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Comentário Evangelho Segundo João - Vol. 1

Comentário de João Calvino no Evangelho Segundo João - Vol. 1.

Comentário de João Calvino no Evangelho Segundo João - Vol. 1.

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SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS<br />

JOÃO CALVINO<br />

<strong>João</strong><br />

<strong>Evangelho</strong> segundo<br />

<strong>Vol</strong>.<br />

1


C168e Calvino, <strong>João</strong>, 1509-1564<br />

v. 1 O evangelho segundo <strong>João</strong> / <strong>João</strong> Calvino ; [prefácio de<br />

Franklin Ferreira ; tradução de Valter Graciano Martins].<br />

– São José dos Campos, SP : Fiel, 2015.<br />

498 p. ; 21cm. – (<strong>Comentário</strong>s bíblicos. O evangelho<br />

segundo <strong>João</strong> ; v. 1)<br />

Tradução de: Calvin’s commentaries: the gospel<br />

according to John.<br />

Inclui referências bibliográficas.<br />

ISBN 978-85-8132-190-5<br />

1. Bíblia. <strong>João</strong> - <strong>Comentário</strong>s. I. Título. II. Ferreira,<br />

Franklin. III. Martins, Valter Graciano. III. Série.<br />

CDD: 226.5<br />

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo – CRB07/6477<br />

<strong>Evangelho</strong> <strong>Segundo</strong> <strong>João</strong><br />

Série <strong>Comentário</strong>s Bíblicos<br />

<strong>João</strong> Calvino<br />

Título do Original: Calvin’s Commentaries:<br />

The Gospel According to John<br />

Edição baseada na tradução inglesa de T.<br />

A. Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans<br />

Publishing Company, Grand Rapids, MI, USA,<br />

1964, e confrontada com a tradução de John<br />

Pringle, Baker Book House, Grand Rapids, MI,<br />

USA, 1998.<br />

•<br />

Copyright © Editora Fiel 2013<br />

Primeira Edição em Português 2015<br />

Todos os direitos em língua portuguesa<br />

reservados por Editora Fiel da<br />

Missão Evangélica Literária<br />

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer<br />

meios, sem a permissão escrita dos editores,<br />

salvo em breves citações, com indicação da fonte.<br />

A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e<br />

Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)<br />

•<br />

Diretor: James Richard Denham III<br />

Editor: Tiago J. Santos Filho<br />

Tradução: Rev. Valter Graciano Martins<br />

Revisão: Paulo César Valle<br />

Capa: Edvânio Silva<br />

Diagramação: Rubner Durais<br />

ISBN: 978-85-8132-190-5<br />

Caixa Postal 1601<br />

CEP: 12230-971<br />

São José dos Campos, SP<br />

PABX: (12) 3919-9999<br />

www.editorafiel.com.br


Sumário<br />

Prefácio à Edição em Português............................................11<br />

Epístola Dedicatória................................................................19<br />

Argumento da Epístola de Paulo aos Romanos...................25<br />

Capítulo 1<br />

Versículos 1 a 5..............................................................29<br />

Versículos 6 a 13............................................................39<br />

Versículo 14....................................................................49<br />

Versículos 15 a 18..........................................................53<br />

Versículos 19 a 23..........................................................59<br />

Versículos 24 a 28..........................................................63<br />

Versículos 29 a 34..........................................................67<br />

Versículos 35 a 39..........................................................74<br />

Versículos 40 a 42..........................................................76<br />

Versículos 43 a 46..........................................................78<br />

Versículos 47 a 51..........................................................82<br />

Capítulo 2<br />

Versículos 1 a 11............................................................87<br />

Versículos 12 a 17..........................................................96<br />

Versículos 18 a 22........................................................101<br />

Versículos 23 a 25........................................................106


Capítulo 3<br />

Versículos 1 a 6............................................................111<br />

Versículos 7 a 12..........................................................122<br />

Versículos 13 a 18........................................................128<br />

Versículos 19 a 21........................................................136<br />

Versículos 22 a 28........................................................139<br />

Versículos 29 a 34........................................................143<br />

Versículos 35 a 36........................................................150<br />

Capítulo 4<br />

Versículos 1 a 9............................................................153<br />

Versículos 10 a 15........................................................158<br />

Versículos 16 a 21........................................................163<br />

Versículos 22 a 26 .......................................................170<br />

Versículos 27 a 34 .......................................................178<br />

Versículos 35 a 38 .......................................................183<br />

Versículos 39 a 45 .......................................................187<br />

Versículos 46 a 54 .......................................................192<br />

Capítulo 5<br />

Versículos 1 a 9............................................................199<br />

Versículos 10 a 16........................................................206<br />

Versículos 17 a 19........................................................211<br />

Versículos 20 a 24 .......................................................215<br />

Versículos 25 a 29 .......................................................221<br />

Versículos 30 a 32 .......................................................227<br />

Versículos 33 a 36 .......................................................229<br />

Versículos 37 a 40 .......................................................233<br />

Versículos 41 a 47 .......................................................237<br />

Capítulo 6<br />

Versículos 1 a 13..........................................................245<br />

Versículos 14 a 21........................................................252


Versículos 22 a 25........................................................257<br />

Versículos 26 a 29........................................................259<br />

Versículos 30 a 33........................................................265<br />

Versículos 34 a 40........................................................269<br />

Versículos 41 a 45........................................................275<br />

Versículos 46 a 51........................................................280<br />

Versículos 52 a 58........................................................284<br />

Versículos 59 a 64........................................................291<br />

Versículos 65 a 71........................................................298<br />

Capítulo 7<br />

Versículos 1 a 8............................................................305<br />

Versículos 9 a 13..........................................................310<br />

Versículos 14 a 19........................................................312<br />

Versículos 20 a 24 .......................................................318<br />

Versículos 25 a 30........................................................321<br />

Versículos 31 a 36........................................................326<br />

Versículos 37 a 39........................................................331<br />

Versículos 40 a 44........................................................336<br />

Versículos 45 a 53........................................................338<br />

Capítulo 8<br />

Versículos 1 a 11..........................................................345<br />

Versículos 12 a 14........................................................351<br />

Versículos 15 a 20........................................................354<br />

Versículos 21 a 24........................................................358<br />

Versículos 25 a 29........................................................360<br />

Versículos 30 a 38 .......................................................368<br />

Versículos 39 a 42........................................................375<br />

Versículos 43 a 45........................................................378<br />

Versículos 46 a 50........................................................382<br />

Versículos 51 a 55 .......................................................385<br />

Versículos 56 a 59........................................................390


Capítulo 9<br />

Versículos 1 a 5............................................................395<br />

Versículos 6 a 12 .........................................................401<br />

Versículos 13 a 17........................................................405<br />

Versículos 18 a 23........................................................411<br />

Versículos 24 a 33........................................................415<br />

Versículos 34 a 41........................................................419<br />

Capítulo 10<br />

Versículos 1 a 6............................................................429<br />

Versículos 7 a 10..........................................................433<br />

Versículos 11 a 15........................................................438<br />

Versículos 16 a 18........................................................442<br />

Versículos 19 a 30........................................................447<br />

Versículos 31 a 36........................................................454<br />

Versículos 37 a 42........................................................458<br />

Capítulo 11<br />

Versículos 1 a 10..........................................................463<br />

Versículos 11 a 17........................................................469<br />

Versículos 18 a 27........................................................472<br />

Versículos 28 a 38........................................................477<br />

Versículos 39 a 44........................................................483<br />

Versículos 45 a 52........................................................488<br />

Versículos 53 a 57........................................................497


Prefácio à Edição em Português<br />

Este comentário de <strong>João</strong> Calvino, que o leitor tem em mãos, ocupa<br />

um lugar de destaque na história da interpretação do <strong>Evangelho</strong><br />

de <strong>João</strong>. Orígenes de Alexandria, <strong>João</strong> Crisóstomo, Agostinho de Hipona,<br />

Tomás de Aquino e Erasmo de Roterdã escreveram sermões e<br />

exposições deste evangelho, mas o comentário de Calvino se destaca<br />

sobre todos os seus predecessores. 1<br />

Calvino fez uma primeira preleção deste evangelho, em 1539,<br />

mas nenhum manuscrito destas pregações sobreviveu. Ele pregou<br />

estes sermões no tempo que passou na cidade livre franco-alemã<br />

de Estrasburgo, ministrando à comunidade francesa da cidade, nas<br />

igrejas de Saint-Nicolas, Sainte-Madeleine e Temple Neuf. Mas, ao<br />

retornar a Genebra, ele voltou a pregar este evangelho, e estas exposições<br />

se tornaram o primeiro comentário aos evangelhos publicado<br />

por Calvino, em meio às turbulências da vida política de Genebra,<br />

entre 1546 e 1553.<br />

1 Para a história da interpretação deste evangelho, cf. D. A. Carson, O comentário de <strong>João</strong><br />

(São Paulo: Shedd, 2007), p. 25-42.


12 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Desde 1541 o governo da cidade de Genebra era bipartido, com<br />

o conselho se dedicando às questões civis, e o consistório tratando<br />

das questões eclesiásticas. Em 1547 a oposição a Calvino e a outros<br />

pastores de refugiados franceses havia crescido. Esta oposição vinha<br />

de uma coalizão contrária a Calvino, conhecida como os libertinos,<br />

e que contava com a maioria dos síndicos, que eram os magistrados<br />

civis da cidade. Em junho, uma carta anônima, com ameaças, foi<br />

encontrada no púlpito da Catedral de Saint-Pierre, onde Calvino pregava.<br />

Suspeitando de uma conspiração contra a Igreja e o Estado, o<br />

conselho nomeou uma comissão para investigar o caso. Como resultado,<br />

um homem, membro da mais antiga família da cidade, foi preso,<br />

e provas incriminatórias, inclusive uma carta endereçada ao rei da<br />

França, foram encontradas quando sua casa foi revistada. Ele confessou<br />

vários crimes, incluindo ter escrito a carta deixada no púlpito da<br />

catedral. Como resultado, um tribunal civil condenou o homem por<br />

traição, e ele foi executado em julho daquele ano. Em meio a estas<br />

agitações, em meados de 1549, a esposa de Calvino, Idelette de Bure,<br />

veio a falecer, deixando seus dois filhos, nascidos de seu primeiro<br />

casamento, sob os cuidados de Calvino. 2<br />

Os libertinos intensificaram a oposição, e os insultos contra os<br />

pastores da cidade aumentaram, assim como os desafios à autoridade<br />

do consistório, que era formado por pastores e presbíteros, e<br />

que julgava as questões de disciplina eclesiástica. O conselho da cidade<br />

assumiu uma posição ambígua, alternadamente admoestando<br />

e apoiando Calvino. Foi em 1550 que ele começou a expor o evangelho<br />

de <strong>João</strong>, no púlpito da Catedral de Saint-Pierre. Mas, quando<br />

um de seus principais rivais foi eleito como primeiro síndico do<br />

conselho, em 1552, a autoridade de Calvino na cidade parecia ter<br />

chegado ao seu ponto mais baixo. De um lado, o alvo do conselho,<br />

sob a liderança dos libertinos, era controlar a disciplina eclesiás-<br />

2 Para os detalhes e o texto da carta e o medo de uma intervenção militar francesa na cidade,<br />

cf. Ronald Wallace, Calvino, Genebra e a Reforma (São Paulo: Cultura Cristã, 2003),<br />

p. 73-75.


Prefácio à edição em português • 13<br />

tica e a liberdade dos cidadãos de Genebra de receber a Ceia do<br />

Senhor, exercendo, desta forma, controle sobre a igreja de Genebra.<br />

De outro lado, o francês Calvino não era cidadão genebrino, sendo<br />

apenas um empregado do conselho municipal, um professor (sacrarum<br />

literatum professor), sem poder de voto. Depois de algumas<br />

derrotas diante do conselho, ele acreditou que havia sido vencido.<br />

Então, em julho de 1553, Calvino pediu ao conselho permissão para<br />

se demitir. Embora os libertinos controlassem o conselho, o seu<br />

pedido foi recusado. A oposição percebeu que poderia reduzir a<br />

autoridade de Calvino, mas não tinha poder suficiente para bani-lo.<br />

E, em agosto, o herético espanhol Miguel Serveto, que inexplicavelmente<br />

passava pela cidade, foi preso e julgado por ordem dos<br />

síndicos libertinos, que, assim, esperavam minar o ministério de<br />

Calvino. Em meio a esta confusão, é importante ressaltar que a “influência<br />

[de Calvino] sobre Genebra foi exercita de forma indireta,<br />

através de pregações, conferências e outras formas de persuasão<br />

legítima”. 3 E, como escreveu Barbara Pitkin, “em certo sentido, portanto,<br />

este comentário [ao <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong>] pode ser visto com<br />

uma defesa singular do seu ensino e autoridade pastoral”. 4<br />

Em meio a esta situação precária, o <strong>Comentário</strong> ao <strong>Evangelho</strong><br />

de <strong>João</strong> foi publicado em 1553 e a Harmonia aos <strong>Evangelho</strong>s Sinópticos<br />

foi publicada em 1555. Os dois comentários – a Harmonia aos<br />

evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> – foram<br />

lançados em conjunto, e apareceram em francês e holandês publicados<br />

juntamente com o comentário ao livro de Atos, que havia saído<br />

um pouco antes, em 1552. Em cerca de cinquenta anos este comentário<br />

foi publicado sete vezes em latim, doze em francês, duas em<br />

alemão, uma em inglês e uma em holandês.<br />

Reveladoramente, a epístola dedicatória do <strong>Comentário</strong> ao<br />

<strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> foi endereçada “aos honorabilíssimos e ilustrís-<br />

3 Alister McGrath, A vida de <strong>João</strong> Calvino (São Paulo: Cultura Cristã), p. 127-137.<br />

4 Barbara Pitkin, “Calvin as a Commentator on John” em Donald K. McKim (ed.), Calvin and<br />

the Bible (New York: Cambridge University Press, 2006), p. 169.


14 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

simos senhores, os síndicos e concílio de Genebra”. Como escreve<br />

Wulfert de Greef: “Na dedicatória, ele se refere a Genebra como um<br />

centro de refúgio para os cristãos que foram forçados a fugir de onde<br />

viviam. Isto é significativo à luz da declaração de Cristo, sobre como<br />

a hospitalidade aos estrangeiros é considerada como algo feita a ele,<br />

pessoalmente. No meio da agitação, que o conselho saiba que Cristo<br />

está próximo, protegendo as cidades onde o evangelho pode ser<br />

proclamado e onde seu povo tem permissão para morar”. 5<br />

Diferente dos comentários anteriores, Calvino não entendia que<br />

este evangelho fosse uma defesa das doutrinas ortodoxas da Trindade<br />

e da Pessoa de Cristo, mas que tratava essencialmente sobre como<br />

pessoas podem ser salvas pela fé em Jesus Cristo. Para ele, como está<br />

escrito na análise introdutória à exposição do comentário ao <strong>Evangelho</strong><br />

de <strong>João</strong>, este forneceria uma chave para o entendimento dos<br />

três evangelhos sinópticos: “Por isso, tenho o costume de dizer que<br />

este <strong>Evangelho</strong> é uma chave que abre a porta para a compreensão<br />

dos outros, pois quem quiser entender o poder de Cristo, como aqui<br />

notavelmente retratado, prontamente desejará ler com proveito o que<br />

os outros relatam acerca do Redentor que se manifestou”.<br />

Mas, cuidadosamente, num eco da imagem de Ireneu de Lião<br />

do evangelho quádruplo como um “rico mosaico” que revela “o autêntico<br />

retrato do rei”, 6 Calvino escreveu que “é nosso dever agora<br />

combinar os quatro [evangelhos] por meio de uma relação mútua, de<br />

modo que nos permitamos ser instruídos por todos eles, como por<br />

uma só boca”. Portanto, para ele, o evangelho de <strong>João</strong> “é a solene<br />

publicação da graça revelada em Cristo. (...) E, visto que Cristo é o<br />

penhor da misericórdia de Deus e de seu paternal amor para conosco,<br />

assim ele é, de uma maneira peculiar, o tema do evangelho”.<br />

Calvino não estava sozinho nesta ênfase. Escrevendo um pouco<br />

antes, Martinho Lutero afirmou que o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> seria um dos<br />

5 Wulfert de Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide (Louisville, KY: Westminster<br />

Press, 2008), p. 81-84.<br />

6 Cf. Ireneu de Lião, Contra as heresias I.8.1 (São Paulo: Paulus, 1995), p. 52-53.


Prefácio à edição em português • 15<br />

melhores e mais belos livros do Novo Testamento, e “é o único evangelho<br />

delicado e certo, o principal, sendo que se lhe deve dar considerável<br />

preferência e dedicar-lhe respeito”. Portanto, este evangelho, considerado<br />

em conjunto com a primeira epístola de <strong>João</strong>, “te apresentam<br />

Cristo e te ensinam tudo que é necessário e bom saber, ainda que jamais<br />

visses ou desses ouvidos a qualquer outro livro ou doutrina”.<br />

Lutero também afirmou que os “melhores dentre todos os livros”<br />

do Novo Testamento seriam “o <strong>Evangelho</strong> segundo <strong>João</strong> e as<br />

epístolas de Paulo, em especial aquela aos Romanos, e a Primeira<br />

Epístola de Pedro”, e consistiriam no “bom cerne e medula dentre<br />

todos os livros” da Escritura Sagrada. Assim sendo, “cada cristão se<br />

deveria recomendar que os lesse por primeiro e com maior freqüência,<br />

familiarizando-se com eles pela leitura diária como se fosse o pão<br />

de cada dia”. Por fim, sem desconsiderar a visão elevada que <strong>João</strong><br />

oferece de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo; e da glória do Verbo<br />

encarnado, o propósito do apóstolo, segundo Lutero, seria delimitar<br />

de forma mais clara “como a fé em Cristo supera o pecado, morte e<br />

inferno e concede vida, justiça e salvação, o que, afinal, é a característica<br />

própria do <strong>Evangelho</strong>”. 7<br />

Ainda que a afirmação da superioridade do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

sobre os sinópticos possa parecer um exagero, esta noção do texto<br />

do apóstolo <strong>João</strong> como chave interpretativa dos quatro evangelhos<br />

encontra sua culminância em Calvino, que também o considerava um<br />

dos mais importantes livros da Escritura. Como Pipkin escreve,<br />

“o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> oferece a Calvino uma apresentação<br />

mais nuançada da fé e da recepção da fé do que fazem as<br />

7 Martinho Lutero, “Prefácio ao Novo Testamento 1546”, em Martinho Lutero: Obras selecionadas,<br />

v. 8 (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2003), p. 127. Este texto é<br />

da primeira edição de 1522 do prefácio ao Novo Testamento, mas foi omitido em edições<br />

posteriores. Para as pregações de Lutero nos capítulos 14-16 do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong>, intitulados<br />

“os sermões de despedida de Jesus”, cf. Martinho Lutero: Obras selecionadas, v.<br />

11 (São Leopoldo: Sinodal & Porto Alegre: Concórdia, 2010), p. 15-439. Estas exposições<br />

foram realizadas entre a Páscoa e o Pentecostes de 1537, em Wittenberg. Foram revisadas,<br />

resumidas e editadas no ano seguinte.


16 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

epístolas paulinas. Especificamente, ‘ela oferece um conceito<br />

mais amplo dos níveis, estágios ou tipos da fé e uma imagem<br />

mais complexa do papel dos milagres, sinais e senso externo<br />

da percepção da chegada da fé’. Em seus comentários sobre<br />

a fé, Calvino enfatiza que a fé, em última instância, vem pelo<br />

ouvir e que não repousa numa visão carnal, e que se trata de<br />

um conhecimento correto de Jesus Cristo”. 8<br />

O que torna este comentário ao <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> mais significativo<br />

é que esta exposição bíblica é uma afirmação da força e<br />

energia do método histórico-gramatical, como estabelecido pelo próprio<br />

Calvino. 9 Há poucos vislumbres do clima beligerante em que ele<br />

estava vivendo nesta época, em Genebra. Corajosamente, ele se dedica<br />

a expor as palavras bíblicas inspiradas pelo Espírito Santo com<br />

fidelidade e atenção. Isto ocorreu porque este comentário foi escrito<br />

motivado pelo inquebrantável compromisso de Calvino com a Palavra<br />

de Deus, na medida em que seu interesse primário era o sentido<br />

próprio do texto bíblico como almejado pelo apóstolo <strong>João</strong>.<br />

Portanto, o comentário de Calvino ao <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> é um<br />

dos exemplos que levaram Timothy George a afirmar que ele é justamente<br />

“chamado ‘o pai da erudição bíblica moderna’, e sua obra<br />

exegética é sem paralelo na Reforma”. Esta ênfase na primazia das<br />

Escrituras se deu porque “era uma convicção-chave da Reforma que<br />

o estudo cuidadoso das Escrituras, bem como o fato de ouvi-las de<br />

modo meditativo, que os monges [medievais] chamavam de lectio<br />

divina, poderia fornecer resultados transformadores de vida”. 10<br />

Que o estudo dessa exposição do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> nos conduza<br />

não só à reflexão sobre a revelação do Verbo de Deus, do<br />

conhecimento de Deus e do advento do Espírito Santo, mas também<br />

8 Barbara Pitkin, “Calvin as a Commentator on John”, p. 181.<br />

9 Para um resumo do método hermenêutico de <strong>João</strong> Calvino, cf. Franklin Ferreira, Servos<br />

de Deus (São José dos Campos: Fiel, 2014), p.214-229.<br />

10 Timothy F. George, “Introdução geral”, em: Gerald Bray (org.), <strong>Comentário</strong> Bíblico da<br />

Reforma: Gálatas e Efésios (São Paulo: Cultura Cristã, 2013), p. 15, 28.


Prefácio à edição em português • 17<br />

faça crescer nossa fé naquele que é “o pão da vida” (Jo 6.35), “a luz<br />

do mundo” (Jo 8.12), “a porta” para o rebanho (Jo 10.7), “o bom pastor”<br />

(Jo 10.11), “a ressurreição e a vida” (Jo 11.25), “o caminho, a<br />

verdade e a vida” (Jo 14.6), a videira verdadeira (Jo 15.1), Jesus Cristo,<br />

“o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).<br />

Franklin Ferreira<br />

Diretor do Seminário Martin Bucer, São José dos Campos-SP


Epístola Dedicatória<br />

Aos honorabilíssimos e ilustríssimos senhores,<br />

Os síndicos e concílio de genebra,<br />

<strong>João</strong> Calvino<br />

Suplica do Senhor o<br />

Espírito de sabedoria e<br />

determinação,<br />

e uma próspera administração.<br />

Nunca deixo de meditar naquela declaração de Cristo, na qual ele<br />

dá valor extremamente elevado ao dever de receber os estranhos com<br />

bondade como se fosse a si mesmo, sem deixar de levar em conta, ao<br />

mesmo tempo, a extraordinária honra que lhe aprouve conferir-vos<br />

ao tornar vossa cidade um lugar de refúgio, não de um ou de poucos<br />

indivíduos, mas de sua Igreja em geral. Entre os países pagãos, a hospitalidade<br />

sempre foi recomendada e considerada uma das virtudes<br />

capitais; e, consequentemente, quando eles intentavam denunciar alguém<br />

como bárbaro e selvagem da mais vil categoria, os tais eram<br />

chamados ἀξένους, ou – o que significa a mesma coisa – não hospitaleiro.<br />

Muito mais sublime louvor, porém, se vos deve porque, nestes<br />

tempos turbulentos e desditosos, o Senhor vos designou para serem<br />

as pessoas cujo apoio e proteção devem ser solicitados pelos piedosos<br />

e inofensivos homens banidos e expulsos de seus países de origem<br />

pela ímpia e cruel tirania do Anticristo. E não apenas isso, mas ele<br />

também dedicou ao seu nome uma sagrada habitação entre vós, onde<br />

seu culto possa ser preservado em pureza.


20 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Quem quer que tente, no mais leve grau, publicamente invadir ou<br />

secretamente tirar de vós essas duas vantagens, não só laboram em<br />

privar vossa cidade de seus magníficos ornamentos, mas miram sua<br />

existência e segurança com os olhos da inveja. Pois ainda que os ofícios<br />

da bondade que são aqui exercidos para Cristo e seus membros<br />

dispersos excitem o ladrar de homens perversos contra vós, ainda deveis<br />

mirar a vós mesmos como sobejamente compensados por esta<br />

única consideração: que os anjos vos bendizem lá do céu e os filhos<br />

de Deus vos enaltecem desde os quatro cantos do mundo; de modo<br />

que possais ousadamente desprezar as imundas calúnias dos homens<br />

que não podem ser refreados nem pelo escrúpulo da consciência nem<br />

pela vergonha de derramarem ultrajantes insultos, mais sobre Deus<br />

mesmo do que sobre vós – mais ainda: quando desejam caluniar-vos,<br />

começam por blasfemar a Deus. Ainda que nessa mesma ocasião 1 se<br />

acenda a ira de muitos contra vós, contudo não tendes razão para<br />

sentir-vos amedrontados diante de algum perigo que, porventura, provenha<br />

dele, enquanto a fúria deles for neutralizada pela proteção de<br />

sua mão, que tem prometido que será o fiel guardião daquelas cidades<br />

nas quais a doutrina de seu evangelho permanece firme, e nas quais<br />

os homens piedosos, a quem o mundo não pode suportar, devem ser<br />

permitidos habitar. É desnecessário dizer que certamente enfrentareis<br />

dificuldades na tentativa de conciliarem essa classe de inimigos; pois<br />

não há homem que vos seja hostil por amor do evangelho, que não desejaria<br />

ver-vos arruinados e oprimidos por outras razões. Admitindo,<br />

porém, que não haja outra razão pela qual sois odiados pelos inimigos<br />

gratuitos da sã doutrina, senão porque vos veem decididos a defendê-<br />

-la, não obstante, não levando em conta seus estratagemas e ameaças,<br />

deveis resolutamente defender estes dois inexpugnáveis baluartes: a<br />

pureza do culto cristão e a santa solicitude de proteger a Igreja que<br />

Cristo colocou sob a proteção de vossas asas.<br />

Assim, no que diz respeito às calúnias lançadas contra nós pelos<br />

1 (“Ascavoir que l’Evngile, et ceux qui y veulent adherer, ont yci leur retraitte”) – (“isto é,<br />

que o evangelho, e aqueles que desejam permanecer nele, tenha seu refúgio aqui”).


Epístola Dedicatória • 21<br />

rixentos assalariados do papa – que apostatamos da Igreja porque nos<br />

esquivamos da sujeição à Sé de Roma –, gostaria que estivesse em<br />

nosso poder a liberdade de protestar com inabalável confiança, diante<br />

de Deus e dos anjos, que estamos a uma distância incomensurável<br />

daquele charco pútrido, ao ponto de podermos fácil e prontamente<br />

defender-nos do crime que costumam lançar em nosso débito. De fato,<br />

vangloriam-se no título Igreja Católica, ainda que em parte alguma da<br />

doutrina da Lei e do <strong>Evangelho</strong> se lhes permita permanecer livres de<br />

vergonhosas corrupções, ainda que tenham profanado todo o culto<br />

de Deus pela imundícia de suas superstições, e não tem escrúpulo de<br />

vilipendiar todas as ordenanças de Deus por meio de suas invenções.<br />

Mais ainda, tão Católica – tão universal – é a massa de erros pelos<br />

quais têm subvertido toda a religião, que seria suficiente para destruir<br />

e consumir a Igreja centenas de vezes. Portanto, nunca poderemos<br />

enaltecer, em termos tão sublimes quanto a questão merece, a infinita<br />

benevolência de Deus, pela qual temos miraculosamente escapado<br />

desse destrutivo torvelinho e fixado bem a âncora de nossa fé na sólida<br />

e eterna verdade de Deus. 2 E, assim, confio que este <strong>Comentário</strong><br />

será uma prova suficiente de que o papado nada mais é senão um<br />

monstro formado a partir do inúmeros enganos de Satanás, e que o<br />

que eles chamam igreja é muito mais confuso que Babilônia.<br />

Francamente, reconheço – o que infelizmente é verdade! – que<br />

não estamos suficientemente longe desse poço imundo, cujo contágio<br />

é terrivelmente amplo. O Anticristo se queixa de que temos nos<br />

afastado demais dele; nós, 3 porém, somos compelidos a lamentar que<br />

muito das poluições que têm infectado o mundo inteiro se insinua em<br />

nosso meio. Deus graciosamente nos 4 restaurou à imaculada pureza<br />

da doutrina, da religião em seu estado primitivo, do culto divino sem<br />

adulteração e da fiel administração dos Sacramentos, como nos fo-<br />

2 A versão francesa acrescenta: “à ce qu’elle ne flottast plus parmi les traditions des<br />

hommes.” – “para que não mais seja perturbada pelas tradições dos homens.”<br />

3 “Nous qui taschons de remettre l’estat de l’Eglise à son entier.” – “nossa luta é para<br />

restaurar a Igreja a sua condição original.”<br />

4 “Dieu par sa grace nous a restitué.”


22 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ram transmitidos por Cristo. Mas a causa principal que nos impede de<br />

atingir essa reforma da conduta e da vida, a qual deveria existir, é que<br />

muitas pessoas, sentindo saudades daquela desenfreada licenciosidade<br />

que impeliu os papistas a oporem-se ao mandamento de Deus, não<br />

conseguem suportar o jugo de Cristo. Por conseguinte, quando nossos<br />

inimigos, a fim de incitar contra nós infundada aversão entre os ignorantes,<br />

suscitam irritantes protestos, dizendo que temos despedaçado<br />

toda a disciplina, sua calúnia é sobejamente refutada (ainda quando<br />

permanecemos em silêncio) por esta única consideração: que em nosso<br />

próprio país não temos peleja mais árdua do que nossa excessiva<br />

severidade – pelo menos assim considerado por muitas pessoas. Visto,<br />

porém, que vós sois as testemunhas mais competentes, em meu<br />

favor e de meus colegas, de que não somos tão rígidos e severos senão<br />

quando o dever nos compele a fazê-lo e quando livremente nos submetemos<br />

à decisão de vossa consciência a nosso respeito. Portanto,<br />

de um lado, facilmente percebereis, de relance, o atrevimento singularmente<br />

ridículo de nossos inimigos sobre este assunto.<br />

Agora, passo a vos dizer umas poucas palavras sobre mim mesmo<br />

como indivíduo. Embora eu espere que meus numerosos escritos<br />

sejam uma prova suficiente ao mundo de como tenho instruído esta<br />

Igreja, contudo imagino que seria de grande importância para mim<br />

redigir um registro especial sobre este com o vosso nome; pois é<br />

muitíssimo necessário que o tipo de doutrina que reconheceis ser ensinada<br />

por mim deveria ser exibida aos olhos de todos. 5 Embora em<br />

todos os livros que tenho até agora publicado, eu tenha me esforçado<br />

para que vós e o povo que ora encontra-se sob a vossa responsabilidade<br />

extraiam deles grandes benefícios, mesmo após minha morte,<br />

e mesmo que seja muitíssimo inconveniente que a doutrina que tem<br />

emanado de vossa cidade para as nações vizinhas produza frutos com<br />

muita abundância, porém seja negligenciada no lugar de sua origem,<br />

não obstante espere que este <strong>Comentário</strong>, que vos é especialmente<br />

5 A cópia francesa acrescenta: “afin qu’on n’en juge point à l’aventure, ni a credit.” – “para<br />

que não a julguemos à revelia, ou sem verificação.”


Epístola Dedicatória • 23<br />

dedicado, exerça um sólido domínio em vossa memória. Para isso, oro<br />

a Deus para que os grave tão profundamente com seu próprio dedo em<br />

vosso coração, que ele nunca venha a ser obliterado pelas estratégias<br />

de Satanás. Pois a ele pertence coroar meu labor com êxito, porque<br />

até aqui ele me deu coragem para desejar nada mais senão fielmente<br />

vigiar sobre a segurança vossa e de vosso povo. Além do mais, como<br />

espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou<br />

de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza<br />

e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente<br />

lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem<br />

meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído<br />

de honestidade e sinceridade na realização de meu dever. E, se nesse<br />

ínterim, os homens perversos não cessarem de me aborrecer, visto ser<br />

meu dever – por meio de boa conduta – refutar suas calúnias, assim<br />

vos caberá refrear suas calúnias pelo exercício daquela sagrada autoridade<br />

com que fostes investidos. Por isso, meus ilustríssimos e mui<br />

honrados senhores, recomendo-vos à proteção de nosso bom Deus,<br />

rogando-lhe que vos dê sempre o espírito de prudência e virtude para<br />

governardes com justiça e tornardes próspera vossa administração,<br />

de modo que seu Nome seja com isso glorificado, e que o resultado<br />

seja venturoso para todos vós. 6<br />

Genebra, 1 de janeiro de 1553<br />

6 Na sentença final foi seguida a forma mais ampliada da versão francesa


Análise do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O significado da palavra grega εὐαγγέλιον (evangelho) é bem<br />

conhecido. 1 Na Escritura, ela denota (κατ᾿ ἐξοχὴν), a alegre e<br />

prazerosa mensagem da graça a nós exibida em Cristo, a fim de<br />

instruir-nos a desprezar o mundo com suas passageiras riquezas e<br />

prazeres, a desejar essa bênção de todo nosso coração e abraçá-<br />

-la quando ela nos for oferecida. É natural em todos nós aquela<br />

conduta que percebemos em homens irreligiosos que cultivam<br />

extravagantes prazeres nos fúteis deleites do mundo, ainda que<br />

sejam poucos, de modo que alguns se deixem afetar pelos encantos<br />

das bênçãos espirituais. Com o propósito de corrigir esse erro,<br />

Deus expressamente dá o título de evangelho à mensagem que ele<br />

ordena seja proclamada concernente a Cristo. Desse modo, ele<br />

nos lembra que em nenhuma outra parte se pode obter a genuína<br />

e sólida felicidade, e que nele temos tudo de que necessitamos<br />

para a perfeição de uma vida feliz.<br />

1 “On scait assez que le mot d’Evangile signifie entre les Grees toutes bonnes nouvelles.”<br />

– “É bem notório que a palavra evangelho denota, em grego, qualquer gênero de boasnovas.”


26 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Há quem considere a palavra evangelho como se estendendo a<br />

todas as graciosas promessas de Deus que se acham espalhadas inclusive<br />

na Lei e nos Profetas. Tampouco se pode negar que, sempre<br />

que Deus declara que se deixará reconciliar com os homens e perdoará<br />

seus pecados, ao mesmo tempo exibe Cristo cujo peculiar ofício,<br />

onde quer que ele se manifeste, é jorrar por toda parte os raios de<br />

sua alegria. Reconheço, pois, que os [antigos] pais foram participantes<br />

juntamente conosco do mesmo evangelho, no que diz respeito à fé na<br />

salvação gratuita. Visto, porém, que a declaração ordinária do Espírito<br />

Santo nas Escrituras é que o evangelho foi proclamado pela primeira<br />

vez quando Cristo veio, abracemos também essa forma de expressão,<br />

bem como conservemos a definição de evangelho que tenho formulado,<br />

a saber: é a solene publicação da graça revelada em Cristo. Por<br />

isso o evangelho é chamado o poder de Deus para a salvação de todo<br />

aquele que crê [Rm 1.16], porque nele Deus exibe sua justiça. Ele é também<br />

chamado embaixada por meio da qual Deus reconcilia consigo os<br />

homens [2Co 5.20]; e, visto que Cristo é o penhor da misericórdia de<br />

Deus e de seu paternal amor para conosco, assim ele é, de uma maneira<br />

peculiar, o tema do evangelho.<br />

Por isso, ele veio para que as histórias que narram que Cristo se<br />

manifestou na carne, morreu, ressuscitou dentre os mortos e, por fim,<br />

foi assunto ao céu tivessem peculiarmente o mérito do título evangelho.<br />

Pois ainda que, por razões já expressas, esta palavra signifique<br />

o Novo Testamento, contudo o título que denota a totalidade, pela<br />

prática geral, representa aquela parte dele que declara que Cristo se<br />

nos manifestou na carne, morrendo e ressuscitando dentre os mortos.<br />

Mas, como a mera história não seria suficiente, e de fato ela seria de<br />

nenhuma valia para a salvação, o evangelista não relata simplesmente<br />

que Cristo nasceu, morreu e venceu a morte, mas também explica com<br />

que propósito ele nasceu, morreu e ressuscitou, bem como qual o benefício<br />

que recebemos desses fatos.<br />

Não obstante, existe também esta diferença entre os <strong>Evangelho</strong>s:<br />

que os outros três são mais copiosos em sua narrativa da vida e morte


Análise do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong> • 27<br />

de Cristo, e que <strong>João</strong> se delonga mais amplamente na doutrina, por meio<br />

da qual se manifesta o ofício de Cristo, associado ao poder de sua morte<br />

e ressurreição. Na verdade, eles não omitem a menção de que Cristo<br />

veio para trazer salvação ao mundo, fazer expiação pelos pecados do<br />

mundo por meio do sacrifício de sua morte, e, em suma, realizar tudo<br />

aquilo que era requerido do Mediador (como <strong>João</strong> também dedica boa<br />

porção de sua obra a detalhes históricos). A doutrina, porém, que nos<br />

salienta o poder e o benefício da vinda de Cristo é muito mais nitidamente<br />

exibida por ele do que pelos outros. E como todos eles tinham o<br />

mesmo objetivo em vista, ou, seja, destacar a pessoa de Cristo, os três<br />

primeiros salientam seu corpo, se nos é permitido usar esta expressão,<br />

enquanto que <strong>João</strong> salienta sua alma. Por isso, tenho o costume de dizer<br />

que este <strong>Evangelho</strong> é uma chave que abre a porta para a compreensão<br />

dos outros, pois quem quiser entender o poder de Cristo, como aqui<br />

notavelmente retratado, prontamente desejará ler com proveito o que<br />

os outros relatam acerca do Redentor que se manifestou.<br />

Crê-se que <strong>João</strong> escreveu primordialmente com a intenção de<br />

defender a Deidade de Cristo, em oposição às ímpias blasfêmias de<br />

Ebion e Cerinto. Isso é asseverado por Jerônimo em concordância com<br />

a opinião geral dos antigos. Mas, qualquer que tenha sido seu motivo<br />

para escrever naquele tempo, não pode haver dúvida de que Deus<br />

pretendia que sua Igreja recebesse um benefício muito mais elevado.<br />

Ele, pois, prescreveu aos quatro evangelistas o que deveriam escrever,<br />

de tal modo que, embora cada um deles tivesse sua própria parte designada,<br />

o todo poderia ser coligido em um só corpo; e é nosso dever<br />

agora combinar os quatro por meio de uma relação mútua, de modo<br />

que nos permitamos ser instruídos por todos eles, como por uma só<br />

boca. Quanto ao fato de <strong>João</strong> ser o quarto na ordem, isso foi feito em<br />

decorrência do tempo em que ele escreveu. Mas, ao lê-los, uma ordem<br />

diferente deve ser mais vantajosa, a saber, que, quando quisermos ler<br />

em Mateus e nos outros que Cristo nos foi dado pelo Pai, devemos<br />

antes de tudo ler em <strong>João</strong> o propósito para o qual ele se manifestou.


Capítulo 1<br />

[1.1-5]<br />

No princípio era a Palavra, a Palavra estava com Deus e a Palavra<br />

era Deus. Ela estava no princípio com Deus. Todas as coisas<br />

foram feitas por meio dela; e sem ela nada do que foi feito se<br />

fez. Nela estava a vida; e a vida era a luz dos homens. E a luz<br />

resplandece nas trevas; e as trevas não a abrangeram.<br />

1. No princípio era a Palavra. Neste prólogo, o apóstolo declara<br />

a eterna Deidade de Cristo, para informar-nos que ele é o eterno<br />

Deus manifestado em carne [1Tm 3.16]. Seu objetivo é demonstrar que<br />

a restauração do gênero humano deveria ser efetuada pelo Filho de<br />

Deus; porque, através de seu poder, todas as coisas foram criadas, e<br />

é tão somente ele que sopra vida e energia a todas as criaturas, para<br />

que permaneçam em sua condição. E, conquanto no próprio homem<br />

ele exibisse a maior prova de seu poder e graça, mesmo depois da<br />

queda e fracasso de Adão, ele nunca deixou de mostrar liberalidade e<br />

bondade em favor de sua posteridade. O conhecimento desta doutrina<br />

é de primordial importância, pois uma vez que, longe de Deus, jamais<br />

buscaríamos vida e salvação, como poderia nossa fé descansar em<br />

Cristo se não conhecíamos a infalibilidade desta doutrina? Nestas palavras,<br />

pois, o Evangelista nos assegura que não renunciamos ao único<br />

e eterno Deus quando cremos em Cristo, e também que a vida é agora<br />

restaurada aos mortos através da bondade daquele que foi a fonte e a<br />

causa da vida, quando a natureza ainda não estava corrompida.


30 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

O Evangelista denomina o Filho de Deus de a Palavra [Sermo]<br />

simplesmente porque, primeiro, ele é a eterna Sabedoria e Vontade<br />

de Deus; e, segundo, porque ele é a imagem expressa do propósito<br />

divino. Pois assim como no homem se denomina a linguagem como<br />

sendo “a expressão dos pensamentos”, então não é fora de propósito<br />

aplicar isso a Deus e dizer que ele nos é expresso por meio de sua Palavra.<br />

Os outros significados da palavra grega λόγος logos (logos) não<br />

são muito apropriados. Para os gregos, certamente significa definição,<br />

razão e cálculo; contudo, me recuso a filosofar além da compreensão<br />

de minha fé. E descobrimos que o Espírito de Deus está tão longe de<br />

aprovar tais sutilezas que, ao balbuciar conosco, seu próprio silêncio<br />

proclama quão sóbrio deve ser nosso acesso intelectual em mistérios<br />

tão profundos.<br />

Além do mais, visto que Deus, ao criar o mundo, revelou-se através<br />

da Palavra, anteriormente ele a conservou oculta nos recessos de<br />

seu Ser. Por conseguinte, a Palavra exerce uma dupla relação, a saber:<br />

para com Deus e para com os homens. Serveto, certo canalha arrogante<br />

pertencente a Espanha, imagina que a Palavra eterna só veio<br />

à existência quando ela entrou em ação na criação do mundo, como<br />

se antes disso seu poder não fosse notório através de sua operação<br />

externa! Aqui, o ensino do Evangelista é totalmente diferente, pois ele<br />

não atribui à Palavra um princípio temporal, senão que, ao dizer que<br />

ela era desde o princípio, tal fato transcende a todos os tempos.<br />

Conheço muito bem o ladrar desse cão e os sofismas outrora suscitados<br />

pelos arianos, a saber, que no princípio Deus criou céu e terra<br />

[Gn 1.1], os quais, contudo, não são eternos, uma vez que princípio indica<br />

sequência e não eternidade. O Evangelista, porém, antecipa essa<br />

calamidade, quando ele diz<br />

E a Palavra estava com Deus. Se porventura a Palavra tivera<br />

um princípio temporal, então seria necessário que descobrissem em<br />

Deus alguma sequência de tempo. E, aliás, com esta expressão, <strong>João</strong><br />

pretendia distingui-lo de todas as criaturas. Porquanto muitas perguntas<br />

poderiam surgir: Onde realmente estava essa Palavra? Como


Capítulo 1 • 31<br />

ela exercia seu poder? Qual era sua natureza? De que forma poderia<br />

ser ela conhecida? Por isso, o Evangelista nega que Cristo fosse parte<br />

do mundo e das coisas criadas, já que ele sempre estivera unido<br />

com Deus antes que o mundo viesse à existência. Ora, aqueles que<br />

tomam princípio como parte da criação do céu e da terra não estariam<br />

reduzindo Cristo à ordem comum do mundo, do qual ele é aqui<br />

expressamente excluído? Ao fazer isso, não só insultam horrivelmente<br />

ao Filho de Deus, mas igualmente ao seu eterno Pai, a quem privam de<br />

sua Sabedoria. Se, porventura, for errado retratar a Deus isoladamente<br />

de sua Sabedoria, devemos igualmente confessar que a origem da<br />

Palavra não deve ser buscada em algum outro lugar senão na eterna<br />

Sabedoria de Deus.<br />

Serveto objeta que a Palavra não pode ser concebida antes de<br />

Deus ser, por meio de Moisés, representado como que falando. Como<br />

se ela, porque não havia ainda publicamente se manifestado, não subsistisse<br />

em Deus! Como se ela não possuísse existência abscôndita<br />

antes que começasse a revelar-se exteriormente! O Evangelista, porém,<br />

destrói toda fenda que possibilitasse a passagem de disparates<br />

tão absurdos, quando afirma incondicionalmente que a Palavra estava<br />

com Deus. Com isso, ele nos afasta para longe de toda temporalidade.<br />

Aqueles que inferem do tempo imperfeito do verbo 1 um estado<br />

contínuo, infelizmente se colocam numa posição incômoda. Afirmam<br />

que a forma verbal era [erat] expressa melhor uma série contínua do<br />

que se <strong>João</strong> dissesse tem sido [fuit]. Tais questões, porém, demandam<br />

razões mais convincentes. O que tenho exposto deve ser suficiente, a<br />

saber: que o Evangelista nos envia ao eterno santuário de Deus e nos<br />

ensina que a Palavra estava, por assim dizer, oculta ali antes que se<br />

revelasse na estrutura externa do mundo. Portanto, Agostinho está<br />

certo quando nos lembra que o princípio mencionado aqui não teve<br />

começo, pois ainda que o Pai seja anterior à sua Sabedoria quanto à<br />

ordem, não obstante os que inventam algum ápice de tempo para essa<br />

1 “Pource qu’il est dit Estoit, et non pas N’esté.” – “Porquanto se diz Era, e não tem sido.”


32 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

precedência à sua Sabedoria o despojam de sua glória. E este é o eterno<br />

Filho [generatio] que, infinitamente anterior à fundação do mundo,<br />

esteve oculto em Deus (se me é lícito expressar nesses termos), e que,<br />

depois de ser obscuramente delineado aos patriarcas sob o regime da<br />

lei por muitos anos sucessivos, finalmente foi plenamente manifestado<br />

na carne.<br />

Sinto-me surpreso que as versões latinas tenham usado verbum<br />

para ὁ λόγος, pois esse termo é, antes, a tradução de τὸ ῥη̑μα. Mas,<br />

mesmo que admitamos que essa seja uma possibilidade, não se pode<br />

negar que Sermo [Palavra] teria sido muito mais apropriado. Isso revela<br />

a bárbara tirania daqueles teólogos da Sorbone 2 que hostilizaram<br />

Erasmo com tanta fúria apenas porque ele mudou uma única palavra<br />

para melhor.<br />

E a Palavra estava com Deus. Já deixamos expresso que o Filho<br />

de Deus está, portanto, colocado acima do mundo e de todas<br />

as criaturas e antes de todos os tempos. Ao mesmo tempo, porém,<br />

essa expressão lhe atribui uma hypostasis [pessoa] distinta da do Pai.<br />

Pois teria sido absurdo se o Evangelista dissesse que a Palavra estivera<br />

sempre com Deus, se não tivesse, em Deus, certa subsistência<br />

propriamente sua. Portanto, esta passagem serve para refutar o erro<br />

de Sabélio, pois ela demonstra que o Filho é distinto do Pai. Afirmei<br />

anteriormente que mistérios tão profundos demandam pensamento<br />

sóbrio. Os escritores da Igreja primitiva, porém, eram justificados<br />

quando, em função de não poderem de outra forma defender a verdadeira<br />

e pura doutrina contra os ambíguos sofismas dos hereges,<br />

eram obrigados a cunhar certos termos que, não obstante, nada mais<br />

expressavam senão o que está ensinado nas Escrituras em outros<br />

termos. Disseram que há três Hypostasis ou Pessoas na essência una<br />

e simples de Deus. A palavra ὑπόστασις (hypostasis) tem esse sentido<br />

em Hebreus 1, a qual corresponde à palavra latina Substantia<br />

(substância), segundo o uso que dela faz Hilário. Denominaram τὰ<br />

2 “Les Theologiens Sorbonistes.”


Capítulo 1 • 33<br />

πρόσωπα ou Pessoas, propriedades [proprietates] distintivas em Deus<br />

que se apresentam às nossas mentes. Como diz Gregório Nazianzeno:<br />

“Não posso imaginar Uma isoladamente das Três [Pessoas] concomitantemente<br />

resplandecendo a meu redor.” 3<br />

E a Palavra era Deus. Para que não pairasse dúvida alguma no<br />

tocante à divina essência de Cristo, o Evangelista claramente afirma<br />

que ele é Deus. Ora, já que Deus é um só, segue-se que Cristo é da mesma<br />

essência com o Pai e, não obstante, de alguma forma distinto [do<br />

Pai]. Mas já discorremos sobre a segunda sentença. Ário se revelou em<br />

extremo perverso ao considerar a unidade de essência. Com o fim de<br />

evitar ser forçado a confessar a eterna Deidade de Cristo, ele apregoava<br />

que Deus era alguma espécie de Deidade imaginária. 4 Mas quando<br />

ouvimos que a Palavra era Deus, que direito ainda temos de questionar<br />

sua eterna essência?<br />

2. Ela estava no princípio com Deus. Para penetrar mais profundamente<br />

em nossas mentes o que já havia dito, o Evangelista condensa<br />

as duas sentenças precedentes num breve epílogo: a Palavra sempre<br />

foi e sempre esteve com Deus – para que o leitor compreenda que esse<br />

princípio existia antes que todo e qualquer tempo viesse à existência.<br />

3. Todas as coisas foram feitas por meio dela. Havendo declarado<br />

que a Palavra é Deus e havendo proclamado sua divina essência, ele<br />

prossegue provando sua Deidade à luz de suas obras. E é neste conhecimento<br />

prático que devemos especialmente ser treinados. Porquanto a<br />

mera atribuição do título Deus a Cristo, nos deixaria indiferentes, a menos<br />

que nossa fé sentisse que ele é, na verdade, Deus. Mas ele declara<br />

corretamente sobre o Filho de Deus o que justamente se harmoniza com<br />

a sua pessoa. Às vezes, Paulo, de fato, simplesmente diz que “todas as<br />

coisas pertencem a Deus” [Rm 11.36]. Mas, quando o Filho é comparado<br />

3 O leitor encontrará os pontos de vista de nosso autor, acerca da Santíssima Trindade,<br />

mui plenamente ilustrados nas Institutas da Religião Cristã, Livro I, Capítulo XIII, e ficará<br />

perplexo se admirar atentamente a agudeza ou a sobriedade do juízo por meio do qual<br />

toda a discussão é entremeada.<br />

4 “Que c’estoit je ne scay quel Dieu qui avoit esté creé, et eu commencement.” – “Que havia<br />

não que Deus que foi criado e que teve começo.”


34 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

com o Pai, geralmente é distinguido por essa característica. Consequentemente,<br />

o que se emprega aqui é a maneira ordinária de se expressar<br />

– o Pai fez todas as coisas por intermédio do Filho, e todas as coisas<br />

existem para Deus através do Filho. Ora, como eu já disse, o plano do<br />

Evangelista é mostrar que a Palavra de Deus se manifestou pela atividade<br />

externa, imediatamente a partir da criação do mundo. Pois havendo<br />

sido anteriormente incompreensível em sua essência, ela foi publicamente<br />

conhecida pelo efeito de seu poder. Até mesmo alguns filósofos<br />

descreveram a Deus como o arquiteto do mundo, de modo a estabelecê-<br />

-lo como aquela inteligência que é subjacente à edificação dessa obra.<br />

Nisso estão certos, pois concordam com a Escritura; mas, como logo se<br />

perdem em meditações pueris, não há razão por que devamos desejar<br />

seu testemunho como algo de tanto valor. Ao contrário, devemos ficar<br />

satisfeitos com este oráculo celestial, sabendo que ele diz muito mais<br />

do que nossas mentes podem conceber.<br />

E sem ela nada do que foi feito se fez. Embora este versículo<br />

tenha sido interpretado de diversas maneiras, não hesito em interpretá-lo<br />

como constituído de uma só ideia – nada do que foi feito se fez.<br />

Quase todos os manuscritos gregos (ou, no mínimo, aqueles que desfrutam<br />

de maior autoridade) concordam neste ponto. Além do mais, o<br />

sentido indubitavelmente o exige. Aqueles que separam a frase se fez<br />

da sentença anterior, de modo a conectá-la à sentença seguinte, forçam<br />

o sentido, ficando assim: o que se fez era a vida nela [a Palavra],<br />

ou, seja: “viveu” ou “foi sustentada com vida”. 5 Mas não conseguem<br />

provar que essa forma de se expressar é sempre aplicada às criaturas.<br />

Agostinho, cujo método é platonista extremado, devotou-se à<br />

5 A diferença de redações está totalmente na pontuação, e a disputa é se as palavras ὃ<br />

γέγονεν formarão a conclusão do terceiro ou o começo do quarto versículo. Calvino<br />

expressa sua concorrência com a maioria dos manuscritos, os quais conectam as<br />

palavras em questão com o terceiro versículo, assim: Καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ<br />

ἓν ὃ γέγονεν, e sem ele não se fez coisa alguma (ou, mais literalmente, bem como mais<br />

enfaticamente), e sem ele nenhuma coisa foi feita – a qual foi feita. Outros manuscritos,<br />

certamente de bem pouca autoridade, as conectam com o quarto versículo: Καὶ χωρὶς<br />

αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἓν Ο γέγονεν ἐν αὐτῷ ζωὴ ᾖν. E sem ele nenhuma coisa foi feita.<br />

O que foi feito teve nele a vida. A preferência de nosso autor repousa em bases que<br />

dificilmente podem ser questionadas.


Capítulo 1 • 35<br />

conceituação desta ideia: antes de Deus haver construído o mundo,<br />

ele delineara em sua mente a forma de toda a obra; e já que a criação<br />

do mundo fora ordenada em Cristo, a vida dessas coisas ainda<br />

não existia nele. Veremos mais adiante quão longe tal ideia estava do<br />

pensamento do Evangelista. Agora, volto à primeira sentença. Não há<br />

nenhuma redundância defeituosa (περιττολογία) como parece haver.<br />

Pois visto que Satanás aplica toda sua energia para tirar qualquer coisa<br />

de Cristo, o Evangelista propôs declarar expressamente que nada,<br />

absolutamente, se deve excetuar daquelas coisas que foram criadas.<br />

4. Nela estava a vida. Até aqui, ele nos ensinou que todas as coisas<br />

foram criadas pela Palavra de Deus. Agora, da mesma forma, atribui-<br />

-lhe a preservação do que fora criado, como se pretendesse dizer que,<br />

na criação do mundo, seu poder não apareceu meramente de súbito<br />

para, em seguida, desaparecer, mas que o mesmo se faz visível na<br />

preservação da ordem fixa e estável da natureza – exatamente como<br />

em Hebreus 1.3 está expresso que Deus sustenta todas as coisas pela<br />

Palavra ou comando de seu poder. Além do mais, essa vida pode ser<br />

ou uma referência mais extensa às criaturas inanimadas, as quais têm<br />

sua vida própria, ainda que lhes falte emoção, ou uma referência exclusivamente<br />

à vida animada. Pouco importa a escolha que o leitor faça,<br />

pois a ideia simplesmente consiste em que a Palavra de Deus não foi<br />

apenas a fonte de vida para todas as criaturas, tanto que as que ainda<br />

não existiam vieram à existência, mas que seu poder gerador de vida<br />

as fez permanecer em seu estado. Pois se sua inspiração não houvera<br />

mantido vivo o mundo, o que quer que florescesse, sem dúvida alguma,<br />

murcharia imediatamente ou se reduziria a nada. Em suma, o que<br />

Paulo atribui a Deus, que nele temos nosso ser, nos movemos e vivemos<br />

[At 17.28], <strong>João</strong> declara ser efetuado pela agência graciosa da Palavra.<br />

É Deus, pois, quem nos outorga a vida; mas ele o faz pela instrumentalidade<br />

da Palavra eterna.<br />

A vida era a luz dos homens. Deliberadamente, desconsidero<br />

qualquer outra interpretação que não esteja em harmonia com a intenção<br />

do Evangelista. Creio ser esta uma referência àquela parte da vida


36 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

na qual os homens excedem às demais criaturas animadas. É como se<br />

ele quisesse dizer que a vida outorgada aos homens não era a vida em<br />

geral, mas a vida associada à luz da razão. Além do mais, ele separa os<br />

homens dos demais seres, visto que somos cônscios do poder de Deus<br />

através do sentimento existente em nós mais do que através da visão<br />

ótica dele à distância. Daí, em Atos 17.27, Paulo nos dizer para não<br />

buscarmos a Deus como se ele estivesse longe, já que ele se revela em<br />

nosso mundo interior. E assim, quando o Evangelista pôs em evidência<br />

uma consideração geral da graça de Cristo, procurando persuadir os<br />

homens a prestarem maior atenção, ele põe diante deles o que lhes<br />

fora outorgado de forma específica – a saber, que não foram criados à<br />

semelhança dos seres brutos, senão que, ao serem dotados de razão,<br />

foram postos numa categoria muito mais sublime. Além do mais, visto<br />

que Deus eficazmente ilumina suas mentes com sua própria luz, segue-<br />

-se que foram criados para que pudessem saber que Deus é o Autor de<br />

uma benção tão singular. E, visto que essa luz nos flui da Palavra, como<br />

sua fonte, ela nos é como um espelho no qual podemos ver claramente<br />

o divino poder da Palavra.<br />

5. E a luz resplandece nas trevas. Pode-se suscitar uma objeção,<br />

dizendo que os homens são, em muitas passagens da Escritura,<br />

chamados de cegos, e que tal cegueira, à qual se acham condenados,<br />

é sobejamente notória, porquanto fracassam miseravelmente<br />

em todo seu raciocínio. Pois, donde procedem os infindáveis labirintos<br />

de erros no mundo, senão do fato de os homens serem<br />

guiados tão somente por seu próprio entendimento às ilusões e<br />

falsidades? Não obstante, se porventura nenhuma luz é visível aos<br />

homens, conclui-se que este testemunho do Evangelista acerca da<br />

divindade de Cristo fica destruído. Porque, como já disse, o terceiro<br />

passo consiste em que, na vida humana, há algo muito mais excelente<br />

do que mero movimento e respiração. O Evangelista antecipa<br />

este problema prontamente nos advertindo que a luz outorgada<br />

aos homens no princípio não pode ser avaliada em seu presente<br />

estado, visto que, nesta natureza arruinada e degenerada, a luz se


Capítulo 1 • 37<br />

converteu em trevas. E, no entanto, ele nega que a luz da razão<br />

esteja completamente extinta, porquanto na densa escuridão da<br />

mente humana brilham ainda algumas centelhas desse esplendor.<br />

Agora, o leitor poderá perceber a existência de duas ideias nessa<br />

frase. O Evangelista diz que os homens são agora muito diferentes<br />

daquela natureza íntegra com a qual foram dotados no princípio.<br />

Suas mentes, que teriam sido radiantes em todos os aspectos, se<br />

acham mergulhadas nas sombras de desditosa cegueira. E assim,<br />

nessa corrupção da natureza, a glória de Cristo está como que sombreada.<br />

Em contrapartida, porém, o Evangelista afirma que em meio<br />

às trevas ficaram ainda certos traços que de algum modo revelam<br />

o divino poder de Cristo. O Evangelista mostra, pois, que a mente<br />

humana está completamente cega, de tal modo que ela pode ser<br />

francamente considerada como que submersa em trevas. Pois ele<br />

poderia ter usado um meio termo e dizer que a luz era miserável ou<br />

sombria, mas não: ele quis expressar muito mais claramente quão<br />

depravada é nossa condição desde a queda do primeiro homem.<br />

Sua afirmação de que a luz brilha nas trevas não pretendia absolutamente<br />

exaltar a natureza corrupta. Ao contrário, pretendia despir<br />

a ignorância de toda e qualquer justificativa.<br />

E as trevas não a circunscreveram. Ainda que o Filho de Deus<br />

tenha sempre convocado os homens a si, pela instrumentalidade<br />

dessa pobre luz que ainda restou em nós, o Evangelista assevera que<br />

ela era ineficaz, porquanto, “vendo, não veem”. Porque, depois que<br />

o homem foi alienado de Deus, tal foi a ignorância que se apoderou<br />

de sua mente, que toda e qualquer luz que porventura nela restou é<br />

extinta e inútil. A experiência também comprova tal fato diariamente.<br />

Pois mesmo aqueles que não foram ainda regenerados pelo Espírito<br />

de Deus exercem certa razão, de modo que somos claramente instruídos<br />

de que o homem foi criado não só para respirar, mas que<br />

possui também entendimento. Não obstante, guiados por sua razão,<br />

o homem não alcança ou não consegue ter acesso a Deus e, assim,<br />

toda sua inteligência não prima direção alguma senão rumo à vaida-


38 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de, donde se deduz que não há qualquer esperança para a salvação<br />

dos homens, a menos que Deus lhe proveja um novo recurso. Pois<br />

ainda que o Filho de Deus derrame sua luz sobre eles, encontram-se<br />

tão entorpecidos que sua obtusidade não lhes permite compreender<br />

a fonte dessa luz; obcecados por fascinantes e perversas fantasias,<br />

acabam na demência.<br />

Há duas partes primordiais nessa luz que ainda permanece na<br />

natureza corrompida. Alguma semente de religião está plantada em<br />

todos; existe também aquela distinção entre o bem e o mal que está<br />

esculpida em suas consciências. Afinal, qual é o usufruto disso, senão<br />

que a religião produz mil e uma superstições monstruosas, e a<br />

consciência corrompe todo o juízo, confundindo vício com virtude?<br />

Em suma, a razão natural jamais guiará os homens a Cristo. O fato de<br />

serem eles dotados de sabedoria para dirigir suas vidas e de se formarem<br />

em filosofia e ciências se reduz e resulta em nada.<br />

Além do mais, devemos ter em mente que o Evangelista está falando<br />

unicamente dos dons naturais, e não está tratando ainda da<br />

graça da regeneração. Porque há no Filho de Deus dois poderes distintos.<br />

O primeiro se manifesta na arquitetura do mundo e na ordem<br />

da natureza. No uso do segundo, ele renova e restaura a natureza<br />

caída. Ele é a eterna Palavra de Deus; e, por conseguinte, por meio<br />

dele, o mundo foi criado. Pela ação de seu poder, todas as coisas<br />

conservam a vida que uma vez receberam; de uma forma toda especial,<br />

o homem foi adornado com o dom singular do entendimento. E,<br />

conquanto, com sua queda, tenha perdido a luz do entendimento, ele<br />

ainda vê e entende, já que o que ele naturalmente possui da graça<br />

do Filho de Deus não lhe foi totalmente destruído. Visto, porém, que,<br />

mediante seu embotamento e perversidade, ele empana a luz que<br />

ainda lhe resta, cumpre ao Filho de Deus assumir uma nova função, a<br />

saber, a de Mediador, e assim renova o homem perdido através do Espírito<br />

de regeneração. Portanto, põe o carro adiante dos bois quem<br />

interpreta a luz que o Evangelista menciona como sendo o evangelho<br />

e a proclamação da salvação.


