong>a, não se abordará neste trabalho a queixa-crime, muito <strong>em</strong>borao que é falado sobre denúncia genérica, mutatis mutandis, também se aplica à queixa genérica.2NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: RT, 2005, p. 191-192.270n. 6 - 2005.2
Criminalidade econômica, denúncia genérica e devido processo legal3PRATES, Renato Martins. Acusação genérica <strong>em</strong> crimes societários. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 25.4Para Renato Martins Prates (op. cit., p. 16), “<strong>em</strong>bora o estudo do crime societário tenha maiorrelevância no âmbito da criminalidade econômica, não seria apropriado, na sua definição,circunscrevê-lo aos delitos contra a ord<strong>em</strong> econômica, porquanto também se possa cogitar decrimes societários praticados contra outros bens jurídicos, como o meio ambiente, a saúde públicaou a honra, notadamente nos crimes de imprensa. O crime societário tampouco se define,necessariamente, como ‘crime colegial’ ou plurissubjetivo. O concurso de agentes, portanto, não énecessário, porque, <strong>em</strong>bora para se constituir a sociedade haja, necessariamente, a convergênciada vontade de várias pessoas, eventualmente somente o indivíduo, isoladamente, pode praticaratos criminosos <strong>em</strong> seu nome”.5AMARAL, Leonardo Coelho do. Crimes socioeconômicos e crimes fiscais: algumas características.Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 11, n. 43, p. 197-198, abr./jun. 2003.6PRATES, op. cit., p. 17.7MACHADO, Hugo de Brito. Estudos de direito penal tributário. São Paulo: Atlas, 2002, p. 135.8EISELE, Andreas. Crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária. 2. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Dialética, 2002,p 237.9Ibid., p. 238.10GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 131.11Cf. anotações sobre sua palestra no 4° S<strong>em</strong>inário IOB sobre Crimes contra a Ord<strong>em</strong> Tributária,realizado <strong>em</strong> São Paulo <strong>em</strong> 17/5/1998 sob a coordenação de Fugimi Yamashita e Vittorio Cassone.12TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 1, p. 385.13CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 126.14FERREIRA, Roberto dos Santos. Crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 75.15TORNAGHI, Hélio Bastos. Curso de processo penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1, p. 45, grifosnossos.16STF. HC 84.768/PE. 2ª Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. J. <strong>em</strong> 8/3/05. Maioria.17STF. 1ª T. HC 83301/RS. Rel. Min. Marco Aurélio. J. <strong>em</strong> 16/3/04. Maioria.18Habeas Corpus n. 80.549/SP. 2ª Turma. Rel. Min. Nelson Jobim. J. <strong>em</strong> 20/3/2001.DJU I 24/8/2001.Unânime, grifos nossos.19“Não é inepta a denúncia, só por não descrever a conduta individual de cada um dos sóciosdenunciados, se a todos, indistintamente, atribui a prática do delito societário, afirmando-lhes acondição de administradores, que respondiam pelos atos a eles imputados, e estes, na impetração do‘writ’, não o negam, podendo, <strong>em</strong> tal circunstância, apresentar ampla defesa no processo criminal”.(Habeas Corpus n. 74.813/RJ. 1ª Turrna. Rel. Min. Sydney Sanches. DJU I 29/8/1997, p. 40.217.Unânime.)20STJ. HC n. 24994/SP (2002/0136481-0). 5ª T. Rel. Min. Gilson Dipp. J. 11/3/2003.21STJ. Recurso Especial n. 509.488/SC. Rel. Min. Gilson Dipp. 5ª Turma. J. 19/8/2003. Publ. DJU I 22/9/2003, p. 37022MORAES, Suzane Farias Machado. Denúncia genérica nos crimes contra a ord<strong>em</strong> tributária. RevistaDialética de Direito Tributário, n. 89, fev. 2003, p. 89-90.23PRATES, op. cit., p. 87-88.24PRATES, op. cit., p. 88-89.25CARVALHO, Salo de; WUNDERLICH, Alexandre. Criminalidade econômica e denúnciagenérica: uma prática inquisitiva. In: BONATO, Gilson (Org.). Garantias constitucionais e processopenal, p. 221.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA271
Nestor Eduardo Araruna SantiagoCRIME IN ECONOMICS, GENERICACCUSATION AND THE DUE PROCESS OF LAWABSTRACTThe analysis on the article 41 of the Brazilian CriminalProcedure Code and the generic accusation. Genericaccusation concept and its doctrinal interpretation.Generic accusation and crime in economics. Genericaccusation and the violation of the constitutional rulesconcerning the criminal procedure: presumption ofinnocence, legal equality, alter ego defense. Misrespectof the rule of law. Disobedience of the human dignityprinciple, bound by international treaties such as thePact of San Jose of Costa Rica. Position of the FederalSupr<strong>em</strong>e Court and of the Higher Court of Justice onthe generic accusation.KEYWORDS: Generic accusation. Due process of law.CRIMINALITÉÉCONOMIQUE,DÉNONCIATION GÉNÉRIQUE ET DROIT ÀUN PROCÈS ÉQUITABLERÉSUMÉIl s’agit d’un article qu’analyse l’art. 41 du Code deprocédure pénal et de la dénonciation générique.Concept de dénonciation générique et soninterprétation par la doctrine. Dénonciation génériqueet criminalité économique. Dénonciation génériqueet violation des principes constitutionnels de laprocédure pénale: présomption d’innocence, principede l’isonomie, droit à un procès équitable. Infractionau principe de la sécurité juridique. Atteinte auprincipe de la dignité de la personne humaine, prévupar des traités internationaux, notamment le Pacte deSan José de Costa Rica. Jurisprudence du Suprêmetribunal fédéral et du Supérieur tribunal de justicesur la dénonciation générique.MOTS-CLÉS: Dénonciation générique. Droit à unprocès équitable. Plénitude de la défense. Principe de ladignité de la personne humaine. Criminalité économique.Principes constitutionnels de la procédure pénale.272n. 6 - 2005.2
CONTRIBUIÇÃO DA DOUTRINA CRISTÃ PARA ODESENVOLVIMENTO DOS DIREITOS HUMANOSPaulo Henrique Gonçalves Portela*1 Introdução. 2 Os Direitos Humanos, o conceito de dignidadehumana e a universalidade: contribuição da doutrina cristã. 3 OAntigo Testamento: os Dez Mandamentos e o Judaísmo. 4 Adoutrina cristã: a missão de Jesus Cristo. 5 A Igreja Primitiva. 6De Leão XIII a João Paulo II. 7 A contribuição da doutrina cristãpara os direitos humanos na Constituição Federal: breve síntese.8 Conclusão.RESUMOEste artigo pretende apresentar a contribuição da doutrinacristã para o desenvolvimento dos direitos humanos,enfatizando o aporte oferecido para a conformação de umsist<strong>em</strong>a fundamentado nas idéias de dignidade, igualdade euniversalidade, b<strong>em</strong> como destacando alguns valores queencontram previsão na Bíblia e no ensinamento da Igreja.PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Doutrina cristã.Bíblia. Dignidade. Igualdade. Universalidade.1 INTRODUÇÃOO principal objetivo deste artigo é d<strong>em</strong>onstrar que o Cristianismo, <strong>em</strong>sua doutrina, também aponta para a dignidade humana e para a necessidadede sua promoção. Aqui procurar<strong>em</strong>os d<strong>em</strong>onstrar que a doutrina cristãprevê a proteção de direitos diretamente associados à condição do ser humanoe, pela influência que v<strong>em</strong> exercendo no decorrer da história da humanidade,contribui para a formatação de um sist<strong>em</strong>a de proteção dos direitoshumanos.Entretanto, é mister advertir que este trabalho não se reveste de caráterreligioso. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, não é nosso objetivo, inclusive <strong>em</strong> razão do*Mestrando <strong>em</strong> Direito pela Universidade Federal do Ceará, Graduado <strong>em</strong> Direito pela UniversidadeFederal do Ceará e <strong>em</strong> Diplomacia pelo Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores,Diplomata de Carreira, Assessor para Assuntos Internacionais do Gabinete do Governador do Estadodo Ceará, Professor da <strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA273
