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Sitio Alto _ Boletim_A4_4paginas_ENAE_Asa

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Seu Zé de Totó e Dona Finha tiveram 10 filhos. Destes, cinco morreram ainda pequenos e cinco são hoje adultos,<br />

sendo que na comunidade moram apenas 3. Todos nasceram de parto normal, cinco em casa ou, como se fala por ali,<br />

“na gamela” e cinco na maternidade. Quando vai opinar sobre o que prefere, Dona Finha não hesita: em casa, afirma,<br />

sem sinal de dúvida, e explica, é melhor, porque na maternidade quando começavam a sentir as dores eram levadas<br />

para a sala de pré-parto e ficavam sozinhas, chegavam até a ter as crianças ali, sem nenhum acompanhamento e de<br />

acordo com ela isso dá um desgosto, uma tristeza que a mulher pensa que vai morrer sozinha. Uma de suas noras ali<br />

presente assente com a cabeça concordando durante todo esse relato.<br />

Explicam que quando estão gestantes “tá tudo atrás dizendo o que fazer, o que não fazer, o que comer, que remédios<br />

tomar, mas que quando mais precisam de acompanhantes, quando estão sentindo as dores, na maternidade não<br />

podem ter e que quando aparece alguém é pra reclamar da zuada”. Relatos como esses são frequentes para as<br />

mulheres negras do Brasil todo.<br />

No parto de um de seus filhos, que nasceu morto, Dona Finha chegou a ficar 12 dias internada com a criança já morta<br />

em sua barriga, os médicos de plantão se recusavam a atendê-la porque o médico que a internou havia viajado, foi<br />

necessário que a então a diretora do hospital assumisse seu caso.<br />

Hoje na comunidade não se tem mais parteiras como as que trouxeram ao mundo 5 dos 10 filhos de Dona Finha e seu<br />

Zé de Totó e muitas outras crianças de Sítio <strong>Alto</strong>, elas deixaram de partejar devido a uma lei que ameaçava prender<br />

aquelas que “pegassem menino” e a criança morresse.<br />

Assim, a Comunidade Quilombola Sítio <strong>Alto</strong> constrói a sua história, lugar de homens e mulheres lutadores/as por<br />

seus direitos, na reafirmação da sua identidade e das suas conquistas, sempre em busca de desenvolvimento e na<br />

permanência da resistência em suas bandeiras de lutas.<br />

Dança de Roda (Cultura da Comunidade)<br />

SIMÃO DIAS<br />

UM RELATO DAS HISTÓRIAS DAS<br />

NEGRAS E NEGROS DO ALTO<br />

A comunidade de Sítio <strong>Alto</strong> agrega hoje 150 famílias, que até pouco tempo atrás eram 125. É conhecida como Sítio<br />

<strong>Alto</strong> desde 1988, nome deixado pela SUCAM, quando foi registrado no IBGE, por causa da sua localização e também<br />

das muitas árvores que ali existiam.<br />

Mas esse lugar já foi conhecido como <strong>Alto</strong> da Muléstia, <strong>Alto</strong> da Guenguenza, <strong>Alto</strong> do Galo Assanhado, <strong>Alto</strong> do Cacete<br />

Armado, Escorrega Leva Um, <strong>Alto</strong> Verde e <strong>Alto</strong> do Cruzeiro, referências ao local ou à vivência do povo que ali mora há<br />

mais de 300 anos, antes até da constituição do município do qual fazem parte hoje, Simão Dias - SE, que tem 123 anos.<br />

A muléstia ou a guenguenza se referem ao derrame, que é uma doença mais incidente nas pessoas negras do que nas<br />

brancas no Brasil e que antigamente era muito comum ali.<br />

Se reconhecem como quilombolas desde 1995, com a fundação da Associação Comunitária, o que Josefa Santos de<br />