Capítulo 1 • 39<br />

[1.6-13]<br />

Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era <strong>João</strong>. Este<br />

veio para dar testemunho, 6 a fim de testificar da luz, para que<br />

todos cressem através dele. Ele não era essa luz, mas veio para<br />

testificar a respeito da luz. A verdadeira luz era aquela que ilumina<br />

todo homem que entra no mundo. Ele estava no mundo, e o<br />

mundo foi feito por intermédio dele, e o mundo não o conheceu.<br />

Ele veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas a<br />

quantos o receberam, a esses lhes deu o poder de serem feitos<br />

filhos de Deus, a saber, os que creem em seu nome; os quais<br />

nasceram não do sangue, 7 nem da vontade da carne, nem da<br />

vontade do homem, mas de Deus.<br />

6. Houve um homem. O Evangelista começa, então, a examinar a<br />

forma pela qual a Palavra de Deus se manifestou em carne. E para que<br />

ninguém nutrisse dúvida de que Cristo é o eterno Filho de Deus, ele<br />

declara que Cristo foi publicamente proclamado por um arauto – <strong>João</strong><br />

Batista. Pois Cristo não se contentou em simplesmente manifestar-se<br />

aos homens, mas quis também fazer-se conhecido mediante o testemunho<br />

e pregação de <strong>João</strong>. Melhor ainda, Deus o Pai enviou essa<br />

testemunha adiante de seu Cristo para que todos prontamente recebessem<br />

a salvação por ele oferecida.<br />

À primeira vista, porém, parece absurdo que outro testificasse de<br />

Cristo, como se ele necessitasse de tal expediente, uma vez que ele<br />

declara não buscar o testemunho dos homens. A resposta é simples<br />

e óbvia. Esse testemunho foi ordenado não por causa de Cristo, mas<br />

por nossa causa. Se, porventura, alguém objetar dizendo que o testemunho<br />

humano é demasiadamente frágil para comprovar que Cristo<br />

é o Filho de Deus, a solução é também fácil: <strong>João</strong> Batista não é citado<br />

como uma testemunha particular, mas como alguém que, tendo recebido<br />

a autoridade divina, veio a público mais no papel de um anjo<br />

6 “Pour (porter) tesmoignage.” – “para dar testemunho.”<br />

7 “Nais de sangs, ou, de sang.” – nascido dos sangues, ou, do sangue.”


40 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do que de um homem. Portanto, ele não é exaltado por suas próprias<br />

habilidades, mas justamente por ser o embaixador de Deus. Tampouco<br />

se contradiz o testemunho pessoal de Cristo na pregação do evangelho<br />

a ele confiada, pois a razão de ser [raison d’être] <strong>João</strong> um arauto<br />

tinha por finalidade atrair a atenção dos ouvintes para o ensino e milagres<br />

de Cristo.<br />

Enviado por Deus. Ele não menciona a vocação de <strong>João</strong>, mas simplesmente<br />

a menciona de relance. Para as pessoas que se promovem e<br />

se gabam de que são enviadas por Deus, essa garantia não é suficiente.<br />

O Evangelista, porém, tencionando dizer mais adiante sobre esse<br />

testemunho, pensou que uma só palavra seria por ora suficiente – ele<br />

recebera de Deus sua comissão. Veremos mais adiante como <strong>João</strong> declara<br />

contundentemente que Deus é o autor de seu ministério. O que<br />

temos de compreender agora é (como já mencionei) o seguinte: o que<br />

se diz de <strong>João</strong> Batista aqui é exigido de todos os mestres da Igreja:<br />

devem clamar a Deus, a fim de que a autoridade de ensinar não tenha<br />

nenhuma outra base senão unicamente Deus.<br />

Cujo nome era <strong>João</strong>. Ele expressa o nome, não só para identificar<br />

o homem, mas porque o significado do nome estava associado à sua<br />

pessoa. Pois é indubitável que o Senhor estava se referindo ao ofício<br />

para o qual fora ele destinado, quando, através de seu anjo, o Senhor<br />

ordenou que ele fosse chamado <strong>João</strong>, a fim que, desse fato, todos reconhecessem<br />

que ele era o arauto da graça divina. 8 Pois ainda que 9<br />

[Jehohannan] possa ser tomado como passivo, e, portanto, se referia<br />

a ele pessoalmente, ou, seja, que <strong>João</strong> faria a vontade de Deus, não<br />

obstante, sem qualquer hesitação, aplico-o aos frutos que dele seriam<br />

colhidos. 10<br />

7. Ele veio para dar testemunho. Ele relanceia de forma breve<br />

o propósito da vocação de <strong>João</strong> –preparar a Igreja para a chegada de<br />

Cristo. Pois, ao convidar todos a virem a Cristo, ele mostra com muita<br />

8 “Herant et ambassade de la grace de Dieu.” – “Arauto e embaixador da graça de Deus.”<br />

9 “Le nom de Jean, qui signifie Grace.” – “O nome <strong>João</strong>, que significa Graça.”<br />

10 Para o significado do nome <strong>João</strong>, derivado do hebraico Jehohannan, o leitor pode<br />

consultar de nosso autor, <strong>Comentário</strong> sobre a Harmonia dos Três <strong>Evangelho</strong>s, <strong>Vol</strong>. 1, p. 15.


Capítulo 1 • 41<br />

clareza que não viera por sua própria causa. Portanto, <strong>João</strong> Batista carecia<br />

muito pouco da enfática recomendação do Evangelista, dizendo<br />

que ele não era a luz, no caso de um imoderado esplendor a ele atribuído<br />

viesse a ofuscar a glória de Cristo.<br />

8. Ele não era a luz. <strong>João</strong> estava tão longe de depender de recomendação,<br />

que o Evangelista formula esta advertência para que seu<br />

excessivo fulgor não obscurecesse a glória de Cristo. Pois alguns se<br />

apegaram a ele de uma forma tão extremada, que chegaram ao ponto<br />

de negligenciar a Cristo. Justamente como a pessoa que, fascinada pela<br />

luz da aurora, não se digna de olhar para o sol. Agora, podemos examinar<br />

que sentido o Evangelista atribui à palavra luz. Todos os santos<br />

são “luz no Senhor” [Ef 5.8] no sentido em que, iluminados pelo Espírito<br />

Santo, não só são vistos, mas também, por meio de seu exemplo,<br />

dirigem outros no caminho da salvação. Os apóstolos são chamados<br />

luz [Mt 5.14] porque são os castiçais especiais do evangelho, dispersando<br />

as trevas do mundo. Mas aqui o Evangelista está discutindo a<br />

única e eterna fonte de iluminação, como demonstra imediatamente a<br />

seguir de maneira sobejamente clara.<br />

9. A verdadeira luz. O intuito do Evangelista não era contrastar a<br />

verdadeira luz com a falsa; ele queria distinguir Cristo de todas as demais<br />

pessoas, para que alguém não chegasse à conclusão de que a luz<br />

que ele possuía era a luz comum que possuem os anjos e os homens.<br />

A diferença consiste em que a luz celestial e a terrena procedem de<br />

um único esplendor. Cristo, porém, é a luz, irradiando-a de si mesmo e<br />

através de si mesmo, e com isso lançando seus fulgurantes raios sobre<br />

o mundo inteiro. A fonte ou causa de seu esplendor não se encontra<br />

em qualquer outro lugar. É por isso que o Evangelista o chama a verdadeira<br />

luz, uma vez que sua natureza é intrinsecamente a plena luz.<br />

A qual ilumina a todo homem. O Evangelista põe esse fator em<br />

relevo a fim de aprendermos que Cristo é a luz a partir do efeito que<br />

cada um de nós sente em si próprio. Ele poderia ter adicionado mais<br />

sutileza em seu argumento, dizendo: uma vez que Cristo é a luz eterna,<br />

ele possui um esplendor inerente, não derivado. Mas, em vez disso,


42 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ele põe diante de nós aquela experiência que é comum a todos. Pois<br />

já que Cristo faz a todos nós participantes de seu esplendor, é preciso<br />

reconhecer que se deve atribuir exclusivamente a ele a dignidade de<br />

ser chamado luz.<br />

Quanto ao mais, este versículo é comumente explicado de duas<br />

formas. Alguns limitam o termo universal, todo homem, aos que,<br />

regenerados pelo Espírito de Deus, se tornam participantes da luz vivificante.<br />

Agostinho lança mão do símile de um professor, dizendo: Se<br />

sua escola é a única na cidade, será chamado o professor de todos,<br />

mesmo que muitos não frequentem sua escola. Portanto, essa ala considera<br />

esta frase em termos relativos: todos são iluminados por Cristo,<br />

visto que ninguém pode gabar-se de ter obtido a luz da vida de outra<br />

forma, senão mediante sua graça. Mas, como o Evangelista menciona<br />

em termos gerais: “ilumina a todo homem que vem ao mundo”, prefiro<br />

o outro significado, a saber: que os raios dessa luz são projetados<br />

sobre toda a raça humana, como eu disse supra. Pois sabemos que os<br />

homens tem esta única qualidade acima de todos os animais, a saber:<br />

são dotados de razão e inteligência e levam a distinção entre o certo<br />

e o errado esculpida em suas consciências. Portanto, não há homem<br />

em quem não penetre alguma noção da luz eterna. Visto, porém, que<br />

os fanáticos avidamente se apoderam deste versículo e o torcem, fazendo-o<br />

afirmar que a graça da iluminação é oferecida a todos sem<br />

distinção, tenhamos em nossa memória que ele está simplesmente se<br />

referindo à luz comum da natureza, algo muito mais inferior que a fé.<br />

Pois ninguém jamais ultrapassará os umbrais do reino de Deus pela<br />

habilidade e perspicuidade de sua própria mente; o Espírito de Deus<br />

é o único que abre os portões celestiais para seus eleitos. Além do<br />

mais, devemos lembrar que aquela luz da razão que Deus comunicou<br />

aos homens se tornou tão entenebrecida pelo pecado que, em meio às<br />

densas trevas, obscena ignorância e abismos de erros, ainda há algumas<br />

poucas centelhas que não foram completamente extintas.<br />

10. Ele estava no mundo. O Evangelista acusa os homens de<br />

ingratidão, com base no fato de que eram, por assim dizer, volunta-


Capítulo 1 • 43<br />

riamente cegos; tão profundamente cegos que não sabiam qual era a<br />

causa da luz de que desfrutavam. E essa é a terrível realidade de todos<br />

os tempos. Cristo revelou seu poder por toda parte, mesmo antes de<br />

manifestar-se em carne. Portanto, esses efeitos diários devem corrigir<br />

a morosidade humana, pois o que poderia ser mais irracional do<br />

que tirar água de um ribeiro sem nunca ponderar sobre o manancial<br />

donde ela emana? Consequentemente, o mundo não tem como alegar<br />

ignorância como legítima justificativa de não conhecer a Cristo antes<br />

que ele se manifestasse em carne. Pois tal ignorância é oriunda da<br />

frouxidão e de um gênero de embotamento naqueles que sempre o<br />

tiveram ao alcance de suas faculdades. Eis a suma de tudo isso: Cristo<br />

nunca esteve tão ausente do mundo que os homens não pudessem ser<br />

despertados por seus raios e poder olhar para ele. À luz desse fato,<br />

deduz-se que eles são culpados.<br />

11. Ele veio para os seus. Aqui o Evangelista comprova amplamente<br />

a deplorável perversidade e depravação do homem, sua impiedade<br />

mais que maldita, a saber: quando o Filho de Deus se revelou visivelmente<br />

em carne (e isso aos judeus, a quem Deus havia separado para<br />

si dentre as nações para que o mesmo fosse sua propriedade peculiar),<br />

ele não foi reconhecido nem recebido. Este versículo é também<br />

explicado de diferentes formas. Há quem pense que o Evangelista está<br />

falando de todo o mundo em geral, pois não há sequer uma partícula<br />

do mundo que o Filho de Deus não possa com justiça reivindicar como<br />

lhe pertencendo. Portanto, segundo esse ponto de vista, este deve ser<br />

o significado: quando Cristo veio à terra, ele não entrou num país estrangeiro,<br />

porquanto toda a raça humana lhe pertencia por herança.<br />

Quanto a mim, porém, aprovo mais a opinião dos que afirmam que<br />

a referência aqui é exclusivamente aos judeus. O Evangelista salienta<br />

a ingratidão humana com uma comparação implícita. O Filho de<br />

Deus havia escolhido uma habitação para si numa nação específica.<br />

Ao fazer-se presente ali, foi rejeitado. E isso revela claramente quão<br />

viciosa é a cegueira humana. Ao fazer essa afirmação, o único objetivo<br />

do Evangelista era simplesmente remover a ofensa que a incredulida-


44 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de dos judeus poderia colocar no caminho de muitas pessoas. Pois<br />

quem o reconheceria como Redentor do mundo quando era desprezado<br />

e rejeitado pela mesma nação à qual havia sido especificamente<br />

prometido? Eis a razão por que vemos Paulo se digladiando tão ardorosamente<br />

com esse mesmo problema.<br />

Além do mais, a ênfase é posta tanto no verbo quanto no pronome:<br />

ele veio. O Evangelista diz que o Filho de Deus veio para aquele<br />

lugar onde estivera anteriormente. Ele, pois, tem em mente um novo e<br />

extraordinário modo de presença por meio do qual o Filho de Deus se<br />

manifestou para que os homens o vissem bem de perto. Ao dizer, para<br />

os seus, o Evangelista está comparando os judeus com outras nações;<br />

pois foi mediante um privilégio singular que haviam sido eleitos para<br />

comporem a família de Deus. Cristo, pois, primeiro ofereceu-se a eles<br />

como se fossem sua própria família e pertencessem ao seu reino por<br />

direito legítimo. A censura de Deus em Isaías 1.3 é do mesmo teor: “O<br />

boi conhece seu possuidor, e o jumento, a manjedoura de seu dono;<br />

mas Israel não tem conhecimento, meu povo não entende.” Pois ainda<br />

que exerça domínio sobre toda a terra, seu senhorio é exercido<br />

especificamente sobre Israel, a quem ele reuniu, por assim dizer, num<br />

rebanho santo.<br />

12. Mas a todos quantos o receberam. No caso de alguém ser<br />

influenciado pelo escândalo posto pelos judeus, desprezando e<br />

rejeitando a Cristo, o Evangelista eleva até o céu a pessoa que piedosamente<br />

crê em Cristo. Ele diz que o resultado de sua fé é a glória de<br />

serem reconhecidos como filhos de Deus. O termo universal, “tantos<br />

quantos”, sugere uma antítese, ou seja: os judeus foram dominados<br />

por uma cega jactância, 11 como se Deus fosse somente deles. E, assim,<br />

o Evangelista declara que sua sorte se reverteu, pois os gentios<br />

preencheram a vaga deixada vacante pelos judeus deserdados. É precisamente<br />

como se ele houvesse transferido os direitos de adoção<br />

para pessoas estranhas. Isso confere com o dito de Paulo: a queda de<br />

11 “D’une vanterie aveuglee; c’est à dire, n’entendans pas ce qu’ils disoyent.” – “por uma<br />

cega arrogância; isto é, deixando de entender o que diziam.”


Capítulo 1 • 45<br />

uma nação significou vida para o mundo inteiro [Rm 11.12]. Pois ao<br />

ser o evangelho, por assim dizer, expulso deles, o mesmo começava<br />

a ser difundido por toda a vastidão do mundo. E, assim, eles se viram<br />

despojados da gloriosa graça divina. Sua impiedade, porém, não trouxe<br />

a Cristo nenhum dano, porquanto ele assentou as bases do trono<br />

de seu reino por toda parte e, sem qualquer discriminação, chamou à<br />

esperança da salvação todas as pessoas que anteriormente pareciam<br />

rejeitadas por Deus.<br />

Deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus. Aqui, tomo o<br />

termo ἐξουσία no sentido de um direito ou reivindicação, e seria melhor<br />

traduzi-lo assim, para que se refute a ficção papista. Sua ímpia<br />

deturpação deste versículo consiste em que nos foi dada a liberdade<br />

de escolha, privilégio este do qual somos capazes de nos valer. Encontrar<br />

livre-arbítrio nessas palavras, como fazem, é o mesmo que extrair<br />

fogo da água. À primeira vista, há certa justificativa para tal adulteração,<br />

pois o Evangelista não diz que Cristo os transforma em filhos de<br />

Deus, e sim lhes dá o poder de serem feitos filhos de Deus. Então deduzem<br />

que esta graça nos é meramente oferecida, e a capacidade para<br />

se fazer uso dela ou para rejeitá-la está em nós mesmos. O contexto,<br />

porém, pulveriza esse desprezível sofisma com uma só palavra, pois o<br />

Evangelista prossegue dizendo que são feitos filhos de Deus, não pela<br />

vontade da carne, mas por nascerem de Deus. Pois se a fé nos é dada<br />

para sermos regenerados e adotados como filhos de Deus, e se Deus<br />

sopra em nós a fé celestial, a graça da adoção que nos é oferecida por<br />

Cristo é obviamente não só em potencial, mas real, como eles dizem.<br />

Aliás, em grego ἐξουσία é tomada ocasionalmente por ἀξίωσις, ou ter<br />

direito, significado que se enquadra melhor nesta passagem.<br />

A perífrase da qual o Evangelista faz uso tende mais a enaltecer a<br />

excelência da graça do que se ele houvera dito numa só palavra que<br />

todos os crentes em Cristo são feitos por ele filhos de Deus. Pois aqui,<br />

ele está falando dos impuros e profanos que, condenados à desgraça<br />

perpétua, são arrancados das trevas da morte. Dessa maneira, Cristo<br />

revelou um extraordinário exemplo de sua graça, ao conferir essa hon-


46 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ra a tais pessoas, de modo tal que de repente começaram a ser filhos<br />

de Deus. O Evangelista, com razão, enaltece a grandeza dessa benção.<br />

De forma semelhante, faz Paulo em Efésios 2.4. Mas, ainda que alguém<br />

prefira o sentido comum do termo, contudo, como o Evangelista o usa<br />

aqui, poder não é usado como alguma sorte de faculdade incompleta<br />

que não inclui o efeito pleno e completo. Ao contrário, significa que<br />

Cristo deu aos impuros e incircuncisos o que parecia ser impossível.<br />

Porque essa era uma mudança humanamente impossível, a saber: que<br />

Cristo, das pedras, gerasse filhos de Deus. Portanto, o poder é aquela<br />

idoneidade (ἱκανότης) de que Paulo fala em Colossenses 1.12, quando<br />

rende graças a Deus “que vos fez idôneos para participardes da herança<br />

dos santos na luz”.<br />

Que creem em seu nome. Ele indica resumidamente como Cristo<br />

deve ser recebido – a saber: através da fé nele. Implantados em Cristo<br />

mediante a fé, granjeamos o direito de adoção como filhos de Deus. E<br />

visto que ele é o unigênito Filho de Deus, esta honra de forma alguma<br />

nos pertence, exceto como membros de seu corpo. Uma vez mais, isso<br />

refuta a ficção acerca do ‘poder’. O Evangelista declara que esse poder<br />

é outorgado aos que já creem, e é indubitável que eles já são realmente<br />

filhos de Deus. Os que dizem que ao que crê só é concedido que se torne<br />

filho de Deus caso ele o queira, estão subestimando terrivelmente<br />

a fé. Substituem um resultado presente por uma capacidade indecisa.<br />

A contradição se sobressai, mesmo ao mais obtuso, à luz das próximas<br />

palavras. O Evangelista diz que aqueles que creem já nasceram<br />

de Deus. Não significa, pois, que lhes é oferecida apenas a faculdade de<br />

escolher, porquanto são premiados com a própria coisa oferecida. Embora<br />

em hebraico nome (), às vezes, seja usado em lugar de poder,<br />

aqui ele é usado em referência à pregação do evangelho. Pois cremos<br />

em Cristo quando ele nos é oferecido na pregação. Estou falando da<br />

forma usual pela qual o Senhor nos guia à fé. E é preciso observar isso<br />

com muita prudência, posto que muitos estultamente inventam para si<br />

uma fé confusa e sem qualquer discernimento do evangelho. Nenhum<br />

termo é mais trivial entre os papistas do que crer, porém é expresso


Capítulo 1 • 47<br />

sem aquele conhecimento de Cristo oriundo do ouvir o evangelho. Assim,<br />

Cristo se nos oferece através do evangelho, e nós o recebemos<br />

mediante a fé.<br />

13. Os quais não nasceram do sangue. 12 Endosso de bom grado<br />

a opinião dos que pensam que essa é uma referência indireta à presunção<br />

perversa dos judeus. A preeminência de sua linhagem estava<br />

sempre a bailar em seus lábios, como se fossem inerentemente santos<br />

só porque haviam nascido de uma descendência santa. Poderiam com<br />

toda razão orgulhar-se de que haviam descendido de Abraão, caso fossem<br />

filhos legítimos, e não filhos degenerados. Mas a glória da fé não<br />

reivindica absolutamente nada para a geração carnal, senão que declara<br />

que ela recebeu tudo o que é bom unicamente da graça divina. <strong>João</strong>,<br />

portanto, está afirmando que aqueles gentios imundos que creem em<br />

Cristo não são filhos de Deus por procederem do ventre, mas que começam<br />

a ser filhos de Deus quando são recriados por ele. Tudo indica<br />

que sangue foi expresso no plural – sangues – com o fim de realçar a<br />

ideia de uma longa sucessão de linhagem. Pois uma parte da vanglória<br />

dos judeus consistia no fato de poderem eles traçar sua descendência<br />

através de uma linhagem ininterrupta até chegar aos patriarcas.<br />

Nem da vontade da carne, nem da vontade do homem. Em minha<br />

opinião, ambas as frases tem o mesmo sentido. Porquanto não<br />

vejo por que carne deva ser considerada equivalente a mulher (como<br />

muitos supõem, entre os quais Agostinho). O Evangelista está simplesmente<br />

reiterando a mesma ideia com palavras diferentes, com o fim de<br />

imprimi-la e fixá-la mais indelevelmente em nossas mentes. E mesmo<br />

que ele estivesse pensando especificamente nos judeus, que se gloriavam<br />

na carne, pode-se depreender uma doutrina geral deste versículo,<br />

a saber: que somos reconhecidos como filhos de Deus, não por conta<br />

de nossa própria natureza, nem por nossa própria iniciativa, mas porque<br />

o Senhor nos gerou voluntariamente [Tg 1.18], ou seja, com base<br />

12 Aqui nosso autor, ou de propósito ou inadvertidamente, adotou a frase do sangue, em vez<br />

do que ele seguiu em sua versão do texto de sangues – a tradução literal, ainda que não<br />

idiomática, de ἐξ αἱμάτων, que por si só é de rara ocorrência, porém não destituída de<br />

autoridade clássica.


48 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

em seu amor imerecido. Daqui se deduz, primeiramente, que a fé não<br />

provém de nossa própria ação, senão que é fruto de regeneração espiritual.<br />

Pois o Evangelista afirma que ninguém pode crer, a não ser que<br />

seja gerado por Deus. Daqui se depreende que a fé é um dom celestial.<br />

Além do mais, a fé não é um mero e frio conhecimento, porquanto ninguém<br />

pode crer se porventura não for renovado pelo Espírito de Deus.<br />

É como se o Evangelista estivesse mudando a ordem das coisas,<br />

colocando a regeneração depois da fé, como se ela fosse o resultado da<br />

fé e, portanto, a seguisse. Minha resposta é que as duas ordens estão<br />

em perfeita harmonia: pela fé concebemos a semente incorruptível pela<br />

qual nascemos de novo para uma vida nova e de caráter divino; além<br />

disso, a fé propriamente dita é obra do Espírito Santo que não habita em<br />

nenhum outro além dos filhos de Deus. Portanto, em muitos aspectos<br />

a fé é uma parte de nossa regeneração, um ingresso no reino de Deus,<br />

para que ele pudesse incluir-nos no número de seus filhos. A iluminação<br />

de nossas mentes, efetuada pelo Espírito Santo, pertence à nossa<br />

renovação. Dessa forma, a fé flui da regeneração como sua fonte. Visto,<br />

porém, que, mediante essa mesma fé, recebemos a Cristo que nos santifica<br />

através de seu Espírito, ela é chamada o começo de nossa adoção.<br />

Naturalmente, pode-se tentar outra distinção que seja mais clara<br />

e mais completa. Quando o Senhor nos sopra a fé, ele nos regenera<br />

de uma forma íntima e secreta, a qual nos é desconhecida. Uma vez,<br />

porém, que a fé nos tenha sido outorgada, percebemos, por meio de<br />

um vivo senso da consciência, não só a graça da adoção, mas também<br />

a novidade de vida e outros dons do Espírito Santo. Pois já que, como<br />

já dissemos, a fé recebe a Cristo, em certo sentido ela nos leva a tomar<br />

posse de todas as suas bênçãos. E assim, no que tange à nossa atitude,<br />

só começamos a ser filhos de Deus depois de crermos. Porque, visto<br />

que a herança da vida eterna é o resultado da adoção, percebemos<br />

que o Evangelista atribui toda nossa salvação exclusivamente à graça<br />

de Cristo. E de fato, por mais que os homens se examinem, não encontrarão<br />

nada digno da condição de filhos de Deus além do que Cristo<br />

mesmo lhes outorgou.


Capítulo 1 • 49<br />

[1.14]<br />

E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, cheia de graça e<br />

de verdade, e vimos sua glória, glória como do unigênito do Pai.<br />

14. E a Palavra se fez carne. Ele agora ensina a natureza da vinda<br />

de Cristo de que havia falado, a saber: que, vestido de nossa carne, ele<br />

se manifestou publicamente ao mundo. Embora o Evangelista toque<br />

apenas de leve no inefável mistério de o Filho de Deus assumir a natureza<br />

humana, tal brevidade é maravilhosamente clara. Aqui, alguns<br />

dementes se divertem de forma pueril, fazendo uso de alguns sofismas<br />

desprezíveis, tais como: diz-se que a Palavra se fez carne no sentido<br />

em que Deus enviou seu Filho ao mundo para tornar-se homem como<br />

um conceito mental – como se a Palavra fosse alguma espécie de ideia<br />

fantasmagórica. Mas já demonstramos que isso expressa uma genuína<br />

hypostasis ou existência pessoal na essência de Deus.<br />

O termo carne expressa a ideia com mais eficácia do que se o<br />

Evangelista houvesse dito que ele se fez homem. Ele queria mostrar a<br />

que estado vil e abjeto o Filho de Deus desceu, deixando a amplidão de<br />

sua glória celestial por nossa causa. Quando a Escritura fala do homem<br />

em seu caráter deprimente, ela o chama ‘carne’. Quão imensurável é<br />

a distância entre a glória espiritual da Palavra de Deus e a abominável<br />

vileza de nossa carne! Não obstante, o Filho de Deus se humilhou de<br />

forma tão extrema que tomou para si essa carne permeada de profunda<br />

miséria. Carne aqui não é usada para a natureza depravada (como<br />

em Paulo), mas para o homem mortal. Denota desdenhosamente sua<br />

natureza frágil e transitória: “toda carne é erva” [Is 40.6] e textos semelhantes<br />

[Sl 78.39].<br />

Ao mesmo tempo, porém, é preciso observar que aqui temos uma<br />

sinédoque retórica – a vileza abrange o homem por inteiro. 13 Portanto,<br />

Apolinário procedeu nesciamente ao imaginar que Cristo se vestiu<br />

com um corpo humano destituído de alma. Pois não é difícil deduzir, à<br />

13 “Car sous la chair et la partie inferieure tout l’homme est comprins.” – “pois sob a carne<br />

e a parte inferior está incluído o homem como um todo.”


50 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

luz de inumeráveis afirmações, que ele foi igualmente dotado com um<br />

corpo e uma alma. E as Escrituras, ao qualificar os homens de carne,<br />

nem por isso os apresentam destituídos de alma.<br />

O sentido pleno, portanto, é que a Palavra, gerada de Deus antes<br />

de todas as eras e habitando eternamente com o Pai, se fez homem.<br />

Temos aqui dois importantes artigos de fé. Primeiro: em Cristo as duas<br />

naturezas foram unidas numa só pessoa, de tal forma que um e o mesmo<br />

Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. <strong>Segundo</strong>: a unidade<br />

de sua pessoa não impede suas naturezas de permanecerem distintas,<br />

de tal modo que a divindade retém o que lhe é inerente, e a humanidade,<br />

de igual modo, mantém separadamente o que lhe pertence. E<br />

assim, quando Satanás usa os hereges para subverterem a sã teologia<br />

por meio desta ou daquela sandice, ele sempre introduz um ou outro<br />

destes dois erros: ou que Cristo foi o Filho de Deus e do homem de forma<br />

confusa, de modo que nem sua divindade permaneceu intacta nem<br />

foi ele circundado pela verdadeira natureza humana, ou que ele foi revestido<br />

de carne ao ponto de tornar-se um ser duplo, convertendo-se<br />

em duas pessoas distintas. Dessa forma, os nestorianos reconheciam<br />

expressamente cada natureza, porém imaginavam um Cristo que era<br />

Deus e outro que era homem. Êutico, por outro lado, reconhecia que<br />

um só Cristo é o Filho de Deus e do homem, porém o destituiu de<br />

ambas as naturezas, crendo que foram fundidas. Hoje, Serveto e os<br />

anabatistas inventaram um Cristo que é a confusa combinação das<br />

duas naturezas, como se ele fosse um homem divino. Certamente que<br />

ele declara verbalmente que Cristo é Deus, mas quando se lhe permite<br />

expressar suas insanas imaginações, descobre-se que a divindade foi<br />

temporariamente mudada em natureza humana, e agora a natureza humana<br />

foi uma vez mais absorvida na Deidade.<br />

As palavras do Evangelista foram expressas de forma a refutar<br />

ambas essas blasfêmias. Ao dizer que a Palavra se fez carne, podemos<br />

deduzir claramente a unidade de sua pessoa. Pois não faz sentido dizer<br />

que o que agora é homem seja outro diferente do que sempre foi<br />

Deus, uma vez que se diz que foi Deus quem se fez carne. Além disso,


Capítulo 1 • 51<br />

visto que ele atribui distintamente ao homem Cristo o título a Palavra,<br />

segue-se que, quando se fez homem, Cristo não cessou de ser o que<br />

sempre fora antes, e que nada foi mudado naquela eterna essência do<br />

Deus que assumiu a carne. Em suma, o Filho de Deus começou a ser<br />

homem de tal forma que ele é ainda aquela eterna Palavra que jamais<br />

teve princípio temporal.<br />

E habitou entre nós. Os que afirmam que a carne foi como que<br />

um lar para Cristo não conseguiram penetrar o pensamento do Evangelista.<br />

Ele não atribui a Cristo residência permanente entre nós, mas<br />

simplesmente diz que ele exerceu por algum tempo o papel de hóspede.<br />

Pois o termo que ele usa, ἐσκήνωσεν, é derivado de tabernáculo. 14<br />

Com isso, ele quer dizer simplesmente que Cristo desempenhou na<br />

terra seu ofício; em outros termos, ele não só surgiu por um instante,<br />

mas que viveu entre os homens enquanto cumpria a trajetória de seu<br />

ofício. É incerto se a frase “entre nós” se refere aos homens em geral<br />

ou a <strong>João</strong> e aos demais discípulos que foram testemunhas oculares<br />

dos eventos que ele narra. Prefiro a última interpretação, pois o Evangelista<br />

adiciona imediatamente:<br />

E vimos sua glória. Pois ainda que a glória de Cristo pudesse ser<br />

vista por todos, ela seria ignorada pela maioria por causa de sua cegueira;<br />

apenas uns poucos, cujos olhos o Espírito Santo abrira, viram<br />

essa manifestação da glória. A essência dela consiste em que Cristo<br />

foi reconhecido como um homem que exibia em si algo muito maior<br />

e mais sublime. Portanto, segue-se que a majestade de Deus não foi<br />

aniquilada, ainda que estivesse circunscrita pela carne. Ela ficou, de<br />

fato, oculta pela vil condição da carne, mas de modo a não impedir a<br />

manifestação de sua glória.<br />

Como do unigênito do Pai. Neste versículo, a expressão não denota<br />

uma comparação imprópria, mas, antes, uma prova genuína e forte.<br />

Precisamente como Paulo faz em Efésios 5.8, ao dizer: “Andai como<br />

filhos da luz”, querendo que realmente demos testemunho através de<br />

14 “Est deduit d’un mot qui signifie Tabernacles, c’est à dire, tentes et pavillons.” – “derivase<br />

de uma palavra que significa tabernáculos, isto é, tendas ou pavilhões.”


52 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

nossas obras do que na realidade somos – filhos da luz. Portanto, a<br />

intenção do Evangelista é que em Cristo tinha que ser vista uma glória<br />

compatível com o Filho de Deus, testemunhando sua Deidade de uma<br />

forma infalível. Assim, ele qualifica a Cristo em razão de ser ele, inerentemente,<br />

o Filho unigênito do Pai. É como se o Evangelista tivesse<br />

proposto colocá-lo acima dos homens e anjos, e reivindicar para ele,<br />

com exclusividade, aquilo que não pertence a nenhuma criatura.<br />

Cheio de graça e de verdade. Esta é uma confirmação da última<br />

sentença. A majestade de Cristo certamente manifestou-se também em<br />

outros aspectos, mas o Evangelista escolheu este exemplo em vez de<br />

outros com o fim de nos exercitar no conhecimento prático dele, em<br />

vez do conhecimento especulativo – fato este que requer observação<br />

mui criteriosa. Quando Cristo caminhou sobre as águas com seus pés<br />

enxutos [Mt 14.26; Mc 6.48; Jo 6.19]; quando ele pôs em fuga os demônios<br />

e revelou seu poder em outros milagres; então pôde realmente ser<br />

reconhecido como o Filho unigênito de Deus. O Evangelista, porém,<br />

põe no centro essa parte da prova de que a fé recebe o sazonado fruto<br />

de Cristo, declarando que ele é inquestionavelmente a inexaurível fonte<br />

da graça e da verdade. De Estevão também se diz que estava “cheio<br />

de graça” [At 7.55], contudo em outro sentido. Pois a plenitude da graça<br />

15 em Cristo é aquele bem do qual todos nós devemos beber, como<br />

sucintamente se dirá mais adiante de uma forma mais plena.<br />

Tal coisa pode ser expressa fazendo uso de uma expressão de<br />

linguagem, como sendo “a genuína graça”. Ou, segundo outra explicação:<br />

“Ele era cheio de graça, ou, seja, de verdade ou perfeição.” Visto,<br />

porém, que ele imediatamente repete a mesma forma de expressão,<br />

considero o significado como sendo o mesmo em ambos os passos.<br />

Logo a seguir, ele contrasta esta graça e verdade com a lei, o que entendo<br />

simplesmente no sentido em que Cristo devia ser reconhecido<br />

pelos apóstolos como Filho de Deus, já que ele tinha em si a plenitude<br />

15 Este deve ter sido um lapso da memória da parte de nosso autor; pois as frases aplicadas<br />

a Estêvão são diferentes, ainda que paralelas. Ele foi chamado um homem cheio de fé e do<br />

Espírito Santo [At 6.5], cheio de fé e de poder [At 6.8], e cheio do Espírito Santo [At 7.55].


Capítulo 1 • 53<br />

de todas as coisas pertencentes ao reino espiritual de Deus. Em suma,<br />

em todas as coisas ele realmente demonstrou ser o Redentor e Messias,<br />

que é o característico mais importante e pelo qual ele tem de ser<br />

distinguido de todos os demais.<br />

[1.15-18]<br />

<strong>João</strong> dá testemunho 16 acerca dele, e clamou, dizendo: Esse é<br />

aquele de quem eu disse: Aquele que vem após mim é preferido a<br />

mim, porque tem a preeminência sobre mim. 17 E todos nós temos<br />

recebido de sua plenitude, e graça sobre graça. Pois a lei foi dada<br />

por meio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus<br />

Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o próprio Filho unigênito,<br />

que está no seio do Pai, o tem declarado.<br />

15. <strong>João</strong> dá testemunho acerca dele. O Evangelista descreve<br />

agora a proclamação de <strong>João</strong>. Ao usar o tempo presente, testifica<br />

(μαρτυρεῖ), 18 ele denota uma atividade contínua. E essa proclamação<br />

deve de fato florescer continuamente, como se a voz de <strong>João</strong> estivesse<br />

soando continuamente nos ouvidos dos homens. Pela mesma<br />

razão, ele então usa a palavra clamar para indicar que a pregação<br />

de <strong>João</strong> não era absolutamente obscura nem envolvida por ambiguidades<br />

nem sussurrada entre uns poucos. 19 Ele proclamou a Cristo<br />

publicamente e em voz altissonante. A primeira sentença refere-se ao<br />

fato de <strong>João</strong> ter sido enviado por causa de Cristo, de modo que teria<br />

sido algo estranho fosse ele exaltado enquanto Cristo era humilhado.<br />

Esse é aquele de quem eu falei. Com essas palavras, ele quis<br />

dizer que desde o princípio seu propósito era fazer Cristo conhecido<br />

e que esse era o alvo de sua pregação; pois de nenhuma outra forma<br />

16 “Jean rend (ou, a rendu) tesmoignage de luy.” – “<strong>João</strong> dá (ou deu) testemunho dele.”<br />

17 “Plus excellent que moy, out, premier que moy.” – “mais excelente do que eu, ou, antes de mim.”<br />

18 “En usant du verbe du temps present, à scavoir, Rend tesmoignage, et non pas, Rendoit.”<br />

– “fazendo uso do verbo no tempo presente, dá testemunho, e não deu testemunho.”<br />

19 “Qu’il n’a point parlé entre ses dents, et communiqué la chose comme en secret à peu de<br />

gens.” – “que ele não falou por entre os dentes, e não comunicou a matéria como se ela<br />

fosse secreta, a umas poucas pessoas.”


54 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

poderia ele levar a bom termo sua missão como embaixador senão<br />

convocando seus discípulos a vir a Cristo.<br />

Aquele que vem após mim. De fato, <strong>João</strong> era uns meses mais<br />

velho que Cristo, porém não é de idade que ele está tratando agora.<br />

Como desempenhara o ofício de profeta por algum tempo antes que<br />

Cristo aparecesse em público, ele apareceu antes quanto ao tempo.<br />

Portanto, Cristo seguiu a <strong>João</strong> no tocante à sua manifestação pública.<br />

O que vem a seguir pode ser assim traduzido: “ele veio antes de<br />

mim, porque era meu superior” [primus meus]. O significado, porém,<br />

consiste em que Cristo era merecidamente preferível a <strong>João</strong> por ser<br />

ele mais excelente. Ele, portanto, rende-se a Cristo e, como diz o provérbio,<br />

põe a tocha em suas mãos. Como Cristo, porém, veio algum<br />

tempo depois, <strong>João</strong> nos adverte que o fato de ser ele preferido não<br />

deve constituir obstáculo para a dignidade de sua posição. Portanto,<br />

todos quantos excedem, quer nos dons divinos quer em algum grau de<br />

honra, devem permanecer em sua própria condição: abaixo de Cristo.<br />

16. E de sua plenitude. <strong>João</strong> agora se põe a pregar sobre o ofício<br />

de Cristo, o qual contém uma abundância tal de todas as bênçãos,<br />

que nenhuma parcela de salvação deve ser buscada em algum outro<br />

lugar. Aliás, em Deus está a fonte de vida, justiça, poder e sabedoria;<br />

essa fonte, porém, se acha oculta e inacessível a nós. Em Cristo, contudo,<br />

a riqueza de todas essas coisas se acha exposta diante de nós<br />

para que as busquemos nele. Ele espontaneamente está disposto a<br />

fazê-las jorrar sobre nós, se apenas lhe dermos espaço pela fé. Ele declara<br />

sucintamente que não devemos buscar qualquer benção fora de<br />

Cristo. Esta oração, contudo, compõe-se de várias frases. Na primeira,<br />

ele mostra que todos nós somos totalmente destituídos e vazios<br />

de bênçãos espirituais. Pois Cristo é rico para socorrer-nos em nossa<br />

pobreza, suportar nossos fracassos e saciar nossa fome e sede. Na<br />

segunda, ele nos adverte que, tão logo nos esquecemos de Cristo, passamos<br />

a buscar em vão um ínfimo bocado de bem, visto que aprouve a<br />

Deus que todo bem que existe seja encontrado unicamente nele. Portanto,<br />

encontraríamos ressequidos anjos e homens, vazios os céus,


Capítulo 1 • 55<br />

estéril a terra e destituídas de valor todas as coisas, caso queiramos<br />

participar dos dons divinos de outra forma que não seja através de<br />

Cristo. Na terceira, ele nos lembra que não carecemos de temer que<br />

nos falte alguma coisa, uma vez que extraímos tudo da plenitude de<br />

Cristo, a qual é, em todos os aspectos, tão perfeita, que descobrimos<br />

ser ela uma fonte inexaurível.<br />

<strong>João</strong> se classifica como parte do todo, não movido por modéstia,<br />

mas para realçar ainda mais que absolutamente ninguém é excetuado.<br />

É incerto se ele está falando de toda a raça humana em geral ou<br />

apenas daqueles que, desde que Cristo se manifestou em carne, têm<br />

participado mais plenamente de suas bênçãos. É verdade que todos<br />

os santos que viveram sob o regime da lei experimentaram dessa mesma<br />

plenitude; visto, porém, que <strong>João</strong> faz uma breve distinção entre<br />

as dispensações, é mais provável que ele esteja aqui exaltando aquela<br />

abundante riqueza de bênçãos que Cristo revelou quando veio ao<br />

mundo. Pois sabemos que, sob o regime da lei, eles tinham uma experiência<br />

muito escassa dos benefícios de Deus; e quando Cristo se<br />

revelou em carne, as bênçãos foram derramadas, por assim dizer, a<br />

mão cheia, à plena saciedade. Não que algum de nós desfrute de uma<br />

maior abundância da graça do Espírito do que Abraão, mas refiro-me<br />

à dispensação ordinária de Deus e de sua forma e método. Portanto,<br />

<strong>João</strong> Batista, fazendo o máximo para atrair seus discípulos a Cristo,<br />

declara que nele é oferecido a todos a abundância das bênçãos de que<br />

carecem. Mas não haveria absurdo algum se alguém preferisse forçar<br />

um significado adicional – ou, melhor, não é absolutamente contra o<br />

curso do argumento. Desde o princípio do mundo, todos os patriarcas<br />

extraíram de Cristo todos os dons que tiveram. Pois ainda que a lei fosse<br />

dada por intermédio de Moisés, contudo não foi dele que obtiveram<br />

a graça. Mas já deixei esclarecido qual é a explicação que adoto, a saber,<br />

que <strong>João</strong> aqui nos compara com os patriarcas para que, com isso,<br />

pusesse em evidência aquela proeminência que nos foi outorgada.<br />

E graça sobre graça. É bem notória a interpretação que Agostinho faz<br />

deste versículo: todas as bênçãos que nos são continuamente outorgadas


56 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

por Deus, e extensivamente a vida eterna, são não um ressarcimento por<br />

conta de nosso crédito, como se fossem salários por nós granjeados, mas<br />

provêm simplesmente da bondade de Deus que assim nos remunera com<br />

sua graça prévia e nos coroa com seus próprios dons. Essa é uma santa e<br />

sábia observação, mas que não se adéqua bem ao presente versículo. O<br />

significado se torna mais simples quando o leitor toma a preposição ἀντὶ<br />

comparativamente, como se <strong>João</strong> estivesse dizendo que todas as graças<br />

divinas sobre nós acumuladas fluem igualmente dessa fonte. Poderia também<br />

ser tomada como indicativo de propósito final – recebemos graça<br />

agora para que Deus finalmente conclua a obra de nossa salvação, a qual<br />

é a consolidação da graça. Mas concordo mais com a opinião dos que dizem<br />

que somos regados com aquelas graças que foram derramadas sobre<br />

Cristo. Pois o que recebemos de Cristo, ele não no-lo concede como sendo<br />

Deus, mas o Pai lhe comunica o que nos deve fluir como que através<br />

de um canal. Essa é a unção que foi liberalmente derramada sobre ele<br />

para que pudesse ungir a todos nós com ele. É também por essa razão<br />

que ele é chamado Cristo (o Ungido) e nós, cristãos.<br />

17. Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés. Ele fala em<br />

termos de antecipação com o fim de realçar uma objeção que provavelmente<br />

surgiria. Pois a figura de Moisés se tornou tão proeminente para<br />

os judeus, que dificilmente permitiriam qualquer coisa que diferisse<br />

dele. O Evangelista, pois, nos ensina quão humilde era o ministério de<br />

Moisés comparado com o domínio de Cristo. Tal comparação também<br />

põe nitidamente em relevo o poder de Cristo, pois o Evangelista adverte<br />

os judeus, que rendiam a Moisés a mais elevada deferência, que sua<br />

contribuição era extremamente escassa em comparação com a graça<br />

de Cristo. Pois teria sido uma grande decepção esperar da lei o que é<br />

possível obter somente pela mediação de Cristo.<br />

Mas é preciso que observemos a antítese no contraste que ele<br />

traça da lei com a graça e a verdade; porquanto ele insinua que a lei<br />

carecia de ambas. 20 Pois, em meu entendimento, a palavra verdade<br />

20 “Que la Loy n’a eu ne l’un ne l’autre.” – “que a lei não possuía nem uma nem a outra.”


Capítulo 1 • 57<br />

denota a firme e sólida estabilidade das coisas. Pela palavra graça, entendo<br />

o cumprimento espiritual daquelas coisas das quais a mera letra<br />

estava contida na lei. Ou ambas as palavras podem referir-se à mesma<br />

coisa à guisa de hipálage, uma figura de linguagem bem conhecida,<br />

como se ele dissesse que a graça, em que consiste a verdade da lei, foi<br />

afinal revelada em Cristo. Mas, como o sentido permanece o mesmo,<br />

não importa se o leitor as conecte ou as distinga. O certo é que o Evangelista<br />

tem em mente que, na lei, havia meramente esboçada a imagem<br />

das bênçãos espirituais, mas que, em Cristo, elas são exibidas em toda<br />

sua plenitude. Daí se conclui que, se o leitor separar a lei da pessoa<br />

de Cristo, nada ficará nela senão formas vazias. Essa é a razão por que<br />

Paulo diz em Colossenses 2.17, que na lei há “sombras das coisas futuras,<br />

mas o corpo é de Cristo”. Entretanto, não se deve supor que tudo<br />

o que na lei se exibia era falso; porquanto Cristo é a alma que vivifica o<br />

que de outra forma estaria morto na lei. Aqui, porém, estamos tratando<br />

de uma questão distinta – a validade da lei, em si mesma e à parte<br />

de Cristo. E o Evangelista nega que fosse encontrado nela qualquer<br />

substância antes que Cristo viesse. Além do mais, a verdade consiste<br />

no fato de que através de Cristo obtemos a graça que a lei não poderia<br />

dar. Portanto, tomo a palavra graça em termos gerais, como sendo<br />

tanto o perdão gratuito dos pecados quanto a renovação do coração.<br />

Pois quando o Evangelista, de forma sucinta, indica a diferença entre<br />

o Velho e o Novo Testamentos (o que é mais plenamente descrito em<br />

Jr 31.31), ele inclui em suas palavras tudo quanto se relacione com<br />

a justiça espiritual. Ora, há nisso duas partes: Deus, graciosamente,<br />

nos reconcilia consigo mesmo, não nos imputando nossos pecados; e<br />

também gravou sua lei em nossos corações e transforma o coração do<br />

homem, mediante a operação de seu Espírito, para a obediência à lei.<br />

Disto se faz evidente que a apresentação da lei será incorreta ou falsa,<br />

caso ela escravize o homem a si ou o embarace de ir a Cristo.<br />

18. Ninguém jamais viu a Deus. Esta adição confirma eficientemente<br />

o que acaba de ser exposto. Pois o conhecimento de Deus é a<br />

porta pela qual temos acesso ao usufruto de todas as bênçãos. Portan-


58 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

to, visto que Deus se nos revela exclusivamente por meio de Cristo,<br />

segue-se que temos de buscar todas as coisas só em Cristo. Esta sequência<br />

doutrinal tem de ser detidamente observada. Nada parece mais<br />

óbvio do que cada um de nós tomarmos o que Deus nos oferece segundo<br />

a medida de nossa fé. Mas apenas uns poucos compreendem que<br />

o recipiente da fé e do conhecimento de Deus tem de ser restaurado.<br />

Ao dizer que ninguém jamais viu a Deus, tal expressão não deve<br />

ser entendida como uma referência à visão externa dos olhos físicos.<br />

Ele quer dizer, em termos gerais, que, já que Deus habita em luz inacessível<br />

[1Tm 6.16], ele não pode ser conhecido senão em Cristo, que<br />

é sua imagem viva. Além do mais, geralmente se expõe este versículo<br />

assim: visto que a majestade nua de Deus está oculta em seu Ser interior,<br />

ele jamais poderia ser compreendido senão até onde se revela<br />

em Cristo. Por isso, foi somente em Cristo que Deus se deu a conhecer<br />

aos antigos patriarcas. Reconheço, porém, que o Evangelista está aqui<br />

estendendo a comparação já feita – quão superior é nosso estado ao<br />

dos patriarcas, no fato de que Deus, que subsistia então velado em sua<br />

glória secreta, agora, em certo sentido, se fez visível. Pois, indubitavelmente,<br />

quando Cristo é chamado “a imagem expressa de Deus” [Hb<br />

1.3], a referência é à benção especial do Novo Testamento. Assim também,<br />

neste versículo, o Evangelista aponta para algo novo e inusitado,<br />

quando diz que o unigênito, que estava no seio do Pai, nos revelou o<br />

que de outra forma continuaria oculto. Ele, pois, enaltece a revelação<br />

de Deus, comunicada a nós pelo evangelho, por meio do qual ele nos<br />

distingue dos patriarcas como sendo superiores a eles. Paulo trata disso<br />

de forma mais ampla em 2 Coríntios 3 e 4, declarando que não resta<br />

mais nenhum véu a interpor-se à lei, mas Deus é publicamente contemplado<br />

na face de Cristo.<br />

Se, porventura, parecer ridículo que os [antigos] pais fossem privados<br />

do conhecimento de Deus, quando seus profetas empunhavam<br />

suas tochas que ainda servem para nós hoje, respondo: o que nos é outorgado<br />

não é simples ou absolutamente negado a eles, mas (como se<br />

diz) o que se faz aqui é uma comparação entre o menor e o maior; pois


Capítulo 1 • 59<br />

o que eles tinham nada mais era senão pequenas fagulhas dessa luz<br />

de vida, cuja plena resplandecência nos ilumina hoje. Se, porventura,<br />

alguém objetar, dizendo que mesmo naquela época Deus era visto face<br />

a face [Gn 32.30; Dt 34.10], digo que essa visão não era absolutamente<br />

comparável à nossa; visto, porém, que Deus, naquele tempo, costumava<br />

revelar-se por meio de figuras e cerimônias 21 e, por assim dizer,<br />

de longe, àqueles a quem ele aparecia mais claramente diz-se que o<br />

viam face a face. Eles falavam relativamente de seu próprio tempo.<br />

Apenas viam a Deus envolto em muitos véus. A visão que Moisés teve<br />

no monte [Êx 33.23] foi única e excedeu a quase todos os demais; e, no<br />

entanto, Deus declara: “me verás pelas costas; minha face, porém, não<br />

se verá.” Com esta metáfora, Deus quis dizer que o tempo para a plena<br />

e clara revelação ainda não havia chegado. Devemos também notar<br />

que, quando mesmo os pais queriam ver a Deus, sempre volviam seus<br />

olhos para Cristo. Significa não apenas que contemplavam a Deus em<br />

sua Palavra eterna, mas também volviam decidida e sinceramente seus<br />

olhos para a prometida manifestação de Cristo. Por essa razão, Cristo<br />

dirá no capítulo 8.56: “Abraão viu meu dia.” E sucessão não significa<br />

contradição. Isso, portanto, é certo – que Deus, que anteriormente era<br />

invisível, agora se tornou visível em Cristo.<br />

Ao dizer que o Filho estava no seio do Pai, ele usa uma metáfora<br />

humana. Diz-se que os homens só admitem em seu seio aqueles a<br />

quem comunicam todos seus segredos. O seio é a sede do conselho.<br />

Ele, pois, ensina que o Filho conhecia os segredos mais secretos de<br />

seu Pai, para que soubéssemos que temos, por assim dizer, o seio de<br />

Deus plenamente aberto para nós no evangelho.<br />

[1.19-23]<br />

E este é 22 o testemunho de <strong>João</strong>, quando os judeus lhe enviaram<br />

de Jerusalém sacerdotes e levitas para lhe perguntarem:<br />

21 “Envelppemens de figures et cereminies.”<br />

22 “C’est ici aussi (ou, c’est donc ci) le tesmoignage.” – “este é também (ou, este é portanto)<br />

o testemunho.”


60 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Quem és tu? E ele confessou, e não negou; confessou: Eu não<br />

sou o Cristo. E perguntaram-lhe: E então? És tu Elias? E ele disse:<br />

Não sou. És tu profeta? 23 E ele respondeu: Não. Então lhe<br />

disseram: Quem és, para que demos resposta àqueles que nos<br />

enviaram? Que dizes de ti mesmo? Ele disse: Eu sou a voz daquele<br />

que clama no deserto: 24 Endireitai o caminho do Senhor,<br />

como disse o profeta Isaías.<br />

19. E este é o testemunho de <strong>João</strong>. Até aqui, o Evangelista relatou<br />

a costumeira pregação de <strong>João</strong> acerca de Cristo. Ele agora descreve<br />

um exemplo ainda mais extraordinário disso, o qual foi dado aos embaixadores<br />

dos sacerdotes para que levassem de volta a Jerusalém. E<br />

assim ele diz que <strong>João</strong> francamente confessou por que fora enviado<br />

por Deus. Mas podemos, antes, perguntar qual fora o propósito dos<br />

sacerdotes em abordá-lo. A suposição comum é que trouxeram a <strong>João</strong><br />

uma velada manifestação de aversão por Cristo em forma de honra.<br />

Naquele tempo, porém, Cristo ainda não era conhecido deles. Outros<br />

supõem que <strong>João</strong> lhes era persona grata, visto que o mesmo procedia<br />

da linhagem e ordem sacerdotal. Mas isso é também improvável; pois,<br />

por que voluntariamente inventariam um falso Cristo para si quando<br />

buscavam de Cristo toda prosperidade? Creio que foram movidos por<br />

outra causa. Pois desde muito tempo viviam sem profetas. <strong>João</strong> apareceu<br />

súbita e inesperadamente, e a mente de todos ficou excitada<br />

e esperançosa. Além disso, todos eles criam que a vinda do Messias<br />

estava próxima.<br />

Para que não parecessem descuidosos de seus deveres, negligenciando<br />

ou ocultando um assunto de tal envergadura, os sacerdotes<br />

perguntam se porventura <strong>João</strong> era o Messias. À primeira vista, pois,<br />

eles não agiam com malícia; mas, ao contrário, movidos de anseio pela<br />

redenção, queriam saber se <strong>João</strong> seria o Cristo, porque ele está começando<br />

a mudar a ordem costumeira da Igreja. E, no entanto, não<br />

23 “Es-tu Prophete, ou, le Prophete?” – “És tu um Profeta, ou, o Profeta?”<br />

24 “De celuy qui crie au desert.”


Capítulo 1 • 61<br />

nego que a ambição, o desejo de reter sua autoridade tivesse alguma<br />

influência sobre eles; mas com certeza nada estava mais distante de<br />

suas mentes que transferir a honra de Cristo para outro. Nem estavam<br />

eles agindo de maneira incompatível com seu ofício. Pois ainda que<br />

mantivessem as rédeas do governo da Igreja de Deus, tinham o dever<br />

de se precaver para que ninguém se insinuasse repentinamente, para<br />

que não se erguesse nenhum fundador de uma nova seita, a unidade<br />

da fé não fosse interrompida na Igreja e que ninguém introduzisse cerimônias<br />

novas e estranhas. É evidente, pois, que a linguagem de <strong>João</strong><br />

era comum e excitava a mente de todos. Tal coisa, porém, foi ordenada<br />

pela maravilhosa providência divina, a fim de que este testemunho fosse<br />

mais notavelmente completo.<br />

20. Confessou. Isto é, ele confessou francamente e sem qualquer<br />

evasiva ou hipocrisia. A forma verbal confessou significa, em termos<br />

gerais, que ele declarou o fato como era. O segundo exemplo de confessou<br />

é uma repetição para expressar a forma da confissão. Portanto,<br />

respondeu definitivamente que não era o Cristo.<br />

21. És tu Elias? Por que fizeram menção de Elias e não de Moisés?<br />

Porque aprenderam da profecia de Malaquias [4.5] que, quando<br />

o Messias se manifestasse, Elias seria como sua estrela matutina. Mas<br />

formularam tal pergunta com falsa pressuposição. Pois crendo, como<br />

criam, na transmigração das almas, imaginaram que quando o profeta<br />

Malaquias anunciou que Elias seria enviado, queria dizer o mesmo<br />

Elias que viveu sob o reinado de Acabe. <strong>João</strong>, portanto, responde franca<br />

e apropriadamente que ele não é Elias, usando a palavra em seu<br />

sentido próprio. Cristo, porém, afirma que ele é Elias a partir de uma<br />

correta interpretação do profeta [Mt 11.14; Mc 9.13].<br />

És tu profeta? Incorretamente, Erasmo restringe isso a Cristo,<br />

pois a adição do artigo (ὁ προφήτης, o profeta) não recebe nenhuma<br />

ênfase neste versículo; e os mensageiros posteriores declaram com<br />

bastante clareza que tinham em mente um profeta distinto de Cristo,<br />

quando sumariaram tudo com a afirmação: “Se não és o Cristo, nem<br />

Elias, nem um Profeta” [v. 25]. Portanto, percebemos que pessoas dis-


62 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tintas estão envolvidas. Outros pensam que eles estavam perguntando<br />

se ele era um dos profetas antigos. Mas não aprecio também essa exposição.<br />

Ao contrário, com esta pergunta estão fazendo referência ao<br />

ofício de <strong>João</strong>, como se perguntassem se ele era um profeta designado<br />

por Deus. Ao negar isso, ele não está usando de falsa modéstia, mas<br />

está honesta e sinceramente se excluindo do número dos profetas. E,<br />

no entanto, tal resposta não entra em conflito com a descrição que<br />

Cristo fez dele. Cristo conferiu a <strong>João</strong> o título de profeta e ainda acrescenta<br />

que ele é “mais que um profeta” [Mt 11.9]. Mas, ao fazer uso<br />

dessas palavras, ele simplesmente granjeia crédito e autoridade para<br />

o ensino de <strong>João</strong>, ao mesmo tempo que enaltece a excelência do ofício<br />

a ele confiado. Nesta passagem, porém, <strong>João</strong> tem um objetivo distinto<br />

– mostrar que ele não tem uma comissão pessoal, como sucedeu com<br />

os profetas, mas que foi designado para ser pura e simplesmente o<br />

arauto de Cristo.<br />

Tal fato se fará ainda mais claro à guisa de uma metáfora. Mesmo<br />

os embaixadores que são enviados com assuntos não de grande<br />

importância recebem o nome e autoridade de embaixadores, caso de<br />

fato sejam detentores de missões pessoais. Tais eram todos os profetas<br />

que, desde que tivessem profecias definidas, desempenhavam o<br />

ofício profético. Suponha-se, porém, que surja uma questão de grande<br />

importância e dois embaixadores sejam enviados, um dos quais anuncia<br />

que o outro logo virá para conduzir todos os negócios e com a<br />

responsabilidade de levar a bom termo toda a negociação. O primeiro<br />

não será considerado como que uma parte e apêndice do principal?<br />

Assim foi com <strong>João</strong>, a quem Deus nenhuma outra coisa ordenou senão<br />

que fosse o preparador de discípulos para Cristo. 25 E esse significado<br />

é facilmente extraído de todo o contexto da passagem; pois devemos<br />

considerar a sentença negativa imediatamente a seguir. Diz ele: “Eu<br />

não sou um profeta, mas uma voz que clama no deserto.” A distinção<br />

está no fato de que a voz que clama, dizendo que se prepare um cami-<br />

25 “Sinon de preparer les Juifs à donner audience à Christ, et estre ses disciples.”


