You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Publicação Mensal Ano XVII - Nº 201 Dezembro de 2014
Uma luz brilha nas trevas
Crescer na confiança
Havang (CC 3.0)
E
is uma linda cena da vida de São
Francisco Xavier:
Era noite. Dentro de um barquinho em
mar revolto, todos estavam aflitos e São
Francisco rezando. Enquanto a nau era sacudida
de todos os lados, o Santo ia percorrendo
em espírito os nove Coros de Anjos, reverenciando
os Patriarcas, recomendando-se
aos Profetas, numa visita serena, calma, pedindo
ajuda a cada um. As pessoas atônitas,
olhando para aquela tranquilidade, encontravam
nela os meios de resistência.
É a atitude de um grande Santo que, por
ter em abundância o espírito da Igreja, enfrenta
os perigos da existência como um cavaleiro
medieval enfrentava os riscos da
guerra. O cavaleiro era ávido de perigos e
de aventuras, porque sabia defender assim a
causa para a qual fora suscitado.
Esta é a posição do varão católico quando
se encontra em perigo: não é apavorar-
-se, mas crescer na confiança.
São Francisco Xavier - Igreja
Saint-Pierre-ès-Liens de Sorigny, França
(Extraído de conferência de 21/9/1973)
Sumário
Publicação Mensal Ano XVII - Nº 201 Dezembro de 2014
Ano XVII - Nº 201 Dezembro de 2014
Uma luz brilha nas trevas
Na capa, Adoração
dos Magos - Museu do
Prado, Madri, Espanha
Foto: Enrique Cordero (CC 3.0)
As matérias extraídas
de exposições verbais de Dr. Plinio
— designadas por “conferências” —
são adaptadas para a linguagem
escrita, sem revisão do autor
Dr. Plinio
Revista mensal de cultura católica, de
propriedade da Editora Retornarei Ltda.
CNPJ - 02.389.379/0001-07
INSC. - 115.227.674.110
Diretor:
Antonio Augusto Lisbôa Miranda
Editorial
4 Uma luz brilhou para nós
Dona Lucilia
6 Respeitabilidade, afeto e charme
Sagrado Coração de Jesus
8 O olhar sereno e penetrante de Jesus
Conselho Consultivo:
Antonio Rodrigues Ferreira
Carlos Augusto G. Picanço
Jorge Eduardo G. Koury
Redação e Administração:
Rua Santo Egídio, 418
02461-010 S. Paulo - SP
Tel: (11) 2236-1027
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br
Impressão e acabamento:
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.
Rua Barão do Serro Largo, 296
03335-000 S. Paulo - SP
Tel: (11) 2606-2409
Perspectiva pliniana da história
12 Seriedade, charme e grandeza
Dr. Plinio comenta...
18 Majestade e sofrimento
A sociedade analisada por Dr. Plinio
22 Desejo do sublime
Calendário dos Santos
26 Santos de Dezembro
Preços da
assinatura anual
Comum .............. R$ 122,00
Colaborador .......... R$ 170,00
Propulsor ............. R$ 395,00
Grande Propulsor ...... R$ 620,00
Exemplar avulso ....... R$ 17,00
Serviço de Atendimento
ao Assinante
Tel./Fax: (11) 2236-1027
Hagiografia
28 Santa Melânia: Invencível e heróica
Apóstolo do pulchrum
32 Stella Clarissima
Última página
36 A Paz de Cristo no Reino de Maria
3
Editorial
Uma luz
brilhou para nós
Em dezembro de 1953, a propósito do Santo Natal, Dr. Plinio tecia considerações muito aplicáveis
aos nossos dias 1 .
Lux in tenebris lucet 2 . Com estas palavras o discípulo amado anunciou para seu tempo e para
os séculos vindouros o grande acontecimento que celebramos neste mês. Fórmula sintética que exprime
o conteúdo inexaurivelmente rico do grande fato: havia trevas por toda a parte, e na obscuridade
delas se acendeu a Luz. Por isso a Santa Igreja afirma com estas palavras proféticas de Isaías o
seu júbilo, na noite do Natal: “Hoje surgiu a luz para a mundo: o Senhor nasceu para nós. Ele será
chamado Admirável, Deus, Príncipe da Paz, Pai do século futuro, e o seu reino não terá fim” 3 .
Qual é a razão destas metáforas? Por que luz? Por que trevas?
Os comentadores são unânimes em afirmar que as trevas que cobriam a Terra quando o Salvador
nasceu eram a idolatria dos gentios, o ceticismo dos filósofos, a cegueira dos judeus, a dureza dos ricos,
a rebeldia e o ócio dos pobres, a crueldade dos soberanos, a ganância dos homens de negócio, a
injustiça das leis, a conformação defeituosa do Estado e da sociedade. Foi na mais profunda escuridão
dessas trevas que Jesus Cristo apareceu como uma luz.
Qual a missão da luz? Evidentemente, dissipar as trevas. De fato, aos poucos, foram elas cedendo.
E, na ordem das realidades visíveis, a vitória da luz consistiu na instauração da civilização cristã que,
embora com as falhas inerentes ao que é humano, foi o autêntico Reino de Cristo na Terra.
Não é o caso de fazermos aqui o histórico do crepúsculo da Cristandade ocidental. Basta lembrar
que, do século de São Tomás e São Luís IX, deslizamos para esta nossa era de laicismo e de ateísmo
militante.
O quadro que traçamos do mundo antigo poderia aplicar-se facilmente ao de hoje, em cujas trevas
do erro e do pecado os homens são retidos, em essência, por três fatores: o demônio com suas tentações,
o mundo com suas seduções e a carne com seu aguilhão.
De fato, entregue às volúpias da carne, o ser humano tende a atirar-se com todo o peso de sua miséria
às delícias do mundo; e sua alma cheia de tanto lodo está preparada para receber a ação do demônio.
Cada um desses fatores abre, pois, o campo para o outro. E por isso, instaurado numa alma o
jugo do demônio, ela se torna mais escrava do mundo e da carne.
A capitulação diante de qualquer deles, por mais incipiente que seja, dá imediato vigor aos outros.
A ação do demônio cresce na alma com o pecado e, por sua vez, agrava as devastações dos vícios na
alma.
Mas no que consiste precisamente a ação do demônio? Em dar aos impulsos de desordem que o
pecado original instalou em nós, uma vivacidade, uma energia ainda maior; em nos arrastar a uma esfera
de degradação, de sensualidade e de impiedade pior ainda que a da simples malícia humana. Arrastando,
pois, para baixo os pecadores, procurando dar coesão, em toda a Terra, às energias caóticas
e, por si mesmas, anárquicas da corrupção, soprando-as e estimulando-as, o demônio é o verdadeiro
chefe do reino das trevas no mundo.