Paulo Henrique Gonçalves Portelaespaço disponível, explorar questões polêmicas envolvendo a Igreja e suarelação com os Direitos Humanos no passado e no presente. Além disso, porconta da vasta contribuição oferecida pela doutrina cristã para a conformaçãode um sist<strong>em</strong>a de proteção dos Direitos Humanos, não ambicionamostampouco apresentar trabalho de maior profundidade jurídica.No bojo deste exercício, quer<strong>em</strong>os tão-somente apresentar um poucodo aporte da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanoscomo hoje os conhec<strong>em</strong>os, o que far<strong>em</strong>os nos referindo s<strong>em</strong>pre que possívelà Declaração Universal dos Direitos Humanos e à Constituição Federal.Nesse sentido, destacar<strong>em</strong>os resumidamente a missão de Jesus Cristo e aação da Igreja, notadamente a Católica, recorrendo diretamente à Bíblia,mas também a fontes da doutrina jurídica. Indicar<strong>em</strong>os el<strong>em</strong>entos de direitoshumanos presentes no Judaísmo, o qual influenciou a conformação dadoutrina cristã e cujas leis, como o próprio Cristo afirmou, não foram de todosuprimidas. Far<strong>em</strong>os, ainda, um apanhado geral de como a doutrina cristãcontribuiu para a elaboração dos conceitos de dignidade humana, igualdadee universalidade, que são nucleares para os direitos humanos.Com isso, pretend<strong>em</strong>os d<strong>em</strong>onstrar que muitos direitos hoje consideradosfundamentais e que gozam de amplo consenso <strong>em</strong> torno de sua relevânciajá tinham previsão no âmbito da doutrina cristã, a qual previa - eprevê - regras de proteção aos valores essenciais para os seres humanos.Ad<strong>em</strong>ais, destacar<strong>em</strong>os o papel que a Cristandade exerceu e ainda exercena configuração do mundo como um todo e da civilização ocidental <strong>em</strong>particular, dentro da qual se insere o Brasil, e onde o desenvolvimento deum sist<strong>em</strong>a de proteção dos direitos humanos teve maior impulso.2 OS DIREITOS HUMANOS E AS IDÉIAS DE DIGNIDADE HUMA-NA, IGUALDADE E UNIVERSALIDADE: CONTRIBUIÇÃO DADOUTRINA CRISTÃA existência de direitos humanos fundamenta-se nas idéias nuclearesde dignidade humana, igualdade e universalidade, ou seja, no reconhecimentode que todos os seres humanos, s<strong>em</strong> distinção, merec<strong>em</strong> igual respeito,como sujeitos de direitos que lhe são inerentes. Nesse sentido, Comparatoescreve:O que se conta, nestas páginas, é a parte mais bela e importantede toda a História: a revelação de que todos os seres humanos,apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que osdistingu<strong>em</strong> entre si, merec<strong>em</strong> igual respeito, como únicos entesno mundo capazes de amar, de descobrir a verdade e criar abeleza. É o reconhecimento universal de que, <strong>em</strong> razão dessaradical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia,classe social, grupo ou nação – pode afirmar-se superior aosd<strong>em</strong>ais. 1274n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanosA construção do conceito de dignidade humana foi um processo que,no campo da religião, começou a partir da afirmação da fé monoteísta 2 , daqual a religião cristã é uma espécie. No universo cristão, o mundo foi criadopor um Deus único, transcendente e perfeito, diferente dos vários deuses deentão, que tinham poderes sobre-humanos, mas compartilhavam com a humanidadealguns de seus defeitos. Na doutrina cristã, esse Deus único criouo ser humano como Sua imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança, conferindo ao indivíduo,portanto, a dignidade da perfeição.Ao mesmo t<strong>em</strong>po, Deus deu ao ser humano pre<strong>em</strong>inência sobre todas asoutras formas de vida, conferindo-lhe um valor que as d<strong>em</strong>ais criaturas nãopossuíam. Essa posição <strong>em</strong>inente enfatizava-se ainda mais a partir da pr<strong>em</strong>issade que o hom<strong>em</strong>, s<strong>em</strong>elhante ao único Deus e superior a todas essas formas devida, passava a não mais ser considerado como estando sob o poder de divindadesque amiúde eram representações de fenômenos naturais ou de criaturasque não possuíam as mesmas qualidades do ser humano. Ao contrário, taisfenômenos e criaturas passavam a estar sob o domínio da humanidade:E disse Deus: Façamos o hom<strong>em</strong> à nossa imag<strong>em</strong>, conforme anossa s<strong>em</strong>elhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as avesdos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptilque se move sobre a terra. E criou Deus o hom<strong>em</strong> à sua imag<strong>em</strong>; àimag<strong>em</strong> de Deus o criou; hom<strong>em</strong> e mulher os criou. E Deus osabençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra,e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves doscéus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra. 3Dessa forma, a doutrina cristã afirma o valor e a dignidade de cada serhumano por haver sido criado à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança de Deus, portantocom natureza espiritual e divina. Tal importância é revelada também pelocaráter de bondade da obra do Criador, expresso <strong>em</strong> Gênesis 1, 30: “E viuDeus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom”.Na Bíblia, a idéia da dignidade do ser humano veio a ser reforçada apartir do momento <strong>em</strong> que São Paulo, <strong>em</strong> I Coríntios 6, 19, afirma: “Ou nãosabeis que o vosso corpo é o t<strong>em</strong>plo do Espírito Santo, que habita <strong>em</strong> vós,proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?”. Com isso, confere-seao indivíduo a prerrogativa do enorme respeito de que gozavam os t<strong>em</strong>plosreligiosos à época. Para reforçar esse entendimento do valor que se imprimeaos indivíduos a partir desse texto bíblico, João Baptista Herkenhoff afirma:Essa afirmação é rica de conseqüências no que se refere aosDireitos Humanos. Como um ser que é t<strong>em</strong>plo do Espírito Santo,ou seja, que é morada do próprio Deus, pode ser torturado, pod<strong>em</strong>orrer de fome, pode ficar ao desabrigo, pode ser discriminado?Nenhuma violação dos direitos da pessoa humana será coerentecom a proclamação do hom<strong>em</strong> como casa de Deus.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA275
Paulo Henrique Gonçalves PortelaO fato de Deus haver criado o hom<strong>em</strong> à Sua imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhançatambém aponta para a igualdade essencial que existe entre todos os sereshumanos. Como cada pessoa foi criada à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança de Deus, todossão essencialmente iguais e compartilham uma natureza comum e uma “identidadede orig<strong>em</strong>” 4 , que independe de diferenças biológicas, psicológicas ouculturais. Mesmo diferenças como aquela que há entre mulher e hom<strong>em</strong> acabamenfatizando essa igualdade, já que, se tanto a mulher como o hom<strong>em</strong>foram criados à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança de Deus, todos são iguais na essência 5 .Esse t<strong>em</strong>a será amplamente tratado pela doutrina cristã na Idade Média,que trabalhou no sentido de desenvolver o conceito de pessoa e chegou àconclusão, com Santo Tomás de Aquino, que o indivíduo tinha, ao mesmot<strong>em</strong>po, uma natureza espiritual e corporal. Independente de todas as diferençasde qualquer ord<strong>em</strong> tanto no campo material como de ord<strong>em</strong> biológicaou cultural, os homens seriam s<strong>em</strong>pre iguais no plano espiritual por ser<strong>em</strong>obra de Deus. Seriam, portanto, iguais <strong>em</strong> sua essência. É essa igualdadeessencial da pessoa que forma o núcleo do conceito universal de “direitoshumanos”, direitos comuns à espécie humana, resultantes de sua próprianatureza e aplicáveis a qualquer pessoa <strong>em</strong> qualquer lugar do mundo, s<strong>em</strong>distinção de nenhuma espécie.Nesse sentido, cabe ressaltar que o Judaísmo, como a maioria das religiõessurgidas à mesma época, era uma religião nacionalista e o culto de umpovo determinado, no caso o judeu, que se considerava o “povo eleito” porDeus como destinatário exclusivo de sua mensag<strong>em</strong>. Entretanto, cabe ressaltarque num dos mais antigos livros do Antigo Testamento, o Deuteronômio,já se encontra a afirmação de que Deus não faz “acepção de pessoas” 6 . Dessaforma, há muito t<strong>em</strong>po já se podia vislumbrar a superação do nacionalismoreligioso e a abertura para o culto universal a Deus e a observância dos valoresexpressos <strong>em</strong> sua Palavra <strong>em</strong> todas as partes do mundo.Ao contrário do Judaísmo, o Cristianismo nasceu com vocação universal.A ord<strong>em</strong> de Jesus Cristo para que seu ensinamento fosse levado até osconfins da terra e a ação da Igreja Primitiva salientando a igualdade entretodas as pessoas, traduzida pelas palavras de São Paulo, que afirma <strong>em</strong> Gálatas3,28 