Capítulo 1 • 63<br />

nho para o Senhor, não é a voz de um profeta, com uma função distinta<br />

peculiar a si, mas, por assim dizer, meramente um ministro assistente,<br />

e que sua pregação é apenas uma espécie de preparação para que se<br />

ouça outro mestre. Dessa forma <strong>João</strong>, embora mais excelente que todos<br />

os profetas, não é, contudo, um profeta propriamente dito.<br />

23. A voz daquele que clama. Visto que teria sido acusado de temeridade<br />

se assumisse o ofício de mestre sem que lhe fosse confiado<br />

um ministério, ele mostra qual era sua função e o confirma com o testemunho<br />

de Isaías [40.3]. Daqui, conclui-se que ele nada fazia senão o<br />

que Deus lhe ordenara. Isaías não está falando ali somente de <strong>João</strong>; mas,<br />

prometendo a restauração da Igreja, ele prediz que vozes de alegria seriam<br />

ouvidas ordenando que se aplainasse o caminho para o Senhor.<br />

Ora, ainda que ele aponte para a vinda de Deus, quando trouxe de volta<br />

o povo do cativeiro babilônico, no entanto o verdadeiro cumprimento<br />

estava na manifestação de Cristo na carne. Portanto, dentre os arautos<br />

que anunciaram que o Senhor estava próximo, <strong>João</strong> era o principal.<br />

É fútil filosofar com sutileza, como fazem alguns, sobre o significado<br />

da palavra voz. <strong>João</strong> é chamado voz por causa do dever que lhe<br />

foi imposto de clamar. Em termos figurativos, Isaías qualifica o miserável<br />

estado da Igreja de deserto, o qual parecia obstruir o regresso do<br />

povo; como se quisesse dizer que o caminho para o povo cativo estava<br />

bloqueado, mas que o Senhor encontraria uma via pelas terras inóspitas.<br />

Mas aquele deserto visível no qual <strong>João</strong> pregava era uma figura<br />

ou imagem do ermo solitário onde não havia nenhuma esperança de<br />

livramento. Se o leitor ponderar sobre esta comparação, logo perceberá<br />

que as palavras dos profetas não foram torcidas. Deus dispôs tudo<br />

de tal maneira como se pusesse um espelho desta profecia diante dos<br />

olhos de seu povo, esmagado por suas misérias.<br />

[1.24-28]<br />

E os que tinham sido enviados eram da parte dos fariseus. Portanto,<br />

perguntaram, e lhe disseram: Por que, pois, batizas, se<br />

não és nem o Cristo, nem Elias, nem um profeta? <strong>João</strong> lhes res-


64 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

pondeu, dizendo: Eu batizo com água; mas no meio de vós está<br />

um a quem não conheceis; ele é quem, vindo depois de mim,<br />

está acima de mim, cujas correias da sandália não sou digno de<br />

desatar. Essas coisas se deram em Betânia, do outro lado do<br />

Jordão, onde <strong>João</strong> estava batizando.<br />

24. Eram da parte dos fariseus. O Evangelista diz que eram fariseus,<br />

que então conservavam um lugar de muita eminência na Igreja,<br />

com o intuito de ensinar-nos que os mesmos representavam não figuras<br />

irrelevantes da ordem levítica, mas que eram homens dotados<br />

de autoridade. Essa é a razão por que perguntam sobre o batismo.<br />

Ministros ordinários teriam ficado satisfeitos com qualquer tipo de<br />

resposta; mas esses homens, já que não obtiveram a resposta que esperavam,<br />

acusam <strong>João</strong> de temeridade em ousar introduzir uma nova<br />

cerimônia religiosa.<br />

25. Por que então batizas? Seu argumento parece assumir uma<br />

forma decisiva, quando estabelecem estes três graus: “Se não és o<br />

Cristo, nem Elias, nem um profeta”. Visto que instituir a prática do batismo<br />

não é prerrogativa de qualquer um. Toda a autoridade tinha de<br />

ser deixada nas mãos do Messias. De Elias que estava para vir, formaram<br />

a opinião de que ele começaria a restauração do Reino e da Igreja.<br />

Também estabeleceram que os profetas de Deus deviam desempenhar<br />

o ofício a eles confiado. Concluem, pois, que para <strong>João</strong> batizar permitia-se<br />

a entrada de uma inovação ilícita, já que ele não havia recebido<br />

de Deus nenhum ofício público. Mas ainda que <strong>João</strong> negue ser o Elias<br />

da imaginação deles, falharam em não reconhecê-lo como o Elias mencionado<br />

em Malaquias 4.5.<br />

26. Eu batizo com água. Isso deveria ter sido suficiente para corrigir<br />

seu equívoco; mas ainda que o ensino seja suficientemente claro,<br />

ele não se destina aos surdos. Ao enviá-los a Cristo e declarar que ele<br />

já se encontra presente, é evidente que ele não só se declara divinamente<br />

designado para ser ministro de Cristo, mas também que é o<br />

genuíno Elias enviado para testificar a restauração da Igreja. A antítese


Capítulo 1 • 65<br />

completa não está expressa aqui; pois o batismo espiritual de Cristo<br />

não é distintamente contrastado com o batismo externo de <strong>João</strong>, senão<br />

que a última sentença sobre o batismo do Espírito pode muito<br />

bem ser adicionada. Aliás, logo depois o Evangelista registra ambos.<br />

Há duas ênfases nesta resposta: primeiramente, <strong>João</strong> nada reivindica<br />

além do que lhe é por direito, pois o autor de seu batismo é Cristo,<br />

em quem consiste a realidade do sinal. Em segundo lugar, ele não faz<br />

mais que administrar o sinal externo, enquanto que todo o poder e eficácia<br />

estão exclusivamente nas mãos de Cristo. Portanto, ele defende<br />

seu batismo, ainda que sua realidade dependa de outro. Mas, embora<br />

ele deixe de mencionar o poder do Espírito, contudo exalta a dignidade<br />

de Cristo, a fim de que todos olhem somente para ele. Eis a mais<br />

elevada e melhor moderação regulamentada: quando ele toma por empréstimo<br />

de Cristo a autoridade que ele reivindica para si, dizendo que<br />

o crédito é todo de Cristo mesmo, atribuindo-lhe tudo quanto possui.<br />

Entretanto, é um louco equívoco supor alguém ser o batismo<br />

de <strong>João</strong> diferente do nosso. <strong>João</strong> não está aqui argumentando sobre<br />

a utilidade e conveniência de seu batismo, mas está simplesmente<br />

comparando seu papel com o de Cristo. Assim como hoje, se formos<br />

indagados sobre qual é nossa participação no batismo e qual é a de<br />

Cristo, teremos que reconhecer que unicamente Cristo é quem realiza<br />

o que o batismo representa, e que outra participação não temos<br />

senão a mera administração do sinal. A Escritura fala dos Sacramentos<br />

de duas maneiras. Às vezes, ela nos diz que são “a lavagem de<br />

regeneração” [Tt 3.5], que ali nossos pecados são lavados [1Pe 3.21],<br />

que somos enxertados no corpo de Cristo, que nosso velho homem<br />

é crucificado e que ressuscitamos em novidade de vida [Rm 6.4-6]. E,<br />

nesses exemplos, ela une o poder de Cristo com o ministério humano,<br />

de modo que o ministro nada é senão a mão de Cristo. Tais formas de<br />

expressão revelam, não o que o homem pode realizar por si mesmo,<br />

mas o que Cristo efetua por meio do homem e do sinal como seus<br />

instrumentos. Visto, porém, que os homens tendem a cair em superstição,<br />

e movidos por seu inerente orgulho arrebatam de Deus a honra


66 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que lhe pertence, e a guardam para si, a Escritura, para refrear essa<br />

blasfema arrogância, ocasionalmente distingue a pessoa dos ministros<br />

da de Cristo, como nesta passagem, para que aprendamos que os ministros<br />

nada são e por si mesmos nada podem fazer.<br />

No meio de vós está um. Ele indiretamente censura a estupidez<br />

deles em não conhecer a Cristo, de quem deviam ter recebido notícias<br />

em particular. E ele, sempre cuidadoso, insiste em que nada pode ser<br />

conhecido de seu ministério até que os homens venham ao encontro<br />

de seu Autor. Ele diz que Cristo está entre eles, a fim de que se empenhem<br />

entusiasticamente em conhecê-lo. A suma da ideia é que ele<br />

quer aviltar-se o máximo possível a fim de não ter o mínimo grau de<br />

honra caso inadvertidamente lhe viessem atribuir, obscurecendo assim<br />

a superioridade de Cristo. É provável que essas frases estivessem<br />

frequentemente em sua língua, ao ver-se imoderadamente enaltecido<br />

pela opinião distorcida dos homens.<br />

27. Que vem depois de mim. Aqui ele diz duas coisas: que Cristo<br />

às vezes o seguia; mas que em grau de dignidade ele estava muito<br />

acima dele. Pois, na preferência do Pai, ele era antes de todos. Logo<br />

depois, ele acrescentará um terceiro item – que a razão por que Cristo<br />

era preferido a todos os demais, se devia ao fato de que ele por direito<br />

excedia a todos.<br />

28. Essas coisas se deram em Betânia. O local é mencionado, não<br />

só com o fim de autenticar o relato, mas também para informar-nos<br />

que esta resposta foi apresentada a uma assembleia numerosa. Pois<br />

muitos iam ao batismo de <strong>João</strong>, e esse era um lugar comum para a<br />

realização do batismo. Pensa-se também que poderia ter sido numa<br />

travessia do Jordão; e derivam o nome desse fato, pois o interpretam<br />

como “a casa da travessia”. É provável que alguns prefiram a opinião<br />

daqueles que a mencionam como sendo a memorável travessia do<br />

povo, quando Deus abriu um caminho para eles no meio das águas,<br />

sob a liderança de Josué [Js 3.13]. Outros julgam que se deve ler Bethabara.<br />

O nome, Betânia, posto aqui por alguns, é fruto de um equívoco;<br />

pois leremos mais adiante quão perto Betânia ficava de Jerusalém. A


Capítulo 1 • 67<br />

localização de Bethabara que os topógrafos descrevem concorda mais<br />

com as palavras do Evangelista. Quanto a mim, porém, não discuto a<br />

pronúncia da palavra.<br />

[1.29-34]<br />

Na manhã seguinte, <strong>João</strong> viu Jesus que vinha para ele, e disse:<br />

Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo! Este é<br />

aquele de quem eu disse: Após mim vem um homem que foi<br />

preferido a mim, porque era mais excelente que eu. Eu não o<br />

conhecia; mas para que ele se fizesse manifesto a Israel, por<br />

isso vim batizando com água. E <strong>João</strong> deu testemunho, dizendo:<br />

Eu vi o Espírito descendo do céu como pomba, e repousou<br />

sobre ele. Eu não o conhecia; mas aquele que me enviou a batizar<br />

com água, me disse: Sobre quem vires o Espírito descer e<br />

repousar, esse é aquele que batiza com o Espírito Santo. Portanto,<br />

tenho visto e testificado que este é o Filho de Deus.<br />

29. Na manhã seguinte. Não há dúvida de que <strong>João</strong> havia falado<br />

previamente da manifestação do Messias; mas quando Cristo se manifestou,<br />

ele quis que sua proclamação fosse divulgada rapidamente;<br />

e então chegara o tempo quando Cristo levaria o ministério de <strong>João</strong> à<br />

conclusão, precisamente como a alvorada repentinamente desaparece<br />

com o nascer do sol. Portanto, quando ele testificou à embaixada<br />

de sacerdotes que aquele em quem deviam buscar a verdade e poder<br />

de seu batismo já se encontrava presente e vivendo entre o povo, no<br />

dia seguinte ele o fez conhecido publicamente. Pois esses dois atos<br />

terão muito mais força em mover suas mentes em decorrência de sua<br />

associação temporária. Essa também é a razão por que Cristo se manifestou<br />

na presença de <strong>João</strong>.<br />

Eis o Cordeiro de Deus. O principal ofício de Cristo é explicado<br />

de forma incisiva, porém com clareza. Ao tirar os pecados do mundo<br />

por intermédio do sacrifício de sua morte, ele reconcilia os homens<br />

com Deus. Cristo certamente derrama outras bênçãos sobre nós, mas


68 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a principal, da qual dependem todas as demais, é aquela que, ao apaziguar<br />

a ira de Deus, ele nos leva a sermos considerados justos e puros.<br />

A fonte de todos os mananciais de bênçãos consiste em que, não nos<br />

imputando nossos pecados, Deus nos recebe em seu favor. Consequentemente,<br />

<strong>João</strong>, com o intuito de nos levar a Cristo, começa com o<br />

perdão gratuito dos pecados, o qual só obtemos através dele.<br />

Pelo termo Cordeiro há uma alusão aos antigos sacrifícios da lei.<br />

Ele estava tratando dos judeus que estavam acostumados com os<br />

sacrifícios e não podiam ser instruídos sobre satisfação de alguma<br />

outra forma, a não ser que tivessem um sacrifício como mediação.<br />

Mas como havia vários tipos, ele emprega sinédoque. Provavelmente,<br />

<strong>João</strong> esteja pensando no Cordeiro Pascal. A questão primordial é que<br />

<strong>João</strong> empregou uma forma de expressão que era mais eficaz e viva<br />

para instruir os judeus. Assim como hoje, através do rito do batismo<br />

entendemos melhor o que significa o perdão de pecado através do<br />

sangue de Cristo, quando ouvimos que, por meio dele, somos lavados<br />

e purificados de todas as nossas imundícies. Ao mesmo tempo,<br />

como os judeus comumente mantinham noções supersticiosas acerca<br />

dos sacrifícios, propositalmente ele corrige o erro, lembrando-lhes o<br />

objetivo designado em relação a todos eles. Era um áspero abuso do<br />

sacrifício, quando se depositava confiança nos sinais externos. Portanto<br />

<strong>João</strong>, pondo Cristo em realce, testifica que ele é o Cordeiro de<br />

Deus, querendo dizer com isso que, quaisquer que fossem as vítimas<br />

que os judeus usassem para oferecer, sob o regime da lei, não tinham<br />

absolutamente poder algum para expiar os pecados; ao contrário, não<br />

passavam de figuras cuja realidade era revelada em Cristo mesmo.<br />

Que tira o pecado do mundo. <strong>João</strong> expressa [pecado] no singular,<br />

denotando algum gênero de iniquidade, como se ele quisesse dizer<br />

que Cristo remove toda sorte de injustiça que aliena os homens de<br />

Deus. E ao dizer: o pecado do mundo, ele estende essa benevolência<br />

indiscriminadamente a toda a raça humana, para que os judeus não<br />

imaginassem que o Redentor fora enviado exclusivamente a eles. À<br />

luz desse fato, inferimos que o mundo inteiro está submetendo-se à


Capítulo 1 • 69<br />

mesma condenação; e visto que todos os homens, sem exceção, são<br />

culpados de injustiça diante de Deus, por isso necessitam de ser reconciliado<br />

com ele. <strong>João</strong>, portanto, ao falar do pecado do mundo em<br />

termos gerais, sua intenção era fazer-nos sentir nossa própria miséria<br />

e exortar-nos a buscar o antídoto. Ora, para que nos apossemos da<br />

bênção oferecida a todos, é preciso que cada um de nós determine<br />

em seu íntimo não permitir que algo o impeça de buscar em Cristo a<br />

reconciliação divina; deixando-se guiar pela fé, encontre nele um refúgio<br />

seguro.<br />

Além disso, ele proclama um único método para a remoção dos<br />

pecados. Sabemos que desde o princípio do mundo, quando suas próprias<br />

consciências os convenciam, todos os homens se esforçavam<br />

avidamente para granjear o perdão. Daí o espantoso volume de todos<br />

os tipos de oferendas expiatórias, pelas quais erroneamente criam<br />

poder aplacar a Deus. Confesso que todos os ritos propiciatórios espúrios<br />

tiveram sua origem num princípio santo, significando que Deus<br />

havia ordenado os sacrifícios que levassem os homens a Cristo. Entretanto,<br />

todos criaram seu próprio meio de aplacar a Deus. <strong>João</strong>, porém,<br />

nos atrai de volta a Cristo tão somente, e nos informa que não existe<br />

nenhum outro método pelo qual Deus se reconcilia conosco a não ser<br />

através de sua agência, já que ele é o único que remove os pecados.<br />

Ele, pois, não nos deixa outra via de escape do pecado senão a fuga<br />

para Cristo. E, assim, exclui toda e qualquer satisfação humana, toda e<br />

qualquer expiação e redenção, visto que tais artifícios nada mais são<br />

que invenções ímpias arquitetadas pela astúcia do diabo.<br />

O verbo tirar (αἴρειν) pode ser explicado de duas formas. Ou que<br />

Cristo tomou sobre si o peso sob o qual éramos esmagados, como<br />

está expresso em 1 Pedro 2.24, que “ele levou nossos pecados no<br />

madeiro”; e Isaías 53.5, que “o castigo que nos traz a paz estava sobre<br />

ele, e por suas pisaduras fomos sarados”; ou que ele apaga nossos<br />

pecados. Visto, porém, que a última depende da primeira, de bom<br />

grado aceito a ambas – que Cristo, ao carregar nossos pecados, os<br />

elimina. Portanto, embora o pecado insista em permanecer em nós,


70 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não obstante, no juízo divino, ele não existe, pois já que ele é abolido<br />

pela graça de Cristo, então ele não pode ser-nos imputado. Nem me<br />

desagrada o ponto de vista de Crisóstomo, a saber, que o tempo presente<br />

do verbo – ὁ αἴρων, que tira – denota uma ação contínua, pois<br />

a satisfação que Cristo ofereceu uma vez para sempre está em pleno<br />

vigor. Ele, porém, não nos diz simplesmente que Cristo tira o pecado,<br />

mas também nos apresenta o método – que ele nos reconciliou com<br />

o Pai por intermédio de sua morte; pois isso é precisamente o que ele<br />

tinha em mente dizer com o termo Cordeiro. Aprendamos, pois, que<br />

somos reconciliados com Deus por intermédio da graça de Cristo,<br />

seguindo uma única via: recorrendo a sua morte e crendo que, aquele<br />

que foi cravado na cruz, é a única vítima sacrificial por meio da qual<br />

toda nossa culpa é removida.<br />

30. Este é aquele de quem eu disse. Ele envolve tudo em poucas<br />

palavras, ao declarar que Cristo é aquele de quem ele havia dito<br />

ter a preferência acima dele. Daqui se conclui que <strong>João</strong> nada mais<br />

é senão o arauto enviado com esse expresso propósito. E daqui se<br />

estabelece uma vez mais que Cristo é o Messias. Aqui se mencionam<br />

três coisas: ao dizer que um homem estava vindo após ele, sua intenção<br />

é deixar claro que ele veio antes de Cristo no tocante ao tempo,<br />

com o fim de preparar-lhe o caminho, segundo o testemunho de<br />

Malaquias: “Eis que eu envio meu mensageiro, que preparará o caminho<br />

diante de mim” [3.1]. Ao dizer que Cristo tinha a preferência<br />

sobre ele, a referência é à glória com que Deus adornou a seu Filho,<br />

quando ele veio ao mundo exercer o ofício de Redentor. Finalmente,<br />

acrescenta-se a razão – que Cristo está muito acima de <strong>João</strong> Batista<br />

em dignidade. Portanto, a honra com a qual o Pai o revestiu não era<br />

adventícia, mas era o direito relativo a sua eterna majestade. Mas já<br />

fiz menção desta expressão: “Este é aquele que vem após mim, mas<br />

que é antes de mim.”<br />

31. Eu não o conhecia. Para que seu testemunho não fosse suspeito<br />

de proceder de amizade ou favor, ele antecipa a dúvida, negando<br />

que tivesse algum outro conhecimento de Cristo além do fato de que


Capítulo 1 • 71<br />

Deus lho enviara. A suma, pois, é que <strong>João</strong> não fala movido por sua<br />

própria iniciativa, nem com o intuito de agradar aos homens, mas instigado<br />

pelo Espírito e pelo mandato de Deus.<br />

Vim batizando com água, diz ele. Isto é, fui chamado e ordenado<br />

para este ofício, a fim de manifestá-lo a Israel. O Evangelista mais adiante<br />

explica este ponto com mais clareza e o confirma quando introduz<br />

<strong>João</strong> Batista, testificando que ele não tinha conhecimento de Cristo senão<br />

o que obtivera através de um oráculo divino, isto é, por informação<br />

ou revelação de Deus. 26 Em vez do que encontramos aqui, eu vim para<br />

batizar, ele ali declara expressamente [v. 33] que fora enviado. Pois é<br />

somente pela vocação divina que os ministros da Igreja se tornam legalmente<br />

efetivados. Quem quer que se apresente sem ser convidado, seja<br />

qual for a erudição ou eloquência que o mesmo possua, esse não recebe<br />

autoridade alguma, porquanto não veio da parte de Deus. Ora, visto que<br />

<strong>João</strong>, para batizar regularmente, tinha que ser enviado pessoalmente<br />

por Deus, assim o leitor deve entender que ninguém tem direito algum<br />

de instituir Sacramentos. Tal direito pertence exclusivamente a Deus.<br />

Por isso, Cristo em outra ocasião, para provar o batismo de <strong>João</strong>, pergunta<br />

se ele era do céu ou dos homens [Mt 21.25].<br />

32. Vi o Espírito descendo como pomba. Esta não é uma forma de<br />

expressão literal, e, sim, figurada; pois com que olhos ele veria o Espírito?<br />

Como, porém, a pomba era um sinal certo e infalível da presença do<br />

Espírito, ela é chamada o Espírito, por meio de uma figura de linguagem<br />

na qual um nome é substituído por outro; não que ele seja na realidade<br />

o Espírito, e, sim, que aponta para o Espírito, até onde a capacidade<br />

humana o possa admitir. E esta linguagem metafórica é amiúde empregada<br />

nos sacramentos; pois, por que Cristo chama o pão meu corpo<br />

senão porque o nome do elemento é propriamente transferido para o<br />

sinal? Especialmente quando o sinal é, ao mesmo tempo, um penhor<br />

genuíno e eficaz, por meio do qual somos certificados de que a própria<br />

coisa significada nos é outorgada. No entanto, não se deve entender<br />

26 “Par oracle; c’est à dire, advertissement ou revelation de Dieu.”


72 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que a pomba contivesse o Espírito que enche o céu e a terra [Jr 23.24],<br />

mas que ele estava presente através de seu poder, de modo que <strong>João</strong><br />

sabia que tal exibição não se apresentava inutilmente ante seus olhos.<br />

De modo semelhante, sabemos que o corpo de Cristo não é conectado<br />

ao pão, e, no entanto, somos participantes de seu corpo.<br />

Então se suscita uma pergunta: Por que o Espírito, naquele momento,<br />

se manifestou na forma de uma pomba? É preciso ter sempre<br />

presente que há distinção entre o sinal e a realidade. Quando o Espírito<br />

foi comunicado aos apóstolos, eles viram línguas de fogo e divididas<br />

[At 2.3], significando que a proclamação do evangelho tinha de ser<br />

difundida através de todos os idiomas, e ele tinha de possuir o poder<br />

do fogo. Neste versículo, porém, Deus quis exibir publicamente aquela<br />

mansidão de Cristo que Isaías [42.3] tanto enaltece: “A cana trilhada<br />

não quebrará, nem apagará o pavio que fumega.” Essa foi a primeira<br />

vez que o Espírito foi visto descer sobre ele. Não significa que antes<br />

disso ele estivesse vazio do Espírito, mas é que agora, por assim dizer,<br />

ele está sendo consagrado numa cerimônia solene [e pública]. Pois<br />

sabemos que ele permaneceu por trinta anos oculto como indivíduo,<br />

porquanto o tempo de sua manifestação ainda não havia chegado.<br />

Quando, porém, quis tornar-se conhecido ao mundo, seu ponto de<br />

partida foi o batismo. Portanto, recebeu o Espírito naquela ocasião,<br />

não tanto por sua própria causa, mas causa de seu povo. E o Espírito<br />

desceu visivelmente para que soubéssemos que em Cristo habita a<br />

abundância de todos os dons dos quais por natureza somos destituídos<br />

e vazios. Tal fato pode facilmente deduzir-se das palavras de <strong>João</strong><br />

Batista. Pois quando ele diz: “Sobre aquele que vires descer o Espírito,<br />

e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o Espírito Santo” [v. 33],<br />

é como se ele dissesse que o Espírito era visto de uma forma visível<br />

e repousava sobre Cristo para que ele pudesse dar de beber de sua<br />

plenitude a todo seu povo. O que significa batizar com o Espírito, eu já<br />

toquei de leve, a saber, que Cristo comunica ao batismo sua eficácia,<br />

a fim de que o mesmo não seja sem efeito e destituído de real valor; e<br />

isso ele faz mediante o poder de seu Espírito.


Capítulo 1 • 73<br />

33. Sobre aquele que vires descer o Espírito. Aqui surge uma<br />

pergunta difícil: se <strong>João</strong> não conhecia a Cristo, por que sua recusa em<br />

admiti-lo ao batismo? Com toda certeza, ele não devia dizer a ninguém<br />

que não o conhecia: “devo antes ser batizado por ti” [Mt 3.14]. A resposta<br />

de alguns consiste em que ele o conhecia tão vagamente que,<br />

embora o reverenciasse como um eminente profeta, contudo não sabia<br />

ser ele o Filho de Deus. Essa, porém, é uma solução pobre, pois<br />

qualquer um deve obedecer à vocação divina sem qualquer respeito<br />

por pessoas. Nenhuma dignidade ou excelência humana nos deve<br />

impedir de cumprir nosso dever. Portanto, <strong>João</strong> teria desrespeitado<br />

a Deus e ao seu batismo, caso ele tivesse falado assim em relação a<br />

alguma outra pessoa, e não ao Filho de Deus. Portanto, ele deve ter<br />

conhecido Cristo previamente.<br />

Primeiro, devemos notar que isso se refere a um conhecimento<br />

oriundo de familiaridade íntima e recíproca. Embora reconheça a<br />

Cristo assim que o vê, continua sendo verdade que não se conheciam<br />

mutuamente da forma usual pelo prisma da amizade humana, porquanto<br />

o princípio de seu conhecimento veio de Deus. A pergunta,<br />

porém, não está ainda totalmente respondida, porquanto ele diz que<br />

a visão do Espírito Santo seria o sinal de reconhecimento. Ele, porém,<br />

não havia ainda visto o Espírito quando se dirigiu a Cristo como o<br />

Filho de Deus. De bom grado, concordo com a opinião daqueles que<br />

pensam que esse sinal foi adicionado para confirmação, e que ele não<br />

foi dado tanto por causa de <strong>João</strong>, mas por nossa causa. Com toda certeza,<br />

somente <strong>João</strong> o viu, porém mais por causa dos outros do que de<br />

si mesmo. Bucer, com propriedade, cita Moisés em Êxodo 3.12: “E isto<br />

te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado este povo<br />

do Egito, servireis a Deus neste monte.” Indubitavelmente, quando saíram<br />

já sabiam que Deus guiaria e dirigiria sua libertação; mas essa foi,<br />

por assim dizer, uma confirmação a posteriori. Semelhantemente, ela<br />

veio como uma adição à primeira revelação que fora dada a <strong>João</strong>.<br />

34. Eu vi e testifiquei. Ele queria dizer que não alimentava dúvida<br />

alguma; pois a Deus aprouve dar-lhe total e profundo conhecimento


74 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

daquelas coisas das quais teria que ser testemunha perante o mundo.<br />

E é digno de nota o fato de <strong>João</strong> testificar que Cristo era o Filho de<br />

Deus, porquanto aquele que desse o Espírito seria o Cristo, visto que<br />

a honra e o ofício de reconciliar os homens com Deus não poderiam<br />

pertencer a nenhum outro.<br />

[1.35-39]<br />

No dia seguinte, <strong>João</strong> estava outra vez ali, e dois de seus discípulos;<br />

e ele olhou para Jesus que passava, e disse: Eis o<br />

Cordeiro de Deus! E os dois discípulos ouviram-no dizer isso,<br />

e seguiram a Jesus. E Jesus, voltando-se e vendo que eles o seguiam,<br />

então lhes disse: Que buscais? E eles lhe disseram: Rabi<br />

(que traduzido, quer dizer: Mestre), onde moras? Então lhes<br />

disse: Vinde, e vede. Foram, pois, e viram onde ele morava, e<br />

ficaram com ele aquele dia; e era quase a hora décima.<br />

36. Eis o Cordeiro de Deus! Nesta expressão fica ainda mais evidente<br />

o que eu já disse, a saber, que quando <strong>João</strong> sentiu que chegava<br />

ao término de seu curso, ele avança sem cessar procurando pôr a<br />

tocha na mão de Cristo. Sua persistência imprime mais peso a seu testemunho.<br />

Mas, ao insistir tão ansiosamente, dia após dia, em reiterar<br />

seu louvor a Cristo, ele mostra que sua própria jornada chegava ao<br />

fim. Além do mais, vemos aqui quão impreciso e humilde foi o início<br />

da Igreja. É verdade que <strong>João</strong> preparara discípulos para Cristo, mas até<br />

agora Cristo não havia ainda começado selecionar uma igreja. Ele apenas<br />

conta com aqueles doze homens obscuros e insignificantes, mas,<br />

mesmo assim, sua glória se manifesta; de modo que, dentro em pouco,<br />

sem contar com o auxílio do poder humano ou de um forte grupo,<br />

ele expande seu reino de uma forma maravilhosa e inusitada. Devemos<br />

também observar especialmente aonde ele leva aqueles homens<br />

– a descobrir em Cristo o perdão dos pecados. E ainda quando Cristo<br />

tivesse expressamente se apresentado aos discípulos para que fossem<br />

a ele; então, ao irem a ele, benignamente os encoraja e os exorta;<br />

pois não espera que falem primeiro, e então lhes fala: “Que buscais?”


Capítulo 1 • 75<br />

Esse cativante e amoroso convite, uma vez feito a dois homens, agora<br />

pertence a todos. Portanto, não devemos temer que Cristo se afaste<br />

de nós ou que nos recuse fácil acesso, contanto que nos veja empenhados<br />

por ele. Ao contrário disso, ele nos estenderá sua mão e nos<br />

sustentará em nossos esforços. E, porventura, não apressará aqueles<br />

que o buscam, ele que sai em busca dos que andam errantes e transviados,<br />

querendo trazê-los de volta à vereda certa?<br />

38. Rabi. Este título era comumente atribuído aos homens da elite<br />

ou detentores de alguma honra especial. Aqui, porém, o Evangelista registra<br />

outro uso contemporâneo dele: com este título eles se dirigiam<br />

aos mestres e expositores da Palavra de Deus. Portanto, embora não<br />

soubessem que Cristo é o único mestre da Igreja, não obstante, movidos<br />

pelo relato que <strong>João</strong> faz acerca dele, o respeitam como um profeta<br />

e mestre, que é o primeiro passo para se receber instrução.<br />

Onde moras? À luz deste exemplo aprendemos dos próprios primórdios<br />

da Igreja a cultivar um prazer tal por Cristo, que se aguça<br />

nosso anseio por progresso. Nem devemos ficar satisfeitos com uma<br />

mera busca passageira, mas devemos buscar seu espaço permanente<br />

para que nos receba como seus hóspedes. Porque muitos simplesmente<br />

sentem o cheiro do evangelho à distância, e então deixam Cristo<br />

desaparecer como névoa, e tudo quanto aprenderam sobre ele vira fumaça.<br />

Ainda que não se tornassem seus discípulos de tempo integral,<br />

não há dúvida de que ele os instruiu mais plenamente aquela noite,<br />

para que pudesse tê-los inteiramente devotados a si logo depois.<br />

39. Era quase a hora décima. Ou, seja, a noite se aproximava,<br />

pois só faltavam umas duas horas para o pôr-do-sol. Naquela época,<br />

o dia era dividido em doze horas, o qual era mais longo no verão e<br />

mais curto no inverno. E à luz da questão de horário, deduzimos que<br />

aqueles dois discípulos se sentiam tão ansiosos por ouvir a Cristo,<br />

e conhecê-lo mais pessoalmente, que não se preocuparam com seu<br />

pernoite. Nós, porém, na maioria das vezes, somos muito diferentes<br />

deles, porque prorrogamos indefinidamente, uma vez que seguir a<br />

Cristo nunca nos é conveniente.


76 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[1.40-42]<br />

Um dos dois que ouviram <strong>João</strong> falar e o seguiram era André,<br />

irmão de Simão Pedro. Ele encontrou primeiro a seu próprio<br />

irmão, Simão, e lhe disse: Encontramos o Messias (que, traduzido,<br />

é Cristo). Ele o levou a Jesus. Jesus, olhando para ele, disse:<br />

Tu és Simão, filho de <strong>João</strong>; tu serás chamado Cefas (que quer<br />

dizer Pedro).<br />

40. Um dos dois era André. O objetivo do Evangelista, já no final<br />

do capítulo, é informar-nos como pouco a pouco os discípulos eram<br />

levados a Cristo. Aqui ele relata acerca de Pedro, e logo a seguir acrescentará<br />

Filipe e Natanael. O fato de André trazer imediatamente seu<br />

irmão expressa a natureza da fé, a qual não mantém a luz guardada no<br />

íntimo nem a extingue; ao contrário, a projeta em todas as direções.<br />

André não tem mais que uma escassa fagulha; no entanto, com ela, ele<br />

ilumina ao seu irmão. Ai de nossa apatia, se porventura nós, muito mais<br />

iluminados que ele, não nos esforçarmos em fazer os outros participantes<br />

da mesma graça! Realmente podemos observar em André duas<br />

coisas que Isaías requer dos filhos de Deus [Is 2.3] – que cada um de nós<br />

deve tomar o vizinho pela mão e dizer-lhe também: “Vinde, subamos<br />

ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine seus<br />

caminhos, e andemos em suas veredas.” Pois André estendeu sua mão a<br />

seu irmão, com um único objetivo: para que ele se tornasse com ele um<br />

colega e aluno na escola de Cristo. Além do mais, é preciso que atentemos<br />

bem no desígnio de Deus. Ele quis que Pedro, que estava para ser<br />

o mais eminente, fosse levado ao conhecimento de Cristo pela agência<br />

e ministério de André; de modo que nenhum de nós, por mais excelente<br />

que seja, recuse ser instruído por alguém inferior. Pois Deus castigará<br />

severamente àquela pessoa obstinada ou, melhor, arrogante que, por<br />

desprezar um seu igual, não se dignar em vir a Cristo.<br />

41. Encontramos o Messias. O Evangelista interpretou o termo hebraico,<br />

Messias (Ungido), para o grego, Cristo, com o fim de publicar a<br />

todo o mundo o que fora conhecido secretamente aos judeus. Era o títu-


Capítulo 1 • 77<br />

lo ordinário dos reis, visto que a unção era uma prática usual entre eles.<br />

Entretanto, estavam cônscios de que um Rei seria divinamente ungido,<br />

em quem esperavam aquela felicidade perfeita e perene, especialmente<br />

quando aprenderam que o reino terreno de Davi não teria fim. E assim,<br />

quando Deus os instigava, dominados e oprimidos com muitas tribulações,<br />

a olhar para o Messias, estava avivando em sua mente com mais<br />

nitidez que sua vinda estava próxima. A profecia de Daniel é mais clara<br />

do que as demais no tocante ao nome de Cristo [Dn 9.25, 26]. Pois ele,<br />

assim como os profetas mais antigos, não está falando de reis, mas está<br />

indicando de forma única aquele futuro Redentor. Portanto, essa maneira<br />

de falar prevaleceu de tal forma que, sempre que se mencionava o<br />

Messias ou Cristo, não pensavam em nenhum outro senão no Redentor.<br />

E assim, no capítulo 4 [deste <strong>Evangelho</strong>] lemos o que disse a mulher<br />

samaritana: “o Messias virá”, o que torna ainda mais espantoso o fato de<br />

que tantos o esperassem e dele falassem, com tão ansiosa expectativa, e<br />

tão poucos realmente o tenham recebido.<br />

42. Tu és Simão. Cristo atribui a Simão um nome, não, segundo o<br />

costume, motivado por algum acontecimento passado, nem com base<br />

no que vê nele, mas porque estava para convertê-lo em Pedro. Antes<br />

de tudo, ele diz: “Tu és Simão, filho de <strong>João</strong>.” Ele usa o nome de seu<br />

pai em sua forma abreviada, um costume bastante comum quando os<br />

nomes são traduzidos para línguas estrangeiras. No final do capítulo<br />

se fará ainda mais óbvio que ele era filho de Yohannan ou <strong>João</strong>. Tudo<br />

isso, porém, é como se Cristo houvera dito que ele seria muito diferente<br />

do que é agora. Pois a menção que Cristo faz do pai de Simão não<br />

é porque ele desfrutasse de prestígio, senão que, apesar de Pedro ter<br />

nascido de família obscura e de não desfrutar de nenhum prestígio<br />

entre os homens, Cristo declara que tal fato não o impedirá de fazer de<br />

Simão um homem de resolução inquebrantável. O Evangelista, pois, registra<br />

esse fato como uma predição, dizendo que um novo sobrenome<br />

era dado a Simão. Entendo como uma predição, não só porque Cristo<br />

previu o futuro de Pedro possuindo uma fé inabalável, mas também<br />

que estava predizendo o que estava para comunicar a Simão. E assim,


78 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

agora, na forma de aforismo, Cristo enaltece a graça que determinara<br />

comunicar-lhe mais tarde; e assim, ele não diz que esse é seu nome<br />

agora, senão que o adia para o futuro.<br />

Serás chamado Cefas, diz ele. Realmente pertence a todos os santos<br />

que os Pedros estejam alicerçados em Cristo, a fim de sejam aptos<br />

para a edificação do templo de Deus. Em sua excelência singular, porém,<br />

ele é o único a ser assim denominado. Os papistas, porém, agem<br />

de forma ridícula quando o põem em lugar de Cristo como o fundamento<br />

da Igreja, como se ele, também, não estivesse fundamentado em<br />

Cristo, como os demais. E são duplamente ridículos quando, de uma<br />

pedra, fazem um cabeça. Um cânon inconsistente traz o nome de Anacleto,<br />

entre as rapsódias de Graciano, o qual, ao mudar uma palavra<br />

hebraica por uma grega, e não distinguindo a palavra grega κεφαλὴ<br />

(kephale) da palavra hebraica Cephas, sugere que, com esse nome, Pedro<br />

foi designado a Cabeça da Igreja. Além do mais, Cephas é palavra<br />

aramaica, não hebraica, mas que era a pronúncia usual dela depois<br />

do cativeiro babilônico. Não há, pois, ambiguidade alguma nas palavras<br />

de Cristo. Ele promete a Pedro o que este jamais teria esperado,<br />

e assim exalta nele sua graça para todos os tempos, a fim de que seu<br />

estado anterior não testemunhe contra ele, uma vez que este sublime<br />

título proclama que ele foi feito um novo homem.<br />

[1.43-46]<br />

No dia seguinte, determinou Jesus ir para a Galiléia, e encontrou<br />

Filipe, e disse-lhe: Segue-me. Ora, Filipe era de Betsaida,<br />

cidade de André e Pedro. Filipe achou Natanael, e disse-lhe:<br />

Achamos Jesus de Nazaré, o filho de José, de quem Moisés escreveu<br />

na lei, e também os profetas. E Natanael disse-lhe: De<br />

Nazaré pode sair alguma coisa boa? Filipe disse-lhe: Vem e vê.<br />

43. Segue-me. A mente de Filipe foi inflamada por esta única<br />

palavra para seguir a Cristo; e daqui inferimos quão poderosa é a<br />

eficácia da Palavra, ainda que ela não se evidencie em todos indiscri-


Capítulo 1 • 79<br />

minadamente. Porquanto Deus incita muitos sem qualquer resultado,<br />

como se ele estivesse soprando em seus ouvidos sons sem sentido.<br />

Portanto, a pregação externa da Palavra é por si só infrutífera, a não<br />

ser que ela fira mortalmente os réprobos, de modo tal que os faz indesculpáveis<br />

diante de Deus. Mas quando a graça secreta do Espírito<br />

vivifica [a mente dos réprobos], todos os sentidos inevitavelmente<br />

serão afetados de tal maneira que a pessoa se sente preparada a ir<br />

aonde quer que Deus a chame. Devemos, pois, orar para que Cristo<br />

derrame em nós o mesmo poder do evangelho. É verdade que Filipe<br />

seguiu a Cristo de um modo especial, pois ele foi intimado a seguir,<br />

não só como qualquer um de nós, mas como um companheiro [contubernalis]<br />

íntimo e inseparável. Não obstante, este é um padrão geral<br />

da vocação [eficaz].<br />

44. Era de Betsaida. É provável que o nome da cidade tenha mencionado<br />

para revelar mais claramente a bondade divina para com os<br />

três apóstolos. Aprendemos de outras passagens quão veementemente<br />

Cristo ameaça e amaldiçoa aquela cidade. Consequentemente, para<br />

que alguns dentre essa raça ímpia e maligna fossem recebidos no favor<br />

divino, deve-se considerar que os mesmos foram arrebatados do<br />

inferno. E o fato de Cristo ter julgado dignos de tal honra homens que<br />

foram salvos desse abismo insondável, para que fossem designados<br />

apóstolos, se constitui numa esplendorosa e memorável benção.<br />

45. Filipe achou Natanael. Por mais que a soberba despreze esses<br />

rudimentares começos da Igreja, devemos ver neles maior glória de<br />

Deus do que se a condição do reino de Cristo tivesse sido nobre desde<br />

o início, excelente em todos os aspectos. Pois sabemos quão imensa<br />

colheita esta minúscula semente aos poucos produziu. Além disso, vemos<br />

demonstrado em Filipe a mesma solicitude pela edificação que<br />

vimos em André. Vemos também em relevo sua modéstia, anelando e<br />

se esforçando simplesmente por levar outros a aprender, juntamente<br />

com ele, do Mestre comum a todos.<br />

Achamos Jesus. A pequenez da fé de Filipe surge do fato de ele<br />

não poder dizer quatro coisas sobre Cristo sem incluir dois estúpidos


80 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

equívocos. Ele o chama o filho de José, e erroneamente faz de Nazaré<br />

sua cidade natal. E, no entanto, visto que ele realmente deseja ajudar<br />

seu irmão e fazer Cristo conhecido, Deus aprova sua sinceridade e a<br />

faz vitoriosa. Cada pessoa, na verdade, precisa conservar-se sóbria<br />

dentro de seus limites; e o Evangelista certamente não menciona o<br />

ato de Filipe desonrar a Cristo duas vezes como sendo algo louvável,<br />

mas apenas relata que seu ensino, ainda que deficitário e envolvesse<br />

erro, era útil porque, a despeito de tudo, perseguia o propósito de fazer<br />

Cristo realmente conhecido. Ele tolamente chama Jesus o filho de<br />

José e ignorantemente o faz um nazareno; mas, ao mesmo tempo, leva<br />

Natanael a nenhum outro senão ao Filho de Deus que havia nascido<br />

em Belém. Ele não forja uma imitação de Cristo, mas apenas deseja<br />

que ele seja conhecido como aquele que fora apresentado por Moisés<br />

e os profetas. Por conseguinte, descobrimos que o principal desígnio<br />

da pregação é que, os que nos ouvem, devem vir a Cristo de um modo<br />

ou de outro.<br />

Muitos há que se envolvem em obscuras inquirições acerca de<br />

Cristo, mas que lançam tanta dificuldade e o envolve em tal complexidade<br />

e sutilezas que nunca conseguem achá-lo. E assim, os papistas<br />

não dirão que Cristo é o filho de José, pois sabem precisamente qual<br />

é seu nome. Não obstante, esvaziam-no de seu poder e assim exibem<br />

um fantasma em seu lugar. Não seria melhor gaguejar ignorantemente<br />

com Filipe, e, no entanto, conservar o verdadeiro Cristo, do que introduzir<br />

uma ficção em linguagem engenhosa e imprecisa? Mais ainda,<br />

grande número de homens comuns e pobres, hoje, desajeitados e inexperientes<br />

no manejo da língua, proclamam a Cristo mais fielmente do<br />

que todos os teólogos do Papa com suas profundas especulações. Esta<br />

passagem, pois, nos adverte a não rejeitarmos desdenhosamente tudo<br />

o que as pessoas simples e incultas dizem deficitariamente sobre Cristo,<br />

desde que estejam nos levando a Cristo. Mas para que não sejamos<br />

extraviados de Cristo pelas falsas imaginações dos homens, tenhamos<br />

sempre em mãos o antídoto, a saber: busquemos aquele perfeito conhecimento<br />

dele na lei e nos profetas.


Capítulo 1 • 81<br />

46. De Nazaré pode sair alguma coisa boa? A princípio<br />

Natanael, confundido pela descrição de Filipe sobre o lugar de<br />

nascimento de Cristo, recua. Mas, antes de tudo, ele é enganado<br />

pela palavra irrefletida de Filipe. O que Filipe insensatamente pensava,<br />

Natanael tomou como certo. A isso se acresce uma crítica<br />

imponderada oriunda do ódio ou desprezo pelo lugar. É preciso<br />

observar cuidadosamente ambas essas questões. Esse santo homem<br />

não estava muito longe de fechar a porta no próprio rosto de<br />

Cristo. Por quê? Porque ele foi demasiadamente precipitado em<br />

crer na afirmação incorreta de Filipe sobre ele, e também porque<br />

sua mente estava saturada da opinião preconcebida de que não se<br />

podia esperar de Nazaré nada de bom. A não ser que nos municiemos<br />

de precaução, correremos o mesmo risco. Usando obstáculos<br />

semelhantes, Satanás diariamente se esforça para barrar nossos<br />

passos de irmos a Cristo. Pois ele se acautela em espalhar infindáveis<br />

boatos falsos, os quais tornam o evangelho detestável ou<br />

suspeito a nossos olhos, de modo que não nos aventuramos a degustá-lo.<br />

Além do mais, há outra pedra que ele não deixa de usar<br />

para fazer Cristo desprezível a nossos olhos. Pois percebemos que<br />

terrível escândalo aos olhos de muitos é a ignomínia da cruz, tanto<br />

em Cristo, o Cabeça, quanto em seus membros. Mas, visto que<br />

dificilmente seremos suficientemente cautelosos para evitar que<br />

sejamos atingidos pelas tramas de Satanás, que pelo menos recordemos<br />

das palavras de Cristo.<br />

Vem e vê. Natanael permitiu que seu duplo erro fosse corrigido<br />

pelo que disse Filipe. E assim, seguindo seu exemplo, primeiro sejamos<br />

generosos em aprender e condescendentes; e a seguir, não deixemos<br />

de inquirir quando Cristo mesmo está disposto a remover as dúvidas<br />

que insistentemente nos perseguem. Estão grandemente equivocados<br />

os que tomam esta frase no sentido afirmativo. Quão banal isso seria!<br />

Repetindo, sabemos que a cidade de Nazaré não desfrutava de bom<br />

conceito naquela época, e a resposta de Filipe claramente denuncia<br />

hesitação e desconfiança.


82 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[1.47-51]<br />

Jesus viu Natanael vindo para ele, e disse-lhe: Eis aqui um verdadeiro<br />

israelita, em quem não há dolo. Disse-lhe Natanael:<br />

Donde me conheces? Respondeu Jesus, e disse-lhe: Antes que<br />

Filipe te chamasse, quando estavas debaixo da figueira, eu te<br />

vi. Respondeu Natanael, e disse-lhe: Rabi, tu és o Filho de Deus;<br />

tu és o Rei de Israel. Respondeu Jesus, e disse-lhe: Só porque eu<br />

disse que te vi debaixo da figueira, tu crês? 27 Ainda verás coisas<br />

maiores que essas. E disse-lhe: Em verdade, em verdade vos<br />

digo: Daqui em diante vereis o céu aberto, e os anjos de Deus<br />

subindo e descendo sobre o Filho do homem.<br />

47. Eis aqui um verdadeiro israelita. Cristo não dirige esse enaltecimento<br />

particularmente à pessoa de Natanael, mas, apoiado em sua<br />

pessoa, ele ministra uma lição de cunho geral. Pois, visto que muitos<br />

dos que se denominam crentes sejam tudo menos crentes de fato e<br />

de verdade, é importante que se tenha algum sinal para distinguir o<br />

verdadeiro e honesto do falso. Sabemos quão arrogantemente os judeus<br />

se gloriavam em seu pai Abraão, quão ousadamente ostentavam<br />

a santidade de seus antepassados. E, no entanto, raramente se achava<br />

um em cem que não fosse completamente degenerado e totalmente<br />

alienado da fé dos patriarcas. Cristo, portanto, com o intuito de rasgar<br />

a máscara dos hipócritas, diz sucintamente o que é ser um israelita<br />

autêntico, e ao mesmo tempo remove a ofensa que logo fluiria da ímpia<br />

obstinação da nação. Pois aqueles que desejavam ser tidos na conta<br />

de filhos de Abraão e do santo povo de Deus, logo depois se tornariam<br />

os implacáveis inimigos do evangelho. E assim, para que a impiedade<br />

que permeava quase todas as classes não desalentasse ou afligisse alguém,<br />

ele ministra em tempo uma advertência, dizendo que há apenas<br />

uns poucos israelitas autênticos entre aqueles que reivindicavam o<br />

título de israelitas.<br />

27 “Tu crois, ou, crois-tu?” – “Tu crês, ou crês tu?”


Capítulo 1 • 83<br />

Além do mais, visto que esta passagem é também uma definição<br />

de Cristianismo, não devemos ignorá-la precipitadamente. Ora, a<br />

fim de sumariar em poucas palavras o que Cristo tinha em mente, é<br />

preciso observar bem que dolo é contrastado com sinceridade. 28 Daí<br />

ele chamar de astuciosos 29 ou dolosos aqueles que, em outras partes<br />

da Escritura, são caracterizados como tendo coração doble [Sl 12.2].<br />

Tampouco tal referência se restringe apenas à hipocrisia daqueles que<br />

são cônscios de que, sendo perversos, pretendem passar por bons,<br />

mas também àquela hipocrisia secreta, quando os homens são tão<br />

cegados por seus pecados, que enganam não só aos outros, mas até<br />

mesmo a si próprios. O que faz um cristão é a integridade aos olhos de<br />

Deus e a retidão diante dos homens. O que Cristo está principalmente<br />

enfatizando é aquele engano de que fala o Salmo 32.2. ἀληθῶς [verdadeiramente]<br />

aqui significa algo mais que certamente. O termo grego é,<br />

às vezes, usado como uma simples afirmação; mas, como devemos<br />

apresentar uma antítese entre a realidade e o mero título, ao dizer, “em<br />

verdade”, é a realidade que está subentendida.<br />

48. Donde me conheces? Embora Cristo não tivesse a intenção de<br />

lisonjeá-lo, contudo queria ganhar a atenção para uma nova pergunta,<br />

por meio de uma resposta que provaria ser ele o Filho de Deus. Nem<br />

é fora de propósito a indagação de Natanael, donde Cristo o conhecia,<br />

pois um homem tão sincero que se vê isento de dolo é um modelo<br />

raro, e o conhecimento dessa pureza de coração pertence tão somente<br />

a Deus. A resposta de Cristo, contudo, parece destituída de sentido.<br />

Ter visto Natanael debaixo de uma figueira não é prova suficiente de<br />

que ele pudesse penetrar os recônditos mais profundos do coração.<br />

A razão, porém, é outra. Assim como pertence a Deus conhecer os<br />

homens quando não são vistos, assim também [lhe pertence] ver o<br />

que é invisível aos olhos [humanos]. Visto que Natanael percebeu que<br />

Cristo pôde vê-lo não da forma como os homens veem, mas por meio<br />

de uma visão verdadeiramente divina, assim pôde deduzir que Cristo<br />

28 “Rondeur et syncerité.”<br />

29 “Canteleux et Frauduleux.”


84 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não estava falando agora como um mero homem. Portanto, a prova<br />

é extraída das coisas que são semelhantes; porquanto não pertence<br />

menos a Deus ver o que está além da vista do que julgar a pureza do<br />

coração. Devemos extrair também desta passagem uma lição prática,<br />

ou, seja, que mesmo antes de pensarmos em Cristo, já estamos sendo<br />

observados por ele; e é preciso que seja assim, para que ele nos traga<br />

de volta quando suceder nos desviarmos da reta vereda.<br />

49. Tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel. O fato de Natanael<br />

reconhecer ser ele o Filho de Deus, à luz de seu divino poder, é<br />

algo que não surpreende. Entretanto, por que ele o chama Rei de Israel?<br />

As duas coisas não parecem ter conexão. Natanael, porém, ergue seus<br />

olhos mais ao alto. Ele já ouvira que Cristo é o Messias, e para que isso<br />

fosse crido, ele adiciona a confirmação que lhe fora dada. Ele sustenta<br />

também outro princípio: que o Filho de Deus não virá sem revelar-se<br />

como Rei sobre o povo de Deus. E, no entanto, a fé não deve apreender<br />

somente a essência de Cristo, por assim dizer, mas deve também atentar<br />

para seu poder e ofício. Porque seria de pouco proveito saber quem<br />

é Cristo, a menos que o segundo elemento seja adicionado, isto é, o que<br />

ele deseja ser em relação e com que propósito foi ele enviado pelo Pai.<br />

Daí suceder que os papistas nada possuem senão um Cristo esotérico,<br />

porque toda sua solicitude está posta na apreensão de sua essência nua.<br />

Seu reino, que consiste no poder de salvar, esse eles têm negligenciado.<br />

Além disso, quando Natanael declara ser ele o Rei de Israel, ainda<br />

que seu reino se estenda até os confins da terra, a confissão se limita<br />

à medida da fé. Pois ele não havia ainda avançado tanto que soubesse<br />

que Cristo fora designado para ser o Rei sobre o mundo inteiro; ou,<br />

melhor, que de todas as regiões fossem reunidos os filhos de Israel, de<br />

modo que o mundo inteiro fosse reconhecido como o Israel de Deus.<br />

Nós, a quem a extensão do reino de Cristo já se revelou, devemos exceder<br />

esses tacanhos limites. Não obstante, que sigamos o exemplo<br />

de Natanael e apliquemos nossa fé em ouvir a Palavra e a fortalecê-la<br />

por todos os meios possíveis, não permitindo que ela fique sepultada,<br />

senão que, impetuosamente, saia em confissão.


Capítulo 1 • 85<br />

50. Jesus respondeu. Ele não dirige reprovação a Natanael,<br />

como se ele fosse demasiadamente crédulo. Ao contrário, por seu<br />

assentimento aprova sua fé, promete a ele e a todos os demais uma<br />

confirmação por meio de argumentos mais contundentes. Além disso,<br />

era algo peculiar ser alguém visto por Cristo debaixo de uma figueira,<br />

quando ausente e distante dele; mas agora Cristo apresenta uma prova<br />

que seria comum a todos, e assim, como se interrompesse seu discurso,<br />

ele se volta de um para todos.<br />

51. Vereis o céu aberto, diz ele. Em minha opinião, incorrem em<br />

erro os que avidamente inquirem quanto ao lugar onde, e o tempo<br />

quando Natanael e os outros viram os céus abertos. Pois ele está, ao<br />

contrário, indicando algo contínuo que seria sempre existente em seu<br />

reino. Por certo que reconheço que os discípulos, às vezes, viam anjos,<br />

os quais não são vistos hoje. Reconheço ainda que a manifestação<br />

da glória celestial, quando Cristo ascendeu ao céu, foi diferente do que<br />

é agora para nós. Mas se ponderarmos com mais atenção, veremos<br />

que o que aconteceu então é de perpétua duração. Pois o reino de<br />

Deus, outrora fechado para nós, foi verdadeiro aberto em Cristo. Um<br />

exemplo visível desse fato foi mostrado a Estevão [At 7.55] e aos três<br />

discípulos no monte [Mt 17.5], bem como aos demais discípulos na<br />

ascensão de Cristo [Lc 24.51; At 1.9]. Mas todos os sinais pelos quais<br />

Deus se mostra presente conosco estão relacionados com essa abertura<br />

do céu, especialmente quando Deus se comunica conosco para<br />

ser nossa vida.<br />

E os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem.<br />

Esta segunda sentença está relacionada com os anjos. Aqui se<br />

diz que “sobem e descem”, pois é assim que eles exercem seu ofício<br />

como ministros da benevolência divina em relação a nós. Portanto,<br />

com esta expressão nota-se uma comunicação recíproca entre Deus e<br />

os homens. Ora, é preciso reconhecer que este benefício foi recebido<br />

em Cristo, porque sem ele os anjos nutririam mais mortal inimizade<br />

contra nós do que um amigo cuidando em nos proteger. Diz-se que eles<br />

“sobem e descem” sobre ele, não porque ministrem exclusivamente


86 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a ele, mas porque, por sua causa e sua honra, incluem todo o corpo<br />

da Igreja em seu cuidado. Tampouco ponho em dúvida que ele esteja<br />

fazendo alusão à escada que foi mostrada ao patriarca Jacó em sonho<br />

[Gn 28.12], pois o que aquela visão esboçava é realmente cumprido em<br />

Cristo. Finalmente, a suma desta passagem consiste em que, embora<br />

toda a raça humana estivesse excluída do reino de Deus, o portão celestial<br />

está agora aberto a todos nós, de modo que somos concidadãos<br />

dos santos e companheiros dos anjos [Ef 2.19]; e que eles, designados<br />

guardiães de nossa salvação, descem daquele bendito repouso da glória<br />

30 celestial para amenizar nossas misérias.<br />

30 “De la glorie celeste.”


Capítulo 2<br />

[2.1-11]<br />

E, ao terceiro dia, 1 houve um casamento em Caná da Galileia; e<br />

estava ali a mãe de Jesus. E foram também convidados para o casamento,<br />

Jesus e seus discípulos. E, havendo acabado o vinho,<br />

a mãe de Jesus lhe disse: Não há mais vinho. E Jesus lhe disse:<br />

Mulher, o que tenho eu a ver contigo? Minha hora ainda não chegou.<br />

Sua mãe disse aos servos: Fazei tudo quanto ele vos disser.<br />

Ora, havia ali postas seis talhas de pedras para as purificações<br />

dos judeus, contendo duas ou três metretas. Jesus lhes disse:<br />

Enchei as talhas de água. E encheram-nas até a borda. E então<br />

lhes disse: Tirai agora e levai ao administrador da festa. E as levaram.<br />

E, quando o administrador da festa provou a água agora<br />

transformada em vinho, e não sabendo donde viera (se bem que<br />

o sabiam os servos que tiraram a água), o administrador da festa<br />

chamou o esposo, e lhe disse: Todo homem primeiro põe o<br />

vinho bom; e quando todos já tenham bebido espontaneamente,<br />

então se serve o pior; tu conservaste o vinho bom até agora. Jesus<br />

começou assim seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou<br />

sua glória; e seus discípulos creram nele.<br />

1. Houve um casamento em Caná da Galileia. O fato de esta história<br />

relatar o primeiro milagre realizado por Cristo é suficiente razão<br />

para considerá-la com extrema prudência, ainda que, como veremos<br />

1 “Tertio die” – “trois jours apres.”