4
Contudo, para certos tipos de mentalidade, o papel do demônio, do mundo e da carne na difusão
das trevas não deve ser levado tão a sério. O homem contemporâneo não é senão um meninão travesso,
mas bom no fundo, que só tem um ponto difícil: é irritável. Por certo ele está algum tanto longe
de praticar todos os Mandamentos. A culpa, entretanto, não é principalmente sua, mas dos que
não o souberam compreender. Em lugar de irritá-lo com dogmas, preceitos, penas, dever-se-ia tê-
-lo nutrido com o mel suave das concessões, tratado com sorrisos. Não se compreendeu isto e, como
ele é irritável — e algum tanto traquinas... —, ei-lo que quebra igrejas, desencadeia guerras, multiplica
revoluções.
A solução consistirá em abrandá-lo. Antes de tudo, não dizer as coisas claramente, porque “pode
irritar”.
Castidade, sim. Mas pronuncie a palavra bem baixinho, só quando for indispensável; ou melhor,
renuncie a fazer uso dela por muito tempo.
Obediência ao Magistério da Igreja? Sim, sem dúvida. Mas não fale propriamente em obediência,
nem em Magistério: poderíamos irritar o meninão. Melhor seria falar vagamente em fé.
Pecado? Não é termo conveniente: fale-se antes em fraqueza, lapso, deslize. E cuidado! Fale-se
sobre isto sorrindo.
Inferno, para quê? Se nosso meninão percebe que pode ir ter lá, acabará por sentir um terrível
ódio contra Deus. Há no Evangelho algumas referências a este assunto, mas é que os publicanos ouviam
falar nisso e lhes fazia bem. Nosso meninão, pelo contrário, é emancipado e se revoltaria. Deixemos
o assunto para mais tarde, será mais prudente.
Tudo isso quanto ao modo de enunciar a doutrina. Quanto ao modo de aplicá-la, as concessões
vão ainda mais longe...
O que nos ensina a este respeito Aquele que é, por excelência, a Luz brilhando nas trevas?
Por seu exemplo e por suas palavras, Nosso Senhor nos ensina, antes de tudo, que é preciso nunca
silenciar a verdade; que cumpre proclamá-la inteira, ainda que nossos ouvintes não nos aplaudam,
ainda mesmo que nos queiram lapidar ou crucificar.
É preciso anunciá-la com palavras de ameaça ou com um semblante de indulgência e de bondade?
Nosso Senhor fez uma e outra coisa, conforme o estado de alma daqueles a quem Se dirigia.
Também nós, para sermos luz neste mundo de trevas, não havemos de renunciar às apostrofes
candentes e ao tom polêmico, nem às palavras de doçura e incitamento. Devemos pedir a Nosso
Senhor que nos dê o discernimento necessário para fazer uma e outra coisa no momento oportuno.
Santos houve que fizeram principalmente uma ou outra coisa. Não houve um só Santo que jamais
desse prova de severidade, ou jamais desse prova de suavidade. Cada qual agiu segundo nele soprava
o Espírito Santo, e por foram canonizados pela Igreja.
Cada um de nós proceda segundo o espírito que tem, com uma ressalva, porém, e esta muito importante:
na aplicação dos princípios jamais se pode ceder. Sorrindo ou increpando, diga que o mal
é mal e o bem é bem. E não deixe de estimular, incentivar, pregar o bem em todos os seus aspectos.
Agir de outro modo não é trabalhar para propagar a luz, é velá-la, é querer extingui-la.
Esta é a lição que nos deixou Aquele cujo nascimento neste mês celebramos genuflexos.
1) Cf. Catolicismo, n. 36.
2) Jo 1, 5.
3) Introito da Missa da Aurora (Is. 9, 2. 6; Lc 1,33).
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
5
Dona Lucilia
Respeitabilidade,
afeto e charme
Dr. Plinio dava enorme importância à formação do tipo humano
verdadeiramente católico. Desde menino, ele observava detida e
amorosamente as altas qualidades morais de Dona Lucilia, e através
dessa admiração enlevada foi destilando o tipo humano ideal.
Há um ponto central que estava no meu espírito
desde muito menino, e que foi cobrindo sucessivos
campos até o momento presente. O curioso
é que esse ponto, sendo sempre o mesmo, ilumina com
sua luz temas diversos. Mas isso não quer dizer de nenhum
modo que, havendo a migração da luz de um tema para outro,
o tema anterior foi abandonado, esquecido ou passado
para segundo plano. Mas as
coisas se somam como os andares
de um prédio.
Um princípio
de justiça
Em menino, houve um
primeiro período em que eu
estava todo voltado a admirar
certas disposições, qualidades
de alma, em determinadas
pessoas nas quais notava
uma luz sobrenatural.
Quando falo disso, lembro-me
principalmente de
mamãe, do seu afeto, enfim,
de tudo quanto tenho explicado,
mas também de certa
respeitabilidade que ela possuía
e à qual eu queria tanto
quanto o próprio afeto.
Para a minha ótica, Dona
Lucilia tinha essa alta respeitabilidade,
não só enquanto
minha mãe e, por isso, com todo o respeito que naturalmente
o filho tem por sua mãe, porém, mais do que isso,
notava-se como ela sabia se fazer respeitar em relação
a terceiros. Não com o respeito que tem como intenção
o domínio, nem propriamente uma determinada precedência
que deveria fazer-se sentir sobre os outros, mas
era uma disposição de alma de quem se olhava com respeito
a si mesma, e por uma
disposição natural esperava o
reconhecimento dessa respeitabilidade
da parte de outros.
E se esta respeitabilidade faltasse,
seria capaz de fazer cessar
uma relação, um afeto ou
qualquer outra coisa.
Era uma respeitabilidade
por um princípio de justiça,
proveniente do sentir em sua
pessoa essa respeitabilidade e
querer que os outros a reconhecessem
por justiça. Não
era, portanto, uma questão
de faceirice, de preeminência.
Antíteses harmônicas
formando um
todo moral
Isso pode ser compreendido
facilmente, sem tantas
digressões, se considerarmos
a fotografia dela, em Paris.
6
Pelo menos para meus olhos de filho,
há ali uma alta respeitabilidade, muito
mais moral do que social, mas onde
a respeitabilidade social é um elemento
através do qual essa respeitabilidade
moral se mostra, e que não
exclui de nenhum modo a manifestação
de um grande afeto e de tudo
aquilo que eu quero nela.
Esses vários predicados se somando
constituíam uma espécie de
antíteses harmônicas, que faziam
um todo moral exquis 1 para se contemplar.
Ao lado, e como complemento
disso, havia nela um senso das contas,
pesos e medidas muito apurado,
sem nada de cálculos. Por isso
eu emprego a palavra “senso”.