Jesus, conhecida como Dona Josefa ou Dona Finha, líder comunitária e atual presidenta da associação, reafirma com<br />

segurança citando a história que ouviu de seus pais e avós. De acordo com a história que conhece, os primeiros<br />

habitantes daquele lugar, todos negros e negras, foram de barco até Salvador, depois de aportarem, chegaram ali<br />

caminhando e muitos também vieram fugidos de outros lugares.<br />

Dona Finha vê como algo positivo toda a movimentação de instituições e pessoas que vieram com o<br />

autorreconhecimento quilombola. Antes disso, Sítio <strong>Alto</strong> era um lugar isolado, escondido, visto como um espaço de<br />

“negro zuadento”, de “negro doido”. Se sentiam como se fossem “favela braba”. Quem ali morava recebia apelidos<br />

devido ao cabelo crespo e à cor escura da pele. Seus direitos enquanto cidadãos e cidadãs eram negados, os políticos<br />

vinham de tempos em tempos para pedir voto e nem escola havia por lá.<br />

Hoje, a comunidade é bastante visitada, passam por ali universidades, pesquisadoras e pesquisadores, estudantes,<br />

igrejas e organizações da sociedade civil. Quem chega, traz informações valiosas e também aprendem com a<br />

sabedoria popular ali acumulada por gerações. Tiveram suas ervas e plantas estudadas, bem como sua religiosidade.<br />

Essa riqueza que as pessoas de Sítio <strong>Alto</strong> carregam, essa resistência e sabedoria, foi registrada em livros, boletins,<br />

banners e documentários. É com felicidade que Dona Finha anuncia e seu esposo Zé de Totó concorda, a vida em Sítio<br />

<strong>Alto</strong> melhorou.<br />

A fundação da associação foi uma demonstração da força e resistência da comunidade de Sítio <strong>Alto</strong>, já que foi uma das<br />

ações realizadas na busca de sua independência e de uma vida mais digna. Hoje, sem dúvidas, é mais fácil ter acesso<br />

às políticas públicas. Depois dessa conquista tiveram mais acesso a vida social, estruturas e políticas públicas, como a<br />

energia elétrica, construção das estradas, missas na comunidade, contêiner para guardar sementes, casa de farinha,<br />

acesso a crédito, cisternas de 16 mil litros para consumo humano, projetos habitacionais, cisternas de 52 mil litros<br />

para produção de alimentos e mais recentemente a clínica da saúde, esta última ainda em construção


Tecnologias Sociais da ASA<br />

Essa longa história nesse território foi povoada de muitos conflitos, desde fazendeiros que não<br />

permitiam sua entrada em suas terras, nem para pegar água nos períodos de estiagem, como o<br />

assentamento de famílias de outras regiões em terras que eles utilizavam para plantios. Hoje vivem uma<br />

situação de minifúndios, com a divisão da terra entre os filhos, as áreas foram reduzindo seu tamanho,<br />

hoje quem ali vive tem 1 ou 2 tarefas de terra.<br />

Apesar do pouco espaço que dispõem, a comunidade produz uma diversidade de alimentos que<br />

surpreende. São vários tipos de mandioca, como a roxinha, maria garrancho, paraguá do sul, cria menino,<br />

guiriguiri e clavela, vários tipos de aipim como o escondido, caixão, queijo, rosa, cabloco e preto, vários<br />

tipos de feijão, como o andu, mangalô, mamona e vermelho, vários tipos de fava como a égua, espírito<br />

santo, mulatinha, boca de moça, boca do velho, boca do vento, mangalô, milho comum e chinês, jerimum,<br />

couve, quiabo, folha da costa, alecrim, manjericão, hortelã, manga, banana, mamão, coco, ovos, ovelhas,<br />

galinhas, gado e porco, além das muitas plantas medicinais. As sementes guardadas na casa de sementes<br />

são conservadas com cravo e pimenta, que evitam os ataques de insetos e garantem a qualidade das<br />

sementes até o próximo plantio. O que produzem é em primeiro lugar para sua alimentação e quando tem<br />

sobras suficientes levam para a feira.<br />

Parte da produção vegetal da comunidade<br />

A luta dessa comunidade é tão longa quanto sua história, e Dona Finha é figura sempre presente. Foi a<br />

partir de sua participação política e presença em espaços coletivos que ela aprendeu a falar em público e<br />