88 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

mais adiante, haja outras razões que incitam a nossa atenção. Mas sua<br />

multiforme utilidade será demonstrada quando avançarmos mais. O<br />

Evangelista, antes de tudo, denomina o lugar – Caná da Galileia. Não<br />

aquela situada nas proximidades de Sarepta, entre Tiro e Sidom, e<br />

chamada “a maior”, em comparação com a outra Caná, a qual alguns<br />

situam na província da tribo de Zebulom e outros a designam como<br />

pertencente à tribo de Aser. Porque Jerônimo também declara que<br />

ainda em seu tempo existia uma cidadezinha com esse nome. É provável<br />

que seja aquela que ficava nas proximidades da cidade de Nazaré,<br />

visto que a mãe de Jesus pôde atender ao casamento. No capítulo 4<br />

se verá que ela ficava cerca de um dia de viagem de Cafarnaum. Sua<br />

proximidade à cidade de Betsaida pode também inferir-se do fato de<br />

que o Evangelista nos informa que o casamento foi celebrado três dias<br />

depois de Cristo haver estado naquele distrito. É possível que houvesse<br />

também uma terceira Caná, não muito longe de Jerusalém, ainda<br />

que fora da Galileia; contudo deixo essa questão em aberto, porquanto<br />

não tenho como saber.<br />

E a mãe de Jesus estava ali. É bem provável que fosse algum parente<br />

de Cristo que se casava, porque este é mencionado como tendo<br />

acompanhado sua mãe. À luz do fato de que os discípulos foram também<br />

convidados, podemos deduzir quão simples e modesto era seu<br />

modo de viver, já que vivia em comum com eles. Pode-se concluir ser<br />

algo incongruente que alguém, de forma alguma rico ou possuidor de<br />

certos recursos (como se fará evidente pela falta de vinho), convide<br />

outros quatro ou cinco por causa de Cristo. Mas os pobres são mais<br />

prontos e mais francos em seus convites; pois, ao contrário dos ricos,<br />

eles não temem ser humilhados caso não consigam tratar seus convidados<br />

de forma suntuosa e magnificente. O pobre é quem conserva o<br />

antiquado costume da mútua hospitalidade.<br />

Além disso, pode parecer descortês que o noivo deixasse seus<br />

convivas sem vinho em meio ao jantar. Porquanto não passa de irresponsável<br />

aquele que não provê sua festa de quantidade suficiente de<br />

vinho. Respondo que, o que é relatado aqui, às vezes sucede, especial-


Capítulo 2 • 89<br />

mente quando o vinho é de uso diário. Além disso, o contexto revela<br />

que o vinho começou a faltar já no final da festa, quando é comum que<br />

todos já se serviram bem. O administrador da festa diz outro tanto:<br />

“Todos servem primeiro o melhor vinho, e, depois que os convidados<br />

já beberam bastante, serve-se o vinho inferior.” Além do mais, não tenho<br />

dúvida de que tudo isso foi premeditado pela divina providência,<br />

para que houvesse ali um momento oportuno para o milagre.<br />

3. A mãe de Jesus lhe disse. É de se perguntar se, porventura, ela<br />

esperava ou pedia alguma coisa a seu filho, quando ele não havia ainda<br />

realizado nenhum milagre. E é possível que, sem esperar qualquer<br />

providência desse gênero, ela lhe pedisse que tranquilizasse o ânimo<br />

dos convivas com algumas exortações piedosas, ao mesmo tempo assim<br />

amenizasse o embaraço do noivo. Além do mais, considero suas<br />

palavras como συμπαθεία, ou ardente compaixão. Pois quando a santa<br />

mulher viu que a festa poderia ser perturbada pela suspeita de que os<br />

convivas pudessem estar sendo tratados com desrespeito, e viessem<br />

a murmurar contra o noivo, ela procurou algum meio de amenizar a situação.<br />

Crisóstomo lança-lhe a suspeita de ser movida por seu instinto<br />

feminino de ir após não sei que sorte de favorecimento para si e para<br />

seu Filho. Tal conjectura é destituída do apoio de qualquer argumento.<br />

Por que, pois, Cristo a repele com tanta severidade? Minha resposta<br />

é que, embora ela não fosse motivada por nenhuma ambição, nem<br />

por outra qualquer afeição carnal, todavia pecou em ir além de seus<br />

próprios limites. Sua solicitude sobre a inconveniência suportada por<br />

outros, e seu desejo de remediá-la de alguma forma, eram provenientes<br />

da bondade e devem receber seu crédito; não obstante, ao promover-<br />

-se, ela poderia ter obscurecido a glória de Cristo. Portanto, devemos<br />

observar que Cristo falou assim, não tanto por ela, mas por causa dos<br />

demais. Sua modéstia e generosidade eram imensas demais para que<br />

merecessem reprovação tão severa. Além disso, ela não estava pecando<br />

consciente e voluntariamente; Cristo, porém, apenas mostra o perigo de<br />

que as palavras de sua mãe fossem mal interpretadas, como se estivesse<br />

nela ordenar que ele, a partir daí, operasse o milagre.


90 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

4. Mulher, o que tenho a ver contigo? O grego literalmente significa:<br />

“O que a mim e a ti?”. Mas a fraseologia grega vem a ser a<br />

mesma coisa que o latim: Quid tibi mecum? (“O que tens tu a ver comigo?”).<br />

O antigo tradutor [Vulgata] desorientou a muitos, dizendo<br />

que Cristo considerou a falta de vinho como algo que não interessava<br />

nem a ele nem a sua mãe. À luz da segunda cláusula, porém, podemos<br />

facilmente concluir quão longe isso estava da mente de Cristo, pois<br />

ele se reveste desse cuidado e declara que isso era de seu interesse<br />

quando acrescenta que sua hora não ainda não chegara. Essas duas<br />

coisas devem estar juntas, ou seja, que Cristo entende o que lhe seria<br />

necessário fazer, e, no entanto, nada fará a esse respeito seguindo a<br />

sugestão de sua mãe.<br />

Esta é uma passagem notável. Ora, por que ele absolutamente<br />

recusa à sua mãe o que depois graciosamente admitiu tão amiúde a<br />

toda sorte de pessoas? Além disso, por que ele não se satisfaz com a<br />

mera recusa, mas ainda a coloca na categoria comum de mulher, nem<br />

mesmo honrando-a com o título de mãe? É indubitável que este dito<br />

de Cristo adverte pública e francamente aos homens a terem o cuidado<br />

de não transferir a Maria o que pertence a Deus, exaltando de<br />

modo tão supersticioso a honra do nome maternal da Virgem Maria. 2<br />

Cristo, pois, se dirige a sua mãe nesses termos com o fim de transmitir<br />

uma lição perpétua e geral a todas as gerações, para que alguma<br />

honra extravagante prestada a sua mãe não viesse a obscurecer sua<br />

divina glória.<br />

Quão necessária se fez esta advertência, em consequência das<br />

grosseiras e abomináveis superstições que se seguiram mais tarde,<br />

o que é sobejamente notório. Pois Maria se transformou em Rainha<br />

do Céu, a Esperança, a Vida e a Salvação do mundo. E, de fato, seu<br />

insano desvario foi tão longe que despiram Cristo de suas prerrogativas,<br />

e o deixaram quase nu. E quando condenamos essas malditas<br />

blasfêmias dirigidas ao Filho de Deus, os papistas nos chamam de ma-<br />

2 “En la vierge Marie.”


Capítulo 2 • 91<br />

liciosos e invejosos. Não só isso, mas disseminam a perversa calúnia<br />

de que somos letais inimigos da honra da santa Virgem, como se ela<br />

não possuísse ainda todas as honras que lhe são devidas, a menos<br />

que ela se converta em deusa; como se devesse tratá-la com respeito,<br />

adornando-a com títulos sacrílegos e pondo-a em lugar de Cristo! Portanto,<br />

são os próprios papistas que fazem a Maria uma cruel injúria<br />

quando, a fim de desfigurá-la com falsos louvores, arrebatam de Deus<br />

o que lhe pertence.<br />

Minha hora ainda não chegou. Significa que ele até então nada<br />

fizera não por displicência ou indolência, e ao mesmo tempo insinua<br />

que ele cuidaria do problema quando o tempo oportuno chegasse.<br />

Como ele reprova sua mãe por pressa imponderada, assim, em contrapartida<br />

apresenta-lhe motivo para esperar um milagre. A santa Virgem<br />

reconhece ambas essas intenções, pois desistiu de pressioná-lo. E, ao<br />

aconselhar os servos que fizessem tudo quanto ele mandasse, com isso<br />

ela demonstra que agora ela está à espera de algo. Esta lição, porém,<br />

tem uma aplicação ainda mais ampla: sempre que o Senhor nos mantém<br />

em suspenso e retarda seu socorro, não significa que ele esteja inativo,<br />

mas, ao contrário, que regula suas operações de tal modo que só age no<br />

tempo determinado. Os que têm aplicado esta passagem com o intuito<br />

de provar que o tempo dos eventos é designado pelo Destino são ridículos<br />

demais para que mereçam sequer uma que os refute.<br />

A hora de Cristo às vezes significa a hora que lhe foi designada<br />

pelo Pai; e mais tarde ele chama seu tempo o que era conveniente e<br />

oportuno para a concretização dos mandamentos do Pai. Aqui, porém,<br />

ele reivindica o direito de dispor e decidir o tempo de trabalhar e exibir<br />

seu poder divino. 3<br />

5. Sua mãe disse aos servos. Aqui a santa Virgem dá um notável<br />

exemplo da genuína obediência que ela devia a seu Filho, 4 quando a<br />

questão relacionada era não os deveres humanitários, mas de seu divino<br />

poder. Portanto, ela modestamente aquiesce à resposta de Cristo e<br />

3 “De bonongner et desployer sa virtue Divine.”<br />

4 “a son Fils.”


92 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

exorta aos demais a que obedeçam às injunções dele. Reconheço que<br />

o que a Virgem agora afirma se relacionava com a presente ocorrência,<br />

e era como se ela estivesse, neste caso, negando a si qualquer autoridade,<br />

e que Cristo faria, segundo seu próprio beneplácito, tudo quanto<br />

quisesse. Mas, se o leitor atentar bem sua intenção, notará que sua<br />

afirmação tem uma aplicação ainda mais ampla. Pois, primeiramente,<br />

ela renuncia e descarta o poder que aparentemente usurpara, e em<br />

seguir atribui a Cristo toda autoridade, quando os incita a fazer tudo o<br />

que ele mandasse. Daqui, por estas palavras, somos instruídos, em termos<br />

gerais, que, se desejarmos alguma coisa de Cristo, não obteremos<br />

resposta às nossas orações, a menos que dependamos inteiramente<br />

dele, buscando-o e, em suma, fazendo tudo o que ele ordenar. Em contrapartida,<br />

ele não nos encaminha a sua mãe, mas, ao contrário, nos<br />

convida a irmos a ele próprio.<br />

6. Ora, havia ali seis talhas de pedra. <strong>Segundo</strong> a computação<br />

de Budaeus, deduzimos que essas talhas eram muito grandes; pois,<br />

visto que uma metreta 5 (μετρητὴς) equivale a vinte congii, cada uma<br />

contendo pelo menos um sextarius em nossa medida. 6 Portanto, Cristo<br />

os supriu com uma grande abundância de vinho; aliás, o suficiente<br />

para mais de cento e cinquenta pessoas numa festa de núpcias. Além<br />

disso, tanto o número quanto o tamanho das talhas servem para confirmar<br />

a veracidade do milagre. Se tivessem retido apenas duas ou<br />

três congii, muitos poderiam ter levantado suspeitas se porventura<br />

aquele vinho não fora trazido de algum outro lugar. Se a água transformada<br />

em vinho estivesse em apenas um vaso, a autenticidade do<br />

milagre não teria sido tão evidente e indisputável. Portanto, não é<br />

sem uma razão plausível que o Evangelista mencione seu número e<br />

seu conteúdo.<br />

5 O tamanho exato do barril não pode ser facilmente averiguado. Se μετρητὴς é aqui<br />

usado pelo Evangelista meramente como uma palavra grega, devemos concluir ser<br />

ela uma medida Ática, a qual era quase igual a nove galões ingleses. Se, repetindo, for<br />

colocado aqui como um substituto da palavra hebraica, Bath (), como fez a Septuaginta<br />

em 2 Crônicas 4.5, provavelmente será calculado em sete galões e meio.<br />

6 “De ce pays de Savoye” – “deste país, Savoy.”


Capítulo 2 • 93<br />

A presença de vasos tão numerosos e tão grandes, postos ali, procedia<br />

da superstição. Haviam recebido da lei de Deus a cerimônia da<br />

lavagem. Uma vez, porém, que o mundo seja tão inclinado aos excessos<br />

externos, os judeus, não satisfeitos com a simplicidade ordenada por<br />

Deus, divertiam-se com constantes aspersões. E já que a superstição é<br />

ambiciosa, indubitavelmente conduziu à ostentação. Da mesma forma,<br />

vemos no papado de hoje que tudo quanto se diz pertencer ao culto<br />

divino é exposto por mero exibicionismo. Houve, pois, um duplo erro:<br />

sem qualquer mandamento da parte de Deus, se envolveram precipitadamente<br />

numa desnecessária cerimônia de seu próprio invento. Da<br />

mesma forma, a pretexto da religião, a ambição comandou essa pompa.<br />

Certos escandalosos dentro do papado tiveram a assombrosa e<br />

perversa ousadia de fazer a exibição de algumas talhas como sendo<br />

aquelas mesmas talhas com que Cristo realizou este milagre em Caná. 7<br />

Mas, em primeiro lugar, são pequenas demais, bem como desiguais em<br />

tamanho. Até hoje, quando a luz do evangelho se encontra tão claramente<br />

ao nosso redor, não se envergonham de praticar essas artimanhas, as<br />

quais certamente não é enganar com encantamentos, mas ousadamente<br />

zombar dos homens como se fossem cegos; e o mundo, que não percebe<br />

zombaria tão grosseira, é evidentemente enfeitiçado por Satanás.<br />

7. Enchei as talhas com água. É possível que tal ordem tenha parecido<br />

absurda aos servos, pois já tinham água mais que suficiente. Mas<br />

esse é o modo como o Senhor costuma agir em relação a nós, a fim<br />

de que um resultado inesperado faça seu poder resplandecer de forma<br />

ainda mais extraordinária. Esse detalhe é introduzido para enfatizar a<br />

natureza do milagre; pois quando os servos tiraram o vinho dos vasos<br />

que tinha enchido com água, não era possível restar qualquer suspeita.<br />

8. Levai ao administrador da festa. Pela mesma razão de antes,<br />

Cristo queria que o vinho fosse provado pelo administrador da festa,<br />

antes que ele mesmo ou algum outro dos convivas dele bebessem. À luz<br />

do modo tranquilo como os servos o obedeceram em tudo, podemos<br />

7 “Qu’ils avoyent entre leurs reliques de ces cruches, esquelles Christ avoit fait ce miracles<br />

en Cana, et em monstroyent.”


94 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

perceber sua extraordinária autoridade e reputação. O homem a quem o<br />

Evangelista chama de administrador da festa superintendia a preparação<br />

da festa e o arranjo das mesas – não que a festa fosse muito grande e<br />

cheia de pompas, mas porque os casamentos pobres tomavam por empréstimo<br />

os títulos extravagantes da grandeza e esplendor dos ricos. No<br />

entanto, surpreende que Cristo, um mestre de sobriedade, suprisse a<br />

festa com uma grande quantidade de vinho, e do melhor. Respondo que,<br />

quando Deus nos provê diariamente com abundância de vinho, cometemos<br />

um sério erro se permitimos que sua benevolência se nos converta<br />

em incitamento para a luxúria. Mas será uma indubitável prova de nossa<br />

temperança se formos simples e moderados em meio à abundância. Justamente<br />

como Paulo se regozija por ter aprendido a viver bem tanto na<br />

fartura quando na escassez [Fp 4.11].<br />

11. Jesus começou assim seus sinais. Significa que esse foi o<br />

primeiro milagre efetuado por Cristo. Pois ainda que a proclamação<br />

angelical, dizendo aos pastores que ele nascia em Belém, a estrela<br />

aparecendo aos magos e o Espírito Santo descendo sobre ele numa<br />

semelhança de pomba fossem todos milagres, todavia, estritamente<br />

falando, não foram realizados por ele mesmo. É aqui que ele aparece<br />

como o próprio protagonista dos milagres. Pois é uma ridícula e absurda<br />

interpretação aquela que alguns apresentam, dizendo que este<br />

é assinalado como sendo o primeiro dentre os milagres que Cristo<br />

efetuou em Caná da Galileia, como se ele escolhesse um lugar para manifestar<br />

seu poder onde lemos que ele só foi duas vezes. O propósito<br />

do Evangelista era antes observar a ordem de tempo que Cristo seguiu<br />

no exercício de seu poder. Pois até a idade de trinta anos ele ficou em<br />

casa como uma pessoa comum. Seu batismo foi uma admissão ao exercício<br />

de seus deveres, só então ele começou a aparecer em público e a<br />

mostrar-se abertamente através de claras provas a que propósito fora<br />

ele enviado pelo Pai. Portanto, não carece que nos admiremos se ele<br />

adiou a primeira prova de sua divindade até este momento.<br />

O matrimônio é grandemente glorificado não só pelo fato de Cristo<br />

ter honrado uma festa de núpcias com sua presença, mas também


Capítulo 2 • 95<br />

por tê-lo adornado com seu primeiro milagre. Existem certos cânones<br />

antigos em que os clérigos são proibidos de atender às cerimônias<br />

nupciais. A razão para tal proibição consistia em que, sendo eles espectadores<br />

da habitual licenciosidade, talvez sua presença viesse a<br />

ser interpretada como aprovação. Mas teria sido muito melhor se eles<br />

tivessem assumido aquela postura séria que costuma coibir a devassidão<br />

a que os homens descarados e dissolutos se entregam quando<br />

não há ninguém observando-os. Ao contrário disso, que o exemplo<br />

de Cristo seja nossa diretriz. Não suponhamos que haja algo melhor a<br />

fazer-se além daquilo que ele pessoalmente fazia.<br />

E manifestou sua glória. Ele propiciou esta notável e gloriosa evidência<br />

diante do fato que se estabelecia, ou seja, que ele era o Filho de<br />

Deus. Pois todos os milagres que ele exibiu aos olhos do mundo eram<br />

outros tantos testemunhos de seu divino poder. E agora chegara o<br />

tempo oportuno de manifestar sua glória, quando, sob o comando do<br />

Pai, ele queria ser conhecido. Além do mais, deste fato descobrimos<br />

o propósito dos milagres, pois a expressão equivale a uma declaração<br />

de que Cristo realizara este milagre com o intuito de revelar sua glória.<br />

Em contrapartida, o que diríamos daqueles milagres que obscurecem<br />

a glória de Cristo?<br />

E seus discípulos creram nele. Se eram discípulos, então deviam<br />

já possuir algum matiz de fé. Considerando, porém, que até aqui o<br />

haviam seguido com uma fé incerta e nebulosa, agora começavam a<br />

dedicar-se a ele, reconhecendo que devia ser o Messias, como já lhes<br />

fora proclamado. Cristo, porém, é muito bondoso em aceitar como<br />

seus discípulos aqueles cuja fé era ainda débil. Aliás, esta doutrina tem<br />

uma aplicação universal. Pois toda fé adulta teve outrora seu período<br />

de infância; nem ela é tão perfeita em alguém que não haja mais qualquer<br />

necessidade de progresso. Portanto, aqueles que já eram crentes,<br />

passam a crer ainda mais, enquanto fazem progresso diariamente<br />

rumo ao alvo. E, assim, aqueles que já alcançaram os primórdios da<br />

fé, que então se esforcem continuamente para obter progresso. Aqui<br />

também se revela o fruto dos milagres – que eles devem relacionar-se


96 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

à confirmação e progresso da fé. Quem quer que os torça para algum<br />

outro propósito, corrompe e avilta todo seu uso, precisamente como<br />

vemos os papistas vangloriando-se de seus milagres fictícios, com nenhum<br />

outro propósito senão o de encobrir a fé e desviar as mentes dos<br />

homens de Cristo para as criaturas.<br />

[2.12-17]<br />

Depois disso, desceu a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos e<br />

seus discípulos; e ficaram ali não muitos dias. E a páscoa dos<br />

judeus estava próxima, e Jesus subiu a Jerusalém. E encontrou<br />

no tempo os que vendiam bois e ovelhas e pombos, bem como<br />

os cambistas assentados. E, tendo feito um azorrague de cordas,<br />

os expulsou a todos do templo, com as ovelhas e bois; e<br />

espalhou o dinheiro dos cambistas, e derrubou suas mesas; e,<br />

aos que vendiam pombos, ele disse: Tirai daqui essas coisas;<br />

não façais da casa de meu Pai casa de comércio. E seus discípulos<br />

lembraram-se do que fora escrito: O zelo de tua casa me<br />

tem consumido.<br />

12. Depois disso, desceu a Cafarnaum. O Evangelista transita a<br />

uma história completamente nova. Ele decidiu coletar umas poucas<br />

coisas dignas de lembrança, as quais os outros três haviam omitido,<br />

e relata o tempo em que se deu o que está para contar; pois os outros<br />

também relatam o que aqui lemos de Cristo realizando, mas a diferença<br />

de tempo mostra que foi um evento semelhante, porém não o<br />

mesmo. Cristo, pois, por duas vezes purificou o templo dos sórdidos e<br />

mundanos negócios financeiros. A primeira vez, no limiar de sua missão,<br />

e a outra vez, quando estava para partir do mundo para seu Pai.<br />

Para termos uma visão geral da passagem, é preciso que examinemos<br />

os detalhes em sua ordem. Havia uma razão plausível para que<br />

bois, ovelhas e pombos fossem oferecidos à venda no templo e para que<br />

os cambistas estivessem assentados ali. Pois podiam alegar que suas<br />

transações não eram absolutamente seculares, senão que, ao contrário,


Capítulo 2 • 97<br />

estavam conectadas com o sacro culto divino, a fim de que qualquer um<br />

tivesse como obter facilmente alguma coisa para apresentar ao Senhor.<br />

E, com certeza, tornava-se muito conveniente que as pessoas religiosas<br />

encontrassem as várias oblações no local próprio, e assim fossem poupadas<br />

da fadiga de procurá-las. Portanto, causa estranheza que Cristo<br />

se mostrasse tão irado. Mas é oportuno que se observem duas razões.<br />

Os sacerdotes abusavam desse comércio em prol de seu próprio lucro e<br />

satisfação de sua avareza, e era intolerável que Deus fosse escarnecido.<br />

Além disso, qualquer justificativa que os homens apresentassem, tão<br />

logo se apartavam, por mais leve que fosse, do mandamento de Deus,<br />

faziam-se culpáveis e mereciam correção. E essa é a principal razão por<br />

que Cristo assumiu a responsabilidade de purificar o templo, pois afirma<br />

claramente que o templo de Deus não é lugar de atos mercantis.<br />

Mas, pode-se perguntar, por que ele não principiou ministrando-<br />

-lhes instrução? Parece um procedimento desordenado e invertido<br />

usar a força para corrigir abusos, antes mesmo de tentar-se o antídoto<br />

da didática. Cristo, porém, tinha um alvo bem distinto. Pois já que chegara<br />

o tempo para ele desincumbir-se publicamente do ofício que lhe<br />

fora confiado pelo Pai, quis de alguma forma tomar posse do templo e<br />

pôr em evidência sua divina autoridade. E para que todos atentassem<br />

bem para seu ensino, suas morosas e sonolentas mentes tinham que<br />

ser despertadas por algo novo e inusitado. Ora, o templo era o relicário<br />

da religião e doutrina celestiais. Uma vez que queria restaurar a pureza<br />

da doutrina, era de imensurável importância estabelecer-se como<br />

o Senhor do Templo. Além disso, não havia outro meio de conduzir<br />

os sacrifícios e outros exercícios religiosos de volta ao seu propósito<br />

espiritual do que removendo deles os abusos. O que ele fez naquele<br />

momento era, portanto, uma espécie de prelúdio à reforma à qual o Pai<br />

o enviara a realizar. Numa palavra, era oportuno que os judeus fossem<br />

despertados, mediante tal exemplo, a fim de que esperassem de Cristo<br />

algo inusitado e assustador. E era igualmente necessário lembrá-los<br />

poderosamente da corrupção e perversão do culto divino, a fim de<br />

que não apresentassem objeção à sua correção.


98 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

E seus irmãos. É incerto por que seus irmãos o acompanhavam,<br />

a menos que coincidisse de irem, ao mesmo tempo, a Jerusalém. Além<br />

do mais, pelo termo irmãos, o idioma hebraico, como é bem notório,<br />

quer dizer toda sorte de parentes do sexo masculino.<br />

13. E a páscoa estava próxima, e então Jesus subiu a Jerusalém.<br />

Literalmente, o grego é “e ele foi”, mas o Evangelista adiciona a conjunção<br />

‘e’ em lugar da conjunção causal. Pois ele tenciona dizer que Jesus<br />

então subiu a Jerusalém com o fim de observar a páscoa. Seu objetivo<br />

era duplo: visto que o Filho de Deus era sujeito à lei, por nossa causa,<br />

ele desejava, ao observar precisamente todos os mandamentos da<br />

lei, revelar nele um tipo de plena submissão e obediência. Além disso,<br />

visto que ele podia realizar mais boas obras entre uma multidão de<br />

pessoas, quase sempre fazia uso desse tipo de oportunidade. Portanto,<br />

sempre que, posteriormente, se repete que Cristo veio a Jerusalém<br />

para os dias de festas, que o leitor observe bem que ele procedia assim<br />

primeiramente para que, juntamente com os demais, pudesse pôr em<br />

prática os exercícios da religião instituída por Deus; e, segundo, para<br />

que pudesse proclamar sua doutrina a um maior número de pessoas.<br />

16. Não façais da casa de meu Pai. Na segunda purificação do<br />

templo, os demais Evangelistas registram o uso de uma linguagem<br />

mais abrupta e severa – haviam feito do templo um covil de ladrões,<br />

e isso foi oportuno quando uma reprovação mais indulgente não teria<br />

sido de nenhum proveito. Ele simplesmente os adverte, então, a não<br />

profanar o templo de Deus, pervertendo-o com o fim de alienar seu<br />

uso. O templo era chamado a casa de Deus, visto que Deus queria ser<br />

ali invocado de uma forma especial, porque ali ele exercia seu poder e<br />

porque o separara para as cerimônias espirituais e santas.<br />

Cristo declara ser o Filho de Deus, aquele que podia reivindicar<br />

o direito e autoridade de purificar o templo. Além disso, visto que ele<br />

aqui apresenta o motivo de proceder daquela forma, qualquer um que<br />

quiser extrair vantagem desse fato deve concentrar-se principalmente<br />

nesta frase. Por que, pois, ele expulsa os compradores e vendedores<br />

do templo? Para restaurar o culto divino à sua integridade, o qual


Capítulo 2 • 99<br />

havia sido corrompido pelos homens perversos, e assim renovar e defender<br />

a santidade do templo.<br />

Ora, aquele templo, como bem o sabemos, fora edificado para<br />

ser a sombra daquelas coisas cuja vívida imagem está em Cristo. Para<br />

que permanecesse consagrado a Deus, ele tinha de ser usado única e<br />

exclusivamente para usos de cunho espiritual. Por essa razão, ele declara<br />

ser ilícito que o templo se convertesse num mercado. Ele achou<br />

seu argumento na instituição divina, a qual é nosso dever defender.<br />

Por quantas ilusões possa Satanás nos enganar, saibamos ser ímpio<br />

tudo quanto (por menor que seja) nos desvie do mandamento divino.<br />

Seria um ilusório e corrupto engano que o culto divino fosse defendido<br />

e promovido, se os sacrifícios estivessem convenientemente à mão<br />

para os crentes. Visto, porém, que Deus destinara seu templo a outros<br />

usos, Cristo desconsidera as objeções que poderiam surgir contra a<br />

ordem estabelecida por Deus.<br />

Os mesmos argumentos não aplicam, na atualidade, aos nossos<br />

edifícios para o culto público. Mas ao que foi dito do antigo templo se<br />

aplica justa e apropriadamente à Igreja, a qual é o santuário celestial<br />

de Deus na terra. Razão pela qual a majestade de Deus, que habita a<br />

Igreja, deve estar continuamente diante de nossos olhos, para que ela<br />

não seja maculada por qualquer impureza. Sua santidade, porém, só<br />

permanecerá íntegra se não lhe for admitido nada que seja estranho à<br />

Palavra de Deus.<br />

17. Seus discípulos lembraram. Há aqueles que gastam seu<br />

tempo inquirindo sobre como os discípulos teriam se lembrado da<br />

Escritura, a qual lhes era até então desconhecida e estranha. Não<br />

devemos imaginar que esta passagem da Escritura ocorreu à sua lembrança<br />

imediatamente; e sim que mais tarde, quando, instruídos por<br />

Deus, consideraram entre si o que significaria esta ação de Cristo, esta<br />

passagem da Escritura ocorreu-lhes sob a direção do Espírito Santo.<br />

E é verdade que a causa da obra de Deus nem sempre nos é evidente<br />

de imediato. Senão que depois, no transcurso do tempo, ele faz com<br />

que seu propósito nos seja conhecido. E esse é um freio bastante efi-


100 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

caz para deter nossa impaciência, a fim de não importunarmos a Deus<br />

quando nosso juízo não aprovar suas ações. Somos lembrados, ao<br />

mesmo tempo, que, quando Deus nos deixa em suspenso, esperemos<br />

pacientemente pela ocasião de mais pleno conhecimento e refreemos<br />

nossa inata precipitação. Pois Deus delonga a plena manifestação de<br />

suas obras para conservar-nos humildes.<br />

O significado consiste em que os discípulos, por fim, compreenderam<br />

que Cristo fora compelido por ardente zelo pela casa de Deus a<br />

expulsar dela tais profanações. Sem dúvida, Davi, pelo uso de sinédoque,<br />

designa sob o termo templo todo o culto divino. Pois o versículo<br />

completo se compõe assim: “O zelo de tua casa me tem devorado; e as<br />

afrontas dos que te afrontam caíram sobre mim” [Sl 69.9]. A segunda<br />

sentença contrabalança a primeira, ou melhor, é simplesmente uma<br />

reiteração explicativa. A suma de ambas as sentenças consiste em que<br />

Davi estava tão ansioso em defender a glória de Deus, que voluntariamente<br />

aceitou sobre sua cabeça todas as afrontas que os ímpios<br />

lançavam contra Deus. E ele se queimava com um zelo tal, que este<br />

único sentimento tragava todos os demais. Ainda nos diz que ele, pessoalmente<br />

se sentia assim, mas não pode haver dúvida de que, em sua<br />

própria pessoa, ele estava descrevendo o que propriamente pertencia<br />

ao Messias.<br />

Consequentemente, o Evangelista afirma que esta era uma das<br />

marcas pelas quais Jesus se fez conhecer aos discípulos como o vingador<br />

e o restaurador do reino de Deus. Então observa que eles seguiram<br />

a orientação da Escritura para entender corretamente a Cristo. E deveras<br />

ninguém jamais aprenderá o que Cristo é, ou o propósito de suas<br />

ações e sofrimentos, salvo pela orientação e ensino das Escrituras.<br />

Até onde, pois, cada um de nós deseja progredir no conhecimento de<br />

Cristo, teremos que meditar bastante e continuamente sobre a Escritura.<br />

Tampouco Davi faz menção da casa de Deus displicentemente, ao<br />

falar de sua glória. Pois ainda que Deus seja suficiente a si mesmo e se<br />

satisfaça exclusivamente consigo mesmo, não obstante quer que sua<br />

glória se manifeste na Igreja.


Capítulo 2 • 101<br />

Neste fato, ele mostra uma notável prova de seu amor para conosco,<br />

porquanto ele associa, por um laço indissolúvel, sua glória com<br />

nossa salvação. Resta, pois, que cada um individualmente se aplique<br />

a imitar a Cristo, já que no exemplo da Cabeça se demonstra uma lição<br />

geral para todo o corpo, segundo Paulo ensina em Romanos 15.3.<br />

Até onde pudermos, não permitamos que o sacro templo de Deus seja<br />

poluído em qualquer um de seus aspectos. Ao mesmo tempo, que revistamos<br />

todos de precaução para não ultrapassarmos os limites de<br />

nossa vocação. Em sintonia com o Filho de Deus, que todos sejamos<br />

zelosos. Contudo, não significa que todos nos munamos de um azorrague<br />

e arbitrariamente corrijamos os vícios, pois não nos foi dado o<br />

mesmo poder nem nos foi imposto o mesmo ofício.<br />

[2.18-22]<br />

Responderam-lhes, pois, os judeus, e lhe disseram: Que sinal 8<br />

nos mostras, visto que fazes essas coisas? Jesus respondeu, e<br />

lhes disse: Destruí este templo, e em três dias o reerguerei. Disseram-lhe,<br />

pois, os judeus: Em quarenta e seis anos esteve este<br />

templo em construção, e tu o reerguerás em três dias? Mas ele<br />

falava do templo de seu corpo. Quando, pois, ele ressuscitou<br />

dentre os mortos, seus discípulos se lembraram de que dissera<br />

isso; e creram na Escritura e na palavra que Jesus dissera.<br />

18. Que sinal nos mostras? À luz do fato de que em tão grande<br />

multidão ninguém deitou mão em Cristo e nenhum dos vendedores de<br />

gado nem cambista o expulsou com violência, podemos concluir que<br />

todos se sentiram fulminados e aturdidos por Deus e ficaram como que<br />

petrificados. Portanto, se não estivessem completamente cegos, este<br />

milagre teria sido suficientemente óbvio, ou seja, que um só homem<br />

ousasse tanto, um só contra tantos, um homem desarmado contra os<br />

fortes, um desconhecido contra os grandes líderes. Uma vez que eram<br />

8 “Quel signe, ou, miracle?” – “Que sinal? ou, Que milagre?”


102 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

muito mais fortes, por que não o impediram, salvo porque sua força se<br />

desvanecera e, por assim dizer, se quebrara?<br />

Todavia, tiveram algum motivo para fazer-lhe perguntas, porquanto<br />

não se pode permitir que alguém mude subitamente algum defeito e<br />

algo desagradável no templo de Deus. Certamente que todos têm a liberdade<br />

de condenar as corrupções, mas se um indivíduo anônimo se<br />

apresenta para removê-las, o mesmo será responsável por sua temeridade.<br />

Visto que o costume de negociar no templo era aceito, Cristo<br />

empreendeu algo novo e inusitado, e, portanto, mui corretamente lhe<br />

pedem para provar que fora enviado por Deus, porquanto baseavam<br />

seu argumento no princípio de que, em administração pública, não é<br />

lícito mudar qualquer coisa sem uma vocação e uma ordem definida<br />

da parte de Deus. Mas o ponto em que erravam era a recusa em admitir<br />

a vocação de Cristo, a não ser que ele efetuasse algum milagre, pois<br />

não constituía um princípio geral o fato de que os profetas e outros ministros<br />

de Deus realizaram milagres, nem ainda Deus se obrigara a tal<br />

necessidade. Estão, pois, errados em impor a Deus uma lei, exigindo<br />

um sinal. Quando os Evangelistas dizem que os judeus lhe fizeram uma<br />

pergunta, indubitavelmente querem dizer à multidão que ali estava, ou<br />

seja, toda a corporação da Igreja, como se estivessem dizendo que não<br />

foi pela palavra de um só ou de dois, mas de todo o povo.<br />

19. Destruí este templo. Aqui temos uma expressão alegórica.<br />

Cristo deliberadamente se expressou de forma um tanto obscura em<br />

virtude de considerá-los indignos de uma réplica direta – precisamente<br />

como em outra parte declara que lhes falava por parábolas porque<br />

não podiam compreender os mistérios do reino do céu [Mt 13.13].<br />

Mas, antes, recusa-lhes o sinal que pediram, seja porque ele não teria<br />

produzido nenhum bem ou porque ele bem sabia que ainda não chegara<br />

o tempo oportuno.<br />

Ocasionalmente, ele fazia algumas concessões, mesmo diante<br />

de seus pedidos injustificados. Portanto, deveria haver alguma forte<br />

razão por que ele o recusava agora. Mas, no caso de lançarem mão<br />

disto como uma justificativa pessoal, ele declara que seu poder se-


Capítulo 2 • 103<br />

ria provado e confirmado através de um sinal inusitado. Porquanto<br />

nenhuma prova mais convincente, do divino poder em Cristo, poderia<br />

ser mais desejável do que sua ressurreição dentre os mortos. Mas<br />

ele o insinua de forma figurativa, visto que não considerava dignos de<br />

uma promessa explícita. Em suma, ele trata os incrédulos segundo seu<br />

merecimento e ao mesmo tempo se exime de todo e qualquer desdém.<br />

Ainda não se fizera evidente que eles eram obstinados, mas Cristo bem<br />

sabia qual era o estado de seus sentimentos.<br />

Visto, porém, que ele realizou tantos e variados milagres, é possível<br />

que se pergunte por que ele agora menciona apenas um. Minha<br />

resposta é que ele manteve silêncio acerca de todos os outros milagres<br />

em virtude de sua ressurreição ser sobejamente suficiente para fechar<br />

suas bocas, e também porque ele não queria expor o poder de Deus ao<br />

escárnio deles. Pois ele fala em termos alegóricos até mesmo acerca da<br />

glória de sua ressurreição. Em terceiro lugar, digo que ele mencionou o<br />

que era apropriado ao caso, pois, com essas palavras, ele mostra que<br />

toda a autoridade sobre o templo lhe pertencia, visto que seu poder é<br />

incomensurável na edificação do verdadeiro templo de Deus.<br />

Este templo. Mas ainda que use a palavra templo para acomodar-se<br />

à presente situação, contudo o corpo de Cristo é merecida e<br />

consistentemente chamado templo. Cada um de nossos corpos é chamado<br />

tabernáculo [2 Co 5.4] por ser a habitação da alma, mas o corpo<br />

de Cristo era a morada de sua divindade. Pois sabemos que o Filho de<br />

Deus de tal modo se vestiu de nossa natureza, que na carne que ele<br />

assumiu habita a eterna majestade de Deus como em seu Santuário.<br />

Refuta-se facilmente o argumento de Nestório, que usa mal esta<br />

passagem para provar que um e o mesmo Cristo não pode ser ambas<br />

as coisas: Deus e homem. Ele ponderava assim: O Filho de Deus habitou<br />

na carne como num templo, portanto as naturezas são distintas,<br />

de modo que o mesmo ser não podia ser Deus e homem. Mas tal argumento<br />

pode ser aplicado aos homens, pois se seguirá que não é um só<br />

homem cuja alma habita no corpo como num tabernáculo; e, assim,<br />

é tolice torcer essa forma de expressão para desfazer a unidade de


104 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

pessoa em Cristo. Além do mais, deve-se observar que nossos corpos<br />

também são chamados templos de Deus [1 Co 6.19], mas num sentido<br />

diferenciado, isto é, porque Deus habita em nós pelo poder e graça<br />

de seu Espírito, mas em Cristo habita corporalmente a plenitude da<br />

Deidade, de tal forma que ele é verdadeiramente Deus manifestado na<br />

carne [1Tm 3.16].<br />

Eu o ressuscitarei. Cristo, aqui, reivindica para si a glória de sua<br />

ressurreição, ainda que geralmente a Escritura declare ser ela obra<br />

de Deus o Pai. Essas duas afirmações, porém, são perfeitamente<br />

concordantes. Pois ao recomendar-nos o poder de Deus, a Escritura<br />

expressamente atribui ao Pai o fato de que ele ressuscitou seu Filho<br />

dentre os mortos. Aqui, porém, Cristo especificamente proclama sua<br />

própria divindade. E Paulo reconcilia as duas em Romanos 8.11, pois<br />

ao Espírito, a quem ele faz autor da ressurreição, às vezes, ele chama<br />

indiscriminadamente o Espírito de Cristo e, às vezes, o Espírito do Pai.<br />

20. Quarenta e seis anos. O cálculo de Daniel concorda com esta<br />

passagem [Dn 9.25], porquanto ele ali o denomina de sete semanas,<br />

o que perfaz um período de quarenta e nove anos; mas, antes que a<br />

última dessas semanas terminasse, ele concluiu o templo. Parece contraditório<br />

que o tempo mencionado na história de Esdras seja mais<br />

curto, mas, na verdade, ela não causa nenhum conflito com as palavras<br />

dos profetas. Pois quando o Santuário foi estabelecido, antes<br />

que o edifício do templo fosse concluído, eles começaram a oferecer<br />

sacrifícios. Subsequentemente, houve uma longa interrupção na obra<br />

devido à indolência do povo, como é óbvio à luz das queixas do profeta<br />

Ageu [1.4], o qual reprova os judeus severamente pela tremenda<br />

disposição em construir suas próprias casas enquanto deixavam o<br />

templo de Deus por terminar.<br />

Mas, por que ele faz menção do templo que havia sido demolido<br />

por Herodes há quarenta anos ou ainda antes disso? O templo<br />

atual, ainda que construído de forma tão magnificente e com tantos<br />

gastos, foi completado por Herodes em oito anos, contrariando as expectativas,<br />

como relata Josefo (Antiguidade, Livro xv, cap. 11). Creio


Capítulo 2 • 105<br />

ser provável que esse novo edifício do templo pode ser considerado<br />

como se fosse o antigo templo permanecendo sempre em sua condição<br />

original, a fim de se conservar veneração mais séria. E então,<br />

expressando-se na forma comum e usual, eles diziam que o templo foi<br />

trabalhosamente, e em meio às maiores dificuldades, edificado pelos<br />

pais em quarenta e seis anos.<br />

A réplica deles demonstra claramente em que espírito buscavam<br />

um sinal, pois se possuíssem a disposição de obedecer reverentemente<br />

a um profeta enviado por Deus, então não teriam rejeitado de<br />

forma tão arrogante o que o Senhor afirmou em confirmação de seu<br />

ofício. Queriam algum testemunho do poder divino, e, contudo, não<br />

receberam nada senão uma resposta segundo a medida da tacanha<br />

capacidade humana.<br />

O mesmo fazem hoje os papistas que demandam milagres, não<br />

que deem importância ao poder de Deus (pois são determinados em<br />

preferir os homens a Deus, pois não alteram sequer um fio de cabelo<br />

do que receberam dos usos e costumes). Mas, para que não pareçam<br />

rebelar-se contra Deus sem motivo, fazem dessa escusa uma capa para<br />

encobrir sua obstinação. E, assim, a mente dos incrédulos se enfurece<br />

cegamente, e pretendem ver a mão de Deus exibida ante seus olhos,<br />

contudo não admitem vê-la como divina.<br />

Quando, pois, ele ressuscitou dos mortos. Esta lembrança era<br />

semelhante àquela outra que o Evangelista já mencionara. Os discípulos<br />

não entenderam o dito de Cristo, mas o ensino que parecia ter se<br />

desvanecido vãmente em tênue nuvem, mais tarde produziu fruto em<br />

seu devido tempo. Portanto, embora muitas das ações e ditos de nosso<br />

Senhor no momento sejam obscuros, não devemos entregar-nos ao<br />

desespero, muito menos desprezar só porque não entendemos agora. 9<br />

Deve-se notar o contexto aqui: “creram na Escritura e na palavra de<br />

Cristo.” Ao comparar a Escritura com a palavra de Cristo, foram auxiliados<br />

no progresso de sua fé.<br />

9 “Il ne faut pas pourtant quitter la tout par desespoir, ne mespriser ce que nous<br />

n’entendons pas tout incontinent.”


106 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[2.23-25]<br />

Ora, quando se encontrava em Jerusalém pela páscoa, durante<br />

a festa, muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram em seu<br />

nome. Mas Jesus não se confiava a eles, porquanto conhecia todos<br />

10 os homens, e ainda porque ele não precisava que alguém<br />

desse testemunho concernente ao homem; pois ele mesmo sabia<br />

o que estava no homem.<br />

23. Muitos creram em seu nome. O Evangelista, apropriadamente,<br />

conecta esta narrativa com a anterior. Cristo não exibiu o sinal tal<br />

como os judeus buscavam. Ora, visto que não fizera nenhum progresso<br />

entre eles pela instrumentalidade de muitos milagres, exceto que<br />

eles concebiam uma fé em termos frios e abstratos, o presente evento<br />

revela que eles não mereciam que ele satisfizesse seus desejos. Houve,<br />

deveras, algum resultado provindo dos sinais, ou, seja, no fato de que<br />

muitos creram em Cristo e em seu nome, de tal sorte que prontamente<br />

confessavam seguir seu ensinamento – porquanto nome, aqui, é usado<br />

em lugar de autoridade. Essa era alguma sorte de aparência de fé e até<br />

então efêmera, mas a mesma poderia tornar-se, por fim, fé genuína e<br />

útil na preparação para proclamar a fé de Cristo a outrem. Não obstante,<br />

o que já dissemos procede, ou seja, que eles possuíam uma atitude<br />

suficientemente correta para progredirem nas obras divinas, como as<br />

fariam [mais tarde].<br />

Sua fé, contudo, não era aquela pretendida que os recomendasse<br />

aos homens, pois se convenceram de que Cristo era algum grande profeta,<br />

e provavelmente até mesmo lhe atribuíssem o ofício de Messias, o<br />

qual era então sobejamente esperado. Mas já que não compreendiam o<br />

ofício especial do Messias, sua fé era absurda, apegados como eram ao<br />

mundo e às coisas terrenas. Era também um modo frio de crer, uma vã<br />

persuasão de qualquer atitude séria do coração, pois os hipócritas dão<br />

seu assentimento ao evangelho, não que pretendam devotar-se à obe-<br />

10 “Il les cognoissoient tous.”


Capítulo 2 • 107<br />

diência de Cristo, nem pela prática sincera da religião queiram atender<br />

ao chamado divino, mas porque não ousam negar o franco reconhecimento<br />

da verdade, especialmente quando não há razão para se lhe<br />

opor. Pois assim como não ousam, voluntária e gratuitamente, declarar<br />

guerra contra Deus, assim também, quando percebem que sua doutrina<br />

se opõe a sua carne e a seus desejos perversos, imediatamente se perturbam<br />

ou, no mínimo, se retraem da fé uma vez abraçada.<br />

Portanto, quando o Evangelista diz que aqueles homens creram,<br />

não tomo esse crer como sendo uma fé pretensiosa ou não-existente,<br />

mas que se sentiram de alguma forma constrangidos a se alistar do<br />

lado de Cristo. E, no entanto, essa não era uma fé genuína e autêntica<br />

demonstrada por Cristo, excluindo-os assim do número daqueles em<br />

cuja convicção se pode confiar. Além disso, sua fé só dependia de milagres<br />

e até então não possuía nenhuma raiz no evangelho, de tal modo<br />

que não podia ser uma fé firme e permanente.<br />

Os filhos de Deus, de fato, são socorridos pelos milagres para influenciar<br />

a fé, mas que não é ainda um crer genuíno quando se veem<br />

atônitos ante a manifestação do poder de Deus de uma forma tal como<br />

que crendo meramente que o ensino é verdadeiro, sem, contudo,<br />

sujeitar-se-lhe plenamente. E assim, quando tratamos da fé em geral,<br />

tenhamos em mente que existe certa fé que só é apreendida pelo entendimento,<br />

e subsequentemente desaparece, visto que não se acha<br />

arraigada no coração, e que essa é a fé que Tiago qualifica de morta,<br />

enquanto a fé genuína é aquela que depende sempre do Espírito de regeneração<br />

[Tg 2.17,26]. Observe-se que as obras de Deus não aproveitam<br />

a todos os homens igualmente, pois enquanto que por elas alguns se<br />

deixam guiar a Deus, outros caminham apenas levados por um cego impulso,<br />

de tal sorte que, embora percebam o poder de Deus, contudo não<br />

cessam de perambular guiados por suas próprias imaginações.<br />

24. Mas Cristo não confiava. Os que explicam a expressão<br />

como se Cristo se pusesse em guarda contra eles, já que sabia não<br />

serem eles honestos e fiéis, não me parece expressar suficientemente<br />

bem a intenção do Evangelista. Ainda menos adequada é aquela


108 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que Agostinho usava para persuadir os catecúmenos. Ao contrário,<br />

o Evangelista quer dizer, em minha opinião, que não eram considerados<br />

por Cristo como legítimos discípulos, senão que os reputava<br />

como levianos e frívolos.<br />

Esta passagem precisa ser criteriosamente examinada: nem todo<br />

aquele que professa pertencer a Cristo desfruta de sua real estima.<br />

Contudo, é preciso acrescentar a razão que segue imediatamente.<br />

Porque ele mesmo sabia o que estava no homem. Não existe<br />

nada mais danoso do que a hipocrisia. Por essa razão, entre outras,<br />

ela é um erro excessivamente comum. Dificilmente existe uma pessoa<br />

que não se agrade de si mesma, e enquanto nos enganamos com fúteis<br />

lisonjas, cremos que Deus é tão cego quanto nós. Aqui, porém, somos<br />

advertidos sobre quão amplamente seu juízo difere do nosso, pois ele<br />

vê claramente aquelas coisas que escapam a nossa observação, visto<br />

que as mesmas se ocultam por detrás de máscaras. Por isso, ele as<br />

avalia segundo sua fonte oculta, isto é, segundo a atitude mais secreta<br />

do coração, as coisas que reluzem aos nossos olhos com seu falso brilho.<br />

Isso é precisamente o que Salomão expressa em Provérbios 21.2:<br />

“Todo caminho do homem é reto aos seus olhos, mas o Senhor sonda<br />

os corações.” Lembremo-nos, pois, que só são verdadeiros discípulos<br />

de Cristo aqueles que são aprovados por ele, porque só ele é o árbitro<br />

competente e juiz da presente matéria.<br />

Onde o Evangelista afirma que Cristo conhece todos os homens,<br />

pode-se perguntar se sua intenção visava somente àqueles de quem se<br />

referia diretamente ou se a referência é a toda a raça humana. Muitos o<br />

estendem à natureza comum do homem, e creem que o mundo inteiro<br />

é aqui condenado de ímpia e infiel hipocrisia. E, certamente, ele é um<br />

genuíno juízo que nada encontra nos homens para que Cristo os aceite<br />

no número dos seus. Mas não vejo como isso se enquadra no contexto,<br />

e, portanto, o limito aos que foram mencionados.<br />

Como era possível que se nutrisse dúvida sobre onde Cristo teria<br />

obtido tal conhecimento, o Evangelista antecipa a pergunta e replica<br />

que tudo quanto nos homens se acha oculto aos nossos olhos é


Capítulo 2 • 109<br />

visto por Cristo, de modo que ele podia, por direito inerente, fazer<br />

distinção entre os homens. Cristo, pois, que conhece os corações, não<br />

tinha qualquer necessidade de um mestre para aprender que sorte de<br />

homens era aqueles. Mas ele sabia que eram impregnados de uma natureza<br />

e atitude tais que, com toda justiça, os considerava como se<br />

fossem estranhos aos seus olhos.<br />

Há quem pergunte se nós, segundo o exemplo de Cristo, podemos<br />

também suspeitar daqueles que não nos dão prova de sua probidade.<br />

Isso, porém, nada tem a ver com a presente passagem. Nosso juízo é<br />

em extremo diferente do dele. Cristo conhecia as próprias raízes das<br />

árvores, nós, porém, só podemos conhecer a natureza de alguma árvore<br />

individual à luz dos frutos externos. Além disso, como diz Paulo,<br />

o amor não suspeita mal [1 Co 13.5], e não temos qualquer direito de<br />

suspeitar, sem boas razões, daqueles que nos são desconhecidos. Visto,<br />

porém, que nem sempre podemos ser enganados pelos hipócritas,<br />

e que a Igreja não pode se expor demasiadamente às fraudes dos perversos,<br />

pertence a Cristo munir-nos com espírito crítico.


Capítulo 3<br />

[3.1-6]<br />

Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos,<br />

um dos principais dos judeus. Ele foi ter com Jesus de noite,<br />

e lhe disse: Rabi, sabemos que tu és mestre vindo da parte de<br />

Deus; pois ninguém pode fazer esses sinais que fazes, a não<br />

ser que Deus esteja com ele. Jesus respondeu e lhe disse: Em<br />

verdade, em verdade te digo: A não ser que o homem nasça de<br />

novo, ele não pode ver o reino de Deus. Nicodemos lhe disse:<br />

Como pode um homem nascer sendo já velho? Pode entrar novamente<br />

no ventre de sua mãe e nascer? Jesus respondeu: Em<br />

verdade, em verdade te digo: A não ser que alguém nasça da<br />

água e do Espírito, ele não pode entrar no reino de Deus. O que<br />

nasce da carne é carne; e o que nasce do Espírito é espírito.<br />

1. Ora, havia um homem. Na pessoa de Nicodemos, o Evangelista<br />

então nos mostra quão transitória e frágil era a fé daqueles que se<br />

achavam atônitos ante a vista dos milagres de Cristo e pressurosamente<br />

se apinhavam ao seu redor. Pois esse homem pertencia à ordem<br />

dos fariseus e desfrutava da categoria de governante em sua nação, e,<br />

portanto, se avantajava em muito aos demais. A plebe, em sua maioria,<br />

era influenciada pelos levitas. Mas, quem não teria imaginado que um<br />

homem forte em erudição e experiência era também sério e sábio?<br />

Entretanto, à luz da resposta de Cristo, é óbvio que nada estava mais<br />

distante de seu propósito do que o desejo de aprender os rudimentos


112 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

da religião. Se um governante entre os homens é menos que um menino,<br />

o que pensaríamos do público em geral? Ora, embora o alvo do<br />

<strong>Evangelho</strong> fosse mostrar-nos, como num espelho, quão poucos em Jerusalém<br />

se predispunham a receber o evangelho, contudo esta história<br />

é em extremo proveitosa também em outras facetas. Particularmente,<br />

porque nela aprendemos acerca da natureza corrupta da raça humana,<br />

que é o ingresso certo de entrada na escola de Cristo, por cujos<br />

rudimentos devemos ser formados a fim de fazermos progresso na<br />

doutrina celestial. Pois a suma do discurso de Cristo consiste em que,<br />

para sermos discípulos legítimos, temos que transformar-nos em novas<br />

criaturas. Mas, antes de avançarmos um pouco mais, devemos, à<br />

luz dos detalhes narrados pelos Evangelistas, considerar os obstáculos<br />

que impediam Nicodemos de render-se inteiramente a Cristo.<br />

Entre os fariseus. Naturalmente, esse era, para Nicodemos, um<br />

título de honra entre seus compatriotas. O Evangelista, porém, não<br />

lho atribui em função da honra, mas, ao contrário, o realça como um<br />

obstáculo à sua ousada e espontânea visita a Cristo. Daí sermos lembrados<br />

de que os imponentes deste mundo são, na maioria das vezes,<br />

apanhados nas piores armadilhas. Aliás, vemos muitos deles tão firmemente<br />

presos que sequer bafejam a mais ínfima oração ao céu em<br />

toda sua vida.<br />

Em outro lugar, explicamos por que eram chamados fariseus, 1 pois<br />

se vangloriavam de ser os únicos intérpretes da lei, como se possuíssem<br />

a essência e o significado oculto da Escritura. E por essa razão se<br />

chamavam Perushim. 2 Ainda que os essênios granjeassem a reputação<br />

de ser santos em decorrência de sua vida mais austera, eram como<br />

1 Os pontos de vista que nosso autor tem do termo se acham plenamente expressos e<br />

examinados em Harmony, volume 1, página 281; porém não se pode presumir que este<br />

<strong>Comentário</strong> sobre o <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong>, que veio a lume no ano de 1553, faça referência<br />

à Harmonia, a qual não foi publicada senão em 1555. A prioridade da data (1548) do<br />

<strong>Comentário</strong> à Epístola aos Filipenses mui naturalmente nos leva a consultar aquela<br />

passagem, na qual Paulo diz que era um fariseu [3.5].<br />

2 Comm. on Harm. Of Gospel sobre Mateus 5.20 e 23.2; cf. também Comm. on Phil. 3.5.<br />

Calvino deriva ‘fariseu’ de parash, significando dividir, separar, ou declarar distintamente.<br />

Calvino escolhe o último significado, enquanto que os eruditos modernos geralmente<br />

preferem o primeiro, e então os descrevem como ‘os separados’.


Capítulo 3 • 113<br />

eremitas e renunciaram a vida e costumes comuns dos homens, e, por<br />

isso, a seita dos fariseus era tida na mais elevada consideração. Além<br />

disso, o Evangelista não menciona apenas que Nicodemos fazia parte<br />

da ordem dos fariseus, mas também era um dos líderes máximos de<br />

sua nação.<br />

2. Ele veio ter com Jesus de noite. À luz do fato de vir à noite,<br />

inferimos que ele era bastante tímido. Seus olhos nada mais viam senão<br />

sua distinção pessoal. 3 Também pode ser que tenha sido impedido<br />

pela vergonha, porquanto os homens ambiciosos acreditam que sua<br />

reputação é arruinada se uma vez descem do pedestal de mestres para<br />

a categoria de alunos. Não há dúvida de que o mesmo se ensoberbeceu<br />

com a fútil opinião de que era um erudito. Em suma, uma vez que<br />

nutria um elevado conceito acerca de si mesmo, não suportava a ideia<br />

de resigná-lo de vez. E, não obstante despontar nele alguma semente<br />

de piedade, pois, ouvindo que um profeta de Deus chegara, ele não faz<br />

pouco nem negligencia o ensino trazido do céu, e se comove de certo<br />

desejo pelo mesmo – desejo este emanado simplesmente do temor e<br />

reverência por Deus. Muitos se sentem excitados por uma leve curiosidade,<br />

inquirindo sofregamente por novidades, mas não há dúvida de<br />

que a religião e certa percepção da consciência impeliram Nicodemos<br />

a querer conhecer a doutrina de Cristo de uma forma mais pessoal e<br />

direta. E ainda que essa semente há muito estivesse oculta e morta, depois<br />

da morte de Cristo produz tal fruto como ninguém jamais haveria<br />

esperado [19.39].<br />

Rabi, sabemos. Estas palavras equivalem àquela sua expressão:<br />

“Rabi, sabemos que tu vieste como mestre.” Visto, porém, que os homens<br />

eruditos eram então comumente chamados Rabi, 4 Nicodemos<br />

primeiro saúda a Cristo na maneira usual, atribuindo-lhe o título ordinário<br />

e, subsequentemente, declara que aquele que exercia o ofício de<br />

mestre era enviado de Deus. E deste princípio depende toda a autoridade<br />

dos mestres na Igreja. Pois é tão somente da Palavra de Deus que<br />

3 “De sa grandeur et reputation.”<br />

4 “Qui signific Maistre.”


114 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

devemos aprender a sabedoria, e por isso a ninguém mais se deve ouvir<br />

para a salvação senão aqueles por cuja boca Deus fala. E devemos<br />

observar que, embora a religião estivesse profundamente corrompida<br />

e quase que subvertida entre os judeus, sempre mantiveram o princípio<br />

de que a nenhum homem era lícito ensinar a menos que o mesmo<br />

viesse de Deus. Visto, porém, que ninguém se vangloria mais arrogante<br />

e categoricamente de seu título divino do que os falsos profetas, eles<br />

precisam ser testados pelo espírito de discernimento. Consequentemente,<br />

Nicodemos acrescenta que é indubitável que Cristo tenha sido<br />

enviado por Deus, pois este exibia nele seu poder com tal virtude que<br />

não se podia negar que Deus estava com ele. Ele toma como matéria<br />

axiomática que Deus não costuma operar senão através de seus ministros,<br />

para que assim pudesse pôr seu selo sobre o ofício que lhes<br />

confiara. E ele está certo, pois Deus sempre designou os milagres para<br />

que fossem selos de sua doutrina. Ele está também certo em reconhecer<br />

Deus como o único autor dos milagres, quando diz que ninguém<br />

pode fazer tais sinais a não ser que Deus esteja com ele. Equivale dizer<br />

que não eram atos humanos, senão que o poder de Deus reinava e permanecia<br />

nitidamente neles. Numa palavra, os milagres têm um duplo<br />

resultado: preparar-nos para a fé e então imprimir maior fortalecimento<br />

naquele que tem sido concebido pela Palavra. E assim Nicodemos<br />

apropriou-se corretamente da primeira parte, visto que, à luz dos milagres,<br />

ele reconhece Cristo como um legítimo profeta de Deus.<br />

Não obstante, isso parece inconclusivo porque, já que os profetas<br />

podem enganar os ignorantes com suas fraudes tão perfeitamente<br />

como se estivessem, através de sinais genuínos, provando ser ministros<br />

de Deus, que diferença haverá entre a verdade e a falsidade, se<br />

porventura a fé dependesse de milagres? Aliás, Moisés declara expressamente<br />

que dessa forma somos testados se de fato amamos a Deus<br />

[Dt 13.3]. Conhecemos também a advertência de Cristo, bem como a<br />

de Paulo, ou seja, que os crentes devem precaver-se dos sinais mentirosos<br />

pelos quais o Anticristo ofusca muitos olhos [Mt 22.24]. Minha<br />

resposta é que isso é feito pela justa permissão de Deus, a fim de que


Capítulo 3 • 115<br />

os que merecem sejam enganados pela astúcia de Satanás. Digo, porém,<br />

que tal fato não impede que o poder de Deus se manifeste aos<br />

eleitos através de milagres, os quais costumam ser-lhes uma valiosa<br />

confirmação da genuína e sã doutrina. E assim, Paulo se gloria de que<br />

seu apostolado era confirmado por meio de sinais e prodígios [2Co<br />

12.12]. Portanto, por mais que Satanás tente manter Deus envolto<br />

em trevas, contudo, quando os olhos se abrem e a luz da sabedoria<br />

espiritual resplandece, os milagres são atestados bastante fortes da<br />

presença de Deus, conforme Nicodemos aqui declara.<br />

3. Em verdade, em verdade te digo. Cristo repete a expressão<br />

“em verdade” [amém] com o intuito de atrair a atenção. Pois quando<br />

está para falar do mais importante e mais sério de todos os temas,<br />

realmente precisava fazer Nicodemos mais atento. De outra forma, ele<br />

poderia ouvir todo este discurso displicente e levianamente. 5 Tal, pois,<br />

é o propósito da dupla afirmação.<br />

Ainda que este discurso pareça um tanto forçado e inoportuno,<br />

contudo era o modo mais adequado de Cristo começar. Pois assim<br />

como é inútil semear sementes num solo sem cultivo, também a doutrina<br />

do evangelho será negligentemente desperdiçada a menos que o<br />

ouvinte seja antes despertado e devidamente preparado à obediência<br />

e instrução. Cristo percebeu que a mente de Nicodemos era tão cheia<br />

de espinhos e asfixiada por tantas ervas daninhas, que dificilmente<br />

se encontraria ali espaço para o ensinamento espiritual. A presente<br />

exortação era, pois, como uma aradura a expurgá-lo, a fim de que nada<br />

impedisse de o ensino frutificar. Portanto, lembremo-nos de que isso<br />

foi expresso a apenas um homem, a fim de que o Filho de Deus se nos<br />

dirija diariamente no mesmo teor. Pois qual de nós dirá que se acha<br />

tão isento de afeições corruptas que não necessite de tal purificação?<br />

Se, pois, queremos progredir satisfatória e proveitosamente na escola<br />

de Cristo, então aprendamos a começar daqui.<br />

5 “L’oyant seulement comme en pensant ailleurs, et sans en tenir grand conte” – “ouvindo-o<br />

meramente como se estivesse pensando em algo mais, e sem nutrir muita preocupação<br />

com isso.”