No modo de tratar as pessoas,
ela dava tudo aquilo que a pessoa
merecia, com uma espécie de boa
vontade de ver o mérito do outro até onde esse mérito
existia. Não era, portanto, uma coisa assim: diante de alguém,
começa a analisar se mereceu ou não a gentileza
dispensada na entrada, quando se cumprimentaram. Ou
então pensar: “Ele tem tal qualidade; essa qualidade é
maior ou menor do que a minha? Mas também tem tal
defeito, e esse defeito eu não tenho...”
Não é isso! É um modo de se relacionar que corre como
um rio: largo, generoso, sem contas de tostões.
Destilando o tipo humano ideal
Lembro-me, por exemplo, de que nossa preceptora,
a Fräulein 2 Mathilde, era uma mulher muito inteligente
e muito viajada, tendo sido governanta numa série de
casas da nobreza europeia. Sabia, portanto, muito mais
coisas do que mamãe poderia conhecer a partir da pequena
São Paulo daquele tempo.
Várias vezes as vi conversando, nunca como duas
iguais, mas muito amistosamente. No total, ficava claro
que mamãe era patroa, pertencente a uma tradicional
família paulista; e ela, uma alemã instruída, viajada, culta,
mas não mais do que isso.
Como Dona Lucilia fazia sentir essa diferença? Ela não
fazia sentir, desprendia-se dela. Mamãe não tinha isso como
um desses faroletes de cinema para indicar o lugar: “Olha,
tenho isto, tenho aquilo!” Não. Como o curso do Rio Amazonas,
assim eu imagino o fluir das qualidades dela.
A Fräulein Mathilde não tinha nenhuma vontade de
transpor esse limite, e conversava com ela muito normalmente,
com o respeito devido, mas
também não deixando de fazer valer
o que ela tinha aprendido pelos
lugares onde estivera.
Esta respeitabilidade de Dona
Lucilia não provinha do dinheiro.
Aliás, o dinheiro não proporciona
isso. Pode até levar as pessoas a
fingirem um respeito, mas que não
será autêntico.
Eu apreciava altamente essa respeitabilidade,
e a considerava como
fazendo parte do conjunto de
predicados que uma pessoa deveria
ter. Assim, ia se destilando aos poucos,
na minha mente de menino, o
tipo humano ideal.
Descendo com charme
a rampa da velhice
Por uma questão de ótica, toda
criança, quando é muito pequenininha, julga seus pais
enormes, maduros, provectos, inteiramente formados e
com um domínio sobre todas as situações, uma coisa extraordinária!
Mamãe era muito madura de espírito, como se nota,
por exemplo, por aquela fotografia à qual me referi. Ela
me parecia a própria manifestação da maturidade plena.
Por causa disso, um juízo emitido por ela era, para mim,
uma coisa definitiva. Estava liquidado o caso, não tinha
mais nada a acrescentar.
À medida que fui tomando corpo, ficando maduro,
ela descia com nobreza, com charme, a rampa da velhice,
e em certo momento comecei a achá-la miúda. E eu,
que toda a vida chamei-a de mãezinha, comecei a notar
o quanto ela era pequenininha, e até a brincar com ela a
esse respeito, o que eu fazia tão naturalmente, que nem
me passou pela mente se ela gostava ou não.
Revendo agora, noto que não sei se ela chegou a tomar
consciência dessa mudança de clave, de tal maneira
isso correu com naturalidade entre nós.
Achava-a graciosa nas suas dimensões, com qualquer
coisa de frágil que a velhice ia pondo nela, mas que não
tirava nada do que ela possuía de augusto, de sério, de
respeitável. Pelo contrário, acentuava. v
(Extraído de conferências de 13/8/1983 e 22/8/1992)
1) Do francês: requintado.
2) Do alemão: Senhorita.
7
Sagrado Coração de Jesus
O olhar sereno e
penetrante de Jesus
Há certas descrições que superam a própria fotografia.
Um exemplo característico é a conferência na qual Dr.
Plinio, entre outras coisas, descreve o quadro de Giotto
representando o beijo de Judas. E interpreta a repercussão na
alma do traidor da pergunta de Nosso Senhor: “Judas, com
um ósculo trais o Filho do homem?”
Operfeito convívio entre o líder e os liderados supõe
algo que seja o mais possível parecido com
a autoridade entre o pai e os filhos. Mas de um
pai que conheça perfeitamente o seu métier de pai — sua
função, sua missão —, e compreende que faz parte dessa
missão algo que é insubstituível: o querer bem. Não se
reduz a isto, mas é uma coisa indispensável.
Censura e perdão
Ora, para querer bem é preciso ter entendido aquele
a quem se quer. Os homens são desta maneira: para
conseguir querer bem depois de ter entendido, é preciso
uma forma de perdão, de suavidade, de mansidão que faça
com que se consiga querer bem.
Quem é objeto desse sentimento, se for uma pessoa
reta, não pode deixar de se sentir profundamente tocada.
Essa é a escola que se aprende no Sagrado Coração de
Jesus, no Coração Imaculado de Maria.
Por exemplo, na frase de Nosso Senhor a Santa Margarida
Maria Alacoque: “Este é o Coração que tanto
amou os homens e por eles foi tão pouco amado”, percebe-se
pela redação que há um reproche, uma censura,
mas há ao mesmo tempo um perdão.
Nela está contido o pensamento de que — apesar de
quererem pouco a Nosso Senhor e Ele fazer uma censura,
mostrando aos homens que essa atitude não está bem —
isso é feito com tal amor pelo lado bom deles, e com tanta
esperança de que se deixem tocar, que há qualquer coisa
no homem que o seu lado duro, rebarbativo, pode, pela
ação da graça, amolecer de repente e a pessoa ficar outra:
agradecida, compreendendo que a montanha das suas
imperfeições não levantou contra si um inimigo na Pessoa
d’Aquele contra Quem as imperfeições foram levantadas.
A ovelha rebarbativa no meio do carrascal
Existe, portanto, um perdão suave, largo, enorme, infatigável
e que, antes mesmo de a falta ser cometida, como que
já foi esquecida. E o ofendido age como o bom pastor com
a ovelha rebarbativa que se meteu pelo carrascal: é preciso
ir pelo meio dos espinhos para pegá-la com jeito, porque a
ovelha, que deveria ser jeitosa, não balir à toa e compreender
o esforço daquele que já está metido no carrascal por
causa dela, e não aumentar seu trabalho, pelo contrário,
é caprichosa, cheia de gemidos, não suporta nada. Então,
qualquer coisa que se faça ela esperneia, bale de um modo
dolorido como quem diz: “Está doendo, está doendo! Você
está querendo me tirar daqui? Tire mesmo, mas não deixe
doer. Onde é que já se viu infligir-me essa dor?” Reclamando
assim contra aquele que a está salvando.