que “Não há judeu n<strong>em</strong> grego; não há escravo n<strong>em</strong> livre; não há hom<strong>em</strong>n<strong>em</strong> mulher; porque todos vós sois um <strong>em</strong> Cristo Jesus”, apontam parao caráter universal da doutrina cristã e para sua aplicabilidade a todos osm<strong>em</strong>bros da espécie humana, independente de orig<strong>em</strong>, raça, cor, língua,sexo, posição social ou qualquer outra condição.De fato, a idéia da universalidade é uma das características dos direitoshumanos e seu sist<strong>em</strong>a de proteção internacional. Na guarida da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos e dos instrumentos internacionaissubseqüentes, esse sist<strong>em</strong>a é entendido como universal e transnacional, podendoser aplicado a qualquer pessoa <strong>em</strong> todo lugar do mundo s<strong>em</strong> distinçãode nenhuma espécie:276n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanosArtigo 1: Todos os homens nasc<strong>em</strong> livres e iguais <strong>em</strong> dignidade edireitos. São dotados de razão e consciência e dev<strong>em</strong> agir <strong>em</strong>relação uns aos outros com espírito de fraternidade.Artigo 2: I) Todo o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> capacidade para gozar os direitose as liberdades estabelecidos nesta Declaração s<strong>em</strong> distinção dequalquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opiniãopolítica ou de outra natureza, orig<strong>em</strong> nacional ou social, riqueza,nascimento, ou qualquer outra condição.Ao finalizar este ponto, caberia destacar a contribuição peculiar oferecidapelos teólogos e juristas espanhóis da Escuela de Salamanca, do séculoXIV. Em nome dos direitos invioláveis da pessoa humana, esses estudiososadmitiram a possibilidade de um direito de ingerência (derecho de intervención),pelo qual um povo poderia intervir <strong>em</strong> favor de outro povo que estivessesofrendo afrontas à sua dignidade e a seus direitos, inclusive com o <strong>em</strong>pregoda força armada quando outros meios se revelass<strong>em</strong> ineficientes. Em casoextr<strong>em</strong>o, o poder interveniente, que poderia ser um Estado, atuaria <strong>em</strong> nomeda própria humanidade, ainda que a intervenção não fosse solicitada pelospovos cujos direitos estivess<strong>em</strong> sendo violados. 7 Esse é um dos antecedentesdas teorias de relativização da soberania que possibilitariam a existência doDireito Internacional e de um sist<strong>em</strong>a de Proteção Internacional dos DireitosHumanos, marcados pela existência de instrumentos de monitoramentoe supervisão internacionais com poderes para manifestar-se e deliberar sobret<strong>em</strong>as antes da competência exclusiva de entidades estatais soberanas e, <strong>em</strong>casos extr<strong>em</strong>os, intervir diretamente no âmbito interno dos Estados.3 O ANTIGO TESTAMENTO: OS DEZ MANDAMENTOS E O JU-DAÍSMOConsiderados ao mesmo t<strong>em</strong>po conteúdo fundamental da Lei judaicae da ética cristã, os Dez Mandamentos conformam uma pauta de valores eapontam alguns dos direitos essenciais para o pleno desenvolvimento do indivíduo.Decerto que os Mandamentos têm a forma de ordens e, dessa forma,aparentam consistir apenas <strong>em</strong> deveres. Entretanto, entend<strong>em</strong>os que o estabelecimentode uma obrigação implica no surgimento de um direito. Emoutras palavras: a realização de um direito está associada à obrigação deoutr<strong>em</strong> de respeitar esse direito. 8 Tal fato v<strong>em</strong> chamar a atenção para oaspecto do dever no campo dos direitos humanos, o qual, <strong>em</strong>bora poucoenfatizado por boa parte da doutrina e da sociedade <strong>em</strong> geral, é reconhecidopelos artigos 1 e 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 9 Esse étambém o entendimento do Vice-Presidente da Corte Supr<strong>em</strong>a de Israel,Haim Cohn, para qu<strong>em</strong> “when a legislator imposes an obligation or forbids oneto perform a certain action, by implication he is also granting a right”. 10REVISTA OPINIÃO JURÍDICA277
Paulo Henrique Gonçalves PortelaA variedade desses direitos indica a existência de várias dimensões dosdireitos humanos, o que seria desenvolvido pela doutrina séculos mais tarde.Ao mesmo t<strong>em</strong>po, o fato de alguns desses direitos estar<strong>em</strong> associados entre siaponta para a interdependência dos direitos humanos para a sua concretização.O direito à vida, pressuposto de todos os outros direitos, é protegidopelo sexto Mandamento: “Não matarás”. Tal era a força desse comando que,mesmo <strong>em</strong> vista das hipóteses <strong>em</strong> que a lei judaica permitia a pena de morte,os sacerdotes vieram a trabalhar para restringir ao máximo a aplicação dessamedida, criando garantias processuais como a necessidade de um númeromaior de test<strong>em</strong>unhas e ritos processuais mais complexos, formando um verdadeirodireito ao contraditório e à ampla defesa. 11O direito à propriedade é objeto do oitavo Mandamento (“Não roubarás”)e do décimo (“Não desejarás a casa de teu próximo, n<strong>em</strong> o seu campo,n<strong>em</strong> o seu servo, n<strong>em</strong> o seu boi n<strong>em</strong> o seu jumento n<strong>em</strong> coisa alguma do teupróximo”). Cabe destacar que o décimo Mandamento, ao procurar protegera propriedade de todos e evitar a instabilidade que eventualmente geramdisputas por bens, pode também ser interpretado como referência à igualdadee afirmação do direito à segurança pessoal, o qual é elencado no artigo 3da Declaração Universal dos Direitos Humanos.O quarto Mandamento, que concede o direito ao descanso s<strong>em</strong>anal,refere-se não só a um direito básico dos trabalhadores na atualidade, mastambém à função social do trabalho, cuja razão de ser é permitir a sobrevivênciae o b<strong>em</strong>-estar do hom<strong>em</strong> e o progresso social, e não a sua exploração,como proclamado por Jesus <strong>em</strong> Marcos 2, 27: “O sábado foi feito por causa dohom<strong>em</strong>, e não o hom<strong>em</strong> por causa do sábado”.A propósito, o trabalho é valorizado e protegido <strong>em</strong> toda a extensão daBíblia, começando pelo fato de que a criação do mundo foi obra do trabalhode Deus. Em Deuteronômio 24,14, prega-se: “Não oprimirás o trabalhadorpobre e necessitado”. Em Eclesiastes 5, 12 afirma-se que “Doce é o sono dotrabalhador”. E o profeta Jer<strong>em</strong>ias pregou contra aqueles que não pagam osalário dos trabalhadores. 12 No Novo Testamento, o trabalho é visto comooposto ao roubo e como condição para o amparo aos necessitados pela geraçãode riqueza que proporciona. 13A família e o idoso são protegidos pelo quinto Mandamento (“Honraráspai e mãe”), pelo sétimo (“Não adulterarás”) e pelo décimo (“Não cobiçarása mulher do próximo”). Cabe ressaltar que, não obstante haver polêmicano tocante ao conceito de ”família”, esta é protegida pela DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos <strong>em</strong> seu artigo 16, III, nos seguintes termos:“A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e t<strong>em</strong> direito àproteção da sociedade e do Estado”.A liberdade de culto, o respeito à identidade cultural e a autodeterminaçãodos povos são resguardados pelos primeiros três Mandamentos, que278n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanosapontam qu<strong>em</strong> é o Deus dos judeus, definindo-o como único, s<strong>em</strong> adotaraparência s<strong>em</strong>elhante a qualquer outra forma da natureza e nome específico.Numa época <strong>em</strong> que impérios impunham seus valores a povos dominados,como tantas vezes aconteceu com o povo judeu, a Torá procurava protegera religião judaica e os valores que distinguiam o judeu do não-judeu,b<strong>em</strong> como o direito do povo de determinar seus próprios destinos. De fato, foio monoteísmo que fez de Israel uma nação. 