116 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

A não ser que o homem nasça de novo. Em outros termos, enquanto<br />

lhe faltar a coisa mais importante no reino de Deus, não creio<br />

que você realmente me reconheça como Mestre, pois seu primeiro passo<br />

no reino de Deus é converter-se num novo homem. Visto, porém,<br />

que esta é uma passagem tão extraordinária, cada parte dela precisa<br />

ser detalhadamente examinada.<br />

Ver o reino de Deus vem a ser o mesmo que entrar no reino de<br />

Deus, como prontamente transparece do contexto. Mas estão equivocados<br />

aqueles que creem que o reino de Deus é o mesmo que céu.<br />

Antes, é a vida espiritual, cujo ponto de partida é a fé, aqui e agora, e<br />

que diariamente cresce em consonância com o progresso contínuo da<br />

mesma fé. O sentido, portanto, é que ninguém pode realmente unir-se<br />

à Igreja e ser reconhecido entre os filhos de Deus sem que antes seja<br />

renovado. Portanto, esse fato mostra de forma sucinta qual é o princípio<br />

da vida cristã.<br />

Ao mesmo tempo, somos instruídos por essa expressão que desde<br />

o nascimento somos alienados e completamente estranhos ao reino<br />

de Deus, como igualmente existe uma perpétua oposição entre Deus<br />

e nós, até que ele nos transforme pela operação [do Espírito] no segundo<br />

nascimento. Pois a afirmação é geral e compreende toda a raça<br />

humana. Se Cristo dissesse a apenas um homem ou a uns poucos que<br />

não poderiam entrar no céu, a menos que nasçam de novo, poderíamos<br />

supor que isso apontava só para certa classe de pessoas, mas ele<br />

está se referindo a todos sem exceção. Pois a linguagem é ilimitada e<br />

contém o mesmo teor de uma expressão de cunho universal, como:<br />

“Todo aquele que não nascer de novo...”.<br />

Além do mais, pelo termo nascer de novo ele tem em mente não a<br />

reparação de uma parte, mas a renovação da natureza inteira. Daqui se<br />

deduz que não há em nós absolutamente nada que não seja defectivo,<br />

pois se a reforma é necessária na totalidade e em cada parte, então a<br />

corrupção deve ter se expandido por toda parte. Falaremos sucintamente<br />

sobre isso de maneira mais plena. Erasmo, seguindo a opinião<br />

de Cirilo, incorretamente traduziu o advérbio como de cima. Reconhe-


Capítulo 3 • 117<br />

ço que em grego o significado é ambíguo, mas estou ciente de que<br />

Cristo falou a Nicodemos em hebraico. Nesse caso, não teria havido<br />

qualquer ambiguidade a confundir Nicodemos em sua infantil hesitação<br />

sobre o segundo nascimento da carne. É por isso que ele tomou as<br />

palavras de Cristo em nenhum outro sentido senão que o homem tem<br />

de nascer segunda vez antes de ser recebido no reino de Deus.<br />

4. Como pode um homem nascer? Ainda que a forma de expressão<br />

de Cristo não ocorra expressamente na lei e nos profetas, todavia,<br />

como renovação, é por toda parte mencionada na Escritura e constitui<br />

um dos princípios primordiais da fé, e se torna óbvio quão imperfeitamente<br />

instruídos eram os escribas de então na leitura das Escrituras.<br />

Certamente, este homem não era o único negligente em desconhecer<br />

a graça da regeneração. O elemento primordial na doutrina da piedade<br />

era negligenciado em razão de quase todos eles se acharem preocupados<br />

com vãs sutilezas.<br />

O papado atual nos exibe um exemplo similar em seus teólogos,<br />

pois gastam toda sua vida em profundas especulações, contudo<br />

conhecem menos acerca de tudo o que pertence ao culto divino, à certeza<br />

de nossa salvação ou à prática da piedade, do que um sapateiro<br />

ou um agricultor conhece de astronomia. E o que é pior, deleitando-se<br />

com os mistérios exóticos, francamente desprezam o genuíno ensino<br />

da Escritura como algo indigno da categoria de mestres.<br />

Nem precisamos sentir-nos perplexos ante o fato de Nicodemos<br />

tropeçar numa palha, por assim dizer, pois é uma justa vingança divina<br />

que aqueles que pensam de si como sendo os mais excelentes e eminentes<br />

mestres, e para quem a simplicidade ordinária da doutrina é<br />

algo vil e vulgar, assustem-se diante de coisas as mais ínfimas.<br />

5. A não ser que o homem nasça da água. Esta passagem tem<br />

sido explicada de várias formas. Alguns acreditam que aqui se expressam<br />

distintamente duas partes da regeneração, e que pelo termo água<br />

subentende-se a negação do velho homem, enquanto tomam o termo<br />

Espírito como sendo a nova vida. Outros pensam que há aqui uma antítese<br />

implícita, como se Cristo estivesse contrastando água e Espírito


118 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

– ou seja, elementos puros e líquidos – com a natureza terrena e animal<br />

do homem. Por isso tomam este dito como sendo de caráter alegórico,<br />

a saber, que Cristo estava recomendando a nos despirmos de nossa<br />

pesada e insuportável massa de carne e a nos tornarmos como água e<br />

ar, a fim de nos movermos para cima ou, pelo menos, não cairmos por<br />

terra sob um fardo tão pesado. Mas ambas as opiniões me parecem<br />

alheias à intenção de Cristo.<br />

Crisóstomo, com quem a maioria concorda, relaciona o termo<br />

água com o batismo. O significado, então, seria que, por meio do batismo,<br />

entramos no reino de Deus, porque então o Espírito de Deus<br />

nos regenera. Daí surgir a crença na absoluta necessidade do batismo<br />

para a esperança de vida eterna. Mas ainda que concordássemos que<br />

neste ponto Cristo está falando do batismo, não devemos forçar suas<br />

palavras a ponto de fazê-lo restringir a salvação ao sinal externo. Ao<br />

contrário, ele conecta água com o Espírito porque, sob esse sinal visível,<br />

ele testifica e sela a novidade de vida, a qual, tão somente através<br />

de seu Espírito, Deus efetua em nós. É verdade que somos excluídos<br />

da salvação se desprezarmos o batismo; e, neste caso, confesso ser<br />

ele necessário. É absurdo, porém, confinar ao sinal a certeza da salvação.<br />

No que diz respeito a esta passagem, não posso de forma alguma<br />

convencer-me de que Cristo esteja falando do batismo, porquanto isso<br />

teria sido inoportuno. E devemos ter sempre em mente o propósito<br />

de Cristo, o qual já explicamos como sendo o desejo de impelir Nicodemos<br />

à novidade de vida, porquanto não seria capaz de receber o<br />

evangelho enquanto não começasse a ser um outro homem.<br />

Para sermos filhos de Deus temos que nascer de novo, e que o<br />

Espírito Santo é o autor desse segundo nascimento é, pois, uma afirmação<br />

única e simples. Pois enquanto Nicodemos sonhava com a<br />

regeneração (παλιγγενεσία) ou transmigração ensinada por Pitágoras,<br />

que imaginava que as almas, após a morte de seus corpos, entrava em<br />

outros corpos, Cristo, para libertá-lo desse erro, acrescenta, à maneira<br />

de explicação, que nascer segunda vez não é um evento que sucede


Capítulo 3 • 119<br />

naturalmente, e nesse ato ninguém se reveste de um novo corpo, 6 mas<br />

nasce enquanto é renovado na mente e coração, mediante a graça do<br />

Espírito.<br />

Consequentemente, nosso Senhor empregou as palavras Espírito<br />

e água no mesmo sentido, e isso não deve ser tomado como sendo uma<br />

interpretação abrupta e forçada. Quando se menciona o Espírito na<br />

Escritura, uma forma frequente e comum de expressão é acrescentar<br />

a palavra água ou fogo, para expressar seu poder. De vez em quando,<br />

ouvimos de Cristo batizando com o Espírito Santo e com fogo, quando<br />

fogo não significa algo distinto do Espírito, mas simplesmente mostra<br />

a natureza de seu poder em nós.<br />

É uma questão de pouca importância anteceder ele a palavra<br />

água. Quer dizer simplesmente que esta frase flui mais facilmente que<br />

outra, já que uma afirmação clara e direta segue a metáfora. É como<br />

se Cristo dissesse que ninguém será filho de Deus enquanto não for<br />

renovado pela água, e que essa água é o Espírito que nos purifica de<br />

uma nova forma, e que, mediante seu poder derramado sobre nós,<br />

nos comunica a energia da vida celestial, quando, por natureza, somos<br />

completamente estéreis. E, com o fim de reprovar a Nicodemos em<br />

razão de sua ignorância, Cristo, mui apropriadamente, usa uma forma<br />

de linguagem comum na Escritura, pois Nicodemos deve por fim ter<br />

reconhecido que o que Cristo dizia fora tomado do ensino ordinário<br />

dos profetas.<br />

Pelo termo água, pois, subentende-se simplesmente a purificação<br />

e vivificação interior efetuadas pelo Espírito Santo. Tampouco é<br />

incomum empregar-se a conjunção e explicitamente, quando a última<br />

sentença é uma explicação da primeira. E também o contexto me<br />

apoia, pois quando Cristo adiciona imediatamente a razão por que<br />

temos que nascer de novo, ele mostra, sem mencionar água, como a<br />

novidade de vida que ele requer provém unicamente do Espírito. Por<br />

isso se deduz que não se deve separar a água de o Espírito.<br />

6 “Qui imaginoit que los ames apres la mort de leurs corps entroyent dedans des autres<br />

corps.”


120 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

6. O que é nascido da carne. Ele mostra, por meio de um contraste,<br />

que o reino de Deus nos está fechado, a menos que se nos abra um acesso<br />

através de um novo nascimento. Pois ele toma como fato irrefutável<br />

que não podemos entrar no reino de Deus, a menos que sejamos espirituais.<br />

Portanto, segue-se que todos nós estamos naturalmente banidos<br />

do reino de Deus, destituídos da vida celestial e escravos da morte.<br />

Além disso, quando Cristo, aqui, argumenta que os homens têm<br />

que nascer de novo, visto que são simplesmente carne, ele indubitavelmente<br />

envolve toda a raça humana sob o termo carne. Carne significa,<br />

neste texto, não o corpo, mas a alma, e, consequentemente, cada parte<br />

dela. Os teólogos papistas se mostram estúpidos 7 restringindo-a àquela<br />

parte a que chamam sensual, pois o argumento de Cristo teria sido,<br />

neste caso, inepto para necessitarmos de um segundo nascimento,<br />

visto que uma parte de nós é corrupta. Mas se carne for contrastada<br />

com o Espírito, como algo deteriorado com o que é sadio, algo torto<br />

com o que é reto, aquilo que é poluído com o que é santo, o imundo<br />

com o que é puro, podemos prontamente concluir que toda a natureza<br />

humana está, em uma só palavra, condenada. Cristo, portanto, está<br />

dizendo que nosso entendimento e razão estão corrompidos, já que<br />

são carnais, e que todas as afeições do coração são depravadas e perversas,<br />

já que também são carnais.<br />

Aqui, porém, pode-se suscitar uma dificuldade, a saber: visto que<br />

a alma não é gerada por geração humana, em nossa parte principal<br />

não nascemos da carne. Isso tem levado muitos a pensarem que não<br />

só nosso o corpo tem sua origem em nossos pais, mas que nossas<br />

almas também são geradas por propagação. Pois absurdamente imaginava-se<br />

que o pecado original, que propriamente se acha sediado na<br />

alma, seria propagado de um só homem a toda sua posteridade, a menos<br />

que todas as almas emanassem de sua alma, como de uma fonte.<br />

E de fato, à primeira vista, as palavras de Cristo parecem sugerir que<br />

somos carne justamente porque nascemos de carne.<br />

7 “Monstrent bien qu’ils n’em entendent rien.”


Capítulo 3 • 121<br />

Respondo que as palavras de Cristo outra coisa não significam<br />

senão que, ao nascermos, somos todos carnais e que, desde que entramos<br />

neste mundo como mortais, outra coisa nossa natureza não tem<br />

provado ser senão que é carne. Ele está simplesmente fazendo distinção<br />

entre a natureza e um dom sobrenatural. Pois a corrupção de todo<br />

o gênero humano, só na pessoa de Adão, não procedeu de geração,<br />

mas da ordenança de Deus. Como num só homem ele nos adornou a<br />

todos, assim também nele privou a todos nós de seus dons. Portanto,<br />

não recebemos nosso vício e corrupção de nossos pais, mas somos<br />

todos igualmente corrompidos tão somente em Adão, porque, imediatamente<br />

após sua queda, Deus retirou da natureza humana o que lhe<br />

havia dado.<br />

Aqui surge outra dificuldade. É indiscutível que em nossa natureza<br />

degenerada e viciada ainda permanece algum resquício dos dons<br />

divinos. Portanto, segue-se que não somos pervertidos em todas as<br />

partes. A solução é simples, ou, seja: os dons que o Senhor nos deixou<br />

após a queda são indubitavelmente dignos de louvor, julgados em si<br />

mesmos. Visto, porém, que o contágio do mal permeia todas as partes,<br />

em nós nada se achará puro e livre de toda e qualquer mácula. Que<br />

algum conhecimento de Deus nos seja inerente; que alguma distinção<br />

entre o bem e o mal esteja gravada em nossas consciências; que tenhamos<br />

a capacidade de prover sustento para a nossa presente vida; que,<br />

em suma, exaltamos os brutos de muitas formas, é por si só excelente,<br />

visto que procede de Deus.<br />

Todas essas coisas, porém, estão poluídas em nós, assim como o<br />

vinho que ficou completamente deteriorado e contaminado pelo mau<br />

cheiro de seus odres perde a amenidade de seu aroma e tem um sabor<br />

amargo e horrível. Pois o conhecimento que ora permanece nos<br />

homens nada é senão terrível fonte de idolatria e de todas as superstições.<br />

O juízo de escolher e distinguir as coisas é, em parte, cego e<br />

tolo, e em parte imperfeito e confuso. Todo esforço que temos é despendido<br />

em vaidade e trivialidades e a própria vontade se precipita de<br />

ponta cabeça com intenso ímpeto para o mal. E assim, em toda nossa


122 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

natureza, não existe sequer uma partícula de retidão. E, por isso, fica<br />

evidente que temos de ser formados para o reino de Deus através de<br />

um segundo nascimento. E o significado das palavras de Cristo é este:<br />

visto que a pessoa que só nasce do ventre de sua mãe é carnal, então<br />

ela deve ser moldada de novo pelo Espírito para que comece a ser espiritual.<br />

E a palavra Espírito é aqui usada em dois sentidos – para graça<br />

e para o efeito da graça. Em primeiro lugar, Cristo está nos ensinando<br />

que o Espírito de Deus é o único Autor de uma natureza pura e reta, e<br />

a seguir ele diz que somos espirituais, visto que somos renovados por<br />

seu poder.<br />

[3.7-12]<br />

Não te admires por eu te dizer: Deveis nascer de novo. O vento<br />

sopra onde quer e tu ouves sua voz, mas não sabes donde<br />

vem e para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do<br />

Espírito. Nicodemos respondeu e lhe disse: Como pode ser<br />

isso? Respondeu Jesus e lhe disse: Tu és mestre de Israel, e não<br />

entendes essas coisas? Em verdade, em verdade te digo: Nós falamos<br />

do que sabemos e testificamos do que temos visto; e não<br />

aceitais nosso testemunho. Se vos falei das coisas terrenas, e<br />

não me credes, como crereis, se vos falar das coisas celestiais?<br />

7. Não te admires. Os comentaristas têm torcido esta passagem<br />

de várias formas. Alguns pensam que ela constitui um libelo contra<br />

a estupidez de Nicodemos e dos que pensavam como ele, como se<br />

Cristo estivesse dizendo que não havia nada de surpreendente nisso<br />

se antes não tomassem posse do mistério da regeneração celestial,<br />

visto que nem mesmo na ordem natural compreendiam a razão das<br />

coisas sensíveis.<br />

Outros elaboram um significado um tanto engenhoso, mas muitíssimo<br />

forçado, a saber: que, assim como o vento sopra livremente,<br />

também somos postos em liberdade pela ação regeneradora do Espírito,<br />

e assim, livres do jugo do pecado, podemos correr voluntariamente


Capítulo 3 • 123<br />

para Deus. Igualmente estranha ao pensamento de Cristo é a sugestão<br />

de Agostinho, ou seja, que o Espírito de Deus opera como lhe apraz.<br />

Crisóstomo e Cirilo têm algo melhor, ou seja, que a comparação é tomada<br />

do vento e se aplica a esta passagem assim: embora sua força<br />

seja sentida, sua origem e causa são ocultas. Ainda que não discorde<br />

muito da opinião deles, contudo tentarei explicar o pensamento de<br />

Cristo mais clara e solidamente.<br />

Meu ponto de partida é o fato de Cristo tomar por empréstimo<br />

uma comparação da ordem da natureza. Nicodemos considerou incrível<br />

o que ouvira acerca da regeneração e da nova vida, porquanto o<br />

modo dessa regeneração ia além de sua compreensão. Com o fim de<br />

resolver tal sorte de dificuldade, Cristo lhe ensina que mesmo na esfera<br />

da vida física nos deparamos com o maravilhoso poder de Deus,<br />

cujo princípio está oculto. Pois todos recebem do ar sua respiração vital,<br />

ainda que o movimento do ar nos seja imperceptível. Contudo, não<br />

sabemos donde ele vem nem para onde vai. Se nesta vida frágil e transitória<br />

Deus age tão poderosamente que nos arranca admiração à vista<br />

de seu poder, quão absurdo é querer medir, pela tacanha apreensão<br />

de nossa mente, sua operação secreta na vida celestial e supernatural,<br />

não crendo em nada mais além daquilo que vemos!<br />

Portanto, quando Paulo explode com indignação contra aqueles<br />

que rejeitam a doutrina da ressurreição, com base na aparente impossibilidade<br />

de um corpo que ora se acha sujeito à putrefação ser outra<br />

vez revestido com a bem-aventurada imortalidade, depois de se achar<br />

reduzido a pó e a nada, ele os reprova, acusando-os de estupidez em<br />

não considerarem o similar poder de Deus que age num grão de trigo.<br />

Porquanto a semente não germina enquanto não chega ao estágio de<br />

putrefação [1Co 15.36,37].<br />

Eis aqui a portentosa sabedoria que arrancou de Davi exclamação<br />

no Salmo 104.24. Portanto, são extremamente estúpidos aqueles<br />

que, ante a inspiradora ordem comum da natureza, não elevando um<br />

pouco mais alto sua vista para reconhecerem que a mão de Deus é<br />

muito mais poderosa no reino espiritual de Cristo. Além disso, quando


124 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Cristo lhe adverte a não se maravilhar, não se deve entender como se<br />

ele estivesse nos ordenando a desprezar tão esplêndida obra de Deus,<br />

obra esta digna da mais sublime admiração. Antes, ele quer dizer que<br />

não devemos ficar fascinados com um espanto tal que nossa fé venha<br />

a ser prejudicada, pois muitos rejeitam, como não passando de fábula,<br />

o que acreditam ser por demais elevado e difícil. Em outros termos,<br />

não nutramos dúvida ante o fato de que, pelo Espírito de Deus, somos<br />

remodelados e feitos um novo homem, ainda que a forma como Deus<br />

o faz nos seja oculta.<br />

8. O vento sopra onde quer. Estritamente falando, não significa<br />

que seu sopro seja voluntário, mas porque o movimento é livre, errante<br />

e suscetível de mudanças, pois o ar, às vezes, toma esta direção e,<br />

às vezes, aquela. E tal fato é relevante, pois, se ele soprasse numa só<br />

direção, como o faz a água, seria menos portentoso.<br />

Assim é todo aquele que é nascido do Espírito. A intenção de<br />

Cristo é que o movimento e operação do Espírito de Deus não seja<br />

menos perceptível na renovação do homem do que o movimento do<br />

ar nesta vida terrena e externa. Seu modo, porém, é oculto. Portanto,<br />

seremos ingratos e mesquinhos se não venerarmos o incompreensível<br />

poder de Deus na vida celestial, da qual ele nos revela um exemplo tão<br />

extraordinário neste mundo, e se lhe atribuirmos menos em restaurar<br />

a salvação de nossas almas do que em preservar o estado de nossos<br />

corpos. A aplicação será um pouco mais clara se formularmos a sentença<br />

assim: Assim é o poder e eficácia do Espírito Santo no homem<br />

renovado.<br />

9. Como pode ser isso? Percebemos aqui qual era a principal dificuldade<br />

de Nicodemos. Tudo o que ele ouvia lhe parecia extravagante,<br />

porque ele não entendia seu modo. Para nós não há pior obstáculo do<br />

que nosso orgulho pessoal; pois sempre queremos ser mais sábios do<br />

que o somos, e por isso rejeitamos com diabólico orgulho tudo quanto<br />

nossa própria razão não pode explicar, como se fosse justo limitar o<br />

infinito poder de Deus segundo nossa tacanha capacidade. Em certa<br />

medida, é justo inquirirmos sobre o método e a razão das obras de


Capítulo 3 • 125<br />

Deus, contanto que seja com sobriedade e reverência. Nicodemos, porém,<br />

rejeita como se fosse uma fábula, objetando que não o via como<br />

algo possível. Examinaremos este tema, de modo mais minucioso, no<br />

capítulo 6.<br />

10. Tu és mestre de Israel. Ao perceber que estava desperdiçando<br />

seu tempo e energia, instruindo um homem tão orgulhoso, Cristo<br />

passa a repreendê-lo. Indubitavelmente, com tal classe de pessoas<br />

nenhum ensino jamais logrará progresso enquanto não se destruir a<br />

perversa confiança com que se sentem enfatuadas. Além do mais, essa<br />

é uma objeção muito apropriada para subjugar seu orgulho, pois Cristo<br />

critica sua ignorância justamente sobre o assunto do qual pensava<br />

ser mais bem informado e mais sábio. Ele acreditava ser importante e<br />

inteligente não admitir o impossível, porquanto a pessoa que aceita<br />

algo com base na palavra de outrem, antes de ponderar bem, é insensatamente<br />

crédula. No caso de Nicodemos, porém, com sua magistral<br />

arrogância, o que é ridículo, porquanto se encontra mais perdido acerca<br />

dos princípios rudimentares do que qualquer aluno.<br />

Uma dúvida como essa é vil e vexatória, pois que religião é a<br />

nossa, que conhecimento de Deus, que norma da reta conduta, que<br />

esperança da vida eterna, se não cremos que uma pessoa é renovada<br />

pelo Espírito de Deus? Há certa ênfase, pois, na palavra isso, uma vez<br />

que a Escritura reiteradamente insiste sobre essa parte da doutrina,<br />

ela não deve ser ignorada mesmo pelos mais novatos. Daí ser totalmente<br />

intolerável que uma pessoa que professa ser mestra na Igreja<br />

de Deus seja ignorante e inábil nela.<br />

11. Nós falamos do que sabemos. Alguns aplicam isso a Cristo e<br />

a <strong>João</strong> Batista; outros afirmam que o plural substitui o singular. Mas<br />

não tenho dúvida de que Cristo está se juntando a todos os profetas<br />

de Deus e falando por todos eles, pois os filósofos e outros mestres<br />

conceituados muitas vezes expressam trivialidades de sua própria invenção.<br />

Cristo, porém, alega como sendo peculiar a ele e a todos os<br />

servos de Deus o fato de não proclamarem nenhuma doutrina senão a<br />

que é infalível. Deus não os enviou para que tagarelarem sobre coisas


126 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

desconhecidas ou duvidosas, mas os educa em sua escola para que<br />

transmitam a outros o que dele aprenderam pessoalmente.<br />

Além do mais, visto que Cristo, em seu testemunho, recomenda-<br />

-nos a infalibilidade de sua doutrina, ele ordena a todos seus ministros<br />

uma norma de modéstia, a fim de que não transmitam suas próprias<br />

filosofias ou conjeturas, nem publiquem invencionices humanas que<br />

nada têm de sólido, senão que apresentem um testemunho puro e fiel<br />

de Deus. Que cada um, pois, considere o que o Senhor lhe revelou, de<br />

modo que ninguém avance para além dos limites de sua fé. E, finalmente,<br />

que ninguém permita a si mesmo falar algo senão o que ouviu dos<br />

lábios do Senhor. Deve-se observar também que aqui Cristo confirma<br />

sua doutrina com um juramento, para que ela exerça plena autoridade<br />

sobre nós.<br />

E não recebeis nosso testemunho. Adiciona-se isto para que o<br />

evangelho não enfrentasse a ingratidão humana. Pois ainda que a verdade<br />

de Deus encontre poucos que creiam nela, e por toda parte seja<br />

rejeitada pelo mundo, nós devemos evitar um mínimo que seja de desprezo<br />

à sua majestade e de torná-la menos estimada por quase todo o<br />

mundo, menosprezando-a e obscurecendo-a pela impiedade.<br />

Ora, embora o significado das palavras seja simples e direto, deve-<br />

-se deduzir da passagem uma dupla lição. A primeira consiste em que<br />

a fé no evangelho não deve causar espanto entre nós, se porventura<br />

contar com poucos discípulos na terra, como se Cristo dissesse: “Embora<br />

não aceitais minha doutrina, ela permanece infalível e final; pois<br />

a incredulidade humana jamais impedirá a Deus de manter-se sempre<br />

fiel.” A outra consiste no fato de que, aqueles que em nossos próprios<br />

dias recusam crer no evangelho, não escaparão impunes, pois a verdade<br />

divina é inviolável. Devemos armar-nos com esse escudo para<br />

que possamos perseverar em obediência ao evangelho, em oposição à<br />

desobediência dos homens.<br />

De fato, deve-se manter esse princípio para que nossa fé permaneça<br />

fundamentada em Deus. Mas, quando temos Deus como nosso<br />

Criador, é preciso, como se nos erguêssemos acima dos céus, ousa-


Capítulo 3 • 127<br />

damente calcar aos pés o mundo inteiro, e não sermos confundidos<br />

pela incredulidade de quem quer que seja. Aprendemos da censura de<br />

Cristo que seu testemunho não é recebido, que o destino, por assim<br />

dizer, da Palavra de Deus tem sido em todos os tempos que ela logra<br />

aceitação apenas entre uns poucos, pois a expressão, não aceitais, se<br />

relaciona com a maioria, com quase toda a sociedade humana. Não há<br />

razão, pois, por que a escassez de crentes, hoje, nos perturbe.<br />

12. Se vos falei das coisas terrenas. Cristo conclui que Nicodemos,<br />

e os que pensam como ele, deveriam se envergonhar, caso não<br />

atingissem o devido progresso na doutrina do evangelho, pois ele mostra<br />

que não é culpa sua que todos não sejam devidamente treinados,<br />

visto que ele desceu à terra para nos fazer subir ao céu.<br />

É um erro muito comum que os homens queiram ser instruídos de<br />

maneira sutil e escolástica. Essa é a razão por que uma parte tão grande<br />

goste de especulações soberbas e confusas, e por que a maioria<br />

subestima o evangelho, já que não encontram nele linguagem pomposa<br />

que encante seus ouvidos. E assim, não se dignam de entregar-se ao<br />

estudo de uma doutrina comum e humilde. Mas quão perverso é que<br />

dediquemos menos reverência ao discurso de Deus só porque não se<br />

nivela à nossa ignorância! Saibamos que é por nossa causa 8 que o Senhor<br />

balbucia conosco na Escritura num estilo deselegante e comum.<br />

Quem quer que diga que se sente ofendido com tal mesquinharia ou<br />

argumentos como desculpas para não sujeitar-se à Palavra de Deus<br />

não passa de um mentiroso. Pois aquele que não consegue abraçar a<br />

Deus, num amorável amplexo, quando ele se acha perto, certamente<br />

não galgará a ele quando ele se achar acima das nuvens.<br />

As coisas terrenas. Há quem explique esta sentença como sendo<br />

os rudimentos da doutrina espiritual, pois a renúncia é um gênero<br />

de primeiro estágio no exercício da piedade. Concordo, antes, com<br />

aqueles que apontam para a forma de ensino, pois ainda que todo<br />

o discurso de Cristo fosse de cunho celestial, todavia ele falava de<br />

8 “Pour l’amour de nous.”


128 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

maneira tão rústica a fim que seu estilo pudesse adequar-se a certo<br />

sentido terreno. Além do mais, essas palavras não devem restringir-<br />

-se a um único discurso, pois o método ordinário de Cristo de ensinar<br />

– isto é, com comum simplicidade – aqui se contrasta com o exibicionismo<br />

e brilhantismo a que os homens ambiciosos se apegam tanto.<br />

[3.13-18]<br />

Ora, ninguém subiu 9 ao céu, senão aquele que desceu do céu,<br />

o Filho do homem, que está no céu. E, como Moisés levantou a<br />

serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja<br />

levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas<br />

tenha a vida eterna. Porque Deus amou o mundo de tal maneira<br />

que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê<br />

não pereça, mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou<br />

seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o<br />

mundo seja salvo por intermédio dele. Aquele que nele crê não<br />

é julgado; aquele que não crê nele já foi julgado, porquanto não<br />

creu no nome do unigênito Filho de Deus.<br />

13. Ninguém subiu ao céu. Ele uma vez mais exorta Nicodemos a<br />

não confiar em si mesmo e em sua própria perspicácia, pois nenhum<br />

mortal pode penetrar o céu por sua própria iniciativa, senão unicamente<br />

aquele que se inclina para ele mediante a orientação do Filho<br />

de Deus. Porque subir ao céu requer um perfeito conhecimento dos<br />

mistérios de Deus e a luz da compreensão espiritual. Aqui Cristo está<br />

ensinando a mesma coisa que Paulo, o qual diz que “o homem natural<br />

não compreende as coisas que são de Deus” [1Co 2.14], e portanto exclui<br />

toda a intensidade do entendimento humano em relação às coisas<br />

divinas, porquanto ela se encontra muito abaixo de Deus.<br />

Devemos, porém, observar que o texto ensina que unicamente<br />

Cristo, que é celestial, subiu ao céu, enquanto seu acesso se acha<br />

9 “Car personne n’est monte.” – “Pois ninguém jamais subiu.”


Capítulo 3 • 129<br />

fechado a todos os demais. Na primeira sentença, ele nos humilha,<br />

mantendo todo mundo fora do céu. Paulo diz, aos que queriam ser sábios<br />

em relação a Deus, que se fizessem tolos [1Co 3.18]. Não há nada<br />

menos a fazermos. Portanto, devemos crer que todos nossos sentidos<br />

se desvanecem e fracassam quando temos de avistar-nos com Deus.<br />

Mas, depois de Cristo fechar o céu contra nós, ele uma vez mais pôs<br />

diante de nós o antídoto, acrescentando que o que foi negado a todos<br />

os demais, foi dado ao Filho do Homem, porque ele não subiu ao céu<br />

em seu próprio e único benefício, mas para ser o Líder e Guia. E ele<br />

chama a si próprio o Filho do Homem para que não nutramos dúvida<br />

de que temos acesso comum com aquele que se revestiu de nossa carne<br />

para fazer-nos participantes de todas as bênçãos. Visto, pois, ser<br />

é o único intérprete do Pai, ele nos admite aos segredos que de outra<br />

forma permaneceriam ocultos.<br />

Pode parecer absurdo que ele diga estar no céu, quando está<br />

habitando na terra. Se porventura você replicar que isso diz respeito<br />

à sua Deidade, então a expressão significa algo mais – que, enquanto<br />

era homem, ele estava no céu. Pode-se dizer que aqui não se faz<br />

nenhuma menção de lugar, e que Cristo apenas se distingue dos demais<br />

em posição, em que ele é o Herdeiro do Reino de Deus, do qual<br />

toda a raça humana se acha banida. Uma vez, porém, que, por causa<br />

da unidade de pessoas em Cristo, é frequente e comum transferir a<br />

propriedade de uma natureza para a outra, não precisamos sair em<br />

busca de outra solução. Daí Cristo, que está no céu, se vestir de nossa<br />

carne para que, nos estendendo a mão fraterna, pudesse subir ao<br />

céu juntamente conosco.<br />

14. E como Moisés. Ele explica mais claramente por que disse<br />

que o céu está aberto só para ele – que ele pode levar para lá todos<br />

os que se dispõem a segui-lo como seu Líder. Pois ele declara que<br />

será pública e claramente revelado a todos para que ele derrame seu<br />

poder sobre eles. 10<br />

10 “Sur toutes manieres de gens.”


130 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Levantou significa ser colocado num lugar visível e eminente, de<br />

modo que possa ser claramente visto por todos. Isto aconteceu na pregação<br />

do evangelho. A explicação que alguns apresentam disto como<br />

uma referência à cruz não se harmoniza com o contexto e é estranho<br />

ao argumento de Cristo. O significado simples das palavras é que, pela<br />

pregação do evangelho, Cristo seria erguido como um estandarte para<br />

que fosse visto por todos, como predisse Isaías [Is 2.2-5]. Como tipo<br />

desse erguimento, ele escolhe a serpente de bronze erguida por Moisés,<br />

cuja contemplação era o antídoto que salvava os que haviam sido<br />

feridos pela picada letal das serpentes.<br />

A história como se acha registrada em Números 21.9 é bem conhecida.<br />

Nesta passagem, Cristo se introduz para ensinar-nos que<br />

ele foi exposto diante de todos os olhos no ensino do evangelho,<br />

para que todos os que olharem para ele, com fé, recebam a salvação.<br />

Daqui inferimos que no evangelho Cristo é claramente posto<br />

diante de nós, e ninguém pode queixar-se de que ele é obscuro, e<br />

que esta revelação é comum a todos e que há um olhar de fé que<br />

o percebe como presente – precisamente como Paulo nos diz que<br />

Cristo é vividamente delineado com sua cruz ao ser genuinamente<br />

proclamado [Gl 3.1].<br />

A similitude não é imprópria nem artificial. Ainda quando fosse<br />

apenas uma serpente em sua aparência externa, e não fosse dotada de<br />

peçonha, mesmo assim Cristo tomou a forma de carne pecaminosa, a<br />

qual, não obstante, era pura e isenta de pecado, com o fim de curar<br />

em nós a mortal ferida do pecado. Não foi sem razão que, quando os<br />

judeus eram picados por serpentes, o Senhor lhes proporcionou esta<br />

sorte de antídoto; e isso confirma o discurso de Cristo, pois quando<br />

viu que era desprezado como um homem obscuro e humilde, nada<br />

mais apropriado havia que referir-se ao soerguimento da serpente,<br />

como se estivesse dizendo que não se deveria imaginar como absurdo<br />

que ele, ao contrário da opinião dos homens, fosse levantado dos<br />

abismos mais profundos, visto que isso já havia se manifestado na lei<br />

sob o tipo da serpente.


Capítulo 3 • 131<br />

Poder-se-ia perguntar se Cristo se compara à serpente por haver<br />

alguma semelhança entre eles, ou se ele tinha em mente um sacramento<br />

na mesma forma que era o maná. Pois ainda que o maná fosse<br />

fisicamente desejável, Paulo declara que o mesmo constituía um mistério<br />

espiritual [1Co 10.3]. Creio que se deu o mesmo com a serpente<br />

de bronze, à luz desta passagem e também porque foi preservada para<br />

a posteridade até que fosse transformada num ídolo pela superstição<br />

do povo. Se alguém pensa em outros termos, não insistirei no assunto.<br />

16. Porque Deus amou o mundo de tal maneira. Cristo mostra<br />

a causa primeira e, por assim dizer, a fonte de nossa salvação. E ele<br />

procedeu assim para que não pairasse dúvida alguma, pois não existe<br />

nenhum céu calmo onde nossas mentes possam repousar enquanto<br />

não nos aproximarmos do gracioso amor de Deus. Toda a substância<br />

de nossa salvação não deve ser buscada em alguma outra fonte além<br />

de Cristo, e por isso devemos descobrir por que meios Cristo nos emana<br />

e por que ele foi oferecido como nosso Salvador.<br />

Ambos os pontos nos são claramente afirmados aqui – que a fé em<br />

Cristo vivifica tudo, e que Cristo trouxe vida porque o Pai celestial não<br />

deseja que a raça humana, à qual ele ama, pereça. E esta sequência<br />

deve ser cuidadosamente observada, pois tal é a ímpia e inerente ambição<br />

de nossa natureza que, quando ponderamos sobre a origem de<br />

nossa salvação, de pronto invadem nossa mente diabólicas imaginações<br />

acerca de nossos méritos pessoais. Por conseguinte, imaginamos<br />

que Deus nos é favorável porque nos tem considerado dignos de seu<br />

respeito. A Escritura, porém, por toda parte enaltece sua misericórdia<br />

que pura e simplesmente abole todo e qualquer mérito.<br />

E as palavras de Cristo não têm outro sentido, quando ele diz que<br />

a causa está no amor de Deus. Pois, se quisermos ir além disso, o Espírito<br />

nos impede com a declaração de Paulo, a saber, que este amor<br />

tinha por fundamento o “beneplácito de sua vontade” [Ef 1.5]. E é claro<br />

que Cristo falou isso com o fim de desviar os olhos dos homens de si<br />

para, exclusivamente, a misericórdia de Deus. Tampouco declara ele<br />

que Deus se moveu a nos salvar por divisar em nós algo merecedor de


132 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

tal benção. Ele atribui a glória de nossa salvação inteiramente ao seu<br />

amor. E isso se torna ainda mais claro à luz do contexto, pois ele acrescenta<br />

que o Filho foi dado aos homens para que estes não perecessem.<br />

Segue-se que, enquanto Cristo não dignar-se a socorrer os perdidos,<br />

todos continuarão destinados à destruição eterna.<br />

Paulo também demonstra isso à luz da sequência do tempo, pois<br />

fomos amados mesmo quando ainda éramos inimigos em virtude do<br />

pecado [Rm 5.8, 10]. E, de fato, onde reina o pecado, nada encontraremos,<br />

exceto a ira de Deus e a morte que ele agita. Portanto, é<br />

unicamente a misericórdia que nos reconcilia com Deus e ao mesmo<br />

tempo nos restaura à vida.<br />

Esta maneira de falar, contudo, pode parecer conflitante com muitos<br />

testemunhos da Escritura, os quais colocam em Cristo o primeiro<br />

fundamento do amor divino para conosco, e diz que fora dele somos<br />

detestados por Deus. Mas temos que nos lembrar bem, como eu já disse,<br />

que o amor secreto, no qual nosso Pai celestial nos alcançou para<br />

si, visto que o mesmo flui de seu beneplácito eterno, é precedente a<br />

todas as demais causas. A graça, porém, a qual ele quer que nos seja<br />

testificada, e pela qual somos despertados à esperança da salvação,<br />

começa com a reconciliação providenciada através de Cristo. Porque,<br />

uma vez que necessariamente odeia o pecado, como seremos convencidos<br />

de que ele nos ama, enquanto não forem expiados os pecados,<br />

por cuja causa ele está justamente irado conosco? E assim, antes que<br />

possamos nutrir alguma noção de sua bondade paternal, é necessário<br />

que o sangue interceda para que Deus se reconcilie conosco. Visto,<br />

porém, que primeiro ouvimos que Deus deu seu Filho a fim de morrer<br />

por nós, porque ele nos amou, acrescenta-se imediatamente que é tão<br />

somente em Cristo que, propriamente falando, a fé deve repousar.<br />

Deu seu Filho unigênito. O genuíno olhar da fé, confesso, é colocar<br />

Cristo diante dos olhos e contemplar nele o coração de Deus<br />

transbordante de amor. Nosso firme e substancial sustento é descansar<br />

na morte de Cristo como nossa única garantia. A palavra unigênito<br />

é realçada para exaltar o fervor do amor divino por nós. Porque os


Capítulo 3 • 133<br />

homens não se deixam convencer facilmente de que Deus os ama, e,<br />

por isso, para remover toda dúvida, ele expressamente declara que somos<br />

tão queridos de Deus que, por amor de nós, ele não poupou nem<br />

mesmo seu Filho unigênito. Deus declarou seu amor para conosco de<br />

uma forma mui exuberante, e, portanto, quem ainda nutre dúvida e se<br />

sente insatisfeito com este testemunho faz a Cristo uma séria injúria,<br />

como se ele fosse algum homem ordinário que tivesse morrido acidentalmente.<br />

Consideremos, antes, que o amor de Deus por seu Filho<br />

unigênito é a medida de quão preciosa lhe foi nossa salvação, que quis<br />

que a morte do próprio Unigênito fosse seu preço. Além disso, Cristo<br />

possui este nome por direito, ainda que, por natureza, seja o único<br />

Filho de Deus. Ele, porém, compartilha esta honra conosco por meio<br />

da adoção, quando somos enxertados em seu corpo.<br />

Para que todo aquele que nele crê não pereça. A coisa mais<br />

extraordinária sobre a fé é que ela nos livra da destruição eterna.<br />

Porque ele queria dizer especialmente que, embora pareçamos ter<br />

nascidos para a morte, pela fé em Cristo se nos oferece livramento infalível,<br />

de sorte que não devemos temer a morte que, caso contrário,<br />

nos ameaçaria. E ele usou um termo geral para convidar indiscriminadamente<br />

a todos a fim de que participem da vida e excluir todo<br />

pretexto dos incrédulos. Tal é também a importância do termo mundo<br />

que ele usara antes. Porque, embora não haja nada no mundo<br />

merecedor do favor divino, não obstante se revela favorável ao mundo<br />

inteiro, quando ele chama todos, sem exceção, à fé em Cristo, que<br />

na verdade é um ingresso à vida.<br />

Tenhamos em mente, por outro lado, que embora a vida seja universalmente<br />

prometida a todos os que creem em Cristo, todavia a fé<br />

não é comum a todos [2Ts 3.2]. Porque Cristo se faz conhecido e exibido<br />

à vista de todos, porém somente os eleitos são aqueles a cujos<br />

olhos Deus abre para que o busquem por meio da fé. Aqui também<br />

se exibe um prodigioso efeito da fé, pois por meio dela recebemos a<br />

Cristo tal como ele nos foi dado pelo Pai – ou seja, como aquele que<br />

nos libertou da condenação da morte eterna e nos fez herdeiros da


134 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

vida eterna, porque, pelo sacrifício de sua morte, ele fez expiação por<br />

nossos pecados para que nada nos impeça de ser reconhecidos por<br />

Deus como seus filhos. Portanto, visto que a fé abraça a Cristo, com a<br />

eficácia de sua morte e o fruto de sua ressurreição, não carece surpresa<br />

se por meio dela obtivermos igualmente a vida de Cristo.<br />

Todavia, não fica ainda muito evidente por que e como a fé nos<br />

outorga a vida. Seria porque Cristo nos renova mediante seu Espírito<br />

para que a justiça de Deus possa viver e ser revigorada em nós, ou<br />

seria porque, tendo sido purificados por seu sangue, somos considerados<br />

justos diante de Deus mediante seu perdão gratuito? Aliás, é certo<br />

que essas duas coisas estão sempre juntas, mas, como a certeza da<br />

salvação é o tema ora em discussão, devemos principalmente manter,<br />

por esta razão, que vivemos porque Deus nos ama soberanamente,<br />

não mais nos imputando nossos pecados. Por essa razão, menciona-se<br />

expressamente o sacrifício por meio do qual, juntamente com nossos<br />

pecados, a maldição e a morte são destruídas. Já explicamos o objeto<br />

dessas duas sentenças, a saber, informar-nos de que em Cristo tomamos<br />

posse da vida, da qual estamos inerentemente destituídos, pois<br />

nesta miserável condição do gênero humano, a redenção, na ordem do<br />

tempo, vem antes da salvação.<br />

17. Porque Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar<br />

o mundo. Aqui temos uma confirmação da afirmação precedente, porque<br />

não foi em vão que Deus enviou seu próprio Filho em nosso favor.<br />

Ele não veio com o fim de destruir e, por isso, segue-se ser o ofício<br />

peculiar do Filho de Deus que todo aquele que crê obtenha a salvação<br />

por meio dele. Agora não há razão por que uma pessoa viva em estado<br />

de hesitação ou de angustiante ansiedade quanto à maneira pela<br />

qual pode escapar da morte, ao crer que era o propósito de Deus que<br />

Cristo nos livrasse dela. A palavra mundo é uma vez mais reiterada, a<br />

fim de que ninguém pense que foi totalmente excluído, se tão somente<br />

conservar-se na vereda da fé.<br />

A palavra julgar é aqui posta em lugar de condenar, como é o caso<br />

em muitas outras passagens. Ao declarar que não veio para conde-


Capítulo 3 • 135<br />

nar o mundo, ele assim realça o desígnio real de sua vinda, pois que<br />

necessidade havia para Cristo vir com o fim de destruir-nos, nós que<br />

estávamos completamente arruinados? Não devemos, pois, buscar em<br />

Cristo algo mais além do fato de que Deus, de sua infinita bondade, quis<br />

estender seu auxílio para salvar-nos, a nós que estávamos perdidos. E<br />

sempre que nossos pecados nos oprimam – sempre que Satanás nos<br />

conduza ao desespero –, devemos correr para este refúgio, a saber:<br />

que Deus não deseja que sejamos esmagados por perene destruição,<br />

visto que ele designara seu Filho para ser o salvador do mundo.<br />

Quando em outras passagens Cristo diz que veio para julgar [Jo<br />

9.39]. Quando ele é denominado de pedra de escândalo [1Pe 2.7] e<br />

quando lemos ser ele posto para a destruição de muitos [Lc 2.34], isso<br />

pode ser considerado como acidental ou como provindo de uma causa<br />

distinta, porquanto aquele que rejeita a graça que lhe é oferecida merece<br />

encontrar nele o Juiz e Vingador de um desdém tão indigno e vil.<br />

Um notável exemplo disso pode ser visto no evangelho, pois ainda<br />

que ele seja estritamente o poder de Deus para a salvação de todo<br />

aquele que nele crê [Rm 1.16], a ingratidão de muitos o converte em<br />

morte para os mesmos. Ambas as coisas foram bem expressas por<br />

Paulo, quando ele vingar toda desobediência, quando for cumprida vossa<br />

obediência [2Co 10.6]. O significado equivale a isto: que o evangelho<br />

é especialmente, e em primeira instância, designado para os crentes,<br />

a fim de que a salvação lhes pertença, mas que, depois, os descrentes<br />

não escaparão impunes, caso desprezem a graça de Cristo e decidam<br />

tê-lo como o Autor da morte, em vez de o Autor da vida.<br />

18. Aquele que nele crê não é condenado. Ao repetir com<br />

tanta frequência e com tanta solicitude que todos os que creem<br />

se encontram além do perigo de morte, podemos inferir disso a<br />

grande necessidade de uma confiança firme e certa, que a consciência<br />

não pode ser mantida perpetuamente num estado de tremor<br />

e expectação. Ele uma vez mais declara que, ao crermos, já nenhuma<br />

condenação resta, o que depois explicará mais plenamente no<br />

capítulo 5. O tempo presente – não é condenado – é aqui usado em


136 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

vez do tempo futuro – não será condenado –, segundo a maneira do<br />

idioma hebreu, pois sua intenção é que os crentes estão a salvo do<br />

temor da condenação.<br />

Mas aquele que não crê já está condenado. Isso significa que<br />

não há outro remédio pelo qual qualquer ser humano possa escapar<br />

da morte; ou, em outros termos, que para quantos rejeitam a vida que<br />

lhe é outorgada em Cristo nada mais resta senão a morte, visto que a<br />

vida não consiste em algo mais além da fé. O tempo perfeito do verbo,<br />

já está condenado, foi usado por ele enfaticamente para expressar<br />

mais fortemente que todos os incrédulos estão completamente arruinados.<br />

Deve-se, porém, observar que Cristo fala especialmente<br />

daqueles cuja perversidade se exibirá por seu franco desprezo do<br />

evangelho. Pois ainda que seja verdade que jamais houve qualquer<br />

outro remédio para se escapar à morte, além do fato de que os homens<br />

devam recorrer a Cristo, todavia, visto que aqui Cristo fala da<br />

pregação do evangelho, a qual teria que ecoar pelo mundo inteiro,<br />

ele dirige seu discurso contra os que deliberada e maliciosamente<br />

extinguem a luz que Deus acendeu.<br />

[3.19-21]<br />

E esta é a condenação: que a luz veio ao mundo, e os homens<br />

amaram mais as trevas do que a luz; porque suas obras eram<br />

más. Pois todo aquele que pratica o mal odeia a luz, e não se<br />

chega para a luz, para que suas obras não sejam descobertas.<br />

Mas aquele que pratica a verdade se chega para a luz, para que<br />

suas obras se façam manifestas, de que são feitas em Deus. 11<br />

19. E esta é a condenação. Ele refreia as murmurações e queixas<br />

pelas quais os ímpios costumavam censurar – o que imaginam ser – o<br />

excessivo rigor de Deus, quando ele age contra eles com mais severidade<br />

do que esperavam. Acham duro demais o fato de que os que<br />

11 “Faites selon Dieu” – “feitas segundo Deus.”


Capítulo 3 • 137<br />

não creem em Cristo sejam devotados à destruição. Para que ninguém<br />

atribua sua condenação a Cristo, ele mostra que cada ser humano deve<br />

imputar a si próprio a responsabilidade. A razão é que a incredulidade<br />

é uma testemunha de uma má consciência; e, portanto, é evidente que<br />

é sua própria perversidade que impede os incrédulos de se aproximarem<br />

de Cristo.<br />

Há quem pense que o que ele aqui realça nada mais é que o selo<br />

da condenação. Todavia, o desígnio de Cristo é restringir a perversidade<br />

dos homens a fim de que, segundo seu costume, não contendam<br />

nem argumentem contra Deus, como se ele os tratasse injustamente,<br />

quando pune a incredulidade com a morte eterna. Ele mostra que tal<br />

condenação é justa, e não está sujeita a qualquer reprovação, não só<br />

porque tais homens agem impiamente, que preferem as trevas à luz<br />

e recusam a luz que lhes é graciosamente oferecida, mas porque tal<br />

ódio pela luz só brota de uma mente que é perversa e cônscia de sua<br />

culpabilidade.<br />

Uma bela aparência e excelência de santidade de fato podem ser<br />

encontradas em muitos que, além de tudo, se opõem ao evangelho.<br />

No entanto, ainda que pareçam ser mais santos que os próprios anjos,<br />

sem a menor sombra de dúvida, são hipócritas, pois rejeitam a doutrina<br />

de Cristo por nenhuma outra razão senão pelo fato de amarem seus<br />

esconderijos, por meio dos quais sua vileza continue velada. Portanto,<br />

visto que a mera hipocrisia basta para tornar os homens odiosos<br />

aos olhos de Deus, todos são conservados réus, porque, não fora isso,<br />

cegados pela soberba e deleitando-se em seus crimes, pronta e espontaneamente<br />

receberiam a doutrina do evangelho.<br />

20. Porque todo o que pratica o mal. Eis o significado: por nenhuma<br />

outra razão a luz lhe é odiosa, senão porque são perversos<br />

e desejam ocultar seus pecados e retêm a mentira em seu poder.<br />

Portanto, segue-se que, ao rejeitarem o remédio, pode-se dizer que<br />

propositadamente fomentam o motivo de sua condenação. Portanto,<br />

estamos redondamente enganados se presumimos que aqueles que se<br />

unem contra o evangelho são movidos por zelo piedoso, quando, ao


138 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

contrário, sentem aversão pela luz e fogem dela, para que mais livremente<br />

folguem nas trevas.<br />

21. Aquele, porém, que pratica a verdade. Esta aparenta ser<br />

uma afirmação imprópria e absurda, a não ser que o leitor prefira<br />

admitir que alguns são retos e verdadeiros mesmo antes que tenham<br />

sido renovados pelo Espírito de Deus, o que de forma algum se harmoniza<br />

com a doutrina uniforme da Escritura. Pois bem sabemos que<br />

a fé é a raiz da qual procedem os frutos das boas obras. Com vista a<br />

resolver esta dificuldade, Agostinho diz que praticar a verdade significa<br />

“reconhecer que somos miseráveis e destituídos de todo poder<br />

de praticar o bem”; e, por certo, é uma genuína preparação para a<br />

fé quando a convicção de nossa pobreza nos compele a fugir para a<br />

graça de Deus. Mas tudo isso é amplamente removido da intenção<br />

de Cristo, pois ele pretendia simplesmente dizer que aqueles que<br />

agem sinceramente nada desejam mais solicitamente do que a luz,<br />

para que suas obras sejam julgadas. Porque, quando tal prova é feita,<br />

torna-se mais evidente que, à vista de Deus, falam a verdade e são<br />

isentos de toda falsidade.<br />

Ora, seria um raciocínio inconclusivo, caso inferíssemos disso<br />

que os homens desfrutam de sã consciência antes de experimentar a<br />

fé. Porque Cristo não diz que os eleitos creem a ponto de merecerem o<br />

louvor das obras, mas simplesmente o que os incrédulos fariam caso<br />

não experimentassem uma má consciência.<br />

Cristo empregou a palavra verdade porque, quando somos enganados<br />

pelo brilho externo das obras, não consideramos o que está<br />

oculto dentro. Consequentemente, diz ele que os homens que são retos<br />

e isentos de hipocrisia espontaneamente entram na presença de<br />

Deus, o único que é Juiz competente de nossas obras. Porque somos<br />

informados que essas obras são feitas em Deus ou de conformidade<br />

com Deus, as quais são aprovadas por ele e as quais são boas em consonância<br />

com sua norma. Daí, aprendamos que não devemos julgar<br />

as obras de qualquer outra maneira senão trazendo-as para a luz do<br />

evangelho, porquanto nossa razão é totalmente cega.


Capítulo 3 • 139<br />

[3.22-28]<br />

Depois dessas coisas veio Jesus, juntamente com seus discípulos,<br />

para a terra da Judeia, e aí permaneceu com eles e batizava.<br />

E <strong>João</strong> também estava batizando no Enon, próximo de Salim;<br />

porque havia ali muitas águas. Vinham, pois, e eram batizados.<br />

Porque <strong>João</strong> ainda não fora lançado na prisão. Suscitou-se uma<br />

dúvida entre os discípulos de <strong>João</strong> e os judeus acerca da purificação.<br />

E chegaram a <strong>João</strong> e lhe disseram: Rabi, aquele que<br />

estava contigo dalém do Jordão, de quem deste testemunho,<br />

eis que ele batiza, e todos os homens vão a ele. <strong>João</strong> respondeu<br />

e disse: Um homem não pode receber coisa alguma se do céu<br />

não lhe for dada. Vós mesmos sois minhas testemunhas de que<br />

eu disse: Não sou o Cristo, mas fui enviado adiante dele.<br />

22. Depois dessas coisas veio Jesus. É provável que Cristo, assim<br />

que a festa acabou, foi para aquela parte da Judeia que ficava na vizinhança<br />

da cidade de Enon, que estava situada na tribo de Manassés.<br />

O Evangelista diz que havia ali muitas águas, e essas não eram tão<br />

abundantes na Judeia.<br />

Os geógrafos nos informam que essas duas cidades, Enon e Salim,<br />

não ficavam longe da confluência do rio Jordão e do ribeiro Jaboque, e<br />

acrescentam que Citópolis ficava em suas proximidades. À luz destas<br />

palavras, podemos inferir que <strong>João</strong> e Cristo administravam o batismo<br />

imergindo o corpo inteiro na água, ainda que não devamos nos entregar<br />

a muita fadiga com o rito externo, contanto que o mesmo concorde<br />

com a verdade espiritual e com a designação e a administração do<br />

Senhor. Até onde somos capazes de conjeturar, a vizinhança desses lugares<br />

permitiu a circulação de várias notícias, e deu-se lugar a muitas<br />

discussões acerca da Lei, acerca do culto divino e acerca da condição<br />

da Igreja, em consequência de surgirem, concomitantemente, duas<br />

pessoas que administravam o batismo. Pois quando o Evangelista diz<br />

que Cristo batizava, aplica isto ao início de seu ministério, ou seja, que<br />

ele então começou a exercer publicamente o ofício que lhe fora desig-


140 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

nado pelo Pai. E ainda que Cristo fizesse isso pela instrumentalidade<br />

de seus discípulos, todavia ele é aqui denominado como o Autor do<br />

batismo, sem mencionar seus ministros que nada faziam senão em seu<br />

nome e por sua ordem. Sobre este tema, teremos algo mais a dizer no<br />

início do próximo capítulo.<br />

25. Suscitou-se então uma dúvida. Não sem uma boa razão, o<br />

Evangelista relata que entre os discípulos de <strong>João</strong> suscitou-se uma dúvida.<br />

Porque, à medida que eram informados acerca da doutrina, mais<br />

prontos estavam em entrar em discussão, visto que a ignorância é<br />

sempre ousada e presunçosa. Se outros os atacavam, então poderiam<br />

justificar-se. Mas quando eles mesmos, ainda que sem razão, mantinham<br />

o fogo da contenda, provocando voluntariamente os judeus,<br />

isso constituía um procedimento precipitado e tolo.<br />

Ora, as palavras significam que “foram eles que suscitaram a dúvida”.<br />

E não só deviam responsabilizar-se por despertar uma questão<br />

da qual não tinham conhecimento, mas também por falarem a respeito<br />

precipitadamente e além da medida de seu conhecimento. Mas o outro<br />

erro foi – não menos que o primeiro – que pretendiam não tanto manter<br />

a legitimidade do batismo quanto defender a causa de seu mestre,<br />

para que sua autoridade permanecesse incomunicável. Em ambos os<br />

aspectos, mereceram reprovação, porque, não compreendendo qual<br />

era a real natureza do batismo, expunham a santa ordenança de Deus<br />

ao ridículo, e porque, mediante uma ambição pecaminosa, empreenderam<br />

defender a causa de seu mestre contra Cristo.<br />

É evidente, pois, que ficaram atônitos e confusos com uma única<br />

palavra, quando foram informados de que Cristo também estava<br />

batizando, pois, enquanto sua atenção era direcionada para a pessoa<br />

de um homem e para sua aparência externa, 12 preocupavam-se<br />

menos com a doutrina. Somos ensinados, por seu exemplo, que os<br />

equívocos em que os homens caem se devem a um desejo pecaminoso<br />

de agradar a si mesmos antes que movidos por zelo de Deus. E<br />

12 “Et apparence exterieure.”


Capítulo 3 • 141<br />

somos igualmente lembrados que o único objetivo que devemos ter<br />

em vista, e por todos os meios promover, é que tão somente Cristo<br />

deve ter a preeminência.<br />

Acerca da purificação. A dúvida foi proveniente da purificação,<br />

pois os judeus tinham vários batismos e lavagens 13 ordenados pela Lei,<br />

e, não satisfeitos com aqueles que Deus designara, 14 cuidadosamente<br />

observavam muitos outros que tinham sido introduzidos por seus ancestrais.<br />

Quando acham que, além de tão grande número e variedade<br />

de purificações, um novo método de purificação é introduzido por Cristo<br />

e por <strong>João</strong>, veem-no como um absurdo.<br />

26. De quem deste testemunho. Com tal argumento empreendem<br />

ou fazer Cristo inferior a <strong>João</strong> ou mostrar que <strong>João</strong>, honrando-o, o pusera<br />

sob obrigações, pois reconheciam que <strong>João</strong> conferira um favor a<br />

Cristo, adornando-o com títulos tão proeminentes, como se fora o dever<br />

de <strong>João</strong> fazer tal proclamação, ou melhor, como se não fora a mais<br />

elevada dignidade de <strong>João</strong> ser o arauto do Filho de Deus. Nada poderia<br />

ter sido mais irracional do que fazer Cristo inferior a <strong>João</strong>, visto que<br />

seu testemunho era sublimemente favorável, pois sabemos qual foi o<br />

testemunho de <strong>João</strong>. A expressão que usaram – todos os homens vêm<br />

a Cristo – é a linguagem de pessoas invejosas, 15 e procede da ambição<br />

pecaminosa, pois temiam que a multidão imediatamente se esquecesse<br />

de seu mestre.<br />

27. Um homem não pode receber coisa alguma. Alguns atribuem<br />

essas palavras a Cristo, como se <strong>João</strong> acusasse os discípulos<br />

de perversa presunção em oposição a Deus, por tudo fazerem com<br />

o fim de privar a Cristo do que o Pai lhe dera. Supunham que o significado<br />

era este: “Que era obra de Deus o fato de que dentro de<br />

tão pouco tempo ele havia granjeado tão grande honra; e, por isso,<br />

era em vão que tentassem denegrir aquele a quem Deus com sua<br />

própria mão dera tão elevada posição.” Outros pensam que é uma<br />

13 “De baptesmes et lavemens.”<br />

14 “Que Dieu avoit instituez.”<br />

15 “C’est une parole de gens envieux.”