Nós todos somos homens e sabemos que reações como
essas podem nos vir ao espírito, e quanto nos toca
— tendo feito coisas dessas em tal quantidade, que ficamos
cegos e perdemos a noção de quanto fizemos — percebermos,
em determinado momento, que nem aquele
8
montão de ingratidões foi capaz de vencer aquela
misericórdia. E que há a mesma doçura, a mesma
bondade, o mesmo perdão, o mesmo desejo de ajudar
absolutamente imutável.
Quando a alma sente isto e é tocada por uma graça
especial, chegou a hora da vitória do Sagrado Coração
de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria.
Nosso Senhor Jesus Cristo é supremo em todos os
sentidos da palavra e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora é suprema.
Sendo Eles exemplos supremos, devemos imitá-
-Los nas ocasiões da vida particular — nas coisas pequenas,
médias e grandes — em que recebemos ingratidões
brutais, às vezes estúpidas, subestimas bárbaras, e não
nos incomodarmos.
Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, e a hora da punição
não chega?”
Eu respondo: “Chega até para o Sagrado Coração de
Jesus!”
Há certos graus de recalcitrância tão tremendos, que
não se compreende como a maldade do homem chega a
esse ponto.
Ósculo da traição
Sempre me causou repulsa máxima e furiosa a
indiferença de Judas, naquele episódio em que
ele trai Nosso Senhor. Os algozes não sabiam
quem era Jesus e, portanto, a quem deveriam
prender. Judas então diz: “Aquele a quem eu
oscular, a este prendei!”
Quer dizer, a infâmia chega a esse ponto
de ele, para indicar a sua vítima, a oscula,
sabendo que recebe um ósculo de
volta e, portanto, fazendo da troca
dessa bondade, dessa amizade, o
preço da traição!
Aí, naturalmente, há os limites
que tudo tem, e se prepara
a descarga da vindita de Deus
no que ela tem de mais terrível.
Nosso Senhor ainda é suave
com ele, mas de uma suavidade
com qualquer coisa
da doçura de um
Sagrado Coração
de Jesus
Santuário de
Nossa Senhora
de Czestochowa,
Polônia
Gustavo Kralj
9
Sagrado Coração de Jesus
Reprodução
O beijo de Judas (por Giotto) - Capela Scrovegni, Pádua, Itália
acento materno e do estrépito de um trovão, quando ele
diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?” 1
O famoso Giotto pintou um quadro figurando o ósculo
de Judas a Nosso Senhor. Judas é apresentado mais
baixo do que Jesus e beijando-O de baixo para cima, com
uma beiçorra que parece estalar de carnes, um beiço sujo
e molhado que ele cola com a sua saliva imunda no rosto
divino do Redentor. Testa pequena, cabelo que desce até
bem embaixo e já saindo desgrenhado da raiz da pele, e
um jeito subserviente diante de Nosso Senhor, ou seja,
traindo e ao mesmo tempo bajulando.
E Jesus com um olhar sereno, como quem penetra no
fundo daquele lodaçal de infâmia, ainda para ser bom
porque Ele é justo. Quer dizer, Ele quer fazer com que
Judas tenha medo, pelo menos, já que não foi tocável pela
bondade. Se a contrição não o tocou, que ele se salve
ao menos pela atrição. Então vem aquela pergunta: “Judas,
com um ósculo trais o Filho do homem?”
Mas nesse “Judas” tem uma pergunta, como quem
diz: “Meu íntimo, meu filho, aquele que está sempre comigo...
Logo você?!”
Se Judas procurasse Nossa Senhora,
obteria o perdão
Judas não dá resposta, mas vê a reação de Nosso
Senhor e percebe-se que ele sai levando impresso na
alma o castigo do pecado cometido. Ele não consegue
mais desamarrar-se daquela pergunta, e aquilo repercute
nele ainda que não queira: “Com um ósculo...
com um ósculo... com um ósculo...! Judas! Judas! Judas!
Tu trais... tu trais...” Trais quem? “O Filho do homem!”
Todas as perfeições de Nosso Senhor vêm ao espírito
de Judas, e ele, imundo, levando a sua sacola de dinheiro,
raciocina: “Traí por causa disso...”
10
E pela primeira vez aquela alma adoradora do dinheiro
vê quanto este é pouco, ainda quando seja
muito dinheiro. É tal o horror diante do que fez, que
ele vai ao Templo e joga aquelas moedas no chão.
Pensa libertar-se daquela figura, daquela pergunta,
e do afeto envolvente daquela censura. Mas ele nem
quer libertar-se da censura, nem deixar-se envolver
pelo afeto. Se ele se deixasse envolver pelo afeto, iria
procurar Nossa Senhora, prostrar-se-ia diante d’Ela
e diria:
“Senhora, eu sou tão infame que pela primeira vez
Vos chamarei de Mãe, apelando para esse extremo
de bondade, porque Vos pedirei um perdão que
só uma mãe concede ao seu filho, e mais ninguém.
Minha Mãe, Mãe virginal e imaculada,
que apesar disso também sois Mãe
deste asqueroso, nojento, traidor, ganancioso,
desleal, imundo que sou eu,
aqui estou, pior do que qualquer leproso.
Mas para Vós continua verdade
que sou filho, e vos peço:
curai-me!”
Todos os caminhos estariam
abertos para ele. Mas ele não
queria que o afeto o envolvesse,
não queria voltar e pedir perdão.
Mas ele também não podia viver
sem pedir perdão, porque o
remorso era tremendo. Então,
não podendo viver com, não podendo
viver sem, a “solução”
por ele encontrada foi de não
viver. Resolveu se matar. Foi a
uma figueira, pendurou-se ali e
morreu.
Pode-se imaginar aquele corpo
asqueroso pendente, malcheiroso,
os urubus já esvoaçando
em torno dele, as garras do
Inferno já o segurando e dando
risada, e pelos dedos do vento
balançando em várias direções,
quebrando de encontro à árvore,
e ele se deixando fazer. Até o
momento em que ele, por assim
dizer, fechou as portas do Céu.
Até o último instante ele não
pediu perdão.
Vemos, então, as vias de Deus infinitas, perfeitas, modelo
da conduta de todo aquele que exerce uma autoridade
espiritual ou temporal.
v
1) Lc 22, 48.
(Extraído de conferência
de 28/1/1993)
Sergio Hollmann
Virgem Pastora
Igreja de Sant’Ana,
Sevilha, Espanha
11
Perspectiva pliniana da história
Seriedade, charme
e grandeza
Respondendo a uma pergunta sobre a formação do
Reino de Maria e as qualidades de alma necessárias
para dele se fazer parte, Dr. Plinio apresenta algumas
reflexões a respeito da complementaridade existente
entre paternidade e primogenitura, seu papel na
constituição das eras históricas, e as relações entre
seriedade, charme e grandeza.
Q
uando chegar minha vez de ler o Cornélio 1 , espero
encontrar em sua obra o comentário a dois
verbetes que são complementares: paternidade e
primogenitura.