a manifestar sua opinião. Nas palavras de Dona Josefa “Porque antes da ASA a gente era umas pessoas<br />

encabrestada, nós vivia no cabresto, porque quando os políticos chegavam diziam 'Vocês não tem água<br />

não? Tadinhos! Se eu ganhar eu vou mandar fazer umas cisternas aqui. Mas na realidade só faziam para<br />

quem votava neles. Depois que a ASA chegou se libertaram e essa prática de troca de votos por água se<br />

enfraqueceu”.<br />

O Sítio <strong>Alto</strong> é um espaço de diversas e fortes tradições culturais, como as conhecidas rodas, nas quais tem<br />

samba de roda, coco, história de trancoso e adivinhação. Dona Finha nos conta que essa tradição das<br />

rodas é ensinada de pai pra filho e existe desde a época da escravidão, quando muitos ficavam presos nas<br />

senzalas sem comer e sem beber. Quando saiam comemoravam com a roda, essa dança e esse canto<br />

serviam de remédio, enfrentavam as adversidades da vida cantando e se divertindo, que de acordo com<br />

ela, são desabafos bons.<br />

Aliás, tudo nessa comunidade se fazia cantando, quando iam bater feijão na casa de alguém iam de<br />

batalhão e pra passar o tempo cantavam, improvisavam, sobre a vida, sobre as pessoas e suas relações.<br />

Dona Finha mostra como eram alguns desses versos.<br />

Uma pessoa improvisa:<br />

A veia foi-se embora e o véio ficou chorando,<br />

é o costume de veio, quenta fogo cochilando.<br />

Outra pessoa responde:<br />

Oh véia bem véia e de véia enrolou,<br />

arrumou um casamento e a véia se levantou<br />

Uma terceira canta:<br />

E se eu me casasse com véio eu murria de sorrir,<br />

eu fazia uma cama alta, pro véio não se assubir<br />

E por fim:<br />

E se eu me casasse com uma véia eu dava tanta risada,<br />

me levantava cedinho, dava um banho na coitada<br />

Pilavam os grãos para a alimentação cantando, mesmo nos períodos da fome, que foram muitos e<br />

ganhavam nomes de acordo o período, fome do pilão, fome da rola, fome do bolachão, fome do preá e<br />

fome do maguinu foram alguns dos que rapidamente vieram à memória de Dona Finha.<br />

Se uma mulher estava vivendo uma situação de machismo, fazia alguns versos pra brincar com essa<br />

realidade, pra torna-lá mais leve. Naquela época, não havia Lei Maria da Penha e essa era a forma de<br />

denúncia e resistência das mulheres negras dessa comunidade.<br />

Antes da chegada da energia elétrica, as rodas eram iluminadas por candeeiros, mandacaru de faxeiro ou<br />

mesmo apenas pela lua. Era o espaço onde a juventude daquela época encontrava para namorar, já que os<br />

pais e mães eram mais rígidos. Antes de começarem qualquer roda, pediam licença a Deus e ao dono da<br />

casa, isso já com versos. Como não podia deixar de ser, Zé de Totó e Dona Finha se conheceram em uma<br />

dessas rodas.<br />

Em Sítio <strong>Alto</strong>, as pessoas são católicas ou evangélicas, e na comunidade existem duas igrejas, uma para<br />

cada fé ali professada. Entretanto, não foi sempre assim, visto que a popularização das religiões<br />

evangélicas se deu do ano 2000 pra cá. Antes havia outras religiões e nessa época para se arrancar uma<br />

árvore não era coisa simples, precisava-se conversar com ela, pedir licença, porque toda árvore tinha um<br />

dono e uma bondade que ela fazia no mundo. A natureza era sagrada e as matas da comunidade<br />

preservadas. O conhecimento sobre as plantas, seus usos e utilidades medicinais faziam parte do dia a<br />

dia, e foi a medicina popular que curou o corpo e alma de gerações antes dessa. Essa sabedoria, embora<br />

não ocupe o mesmo lugar, é ainda presente. Dona Finha mesma vai caminhando pelas estradas,<br />

apontando e ensinando o que é, qual o nome e para que se usam muitas plantas.

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