142 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

exclamação que ele indignadamente pronuncia, visto que seus discípulos<br />

até então tinham feito tão pouco progresso. E certamente era<br />

excessivamente absurdo que ainda lutassem por reduzir à posição<br />

de homens comuns àquele que, com tanta frequência ouviam, era o<br />

Cristo, o qual não podia erguer-se acima de seus próprios servos. E,<br />

portanto, <strong>João</strong> poderia, com justiça, ter dito ser inútil gastar tempo<br />

em instruir os homens, porquanto são obtusos e estúpidos, enquanto<br />

não fossem renovados em sua mente.<br />

Antes, porém, concordo com a opinião daqueles que o explicam<br />

como uma aplicação a <strong>João</strong>, como a asseverar que não estava<br />

em seu poder, nem no deles, de fazê-lo grande, porque a medida<br />

de todos nós é sermos aquilo que Deus pretende que sejamos.<br />

Pois se até mesmo o Filho de Deus não tomou para si honra alguma<br />

[Hb 5.4], que homem dentre a categoria ordinária se aventuraria<br />

a desejar mais do que aquilo que o Senhor lhe deu? Se esse único<br />

pensamento, se estivesse devidamente impresso nas mentes de<br />

todos nós, seria sobejamente suficiente para refrear a ambição,<br />

e a ambição seria corrigida e destruída e a praga das contendas<br />

seria igualmente removida. Como sucede, pois, que cada pessoa<br />

se exalte mais do que lhe é lícito, senão porque não dependemos<br />

do Senhor, de modo a sentirmos satisfeitos com a posição que ele<br />

nos designou?<br />

28. Vós sois minhas testemunhas. <strong>João</strong> reprova seus discípulos,<br />

dizendo que não deram crédito a suas afirmações. Ele os advertia com<br />

frequência, dizendo que não era o Cristo. E, por isso, assegurava-lhes<br />

que seria um servo do Filho de Deus e lhe seria sujeito juntamente<br />

com os demais. E esta passagem é digna de ponderação, pois, ao afirmar<br />

que não era o Cristo, ele nada merece para si senão sujeitar-se à<br />

cabeça e servir na Igreja como um dentre os demais, e não para ser<br />

tão altamente exaltado a ponto de obscurecer a honra da Cabeça. Diz<br />

ele que fora enviado antecipadamente com o fim de preparar o caminho<br />

para Cristo, como os reis costumavam enviar arautos como seus<br />

precursores.


Capítulo 3 • 143<br />

[3.29-34]<br />

Aquele que tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo,<br />

que lhe assiste e o ouve, alegra-se muito com a voz do esposo.<br />

Assim, pois, esta minha alegria já se cumpriu. É necessário<br />

que ele cresça e que eu diminua. Aquele que vem de cima é<br />

sobre todos; aquele que vem da terra é da terra e fala da terra. 16<br />

Aquele que vem do céu é sobre todos. E aquilo que ele viu e<br />

ouviu isso testifica; e ninguém aceita seu testemunho. Aquele<br />

que aceitou seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro.<br />

Porque aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus;<br />

pois Deus não lhe dá o Espírito por medida.<br />

29. Aquele que tem a esposa. Com esta comparação, ele confirma<br />

mais plenamente a afirmação de que Cristo é o único que é excluído da<br />

estirpe ordinária dos homens, pois, como aquele que se une a uma esposa<br />

não chama e convida seus amigos para as bodas a fim de prostituir a<br />

noiva com eles, nem para renunciar a seus próprios direitos, permitindo-<br />

-lhes participar com ele do leito nupcial; senão que, ao contrário, para<br />

que o matrimônio, sendo honrado por eles, se torne ainda mais sagrado.<br />

Assim, Cristo não chama seus ministros para o ofício docente a fim de<br />

que, conquistando a Igreja, reivindiquem domínio sobre ela, mas para<br />

que ele faça uso de seus labores fiéis associando-os consigo. A designação<br />

de homens sobre a Igreja é uma distinção grande e sublime, para<br />

que representem a pessoa do Filho de Deus. Portanto, assemelham-se<br />

aos amigos a quem o noivo conduz a seu lado, para que o acompanhem<br />

na celebração das bodas. Mas devemos atentar bem para esta distinção,<br />

a saber: que os ministros, sendo cônscios de sua posição, não se<br />

apropriem do que pertence exclusivamente ao noivo. A suma equivale<br />

a isto: que toda a eminência que os mestres porventura possuam entre<br />

si não deve impedir a Cristo de ser o único a governar sua Igreja nem de<br />

governá-la exclusivamente por meio de sua palavra.<br />

16 “Et parle de l aterre, ou, comme issu de terre” – “e fala da terra, ou, como havendo<br />

procedido da terra.”


144 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Esta comparação ocorre com frequência na Escritura, quando<br />

o Senhor intenta expressar o sacro vínculo de adoção, por meio do<br />

qual ele nos une a si. Pois, como se oferece para ser realmente desfrutado<br />

por nós, para que seja nosso, assim ele, com razão, exige de<br />

nós aquela fidelidade e amor mútuos que a esposa deve a seu esposo.<br />

Esse matrimônio se cumpre inteiramente em Cristo, de cuja carne e<br />

ossos somos nós, como Paulo nos informa [Ef 5.30]. A castidade exigida<br />

por ele consiste primordialmente na obediência ao evangelho,<br />

para que não permitamos desviar-nos de sua perfeita simplicidade,<br />

como nos ensina o apóstolo [2Co 11.2, 3]. Portanto, devemos estar<br />

sujeitos unicamente a Cristo. Ele deve ser nossa única Cabeça. Não<br />

devemos desviar-nos sequer um fio de cabelo da doutrina simples do<br />

evangelho; tão somente ele deve possuir a mais elevada glória, para<br />

que retenha o direito e a autoridade de ser nosso Noivo.<br />

Mas, o que os ministros devem fazer? Certamente o Filho de Deus<br />

os chama para que executem seu dever em relação a ele na condução<br />

do matrimônio sagrado. Portanto, seu dever é tudo fazer para que,<br />

de todas as formas, a esposa – que é confiado a sua responsabilidade<br />

– seja apresentada por eles como virgem casta a seu Esposo, o que<br />

Paulo, na passagem supracitada, se gloria de haver feito. Mas os que<br />

arrastam a Igreja após si, e não a Cristo, se fazem culpados de vilmente<br />

violar o matrimônio que deveriam ter honrado. E, quanto maior é<br />

honra que Cristo nos confere, fazendo-nos guardiãs de sua esposa, tão<br />

mais hedionda será nossa falta de fidelidade, se não nos esforçarmos<br />

em manter e defender seu direito.<br />

Portanto, esta minha alegria já se cumpriu. Significa que ele já<br />

alcançou o cumprimento de todos seus desejos, e que ele nada mais<br />

deseja, ao ver Cristo reinando e os homens dando-lhe ouvidos como de<br />

fato ele merece. Quem quer que tenha afetos tais que, pondo de lado<br />

toda consideração pessoal, exalte a Cristo, sinta-se feliz em ver Cristo<br />

sendo honrado, será fiel e bem sucedido em governar a Igreja. Todo<br />

aquele, porém, que muda o mínimo grau desse propósito será um vil<br />

adúltero, e outra coisa não fará senão corromper a esposa de Cristo.


Capítulo 3 • 145<br />

30. Que ele cresça. <strong>João</strong> Batista dá mais um passo, pois tendo<br />

anteriormente sido elevado pelo Senhor à mais nobre dignidade, ele<br />

mostra que isso foi por apenas pouco tempo. Mas agora que o Sol<br />

da Justiça [Ml 4.2] entrou em cena, ele tem de deixar-lhe livre o caminho;<br />

e, por isso, não só dispersou e afugentou as fúteis fumaças<br />

da honra que lhe era precipitada e ignorantemente cumulada pelos<br />

homens, mas também se mune de excessivo cuidado para que a verdadeira<br />

e legítima honra que o Senhor lhe concedera de modo algum<br />

obscureça a glória de Cristo. Consequentemente, ele nos diz que a<br />

razão pela qual fora até aqui considerado grande profeta era que, por<br />

apenas algum tempo, ele foi posto em tão elevada condição até que<br />

Cristo se manifestasse, a quem ele teria de consagrar seu ofício. Entrementes,<br />

ele declara que muito mais espontaneamente se deixará<br />

reduzir a nada, contanto que Cristo ocupe e encha o mundo inteiro<br />

com seus benditos raios e todos os pastores da Igreja devem imitar<br />

tal zelo da parte de <strong>João</strong>, curvando suas cabeças e ombros para que<br />

Cristo seja exaltado.<br />

31. Aquele que vem de cima. Fazendo uso de outra comparação,<br />

ele mostra quão amplamente Cristo difere de todos os demais, e quão<br />

mais acima ele está deles, pois o compara a um rei ou eminente general<br />

que, falando de um sublime trono, deve ser ouvido com reverência<br />

em virtude de sua autoridade, porém mostra que para ele pessoalmente<br />

bastava falar desde a parte mais inferior do escabelo de Cristo. 17 Na<br />

segunda sentença, a tradução do latim antigo somente uma vez traz as<br />

palavras é da terra. Mas os manuscritos gregos concordam em reiterar<br />

duas vezes as palavras. Minha suspeita é que homens ignorantes considerassem<br />

a repetição como algo supérfluo, e por isso a eliminaram.<br />

O significado, porém, é este: aquele que é da terra fornece evidência<br />

de seu descendente, e permanece em uma esfera terrena segundo a<br />

condição de sua natureza. Ele sustenta que é peculiar somente a Cristo<br />

falar de cima, porque ele veio do céu.<br />

17 “Au marchepied de Christ.”


146 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas alguém poderia perguntar: <strong>João</strong> também não veio do céu,<br />

quanto a sua vocação e ofício, e por isso não era o dever dos homens<br />

ouvirem o Senhor falando através de sua boca? Pois ele parece fazer<br />

injustiça à doutrina celestial que proclama. Minha resposta é que tal<br />

coisa de forma alguma foi dita, senão à maneira de comparação. Se<br />

os ministros forem considerados individualmente, eles falam como se<br />

procedesse do céu, com a mais elevada autoridade, o que Deus lhes<br />

ordenou. Mas, tão logo eles passam a ser contrastados com Cristo, não<br />

mais devem ser considerados como sendo algo importante.<br />

Assim o apóstolo, comparando a Lei com o <strong>Evangelho</strong>, diz:<br />

Porque, se não escaparam aqueles que rejeitaram o que na terra os<br />

advertia, muito menos nós, se nos desviarmos daquele que é dos céus<br />

[Hb 12.25]. Cristo, pois, deseja ser reconhecido em seus ministros,<br />

mas de tal maneira que ele permaneça sendo o único Senhor, e que<br />

eles se sintam felizes com a condição de servos. Mas, especialmente<br />

quando se faz uma comparação, ele deseja ser tão eminente, que seja<br />

o único exaltado.<br />

32. E o que ele viu e ouviu. <strong>João</strong> prossegue no desempenho de seu<br />

ofício, pois, com o fim de granjear discípulos para Cristo, ele enaltece<br />

a doutrina deste como sendo infalível, porquanto ele nada proclama<br />

senão o que havia recebido do Pai. Ver e ouvir são contrastados com<br />

opiniões dúbias, rumores infundados e todo gênero de falsidade, pois<br />

ele tem em mente que Cristo nada ensina senão aquilo que foi plenamente<br />

averiguado. Mas alguém dirá que pouco crédito se deve àquele<br />

que nada tem a dizer senão o que ouviu. Minha resposta é que esta<br />

palavra denota que Cristo fora instruído pelo Pai, de modo que nada<br />

apresenta senão o que é divino, ou, em outros termos, o que lhe fora<br />

revelado por Deus.<br />

Ora, isso pertence à totalidade da pessoa de Cristo, no sentido em<br />

que o Pai o envia ao mundo como seu Embaixador e Intérprete. Mais<br />

tarde, ele culpará o mundo de ingratidão ao rejeitar vil e impiamente<br />

tal fidedigno e fiel Intérprete de Deus. Desta maneira, ele satisfaz a<br />

ofensa que poderia levar muitos a apostatar da fé, o que poderia impe-


Capítulo 3 • 147<br />

dir ou retardar o progresso de muitos, uma vez que, visto que estamos<br />

acostumados a depender tanto do juízo do mundo, um número considerável<br />

de pessoas julga o evangelho pelo prisma do menosprezo do<br />

mundo, ou, pelo menos, quando o veem por toda parte rejeitado, acabam<br />

sendo prejudicados por essa ocorrência e se tornam ainda mais<br />

indispostos e mais morosos em crer. E, por isso, sempre que vemos<br />

tal obstinação no mundo, que esta admoestação nos mantenha em<br />

constante obediência ao evangelho, o qual é a verdade que procede de<br />

Deus. Ao dizer que nenhum homem recebe seu testemunho, sua intenção<br />

é dizer que há bem poucos que creem, e mesmo quase ninguém,<br />

quando comparado com a vasta multidão de incrédulos.<br />

33. Mas aquele que recebe seu testemunho. Aqui ele exorta<br />

e encoraja os santos a abraçarem ousadamente a doutrina do<br />

evangelho, como se quisesse dizer que não há razão para que se<br />

envergonhem ou se atormentem por conta de seu diminuto número,<br />

já que têm Deus como o Autor de sua fé, o único que nos é ricamente<br />

suficiente em todas as coisas. E, portanto, ainda que o mundo<br />

inteiro rejeite ou se esquive da fé no evangelho, isso não deve impedir<br />

os homens bons de dar seu assentimento a Deus. Eles têm<br />

algo sobre o qual podem descansar em segurança, porquanto bem<br />

sabem que crer no evangelho nada mais é do que consentir com as<br />

verdades que Deus revelou.<br />

Entretanto, aprendemos ser peculiar à fé aquela confiança em<br />

Deus que é confirmada por sua Palavra, pois não pode haver assentimento<br />

a menos que Deus, antes de tudo, tenha se manifestado e<br />

falado. Por meio desta doutrina, a fé não só se distingue de todos os<br />

inventos humanos, mas também das opiniões dúbias e flutuantes,<br />

pois ela deve corresponder à verdade de Deus, a qual é isenta de<br />

toda e qualquer dúvida, e, portanto, visto que Deus não pode mentir,<br />

seria inconsistente que a fé fosse oscilante. Se estivermos bem armados<br />

por esta defesa, sejam quais forem os obstáculos que Satanás<br />

empregue em suas tentativas de nos perturbar e abalar, permaneceremos<br />

sempre vitoriosos.


148 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Daí sermos também lembrados de quão aceitável e precioso sacrifício<br />

é a fé aos olhos de Deus. Como nada lhe é mais querido do que<br />

sua verdade, assim não podemos prestar-lhe um culto mais aceitável<br />

do que quando, por meio de nossa fé, reconhecemos que ele é verdadeiro,<br />

porque assim lhe atribuímos aquela honra que verdadeiramente<br />

lhe pertence. Em contrapartida, não podemos fazer-lhe um insulto<br />

mais grave do que não crer no evangelho, porque ele não pode ser<br />

privado de sua verdade sem se despir de toda sua glória e majestade.<br />

De certa forma, sua verdade está estreitamente vinculada ao<br />

evangelho, e sua vontade é que ela seja aí reconhecida. Portanto, os<br />

incrédulos, enquanto confiam em seu próprio poder, nada deixam a<br />

Deus. Não que sua impiedade destrua a fidelidade de Deus, mas porque<br />

não hesitam em acusar a Deus de falsidade. Caso não sejamos<br />

mais empedernidos que as pedras, este sublime título, pelo qual a fé<br />

é adornada, deve acender em nossas mentes o mais ardente amor por<br />

ele, pois quão imensa é a honra que Deus confere a meros homens pobres<br />

e sem valor, quando eles, que por natureza nada mais são do que<br />

falsidade e vaidade, se dignam de acrescentar sua assinatura à sacra<br />

verdade de Deus!<br />

34. Porque aquele a quem Deus enviou fala as palavras de Deus.<br />

Ele confirma a afirmação precedente, porquanto mostra que estamos<br />

realmente em relação com Deus quando recebemos a doutrina de Cristo,<br />

porquanto Cristo não procedeu de nenhuma outra fonte, senão do<br />

Pai celestial. Portanto, é tão somente Deus quem nos fala por meio<br />

dele. Deveras não atribuímos à doutrina de Cristo tudo quanto ela merece,<br />

a menos que reconheçamos ser ela divina.<br />

Pois Deus não dá seu Espírito por medida. Esta passagem é explicada<br />

de duas maneiras. Há aqueles que a estendem à dispensação<br />

ordinária desta maneira: que Deus, que é a fonte inexaurível de todos<br />

os benefícios, não diminui sequer um mínimo seus recursos quando<br />

ampla e ricamente outorga aos homens seus dons. Aqueles que tiram<br />

de algum recipiente o que dão a outros, por fim chegarão ao fundo.<br />

Porém, não há o risco de que algo semelhante ocorra com Deus, nem


Capítulo 3 • 149<br />

a abundância de seus dons nunca seja tão profusa que ele não vá além<br />

dela, sempre que lhe agrade exercer sua liberalidade. Esta exposição<br />

parece ter alguma plausibilidade, pois a sentença é indefinida. 18<br />

Quanto a mim, porém, sinto-me mais disposto a seguir Agostinho, o<br />

qual explica que isso foi dito concernente a Cristo. Tampouco há alguma<br />

força na objeção de que nesta sentença não se faz nenhuma menção<br />

expressa de Cristo, já que toda ambiguidade é removida pela sentença<br />

seguinte, na qual aquilo que poderia parecer ter sido dito indiscriminadamente<br />

acerca de muitos se limita a Cristo. Porquanto estas palavras<br />

foram inquestionavelmente acrescidas à maneira de explicação, a saber:<br />

que o Pai deu todas as coisas nas mãos de seu Filho, porque ele o<br />

ama, e por isso devem ser lidas como postas em conexão imediata.<br />

O verbo no tempo presente – dá – denota, por assim dizer, um ato<br />

contínuo, pois ainda que Cristo fosse total e imediatamente dotado<br />

com o Espírito, na mais elevada perfeição, todavia, visto que ele flui<br />

continuamente, por assim dizer, de uma fonte, e é amplamente difuso,<br />

não há impropriedade em dizer que Cristo agora o recebe do Pai. Mas,<br />

se alguém preferir interpretar isto de uma forma mais simples, não é<br />

algo incomum que em tais verbos haja mudança de tempos, e esse dá<br />

seria substituído por tem dado. 19<br />

O significado agora fica claro: o Espírito não foi dado a Cristo por<br />

medida, como se o poder da graça que ele possui fosse de alguma sorte<br />

limitado, como Paulo ensina que a cada um é dado segundo a medida<br />

do dom [Ef 4.7], de modo que não existe sequer um que por si só possua<br />

abundância em plenitude. Pois enquanto este é o vínculo mútuo de<br />

comunhão fraterna entre nós, nenhuma pessoa individualmente considerada<br />

possui tudo de que necessita, senão que todos demandam o<br />

auxílio uns dos outros. Cristo difere de nós neste aspecto, a saber: que o<br />

Pai derramou sobre ele uma abundância ilimitada de seu Espírito. E, certamente,<br />

é próprio que o Espírito habite nele sem medida, para que todos<br />

nós recebamos de sua plenitude, como já vimos no primeiro capítulo.<br />

18 “C’est à dire, ne determine point certaime pesonne.”<br />

19 “Et que Donne soit mis pour et donné.”


150 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

A isto se relaciona o que imediatamente segue: que o Pai deu todas<br />

as coisas em suas mãos, pois com estas palavras <strong>João</strong> Batista não só<br />

declara a excelência de Cristo, mas, ao mesmo tempo, põe em realce<br />

o fim e uso das riquezas com as quais ele é dotado, isto é, que Cristo,<br />

tendo sido designado pelo Pai para ser o administrador, distribui a<br />

cada um como lhe apraz e como ele mesmo entende ser necessário,<br />

como Paulo explica mais plenamente no quarto capítulo da Epístola<br />

aos Efésios que acabo de citar. Embora Deus enriqueça seu próprio<br />

povo de formas variadas, isso é peculiar exclusivamente a Cristo, ou<br />

seja, ele tem em suas mãos todas as coisas.<br />

[3.35, 36]<br />

O Pai ama o Filho, e deu todas as coisas em suas mãos. Aquele<br />

que crê no Filho tem a vida eterna; aquele, porém, que não crê<br />

no Filho 20 não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de<br />

Deus.<br />

35. O Pai ama o Filho. Mas, qual é o significado desta razão? Ele<br />

contempla todos os demais com ódio? A resposta é fácil, a saber:<br />

ele não fala do amor comum com que Deus considera os homens<br />

aos quais criou, ou suas demais obras, mas daquele amor peculiar<br />

que, começando com seu Filho, emana dele para todas as criaturas.<br />

Pois esse amor com o qual, abraçando o Filho, ele nos abraça também<br />

nele, o leva a comunicar-nos todos seus benefícios por meio<br />

de suas mãos.<br />

36. Aquele que crê no Filho. Isso foi adicionado não só para informar-nos<br />

de que devemos esperar da parte de Cristo todas as boas<br />

coisas, mas igualmente familiarizar-nos com a maneira como são desfrutadas.<br />

Ele mostra que o desfruto consiste na fé, e, não sem razão,<br />

visto que é por meio dela que tomamos posse de Cristo, traz consigo<br />

tanto a justiça quanto a vida, a qual é o fruto da justiça.<br />

20 “Qui ne eroit point au Fils, ou, qui desobeit au Fils” – “quem não crê no Filho, ou, quem<br />

desobedece ao Filho.”


Capítulo 3 • 151<br />

Quando se declara a fé em Cristo como sendo a causa da vida, descobrimos<br />

disto que só se pode encontrar a vida em Cristo, e que não<br />

podemos ser participantes dela de nenhuma outra forma, senão pela<br />

graça de Cristo mesmo. Mas nem todos concordam quanto à maneira<br />

como a vida de Cristo vem a nós. Alguns o entendem assim: “assim<br />

como, ao crermos, recebemos o Espírito, o qual nos regenera para a<br />

justificação, por meio dessa mesma regeneração obtemos a salvação.”<br />

Pessoalmente, muito embora reconheça que isso é procedente, a saber,<br />

que somos renovados por meio da fé, de modo que o Espírito de<br />

Cristo nos governa, todavia digo que primeiramente devemos levar em<br />

conta o perdão gratuito dos pecados, através do qual somos aceitos<br />

por Deus. Além do mais, digo que toda a confiança de nossa salvação<br />

se fundamenta neste fato, e no mesmo consiste, porque a justificação,<br />

diante de Deus, não pode ser computada em nosso favor de qualquer<br />

outra forma, senão quando ele deixa de nos imputar nossos pecados.<br />

Aquele, porém, que não crê no Filho. Como ele focalizou a vida<br />

em Cristo, por cuja doçura pudesse atrair-nos, assim agora ele sentencia<br />

à morte eterna todos quantos não creem em Cristo. E, dessa forma,<br />

ele exalta a bondade de Deus, quando nos adverte dizendo que não<br />

há outro caminho de escape da morte, a menos que Cristo nos liberte,<br />

pois esta sentença depende do fato de que estão todos amaldiçoados<br />

em Adão.<br />

Ora, se o ofício de Cristo é salvar o que estava perdido, quem<br />

rejeita a salvação nele oferecida com justiça se destina a permanecer<br />

na morte. Acabamos de dizer que isso pertence peculiarmente aos que<br />

rejeitam o evangelho que lhes fora revelado, pois ainda que todo gênero<br />

humano se ache envolvido na mesma destruição, todavia uma<br />

vingança mais pesada e dupla aguarda os que se recusam ter o Filho<br />

de Deus como seu Libertador. E deveras não pode haver dúvida de que<br />

<strong>João</strong> Batista, quando anunciou morte contra os incrédulos, pretendia<br />

incitar-nos, pelo temor dela, ao exercício da fé em Cristo. Também se<br />

manifesta que toda a justiça que o mundo crê possuir fora de Cristo<br />

é condenada e reduzida a nada. Tampouco é alguém capaz de objetar,


152 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

dizendo ser injusto que aqueles que são igualmente devotos e santos<br />

pereçam só porque não creem, porquanto é estulto imaginar que haja<br />

nos homens alguma sombra de santidade, a menos que a mesma lhes<br />

seja dada por Cristo.<br />

Ver a vida, aqui, é posto em lugar de “desfrutar a vida”. Mas, para<br />

expressar mais claramente que não nos resta qualquer esperança, a<br />

menos que sejamos libertos por Cristo, ele diz que a ira de Deus permanece<br />

sobre os incrédulos.<br />

Ainda que o ponto de vista apresentado por Agostinho não me<br />

satisfaça, ou seja, que <strong>João</strong> Batista usou a palavra permanecer a fim de<br />

informar-nos que desde o ventre estávamos destinados à morte, uma<br />

vez que somos todos filhos da ira [Ef 2.3], pelo menos de bom grado<br />

admito uma alusão desse gênero, contanto que mantenhamos o significado<br />

verdadeiro e simples como sendo aquele que já afirmei, a saber:<br />

que a morte pende sobre todos os incrédulos, e os conserva opressos<br />

e esmagados de tal sorte que não têm como escapar. E, de fato, ainda<br />

que os réprobos já estejam naturalmente condenados, todavia, por<br />

sua descrença, atraem sobre si uma nova morte. E é com esse propósito<br />

que o poder de atar foi dado aos ministros do evangelho; pois é uma<br />

justa vingança contra a obstinação dos homens que aqueles que sacodem<br />

de si o salutar jugo de Deus se prendam com as cadeias da morte.


Capítulo 4<br />

[4.1-9]<br />

Quando, pois, o Senhor soube que os fariseus tinham ouvido<br />

que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que <strong>João</strong> (ainda<br />

que Jesus mesmo não batizava, e, sim, seus discípulos.), ele<br />

deixou a Judéia e partiu novamente para a Galileia. E era-lhe<br />

necessário passar por Samaria. Portanto, ele entrou na cidade<br />

de Samaria, que é chamada Sicar, junto ao campo que Jacó deu<br />

a seu filho José. E ficava ali o poço de Jacó; e Jesus, fatigado<br />

da viagem, assentou-se assim junto ao poço, pois era cerca da<br />

hora sexta. Veio uma mulher de Samaria tirar água. Jesus lhe<br />

disse: Dá-me de beber. Pois os discípulos tinham ido à cidade<br />

comprar alimento. A mulher samaritana lhe disse: Como, sendo<br />

tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana?<br />

Porque os judeus não se comunicam com os samaritanos.<br />

1. Quando, pois, o Senhor soube. O evangelista, tencionando<br />

agora apresentar um relato do diálogo que Cristo mantivera com<br />

uma mulher samaritana, começa explicando a causa de sua viagem.<br />

Sabendo que os fariseus eram indispostos em relação a ele, Jesus não<br />

quer expor-se a sua ira antes do tempo próprio. Essa era sua razão<br />

para sair da Judéia. Assim o evangelista nos informa que Cristo não<br />

entrou em território samaritano com o intuito de permanecer ali, mas<br />

porque tinha que passar por ali em seu caminho da Judeia para a Galileia.<br />

Pois até que, através de sua ressurreição, ele abrisse o caminho


154 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

para o evangelho, era necessário que se empenhasse em congregar as<br />

ovelhas de Israel para as quais fora enviado. Favorecer agora os samaritanos<br />

com sua instrução era uma ocorrência extraordinária e quase<br />

acidental, caso se nos permita a expressão.<br />

Mas, por que ele busca o retiro e lugares discretos da Galileia,<br />

como se não quisesse ser conhecido, o que deveria ser exatamente<br />

desejado? Eis minha resposta: ele sabia muito bem o modo próprio<br />

de agir, e fez um proveitoso uso das oportunidades para não permitir<br />

a perda de um momento sequer. Portanto, ele queria seguir seu curso<br />

com regularidade e da maneira que ele julgava ser oportuno. Daí também<br />

ouvirmos que nossas mentes devem ser reguladas de tal maneira<br />

que, de um lado, não venhamos a ser detidos por algum receio de ir<br />

além do dever; e que, do outro, não nos enveredemos precipitadamente<br />

pelos meandros dos perigos. Todos quantos solicitamente desejam<br />

perseguir sua vocação devem ser cuidadosos em manter esta moderação,<br />

por meio da qual prontamente sigam o Senhor mesmo quando<br />

se veem envolvidos por mil mortes. Não avançarão displicentemente,<br />

mas trilharão suas veredas. Portanto, lembremo-nos de que não devemos<br />

avançar além das demandas de nossa vocação.<br />

Que os fariseus tinham ouvido. Os fariseus são mencionados isoladamente<br />

pelo evangelista como sendo hostis a Cristo; não que os<br />

demais escribas fossem amigos, mas porque essa seita, naquele tempo,<br />

estava em ascensão, e porque se deixaram dominar pelo furor sob<br />

o pretexto de zelo santo. É possível que alguém pergunte: invejavam a<br />

Cristo só porque ele tinha mais discípulos, visto que sua ligação mais<br />

forte a <strong>João</strong> os levara a promover sua honra e reputação? O significado<br />

das palavras é diferente, pois embora anteriormente ficassem insatisfeitos<br />

por descobrir que <strong>João</strong> arregimentava discípulos, suas mentes<br />

ficaram ainda mais irritadas quando viram que um número ainda<br />

maior de discípulos se acercava de Cristo. Desde o tempo em que <strong>João</strong><br />

passou a proclamar que ele mesmo nada mais era que o mero arauto<br />

do Filho de Deus, multidões cada vez mais numerosas passaram<br />

a arrebanhar-se em torno de Cristo, e seu ministério já estava quase


Capítulo 4 • 155<br />

completado. Assim, ele gradualmente foi deixando com Cristo o ofício<br />

de ensinar e batizar.<br />

2. Ainda que Cristo mesmo não batizasse. Ele designa de Batismo<br />

de Cristo, o que este conferia pelas mãos de outros, com o fim de informar-nos<br />

que o batismo não deve ser avaliado pelo prisma da pessoa<br />

do ministro, senão que seu poder depende inteiramente de seu Autor,<br />

em cujo nome, e por cuja autoridade, é conferido. Daí extrairmos extraordinária<br />

consolação quando sabemos que nosso batismo não tem<br />

menos eficácia para nos lavar e nos renovar do que se ele fosse ministrado<br />

pelas mãos do Filho de Deus. Tampouco se pode duvidar que,<br />

enquanto viveu no mundo, ele se absteve da administração externa do<br />

sinal, com o expresso propósito de testificar a todas as eras que o batismo<br />

nada perde de seu valor [intrínseco] quando administrado pela<br />

mão do homem mortal. Em suma, Cristo não só batizou interiormente<br />

pela instrumentalidade de seu Espírito, mas o próprio símbolo que<br />

recebemos de um homem mortal deve ser considerado por nós como<br />

se Cristo mesmo manifestasse sua mão desde o céu e a estendesse em<br />

nossa direção.<br />

Ora, se o batismo administrado por um homem é o batismo de<br />

Cristo, ele não cessará de ser o batismo de Cristo, não importa quem<br />

o administre. E isso é suficiente para refutar os anabatistas que defendem<br />

esta tese: quando o ministro é um homem ímpio, o batismo<br />

é também invalidado, e com tal absurdo eles perturbam a Igreja. E<br />

também Agostinho, com muita propriedade, empregou o mesmo argumento<br />

contra os donatistas.<br />

5. Que é chamada Sicar. Jerônimo, em seu epitáfio a Paula, crê<br />

que esta é uma redação incorreta, e que a palavra Sicar deve ser<br />

grafada Siquem. E, de fato, a última parece ter sido o nome antigo e verdadeiro.<br />

Mas é provável que, nos dias do evangelista, a palavra Sicar<br />

já fosse de uso popular. Quanto ao lugar, geralmente se concorda que<br />

fosse uma cidade situada nas proximidades do Monte Gerizim, cujos<br />

habitantes foram traiçoeiramente assassinados por Simão e Levi [Gn<br />

34.25], e cujos fundamentos Abimeleque, um nativo do lugar, mais tar-


156 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de arrasou [Jz 9.45]. Mas a conveniência de sua localização era tal que,<br />

pela terceira vez, uma cidade foi ali edificada, à qual, na época de Jerônimo,<br />

deram o nome de Neápolis. Ao adicionar tantas circunstâncias, o<br />

apóstolo remove toda dúvida, pois somos claramente informados por<br />

Moisés que Jacó destinara aquele campo aos filhos de José [Gn 48.22].<br />

Conhece-se também universalmente que Siquem ficava nas cercanias<br />

do Monte Gerizim. Mais adiante abordaremos sobre o templo que ali<br />

foi edificado, e é sem sombra de dúvida que Jacó, por longo tempo,<br />

fixou habitação naquele lugar com sua família.<br />

E Jesus, fatigado da viagem. Ele não pretextava cansaço, mas estava<br />

literalmente fatigado. Pois para estar mais bem preparado para o<br />

exercício da compreensão e compaixão para conosco, ele tomou sobre<br />

si nossa debilidade, como mostra o apóstolo: não temos um sumo<br />

sacerdote que não possa compadecer-se de nossas enfermidades [Hb<br />

4.15]. Com isso, concorda a circunstância de tempo, pois não surpreende<br />

que, estando sedento e fatigado, ele busque descanso junto ao<br />

poço, ao meio-dia, porque, visto que o dia, desde o nascente até o poente,<br />

tem doze horas, a hora sexta era meio-dia. Quando o evangelista<br />

diz que ele sentou-se assim, ele quer dizer que essa era a atitude de um<br />

homem que era tomada pela fadiga.<br />

7. Uma mulher veio de Samaria. Ao dirigir-se à mulher e pedir-<br />

-lhe água, sua intenção não era meramente obter uma oportunidade<br />

de instruí-la, pois a sede o impelia a querer beber. Mas isso não pode<br />

impedi-lo de valer-se da oportunidade para a instrução que via diante<br />

de si, pois prefere a salvação da mulher a suas próprias necessidades.<br />

Assim, esquecendo sua própria sede, como se ficasse satisfeito com a<br />

obtenção de lazer e oportunidade para o diálogo a fim de poder instruí-la<br />

na verdadeira piedade, ele traça uma comparação entre a água<br />

visível e a espiritual, e assim rega com a doutrina celestial a mente<br />

daquela que lhe recusara água para beber.<br />

9. Como tu, sendo um judeu? Isso equivale a uma reprimenda,<br />

por meio da qual ela destila sobre ele o desdém que geralmente era<br />

nutrido por sua nação. Os samaritanos são conhecidos como sendo a


Capítulo 4 • 157<br />

escória resultante da fusão de judeus e povos estrangeiros. Havendo<br />

corrompido o culto divino, e introduzido muitas cerimônias espúrias<br />

e ímpias, eram, com razão, considerados pelos judeus como um povo<br />

detestável. Contudo, indubitavelmente, os judeus, em sua maioria, fomentavam<br />

seu zelo pela lei como uma capa para seu ódio carnal, pois<br />

muitos agiam movidos mais por ambição e inveja, sentindo desprazer<br />

em ver o país que lhes pertencia ocupado pelos samaritanos, do que<br />

por pesar e intranquilidade por verem o culto divino sendo corrompido.<br />

Havia motivo justo para a separação, desde que seus sentimentos<br />

fossem puros e bem temperados. Por essa razão, Cristo, quando inicialmente<br />

enviou os apóstolos a proclamarem o evangelho, os proíbe<br />

de entrar em contato com os samaritanos [Mt 10.5].<br />

Esta mulher, porém, faz o que é natural a quase todos nós, pois,<br />

desejosos de manter nossa autoestima, levamos muito a sério quando<br />

somos desprezados. Essa doença da natureza humana é tão generalizada<br />

que cada pessoa deseja que seus vícios agradem a outros. Se<br />

alguém nos desaprova por alguma coisa que fazemos ou dizemos, 1 nos<br />

sentimos imediatamente ofendidos sem qualquer razão plausível. Que<br />

cada um de nós examine a si mesmo, e encontrará essa semente do<br />

orgulho em sua mente, até que a mesma seja erradicada pelo Espírito<br />

de Deus. Esta mulher, pois, tendo consciência de que as superstições<br />

de sua nação eram condenadas pelos judeus, dirigi-lhes um insulto na<br />

pessoa de Cristo.<br />

Porque os judeus não se comunicam com os samaritanos. Considero<br />

estas palavras como tendo sido pronunciadas pela mulher.<br />

Outros supõem que o evangelista as adicionou como explicação, e<br />

de fato é de pouca importância que significado o leitor prefira. Eu, porém,<br />

penso ser mais natural crer que a mulher está ironizando Cristo<br />

nestes termos: “O quê?! É lícito você me pedir água para beber, uma<br />

vez que nos tem na conta de tão profanos?”. Mas, se alguém preferir<br />

a outra interpretação, de minha parte não polemizo. Além disso, é<br />

1 “Et qui reprouve ce que nous disons ou faisons.”


158 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

possível que os judeus levassem sua aversão pelos samaritanos além<br />

dos limites da equidade, pois, como já vimos, eles aplicavam o falso<br />

pretexto de zelo a um propósito impróprio, assim era-lhes natural<br />

chegar a excesso, como quase sempre ocorre com aqueles que nutrem<br />

paixões perversas.<br />

[4.10-15]<br />

Jesus respondeu, e lhe disse: Se tu conheceras o dom de Deus,<br />

e quem é que te diz: Dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te<br />

daria água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu não tens com<br />

que a tirar, e o poço é fundo; onde, pois, tens a água viva? 2 És tu<br />

maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço, e dele bebendo<br />

ele próprio, e seus filhos, e seu gado? Jesus respondeu, e lhe<br />

disse: Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede;<br />

mas a água que eu lhe darei será nele um poço de água que<br />

jorrará para a vida eterna. Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me<br />

desta água, para que eu não tenha mais sede e não precise mais<br />

vir aqui tirá-la.<br />

10. Jesus respondeu. Cristo agora, valendo-se da oportunidade,<br />

começa a pregar acerca da graça e do poder de seu Espírito a uma<br />

mulher que de modo algum merecia que ele lhe dirigisse a palavra.<br />

Este é sem dúvida um espantoso exemplo de sua benevolência. Pois o<br />

que havia nesta miserável mulher que, de uma prostituta, de repente<br />

se converte em discípula do Filho de Deus, a despeito de que em todos<br />

nós ele tem exibido um exemplo semelhante de sua compaixão? Nem<br />

todas as mulheres são prostitutas, e nem todos os homens são manchados<br />

por algum delito hediondo. Mas que excelência pode qualquer<br />

um de nós pleitear como razão pela qual ele se digne outorgar-nos a<br />

doutrina celestial e a honra de sermos admitidos em sua família? Tampouco<br />

foi por mero acidente que ocorresse o diálogo com tal pessoa,<br />

2 “Ceste eau vive” – “esta água viva.”


Capítulo 4 • 159<br />

pois o Senhor mostrou-nos, à guisa de modelo, que aqueles a quem<br />

ele comunica a doutrina da salvação não são selecionados com base<br />

em seus méritos. E à primeira vista parece um maravilhoso arranjo<br />

o fato de ele passar de largo por tantos grandes homens na Judéia<br />

e não obstante querer comunicar-se familiarmente com esta mulher.<br />

Mas era necessário que, em sua pessoa, se explicasse quão verdadeiro<br />

é o dito do profeta: “Fui buscado pelos que não perguntavam por mim;<br />

fui achado por aqueles que não me buscavam; a uma nação que não<br />

se chamava de meu nome eu disse: Eis-me aqui. Eis-me aqui” [Is 65.1].<br />

Se tu conheceras o dom de Deus. Estas duas sentenças: Se tu<br />

conheceras o dom de Deus e quem é que fala contigo, as leio separadamente,<br />

considerando a última como uma interpretação da primeira.<br />

Porquanto se tornava uma maravilhosa benevolência da parte de Deus<br />

haver Cristo se apresentado como Aquele que tinha consigo a vida<br />

eterna. O significado será mais pleno se, em vez de e, pusermos a saber,<br />

ou alguma outra palavra desse gênero, 3 assim: “Se tu conheceras<br />

o dom de Deus, a saber, aquele que fala contigo.” Por meio dessas palavras<br />

somos instruídos que então só sabemos o que é Cristo quando<br />

entendermos o que o Pai nos deu nele e que benefícios ele nos traz.<br />

Ora, tal conhecimento começa com a convicção de nossa pobreza,<br />

pois antes que alguém deseje algum remédio é preciso que ele seja<br />

antes afetado por alguma percepção de sua enfermidade. E assim o<br />

Senhor convida não aqueles que já beberam a fartar, mas o sedento;<br />

não aqueles que já estão saciados, e sim o faminto, a comer e a beber.<br />

E por que Cristo seria enviado com a plenitude do Espírito, se não estivéssemos<br />

totalmente vazios?<br />

Além disso, como já fez grande progresso aquele que, sentindo<br />

sua deficiência, reconhece o quanto necessita do auxílio de outros,<br />

assim não lhe seria bastante gemer sob sua angústia, se também não<br />

esperasse auxílio pronto e já preparado. Então nada mais poderíamos<br />

fazer senão consumir-nos em tristeza, ou, pelo menos poderíamos,<br />

3 “Si en lieu de Et, nous mettons A scavoir, ou quelque autre mot semblable.”


160 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

como os papistas, correr de um a outro lado sem direção, e oprimir-<br />

-nos com exaustão inútil e sem objetividade. Mas quando Cristo entra<br />

em cena, já não vagueamos sem rumo, buscando remédio onde o mesmo<br />

não existe, mas corremos direto para ele. O único conhecimento<br />

real e proveitoso da graça de Deus é quando sabemos que ela nos<br />

é exibida em Cristo, e que a mesma nos é oferecida por sua própria<br />

mão. De igual modo, Cristo nos lembra quão eficaz é o conhecimento<br />

de suas bênçãos, visto que o mesmo nos incita a buscá-las e vivificá-<br />

-las em nossos corações. Se conheceras, diz ele, então pedirias. Não é<br />

difícil perceber o desígnio dessas palavras, pois ele tencionava aguçar<br />

o desejo dessa mulher, para que ela não desprezasse nem rejeitasse a<br />

vida que lhe era oferecida.<br />

Ele te daria. Com estas palavras Cristo testifica que, se nossas<br />

orações lhe forem endereçadas, não ficarão sem efeito. E deveras sem<br />

essa confiança a solicitude da oração seria totalmente arrefecida. Mas<br />

quando Cristo satisfaz aos que a ele vão, e se dispõe a satisfazer seus<br />

desejos, já não há mais lugar para indolência nem delonga. E não há<br />

ninguém que não sinta que isso é dito a todos nós, se não fôssemos<br />

impedidos por nossa incredulidade.<br />

Água viva. Ainda que a designação água seja emprestada da presente<br />

ocorrência, e aplicada pelo Espírito, não obstante esta metáfora<br />

é bem frequente na Escritura e repousa sobre bases as mais sólidas.<br />

Pois nos assemelhamos a um solo seco e estéril. Não existe em nós nenhuma<br />

seiva nem vigor, até que o Senhor nos regue com seu Espírito.<br />

Em outra passagem, o Espírito é igualmente denominado água pura<br />

[Hb 10.22], porém em um sentido distinto, ou, seja, porque ele nos<br />

lava e nos purifica daquelas imundícies com que estamos totalmente<br />

contaminados. Mas, nesta passagem e noutras similares, o tema ali<br />

tratado é a energia secreta por meio da qual ele restaura em nós a<br />

vida, a mantém e a conduz à perfeição. Há quem explique isto como se<br />

referindo à doutrina do evangelho, pessoalmente concordando que tal<br />

designação é plenamente aplicável, porém, creio que aqui Cristo inclui<br />

toda a graça de nossa renovação, pois sabemos que ele foi enviado


Capítulo 4 • 161<br />

com o propósito de produzir em nós uma nova vida. Portanto, em minha<br />

opinião, ele tencionava contrastar água com aquela destituição de<br />

todas as bênçãos sob a qual o gênero humano geme e labuta. Ainda,<br />

água viva não é assim chamada a partir de seu efeito, como doador de<br />

vida, senão que a alusão é a diferentes tipos de águas. É chamada viva<br />

porque emana de uma fonte viva.<br />

11. Senhor, tu não tens com que tirá-la. Visto que os samaritanos<br />

eram desprezados pelos judeus, assim estes, em contrapartida,<br />

tratavam os judeus com o mais agudo desdém. Consequentemente,<br />

esta mulher a princípio não só desdenha a Cristo, mas inclusive zomba<br />

dele. Ela percebe plenamente bem que Cristo está falando em termos<br />

figurados, mas faz um jogo de palavras com a intenção de dizer que ele<br />

prometia mais do que podia realizar.<br />

12. És tu maior que nosso pai Jacó? Ela prossegue acusando-o de<br />

arrogância por exaltar-se acima do santo patriarca Jacó. “Jacó”, diz ela,<br />

“ficou satisfeito com este poço para seu uso pessoal e o de toda sua<br />

família; e, porventura, tens uma água mais excelente?”. O quanto essa<br />

comparação é censurável transparece com bastante clareza à luz desta<br />

consideração: que ela compara o servo com seu dono, e um homem<br />

já morto com o Deus vivo; e, no entanto, quantos em nossos próprios<br />

dias caem neste mesmo erro! É preciso muito cuidado para não exaltarmos<br />

seres humanos a ponto de obscurecer a glória de Deus. Aliás,<br />

devemos reconhecer com reverência os dons de Deus, sempre que<br />

eles se manifestem. Portanto, é próprio que honremos os homens que<br />

sejam eminentes em piedade ou dotados com outros dons incomuns.<br />

Mas que isso seja de uma maneira tal que Deus permaneça sempre<br />

acima de todos – que Cristo, com seu evangelho, brilhe gloriosamente,<br />

pois é preciso submeter-lhe todo o esplendor do mundo.<br />

É preciso observar ainda que os samaritanos falsamente se vangloriavam<br />

de descender de pais santos. Da mesma forma os papistas,<br />

ainda que sejam uma semente bastarda, arrogantemente se vangloriam<br />

dos Pais e desprezam os verdadeiros filhos de Deus. Embora os<br />

samaritanos tenham descendido de Jacó segundo a carne, todavia,


162 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

como eram totalmente degenerados e estranhos à genuína piedade,<br />

essa vanglória teria sido ridícula. Mas, visto que na verdade são descendentes<br />

de Cute [2Rs 17.24], ou, pelo menos, arrebanhados dentre<br />

os gentios profanos, ainda não deixaram de apresentar falsas pretensões<br />

ao nome do santo Patriarca. Mas isso não lhes é de nenhuma<br />

serventia, e tal deve ser o caso com todos os que perversamente exultam<br />

na luz dos homens, a ponto de se privarem da luz de Deus e de<br />

nada terem em comum com os santos Pais, cujo nome usam e abusam.<br />

13. Todo aquele que bebe desta água. Embora Cristo perceba<br />

que não está indo plenamente bem, e que inclusive sua instrução está<br />

sendo tratada com desdém, ele continua explicando mais claramente<br />

o que quis dizer. Ele faz distinção entre o uso dos dois tipos de água;<br />

que um serve para o corpo, e só por algum tempo; enquanto que o<br />

poder do outro comunica perpétuo vigor à alma. Porque, uma vez que<br />

o corpo é passível de decadência, assim os auxílios pelos quais ela é<br />

sustentada devem ser falhos e transitórios. Aquilo que vivifica a alma<br />

só pode ser eterno. Além do mais, as palavras de Cristo não destoam<br />

do fato de que os crentes, no próprio fim da vida, ardem com desejo<br />

de mais abundante graça. Pois ele não diz que desde o primeiro dia<br />

bebemos a ponto de ficarmos satisfeitos, mas apenas quer dizer que<br />

o Espírito Santo é uma fonte que flui continuamente, e que, portanto,<br />

não há perigo de a mesma secar para aqueles que foram renovados<br />

pela graça espiritual. E, portanto, ainda que sedentos ao longo de toda<br />

nossa vida, todavia é certo que não recebemos o Espírito Santo por<br />

apenas um dia, ou por um curto período, mas como uma fonte perene<br />

que jamais se nos secará. Assim, os crentes tem sede, e sede profunda,<br />

ao longo de toda sua vida; e no entanto tem abundância de umidade vivificante.<br />

Por menor que seja a medida da graça que recebam, ela lhes<br />

comunica perpétuo vigor, de modo que jamais se secam plenamente.<br />

Quando, pois, ele diz que ficarão satisfeitos, o contraste não é com o<br />

desejo, mas apenas com a sequidão.<br />

Será uma fonte de água a jorrar para a vida eterna. Estas palavras<br />

expressam ainda mais claramente a afirmação precedente, pois


Capítulo 4 • 163<br />

denotam um fluir contínuo de água, o qual mantém neles uma eternidade<br />

celestial durante esta vida mortal e perecível. A graça de Cristo,<br />

pois, não flui para nós por um breve tempo, mas transborda para uma<br />

bendita imortalidade, pois ela não cessa de fluir até que a vida incorruptível,<br />

que tem início aqui e agora, chegue à perfeição.<br />

15. Dá-me desta água. Esta mulher indubitavelmente está suficientemente<br />

cônscia de que Cristo está falando de água espiritual.<br />

Visto, porém, que ela o despreza, está reputando todas suas promessas<br />

como mera nulidade, pois, enquanto a autoridade daquele que fala<br />

não for por nós reconhecida, não teremos permissão de participar de<br />

sua doutrina. Indiretamente, pois, a mulher escarnece de Cristo, dizendo:<br />

“Tu te vanglorias demais, porém não vejo nada; mostra-me a<br />

realidade, se és capaz”.<br />

[4.16-21]<br />

Disse-lhe Jesus: Vai, chama teu marido e volta aqui. A mulher<br />

respondeu, e lhe disse: Eu não tenho marido. Jesus lhe disse:<br />

Tu disseste bem: Não tenho marido; pois já tiveste cinco maridos,<br />

e aquele que agora tens não é teu marido; nisto disseste a<br />

verdade. Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos<br />

pais adoraram neste monte; e tu dizes que Jerusalém é o<br />

lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me, a<br />

hora vem quando nem neste monte nem em Jerusalém adorareis<br />

o Pai.<br />

16. Chama teu marido. Isso parece não ter nenhuma conexão<br />

com o tema, e, na verdade, alguém poderia presumir que Cristo, aborrecido<br />

e frustrado pela impudência da mulher, muda o discurso. Esse,<br />

porém, não é o caso. Pois quando ele percebeu que ela só respondia<br />

ao que ele dizia com zombaria e escárnio, aplicou um remédio apropriado<br />

à enfermidade dela, a saber: abalando a consciência da mulher<br />

com a convicção de seu pecado. E esta é também uma extraordinária<br />

prova de sua compaixão, a saber: quando a mulher se mostra indis-


164 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

posta a voluntariamente ir a ele, então, por assim dizer, a atrai contra<br />

sua vontade. Mas temos de observar principalmente o que já mencionei,<br />

ou seja: que aqueles que são totalmente negligentes e quase<br />

estúpidos precisam ser profundamente feridos pela convicção de seu<br />

pecado, pois tais pessoas considerarão a doutrina de Cristo como algo<br />

insosso, até que, sendo intimadas a comparecerem ante o tribunal de<br />

Deus, se veem compelidas a temer um Juiz tão terrível a quem antes<br />

desprezavam. Todos quantos não têm escrúpulo de insurgir-se contra<br />

a doutrina de Cristo com suas piadas de zombaria têm de ser tratados<br />

dessa maneira, para que sejam levados a sentir que não passarão impunemente.<br />

Tal também é a obstinação de muitos que jamais ouvirão<br />

a Cristo até que sejam subjugados por meio de violência. Portanto,<br />

toda vez que percebermos que o azeite de Cristo perdeu seu aroma,<br />

que o misturemos com vinho para que seu sabor comece a ser sentido.<br />

Sim, isso se faz necessário a todos nós, pois não somos seriamente<br />

afetados pela linguagem de Cristo, a menos que sejamos despertados<br />

pelo arrependimento. Assim, pois, para que alguém tire proveito na<br />

escola de Cristo, seu coração empedernido deve ser subjugado pela<br />

demonstração da misericórdia deste, como a terra, a fim de que venha<br />

a ser frutífera, é preparada e afofada pela aradura, 4 pois é tão-somente<br />

com este conhecimento que toda nossa vanglória é abalada, de modo<br />

que já não ousamos a gracejar de Deus. Portanto, sempre que o desleixo<br />

pela palavra de Deus se assenhoreia de nós, nenhum remédio<br />

será mais apropriado do que cada um se despertando a fim de ponderar<br />

sobre seus pecados, para que se envergonhe e trema perante o<br />

tribunal de Deus e se sinta humilhado e obedeça Àquele a quem tão<br />

temerariamente desprezou.<br />

17. Eu não tenho marido. Ainda não percebemos plenamente o<br />

fruto deste conselho por meio do qual Cristo tencionava ferir o coração<br />

desta mulher, com o intuito de despertar nela o arrependimento.<br />

E de fato vivemos tão intoxicados, ou melhor, entorpecidos por nosso<br />

4 “Tout ainsi que la terre, pour apporter fruict, sera menuisee et amollie par le soc de la<br />

charrue.”


Capítulo 4 • 165<br />

egoísmo, que de modo algum nos deixamos mover pelas primeiras feridas<br />

que nos são infligidas. Cristo, porém, aplica uma cura apropriada<br />

para esta letargia, espremendo o tumor com ainda mais força, repreendendo-a<br />

francamente por sua impiedade. Embora eu não creia que<br />

este seja o único caso de fornicação que aqui se realça, pois quando<br />

ele diz que ela tivera cinco maridos, a razão de tal declaração provavelmente<br />

seja que, sendo uma esposa intransigente e desobediente,<br />

ela constrangera seus maridos a se divorciarem dela. Interpreto estas<br />

palavras assim: “Ainda que Deus te unisse a esposos legítimos, tu não<br />

cessaste de pecar, até que, tornando-te infame por teus numerosos<br />

divórcios, te prostituíste vivendo em fornicação.”<br />

19. Senhor, percebo que tu és profeta. O resultado da reprovação<br />

vem agora a lume, pois a mulher não só modestamente reconhece<br />

seu erro, mas, estando pronta e preparada para ouvir a doutrina de<br />

Cristo, da qual anteriormente desdenhara, ela agora a deseja e a<br />

solicita de bom grado. Portanto, o arrependimento é o princípio da<br />

genuína docilidade, como já me expressei, e abre o portão de acesso<br />

à escola de Cristo. Repetindo, a mulher nos ensina, por meio de<br />

seu exemplo, que, quando nos encontramos com algum mestre, devemos<br />

valer-nos dessa oportunidade, a fim de não sermos ingratos<br />

para com Deus, o qual nunca nos envia profetas sem, por assim dizer,<br />

estender a mão convidando-nos a si. Mas devemos ter em mente o<br />

que Paulo ensina: que devemos dar graças por aqueles que ensinam<br />

bem, 5 porque nos foram enviados por Deus. Como pregarão se não<br />

forem enviados? [Rm 10.15].<br />

20. Nossos pais. É equivocada a opinião que alguns sustentam,<br />

a saber: descobrindo a mulher que a reprimenda era desagradável<br />

e odiosa, astutamente muda de assunto. Ao contrário, ela passa do<br />

particular para o geral e, tendo sido informada de seu pecado, deseja<br />

ser instruída em termos gerais concernente ao culto puro de Deus. Ela<br />

toma um curso próprio e regular, ao consultar um Profeta, visando a<br />

5 “Qui ont la grace de bien enseigner.”


166 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que não mais caísse em equívoco concernente ao modo de cultuar a<br />

Deus. É como se ela inquirisse de Deus mesmo quanto à maneira que<br />

ele escolheu para ser adorado, pois nada é mais perverso do que inventar<br />

vários métodos de culto sem a autoridade da Palavra de Deus.<br />

É bem notório que houve constante controvérsia entre os judeus<br />

e os samaritanos sobre a verdadeira norma de se cultuar a Deus. Ainda<br />

que os filhos de Cute e outros estrangeiros, os quais foram trazidos<br />

para Samaria quando as dez tribos foram levadas para o cativeiro,<br />

fossem constrangidos pelas pragas e castigos divinos 6 a adotar as cerimônias<br />

da lei e a professar o culto do Deus de Israel (como lemos em<br />

2Rs 17.27), todavia a religião que haviam aprendido era imperfeita e<br />

corrompida de muitas maneiras, o que os judeus de modo algum toleravam.<br />

Mas a controvérsia se tornou ainda mais acirrada depois que<br />

Manassés, filho do sumo sacerdote <strong>João</strong>, e irmão de Jado, edificou o<br />

templo no monte Gerizim, quando Dario, o último rei persa, manteve o<br />

governo da Judéia nas mãos de Sambalá, a quem ele colocou ali como<br />

seu lugar-tenente. Pois Manassés, tendo se casado com uma filha do<br />

governador, para que não fosse inferior ao seu irmão, fez-se sacerdote<br />

ali, e granjeou para si, por meio de subornos, tantos apóstolos quanto<br />

pôde, como relata Josefo (Antiguidades XI.vii.2, e viii.2).<br />

Nossos pais adoraram neste monte. Os samaritanos daquele tempo<br />

agiam, como depreendemos das palavras da mulher, de acordo com<br />

o costume daqueles que apostataram da genuína piedade, buscando<br />

escudar-se nos exemplos dos Pais. É certo que isso não constituía razão<br />

plausível para induzi-los a oferecer sacrifícios ali, mas depois de<br />

arquitetar um culto falso e perverso, obstinação imitada, com justificativas<br />

engenhosas e bem maquinadas. Reconheço, aliás, que os homens<br />

desprevenida e impensadamente às vezes se deixam excitar por zelo insensato,<br />

como se tivessem sido golpeados por um moscardo, de modo<br />

que, quando descobrem que alguma coisa foi praticada pelos Santos,<br />

de repente se aferram a tal exemplo sem qualquer exercício da razão.<br />

6 “Par les playes et punitions de Dieu.”


Capítulo 4 • 167<br />

Um segundo erro é ainda mais comum, a saber: tomam por empréstimo<br />

dos Pais seus feitos como uma capa para encobrir seus erros – e isso<br />

pode ser facilmente visto no papado. Mas, como esta passagem é uma<br />

notável prova de quão absurdamente agem os que, em desconsideração<br />

do mandamento de Deus, se conformam aos exemplos dos Pais, devemos<br />

observar de quantas maneiras o mundo comumente peca neste aspecto.<br />

Pois amiúde ocorre que a maioria, sem qualquer discriminação, segue tais<br />

pessoas como Pais que em um mínimo sequer merecem desfrutar do título<br />

de Pais. Assim, percebemos em nossos próprios dias que os papistas,<br />

enquanto escancaram a boca, recitam os Pais, não dão nenhum lugar aos<br />

profetas e apóstolos. Mas, quando mencionam umas poucas pessoas que<br />

merecem ser honradas, colecionam um grande número de homens como<br />

eles próprios, ou pelo menos descem a uma época corrupta que, embora<br />

ainda não prevalecesse um barbarismo tão grosseiro como hoje existe,<br />

contudo a religião e a pureza da doutrina já declinaram grandemente. Devemos,<br />

pois, atentar cuidadosamente para esta distinção: que ninguém<br />

seja considerado Pai senão aqueles que foram manifestamente filhos de<br />

Deus, e que também, pela eminência de sua piedade, foram qualificados<br />

para esta honrosa categoria. Amiúde também erramos neste aspecto: pelas<br />

ações dos Pais temerariamente estabelecemos uma lei comum, pois<br />

a multidão nem imagina que está a conferir honra suficiente aos Pais não<br />

os excluindo da condição comum dos homens. E assim, quando não nos<br />

lembramos de que foram homens falíveis, indiscriminadamente misturamos<br />

seus vícios com suas virtudes. Daí suscitar a pior das confusões na<br />

condução da vida, pois enquanto todas as ações dos homens devem ser<br />

testadas pela norma da lei, sujeitamos a balança àquelas coisas que devem<br />

ser pesadas por ela, e, em suma, onde tanta importância é anexada à<br />

imitação dos Pais, o mundo imagina que não pode haver perigo algum em<br />

pecar seguindo seu exemplo.<br />

Um terceiro erro é a imitação falsa, mal orientada ou irrefletida; 7<br />

isto é, quando nós, ainda que não imbuídos do mesmo espírito, ou<br />

7 “Une fausse imitation, et mal reiglee, ou inconsideree.”


168 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

não autorizados pelo mesmo mandamento, pleiteamos como exemplo<br />

nosso o que algum dos Pais fez. Por exemplo: se algum indivíduo em<br />

particular resolveu vingar-se das injúrias feitas a irmãos, só porque<br />

Moisés agiu assim [Ex 2.12] ou se alguém fez matar fornicadores, só<br />

porque isso foi praticado por Fineias [Nm 25.7]. Aquela fúria selvagem<br />

em matar seus próprios filhos se originou, como muitos pensam, no<br />

desejo dos judeus em assemelhar-se a seu pai Abraão, como se a ordem:<br />

Oferece teu filho Isaque [Gn 22.2], fosse uma ordem geral, e não,<br />

antes, uma prova extraordinária de um único homem. Essa falsa imitação<br />

(κακοζηλία) geralmente é produzida pela soberba e confiança<br />

excessiva, quando os homens reivindicam para si mesmos mais do<br />

que tem o direito de fazê-lo, e quando cada pessoa não se mede por<br />

seu próprio padrão. Não obstante, nenhuma de tais pessoas é de fato<br />

imitadora dos Pais, a maioria não passando de símios. Que uma considerável<br />

porção do antigo monaquismo procedeu da mesma fonte será<br />

reconhecido por aqueles que cuidadosamente examinarem os escritos<br />

dos antigos. E, portanto, a menos que decidamos errar por nossa própria<br />

conta, devemos sempre descobrir o que o espírito de cada pessoa<br />

tem recebido, o que requer sua vocação, o que é adequado a sua condição<br />

e o que lhe é exigido fazer.<br />

Estreitamente aliado a este terceiro erro vem outro, a saber: confundir<br />

os tempos, quando os homens, devotando toda sua atenção aos<br />

exemplos dos Pais, não levam em conta que o Senhor tem desde então<br />

ordenado uma norma de conduta distinta à qual devem seguir. 8 Tal ignorância<br />

deve ser atribuída à enorme massa de cerimônias pelas quais<br />

a Igreja se viu sepultada sob o papado. Imediatamente após os primórdios<br />

da Igreja Cristã, ela começou a errar neste aspecto, visto que uma<br />

tola afetação em copiar as cerimônias judaicas exerceu uma dominante<br />

influência. Os judeus tinham seus sacrifícios, e para que os cristãos<br />

não lhes fossem inferiores em esplendor, inventaram a cerimônia de<br />

sacrificar Cristo, como se a condição da Igreja Cristã fosse pior quan-<br />

8 “A depouis ordonné et commandé une autre conduite et maniere de faire, qu’ils ont à<br />

suyvre.”