Até a Revolução Francesa ainda
se encontravam restos do patriarcado
O que há na paternidade para que a primogenitura,
Reprodução
Reprodução
À esquerda, a quinta praga do Egito - Museu Indianópolis de Arte, EUA;
à direita, a primeira praga do Egito - Museu de Artes Decorativas, Berlim, Alemanha
12
Reprodução
Acima, “Glorificação de São Luís”
Museu Fabre, Montpellier, França; ao lado,
Francisco I e Maria Teresa d’Áustria com seus
filhos - Palácio Dorotheum, Viena, Áustria
Reprodução
que é apenas a primeira flor da paternidade, tenha tal
valor que, por exemplo, quando Deus castigou os egípcios
com aquelas dez pragas, a última e a maior delas foi a
morte de todos os primogênitos, até mesmo dos animais? 2
Do ângulo que estou considerando, quase me impressiona
mais a morte dos primogênitos dos animais do que
dos homens.
Os antigos tinham o senso da família muito bem constituído
e desenvolvido patriarcalmente, isto é, com algumas
tradições e qualidades peculiares ao período do patriarcado.
E as águas do patriarcado fluíram longe dentro
do leito do rio da História. Até à Revolução Francesa
e a generalização dela no mundo, encontramos restos do
patriarcado nesta e naquela instituição.
Compreende-se, portanto, que seja particularmente
duro para o patriarca perder aquele que é o seu primogênito.
É algo como que fulminando o resto todo que veio,
porque quebra o elo natural entre o patriarca e o restante
de sua progênie. Por causa disso a morte do primogênito
causa uma dor para o patriarca, para o chefe de família
patriarcal especialmente.
Em nossos dias, o senso da primogenitura parece muito
apagado, quase reduzido a zero. Mas para Deus, não.
Porque o requinte do castigo não consistiu em matar um
filho qualquer, mas o primogênito. E para se compreender
a ligação do castigo com a primogenitura, quer dizer,
o que vale o primogênito não como pessoa, mas enquanto
primogênito, vem então o castigo até sobre os primogênitos
dos animais.
Mistérios da paternidade
Eu precisava ver no Cornélio, mas parece que isto dá a
entender o seguinte: que uma estirpe animal, com a morte
dos seus primogênitos, fica degradada e que há um dom
de perpetuação no primogênito que os outros não têm;
por onde o primogênito do primogênito do primogênito
possui uma representatividade de toda a estirpe que os
outros não têm. Para isso atingir assim os animais, tem algum
suporte na própria biologia. É misterioso, mas me parece
enormemente sensato e explicável que seja assim.
Essas considerações nos introduzem no conhecimento
dos mistérios da paternidade, no que ela tem de biológico. É
uma coisa tão ampla que Deus quis que houvesse homem e
mulher, para que essa ideia da autoria — um ser que gera outro
— se exprimisse pela severidade e grandeza do homem e
pela doçura da mulher, a fim de dar um complemento, como
se um ser humano só não fosse suficiente para abarcar em si
toda a causalidade de outro ser, tão grande é a paternidade,
tão grande é a causalidade, tantos mistérios há dentro disso.
Então se compreende o papel da paternidade. Estou
falando aqui da paternidade no sentido literal da palavra,
mas também de outra forma de paternidade, que é a
constituição das famílias de alma.
13
Perspectiva pliniana da história
Thomas Gun (CC. 3.0)
Heralder (CC. 3.0)
“Declaração de Fé de Filipe II” - Universidade de Barcelona, Espanha
Brasão de Armas de Filipe II
Famílias de alma
O homem que tem apetência
de seriedade não faz do ver
ou do julgar algo para se
deleitar. Ele quer a verdade
ainda que não o deleite, quer
julgar com justiça, ainda que
não lhe seja agradável.
Geralmente os reinos, os países, as nações vivem tendo
como arcabouço as famílias de alma. E quando as famílias
de alma desse reino decaem, o reino decai irremediavelmente.
Essas famílias de alma, em geral, são fundadas por um
indivíduo, segundo o qual as outras almas são suscitadas;
ele é uma espécie de molde, conforme o qual Deus modela
todas as outras vocações.
Em geral, vemos na História que na raiz de toda grande
época das nações católicas existem algumas grandes
almas que suscitam ou ressuscitam uma grande família
religiosa, e depois, como uma espécie de exalação perfumada
disso, nascem os grandes líderes temporais para
servir a Igreja.
Então, por exemplo, Santa Teresa, Santo Inácio,
São Francisco de Borja, São Francisco Xavier, São
João da Cruz, etc. Pode-se imaginar um tecido de almas,
um conjunto de focos luminosos de cujo encontro
nasce um Filipe II que, para a Espanha, foi um patriarca
menor do que o próprio mito, mas que fez uma
grande coisa: deixar um mito no qual a posteridade
creu, de maneira que o bem que ele não realizou, o
mito fez depois dele.
Então eu me ponho a perguntar: “Com o Grand Retour
3 para nós aqui na Terra, o que haverá no Reino de
Maria? Com que graças especiais, com que reluzimentos
especiais o Divino Espírito Santo se fará sentir, quando
chegar a hora de Ele insuflar a graça decisiva do Reino
de Maria?” Isso nos deve modelar.
Todos nós conhecemos o fenômeno do heliotropismo:
a tendência das plantas a se voltarem para o Sol. O
“sol”, no caso, é o Divino Espírito Santo. E é necessário
que Ele nos encontre ávidos d’Ele. De maneira tal que o
Espírito Santo se manifestando, nós nos voltemos e nos
abramos imediatamente.
Noção de seriedade
Contribuiria para isso passarmos a analisar agora outra
noção: a de seriedade.
No seu primeiro aspecto, na sua definição mais elementar,
a seriedade é a disposição de alma pela qual se quer
14
ver a realidade absolutamente como ela é, e tirando-se todas
as consequências que logicamente se devem tirar.
A seriedade comporta dois elementos: a observação
inteiramente objetiva do objeto visto, e a legítima extração
de conhecimentos de dentro daquilo que foi visto.
Então, a seriedade é a perfeição na objetividade e a
plena fecundidade no suscitar consequências, a plena
abundância das conclusões, tanto quanto àquela alma
foi dado ter. É sério quem vê tudo como deve ser visto e
conclui até onde ele pode concluir.
O homem que tem apetência de seriedade não faz,
portanto, do ver ou do julgar, algo para se deleitar a si
mesmo. Ele quer ver a verdade ainda que não o deleite,
quer julgar ainda que não lhe seja grato julgar daquele
modo. Ele quer julgar com justiça.
Portanto, ele está numa atitude de combate habitual
contra si mesmo. Porque nós todos temos uma tendência
à falta de seriedade, quer dizer, a ver as coisas como
não são e a julgá-las como nos convém. Assim como, por
exemplo, nenhum homem escapa à tentação contra a pureza,
nenhum homem escapa da tentação contra a seriedade.