14Ao determinar “Não dirás falso test<strong>em</strong>unho contra teu próximo”, onono Mandamento procura resguardar a honra, como faz a Declaração Universaldos Direitos Humanos <strong>em</strong> seu artigo 12, ao determinar que“Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, nasua família, no seu lar ou na sua correspondência, n<strong>em</strong> a ataquesa sua honra e reputação. Todo o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> direito à proteçãoda lei contra tais interferências ou ataques”.No Judaísmo, apareceriam ainda outros institutos que seriam consideradoscomo parte do universo dos direitos humanos. Dentre esses cabe citar aredução das desigualdades sociais, expressa nos preceitos de ajudar os necessitadose de fazer o b<strong>em</strong> e a justiça 15 . A função social da propriedade é objetodo Ano do Jubileu 16 , que ocorria a cada quarenta e nove anos, quando aspropriedades deveriam ser devolvidas a seus antigos donos, os escravos deveriamser libertos e a terra não deveria ser cultivada, evitando assim o acúmulode bens que poderia gerar desigualdade. O meio ambiente equilibrado é garantidopelo Ano Sabático 17 , pelo qual a terra deveria descansar do cultivo acada sete anos, resguardando o ambiente da degradação. É mister ainda ressaltaro direito a receber dos tribunais r<strong>em</strong>édio efetivo para os atos que viol<strong>em</strong>os direitos fundamentais reconhecidos, o direito a um julgamento justo, s<strong>em</strong>falso test<strong>em</strong>unho e suborno e o direito à indenização por dano. 18Entretanto, o princípio de todos os Mandamentos e da Torá, b<strong>em</strong> comonorma que permite abranger situações não claramente previstas pela Leijudaica, é o de que “todos dev<strong>em</strong> fazer o que é justo e bom aos olhos deDeus”. Para Cohn, esse princípio orientará também toda a interpretação daLei, cuja aplicação deverá ser voltada para o valor da justiça, a qual podenão se realizar quando um indivíduo não abrir mão de seu direito total. Emoutras palavras, a Torá estabelecia que os juízes deveriam julgar “além damedida da lei”, desde que considerando o espírito de bondade e de justiçaque deve norteá-la e o fim maior que a fundamenta. 19Finalmente, cabe destacar que o surgimento do Reino de Israel e oreinado de Davi, entre os séculos XI e X a. C., são considerados por Comparatocomo a proto-história dos direitos humanos. Para esse autor, o Reino de Israeltrata-se de um primeiro ensaio de limitação do poder, fator associado àrealização dos direitos humanos, e de “passo decisivo na admissão da existênciade direitos que, inerentes à própria condição humana, dev<strong>em</strong> serREVISTA OPINIÃO JURÍDICA279
Paulo Henrique Gonçalves Portelareconhecidos a todos e não pod<strong>em</strong> ser havidos como mera concessão dos queexerc<strong>em</strong> o poder”. 20 De fato, o Rei Davi era a figura do soberano que não sedeclara deus n<strong>em</strong> legislador, mas sim o responsável supr<strong>em</strong>o pela execuçãode uma lei que lhe é anterior, a divina, <strong>em</strong>anada de um Deus único e transcendente.Para Comparato, esse é o <strong>em</strong>brião daquilo que no futuro seriadesignado “Estado de Direito”, organização política <strong>em</strong> que os governantesnão criam o direito para justificar seu poder, mas se submet<strong>em</strong> às normas deautoridade superior. Posteriormente, na Idade Média, Santo Tomás de Aquinodesenvolveria a mesma linha de pensamento, centrada na idéia de que todosos poderes humanos estavam subordinados e limitados pela lei de Deus.4 A DOUTRINA CRISTÃ: A MISSÃO DE JESUS CRISTOA Palavra de Jesus Cristo d<strong>em</strong>onstra a afinidade da mensag<strong>em</strong> do Cristianismocom os direitos humanos, aportando regras que formam um conjunto deprerrogativas importantes para que a espécie humana viva com dignidade. Emsua missão terrena, Jesus atuou no sentido de promover a pessoa humana pormeio dos diversos atos e milagres que praticou e de uma mensag<strong>em</strong> que, sintetizadano amor a Deus e ao próximo, permitiria “impl<strong>em</strong>entar uma sociedaderealmente livre, justa e solidária” 21 , na qual o indivíduo seria tratado da maneiradigna que corresponde a um ser criado à imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança de Deus.A mensag<strong>em</strong> evangélica proclama a igualdade de todos os seres humanos.De fato, Cristo dirigia sua Palavra e sua ação não só aos judeus adultose homens, mas também a povos e grupos discriminados na sociedade daépoca, como os samaritanos, romanos e estrangeiros <strong>em</strong> geral, crianças, mulheres,pecadores, doentes – a ex<strong>em</strong>plo dos leprosos - e toda sorte de desamparados,antecipando aquilo que São Paulo afirmaria posteriormente <strong>em</strong>Romanos 2,11, ao recordar que “para Deus, não há acepção de pessoas”.Com isso, a mensag<strong>em</strong> de Cristo e os direitos que aporta adquir<strong>em</strong> também ocaráter da universalidade, inerente aos direitos humanos, e caminham paraa superação daquilo que Comparato chamava de “concepção nacionalistada religião” 22 , pela qual cada culto pertencia a um povo específico.No campo da igualdade e da universalidade, quer<strong>em</strong>os ressaltar especificamenteo papel da mulher, que tinha uma posição de total inferioridadena sociedade da época de Cristo. Entretanto, a mulher na Cristandade adquireum protagonismo s<strong>em</strong> muitos precedentes, como é ressaltado pelo papelde destaque conferido na Bíblia a Maria, mãe de Jesus, e a MariaMadalena, primeira pessoa a ter contato com Cristo já ressucitado. Outroponto a sublinhar é o tratamento que Cristo dispensava aos desamparados daépoca, valorizando sua dignidade e atendendo as suas necessidades. Nessesentido, Jesus referia-se com destaque <strong>em</strong> sua mensag<strong>em</strong> ao pobre, às viúvas,aos órfãos, aos cobradores de impostos etc.Entretanto, Jesus fez alusão a muitos outros direitos <strong>em</strong> sua missão queaqui ex<strong>em</strong>plificar<strong>em</strong>os, a começar pela vida, o que se pode d<strong>em</strong>onstrar por280n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanossua oposição à pena de morte contra a mulher adúltera <strong>em</strong> João 8, 1-11,Entretanto, não há maior expressão do valor que Cristo atribuía à vida doque sua própria Ressureição, b<strong>em</strong> como os milagres <strong>em</strong> que devolveu a vidaa Lázaro e à filha de Jairo.Jesus foi um defensor da fraternidade. Com isso, cada pessoa teria odever de tratar ao outro como irmão, como na parábola do hom<strong>em</strong> que tevesua dívida perdoada pelo rei e não perdoou a dívida que outro tinha comele. 23 A fraternidade pregada por Jesus encontra eco na Declaração Universaldos Direitos Humanos, que determina <strong>em</strong> seu primeiro artigo que “Todosos seres humanos nasc<strong>em</strong> livres e iguais <strong>em</strong> dignidade e <strong>em</strong> direitos. Dotadosde razão e de consciência, dev<strong>em</strong> agir uns para com os outros <strong>em</strong> espírito defraternidade”, e na Encíclica Pac<strong>em</strong> in Terris, <strong>em</strong> que o Papa João XXIIIafirma que “A convivência humana requer que os homens colabor<strong>em</strong> nosmúltiplos <strong>em</strong>preendimentos que a civilização cont<strong>em</strong>porânea sugere ou reclama”24 . Ainda nessa linha, Jesus pregava a paz e a misericórdia, proibindoa vingança, ordenando o perdão ao inimigo e exaltando a mansidão no Sermãoda Montanha 25 , <strong>em</strong> que diz: “B<strong>em</strong>-aventurados os mansos, porque possuirãoa terra. B<strong>em</strong>-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão misericórdia.B<strong>em</strong>-Aventurados os que promov<strong>em</strong> a paz, porque serão chamadosFilhos de Deus”.Jesus também fará alusão ao direito ao trabalho, valorizando-o peladimensão de serviço de sua missão, salientada <strong>em</strong> Mateus 20,28, ao proclamar:“Pois o Filho do Hom<strong>em</strong> não veio para ser servido. Ele veio para servire dar a sua vida como resgate de muitos”. Cristo também destaca o direito auma r<strong>em</strong>uneração que permita ao indivíduo e a sua família uma existênciadigna, como na parábola relativa ao dono da vinha que contratou váriostrabalhadores durante todo o dia e pagou aos últimos contratados o mesmoque pagou aos primeiros. 26 Aqui, o pagamento do mesmo salário pode serentendido como o reconhecimento de que todos têm as mesmas necessidadesbásicas.A valorização da família, que é ressaltada na Declaração Universaldos Direitos Humanos, <strong>em</strong> seu artigo 16 (“A família é o el<strong>em</strong>ento natural efundamental da sociedade e t<strong>em</strong> direito à proteção desta e do Estado”) éobjeto de alusão no episódio da mulher adúltera anteriormente mencionado,quando Jesus ordena “vá e não peques mais”. 27A alimentação e a saúde, elencados entre os mais fundamentais direitosna Declaração Universal (artigo 25), também foram objeto de promoçãopor parte de Jesus. Nesse sentido, são célebres o episódio da multiplicaçãodos pães 28 , que ad<strong>em</strong>ais alude à necessidade da distribuição dos frutos dariqueza humana, e os múltiplos milagres, descritos com precisão <strong>em</strong> Lucas 7,22: “Volt<strong>em</strong> e cont<strong>em</strong> a João o que vocês viram e ouviram: os cegos recuperama vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouv<strong>em</strong>,os mortos ressucitam”.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA281