Capítulo 4 • 169<br />

do houvesse um fim de todas aquelas sombras pelas quais o fulgor de<br />

Cristo fosse obscurecido. Mais tarde, porém, essa fúria irrompeu com<br />

mais força e difundiu-se além de todos os limites.<br />

Para que não caiamos nesse mesmo erro, devemos estar sempre<br />

atentos à presente norma. Outrora, incenso, luminárias, vestes sacras,<br />

altares e cerimônias desse gênero agradavam a Deus e a razão<br />

consistia em que nada é mais precioso ou aceitável a Deus do que a<br />

obediência. Agora, desde a vinda de Cristo, tais questões mudaram<br />

inteiramente. Devemos, pois, considerar o que nos impõe sob o evangelho,<br />

para que não sigamos à risca o que os Pais observaram sob a lei,<br />

pois o que naquele tempo era uma observação santa do culto divino<br />

agora seria um chocante sacrilégio.<br />

Os samaritanos se transviaram por não considerar, no exemplo<br />

de Jacó, quão amplamente a condição daquele tempo diferia da de<br />

seu próprio tempo. Aos Patriarcas se permitiu erigir altares em qualquer<br />

lugar, visto que ainda não havia sido fixado um lugar mais tarde<br />

designado pelo Senhor. Mas desde o tempo em que Deus ordenou que<br />

o templo fosse edificado no monte Sião, cessou aquela liberdade da<br />

qual outrora desfrutaram. Por essa razão, Moisés disse: “Não fareis<br />

conforme tudo o que hoje fazemos aqui, cada qual tudo o que bem<br />

parece aos seus olhos. Mas no lugar que o Senhor Escolher numa de<br />

tuas tribos ali oferecerás teus holocaustos, e ali farás tudo o que te ordeno”<br />

[Dt 12.8, 14]. Porque, desde o tempo em que o Senhor deu a lei,<br />

ele restringiu o verdadeiro culto a ele devido às exigências daquela lei,<br />

ainda que antigamente um maior grau de liberdade fosse desfrutado.<br />

Um pretexto semelhante foi oferecido por aqueles que cultuaram em<br />

Betel, pois ali Jacó oferecera um solene sacrifício a Deus, mas depois<br />

que o Senhor fixou o lugar de sacrifício em Jerusalém, não mais Betel,<br />

casa de Deus, mas Betaven, casa da perversidade.<br />

Agora, percebemos qual era a natureza da questão. Os samaritanos<br />

tinham o exemplo dos Pais como sua norma: os judeus descansavam<br />

no mandamento divino. Esta mulher, embora até aqui seguisse o costume<br />

de sua nação, não vivia plenamente satisfeita com ele. Por culto


170 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

devemos entender, aqui, não qualquer tipo de culto (pois diariamente<br />

se podem oferecer orações em qualquer lugar), mas aquele que era<br />

associado com sacrifícios e que constituía uma pública e solene profissão<br />

da religião.<br />

21. Mulher, crê-me. Na primeira parte desta réplica, ele brevemente<br />

descarta o culto cerimonial que fora designado sob a lei, pois<br />

quando diz que a hora chegou quando não haverá lugar peculiar e fixo<br />

para o culto, ele tem em mente que o que Moisés legislou foi só por<br />

algum tempo, e que o tempo estava chegando quando o muro de separação<br />

[Ef 2.4] seria derrubado. E, assim, ele estende o culto divino<br />

muito além de seus estreitos limites de outrora, para que os samaritanos<br />

viessem a ser participantes dele.<br />

A hora vem. Ele usa o tempo presente em vez do futuro, mas o<br />

significado é que a revogação da lei já está chegando, em seu relacionamento<br />

com o templo, o sacerdócio e outras cerimônias externas. Ao<br />

chamar Deus de Pai, ele parece indiretamente contrastá-lo com os Pais<br />

a quem a mulher faz menção e comunicar esta instrução de que Deus<br />

será o Pai comum de todos, de modo que ele será geralmente adorado<br />

sem distinção de lugares ou de nações.<br />

[4.22-26]<br />

Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos,<br />

porque a salvação procede dos judeus. Mas a hora vem,<br />

e já chegou, quando os verdadeiros adoradores adorarão o Pai<br />

em espírito e em verdade; porque o Pai busca tais para adorá-lo.<br />

Deus é Espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito<br />

e em verdade. Disse-lhe a mulher: Eu sei que o Messias virá,<br />

o qual se chama Cristo; portanto, quando ele vier, nos ensinará<br />

todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu sou, quem fala contigo.<br />

Ele agora explica mais amplamente o que só em termos breves<br />

relanceara sobre a abolição da lei. Porém divide a substância de seu<br />

discurso em duas partes. Na primeira, ele acusa de superstição e erro


Capítulo 4 • 171<br />

a forma de culto divino que fora usada pelos samaritanos, porém testifica<br />

que a forma genuína e legítima era aquela observada pelos judeus.<br />

E ele aponta a causa da diferença, a saber: os judeus obtiveram a certeza<br />

quanto a seu culto com base na Palavra de Deus, enquanto os<br />

samaritanos não tinham recebido nada definido da boca de Deus. Na<br />

segunda parte, ele declara que as cerimônias até então observadas<br />

pelos judeus logo expirariam.<br />

22. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos.<br />

Eis uma sentença digna de ser remorada, e nos ensina que não<br />

devemos tentar qualquer coisa, em matéria de religião, temerariamente<br />

ou à revelia, porque, a menos que haja conhecimento, não é a Deus<br />

que cultuamos, mas a um fantasma ou ídolo. Todas as boas intenções,<br />

como são chamadas, são fulminadas por esta sentença como por um<br />

raio, pois dela aprendemos que os homens nada podem fazer senão<br />

errar quando se deixam guiar por sua própria opinião sem a Palavra<br />

ou mandamento de Deus. Pois Cristo, defendendo a pessoa e causa<br />

de sua nação, mostra que os judeus são amplamente diferentes dos<br />

samaritanos. E por quê?<br />

Porque a salvação procede dos judeus. Com estas palavras ele<br />

tem em mente que eles possuem a superioridade neste aspecto; que<br />

Deus fizera com eles um pacto de salvação eterna. Alguns o restringem<br />

a Cristo, que era descendente dos judeus; e procede, visto que todas as<br />

promessas de Deus foram confirmadas e ratificadas nele [2Co 1.20]. Não<br />

há salvação senão nele. Mas não pode haver dúvida de que Cristo dá a<br />

preferência aos judeus sobre esta base: que eles não cultuam alguma<br />

deidade desconhecida, mas exclusivamente a Deus que se lhes revelou,<br />

e por quem foram adotados como seu povo. Pela palavra salvação<br />

devemos entender aquela manifestação salvífica que lhes fora feita<br />

concernente à doutrina celestial.<br />

Mas, por que ele diz que ela procedia dos judeus, quando na verdade<br />

ela fora depositada com eles, para que somente eles pudessem<br />

desfrutá-la? Em minha opinião, ele faz alusão ao que fora pregado pelos<br />

profetas: que a lei procederia de Sião [Is 2.3; Mq 4.2], pois foram


172 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

separados por algum tempo do restante das nações sob a expressa<br />

condição de que o puro conhecimento de Deus irradiasse deles para<br />

o mundo inteiro. Equivale a isto: que Deus não é adorado apropriadamente<br />

senão mediante a certeza de fé, a qual não pode ser produzida<br />

de qualquer outra maneira senão pela Palavra de Deus. Daí, segue-<br />

-se que todos quantos abandonam a Palavra caem em idolatria, pois<br />

Cristo testifica plenamente que um ídolo, ou uma imaginação de seu<br />

próprio cérebro, substitui a Deus quando os homens são ignorantes<br />

do verdadeiro Deus. Ele acusa, ainda, de ignorância todos aqueles a<br />

quem Deus não se revelou, pois logo que somos privados da luz de sua<br />

Palavra, as trevas e a cegueira reinam.<br />

É preciso observar que os judeus, quando traiçoeiramente renunciavam<br />

o pacto da vida eterna que Deus fizera com seus pais, eram<br />

privados do tesouro que até aquele tempo haviam desfrutado, pois<br />

não tinham sido expulsos da Igreja de Deus. Agora que negaram o Filho,<br />

não tinham nada em comum com o Pai, pois todo aquele que nega<br />

o Filho não tem o Pai [1Jo 2.23]. O mesmo juízo se deve formar acerca<br />

de todos os que apostatam da fé pura do evangelho em prol de suas<br />

próprias invenções e tradições dos homens. Ainda que os que adoram<br />

a Deus segundo seu próprio critério ou tradições humanas se lisonjeiam<br />

e se aplaudem em sua obstinação, esta única palavra, trovejando<br />

do céu, lança prostrados tantos quantos se imaginam divinos e santos:<br />

Vós adorais o que não conheceis. Segue-se disto que, se quisermos que<br />

nossa religião seja aprovada por Deus, ela tem de repousar no conhecimento<br />

obtido de sua Palavra.<br />

23. Mas a hora vem. Agora vem a última sentença concernente a<br />

revogação do culto ou cerimônias 9 prescritas pela lei. Ao dizer que a<br />

hora vem, ou que virá, ele mostra que a ordem estabelecida por Moisés<br />

não será perpétua. Ao dizer que a hora já chegou, ele põe um fim às cerimônias<br />

e declara que o tempo de reforma mencionado pelo apóstolo<br />

[Hb 9.10], portanto, já se cumpriu. No entanto, ele aprova o templo,<br />

9 “C’est à dire, des ceremonies.”


Capítulo 4 • 173<br />

o sacerdócio e todas as cerimônias a elas conectados, até onde se relacionam<br />

com o passado. Uma vez mais, para mostrar que Deus não<br />

escolhe ser cultuado ou em Jerusalém ou no monte Gerizim, ele toma<br />

um princípio mais elevado, a saber: que o culto verdadeiro a ele devido<br />

consiste no espírito; pois daqui se segue que em todos os lugares<br />

ele pode ser cultuado apropriadamente.<br />

Mas a primeira inquirição que se apresenta aqui é: Por que, e em<br />

que caso, é o culto divino chamado espiritual? Para entender isto, é<br />

preciso atentar para o contraste entre o espírito e os emblemas externos,<br />

bem como entre as sombras e a realidade. Lemos que o culto<br />

divino consiste no espírito porque ele nada mais é do que a fé interior<br />

do coração que produz a oração, e em seguida a pureza da consciência<br />

e da renúncia, para que possamos ser dedicados à obediência a Deus<br />

como santos sacrifícios.<br />

Daí surge outra pergunta: Os Pais não o adoraram espiritualmente<br />

sob a lei? Eis minha resposta: visto que Deus é sempre imutável, ele<br />

não aprovou desde o princípio do mundo qualquer outro culto além<br />

daquele que é espiritual e que se harmoniza com sua própria natureza.<br />

Isso é sobejamente atestado pelo próprio Moisés, que declara em<br />

muitas passagens que a lei não tem outro objetivo senão que o povo<br />

se una a Deus com fé e uma consciência pura. Mas declara-se ainda<br />

mais claramente pelos profetas quando atacam com severidade a hipocrisia<br />

do povo, porque pensavam que satisfaziam a Deus quando<br />

realizavam os sacrifícios e faziam uma exibição externa. É desnecessário<br />

citar aqui muitas provas que se encontram em toda parte, mas<br />

as passagens mais notáveis são as seguintes: Salmos 1; Isaías 1; 58;<br />

66; Miquéias 5; Amós 7. Mas enquanto o culto divino sob a lei era espiritual,<br />

o mesmo estava envolvido por muitas cerimônias externas,<br />

que se assemelhavam a algo carnal e terreno. Por essa razão, Paulo<br />

chama as cerimônias carne e os elementos desprezíveis do mundo [Gl<br />

4.9].De igual modo, o autor da Epístola aos Hebreus diz que o santuário<br />

antigo, com seus acessórios, era terreno [Hb 9.1]. Assim podemos com<br />

justiça dizer que o culto da lei era espiritual em sua substância, mas,


174 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

com respeito a sua forma, era algo terreno e carnal, pois a totalidade<br />

daquela economia, a realidade da qual agora se manifesta plenamente,<br />

consistia em sombras.<br />

Agora vemos o que os judeus tinham em comum conosco, e em<br />

que aspecto eles diferiam de nós. Em todas as eras Deus quis ser cultuado<br />

pela fé, pela oração e pelas ações de graças, pureza de coração<br />

e inocência de vida, e em nenhuma época ele se deleitou em qualquer<br />

outro sacrifício. Sob a lei, porém, havia várias adições, de modo que o<br />

espírito e a verdade estavam ocultos sob formas e sombras, enquanto<br />

que agora, que o véu do templo foi rasgado [Mt 27.51], nada está oculto<br />

nem obscuro. Há deveras entre nós, nos dias atuais, alguns exercícios<br />

externos de piedade, os quais nossa debilidade faz necessário, mas tal<br />

é a moderação e sobriedade deles que não obscurecem a plena verdade<br />

de Cristo. Em suma, o que foi exibido aos pais sob figuras e sombras<br />

é agora publicamente exibido.<br />

Ora, no papado esta distinção é não só confundida, mas totalmente<br />

subvertida, pois ali as sombras são não menos espessas do<br />

que outrora sob a religião judaica. Não se pode negar que Cristo aqui<br />

estabelece uma distinção óbvia entre nós e os judeus. Sejam quais<br />

forem os subterfúgios pelos quais os papistas tentam escapar, é evidente<br />

que diferimos dos pais em nada mais do que na forma externa,<br />

porque, enquanto adoravam a Deus espiritualmente, eram obrigados<br />

a efetuar cerimônias que foram abolidas pela vinda de Cristo. Assim,<br />

todos quantos oprimem a Igreja com uma excessiva multidão de cerimônias,<br />

fazem o que está em seu poder com o intuito de privar a<br />

Igreja da presença de Cristo. Não me detenho para examinar as fúteis<br />

justificativas que alegam, ou seja, que muitas pessoas na atualidade<br />

tem tanta necessidade daqueles auxílios que os judeus tiveram nos<br />

tempos de outrora. É sempre nosso dever inquirir por qual ordem<br />

o Senhor quis que sua Igreja fosse governada, pois unicamente ele<br />

sabe plenamente o que nos é conveniente. Ora, é verdade que nada<br />

é mais divergente com a ordem designada por Deus do que a pompa<br />

grosseira e singularmente carnal que prevalece no papado. O espírito


Capítulo 4 • 175<br />

deveras estava oculto pelas sombras da lei, porém as máscaras do<br />

papado o desfiguram totalmente. Por isso, não devemos fechar os<br />

olhos para corrupções tão grosseiras e deprimentes. Sejam quais forem<br />

os argumentos que forem empregados por homens ingênuos, ou<br />

por aqueles que não têm coragem suficiente para corrigir os vícios<br />

– que são questões duvidosas e devem ser mantidos como indiferentes<br />

–, certamente não se pode tolerar que a norma estabelecida por<br />

Cristo seja violada.<br />

Os verdadeiros adoradores. Tudo indica que indiretamente Cristo<br />

reprova a obstinação de muitos, a qual foi mais tarde exibida, pois<br />

sabemos quão obstinados e contenciosos foram os judeus quando o<br />

evangelho se manifestou, pondo-se em defesa das cerimônias a que<br />

tanto se acostumaram. Esta afirmação, porém, tem um significado ainda<br />

mais extenso, pois sabendo que o mundo jamais seria inteiramente<br />

livre das superstições, ele assim separa os adoradores devotos e íntegros<br />

dos que eram falsos e hipócritas. Armados com este testemunho,<br />

não hesitemos em condenar os papistas em todas suas invenções, e<br />

ousadamente desprezemos suas censuras. Pois, que razão temos para<br />

temer quando aprendemos que Deus se agrada deste culto puro e<br />

simples, o qual é desdenhado pelos papistas, visto o mesmo não se<br />

achar assistido por uma incômodo massa de cerimônias? E que utilidade<br />

lhes traz o fútil esplendor da carne, quando Cristo declara que<br />

nelas o Espírito é apagado? O que significa adorar a Deus em espírito<br />

e em verdade transparece claramente à luz do que já ficou expresso.<br />

Significa abandonar os emaranhamentos das antigas cerimônias e reter<br />

simplesmente o que é espiritual no culto divino, pois a verdade do<br />

culto divino consiste no espírito, e as cerimônias não passam de certo<br />

tipo de acessório. E aqui devemos uma vez mais observar que verdade<br />

não é comparada com falsidade, mas com adição externa das figuras<br />

da lei, 10 de modo que – para usar uma expressão comum – ela é a substância<br />

pura e simples do culto espiritual.<br />

10 “Des figures de la Loy.”


176 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

24. Deus é Espírito. Esta é uma afirmação extraída da própria natureza<br />

de Deus. Visto os homens serem carne, não devemos sentir-nos<br />

surpresos se eles se deleitam tanto naquelas coisas que correspondem<br />

a sua própria disposição. Daí ocorrer que engendrem tantas coisas<br />

para o culto divino, as quais são tão cheias de esplendor visível, porém<br />

destituídas de solidez. Eles, porém, deviam antes de tudo considerar<br />

que as mesmas nada têm a ver com Deus, que não pode harmonizar-se<br />

com a carne como o fogo não pode harmonizar-se com a água. Esta<br />

simples consideração, quando a inquirição se relaciona com o culto<br />

divino, deve ser suficiente para restringir a libertinagem de nossa mente,<br />

ou seja, que Deus está tão longe ser como nós, que essas coisas<br />

que nos agradam tanto são objetos de sua repugnância e abominação.<br />

E se os hipócritas se deixaram cegar tanto por sua soberba, que não<br />

temem sujeitar Deus a sua opinião, ou melhor, a seus desejos ilícitos,<br />

saibamos que esta modéstia não mantém o mais inferior lugar no verdadeiro<br />

culto divino, a saber, considerar com suspeita tudo quanto é<br />

agradável segundo a carne. Além disso, visto que não podemos alcançar<br />

as altitudes divinas, lembremo-nos de que devemos buscar em sua<br />

Palavra a norma pela qual somos governados. Esta passagem é amiúde<br />

citada pelos Pais contra os arianos para provar a divindade do Espírito<br />

Santo. Porém é impróprio forçá-la para tal propósito, pois Cristo simplesmente<br />

declara aqui que seu Pai é de uma natureza espiritual, e por<br />

isso não se deixa mover por questões frívolas, como os homens, pela<br />

leviandade e instabilidade de seu caráter, costumam fazer.<br />

25. O Messias está para vir. Embora a religião entre os samaritanos<br />

fosse corrompida e mesclada com muitos erros, não obstante<br />

alguns princípios extraídos da lei continuavam impressos em suas<br />

mentes, tais como aquele que se relacionava com o Messias. Ora, é<br />

provável que, quando a mulher certificou, à luz do discurso de Cristo,<br />

que uma mudança mui extraordinária estava para acontecer na Igreja<br />

de Deus, sua mente instantaneamente recorreu à reminiscência de<br />

Cristo, em quem ela esperava que todas as coisas fossem plenamente<br />

restauradas. Ao dizer que o Messias estava para vir, tudo indica que ela


Capítulo 4 • 177<br />

fala do tempo como já chegado, e de fato é suficientemente evidente,<br />

à luz de muitos argumentos, que as mentes dos homens em toda parte<br />

se achavam despertas pela expectativa do Messias, o qual restauraria<br />

vida social que se achava miseravelmente conspurcada, ou melhor,<br />

que estava totalmente arruinada.<br />

Isso, pelo menos, está além de toda controvérsia, a saber, que<br />

a mulher prefere Cristo a Moisés e a todos os profetas no ofício docente,<br />

pois ela compreende três coisas em poucas palavras. Primeiro,<br />

que a doutrina da lei não era absolutamente perfeita, e que nada além<br />

dos primeiros princípios foram dados nela, pois se ali não fosse feito<br />

algum progresso adicional, ela não teria dito: o Messias nos ensinará<br />

todas as coisas. Há um contraste implícito entre ele e os profetas, ou<br />

seja, seu ofício peculiar é conduzir seus discípulos ao alvo, enquanto<br />

os profetas só havia lhes dado as instruções mais elementares e, por<br />

assim dizer, os guiaram na trajetória. <strong>Segundo</strong>, a mulher declara que<br />

espera que esse Cristo seja o intérprete de seu Pai e o mestre e instrutor<br />

de todos os santos. Por fim, ela expressa sua convicção de que não<br />

devemos desejar algo melhor ou mais perfeito do que sua doutrina,<br />

mas que, ao contrário, este é o mais profundo objetivo da sabedoria,<br />

além do qual é ilícito ir.<br />

Desejo que aqueles que ora se vangloriam de ser as colunas da<br />

Igreja Cristã pelo menos imitem esta pobre mulher, ficando satisfeita<br />

com a simples doutrina de Cristo, em vez de reivindicar não sei que<br />

poder de superintendência para ir após suas invenções. Pois de que<br />

fonte foi a religião do papa e Maomé coligida senão das ímpias adições<br />

por meio das quais imaginaram que trariam a doutrina do evangelho a<br />

um estado de perfeição? Como se ela tivera sido incompleta sem tais<br />

tolices. Mas quem quer que seja bem instruído na escola de Cristo não<br />

solicitará outros instrutores, e na verdade nem mesmo os receberá.<br />

26. Eu sou, quem fala contigo. Ao dar-se a conhecer àquela mulher<br />

de que ele é o Messias, inquestionavelmente se apresenta como<br />

seu Mestre, em aquiescência com a expectativa que ele nutria. Por isso,<br />

creio ser provável que ele continuasse ministrando instrução mais


178 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

completa a fim de satisfazer sua sede. Ele tencionava dar tal prova de<br />

sua graça, no caso dessa pobre mulher, para que pudesse testificar a<br />

todos que ele jamais deixa de cumprir seu ofício, quando desejamos<br />

tê-lo por nosso Mestre. Portanto, não há risco de que ele venha a frustrar<br />

algum dos que ele descobre estarem dispostos a se tornar seus<br />

discípulos. Mas os que se recusam a se lhe submeter, como vemos<br />

fazer muitos homens soberbos e profanos, ou que esperam encontrar<br />

alhures sabedoria mais perfeita – como os maometanos e papistas –,<br />

merecem ser assenhoreados por inumeráveis acorrentamentos e por<br />

fim ser imersos num abismo de erros. Repetindo, por meio destas palavras:<br />

“Eu, que falo contigo, sou o Messias, o Filho de Deus”, ele emprega<br />

o título Messias como um selo para ratificar a doutrina de seu evangelho,<br />

pois devemos lembrar que ele foi ungido pelo Pai, e que o Espírito<br />

de Deus repousou sobre ele para que pudesse trazer-nos a mensagem<br />

de salvação, como declara Isaías [61.1].<br />

[4.27-34]<br />

E, naquele ínterim, seus discípulos chegaram e admiraram que<br />

ele estivesse falando com a mulher. Mas nenhum deles disse:<br />

O que inquires, ou por que falas com ela? Portanto, a mulher<br />

deixou seu cântaro e voltou à cidade e disse aos homens: Vinde<br />

e vede um homem que me disse todas as coisas que tenho<br />

feito; não seria este o Cristo? Eles, portanto, deixaram a cidade<br />

e vieram ter com ele. Nesse ínterim seus discípulos lhe rogaram,<br />

dizendo: Mestre, come. Ele, porém, lhes disse: Tenho um<br />

alimento para comer que não conheceis. Os discípulos, pois,<br />

disseram entre si: Teria alguém lhe trazido alguma coisa para<br />

comer? Disse-lhes Jesus: Minha comida consiste em fazer a<br />

vontade daquele que me enviou e concretizar sua obra.<br />

27. Seus discípulos chegaram e se admiraram. Para que os discípulos<br />

se admirassem, como relata o evangelista, tinham que ser<br />

motivados por uma de duas causas: ou que se sentissem ofendidos


Capítulo 4 • 179<br />

pela condição humilde da mulher, ou considerassem que os judeus<br />

eram contaminados por manter algum diálogo com os samaritanos.<br />

Ora, ainda que ambos esses sentimentos procedessem de uma devota<br />

reverência por seu Mestre, todavia estão errados em maravilhar-se<br />

como sendo algo impróprio que ele se dignasse de conceder tão grande<br />

honra a uma mulher que era totalmente menosprezada. Pois, por<br />

que não olharam antes para si mesmos? Certamente não teriam encontrado<br />

menos razão para espanto, visto que não eram homens de<br />

nenhuma notabilidade e quase mesmo a escória do povo, sendo postos<br />

no mais elevado posto de honra. E, no entanto, é proveitoso observar<br />

o que o evangelista diz – que não se aventuravam a formular sequer<br />

uma pergunta, pois somos instruídos por seu exemplo que, se alguma<br />

coisa nas obras ou palavras de Deus e de Cristo for desagradável aos<br />

nossos sentimentos, não devemos dar rédeas soltas aos nossos impulsos<br />

a ponto de ousadamente murmurarmos, mas devemos conservar<br />

um modesto silêncio, até que aquilo que nos esteja oculto se revele do<br />

céu. O fundamento de tal modéstia está no temor de Deus e na reverência<br />

por Cristo.<br />

28. Portanto, a mulher deixou o cântaro. Esta circunstância é<br />

relatada pelo evangelista para expressar o ardor do zelo da mulher,<br />

pois o ato de deixar seu cântaro e voltar à cidade é uma indicação de<br />

pressa. E esta é a natureza da fé que, quando nos tornarmos participantes<br />

da vida eterna, desejamos levar outros participar dela conosco.<br />

Tampouco é possível que o conhecimento de Deus fique sepultado e<br />

inativo em nossos corações sem se manifestar diante dos homens,<br />

pois é verdadeiro aquele dito: Eu cri, e por isso falarei [Sl 116.10]. A<br />

solicitude e prontidão da mulher são tão mais dignas de atenção pelo<br />

fato de que o que ela acendeu neles foi apenas uma pequena fagulha<br />

de fé, pois ela tinha provado muito pouco de Cristo quando divulgou<br />

sua fama por toda a cidade.<br />

Naqueles que já fizeram moderado progresso em sua escola, a indolência<br />

será extremamente desditosa. Ela, porém, poderia parecer<br />

ser merecedora de opróbrio por essa conta, ou seja, enquanto ainda é


180 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ignorante e instruída de forma muito elementar, ela vai além dos limites<br />

de sua fé. Eis minha resposta: ela teria agido inconsideradamente<br />

se houvera assumido o ofício de mestra, porém quando nada mais deseja<br />

senão excitar seus concidadãos a ouvir a voz de Cristo, diríamos<br />

que ela esqueceu a si mesma ou fez mais do que tinha o direito de<br />

fazer. Ela exerce meramente o ofício de trombeta ou de um sino a convidar<br />

outros a vir a Cristo.<br />

29. Vede um homem. Visto que ela aqui fala em termos de dúvida,<br />

poderia parecer não ter sido profundamente abalada pela autoridade<br />

de Cristo. Eis minha resposta: visto não ter sido qualificada a discursar<br />

sobre mistérios tão profundos, ela diligenciou-se, segundo sua<br />

frágil capacidade, a levar seus concidadãos a permitirem deixar-se<br />

instruir por Cristo. Ela empregava um estimulante mui poderoso para<br />

despertá-los, quando ela bem sabia, por meio de um sinal que não era<br />

obscuro nem duvidoso, que ele era profeta, porque, uma vez que não<br />

podiam formar um juízo de sua doutrina, essa preparação inferior era-<br />

-lhes útil e bem adaptada. Tendo, pois descoberto que Cristo revelara<br />

à mulher coisas que estavam ocultas, inferiram disso que ele é um<br />

profeta de Deus. Uma vez certificados de tal fato, então começam a<br />

entender sua doutrina. A mulher, porém, vai além, pois ela os convida<br />

a inquirir se ele era ou não o Messias, sentindo-se satisfeita se pelo<br />

menos pudesse persuadi-los a buscarem, de sua livre vontade, o que<br />

ela já havia encontrado em Cristo; porque ela sabia que encontrariam<br />

mais do que ela prometera.<br />

Quem me disse todas as coisas que já fiz. Por que ela mente, dizendo<br />

que Cristo lhe disse todas as coisas? Já demonstrei que Cristo<br />

não a reprovou por sequer um único exemplo de fornicação, senão<br />

que pôs diante dela, em poucas palavras, muitos pecados que ela<br />

cometera ao longo da vida. Pois o evangelista não registrou minuciosamente<br />

cada sentença, mas declara em termos gerais que Cristo,<br />

com o fim de reprimir a loquacidade da mulher, desnudou sua vida<br />

pregressa e a atual. Contudo, vemos que a mulher, acesa por santo<br />

zelo, não se poupou, nem ainda sua reputação, para engrandecer o


Capítulo 4 • 181<br />

nome de Cristo, pois ela não teve escrúpulo algum de relatar passagens<br />

desditosas de sua vida.<br />

32. Eu tenho uma comida para comer que não conheceis.<br />

É espantoso que estando ele fatigado e faminto ainda recuse a<br />

comer, pois se ele disse que agia assim com o propósito de instruir-nos,<br />

por meio de seu exemplo, a enfrentar fome, por que,<br />

pois, não agia sempre assim? Mas ele tinha outro objetivo, além<br />

de dizer que devemos simplesmente rejeitar alimento, pois é preciso<br />

que atentemos bem para esta circunstância, a saber, que sua<br />

ansiedade sobre os presentes negócios o impelia de tal forma, e<br />

absorvia toda sua mente, que desprezar comida não lhe causava<br />

inquietação. E, contudo, ele não diz que está tão solícito a obedecer<br />

às ordens de seu Pai que não come nem bebe. Ele apenas<br />

ressalta o que deve fazer primeiro e o que deve fazer depois; e,<br />

assim, ele mostra, com seu exemplo, que o reino de Deus deve ter<br />

a preferência a todos os confortos do corpo.<br />

Talvez alguém diga que comer e beber não passam de vocações<br />

que subtraem alguma porção de nosso tempo que poderia ser mais<br />

bem empregada. Reconheço ser isso verdadeiro, mas como o Senhor<br />

bondosamente nos permite cuidar de nosso corpo, até onde requer a<br />

necessidade, aquele que se esforça por nutrir seu corpo com sobriedade<br />

e moderação não deixa de dar aquela preferência que deve dar<br />

à obediência a Deus. Mas devemos também tomar cuidado para não<br />

apegar-nos demasiadamente a nossas horas fixas, ao ponto de privar-<br />

-nos da alimentação quando Deus nos cede alguma oportunidade e,<br />

por assim dizer, fixa a hora para isso.<br />

Cristo, tendo então em suas mãos uma oportunidade que poderia<br />

escoar-se, recebe-a de braços abertos e agarra-a com firmeza,<br />

quando o presente dever imposto a ele pelo Pai se apodera dele de<br />

tal forma que se vê impelido a afastar qualquer outra coisa, inclusive<br />

o alimento. E, de fato, teria sido sem razão que, quando a mulher<br />

deixou seu cântaro e correu a chamar o povo, Cristo deve revelar<br />

menos zelo. Em suma, se propusermos como nosso objetivo não


182 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

perder as causas da vida por conta da própria vida, não nos será<br />

difícil preservar o próprio meio, pois aquele que colocar diante de<br />

si como o alvo da vida servir o Senhor, do que não estamos em liberdade<br />

de descartar inclusive com o risco imediato de enfrentar<br />

a morte, certamente reputamos como sendo de mais valor do que<br />

comer e beber. A metáfora de comer e beber é se torna ainda mais<br />

graciosa nessa ocasião, a qual foi oportunamente delineada para o<br />

presente discurso.<br />

34. Minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou.<br />

Sua intenção é não só dizer que tem a vontade do Pai na mais elevada<br />

estima, mas que não há nada em que ele tem maior deleite ou em que<br />

empregue o maior cuidado ou cumpra com maior solicitude. Como<br />

Davi, para engrandecer a lei de Deus, não só diz que ela é do mais<br />

elevado valor, mas que é mais doce que o mel [Sl 19.10]. Portanto, se<br />

temos de seguir a Cristo, é próprio não só que nos devotemos diligentemente<br />

ao serviço de Deus, mas que sejamos tão felizes em obedecer<br />

a suas exigências que o labor não será de modo algum opressivo ou<br />

desagradável.<br />

Para que eu concretize sua obra. Ao acrescentar estas palavras,<br />

Cristo explica plenamente qual é a vontade do Pai à qual ele<br />

se devota, ou seja, cumprir a comissão que lhe fora dada. Assim,<br />

cada pessoa deve considerar sua própria vocação, para que não<br />

considere como feito para Deus o que precipitadamente empreendeu<br />

movida por sua própria sugestão. Sabe-se muito bem qual foi o<br />

ofício de Cristo. Consistia em adiantar o reino de Deus, restaurar à<br />

vida as almas perdidas, difundir a luz do evangelho e, em suma, trazer<br />

salvação ao mundo. A excelência dessas coisas o levou, quando<br />

fatigado e faminto, a esquecer de comer e de beber. Todavia, não<br />

derivamos disto uma consolação comum, quando aprendemos que<br />

Cristo viveu tão ansioso no tocante à salvação dos homens, que<br />

se deleitou profundamente em concretizá-la. Pois não podemos ter<br />

dúvida de que ele agora é afetado por sentimentos semelhantes a<br />

nosso respeito.


Capítulo 4 • 183<br />

[4.35-38]<br />

Vós não dizeis que ainda há quatro meses até que venha a<br />

ceifa? Eis que eu vos digo: Erguei vossos olhos e olhai para<br />

os campos, porque já se acham brancos para a ceifa. E<br />

aquele que colhe recebe galardão e ajunta fruto para a vida<br />

eterna; para que, assim o que semeia como o que colhe, se<br />

regozijem juntos. porque nisto é verdadeiro o dito: que um<br />

é o que semeia, e o outro o que colhe. Eu vos enviei a colher<br />

onde não trabalhastes; outros trabalharam, e vós entrastes<br />

em seu trabalho.<br />

35. Vós não dizeis? Ele dá seguimento à afirmação precedente,<br />

pois havendo dito que nada lhe era mais preciso do que concretizar<br />

a obra do Pai, ele agora mostra quão madura ela está para execução.<br />

Assim, age fazendo uma comparação com a ceifa. Quando a espiga<br />

está madura, a ceifa não suporta delonga, pois do contrário o grão<br />

cairia ao chão e se perderia. Da mesma forma, a espiga espiritual, já<br />

estando madura, ele declara que não deve haver delonga, porque a<br />

delonga é prejudicial. Vemos a que propósito ele emprega a comparação:<br />

visa a explicar a razão por que ele se apressa a concretizar sua<br />

obra. 11 Por esta expressão, Vós não dizeis?, ele tencionava ressaltar diretamente<br />

quão mais atentas as mentes humanas estão para as coisas<br />

terrenas do que para as celestiais. Pois ardem com tão intenso desejo<br />

pela colheita que minuciosamente computam meses e dias, porém é<br />

surpreendente como são morosos e indolentes em ajuntar o trigo celestial.<br />

E a experiência diária prova que tal perversidade não só nos é<br />

natural, mas dificilmente a mesma pode ser rasgada de nossos corações,<br />

pois enquanto todos proveem para a vida terrena por um longo<br />

período, quão indolentes somos nós em pensar nas coisas celestiais!<br />

Assim Cristo diz em outra ocasião: Hipócritas, discernis o aspecto do<br />

céu a que tipo de dia será amanhã, porém não reconheceis o tempo de<br />

minha visitação [Mt 16.3].<br />

11 “Pour exprimer la cause pourquoy il se haste de faire la besogne.”


184 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

36. E aquele que colhe recebe o galardão. Quão diligentemente<br />

devemos devotar-nos à obra de Deus. Ele prova fazendo uso de outro<br />

argumento, a saber, que um maior e mais excelente galardão está reservado<br />

para nosso labor; pois ele promete que haverá fruto, e fruto<br />

incorruptível ou imperecível. O que ele acrescenta sobre o fruto pode<br />

ser explicado de duas maneiras: ou ele é um anúncio do galardão, e<br />

sobre essa suposição ele diria a mesma coisa duas vezes em palavras<br />

diferentes, ou ele aplaude os labores daqueles que enriquecem o reino<br />

de Deus, como depois o veremos reiterar: Eu vos escolhi para que vades<br />

e deis fruto, e para que vosso fruto permaneça [Jo 15.16]. E, certamente,<br />

ambas as considerações devem encorajar grandemente os ministros<br />

da Palavra, para que jamais se verguem sob o peso do labor quando<br />

ouvirem que uma coroa de glória está preparada para eles no céu, e<br />

saibam que o fruto de sua colheita não só será precioso aos olhos de<br />

Deus, mas também será eterno. É com este propósito que a Escritura<br />

por toda parte faz menção do galardão, e não com o propósito de<br />

levar-nos a julgá-lo como sendo mérito das obras, pois qual de nós,<br />

se chegarmos a um cômputo, não será achado mais digno de ser punido<br />

por indolência do que sendo galardoado por diligência? Para os<br />

melhores trabalhadores nada mais será deixado além de aproximar-se<br />

de Deus com toda humildade a implorar-lhe perdão. O Senhor, porém,<br />

que age em nosso favor com a bondade de um pai, com o fim de corrigir<br />

nossa indolência e encorajar-nos a fim de não desmaiarmos, se<br />

digna conceder-nos um galardão imerecido.<br />

Isso, em vez de subverter a justificação pela fé, ao contrário a confirma.<br />

Pois, em primeiro lugar, como é possível que Deus ache em nós<br />

algo que mereça galardão, senão que ele no-lo concede por meio de<br />

seu Espírito? Ora, sabemos que o Espírito é o penhor ou a garantia da<br />

adoção [Ef 1.14]. Em segundo lugar, como é possível que Deus confira<br />

tão grande honra a obras imperfeitas e pecaminosas senão porque, depois<br />

de haver, por sua livre graça, nos reconciliado consigo, aceitando<br />

nossas obras sem qualquer consideração meritória, não imputando os<br />

pecados que os escravizavam? O equivalente desta passagem é que o


Capítulo 4 • 185<br />

labor que os apóstolos aplicam ao ensino não deve ser-lhes considerado<br />

duro e desagradável, porquanto sabem muito bem que o mesmo é<br />

tão útil e tão vantajoso a Cristo quanto à Igreja.<br />

Para que, assim o que semeia como o que colhe se regozijem<br />

juntos. Através destas palavras Cristo mostra que o fruto que os apóstolos<br />

derivarão dos labores de outros não pode propiciar motivo de<br />

queixa a ninguém. E esta afirmação adicional merece observação, pois<br />

se no mundo os gemidos dos que se queixam de que o fruto de seu<br />

labor foi transferido a outro, não impedem que o novo possuidor de<br />

alegremente colher o que outro semeou, quanto mais alegres devem os<br />

ceifeiros deve ser, quando há consentimento mútuo e alegria e congratulação<br />

mútuas?<br />

Mas, para que esta passagem seja apropriadamente entendida,<br />

devemos compreender o contraste entre semeadura e colheita. A semeadura<br />

era a doutrina da lei e dos profetas, pois naquele tempo a<br />

semente lançada no solo permanecia, por assim dizer, na pá, mas a<br />

doutrina do evangelho, a qual conduz homens à maturidade própria, é<br />

por essa conta com razão comparada à colheita. Pois a lei estava muito<br />

longe daquela perfeição que por fim nos foi exibida em Cristo. Com o<br />

mesmo propósito é a notória comparação entre infância e virilidade<br />

que Paulo emprega, ao dizer que o herdeiro, enquanto é criança, não difere<br />

de um servo, embora seja dono de tudo, porém está sujeito a tutores<br />

e governantes até o tempo designado pelo Pai [Gl 4.1, 2].<br />

Em suma, visto que a vinda de Cristo trouxe consigo a presente<br />

salvação, não precisamos maravilhar-nos se o evangelho, por meio do<br />

qual a porta do reino do céu é aberta, é denominado ceifa em relação<br />

à doutrina dos profetas. E, no entanto, não de forma alguma inconsistente<br />

com esta afirmação o que fato de que os Pais sob a lei eram<br />

ajuntados no celeiro de Deus. Esta comparação, porém, deve referir-se<br />

ao método de ensino, pois, como a infância da Igreja durou até o fim da<br />

lei, mas, tão logo o evangelho passou a ser pregado ela imediatamente<br />

alcançou a maioridade, de modo que o tempo da salvação começou a<br />

sazonar, cuja semeadura só foi realizada pelos profetas.


186 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Mas, visto que Cristo proferiu este discurso em Samaria, parece<br />

estender a semeadura mais amplamente do que em relação à lei e aos<br />

profetas. E há quem interpreta estas palavras como que se aplicando<br />

igualmente aos judeus e aos gentios. Aliás, reconheço que alguns<br />

grãos de piedade sempre foram espalhados por todo o mundo, e que<br />

não pode haver dúvida de que – se nos permitir a expressão – Deus<br />

semeou, pelas mãos de filósofos e escritores profanos, os excelentes<br />

sentimentos que serão encontrados em seus escritos. Mas, como tal<br />

semente era degenerada em sua própria raiz, e como a espiga que<br />

dela germinou, ainda que não boa nem natural, foi sufocada por uma<br />

enorme massa de erros, é sem razão supor que uma corrupção tão<br />

destrutiva possa ser comparada a uma semeadura. Além disso, o que<br />

aqui lemos sobre unificação na alegria não pode de forma alguma aplicar-se<br />

aos filósofos nem a alguma pessoa dessa classe.<br />

Todavia, a dificuldade não está ainda resolvida, pois Cristo faz referência<br />

especial aos samaritanos. Eis minha resposta: ainda que tudo<br />

entre eles estivesse infectado por corrupções, contudo havia alguma<br />

semente velada de piedade. Pois donde provém que, tão logo ouviam<br />

uma palavra acerca de Cristo, saíam com tanta avidez após ele, senão<br />

porque aprenderam da lei e dos profetas que o Redentor viria?<br />

A Judeia era de fato o campo peculiar do Senhor, o qual ele cultivara<br />

através dos profetas, mas, visto que alguma pequena porção de semente<br />

fora levada para a Samaria, não é sem razão que Cristo diz que<br />

também ali ela atingiu a maturidade.<br />

Se alguém objetar, dizendo que os apóstolos foram escolhidos<br />

para publicar o evangelho por todo o mundo, a resposta é fácil, a saber,<br />

que Cristo falou de uma maneira adequada ao tempo, com esta<br />

exceção: que, por causa da expectativa do fruto que já estava quase<br />

maduro, ele realça nos samaritanos a semente da doutrina profética,<br />

ainda que mesclada e comprometida com muitas ervas daninhas ou<br />

corrupções. 12<br />

12 “C’est à dire, de corruptions.”


Capítulo 4 • 187<br />

37. Pois nisto o dito é verdadeiro. Este era um provérbio popular,<br />

por cujo uso ele mostrou que muitas pessoas amiúde recebem o<br />

fruto do labor de outros, ainda que exista esta diferença: aquele que<br />

trabalhou fica feliz em ver o fruto colhido por outros, enquanto os<br />

apóstolos têm os profetas por companheiros de sua alegria. E, no entanto,<br />

não se pode inferir disto que os profetas sejam pessoalmente<br />

testemunhas, ou estejam cientes do que doravante vai acontecer na<br />

Igreja, pois Cristo não quer dizer nada mais que isto: os profetas, enquanto<br />

viveram, ensinaram sob a influência destes sentimentos: que<br />

já se alegraram por conta do fruto que não tiveram a permissão de<br />

colher. A comparação que Pedro emprega [1Pe 1.12] não é diferente,<br />

exceto que ele dirige sua exortação geralmente a todos os crentes, e<br />

Cristo aqui fala somente dos discípulos e, na pessoa deles, aos ministros<br />

do evangelho.<br />

Por meio destas palavras, ele os concita a lançar seus labores<br />

numa sorte comum, de modo que não haja entre eles nenhuma inveja<br />

perversa. Aqueles que são os primeiros a serem enviados a trabalhar<br />

devem viver tão atentos ao presente cultivo a ponto de nutrirem qualquer<br />

inveja por uma maior bênção do que a daqueles que os seguirem<br />

mais tarde. E que aqueles que são enviados, por assim dizer, a colher<br />

o fruto sazonado devem empenhar-se em seu ofício com igual alegria,<br />

pois a comparação que aqui se traça entre os mestres da lei e os do<br />

evangelho pode igualmente aplicar-se aos últimos, quando vistos em<br />

referência uns aos outros.<br />

[4.39-45]<br />

E muitos samaritanos daquela cidade creram nele, em virtude<br />

da palavra da mulher, que testificou: Ele me disse tudo quanto<br />

tenho feito. Portanto, quando os samaritanos vieram a ele<br />

e lhe rogaram que permanecesse com eles; e ele permaneceu<br />

dois dias. E muitos outros creram por causa de sua palavra;<br />

e disseram à mulher: Já não cremos por causa de teu testemunho;<br />

pois nós pessoalmente ouvimos e sabemos que este é


188 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

realmente o Cristo, o Salvador do mundo. E depois de dois dias<br />

ele partiu e foi para a Galileia. Pois Jesus mesmo testificou 13<br />

que um profeta não tem honra em seu próprio país. E quando<br />

chegou na Galileia, os galileus o receberam, os quais haviam<br />

visto 14 tudo o que ele fizeram em Jerusalém no dia da festa;<br />

porque tinham também ido à festa.<br />

39. E muitos samaritanos daquela cidade creram nele. Aqui, o<br />

evangelista relata qual foi o resultado do anúncio da mulher aos seus<br />

concidadãos, do que se evidencia que a expectativa e anseio pelo<br />

Messias prometido não tiveram pouco vigor entre eles. Ora, a palavra<br />

crer não é usada com exatidão, e significa que se viram induzidos pelo<br />

testemunho da mulher a reconhecer Cristo como Profeta. Em alguns<br />

aspectos, o gérmen da fé entra em ação quando as mentes são preparadas<br />

para receber a doutrina. Essa iniciação da fé recebe aqui o<br />

honroso título fé, com o fim de informar-nos quão sublimemente Deus<br />

estima a reverência por sua Palavra, quando confere tão grande honra<br />

à docilidade dos que ainda não foram ensinados. Ora, sua fé se manifesta<br />

neste aspecto: que são possuídos do desejo de progresso, e, por<br />

essa razão, desejam que Cristo permaneça com eles.<br />

41. E muitos outros creram. Do que se segue, é evidente que a<br />

correspondência de Cristo para com o desejo deles era altamente<br />

apropriada, pois vemos quanto fruto amadureceu nos dois dias que<br />

ele atendera a solicitação deles. Com este exemplo, somos instruídos<br />

que nunca devemos deixar de trabalhar quando temos em nosso poder<br />

o avanço do reino de Deus. E se porventura receamos que nossa<br />

prontidão em aquiescer seja passível de resultados desfavoráveis, ou<br />

prove amiúde ser inútil, peçamos a Cristo o Espírito de conselho para<br />

dirigir-nos. A palavra crer é agora usada em sentido distinto, pois ela<br />

não significa apenas que estavam preparados para a fé, mas que realmente<br />

tinham uma fé correta.<br />

13 “Ou, Jesus avoit rendu tesmoignage” – “ou, Jesus testificara.”<br />

14 “Apres qu’ils eussent veu” – “depois que tinham visto.”


Capítulo 4 • 189<br />

42. Por causa de teu testemunho. Embora eu siga Erasmo ao traduzir<br />

esta palavra por oratio [testemunho verbal], visto loquela, que<br />

os intérpretes antigos usam, ser um termo bárbaro, contudo advirto<br />

meus leitores que a palavra grega, λαλία, tem o mesmo significado que<br />

o latim, loquentia, isto é, conversação ou loquacidade. E os samaritanos<br />

parecem gloriar-se de que agora tem um fundamento mais forte do<br />

que a língua da mulher, a qual é, na maioria das vezes, leviana e trivial.<br />

Cremos. Isto expressa mais plenamente a natureza da fé deles, a<br />

qual foi extraída da palavra de Deus mesmo, de modo que podem gloriar-se<br />

de ter o Filho de Deus como seu Mestre, como é tão-somente em<br />

sua autoridade que podemos confiar com segurança. Aliás, na verdade,<br />

ele agora não está visivelmente presente, podendo falar-nos boca<br />

a boca. Mas, seja dos lábios de quem for que o ouvirmos, nossa fé não<br />

pode descansar em nenhum outro senão nele mesmo. E de nenhuma<br />

outra fonte procede aquele conhecimento que igualmente mencionado,<br />

pois o testemunho verbal que procede dos lábios de um mortal de fato<br />

pode encher e satisfazer os ouvidos, porém jamais confirma a alma na<br />

confiante tranquilidade da salvação, de modo que quem já ouviu pode-<br />

-se dizer que o mesmo se gloria em saber. Portanto, na fé a primeira<br />

coisa necessária é saber que é Cristo que fala através de seus ministros,<br />

e em seguida é dar-lhe a honra que lhe é devida, isto é, não há dúvida<br />

de que ele é verdadeiro e fiel, de modo que, confiando numa garantia<br />

tão destituída de dúvida, podemos confiar firmemente em sua doutrina.<br />

Uma vez mais, quando afirmam que Jesus é o Cristo e o Salvador<br />

do mundo, indubitavelmente aprenderam isto de seus próprios lábios.<br />

Daí inferirmos que, em dois dias, a suma do evangelho foi mais claramente<br />

ensinada por Cristo do que até aqui ele ensinara em Jerusalém.<br />

E Cristo testificou que a salvação, que ele trouxera, era comum ao<br />

mundo inteiro, para que pudessem entender mais plenamente que ela<br />

lhes pertencia também, pois ele não os chama com base na suposição<br />

de que eram herdeiros legítimos, como no caso dos judeus, 15 porém<br />

15 “Ainsi qu’estoyent les, Juifs.”


190 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

ensinou que ele viera admitir estranhos na família de Deus e trazer paz<br />

a todos quantos estavam longe [Ef 2.17].<br />

44. Pois Jesus mesmo testificou. A aparente contradição que nos<br />

choca aqui, à primeira vista, tem dado lugar a várias interpretações.<br />

Há um excesso de sutileza na explicação dada por Agostinho, a saber:<br />

que Cristo era sem honra entre seus próprios compatrícios, porque ele<br />

fizera mais o bem entre os samaritanos, em dois dias, do que fizera, por<br />

um longo tempo, entre os galileus; e porque, sem milagres, ele granjeara<br />

mais discípulos em Samaria do que com um grande volume de<br />

milagres granjeara na Galileia. Tampouco me satisfaço com o ponto de<br />

vista de Crisóstomo, o qual entende Cafarnaum como sendo o estado<br />

de Cristo, porque ele habitou ali com mais freqüência do que em qualquer<br />

outro lugar. Concordo mais com Cirilo que afirma que ele deixou<br />

a cidade de Nazaré e partiu para uma parte diferente da Galileia; pois<br />

os outros três evangelistas fazem menção de Nazaré, quando relatam<br />

este testemunho de Cristo. O significado poderia de fato ser que, enquanto<br />

o tempo de plena manifestação ainda não havia chegado, ele<br />

decide permanecer oculto em seu estado natal, numa espécie de retiro<br />

obscuro. Ainda outros explicam o fato neste sentido: ele permaneceu<br />

dois dias em Samaria porque não havia razão para apressar-se a ir a<br />

outros lugares onde escárnio o aguardava. Outros pensam que ele foi<br />

diretamente para Nazaré e imediatamente a deixou; mas, como <strong>João</strong><br />

não faz nenhum relato desse gênero, não me aventuro a entregar-me a<br />

tal conjetura. Um ponto de vista mais correto é este: quando ele percebeu<br />

que era menosprezado em sua cidade natal, Nazaré, partiu para<br />

outros lugares. E, portanto, imediatamente segue [v. 46] que ele entrou<br />

na cidade de Caná. O que em seguida se acrescenta – que os galileus o<br />

receberam – era um emblema de reverência, não de desdém.<br />

Um profeta não tem honra em seu próprio país. Não tenho dúvida<br />

de que esta expressão era comum, e veio a transformar-se num<br />

provérbio; 16 e sabemos que provérbios tem o propósito de expressar<br />

16 “Commune, et qui etoit passee en proverbe.”


Capítulo 4 • 191<br />

com graça o que comumente e com mais frequência (ἐπὶ τὸ πολὶ) acontece.<br />

Em tais casos, portanto, não é necessário exigirmos rigidamente<br />

precisão uniforme, como se o que é expresso em um provérbio fosse<br />

sempre verdadeiro. É indubitável que os profetas são geralmente mais<br />

admirados em outros lugares do que em seu próprio país de origem.<br />

Algumas vezes também pode ocorrer, e de fato ocorre, que um profeta<br />

não é menos honrado por seus compatrícios do que por estrangeiros;<br />

mas o provérbio declara o que é comum e ordinário, ou, seja: que os<br />

profetas recebem honra mais espontaneamente em qualquer outro lugar<br />

do que entre seus próprios compatrícios.<br />

Ora, este provérbio, bem como o significado dele, pode ter uma<br />

dupla origem; pois é um erro universal que aqueles a quem devemos<br />

ouvir gritam da plataforma, e a quem vemos agindo nesciamente em<br />

sua infância são desprezados por nós ao longo de toda sua vida, como<br />

se não tivessem qualquer progresso, desde sua tenra idade. A isto se<br />

acrescenta outro mal – a inveja que prevalece mais entre os conhecidos.<br />

Penso, porém, ser provável que o provérbio se origine da seguinte circunstância:<br />

os profetas eram assim maltratados por sua própria nação;<br />

pois quando homens santos e bons percebiam que havia na Judeia tão<br />

grande ingratidão para com Deus, tão grande desprezo por sua Palavra,<br />

tão grande obstinação, podiam com razão pronunciar esta queixa: que<br />

em parte alguma os profetas de Deus são menos honrados do que em<br />

seu próprio país. Se o primeiro significado for preferido, o título profeta<br />

deve ser entendido em termos gerais denotando qualquer mestre, como<br />

Paulo chama Epimênides profeta dos cretenses [Tt 1.12].<br />

45. Os galileus o receberam. Se esta honra era ou não de longa<br />

duração não temos meios para determinar; pois nada existe a que os<br />

homens mais se inclinam do que olvidar os dons de Deus. Tampouco<br />

<strong>João</strong> relata isto com algum outro desígnio senão o de informar-nos que<br />

Cristo realizou milagres na presença de muitas testemunhas, tanto que<br />

a notícia delas se difundiu por muitos rincões. Repetindo, isto aponta<br />

para uma vantagem dos milagres, a saber: que eles preparam o caminho<br />

para a doutrina; pois fazem com que se preste reverência a Cristo.


192 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

[4.46-54]<br />

Jesus, pois, foi outra vez para Caná da Galileia, onde transformara<br />

a água em vinho. E havia ali certo nobre, cujo filho era<br />

enfermo em Cafarnaum. Quando ele ouviu que Jesus viera da<br />

Judeia para a Galiléia, foi ter com ele, e rogou-lhe que descesse<br />

e curasse a seu filho; porque já estava à morte. Jesus, portanto,<br />

disse-lhe: A não ser que vejais sinais e prodígios, não crereis.<br />

O próprio nobre lhe disse: Senhor, desce antes que meu filho<br />

morra. Jesus lhe disse: Vai, teu filho vive. O homem creu na palavra<br />

que Jesus lhe falou e se foi. E enquanto ele ainda descia,<br />

seus servos o encontraram e lhe informaram, dizendo: Teu filho<br />

vive. Então ele lhes perguntou a que hora ele se recuperara;<br />

e lhe disseram: Ontem à sétima hora a febre o deixou. O pai,<br />

pois, entendeu que era a mesma hora em que Jesus lhe disse:<br />

Teu filho vive. E ele creu, e toda sua casa. Jesus fez este segundo<br />

milagre quando ia da Judéia para a Galileia.<br />

46. E havia ali certo nobre. Esta é uma tradução muito correta,<br />

ainda quando Erasmo pensa diferentemente, traduzindo βασιλικός por<br />

uma palavra latina, Regulus, que significa pequeno rei. 17 Reconheço,<br />

aliás, que naquele tempo davam o nome de Reguli (ou pequenos reis)<br />

aos que são agora chamados duques, ou barões, ou condes; mas o<br />

estado da Galileia naquele tempo era tal que não podia pessoa alguma<br />

daquela posição habitando em Cafarnaum. Creio ser ele algum nobre 18<br />

da corte de Herodes; pois há alguma plausibilidade na opinião daqueles<br />

que pensam que ele foi enviado por César. 19 Isto é expressamente<br />

mencionado pelo evangelista em razão da posição desse personagem<br />

tornar o milagre ainda mais eminente.<br />

47. Quando ele ouviu que Jesus viera. Ao recorrer a Cristo em<br />

busca de ajuda, essa é alguma evidência de sua fé; mas quando li-<br />

17 “Lequel l’a traduit par un mot Latin Regulus, qui signifie un petit Roy.”<br />

18 “Quelque gentil-homme.”<br />

19 “Par l’Empereur” – “pelo Imperador.”


Capítulo 4 • 193<br />

mita o método de Cristo de conceder assistência, isso mostra quão<br />

ignorante ele era. Pois vê o poder de Cristo como inseparavelmente<br />

conectado a sua presença corporal, da qual é evidente que ele não<br />

formara nenhum outro conceito sobre Cristo além deste: que ele<br />

era Profeta enviado por Deus com autoridade e poder que provam,<br />

pela realização de milagres, ser ele ministro de Deus. Tal erro, ainda<br />

que merecedor de censura, Cristo passa por alto, porém o repreende<br />

severamente, aliás, a todos os judeus em geral, por outra razão:<br />

sua excessiva avidez por contemplar milagres.<br />

Mas como agora sucede que Cristo seja tão áspero, quando<br />

costumava receber bondosamente outros que queriam milagres?<br />

Teria havido naquele momento alguma razão particular, ainda que<br />

desconhecida de nós, pela qual ele tratou este homem com certo<br />

grau de severidade, o que não era comum nele; e talvez ele visasse<br />

não tanto ao indivíduo, mas à nação inteira. Ele entendeu que a<br />

doutrina de Cristo não era de grande autoridade, e por isso não só<br />

a negligenciou, mas ainda a desprezou totalmente; e, em contrapartida,<br />

todos seus olhos estavam fixos nos milagres e todos seus<br />

sentidos se achavam dominados pela estupidez antes que pela<br />

admiração. E assim o ímpio desprezo pela Palavra de Deus, que<br />

naquele tempo prevalecia, o constrangeu a fazer tal censura.<br />

Aliás, na verdade até mesmo alguns dos santos às vezes desejavam<br />

ser confirmados por milagres a fim de não nutrirem alguma<br />

dúvida quanto à veracidade das promessas; e notamos como Deus,<br />

ao bondosamente atender suas solicitações, mostrou que não<br />

estava ofendido por eles. Cristo, porém, descreve aqui uma perversidade<br />

muito mais grave; pois os judeus dependiam tanto de<br />

milagres que não deixavam qualquer espaço à Palavra. Em primeiro<br />

lugar, era excessivamente perverso que se deixar dominar pela estupidez<br />

e carnalidade, ao ponto de não sentir qualquer reverência<br />

pela doutrina, a não ser que fossem estimulados por milagres; pois<br />

deveriam estar bem familiarizados com a Palavra de Deus, na qual<br />

haviam sido educados desde sua infância. Em segundo lugar, quan-


194 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

do se realizavam milagres, tinham um aspecto tão proveitoso que<br />

todos permaneciam em um estado de espanto e perplexidade. E<br />

assim não eram atingidos pela religião, nem pelo conhecimento de<br />

Deus, nem pela prática da piedade, mas permaneciam simplesmente<br />

no campo dos milagres.<br />

O mesmo propósito tem aquela abordagem de Paulo contra<br />

eles: os judeus exigem sinais [1Co 1.22]. Pois sua intenção é dizer<br />

que, de uma forma irracional e imoderada, viviam atrelados aos<br />

sinais e pouco se preocupavam com a graça de Cristo, ou com as<br />

promessas da vida eterna, ou com o poder secreto do Espírito;<br />

mas, ao contrário, rejeitavam o evangelho com desdenhosa arrogância,<br />

visto que não se deixavam atrair por coisa alguma senão<br />

por milagres.<br />

Espero que não haja muitas pessoas nos dias atuais afetadas<br />

pela mesma enfermidade; porém nada é mais comum do que este<br />

provérbio: “Que primeiro realizem milagres, 20 e então inclinaremos<br />

nossos ouvidos a sua doutrina”; como se devêssemos desprezar<br />

e desdenhar a verdade de Cristo, a não ser que a mesma adquira<br />

apoio de algum outro setor. Mas ainda que Deus fosse cobri-los<br />

com uma grande quantidade de milagres, continuariam falando falsamente<br />

dizendo que acreditam. Algo inusitado e externo tem de<br />

ser produzido, porém não serão sequer um mínimo mais atentos à<br />

doutrina.<br />

49. Senhor, desce, antes que meu filho morra. Já que ele persevera<br />

pedindo, e por fim obtém o que deseja, podemos concluir<br />

que Cristo não o reprovou ao ponto de rejeitá-lo totalmente e recusar<br />

sua oração; senão que, antes, age com o propósito de corrigir<br />

aquele erro que obstruía o acesso da fé genuína. E devemos lembrar-nos<br />

de minha declaração anterior, a saber: que esta era uma<br />

reprovação geral do povo com um todo, e não foi peculiarmente<br />

dirigida a um só indivíduo. Dessa forma, tudo o que é impróprio, ou<br />

20 “Qu’ils facent premierement des miracles.”