A seriedade plena
visa constantemente os cumes
Mas a seriedade tem mais.
Aquilo que o homem sério vê, não basta que ele veja
numa superfície plana. Por exemplo, um indivíduo que
fosse voar muito alto e fotografasse um sistema montanhoso
muito de cima. Aquelas montanhas pareceriam
meio achatadas na fotografia, e quem a visse não teria
a impressão de toda a altura das montanhas, porque o
ponto de vista de onde foram fotografadas foi muito alto.
O homem não pode ter uma visão achatada da realidade,
porque a realidade não é chata. A realidade é hierárquica,
toda feita, portanto, de ascensões, de serranias.
A realidade é uma imensa serrania, e é preciso vê-la assim,
saber situar-se no lugar que dentro dela nos compete,
e não onde nossa fantasia quereria nos colocar.
É tão fácil pecar contra esse dever! O homem tem
uma tendência quase contínua para faltar contra essa
obrigação, quase como a tendência para respirar.
E a seriedade plena, porque é altamente hierárquica,
visa constantemente os cumes, aquilo que constitua um
píncaro de tudo.
Por exemplo, se um homem sério considerar uma pedra,
como a água-marinha, regala-se com o luminoso dela,
fazendo uma comparação, mais ou menos subconsciente,
com pedras que ele viu. Há, portanto, uma comparação
com as outras coisas já consideradas por ele. E
no fundo de sua cabeça, talvez sem que ele se dê conta,
há uma espécie de desejo da pedra ideal que não existe
na Terra, de pedra do Paraíso Terrestre, do Céu Empí-
Phillip Capper (CC 3.0)
Alpes do Sul, Nova Zelândia
15
Perspectiva pliniana da história
reo, que possa regalar plenamente o ser humano na sua
inteligência, na sua vontade, nos seus sentidos.
Desejo contínuo de perfeição
O homem sério volta-se continuamente para essas
matrizes primeiras, tratando de explicitá-las. E quando
analisamos sua vida, notamos ter sido uma longa peregrinação
à procura da perfeição de todas as coisas.
Mas ele não tarda em perceber que nada é perfeito, a
não ser Aquele que é a Perfeição, e o seu desejo de perfeição,
em última análise, se volta para Deus. E que sem
Deus Nosso Senhor tudo se pulveriza, perde o sentido,
só Ele é absoluto. Sem o Absoluto, tudo afunda no relativo,
no nada.
A pessoa séria compreende que esse seu desejo contínuo
de perfeição, que é por assim dizer o bater de coração
de sua seriedade, a alma de sua intransigência, o
impulso de sua combatividade, a fonte inspiradora de
seu carinho, de seu afeto, é o amor de Deus, pois só
Deus é perfeito. Isso deve animar continuamente o homem
sério.
Charme deslumbrante
Pelo exposto até aqui, vemos como o conceito de charme
e de grandeza instalam-se com naturalidade nesse panorama.
Segundo um conceito corrente de charme, este se
opõe à seriedade, pois é aplicado a seres que, em geral,
nos fazem sorrir. São mais miúdos, engraçadinhos e têm
uma forma pequena de perfeição que desperta um pouco
de compaixão, de ternura, de vontade de proteger e, de
outro lado, embevece.
Tomando a palavra charme nesse sentido, Deus é charmant
4 ?
O charme é uma qualidade. Logo, em Deus deve haver
charme, porém não com essa conotação que sugere
limitação.
Como podemos imaginar que o Criador faça sorrir?
Deus até deseja que o homem sorria. Quando criou, por
exemplo, o colibri, os miosótis, Ele quis que o homem
sorrisse. Desejou assim mostrar algo que é uma forma de
perfeição charmante, que n’Ele existe de um modo grandioso,
majestoso, produzindo de modo deslumbrante
aquele efeito. O que poderíamos chamar, sem violentar a
Arquivo Revista
16
palavra, de charme deslumbrante, que sai da categoria
do pequeno e voa para uma alta categoria.
Um charme deslumbrante seria o charme por excelência,
do qual esses pequenos charmes da Terra são
apenas reflexos.
Deus é infinito. Portanto, algo à maneira daquilo
que, nas criaturas, chamamos charme, n’Ele existe infinitamente.
Menino Jesus: charme e grandeza
O Altíssimo é eterno, não muda nunca. Mas como
somos seres limitados, gostamos de certas mudanças,
Deus vai nos fazendo ver aspectos sucessivamente diversos
d’Ele que mudam para nós, não n’Ele. Como
Ele é infinito, podemos passar milhões e milhões de
anos sem nunca esgotar esses diversos aspectos. E, na
sucessão desses vários “quadros”, vários “painéis” de
Deus — toda linguagem se torna vacilante para falar
de uma coisa tão alta —, pode haver mudanças que
expliquem ao homem o que ele sente quando vê, por
exemplo, o furta-cor de uma borboleta, a agilidade ou
o colorido das asas de um colibri.
E tudo quanto na natureza é irisado, opalescente,
nacarado não será algo que diz respeito à sucessão
com que em Deus vão se manifestando os charmes
grandiosos e as grandezas que, de algum modo, são
charmantes? Não será essa abóbada entre o charme e
a grandeza que constituirá um encanto no Céu? Pode-
-se pensar isso.
Se isso é assim, tem que ser salientíssimo em Nossa
Senhora, mais do que em toda a Criação reunida. Podemos
compreender, por aí, como será nossa contemplação
da Mãe de Deus, no Céu.
Maria Santíssima teve alguma coisa assim na Terra?
Teve. Ela reuniu de um modo terreno o charme e a grandeza
quando contemplou o Menino Jesus. Porque ali realmente
é o pequeno, com todo o encanto da fragilidade,
mas com a majestade de Deus.
Como terá sido realmente o Menino Jesus? Quem é
capaz de excogitar isso? Menino Jesus diante do qual os
reis magos se aproximaram reverentes, trazendo o que tinham
de melhor, e que, entretanto, era uma criancinha
que se amamentava do leite puríssimo de Nossa Senhora,
que dependia d’Ela até para espantar um mosquito...
Podemos imaginar Maria Santíssima olhando para o
Menino Jesus e, por exemplo, vendo que a natureza humana
d’Ele queria ser mimada, mimando o Menino Jesus
e pensando: “Deus quer ser mimado por Mim!”
É de não se saber o que dizer!
São temas nos quais eu gostaria de me aprofundar antes
de morrer, para me apresentar diante de Deus com
“La Virgen Blanca” - Catedral de Toledo, Espanha
isso estudado, e com meu espírito formado para isso e
por isso.
v
(Extraído de conferência
de 13/8/1983)
1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 - † 1637).
2) Ex 11.