Paulo Henrique Gonçalves PortelaAo finalizar este breve tópico, cabe salientar que todo o ensinamentode Jesus pode se resumir no fundamento básico do amor e na necessidade deconcretizá-lo <strong>em</strong> cada ocasião <strong>em</strong> que se aplicar algum dos Dez Mandamentosou qualquer outro ensinamento cristão. De fato, o amor é a essência,espírito e princípio que norteia toda a mensag<strong>em</strong> evangélica, e nenhumaregra pode ser vista senão sobre essa ótica. Pela leitura da Bíblia, percebe-seque amar é resgatar e construir a dignidade.Por analogia, cabe registrar também que essa visão v<strong>em</strong> a chamar aatenção para a necessidade de que as normas de direitos humanos sejaminterpretadas <strong>em</strong> vista dos princípios que as norteiam e dos valores que procuramconcretizar.5 A IGREJA PRIMITIVAA Igreja Primitiva é aquela que se constituiu logo após o encerramentoda missão de Jesus no mundo e que foi conduzida pelos Apóstolos, principaisdiscípulos de Cristo <strong>em</strong> sua missão na Terra.Em seus primórdios, a Igreja Primitiva procurava pautar sua atuaçãopela promoção da dignidade humana, princípio basilar da proteçãodos direitos humanos. Nesse sentido, costuma-se destacar a ação da Igrejano sentido de garantir o atendimento às necessidades básicas de todos osm<strong>em</strong>bros da comunidade, como a alimentação e a moradia, e de combatera desigualdade pela partilha dos bens, como se impl<strong>em</strong>entasse umapauta daquilo que hoje conhec<strong>em</strong>os como “Direitos de Segunda Dimensão”.Em Atos dos Apóstolos 2, 44, lê-se: “Todos os que abraçavam a féeram unidos e colocavam <strong>em</strong> comum todas as coisas; vendiam suas propriedadese seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme anecessidade de cada um”.Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a Igreja Primitiva, especialmente a partir de Paulo,veio a consolidar a afirmação da universalidade desses direitos, ao superara pr<strong>em</strong>issa de que Deus teria privilegiado apenas um “povo eleito”,único destinatário da mensag<strong>em</strong> divina. Nesse sentido, Pedro declara nosAtos dos Apóstolos 10, 34: “Então na verdade reconheço que Deus não fazacepção de pessoas“. Já Paulo afirma, <strong>em</strong> Gálatas 3,28, que “Não há judeun<strong>em</strong> grego; não há escravo n<strong>em</strong> livre; não há hom<strong>em</strong> n<strong>em</strong> mulher; porquetodos vós sois um <strong>em</strong> Cristo Jesus” e <strong>em</strong> Romanos 10,12 que “Porquantonão há distinção entre judeu e grego; porque o mesmo Senhor o é de todos,rico para com todos os que o invocam”. Cabe recordar que Paulo sedestacou na história do Cristianismo como o principal discípulo responsávelpelo início do processo de difusão da mensag<strong>em</strong> cristã além das fronteirasde Israel, levando a Palavra até a Grécia e Roma, dentre outras regiões,afirmando sua aplicabilidade para o mundo inteiro e reafirmando afiliação divina de todos os homens.282n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanos6 DE LEÃO XIII A JOÃO PAULO IIA partir do final do século XIX, época marcada pela Revolução Industriale pela reação do marxismo às graves injustiças sociais existentes, a Igreja Católicapassou a atuar de maneira mais enfática no campo dos direitos humanos. 29Naquela época, conduzia a Igreja o Papa Leão XIII, que lançou uma série deencíclicas que ressaltavam o valor dos direitos da pessoa humana, dentre asquais se destaca a Rerum Novarum, que veio a conceder particular importânciaaos direitos do indivíduo no campo social e a contribuir decisivamente para aconformação daquilo que se chamaria “Doutrina Social da Igreja”.Na Rerum Novarum, o Papa Leão XIII criticava a precariedade dascondições de vida dos trabalhadores e, <strong>em</strong> resposta, preconizava a valorizaçãodo trabalho, entendido não como mera mercadoria, mas como importantepara dignificar a existência humana. A propriedade privada continuavasendo considerada um direito, mas com função social, devendo ser usada <strong>em</strong>benefício de vários atores da sociedade, e não de um só proprietário. O Estado,por sua vez, deveria regular os interesses privados e coletivos <strong>em</strong> prol dob<strong>em</strong> comum e da dignidade humana.Os Papas seguintes continuaram a pautar a ação da Igreja Católica pelapromoção dos direitos humanos. Bento XV (1914-1922) ganhou notoriedadepor sua defesa da paz durante a I Guerra Mundial. Pio XI (1922-1939), citadopor Bicudo 30 , veio a destacar <strong>em</strong> suas encíclicas a defesa da liberdade diantedo totalitarismo <strong>em</strong> voga <strong>em</strong> muitas partes do mundo na época e da igualdadecontra o racismo nazista, b<strong>em</strong> como manteve a pregação de Leão XIII peladignidade no trabalho e pelo caráter individual e social da propriedade. Já PioXII veio a propor a criação de instituições internacionais que, após a II GuerraMundial, tivess<strong>em</strong> a missão de promover a proteção dos direitos humanos. 31No pontificado de João XXIII (1958-1963), num mundo de grandeprogresso econômico e tecnológico, as encíclicas Mater et Magistra e Pac<strong>em</strong>in Terris enfatizam os direitos dos indivíduos e dos povos aos frutos dosavanços da humanidade e a necessidade da socialização einternacionalização das riquezas, direitos e liberdades. Nesse contexto, oConcílio Vaticano II, convocado por João XXIII, reafirma a excelsa dignidadeda pessoa humana, sua superioridade sobre as coisas e seus direitos edeveres universais e invioláveis. Assim sendo, prega que é necessário quese facilite ao hom<strong>em</strong> tudo o que é necessário para que viva uma vida digna,como o alimento, vestuário, habitação, educação, trabalho, informação,proteção da vida privada e da liberdade religiosa. A ord<strong>em</strong> socialdeve subordinar-se ao b<strong>em</strong> do ser humano. E, finalmente, o Concílio clamacontra uma série de afrontas contra a dignidade do indivíduo, como aescravidão, a tortura, as condições subumanas de vida, a prostituição, asmás condições de trabalho etc.No papado de Paulo VI, a questão social continua a ser salientada. Aquicabe destacar o papel da encíclica Populorum Progressio, que enfatiza os proble-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA283
Paulo Henrique Gonçalves Portelamas econômicos e insiste na evolução integral do hom<strong>em</strong>, o que alude ao fato deque os direitos humanos preconizam o desenvolvimento total da pessoa. Já JoãoPaulo II continuou a marcar a atuação da Igreja no combate às distorções daeconomia de mercado. Entretanto, outros t<strong>em</strong>as adquiriram destaque, como ocombate ao totalitarismo, a promoção da paz e a defesa do direito à vida.7 A CONTRIBUIÇÃO DA DOUTRINA CRISTÃ PARA OS DIREITOSHUMANOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL: BREVE SÍNTESEA Constituição Federal incorpora vários direitos que também se encontramprevistos no bojo da doutrina cristã, alguns dos quais mencionar<strong>em</strong>osaqui a título de ex<strong>em</strong>plo, com destaque para aqueles incluídos entre osPrincípios Fundamentais e os Direitos e Garantias Fundamentais, o que indicaa relevância que lhes foi atribuída no ordenamento jurídico brasileirocomo dispositivos essenciais para a construção de uma sociedade onde cadaindivíduo possa ter uma existência digna.O art. 1º, III, da Carta Magna indica como um dos fundamentos daRepública Federativa do Brasil a “dignidade da pessoa humana”, valor basilarpara os direitos humanos. Essa dignidade deverá ser promovida nos termosdo art. 3º, que dispõe o que se segue:Constitu<strong>em</strong> objetivos fundamentais da República Federativa doBrasil:I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;II - garantir o desenvolvimento nacional;III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir asdesigualdades sociais e regionais;IV - promover o b<strong>em</strong> de todos, s<strong>em</strong> preconceitos de orig<strong>em</strong>, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.Também o art. 5º, caput, refere-se a direitos presentes no Cristianismo:“Todos são iguais perante a lei, s<strong>em</strong> distinção de qualquer natureza,garantindo-se a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidadedo direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Nomesmo artigo, são enumerados vários outros direitos mencionados na Bíbliae objeto da doutrina cristã, como a igualdade entre homens e mulheres (inc.I), proteção à honra e à intimidade (inc. X), direito à propriedade e suafunção social (incisos XXII e XXIII), herança (inc. XXX), exercício da jurisdiçãoe direito ao julgamento justo (incisos XXXV, XXXVII, LVII, LII eLIV), proibição da discriminação racial (inc. XLII) e tratamento humanoaos presos (incisos VII e XLIX).Nos artigos 6º e 7º, que abrang<strong>em</strong> os Direitos Sociais, inclu<strong>em</strong>-se direitosaos quais encontramos referência no Antigo e no Novo Testamento, como284n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanosa educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a proteção à maternidade e àinfância e a assistência aos desamparados. Já os trabalhadores terão direitos,indicados no art. 7º, como um salário mínimo que atenda suas necessidadesbásicas e as de sua família (inc. IV), proteção do salário e criminalização desua retenção (inc. X), repouso (descanso s<strong>em</strong>anal e férias, mencionados nosincisos XV e XVII) e proibição de discriminação (incisos XXX e XXXI).A Constituição menciona ainda vários outros direitos que encontramrespaldo na doutrina cristã, como a proteção do meio ambiente (art. 225).Destacamos, ad<strong>em</strong>ais, que o capítulo relativo à Ord<strong>em</strong> Econômica e Socialestabelece, no art. 170, que “A ord<strong>em</strong> econômica, fundada na valorização dotrabalho humano e na livre iniciativa, t<strong>em</strong> por fim assegurar a todos existênciadigna, conforme os ditames da justiça social”, fundamentada <strong>em</strong> princípioscomo a propriedade privada e sua função social, a proteção do meioambiente e redução das desigualdades sociais e regionais.8 CONCLUSÃODiante do exposto neste trabalho, pode-se concluir que valores incluídosno âmbito da doutrina cristã se afinam com os direitos humanos. Nesse sentido,esses princípios e regras, b<strong>em</strong> como a atuação da Igreja, vão efetivamente colaborarno processo - ainda <strong>em</strong> curso - de construção do sist<strong>em</strong>a dedicado a suaproteção, até mesmo por conta do papel que o Cristianismo teve na conformaçãode alguns dos principais ordenamentos jurídicos do mundo.A preocupação cristã com os direitos humanos é proclamada pelo PapaJoão XXIII na Encíclica Pac<strong>em</strong> in Terris, <strong>em</strong> que declara que “o hom<strong>em</strong> t<strong>em</strong>direitos e deveres que <strong>em</strong>anam direta e simultaneamente de sua própria natureza,sendo assim tais direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis”.A título de síntese, entend<strong>em</strong>os que esses direitos e deveres pod<strong>em</strong>estar sintetizados no texto evangélico relativo ao Juízo Final 32 , o qual reproduzimosparcialmente <strong>em</strong> seguida:Quando o Filho do hom<strong>em</strong> vier na sua glória, acompanhado detodos os anjos, então se assentará <strong>em</strong> seu trono glorioso. Todos ospovos da terra serão reunidos diante dele, e Ele separará uns dosoutros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Ecolocará as ovelhas à sua direita, e os cabritos à sua esquerda.Então o Rei dirá aos que estiver<strong>em</strong> à sua direita: Vinde, benditosde meu Pai. Recebam como herança o Reino que meu Pai lhespreparou desde a criação do mundo. Porque tive fome, e medestes de comer; tive sede, e me destes de beber; era estrangeiro,e me receberam <strong>em</strong> sua casa; estava nu, e me vestistes; estavadoente, e me visitastes; estava na prisão, e fostes me visitar. Entãoos justos lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos comfome, e te d<strong>em</strong>os de comer, com sede, e te d<strong>em</strong>os de beber?Quando foi que te vimos estrangeiro, e te receb<strong>em</strong>os <strong>em</strong> casa, ouREVISTA OPINIÃO JURÍDICA285
Paulo Henrique Gonçalves Portelanu e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou na prisão efomos te visitar? Então o Rei lhes responderá: Em verdade vosdigo: todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meusirmãos, foi a mim que o fizestes.Com o texto que acabamos de citar, pod<strong>em</strong>os reunir dois aspectos fundamentaisde nosso trabalho. Primeiro, a dignidade da pessoa humana, imag<strong>em</strong>e s<strong>em</strong>elhança de Deus, salientada por Jesus - que também é Deus paraa teologia cristã - ao dizer que “todas as vezes que fizestes isso a um dosmenores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes”. Segundo, o fato de queessa dignidade requer o atendimento de certas necessidades e a observânciade certas prerrogativas básicas para a existência humana, que pod<strong>em</strong> serchamadas de “direitos humanos”. Esses direitos são objeto de reiteradas mençõesno âmbito da doutrina cristã, na qual são colocados como requisitospara um mundo de paz e justiça duradouros, que se confund<strong>em</strong> com o Reinodos Céus, onde só entrarão aqueles que estiver<strong>em</strong> atuando no sentido degarantir a concretização desses direitos.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALMEIDA, Guilherme Assis de; PERRONE-MOISÉS, Cláudia (Coord.).Direito internacional dos direitos humanos: instrumentos básicos. São Paulo:Atlas, 2002.BÍBLIA Sagrada. Tradução, introdução e notas de Ivo Storniolo e EuclidesMartins Balancín. São Paulo: Edições Paulinas, 1990.BICUDO, Hélio Pereira. Direitos humanos e sua proteção. São Paulo: FTD, 1997.BLÁZQUEZ, Niceto. Los derechos del hombre. Madrid: BAC Popular, 1980.COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003.COHN, Haim H. Human rights in the Bible and Talmud. Tel-Aviv: MODBooks, 1989.HERKENHOFF, João Baptista. Curso de direitos humanos: gênese dos direitoshumanos. São Paulo: Acadêmica, 1994, v. I.MARQUES, Roberta Lia Sampaio de Araújo. A contribuição da doutrinacristã para os direitos fundamentais. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, anoI, n. 2, p. 147-160, 2003.2.OLIVEIRA FILHO, João de. Orig<strong>em</strong> cristã dos direitos fundamentais do hom<strong>em</strong>.São Paulo: Forense, 1968.286n. 6 - 2005.2
Contribuição da doutrina cristã para o desenvolvimento dos direitos humanosPIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4.ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la etica en la sociedad actual.Madrid: Civitas, 1995.WEIS, Carlos. Direitos humanos cont<strong>em</strong>porâneos. São Paulo: Malheiros, 1999.1COMPARATO, Fábio Konder, A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo:Saraiva, 2003, p. 1.2Ibid., p. 1.3Gênesis, 1, 26-28.4HERKENHOFF, João Baptista. Curso de direitos humanos: gênese dos direitos humanos. São Paulo:Acadêmica, 1994, v. I, p. 37.5Gênesis 1, 27: “E criou Deus o hom<strong>em</strong> à sua imag<strong>em</strong>; à imag<strong>em</strong> de Deus o criou; hom<strong>em</strong> e mulher oscriou”.6Deuteronômio 10, 17.7BLÁZQUEZ, Niceto, Los derechos del hombre. Madrid: BAC Popular, 1980, p. 32.8ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la etica en la sociedad actual. Madrid: Civitas, 1995, p. 33.9Artigo 1: Todos os homens nasc<strong>em</strong> livres e iguais <strong>em</strong> dignidade e direitos. São dotados de razão econsciência e dev<strong>em</strong> agir <strong>em</strong> relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Artigo 29: I) Todo ohom<strong>em</strong> t<strong>em</strong> deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidadeé possível.10COHN, Haim H. Human rights in the Bible and Talmud. Tel-Aviv: MOD Books, 1989, p. 9.11Ibid., p. 20-22.12Jer<strong>em</strong>ias 22,13.13Efésios 4, 28: Aquele que furtava, não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o queé bom, para que tenha como acudir ao necessitado.”14COHN, op. cit., p. 42-43.15O teor completo desses preceitos encontra-se <strong>em</strong> Deuteronômio 15, 7-8, Isaías 1, 17 e 10, 1-2, Jer<strong>em</strong>ias22,13, e Ezequiel 18, 7-9.16Levítico 25, 8-23.17Êxodo, 23, 10-11 e Levítico 25, 1-7.18Para maiores informações, cf. Êxodo 18, 21-22, 23, 1-8 e 21, 18.19COHN, op. cit., p. 14-17.20COMPARATO, op. cit., p. 40.21MARQUES, Roberta Lia Sampaio de Araújo. A contribuição da doutrina cristã para os direitosfundamentais. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano I, n. 2, 2003.2, p. 159.22COMPARATO, op. cit., p. 18.23Mateus 18, 23-35.24Cf. OLIVEIRA FILHO, João de. Orig<strong>em</strong> cristã dos direitos fundamentais do hom<strong>em</strong>. São Paulo: Forense,1968, p. 23.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA287