Capítulo 4 • 195<br />

distorcido, ou supérfluo, em nossas orações, deve ser corrigido ou<br />

removido, para que as obstruções perigosas sejam arredadas do<br />

caminho. Ora, os cortesãos geralmente são fastidiosos e arrogantes<br />

e não se submetem espontaneamente a um tratamento áspero;<br />

porém merece nota que este homem, humilhado por seu estado de<br />

profunda carência e pelo medo de perder seu filho, não se revolta<br />

nem murmura quando Cristo lhe fala rudemente, mas enfrenta a<br />

reprovação em modesto silêncio. Descobrimos as mesmas coisas<br />

também em nós; pois somos espantosamente sensíveis, impacientes<br />

e irritáveis, até que, subjugados pelas adversidades, nos vemos<br />

constrangidos a abrir mão de nosso orgulho e desdém.<br />

50. Teu filho vive. A primeira coisa que nos estremece aqui é<br />

a espantosa bondade e condescendência de Cristo, em suportar<br />

ele a ignorância do homem e estender seu poder além do que se<br />

esperava. Ele exigiu que Cristo fosse ao local e curasse seu filho. Ele<br />

pensava ser possível que seu filho ficasse livre da doença, porém<br />

não que ele pudesse ser ressuscitado depois de morto. E por isso<br />

ele insiste com Cristo a apressar-se para que a recuperação de seu<br />

filho impedisse que o mesmo morresse. Consequentemente, quando<br />

Cristo perdoa sua ignorância e arrogância, podemos concluir<br />

disto o quanto ele valoriza mesmo uma pequena medida de fé. É<br />

digno de observação que Cristo, embora não concorde com seu<br />

desejo, concede muito mais do que exigiu e esperava; pois testifica<br />

da saúde atual de seu filho. E assim amiúde sucede que nosso Pai<br />

celestial, embora não se compactue com nossos desejos em cada<br />

particular, continua a aliviar-nos por meio de métodos inesperados,<br />

para que aprendamos a não prescrever-lhe o que queremos.<br />

Ao dizer: Teu filho vive, sua intenção é que ele fora resgatado do<br />

perigo da morte.<br />

O homem creu na palavra que Jesus lhe falara. Ao aproximar-<br />

-se com a convicção de que Cristo era profeta de Deus, com isso ele<br />

estava tão disposto a crer que, tão logo ouviu uma única palavra<br />

agarrou-a e a fixou em seu coração. Ainda que não nutrisse todo o


196 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

devido respeito para com o poder de Cristo, contudo uma breve promessa<br />

de repente despertou novo confiança em sua mente, de tal<br />

modo que creu que a vida de seu filho estava contida em uma única<br />

palavra de Cristo. E essa é a prontidão com que devemos receber a<br />

Palavra de Deus, porém ela está longe de produzir sempre um efeito<br />

tão imediato nos ouvintes. Pois quantos extraem algum proveito<br />

de muitos sermões como fez este homem, um meio pagão, ao ouvir<br />

uma só palavra? Tanto mais devemos nós labutar com zelo para despertar<br />

nosso entorpecimento e, acima de tudo, orar para que Deus<br />

toque nossos corações de tal maneira que não sejamos menos dispostos<br />

a crer do que ele está pronto e gracioso a prometer!<br />

51. E enquanto ele ainda descia. Aqui se descreve o efeito da<br />

fé, juntamente com a eficácia da palavra; pois como Cristo, com<br />

uma palavra, restaura a vida a essa criança que estava morrendo,<br />

assim num instante o pai, com sua fé, recupera seu filho são e salvo.<br />

Portanto, saibamos que, sempre que o Senhor nos oferece seus benefícios,<br />

seu poder estará sempre pronto a concretizar tudo o que<br />

ele promete, desde que a porta não esteja fechada contra ele por<br />

nossa incredulidade. Reconheço que nem sempre sucede, e nem<br />

mesmo é frequente e comum, que Deus exiba instantaneamente<br />

seu braço para dar-nos assistência; mas sempre que delongue, ele<br />

tem sempre boa razão, e uma razão que nos é maravilhosamente<br />

vantajosa. Pelo menos, isto é indubitável: que longe está ele de<br />

delongar-se desnecessariamente, ao contrário, ele luta contra os<br />

obstáculos que nós mesmos lançamos no caminho; e por isso, quando<br />

não percebemos seu auxílio imediato, consideremos quanto de<br />

desconfiança oculta existe em nós, ou, pelo menos, quão pequena<br />

e limitada é nossa fé. E não devemos maravilhar-nos se ele se indispõe<br />

a permitir que seus benefícios se percam, ou precipitá-los ao<br />

léu, senão que decide concedê-los aos que, abrindo o seio de sua fé,<br />

se prontificam a recebê-los. E ainda que nem sempre dê assistência<br />

ao seu povo da mesma maneira, todavia em nenhum caso a fé de<br />

alguém será infrutífera, ou nos impede de experimentar a verdade


Capítulo 4 • 197<br />

apresentada pelo profeta, de que a as promessas de Deus, ainda<br />

quando pareçam tardar, na realidade estão fazendo grande avanço.<br />

“Porque a visão é ainda para o tempo determinado, mas se apressa<br />

para o fim, e não enganará; se tardar, espera-o, porque certamente<br />

virá, não tardará” [Hc 2.3].<br />

52. Portanto ele inquiriu deles. A pergunta que fez esse nobre<br />

a seus servos em que momento seu filho começou a recuperar-se<br />

obedeceu a um impulso de Deus, para que a veracidade do milagre<br />

se tornasse ainda mais conspícua. Pois, por natureza, temos uma<br />

disposição excessivamente perversa em distinguir a luz do pode de<br />

Deus dos labores de Satanás, por vários meios, com o fim de ocultar<br />

as obras de Deus de nossa vista; e por isso, a fim de poder obter<br />

de nós aquele louvor que lhes é devido, devem manifestar-se de tal<br />

maneira que não fique lugar algum à dúvida. Portanto, seja qual for<br />

a ingratidão dos homens, contudo esta circunstância não permite<br />

que a obra tão magnificente de Cristo seja atribuída ao acaso.<br />

53. E ele creu, bem como toda sua casa. Pode parecer absurdo<br />

que o evangelista mencione isto como o ponto de partida da<br />

fé naquele homem, cuja fé já havia começado. Tampouco se pode<br />

presumir que a palavra crer – pelo menos nesta passagem – se relacione<br />

com o progresso da fé. Mas é preciso entender que esse<br />

homem, sendo judeu e educado na doutrina da lei, já havia obtido<br />

alguma prova de fé quando veio a Cristo; e que ele depois creu na<br />

palavra de Cristo foi uma fé particular que não se estendeu para<br />

além da expectativa pela vida de seu filho. Mas agora ele começou<br />

a crer de uma forma diferente; isto é, porque, abraçando a doutrina<br />

de Cristo, publicamente professou ser um de seus discípulos.<br />

E assim não só crê agora que seu filho será curado pela bondade<br />

de Cristo, mas reconhece Cristo como sendo o Filho de Deus, e faz<br />

uma profissão de fé em seu evangelho. Toda sua família se une a<br />

ele, que era uma evidência do milagre; nem se pode pôr em dúvida<br />

que tenha ele feito tudo para conduzir outros, juntamente com ele,<br />

a abraçar a religião cristã.


Capítulo 5<br />

[5.1-9]<br />

Depois dessas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu<br />

a Jerusalém. E havia em Jerusalém, próximo ao mercado de<br />

ovelhas, um tanque cujo nome em hebraico é Betesda, tendo<br />

cinco pavilhões. Nestes, jazia uma grande multidão de enfermos,<br />

cegos, coxos e atrofiados, 1 esperando pelo movimento da<br />

água. Pois um anjo descia primeiro, em intervalos, 2 ao tanque,<br />

e agitava a água. Quem primeiro, descesse depois de agitada a<br />

água, era curado de qualquer doença que tivesse. Ora, havia ali<br />

um homem que passara trinta e oito anos enfermo. Ao ver Jesus,<br />

esse homem ali deitado, e sabendo que estivera por tanto<br />

tempo enfermo, disse-lhe: Desejas ser curado? O enfermo lhe<br />

respondeu: Senhor, não tenho ninguém que me faça descer ao<br />

tanque, quando a água é agitada; mas, enquanto eu vou, outro<br />

desce antes de mim. Jesus lhe disse: Levanta, toma teu leito e<br />

anda. E imediatamente aquele homem foi curado e tomou seu<br />

leito e andou. E aquele dia era sábado.<br />

1. Havia uma festa dos judeus. Embora o evangelista não<br />

declare expressamente que festa era essa, contudo a conjetura provável<br />

é que ele tinha em mente o Pentecostes, pelo menos se o que<br />

é aqui relatado ocorreu imediatamente depois que Cristo foi para<br />

1 “Et qui avoyent les membres secs” – “e que tinham os membros atrofiados.”<br />

2 “Par intervalles, ou, en certain temps” – “em intervalos, ou, em determinado tempo.”


200 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

a Galileia. Porque imediatamente depois da Páscoa, ele partiu de<br />

Jerusalém e, como tinha de passar por Samaria, ele computou quatro<br />

meses para a ceifa. Tendo entrado na Galileia, ele curou o filho<br />

do nobre. O evangelista acrescenta que a festa veio depois, e por<br />

isso a ordem de tempo nos leva à conclusão de que devemos tomá-<br />

-la como sendo o Pentecostes, embora não me disponha a discutir<br />

sobre a questão. Ora, Cristo veio a Jerusalém para a festa, em parte<br />

porque naquele tempo, em virtude da grande multidão de povo que<br />

se congregava, ele tinha a oportunidade de publicar sua doutrina<br />

mais extensamente, e em parte porque era necessário que se sujeitasse<br />

à lei para que pudesse redimir-nos da escravidão da lei, como<br />

já explicamos em ocasiões anteriores.<br />

2. Havia em Jerusalém, no tanque próximo ao mercado de ovelhas.<br />

Acrescenta-se a circunstância do lugar, do que aprendemos que<br />

o milagre não foi secreto nem conhecido só de umas poucas pessoas,<br />

pois os cinco pavilhões mostram que o local era famoso pelo grande<br />

número de pessoas que a ele recorriam, e isso estava também implícito<br />

em sua vizinhança ao templo. Além disso, o evangelista diz expressamente<br />

que muitos enfermos jaziam ali. Com respeito ao significado do<br />

nome, os eruditos com razão rejeitam a opinião fantasiosa de Jerônimo<br />

que, em vez de Betesda, grafa Betheder, e o interpreta significando<br />

casa do rebanho, pois aqui se faz menção de um tanque que ficava<br />

próximo ao mercado das ovelhas. Aqueles que leem Betesda, como<br />

significando um local de pesca, não tem nenhuma razão de seu lado.<br />

Há maior probabilidade na opinião dos que o explicam como sendo o<br />

lugar de derramamento, pois a palavra hebraica (Eshed) significa<br />

transbordar, mas o evangelista, como então era o modo ordinário de<br />

falar, pronunciou Esda. Pois creio que a água era transferida para ele<br />

através de tubulações, para que os sacerdotes tirassem água dele, a<br />

não ser que, talvez, o lugar recebesse seu nome da circunstância em<br />

que a água fosse extraída dele por meio de tubos. Ele era chamado<br />

mercado de ovelhas, em minha opinião, porque os animais que deviam<br />

ser oferecidos em sacrifício eram tomados dali.


Capítulo 5 • 201<br />

3. Nestes jazia uma grande multidão. É possível que os enfermos<br />

jazessem nos pavilhões a pedir esmolas enquanto as pessoas passavam<br />

por ali quando vinham para o culto no templo. E era ali também<br />

o costume de comprar os animais a serem oferecidos em sacrifício.<br />

No entanto, a cada festa Deus curava determinado número de pessoas<br />

para que, dessa forma, pudesse recomendar o culto prescrito na lei<br />

e a santidade do templo. Mas, não parece insensato crer, ainda que<br />

não lemos que algo desse gênero tenha acontecido em alguma época<br />

em que a religião estava numa condição mais florescente, e mesmo na<br />

época em que se realizavam milagres pelas mãos dos profetas, senão<br />

em ocasiões extraordinárias, quando os negócios da nação estavam<br />

em decadência e quase em total ruína, que o poder e a graça de Deus<br />

se exibiam de uma forma mais extraordinária do que ordinária?<br />

Eis minha resposta: em minha opinião há duas razões. Visto que<br />

o Espírito Santo, habitando nos profetas, era suficiente testemunha da<br />

presença divina, a religião naquele tempo não carecia de confirmação<br />

adicional, pois a lei fora sancionada por meio de milagres sobejamente<br />

suficientes, e Deus não cessara de expressar, por meio de testemunhos<br />

inumeráveis, sua aprovação do culto que uma vez ordenara. Mas<br />

sobre o tempo da vinda de Cristo, quando ficaram privados dos profetas<br />

e sua condição se tornou em extremo miserável, e quando várias<br />

tentações os oprimiram com todo peso, careciam deste auxílio extraordinário<br />

para que não concluíssem que Deus os havia abandonado<br />

totalmente e assim viessem a sentir-se desencorajados e chegassem<br />

até mesmo a apostatar. Pois sabemos que Malaquias foi o último dos<br />

profetas, e por isso conclui sua doutrina com esta admoestação, para<br />

que os judeus se lembrassem da lei promulgada por Moisés [Ml 4.4], até<br />

que Cristo se manifestasse. Deus viu ser vantajoso privá-los dos profetas<br />

e conservá-los suspensos por algum tempo, para que se inflamasse<br />

com mais forte anseio por Cristo e o recebessem com mais intensa<br />

reverência, quando se lhes manifestasse.<br />

Todavia, para que esses testemunhos não faltassem ao templo<br />

e aos sacrifícios, bem como a todo aquele culto por meio do qual a


202 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

salvação fosse conhecida ao mundo, o Senhor reteve entre os judeus<br />

este dom de cura, para que soubessem que havia uma razão plausível<br />

pela qual Deus os separara dentre as demais nações. Porque Deus,<br />

ao curar os enfermos, demonstrou nitidamente – como que por um<br />

braço estendido do céu – que ele aprovava esse gênero de culto que<br />

eles derivaram das ordenações da lei. Em segundo lugar, não tenho<br />

dúvida de que Deus tencionava lembrá-los, por meio desses sinais,<br />

que o tempo da redenção se aproximava e que Cristo, o Autor da salvação,<br />

já estava às portas, para que a mente de todos fosse despertada<br />

com mais eficácia. E creio que os sinais, nessa época, serviram a este<br />

duplo propósito: primeiro, para que os judeus soubessem que Deus<br />

estava presente com eles, e assim pudessem permanecer firmes em<br />

sua obediência à lei; e, segundo, para que esperassem com solicitude<br />

uma nova e inusitada condição.<br />

De coxos, cegos, atrofiados. Com o propósito de informar-nos<br />

de que as doenças curadas por nosso Senhor não eram de um gênero<br />

comum, o evangelista enumera algumas classes delas; pois os<br />

antídotos humanos não podiam ser de nenhuma valia para o coxo, o<br />

cego e o atrofiado. Era deveras um espetáculo deprimente ver em tão<br />

grande grupo de homens tantas espécies de deformidades nos membros<br />

físicos. Porém a glória de Deus brilhou ainda mais intensamente<br />

ali do que à vista do mais numeroso e melhor disciplinado exército.<br />

Pois nada é mais magnificente do que quando um inusitado poder de<br />

Deus corrige e restaura os defeitos da natureza; e nada é mais belo ou<br />

mais deleitoso do que quando, através de sua ilimitada bondade, ele<br />

alivia as angústias dos homens. Por essa razão, o Senhor tencionava<br />

transformar este quadro em um esplêndido teatro no qual não só os<br />

habitantes do país, mas também os estrangeiros, pudessem perceber<br />

e contemplar sua majestade, e, como já sugeri, não era um pequeno<br />

ornamento e glória do templo quando Deus, ao estender sua mão, revelou<br />

claramente que ele estava presente.<br />

4. Pois um anjo descia. Sem dúvida era uma obra peculiar de<br />

Deus curar enfermidade. Mas, visto que ele costumava empregar o


Capítulo 5 • 203<br />

ministério e agência dos anjos, assim ele ordenou a um anjo que cumprisse<br />

esse dever. Por essa razão, os anjos são chamados principados<br />

e poderes [Cl 1.16]. Não que Deus lhes delegasse seu próprio poder<br />

e permanecesse no céu sem qualquer atividade, mas porque, ao agir<br />

poderosamente neles, demonstra de modo magnífico e exibe seu poder.<br />

Portanto, é perverso e desonroso imaginar qualquer coisa como<br />

pertencente aos anjos, ou constituí-los como o meio de comunicação<br />

entre nós e Deus, a ponto de obscurecer a glória de Deus, como se<br />

ela estivesse a uma grande distância de nós, enquanto que, ao contrário,<br />

ele os emprega como manifestações de sua presença. Devemos<br />

pôr-nos de guarda contra as estultas especulações de Platão, pois a<br />

distância entre nós e Deus é tão incomensurável que, por sua orientação,<br />

proteção e comando, podemos ter os anjos como assistentes e<br />

ministros de nossa salvação.<br />

Em intervalos. Deus poderia ter imediatamente, em um só instante,<br />

curado a todos eles, porém, como seus milagres têm seus desígnios,<br />

assim devem também ter seus limites, como Cristo também os lembra<br />

que, embora existam tantos que morreram nos dias de Eliseu, não<br />

mais que uma criança ressuscitou dentre os mortos [2Rs 4.32]; 3 e que,<br />

ainda que tantas viúvas vivessem famintas durante o tempo da seca,<br />

houve apenas uma cuja pobreza foi aliviada por Elias [1Rs 17.9; Lc<br />

4.25]. E, assim, o Senhor considerou suficiente dar uma demonstração<br />

de sua presença no caso de umas poucas pessoas enfermas.<br />

O modo de curar, porém, que é aqui descrito, mostra sobejamente<br />

claro que nada é mais irracional do que esse homem sujeitar-se<br />

às obras de Deus por sua própria decisão. Sem esperanças, que assistência<br />

ou alívio se poderia esperar de águas agitadas? Mas assim,<br />

privando-nos de nossos próprios sentidos, o Senhor nos habitua à<br />

obediência da fé. Também seguimos solicitamente o que agrada nossa<br />

razão, ainda que contrarie a Palavra de Deus. Por isso, a fim de tornar-<br />

3 A versão francesa traz esta redação: “combien que du temps d’Elisee il y eust plusieurs<br />

de ladres, toutesfois nul d’eux ne fut nettoyé simon Naaman Syrien” – “ainda que nos<br />

dias de Eliseu houvesse tantos leprosos, não obstante nenhum deles foi purificado senão<br />

Naamã, um sírio” [2Rs 5.14; Lc 4.27].


204 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

-nos mais obedientes a ele, amiúde nos apresenta aquelas coisas que<br />

contradizem nossa razão. Então só podemos mostrar nossa submissa<br />

obediência quando fechamos nossos olhos e seguimos a Palavra plena,<br />

ainda que nossa própria opinião seja que o que estamos fazendo<br />

será de nenhuma valia. Temos um exemplo desse gênero em Naamã, o<br />

sírio, a quem o profeta envia ao Jordão para que fosse curado de sua<br />

lepra [2Rs 5.10]. A princípio, sem dúvida, ele o despreza como uma<br />

peça de ridículo, porém mais tarde chega realmente a perceber que,<br />

embora Deus aja contrariamente à razão humana, ele nunca zomba de<br />

nós nem nos frustra.<br />

E agitava a água. Embora o agitar da água fosse uma manifesta<br />

prova de que Deus usa livremente os elementos [da natureza] segundo<br />

seu próprio beneplácito, e que ele reivindica para si o resultado da<br />

operação. Pois é um erro excessivamente comum atribuir às criaturas<br />

o que pertence exclusivamente a Deus. Porém, seria o auge da estupidez<br />

buscar, na água agitada, a causa da cura. Ele, pois, põe em realce o<br />

símbolo externo de uma forma tal que, olhando para o símbolo, as pessoas<br />

enfermas fossem constrangidas a erguer seus olhos para Aquele<br />

que é o único Autor da graça.<br />

5. E havia um homem ali. O evangelista escolhe várias circunstâncias<br />

que provam que o milagre podia ser crido como indubitável.<br />

A longa duração da enfermidade havia destroçado toda a esperança<br />

de que viesse a ser curado. Esse homem se queixa de que se acha<br />

destituído do antídoto contido na água. Com frequência, tinham<br />

tentado jogar-se à água, porém sem êxito, Não tinha ninguém que<br />

o ajudasse, e isso leva o poder de Cristo a manifestar-se ainda mais<br />

notavelmente. Tal era também a importância da ordem de carregar<br />

seu leito que todos podiam ver claramente que ele fora curado de<br />

nenhuma outra forma senão pela agência de Cristo, pois quando, de<br />

repente, ergueu-se com saúde e forte em todos seus membros em<br />

que fora anteriormente impotente, uma mudança tão súbita era o<br />

que havia de mais próprio para despertar e abalar as mentes de todos<br />

os que a presenciaram.


Capítulo 5 • 205<br />

6. Desejas ser curado? Ele não inquirira a respeito, como se fosse<br />

uma questão duvidosa, mas em parte a fim de acender no homem a<br />

solicitude pelo favor que lhe era oferecido, e em parte para avivar a<br />

atenção das testemunhas que estavam presentes e que, se estivessem<br />

pensando em algo mais, podiam não ter percebido o milagre, como<br />

amiúde sucede em ocorrências repentinas. Por essas duas razões,<br />

fazia-se necessária esta preparação.<br />

7. Não tenho ninguém. Este homem enfermo faz o que quase todos<br />

nós costumamos fazer, pois limita a assistência divina ao molde<br />

de seus próprios conceitos e não se aventura a prometer-se algo mais<br />

além daquilo que ele concebe em sua mente. Cristo perdoa sua debilidade,<br />

e nisto temos um espelho daquela tolerância da qual cada um de<br />

nós tem diariamente experimentado, quando, de um lado, mantemos<br />

nossa atenção fixada nos meios que estão ao nosso alcance, e quando,<br />

do outro lado, contrária à expectativa, ele exibe sua mão, tirando-a de<br />

lugares ocultos e assim nos demonstra o quanto sua bondade vai além<br />

dos tacanhos limites de nossa fé. Além disso, este exemplo deve ensinar-nos<br />

a paciência. Trinta e oito anos eram um longo período, durante<br />

o qual Deus tardou a atender esse pobre homem, e a favorecê-lo desde<br />

o início, dando-lhe o que determinara conferir-lhe. Portanto, por mais<br />

que sejamos mantidos em suspenso, embora gemamos sob nossas<br />

angústias, nunca nos sintamos desencorajados pelo tédio oriundo do<br />

período excessivamente prolongado, pois quando nossas aflições são<br />

excessivamente contínuas, ainda que não visualizemos nenhum término<br />

delas, devemos sempre crer que Deus é um maravilhoso libertador<br />

que, com seu poder, remove facilmente cada obstáculo do caminho.<br />

9. E era sábado. Cristo estava bem ciente da profunda ofensa que<br />

imediatamente se geraria quando vissem um homem andando com<br />

uma carga nas costas, porquanto a lei proíbe expressamente carregar<br />

qualquer peso durante o sábado [Jr 17.21]. Mas havia duas razões por<br />

que Cristo, desafiando esse risco, decide fazer essa exibição: primeiro,<br />

para que o milagre fosse mais extensamente conhecido; e, segundo,<br />

para que desse ocasião e, por assim dizer, abrisse caminho para um


206 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

maravilhoso discurso que pronunciou logo imediatamente a seguir. De<br />

tão grande importância era o conhecimento desse milagre, que ele entendeu<br />

ser seu dever ousadamente fazer pouco da ofensa sentida pelo<br />

povo, particularmente porque ele tinha em mãos uma justa defesa,<br />

por meio da qual, ainda que não pacificasse os ímpios, refutava sobejamente<br />

suas calúnias.<br />

Devemos, pois, observar esta regra: que embora o mundo inteiro<br />

ardentemente se enfureça, devemos proclamar a glória de Deus e celebrar<br />

suas obras, até onde sua glória requeira que se faça conhecida.<br />

Tampouco devemos ficar intranquilos ou sentir-nos desencorajados,<br />

embora nossos labores não sejam imediatamente bem sucedidos,<br />

contanto que tenhamos em vista o objetivo que já declarei e não avancemos<br />

além dos limites de nosso ofício.<br />

[5.10-16]<br />

Os judeus, pois, disseram àquele que fora curado: É sábado,<br />

não te é lícito carregar teu leito. Ele lhes respondeu: Aquele<br />

que me deu saúde me disse: Toma teu leito e anda. Eles, pois,<br />

lhe perguntaram: Quem é o homem que te disse: Toma teu leito<br />

e anda? E o que fora curado não sabia quem era ele; porque<br />

Jesus se havia retirado, em razão da grande multidão que havia<br />

naquele lugar. 4 Depois dessas coisas Jesus o encontrou no<br />

templo, e lhe disse: Eis que já estás recuperaste a saúde; não<br />

peques mais, para que não te suceda coisa pior. O homem se<br />

foi, e disse aos judeus que fora Jesus quem lhe devolvera a<br />

saúde. E, por essa razão, os judeus perseguiram a Jesus e procuravam<br />

matá-lo, porque fazia essas coisas no sábado.<br />

10. É sábado. O dever de todos era manter a santificação do sábado,<br />

e por isso com razão e propriedade acusaram o homem. Mas<br />

quando a justificativa do homem não lhes satisfaz, então já começam<br />

4 “Car Jesus s’estoit escoulé de la multitude qui estoit en ce lieu-la” – “pois Jesus se<br />

esquivara da multidão que estava naquele lugar.”


Capítulo 5 • 207<br />

a cometer erros. Quando a razão era desconhecida, ele tinha de ser<br />

inocentado. Como já dissemos, transportar uma carga era uma violação<br />

do sábado. Cristo, porém, que pôs a carga em seus ombros, o<br />

desobriga por sua própria autoridade. Somos, pois, instruídos, com<br />

este exemplo, a evitar todo juízo precipitado, até que a razão de cada<br />

ato seja plenamente conhecida. Tudo o que contradiz a Palavra de<br />

Deus merece ser condenado sem hesitação. Mas como amiúde sucede<br />

haver equívocos nesta matéria, devemos antes inquirir modesta e calmamente,<br />

para que nossa decisão seja íntegra e sóbria. Porque, visto<br />

que os judeus, afetados por disposições perversas, não têm paciência<br />

de inquirir, fecham a porta contra o bom senso e a moderação. Porém,<br />

se tivessem permitido ser instruídos, não só a ofensa teria sido removida,<br />

mas teriam sido conduzidos ainda mais, com grande vantagem,<br />

ao conhecimento do evangelho.<br />

Agora percebemos o quanto os judeus estavam equivocados. A<br />

razão é porque não admitiam uma defesa racional. Eis a defesa: aquele<br />

que fora curado replica que nada mais fez senão o que ordenara<br />

àquele que teve poder e autoridade para ordenar, pois, ainda que não<br />

soubesse quem era Cristo, todavia estava convencido de que ele fora<br />

enviado por Deus, porque recebera uma prova de seu divino poder e<br />

descobrira que Cristo estava revestido com autoridade, de modo que<br />

seria seu dever obedecer-lhe. Mas isto parecia ser digno de reprovação,<br />

a saber, que um milagre o afastasse da obediência à lei. Aliás,<br />

confesso que o argumento que o homem emprega, ao discutir com<br />

eles, não é suficientemente forte, contudo os outros estão errados por<br />

duas razões: que não consideravam que esta é uma obra extraordinária<br />

de Deus, nem suspendem seu juízo até que tenham ouvido um<br />

profeta de Deus que está munido com a palavra.<br />

13. E aquele que fora curado não sabia quem era ele. Certamente<br />

que a intenção de Cristo não era que a glória de uma obra tão<br />

incomensurável passasse desapercebidamente, mas queria que a<br />

mesma se tornasse geralmente conhecida antes que ele o reconhecesse<br />

como sendo o Autor dela. Ele, pois, retirou-se por algum tempo


208 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

para que os judeus tivessem a liberdade de julgar o próprio fato sem<br />

referência a qualquer pessoa. E disto aprendemos que a cura desse<br />

homem não pode ser atribuída a sua fé, visto que mesmo depois de ter<br />

sido curado ele não reconhece seu Médico. E, não obstante, quando<br />

recebe a ordem de carregar seu leito, isso parece ter sido feito pela<br />

diretriz da fé. Para mim pessoalmente, visto não negar que havia nele<br />

algum movimento secreto de fé, afirmo que, à luz do que se segue, é<br />

claro que ele não tinha a doutrina sólida ou a clara luz sobre a qual ele<br />

pudesse confiar.<br />

14. Depois dessas coisas, Jesus o encontrou. Estas palavras mostram<br />

ainda mais claramente que, quando Cristo se ocultou por algum<br />

tempo, não era com o intuito de fazer com que perecesse a lembrança<br />

da bondade que ele conferira, pois aparece em público de sua livre iniciativa.<br />

Simplesmente, tencionava fazer com que a obra viesse a lume<br />

primeiro, e que ele depois declarasse ser seu Autor.<br />

Esta passagem contém uma doutrina de imensa utilidade, pois<br />

quando Cristo diz: recupera a saúde, sua intenção é ensinar-nos que,<br />

se não formos incitados à gratidão, fazemos um uso impróprio dos<br />

dons de Deus. Cristo não repreende o homem por aquilo que ele mesmo<br />

lhe dera, mas apenas o lembra de que ele fora curado a fim de<br />

que, recordando o favor que recebera, passasse a servir a Deus, seu<br />

Libertador, durante toda sua vida. Portanto, como Deus, por meio de<br />

açoites, instrui e impele-nos ao arrependimento, assim nos convida<br />

a esse exercício por meio de sua bondade e paciência. E deveras é o<br />

desígnio universal, tanto de nossa redenção quanto de todos os dons<br />

de Deus, manter-nos inteiramente devotados a ele. Ora, isso não pode<br />

ser alcançado a menos que a lembrança do castigo passado permaneça<br />

impressa na mente, e a menos que aquele que obteve o perdão se<br />

exercite nessa meditação ao longo de toda sua vida.<br />

Esta admoestação nos ensina ainda que todos os males que suportamos<br />

têm de ser imputados a nossos pecados, pois as aflições<br />

dos homens não são acidentais, mas são tantos açoites quanto é nossa<br />

carência de disciplina. Primeiramente, devemos reconhecer a mão de


Capítulo 5 • 209<br />

Deus que nos golpeia, e não imaginar que nossas angústias tem como<br />

origem uma cega impetuosidade da sorte, e em seguida atribuímos<br />

essa honra ao Deus que, sendo nosso Pai cheio de bondade, não nutre<br />

nenhum prazer em nossos sofrimentos, e por isso não nos trata com<br />

dureza do que se sente ofendido por nossos pecados. Ao responsabilizar<br />

o homem de não pecar mais, ele não lhe impõe a viver isento<br />

de todo pecado, mas fala em termos comparativos quanto a sua vida<br />

anterior, pois Cristo o exorta de agora em diante cultivar um coração<br />

quebrantado e a não fazer o que outrora fazia.<br />

Para que não te sobrevenha algo pior. Se não continua nos fazendo<br />

o bem por meio dos açoites com que amorosamente nos disciplina,<br />

como o mais bondoso dos pais castigaria seus filhos tenros e frágeis,<br />

ele se vê constrangido a adotar um novo caráter, e um caráter que,<br />

por assim dizer, não lhe é natural. Ele, pois, empunha o chicote para<br />

subjugar nossa obstinação, segundo nos ameaça em sua lei [Lv 26.14;<br />

Dt 28.15; Sl 32.9]. E deveras em toda a Escritura nos deparamos com<br />

passagens do mesmo gênero. Daí, quando formos incessantemente<br />

apertados por nossas aflições, associemo-las à nossa própria obstinação,<br />

pois não só nos assemelhamos a cavalos e mulas, mas somos<br />

como bestas selvagens que não se deixam domesticar. Portanto, não<br />

há motivo para perplexidade se Deus faz uso das mais severas disciplinas<br />

para nos ferir, por assim dizer, com marretas, quando o castigo<br />

mais moderado já não surte efeito, pois é próprio que aqueles que não<br />

suportam ser corrigidos tenham de ser feridos por golpes mais fortes.<br />

Em suma, o uso de castigos visa a tornar-nos mais cautelosos no<br />

futuro. Se depois do primeiro e do segundo golpes ainda mantivermos<br />

o coração obstinadamente empedernido, ele nos golpeará sete vezes<br />

mais severamente. Se depois de demonstrarmos sinais de arrependimento<br />

por algum tempo, e imediatamente voltarmos à nossa disposição<br />

natural, ele castiga mais ferinamente essa leviandade, a qual prova nosso<br />

esquecimento e que estamos dominados pela indolência.<br />

Uma vez mais, na pessoa desse homem, é importante observarmos<br />

com que amabilidade e condescendência o Senhor nos suporta.


210 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Suponhamos que o homem estivesse chegando à idade senil, em cujo<br />

caso ele teria sido visitado pela enfermidade no primor da vida, e<br />

talvez tivesse sido atingido por ela desde a mais tenra infância; e,<br />

agora, consideremos quão grave ter-lhe este castigo sido contínuo<br />

ao longo de tantos anos. É certo que não podemos reprovar a Deus<br />

com excessiva severidade em deixar esse homem em prolongado<br />

enfraquecimento e mesmo quase morto; e. por isso, quando somos<br />

castigados mais extensamente, aprendamos que é porque o Senhor,<br />

em sua infinita bondade, modera o extremo rigor dos castigos que<br />

teríamos bem merecido. 5<br />

Aprendamos ainda que nenhuma disciplina é extremamente rigorosa<br />

e severa, ao ponto de o Senhor não poder-lhes fazer adições<br />

sempre que ele queira. Tampouco se pode duvidar que os homens<br />

desventurados, através de suas queixas perversas, amiúde apliquem a<br />

si mesmos torturas terríveis e chocantes, quando asseveram não ser<br />

possível suportar angústias mais pesadas, e que Deus não pode enviar-lhes<br />

algo mais. 6 “Não está isso guardado comigo, selado em meus<br />

tesouros?” [Dt 32.34], diz o Senhor.<br />

Devemos também observar quão morosos somos em derivar<br />

benefícios das disciplinas divinas, pois se a exortação de Cristo não<br />

fosse supérflua, poderíamos aprender dela que a alma desse homem<br />

não tinha ainda sido plenamente purificada de todo vício. Aliás, as<br />

raízes dos vícios são profundas demais em nós para poderem ser eliminadas<br />

em um só dia ou em poucos dias, e a cura das enfermidades<br />

da alma é difícil demais para ser eliminada por antídotos aplicados por<br />

tão pouco tempo.<br />

15. O homem se foi. Nada estava mais distante de sua intenção<br />

do que transformar Cristo no alvo do ódio deles, e nada estava mais<br />

afastado de sua expectativa do que levá-los a se precipitarem tão<br />

furiosamente contra Cristo. Sua intenção, pois, era pia; pois deseja-<br />

5 “Que nous aurions bien meritee.”<br />

6 “Quand ils disent qu’il n’est pas possible d’endurer plus grand mal, et que Dieu ne leur<br />

en scauroit envoyer davantage.”


Capítulo 5 • 211<br />

va prestar a seu Médico a honra que com justiça ele bem merecia.<br />

Os judeus, em contrapartida, exibem seu veneno, não só acusando<br />

a Cristo de haver violado o sábado, mas também em irromper com<br />

extrema crueldade.<br />

[5.17-19]<br />

Jesus, porém, lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu<br />

trabalho. Por essa razão, pois, os judeus buscavam ainda mais<br />

matá-lo, porque não só transgredia o sábado, mas também<br />

chamava Deus seu Pai, fazendo-se igual a Deus. Jesus, pois, respondeu,<br />

e lhes disse: Em verdade, em verdade vos digo: O Filho<br />

não pode fazer coisa alguma de si mesmo, mas o que vir o Pai<br />

fazer; tudo quanto ele faz, isso também o Filho igualmente o faz.<br />

17. Meu Pai trabalha até agora. É preciso que vejamos bem que<br />

tipo de defesa Cristo emprega. Ele não replica dizendo que a lei de<br />

guardar o sábado era temporária, e que a mesma deve agora ser abolida;<br />

mas, ao contrário, mantém que ele não violara a lei, porque esta<br />

é uma obra divina.<br />

É verdade que a cerimônia do sábado era uma parte das sombras<br />

da lei, 7 e que Cristo a leva a um termo final com sua vinda, como o<br />

demonstra Paulo [Cl 2.16], mas a presente questão não se volve a este<br />

ponto. Pois os homens são ordenados a absterem-se somente de suas<br />

próprias obras; e, consequentemente, a circuncisão – que é uma obra<br />

divina, e não humana – não entra em conflito com o sábado.<br />

Eis no que Cristo insiste: que o santo repouso que estava ordenado<br />

pela lei de Moisés não é perturbado quando nos envolvemos nas<br />

obras de Deus. 8 E, por essa razão, ele justifica não só sua própria ação,<br />

mas também a ação do homem que carregava seu leito, pois ela era<br />

um apêndice e – como poderíamos dizer – uma parte do milagre, porque<br />

nada mais era do que uma aprovação dele. Além disso, se a ação<br />

7 “Il est bien vray que la ceremonie du Sabbath estoit une partie des ombres de la Loy.”<br />

8 “Quand on s’employe à oeuvres de Dieu.”


212 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

de graças e a publicação da glória divina forem computadas entre as<br />

obras de Deus, não constituía uma profanação do sábado testificar<br />

da graça de Deus durante o dia todo. Mas é primordialmente sobre si<br />

mesmo que Cristo fala, a quem os judeus eram mais hostis. Ele declara<br />

que a saúde do corpo que ele havia restaurado ao homem enfermo é<br />

uma demonstração de seu poder divino. Ele assevera ser o Filho de<br />

Deus, e que age da mesma forma que age seu Pai.<br />

Qual é o uso do sábado, e por quais razões ele foi ordenado, não<br />

discuto agora com mais fôlego. Basta para a presente passagem que a<br />

guarda do sábado longe está de interromper ou paralisar as obras de<br />

Deus. Ao contrário, ele dá espaço somente a elas. Pois, por que a lei<br />

ordena aos homens a que se abstenham de suas obras pessoais a fim<br />

de conservar todos seus sentidos livres e ocupados com a realização<br />

das obras de Deus? Consequentemente, aquele que não permite, no<br />

sábado, um livre curso e controle às obras de Deus é não só um falso<br />

expositor da lei, mas impiamente a subverte.<br />

Se alguém contestar dizendo que o exemplo de Deus é mantido<br />

nos homens, para que descansem no sétimo dia, a resposta é fácil. Os<br />

homens não se conformam a Deus neste aspecto, a saber: ele cessou<br />

de trabalhar, porém em abster-se das enfadonhas obras deste mundo e<br />

em aspirar o descanso celestial. O sábado ou descanso de Deus, 9 portanto,<br />

não equivale a ócio, mas consiste na verdadeira perfeição que<br />

traz consigo um tranquilo estado de paz. Tampouco é isso inconsistente<br />

com o que Moisés diz, ou, seja, que Deus pôs termo final a suas obras<br />

[Gn 2.2]; pois sua intenção é dizer que, depois de haver completado<br />

a formação do mundo, Deus consagrou esse dia para que os homens<br />

pudessem empregá-lo na meditação sobre suas obras.<br />

No entanto, ele não cessou de sustentar, com seu poder, o mundo<br />

que fizera, governando-o com sua sabedoria, sustentando-o com sua<br />

bondade e regulando todas as coisas de acordo com seu beneplácito,<br />

tanto no céu quanto na terra. Em seis dias, pois, completou-se a<br />

9 “Le Repos de Dieu.”


Capítulo 5 • 213<br />

criação do mundo, mas a administração dele ainda prossegue, e Deus<br />

incessantemente trabalha na manutenção e preservação de sua ordem,<br />

como Paulo nos informa que: nele vivemos, nos movemos e existimos<br />

[At 17.28], e Davi nos informa que todas as coisas permanecerão enquanto<br />

o Espírito de Deus as sustentar, e que desaparecerão assim que<br />

ele retirar seu sustento [Sl 104.29, 30]. Tampouco é somente através de<br />

uma providência geral que o Senhor sustenta o mundo que ele criou,<br />

senão que organiza e regula cada parte dele e, mais especialmente,<br />

através de sua proteção ele conserva e guarda os crentes a quem ele<br />

tem recebido sob seu cuidado e proteção.<br />

E eu também trabalho. Deixando a defesa da presente causa,<br />

Cristo agora explica o propósito e uso do milagre, a saber: que, por<br />

meio dele, ele viesse a ser reconhecido como o Filho de Deus, pois<br />

o objetivo que ele tinha em vista em todas suas palavras e atos era<br />

mostrar que ele era o Autor da salvação. O que agora reivindica para<br />

si pertence a sua Deidade, como o apóstolo também diz que ele sustenta<br />

todas as coisas por sua poderosa vontade [Hb 1.3]. Mas quando<br />

testifica ser ele Deus, significa que, sendo manifestado na carne, ele<br />

pode realizar o ofício de Cristo; e quando afirma que veio do céu, é<br />

primordialmente com o propósito de nos informar com que propósito<br />

ele desceu à terra.<br />

18. Por esta razão, pois, os judeus procuravam ainda mais matá-<br />

-lo. Esta defesa longe estava de apaziguar a fúria deles. Ficaram ainda<br />

mais enraivecidos. Tampouco ele ignorava sua malignidade e perversidade<br />

e empedernida obstinação, porém tencionava primeiro extrair<br />

proveito para alguns de seus discípulos que então estavam presentes,<br />

e em seguida fazer pública exibição da incurável malícia deles. Por<br />

meio de seu exemplo, porém, ele nos ensinou que jamais devemos render-nos<br />

à fúria dos homens maus, e, sim, tudo fazer para mantermos a<br />

verdade de Deus, até onde a necessidade o exigir, ainda que o mundo<br />

inteiro se oponha e murmure. E nem há razão para que os servos de<br />

Cristo se sintam mal por não ganhar todos os homens como era de seu<br />

desejo, visto que Cristo mesmo nem sempre o conseguiu. E não carece


214 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

que fiquemos surpresos se, à medida que a glória de Deus for mais<br />

plenamente exibida, Satanás também se enfureça ainda mais violentamente<br />

em seus membros e instrumentos.<br />

Porque ele não só transgrediu o sábado. Quando o evangelista<br />

diz que os judeus eram hostis a Cristo por haver ele transgredido o sábado,<br />

ele fala segundo a opinião que formara, pois já demonstrei que<br />

a situação do caso era totalmente o oposto. A principal causa de sua<br />

fúria era que ele mesmo denominou Deus de meu Pai. E certamente<br />

Cristo pretendia que se entendesse que Deus era seu Pai em um sentido<br />

peculiar, de modo a distinguir-se da categoria ordinária dos demais<br />

homens. Ele se fez igual a Deus quando reivindicou para si o direito<br />

de continuar trabalhando, e Cristo longe está de negar isso, porque o<br />

confirma ainda mais distintamente. Isso refuta a demência dos arianos<br />

que reconheciam que Cristo é Deus, porém não criam que ele fosse<br />

igual ao Pai, como se na essência única e simples de Deus pudesse<br />

haver alguma desigualdade.<br />

19. Jesus, portanto, respondeu. Observemos o que eu já disse:<br />

que Cristo longe está de defender-se do que os judeus asseveravam,<br />

ainda que a intenção deles era constrangê-lo de calúnia, mantém ainda<br />

mais francamente como sendo verdadeiro. Primeiramente, ele insiste<br />

neste ponto: a obra na qual os judeus matutavam era uma obra divina,<br />

para fazê-los entender que estariam lutando contra Deus mesmo se<br />

persistissem em condenar o que necessariamente deve ser-lhe atribuído.<br />

Antigamente, esta passagem foi debatida de várias maneiras<br />

entre os Pais ortodoxos e os arianos. Ário inferiu dela que o Filho é<br />

inferior ao Pai porque por si só ele nada pode fazer. Os Pais replicaram<br />

que essas palavras denotam nada mais que a distinção da pessoa, de<br />

modo que se soubesse que Cristo procede do Pai, e no entanto ele não<br />

é privado do poder intrínseco de agir. Mas ambos os partidos estavam<br />

equivocados. Pois o discurso não se relaciona com a simples deidade<br />

de Cristo, e essas afirmações que veremos imediatamente não se relacionam<br />

simplesmente e por si só com o Verbo eterno de Deus, mas<br />

se aplicam somente ao Filho de Deus, enquanto manifestado na carne.


Capítulo 5 • 215<br />

Portanto, mantenhamos Cristo diante de nossos olhos, como ele<br />

foi enviado ao mundo pelo Pai para ser o Redentor. Os judeus não<br />

viam nele nada mais elevado do que a natureza humana, e por isso ele<br />

argumenta dizendo que, ao curar o homem enfermo, não fez isso pelo<br />

uso de poder humano, mas mediante o poder divino que se mantinha<br />

oculto sob sua carne visível. A situação do caso é esta. Visto que eles,<br />

limitando sua atenção à aparência da carne, desprezavam a Cristo, ele<br />

os convida a erguer sua vista mais alto e contemplar a Deus. O discurso<br />

como um todo deve ser atribuído a este contraste: que eles erram<br />

flagrantemente pensando que estão tratando com um homem mortal,<br />

quando acusam a Cristo de [realizar] obras que são verdadeiramente<br />

divinas. Eis sua razão para afirmar de forma tão categórica que nesta<br />

obra não há diferença entre ele e seu Pai.<br />

[5.20-24]<br />

Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe todas as coisas que ele<br />

faz; e lhe mostrará coisas ainda maiores do que estas, para<br />

que vos maravilheis. Porque como o Pai ressuscita os mortos<br />

e os vivifica, assim também o Filho vivifica a quem ele quer.<br />

Pois o Pai a ninguém julga, porém confiou ao Filho todo juízo;<br />

para que todos os homens honrem ao Filho como honra ao Pai:<br />

aquele que não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo: Aquele que ouvir minha<br />

palavra e crer naquele que me enviou tem a vida eterna, e não<br />

entrará em condenação, mas passou da morte para a vida.<br />

20. Porque o Pai ama o Filho. Todo o mundo pode perceber quão<br />

desarmoniosa e artificial é a exposição desta passagem dada pelos<br />

Pais. “Deus”, dizem eles, “se ama no Filho.” Esta afirmação, porém, se<br />

aplica maravilhosamente a Cristo como vestido com carne, que ele é<br />

amado pelo Pai. Aliás, sabemos que é por meio deste excelente título<br />

que ele se distingue tanto dos anjos quanto dos homens: Este é o meu<br />

Filho amado [Mt 3.17]. Pois sabemos que Cristo foi escolhido para que


216 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

todo o amor de Deus nele habitasse e para que [esse amor] pudesse<br />

fluir dele para nós como de uma fonte plenária.<br />

Cristo é amado pelo Pai como a Cabeça da Igreja. Ele mostra que<br />

esse amor é a causa pela qual o Pai faz todas as coisas por meio de<br />

suas mãos. Pois quando ele diz que o Pai o ama, esta expressão deve<br />

ser entendida como a denotar comunicação, como se quisesse dizer:<br />

“Visto que o Pai me deu seu coração, assim ele derramou sobre mim<br />

seu poder para que a glória divina resplandecesse em minhas obras<br />

e – o que é ainda mais glorioso! – para que os homens não busquem<br />

nada divino senão o que encontram em mim.” E deveras será debalde<br />

buscar o poder de Deus fora de Cristo.<br />

Ele lhe mostrará obras ainda maiores que estas. Com estas palavras,<br />

ele quer dizer que o milagre que realizara na cura do homem<br />

não era a maior das obras que lhe fora confiada pelo Pai, pois ele tinha<br />

dado apenas um leve sabor daquela graça da qual ele é propriamente<br />

tanto Ministro quanto Autor; isto é, restaurar a vida ao mundo.<br />

Para que vos maravilheis. Ao acrescentar estas palavras, ele<br />

indiretamente os acusa de ingratidão, menosprezando tão eminente<br />

demonstração do poder de Deus, como se quisesse dizer: “Ainda que<br />

sejais embotados e estúpidos, todavia as obras que Deus mais tarde<br />

realizará por meu intermédio arrebatará, ainda que relutantemente,<br />

vossa admiração”. Não obstante isso parece não haver se cumprido,<br />

pois sabemos que vendo, não viram, como Isaías também diz que os<br />

réprobos são cegos, embora envolvidos pela luz de Deus. Minha resposta<br />

é que Cristo não fala agora da disposição deles, mas apenas<br />

esboça uma sugestão quanto ao esplendor da demonstração que mais<br />

tarde daria de que ele era o Filho de Deus.<br />

21. Porque como o Pai ressuscita os mortos. Aqui ele faz um sumário<br />

do ponto de vista da natureza do ofício que lhe fora dado pelo<br />

Pai, pois ainda que pareça especificar uma só classe, no entanto é uma<br />

doutrina geral na qual ele se declara como sendo o Autor da vida. Ora,<br />

a vida contém em si não só a justiça, mas todos os dons do Espírito<br />

Santo e cada parte de nossa salvação. E certamente este milagre deve


Capítulo 5 • 217<br />

ter sido uma prova tão extraordinária do poder de Cristo, ao ponto de<br />

produzir este fruto comum, isto é, a abertura da porta ao evangelho.<br />

Devemos observar ainda de que maneira Cristo nos outorga vida,<br />

porquanto ele nos encontros todos mortos, e por isso se fazia necessário<br />

começar com a ressurreição. Não obstante, quando anexa estas<br />

palavras, ressuscitar e vivificar, ele não usa linguagem supérflua, pois<br />

não teria sido suficiente que fôssemos resgatados da morte se Cristo<br />

não houvera plena e perfeitamente restaurado a vida em nós. Também<br />

não fala desta vida como sendo outorgada a todos indiscriminadamente,<br />

pois ele diz que dá a vida a quem ele quer, com o quê ele quer dizer<br />

que confere esta graça especialmente a determinadas pessoas, e a ninguém<br />

mais, isto é, aos eleitos.<br />

22. Pois o Pai a ninguém julga. Ele gora declara com mais clareza<br />

a verdade geral de que o Pai governa o mundo na pessoa do Filho e<br />

exerce domínio através de suas mãos. Pois o evangelista emprega a<br />

palavra juízo, em conformidade com o idioma hebraico, para denotar<br />

autoridade e poder. Agora percebemos o equivalente do que se afirma<br />

aqui: que o Pai deu ao Filho o reino para que ele pudesse governar céu<br />

e terra em conformidade com seu beneplácito.<br />

Mas poderia parecer grande absurdo o fato de que o Pai, cedendo<br />

seu direito de governar, permaneça inativo no céu, como uma pessoa<br />

privada. A resposta é fácil. Isso é expresso com respeito tanto a Deus<br />

quanto aos homens, pois nenhuma mudança ocorreu no Pai quando<br />

ele designou Cristo como o supremo Rei e Senhor do céu e da terra,<br />

porquanto ele está no Filho e opera nele. Mas visto que, quando desejamos<br />

chegar a Deus, todos nossos sentidos imediatamente fracassam,<br />

Cristo é posto diante de nossos olhos como uma imagem viva do Deus<br />

invisível. Não há razão, portanto, por que devamos labutar sem qualquer<br />

propósito em explorar os segredos do céu, visto que Deus provê<br />

para nossa fraqueza ao revelar sua intimidade na pessoa de Cristo.<br />

Mas, em contrapartida, sempre que a inquirição concernente ao governo<br />

do mundo, a nossa própria condição, à proteção celestial de<br />

nossa salvação, aprendamos a dirigir nossos olhos exclusivamente a


218 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Cristo, quando todo poder lhe é confiado [Mt 28.18], e em sua face<br />

Deus o Pai, que de outra forma teria permanecido oculto e à distância,<br />

se nos manifesta para que a majestade de Deus, sem véu, não nos consuma<br />

por seu inconcebível fulgor.<br />

23. Para que todos os homens honrem o Filho. Esta sentença<br />

confirma suficientemente a sugestão que delineei um pouco antes, a<br />

saber: que quando lemos que Deus reina na pessoa de Cristo, isso não<br />

significa que ele repousa no céu, como reis indolentes costumam fazer,<br />

mas porque em Cristo ele manifesta seu poder e se revela presente.<br />

Pois que outro é o significado destas palavras: para que os homens<br />

honrem o Filho, senão que o Pai deseja ser reconhecido e adorado no<br />

Filho? Portanto, nosso dever é buscar a Deus o Pai em Cristo, contemplar<br />

seu poder em Cristo e adorá-lo em Cristo. Porque, como segue<br />

imediatamente, aquele que não honra o Filho priva a Deus da honra<br />

que se lhe deve.<br />

Todos admitem que devemos adorar a Deus, e tal sentimento, que<br />

é natural em nós, está profundamente arraigado em nossos corações,<br />

de modo que ninguém absolutamente ousa recusar dar a Deus a honra<br />

que se lhe deve, não obstante as mentes humanas se perdem em<br />

transviar-se do caminho em busca de Deus. Daí, tantas são as pretensas<br />

divindades, tantos são modos perversos de culto. Portanto, jamais<br />

acharemos o Deus verdadeiro senão em Cristo, tampouco o adoraremos<br />

corretamente senão beijando o Filho, como nos informa Davi [Sl<br />

2.12], pois, como <strong>João</strong> alhures declara, aquele que não tem o Filho não<br />

tem o Pai [1Jo 2.23].<br />

Maometanos e judeus de fato adornam com títulos belos e magnificentes<br />

o Deus a quem adoram. Porém, é preciso ter em mente que o<br />

nome de Deus, quando separado de Cristo, nada mais é do que uma vã<br />

imaginação. Quem quer, pois, que deseje ter seu culto aprovado pelo<br />

Deus verdadeiro, que não se desvie de Cristo. Tampouco era diferente<br />

com os Pais sob a lei, pois ainda que vissem a Cristo obscuramente em<br />

meio às sombras, todavia Deus jamais se lhes revelou fora de Cristo.<br />

Mas agora, visto que Cristo já se manifestou na carne e já determinou


Capítulo 5 • 219<br />

ser Rei sobre nós, o mundo inteiro deve curvar seus joelhos diante<br />

dele, a fim de obedecer a Deus, pois o Pai, havendo-o feito sentar-se<br />

a sua destra, aquele que forma uma concepção de Deus destituída de<br />

Cristo aposta dele.<br />

24. Aquele que ouve minha palavra. Aqui se descreve a forma e<br />

a maneira de honrar a Deus, para que ninguém pense que ela consista<br />

unicamente de alguma realização externa ou de cerimônias frívolas.<br />

Pois a doutrina do evangelho se assemelha ao cetro de Cristo, por<br />

meio do qual ele governa os crentes que o Pai lhe fez sujeitos. E esta<br />

definição é eminentemente digna de observação. Nada é mais comum<br />

do que uma falsa profissão do Cristianismo. Pois, inclusive os papistas,<br />

os quais são os mais inveterados inimigos de Cristo, vangloriam-se<br />

da maneira mais pretensiosa de seu nome. Aqui, porém, Cristo não demanda<br />

de nós qualquer outra honra senão a obediência devida a seu<br />

evangelho. Daí se segue que toda a honra que os hipócritas concedem<br />

a Cristo outra coisa não é senão o ósculo de Judas, por meio do qual<br />

ele traiu seu Senhor. Ainda que centenas de vezes o chamem Rei, todavia<br />

o privam de seu reino e de todo seu poder, quando não exercitam<br />

fé no evangelho.<br />

Para a vida eterna. Com estas palavras ele igualmente enaltece o<br />

fruto da obediência, para que sejamos mais dispostos a concretizá-la.<br />

Pois quem seria tão empedernido ao ponto de não se submeter voluntariamente<br />

a Cristo, quando o galardão da vida eterna lhe é garantido?<br />

E, no entanto, vemos quão poucos há a quem Cristo conquista para si<br />

através de sua tão intensa bondade. Tão grande é nossa depravação<br />

que preferimos antes perecer de nossa livre iniciativa do que render-<br />

-nos à obediência do Filho de Deus, para que sejamos salvos por sua<br />

graça. Portanto, ambos os elementos estão ali incluídos por Cristo: o<br />

espólio do devoto e sincero culto que ele requer de nós, bem como<br />

o método pelo qual ele nos restaura à vida. Pois não seria suficiente<br />

entender o que ele outrora ensinou, a saber: que ele veio ressuscitar os<br />

mortos, a menos que também conhecêssemos a maneira como ele nos<br />

restaura à vida.


220 • <strong>Comentário</strong> do <strong>Evangelho</strong> de <strong>João</strong><br />

Agora, ele afirma que a vida se obtém por meio de ouvir sua palavra,<br />

e pela palavra ouvir ele quer dizer a fé, como imediatamente em<br />

seguida ele declara. A fé, porém, tem sua sede não na audição, mas no<br />

coração. Donde a fé deriva tão grande poder, já explicamos previamente.<br />

Devemos considerar sempre o que é que o evangelho nos oferece,<br />

pois não carece que nos sintamos surpresos se aquele que recebe a<br />

Cristo com todos seus méritos seja reconciliado com Deus e fique isento<br />

da condenação da morte, e que aquele que tiver recebido o dom do<br />

Espírito Santo é revestido com a justiça celestial, para que possa andar<br />

em novidade de vida [Rm 6.6].<br />

A sentença adicionada, crê naquele que o enviou, serve para confirmar<br />

a autoridade do evangelho. Quando Cristo testifica que veio de<br />

Deus e não foi inventado por homens, como em outro lugar diz que o<br />

que ele fala não procede de si mesmo, mas lhe foi confiado pelo Pai [Jo<br />

7.16; 14.10].<br />

E não entrará em condenação. Há aqui um contraste implícito<br />

entre a culpa a que todos naturalmente somos passíveis e a quitação<br />

incondicional que granjeamos através de Cristo. Pois se todos não<br />

fôssemos passíveis de condenação, a que propósito serviria serem<br />

isentados dela os que creem em Cristo? O significado, pois, é que escapamos<br />

do perigo da morte porque somos isentados dela através da<br />

graça de Cristo; e, por isso, ainda que Cristo nos santifique e nos regenere<br />

por intermédio de seu Espírito para novidade de vida, contudo<br />

aqui ele menciona especialmente o perdão incondicional dos pecados,<br />

tão-somente no qual consiste a felicidade dos homens. Pois uma pessoa<br />

só começa a viver quando é reconciliada com Deus; e como Deus<br />

nos amaria se ele não perdoar nossos pecados?<br />

Mas passou da morte para a vida. Algumas cópias latinas têm<br />

este verbo no tempo futuro, passará da morte para a vida; mas isso<br />

teve como origem a ignorância e precipitação de alguma pessoa que,<br />

não entendendo a intenção do evangelista, assumiu mais liberdade<br />

do que deveria ter assumido. Pois a palavra grega, μεταβέβηκε (passou)<br />

não tem qualquer ambiguidade. Não há impropriedade em dizer


Capítulo 5 • 221<br />

que já passamos da morte para a vida; pois a semente de vida incorruptível<br />

[1Pe 1.23] reside nos filhos de Deus e já se acham sentados<br />

na glória celestial com Cristo por meio da esperança [Cl 3.3] e já têm<br />

o reino estabelecido em seu íntimo [Lc 17.21]. Pois ainda que sua<br />

vida esteja oculta, por essa causa não deixam de possuí-la pela fé; e<br />

ainda que estejam cercados de todos os lados, pela fé não deixam de<br />

desfrutar de calma, eles sabem que estão em perfeita segurança pela<br />

proteção de Cristo.<br />

Todavia, lembremo-nos de que os crentes estão agora em vida<br />

de tal maneira que sempre levam consigo a causa da morte; o Espírito,<br />

porém, que em nós habita, é vida, o qual por fim destruirá os<br />

resquícios da morte, pois é verdadeira a declaração de Paulo, que a<br />

morte é o último inimigo que será destruído [1Co 15.26]. E deveras esta<br />

passagem nada contém que se relacione com a completa destruição<br />

da morte, nem da inteira manifestação da vida. Mas ainda que a vida<br />

apenas tivesse início em nós, Cristo declara que os crentes estão tão<br />

seguros de obtê-la, que não devem recear a morte. E não carece que<br />

fiquemos surpresos com isso, visto que estamos unidos àquele que é<br />

a inexaurível fonte de vida.<br />

[5.25-29]<br />

Em verdade, em verdade eu vos digo, que a hora vem e já chegou,<br />

quando os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os<br />

que a ouvirem viverão. Pois como o Pai tem vida em si mesmo,<br />

assim também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo. E<br />