3) Do francês: Grande retorno. No início da década de 1940,
houve na França extraordinário incremento do espírito religioso,
quando das peregrinações de quatro imagens de Nossa
Senhora de Boulogne. Tal movimento espiritual foi denominado
de “grand retour”, para indicar o imenso retorno daquele
país a seu antigo e autêntico fervor, então esmaecido.
Ao tomar conhecimento desses fatos, Dr. Plinio começou a
empregar a expressão “grand retour” no sentido não só de
“grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora de graças
que, através da Virgem Santíssima, Deus concederá ao
mundo para a implantação do Reino de Maria.
4) Do francês: charmoso.
Mario Baveloni
17
Dr. Plinio comenta...
Majestade e sofrimento
Com a alma pervadida de enlevo, veneração e
ternura, Dr. Plinio imagina como seria o convívio
diário na Sagrada Família, abordando desde os
assuntos mais comezinhos até os mais sublimes.
E compõe uma oração própria de uma pessoa que
não foi maculada pela Revolução.
Encontramos diversas estampas pitorescas,
várias delas muito respeitáveis,
decorosas, apropriadas
e dignas, representando a santa casa onde
residiu a Sagrada Família.
Simplicidade sublime
Gustavo Kralj
Em geral essas ilustrações se empenham
em representar a casa de
Nazaré com uma pureza diáfana,
uma luz que não era apenas
a de um dia lindamente luminoso,
mas uma luminosidade persistentemente
matinal, ao lado
de uma grande simplicidade e
uma limpeza absoluta.
O que dizer da limpeza dessa
casa?
É difícil imaginar, porque talvez
nem sequer os Anjos tinham
o privilégio de limpá-la. Era Nossa
Senhora, a Rainha dos Anjos,
São José, o castíssimo esposo
d’Ela, e às vezes, quando estavam
cansados, o próprio Menino que,
diante de todos os coros angélicos
extasiados, limpava a casa para que
seus pais descansassem.
Sagrada Família - Igreja de
São Roque, Sevilha, Espanha
18
Num canto, um jarro simples do qual se levanta uma
açucena, muito ereta, como a virgindade, como a pureza,
perpendicular, da qual brota o cálice de uma flor
maravilhosa; é a única coisa que fala de arte, de gosto; o
resto é muito simples.
Mas olhando para qualquer madeira tosca, para o
ponto em que um pé de cadeira encosta no chão, o ponto
em que uma prateleira suporta três ou quatro pequenos
objetos indispensáveis para viver, fica-se extasiado,
sem saber o que dizer diante dessas sublimes bagatelas,
tão comuns na vida de qualquer um, mas que por estarem
postas naquela luz tomam um caráter maravilhoso!
E para muito adequadamente realçar a humildade de
personagens tão puros, apresentam dentro deste décor a
Sagrada Família: São José que, sentado, está torneando
algum móvel; Nossa Senhora fazendo uma costurinha; o
Menino em pé, tão pequeno ainda que se apoia, não na
mesa, mas em uma cadeira vazia, sobre a qual brinca com
dois ou três objetos, como se aquilo fosse uma mesa.
Atentos aos gestos, à voz, ao
olhar do Menino Jesus
Um silêncio no qual ninguém diz nada, mas todos se
entendem superlativamente. Ao mesmo tempo, juntando
a vidinha de todos os dias de uma pobre família operária
e o encanto de considerações metafísicas, sobrenaturais,
de Nossa Senhora e de São José que viviam inundados
pela presença do Menino, com tudo quanto essa
presença significava e era.
O Menino, nascido da Virgem-Mãe, da raça de Davi
e, portanto, da mesma estirpe de São José — que possuía
sobre Ele um autêntico direito de pai, por ser a criança o
fruto das entranhas de sua esposa —, mas que era o Filho
gerado pelo Espírito Santo no seio virginal de Maria.
O que dizer disso? Não há palavras que bastem!
A Santíssima Trindade, por assim dizer, “Se movia” ao
menor movimento do Menino, brincando com algumas
pedrinhas ou mexendo com uma coisa qualquer, enquanto
sua infância ia se desenvolvendo segundo a ordenação
posta por Deus na natureza humana, mesmo sendo esta
tão elevada e tão distante do pecado original, como era a
do Menino-Deus, Filho de Maria Virgem, concebida sem
pecado original desde o primeiro instante de seu ser.
Poderíamos, assim, imaginar as cenas mais comuns na vida
de uma criança, como procurar algum objeto, hesitando
sobre se estaria aqui ou lá, e não encontrando onde procurou,
para depois buscar no lugar certo porque Nossa Senhora
ou São José tinha mudado de lugar o objeto, ou o vento soprou
e tocou para longe o paninho que Ele tinha separado…
Que repercussão episódios tão simples teriam nas relações
das três Pessoas da Santíssima Trindade?
Sagrada Família durante uma ceia
Museu de Lima, Peru
Por outro lado, São José e Maria Santíssima também
cuidando dos afazeres domésticos, mas, tanto
quanto possível, procurando não perder um gesto, um
movimento, atentos à mínima emissão de voz d’Ele
como a uma música inefável. O menor olhar d’Ele era
um tesouro sem conta, o menor movimento tinha uma
majestade e uma graça inexprimíveis! E eles sabiam
que era o Homem-Deus que estava ali, hesitava, Se
movia, falava... Podemos imaginar o enlevo sem fim
que os inundava!
Como seria o convívio diário
na Sagrada Família?
Deveria acontecer também que, pelas contingências
da vida concreta, pela necessidade de prestar atenção
nos afazeres, às vezes eles desviavam a atenção do Menino.
De repente, tinham uma surpresa com alguma atitude
e comentavam-na entre si, cochichando baixinho.
Em outras ocasiões, um dos dois esposos tinha estado fora
e, quando voltava, recebia encantado o “jornal falado”.
Gustavo Kralj
19
Dr. Plinio comenta...
Outras vezes era o próprio Menino Jesus que tinha saído
para brincar com outra criança no jardim, enquanto
São José e Nossa Senhora ficavam dentro de casa, confabulando:
“O que estará fazendo Ele?”, sabendo não se
tratar apenas da satisfação de um desejo infantil de ter
um companheiro, mas considerando como tudo quanto
Ele fazia tinha um significado muito profundo.
Como seria o relacionamento entre os três, na casa de
Nazaré? Teriam entre Si um contato, uma interlocução tal
que a todo o momento fizessem referência à natureza divina
de Jesus? E o Menino, à virgindade fecunda de sua Mãe
e à virgindade milagrosa, florindo num casamento casto, de
São José? Ou esses eram temas que eles sabiam, veneravam,
mas sobre os quais falavam pouco, deixando-os implícitos
e conversando sobre eles apenas nas grandes ocasiões,
quando baixavam do Céu luzes extraordinárias e, contemplando
o Menino, o santo casal tinha êxtases místicos?