Paulo Henrique Gonçalves Portela25Mateus 5, 1-12.26Mateus 21, 1-16.27João 8 , 11.28Mateus, 13-21.29BLÁZQUEZ, op. cit., p. 34 et seq.30BICUDO, Hélio Pereira. Direitos humanos e sua proteção. São Paulo: FTD, 1997, p. 26.31Ibid.,.p. 26-27.32Mateus 31, 46.CONTRIBUTION OF CHRISTIAN DOCTRINEFOR THE DEVELOPMENT OF HUMAN RIGHTSABSTRACTThis article aims at concisely presenting thecontribution Christian doctrine offered for humanrights, <strong>em</strong>phasizing the support given for shaping asyst<strong>em</strong> based upon the ideas of dignity, equality euniversality, as well as highlighting some valuesmentioned in the Bible and in Church teaching.KEYWORDS: Human Rights. Christian doctrine.Dignity. Equality. Universality.CONTRIBUTION DE LA DOCTRINECHRÉTIENNE POUR LE DÉVELOPPEMENTDES DROITS DE L’HOMMERÉSUMÉIl s’agit d’un article sur la contribution de la doctrinechrétienne faite aux droits de l’homme. Il met l’accentsur le support attribué pour l’établiss<strong>em</strong>ent d’un systèmebasé sur la dignité, l’équité et l’universalité. Il<strong>em</strong>phatises aussi les valeurs bibliques et del’enseign<strong>em</strong>ent religieux.MOTS-CLÉS: Droits de l’homme. Doctrinechrétienne. Dignité. Equité. Universalité.288n. 6 - 2005.2
HISTÓRICO DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA NOBRASIL: OS ARBÍTRIOS DA JUSTIÇA REAL, OCONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO CONSELHO DEESTADO E A LIMITAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FE-DERAL DE CONHECER QUESTÕES DE NATUREZA PURA-MENTE POLÍTICAVanna Coelho Cabral*1 Introdução. 2 Organização político-administrativa da justiçano Brasil colonial. 3 Função jurisdicional do Conselho de Estado.4 Questão puramente política. 5 Conclusão. Referências.RESUMOA justiça das primeiras décadas da história do Brasilcaracterizava-se pela prática de desmandos. A Carta Políticade 1824 criou o Conselho de Estado, usurpando a funçãojurisdicional do Poder Judiciário sobre questões de naturezapública. A Supr<strong>em</strong>a Corte brasileira d<strong>em</strong>arcou seus limitesde atuação, vedando a si própria de conhecer de assuntosconsiderados puramente políticos, tendo as Constituições de1934 e de 1937 sido expressas nesta restrição.PALAVRAS-CHAVE: Justiça. História do Brasil. PoderJudiciário.1 INTRODUÇÃOEste trabalho pretende analisar a administração da justiça na infânciado Brasil, pois, como disse Erasmo de Roterdam: o t<strong>em</strong>po corre mais para opassado do que para o futuro. É preciso segurar o passado porque de suas luzesdepend<strong>em</strong> todos <strong>em</strong> todos os t<strong>em</strong>pos.Iniciou-se este estudo observando a atividade da justiça na épocacolonial, t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que justiça não se confundia com Judiciário, pois ainda*Mestre <strong>em</strong> Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professora Substituta doDepartamento de Direito Privado da Universidade Federal do Ceará. Professora do Curso de Direito da<strong>Faculdade</strong> <strong>Christus</strong>.REVISTA OPINIÃO JURÍDICA289
Vanna Coelho Cabralnão havia tal Poder. Também não havia autonomia <strong>em</strong> relação à Metrópole.Entretanto a independência da justiça no Brasil veio antes mesmo da <strong>em</strong>ancipaçãopolítica, pois, antes do Grito do Ipiranga, o Brasil já possuía todos ostribunais, inclusive o de última instância, a Casa de Suplicação, s<strong>em</strong> haver,então, necessidade de r<strong>em</strong>eter os recursos a Portugal. O período foi marcadopelos arbítrios dos representantes da vontade real.Observou-se que, ao t<strong>em</strong>po do Império, havia um Conselho de Estado,responsável pelo contencioso administrativo, que absorvia todas as questõesque versass<strong>em</strong> contra atos da Administração Pública ou que envolvesseinteresse da Fazenda Pública, limitando o Poder Judicial à apreciação decontrovérsias de natureza privada.Nova limitação surgiu na República. A Supr<strong>em</strong>a Corte brasileira decidiuque não era competente para apreciar questões de natureza política;porém, o que não seria questão política quando a este tribunal cabe justamenteo controle da constitucionalidade dos atos administrativos elegislativos?2 ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DA JUSTIÇA NOBRASIL COLONIALA administração da justiça, desde o século XIII, era um atributo doRei. Considerando-se “que a administração portuguesa estendeu ao Brasilsua organização e seu sist<strong>em</strong>a, e não criou nada de original para a colônia” 1 ,a justiça no Brasil era real. Tanto o é que Roque da Costa Barreto, Governador-Geraldo Brasil, <strong>em</strong> regimento de 23 de janeiro de 1677, afirmava: “ajustiça é de tão grande particular atribuição minha, e tão necessária para aconservação e acrescentamento dos Estados, que tudo o que na administraçãodela encomendar e encarregar, será muito menos do que desejo [sic]”. 2As Ordenações que regeram a vida colonial, Manuelinas e, especialmente,Filipinas, d<strong>em</strong>arcavam “imperfeitamente as atribuições dos diversosfuncionários, s<strong>em</strong> a preocupação – desusada na época – de separar as funçõespor sua natureza. Daí a acumulação de poderes administrativos, judiciaise de polícia nas mãos das mesmas autoridades”. 3 À época de MartimAfonso de Sousa, que trouxe a primeira expedição colonizadora portuguesano Brasil, <strong>em</strong> 1530, a administração possuía amplos poderes judiciais e policiais.“Somente a começar da lei de 1871 far-se-ão tentativas mais sériaspara confiar essas atribuições a autoridades distintas”. 4O risco da justiça real, afirma Wehling, consiste <strong>em</strong> os funcionáriosexorbitar<strong>em</strong> no des<strong>em</strong>penho de suas funções, “abusando do poder que lhesfora conferido e deixando de representar o Rei a favor de seus próprios interesses,risco que se acentuava com a distância”. 5 E foi justamente o queaconteceu no Brasil. A justiça das primeiras décadas da história do Brasilcaracterizava-se pela prática costumeira de arbítrios. “O probl<strong>em</strong>a da impu-290n. 6 - 2005.2
Histórico da administração da Justiça no Brasil: os arbítrios da Justiça Real, o contencioso administrativo do Conselho de Estado e alimitação do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal de conhecer questões de natureza puramente políticanidade e da corrupção, tão causticados por Vieira no contexto português,aparece também com freqüência a propósito do Brasil. Lamentava na colônianão a presença de delitos, mas a ‘falta de castigo deles’”. 6 “No cotidianoda justiça colonial, são muitas as manifestações de preocupação nas consultasdo Conselho Ultramarino a respeito de probl<strong>em</strong>as como a impunidade, ainobservância da legislação ou a corrupção”. 7As gentes que primeiro habitaram esta costa eram, <strong>em</strong> geral,exilados por atos cometidos <strong>em</strong> Portugal: e como no princípio nãohavia justiça régia... havia pouco zelo da Justiça, assim da partedos que governavam... governavam de preferência com base <strong>em</strong>respeitos humanos, amizades, ódios e ganhos pessoais, do que naprópria razão, - como da parte dos súditos os quais não havendo(como diz<strong>em</strong>), outra justiça que as murmurações, viviam comtoda soltura, não tendo ninguém para contrariá-lo [sic]. 8A chegada da Justiça Régia com o Governo-Geral, <strong>em</strong> 1549, apesarde ter iniciado a estruturação do Judiciário brasileiro, trazendo oDes<strong>em</strong>bargador Pero Borges para des<strong>em</strong>penhar a função de Ouvidor-Geral,não alterou muito a qualidade da Justiça.Neste t<strong>em</strong>po, a administração da justiça real concedida sob delegaçãodo Rei cabia aos Donatários. “Essa jurisdição, definida nos forais e cartasde doação, dava aos donatários amplo exercício da justiça cível e criminal,por si e pelos ouvidores que poderiam nomear”. 9 Havia um Ouvidor-Geral,residente na Bahia, e os Ouvidores das Comarcas, <strong>em</strong> cada Capitania, maseram hierarquicamente inferiores. Ao primeiro se recorreria das decisõesdos últimos. O Ouvidor-Geral detinha funções de governo e de administração,previstas na legislação, o que “transformava-os num poderoso agentecentralizador, pelo menos na letra da lei”. 10 Os Ouvidores das Comarcas,além de solucionar as discussões jurídicas nas aldeias, também des<strong>em</strong>penhavamfunções administrativas. Detinham controle sobre o povoamento e despovoamento,sobre a realização de obras públicas, criação de vilas, construçãode igrejas, supervisionavam a arrecadação tributária e os indígenasaldeados <strong>em</strong> suas comarcas.As d<strong>em</strong>ais figuras do Judiciário, como Juízes e Corregedores, começarama surgir no Brasil na medida <strong>em</strong> que a colonização foi se ampliando,exigindo-se da Coroa uma estrutura mais elaborada. Passaram a existir doisjuízes - Juiz Ordinário e Juiz de Fora, com funções policiais e jurisdicionais,dirigidos pelo Ouvidor da Comarca e submetidos à inspeção do Corregedor. 11Como os abusos ainda eram contínuos, Filipe I de Portugal decidiu,<strong>em</strong> 1587, instituir, na Bahia, um Tribunal de Relação, que só viria a serefetivamente inaugurado <strong>em</strong> 1605. Com a nova estrutura, os juízes, que entãojá eram de três espécies – Juiz Ordinário, Juiz de Fora e Juiz de Vintena,o Ouvidor e o Corregedor ficavam no mesmo patamar, submetidos à autori-REVISTA OPINIÃO JURÍDICA291
Vanna Coelho Cabraldade da Relação da Bahia e esta, à Casa de Suplicação, <strong>em</strong> Portugal. 12Posteriormente, <strong>em</strong> 1734, foi criada outra Relação, no Rio de Janeiro, que sófoi efetivamente instalada <strong>em</strong> 1751. Na realidade, como afirma Palacin, foiuma “solução d<strong>em</strong>asiado fácil para tão profundos males. Como sucede comtantas esperanças humanas, o que se pensava que havia de ser o fim dosmales e o começo de uma nova época, d<strong>em</strong>onstrou ser apenas um elo entreos vícios velhos e outros novos”. 13 Os Tribunais de Relação também, ao ladodas atividades judiciais, des<strong>em</strong>penhavam funções administrativas.“Consultoria a governadores e vice-reis, definição de limites entre capitanias,sindicâncias policiais <strong>em</strong> navios e <strong>em</strong> várias outras intervenções de caráterpolítico e administrativo assinalam a latitude de suas responsabilidades,fora da esfera judicial”. 14A administração da justiça nos municípios era dominada pelo“senhoriato rural, cuja influência elegia juízes e vereadores e d<strong>em</strong>ais funcionáriossubordinados às câmaras”. 15 Entretanto “na medida <strong>em</strong> que os juízesordinários, eletivos, iam sendo substituídos pelos juízes de fora, de nomeaçãorégia, foi a Coroa se assenhorando de parte considerável do governo local”. 16Mesmo assim, os juízes e os órgãos judiciais, <strong>em</strong>bora com amplos poderes,possuíam atuação, na realidade, restrita. “A justiça oficial, formal, letrada edispendiosa, penetrava precariamente <strong>em</strong> regiões cuja população era formadamajoritariamente por analfabetos e pobres que não entendiam o direitoescrito e pagavam com dificuldades as custas judiciais”. 17 Tampouco a justiçareal chegava até as áreas latifundiárias do cultivo da cana e da criaçãopecuarista, onde imperava a justiça privada.O mandonismo rural elaborava suas próprias regras jurídicas,<strong>em</strong>píricas e violentas, subtraindo da apreciação da magistraturalocal casos de pressão e abusos de poder ou impondo seus interessesa magistrados intimidados pela presença muitas vezes tirânica docapitão-mor da vila. 18Existiam ainda esferas jurídicas que fugiam do alcance da justiça estatala ex<strong>em</strong>plo dos quilombos e das comunidades indígenas não aculturadas,que se organizavam sob seus próprios costumes jurídicos. “Se consideradas aspopulações e as áreas geográficas onde era precária ou inexistente a ord<strong>em</strong>estatal portuguesa, constatar<strong>em</strong>os que ‘o país legal’ efetivamente controlavaparcela restrita do ‘país real”. 19Era bastante difícil o acesso entre as províncias distantes àquela época,o que atrapalhava a interposição de recursos das vilas afastadas para a Relaçãoda Bahia. Por isto, no período do Vice-Reinado, <strong>em</strong> 1758, foi criada a Junta deJustiça do Pará, presidida pelo Governador da Província e composta peloOuvidor, o Intendente, um Juiz de Fora e três Vereadores. A partir de então,outras juntas s<strong>em</strong>elhantes foram sendo criadas para atender os locais maislongínquos da Colônia. Elas adotavam uma forma processual sumária.292n. 6 - 2005.2
Histórico da administração da Justiça no Brasil: os arbítrios da Justiça Real, o contencioso administrativo do Conselho de Estado e alimitação do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal de conhecer questões de natureza puramente políticaNo fim do período colonial, o Brasil possuía seus juízes e tribunais desegunda instância (Relações da Bahia e do Rio de Janeiro) próprios, mascom as últimas instâncias instaladas <strong>em</strong> Portugal: Casa de Suplicação,Des<strong>em</strong>bargo do Paço, Mesa da Consciência e Ordens. 20 A Casa de Suplicaçãoera tribunal de terceira e última instância, Corte Supr<strong>em</strong>a <strong>em</strong> Portugal e noBrasil, constituindo suas decisões assentos que deveriam ser acolhidos pelasinstâncias inferiores como jurisprudência vinculante. O Des<strong>em</strong>bargo do Paçoconcedia graças, indultos e privilégios solicitados ao Rei. Também era responsávelpela confirmação de adoções, de suprimentos de idades, de reintegraçãode posse e pela censura de livros. “Era menos órgão judiciário que deassistência, <strong>em</strong>bora fizesse revisão de sentenças e acórdãos cíveis e criminais”.21 A Mesa da Consciência, criada <strong>em</strong> 1531, posteriormente intituladade Mesa da Consciência e Ordens, “consultava o Rei nos casos de ‘consciência’deste” 22 sobre questões jurídicas e administrativas atinentes às ordensmilitar-religiosas, que tinham foro privilegiado, tais como Ordens de Cristo,Ord<strong>em</strong> de Avis e Ord<strong>em</strong> de Santiago. Também, desviando-se de sua função,julgava os pleitos eclesiásticos, envolvendo os clérigos do Reino.A <strong>em</strong>ancipação judiciária brasileira veio antes mesmo da <strong>em</strong>ancipaçãopolítica, quando os Tribunais Superiores da Metrópole foram transferidospara o Brasil. O Príncipe D. João, <strong>em</strong> Alvará de 10 de maio de 1808,determinou:Tomando <strong>em</strong> consideração o muito que interessa o estado e ob<strong>em</strong> comum e particular dos meus leais vassalos <strong>em</strong> que aadministração da justiça não tenha <strong>em</strong>baraços, que a retard<strong>em</strong>ou estorv<strong>em</strong>, e se faça com a prontidão e a exatidão que convéme que afiança a segurança pessoal e dos sagrados direitos depropriedade [...] e exigindo as atuais circunstâncias novasprovidências, não só por estar interrompida a comunicação comPortugal, e ser por isto impraticável seguir<strong>em</strong>-se os agravosordinários e apelações que até aqui se interpunham para a Casade Suplicação de Lisboa, vindo a ficar os pleitos s<strong>em</strong> decisãoúltima com manifesto detrimento dos litigantes, e do público,que muito interessam [sic] <strong>em</strong> que não haja incerteza dedomínios, querendo providenciar de um modo seguro estesinconvenientes e os que pod<strong>em</strong> recrescer para o futuro <strong>em</strong>benefício do aumento e prosperidade da causa pública, sou servidodeterminar o seguinte: I - A relação desta cidade se denominaráCasa de Suplicação do Brasil, e será considerada como SuperiorTribunal de Justiça. 23Posteriormente, o Des<strong>em</strong>bargo do Paço e a Mesa de Consciência eOrdens fundiram-se <strong>em</strong> um único órgão: Mesa do Des<strong>em</strong>bargo do Paço e daConsciência e Ordens. Criaram-se as Relações do Maranhão, <strong>em</strong> 1812, e dePernambuco, <strong>em</strong> 1821, e a figura do “Juiz Conservador da Nação Britânica”,que servia como garanti