Com exceção desses momentos, talvez o resto do tempo
transcorresse em uma vida comum, com os assuntos
cotidianos:
— José, meu esposo, fostes vós que abristes aquela
porta? Quereis porventura sair levando um banco que
acabastes de fazer, ou quereis ainda ficar aqui?
— Senhora, eu ainda preciso ficar aqui, exceto se vossa
vontade for outra...
Algum tempo depois, diria São José:
— Senhora, Vós vos distraístes — ele bem sabia que
Ela tinha estado conversando com os Anjos! — e o almoço
já vai longe no nosso pequeno
fogareiro; vede um pouco como
está…
Enfim, poder-se-ia imaginar
tudo.
Refulgindo como
no Tabor
Ismael Fuentealba
Trabalhos na Casa de Nazaré - Igreja
da Santa Cruz, Palência, Espanha
Eu seria propenso a achar
que, na maravilha desse convívio
interno, as coisas mais diferentes
se davam simultaneamente.
Entretanto, tudo se juntava
em uma fórmula maravilhosa
que não sabemos qual é,
mas podemos intuir.
Seria uma fórmula que comportaria
momentos de uma seriedade
extraordinária, de uma
gravidade maravilhosa, em que
a Santíssima Trindade se manifestasse
ao santo casal? Ou que
o Menino — que quando adulto
reluziu no Tabor entre Moisés e Elias, de um modo tão
esplendoroso — de repente aparecesse a eles com um
brilho cada vez mais intenso, num momento inopinado
em que Ele viesse pedir licença para brincar um pouco
no jardim. E ambos passassem um tempo sem conseguirem
responder ao Menino que, entretanto, esperava reluzente
a resposta; e eles completamente transportados
para outra esfera, pois estavam diante de Deus!
Poderia ser que, depois de terem visto esse esplendor,
não comentassem. E Maria dissesse a José:
— Está ficando tarde, não é? Vou recolher a roupa
que está lá fora.
E ele diria:
— Senhora, preciso acabar este objeto que me encomendaram
para hoje à tarde.
Enquanto Ela ia pegar a roupa e ele trabalhava no objeto,
este tomava rapidamente a forma que ele queria.
Nossa Senhora, entrava, via o objeto pronto e dizia:
— Senhor, já está pronto o objeto? — suspeitando ter
sido concluído pelos Anjos.
E ele, discreto, responderia:
— Senhora, às vezes as coisas correm depressa...
Há um matiz nesse convívio da Sagrada Família que
eu não vejo reproduzido na iconografia, e compreendo,
porque não é fácil reproduzir. Isso tudo estava impregnado
de uma respeitabilidade, de uma majestade, de
uma seriedade augusta, de uma determinação forte, para
dizer tudo em uma palavra só, de uma seriedade e de
uma dor desconcertantes.
Prefiguras da Agonia no
Horto, do levar a Cruz
ou da coroação como Rei
Em certos momentos, o santo
casal deveria ver que o Menino
brincava e Lhes aparecia, de repente,
chagado dos pés à cabeça,
esmagado de dor, e brincando
com dois pauzinhos que Ele
carregava às costas. E era o precônio
da Cruz.
Eles ficavam com o coração
partido, e viam o Menino andar
de um lado para outro, determinadamente,
fazendo um gesto
ao Padre Eterno. E era um primeiro,
um segundo, um quinto
lance prefigurativos da Agonia
no Horto. Que dor, que nobreza,
que grandeza, que majestade!
20
Francisco Lecaros
A Sagrada Família em seus afazeres
Castelo de Javier, Navarra, Espanha
Outros dias Ele aparecia como Rei, em comparação
com o qual os Césares não eram senão moleques.
Poderíamos, assim, imaginar formas de venerabilidade
as mais augustas.
Acredito que os que quisessem habitar na dor seriam
pouco numerosos. Mais raros ainda seriam os que não se
cansassem da majestade.
Escudo e espada para defender
o Menino-Deus
Contudo, quem, considerando a grandeza dessas cenas,
não tivesse nenhuma nódoa de Revolução na alma,
diante dessa majestade se ajoelharia e diria:
“Ó Majestade divina, dentro desse mar imundo de
vulgaridade que é hoje a Terra dominada pela Revolução,
quanto Vos procurei sem saber que era a Vós que
eu procurava! Quanto Vos desejei, quanto me comprouve
em pegar os menores fiapos de majestade que encontrei
pelo meu caminho e me deter diante deles conscientemente,
pensando em Vós que eu não conhecia!
“Mas afinal, ó Majestade, eu Vos encontro! Majestade,
eu Vos compreendo! Vós tendes todo o império dos
Anjos, sois tudo quanto há de grande!
“Quando apareceis a mim, ó Majestade, penso no estrondo
das cataratas mais caudalosas que, entretanto, são
minúsculas torneiras abertas diante de Vós. O oceano parece
um dedal de água em vossa presença, e todas as grandezas
da Terra não são nada em comparação convosco.
“Ó Majestade, quanto eu Vos procurei, ó pátria de minha
alma! Afinal Vos encontro!
“Quando eu fitava a Igreja e renovava enlevado o meu
ato de Fé, não sabia que um dos nomes dela era “Majestade”.
Agora compreendo. A Santa Igreja Católica,
Apostólica, Romana, receptáculo da Majestade, vaso
de honorificência!
“Se eu visse Maria, que majestade! Se eu visse José,
o modesto carpinteiro, que majestade! Se eu visse
o Menino, minha alma procuraria rimas para celebrar-vos,
ó Majestade!
“Meus braços ansiariam por um escudo e por uma
espada para Vos defender! Meu corpo inteiro se retesaria
diante da possibilidade de Vos proclamar diante
dos homens, ó Majestade!
“E precisamente porque Vos compreendo, ó Majestade,
compreendo também que na vossa imensidade
cabem todas as outras coisas: não há amor paterno
nem materno, nem carinho fraterno, nem amizade,
nem socorro, nem proteção, nem nada do que o
coração humano possa produzir de mais suave e de
mais terno, que não more em Vós, ó Majestade! Vós
sois todas as grandezas, todas as magnificências, até
mesmo das coisas pequenas.
“Vós sois o meu repouso quando estou cansado; a
tranquilidade e a harmonia do meu sono; a alegria do
meu despertar.”
Morar no santuário da majestade
Quem compreende que no santuário incomensurável
da majestade há um altar, bem no centro, colocado para
o sofrimento? Portanto, também para esta forma de dor
de espírito, que é a ascese, por onde o homem abandona o
que é frívolo, superficial, fútil, e se volta para o que é profundo,
sério, para o esforço da mente na procura da verdade,
para o esforço do corpo inteiro na procura do bem e
do belo; holocausto mil vezes feito de todos os modos pela
alma à procura da verdade, do bem, e da beleza.
Sem essa dor, para nós, concebidos no pecado original,
não teria sentido o santuário infinito da majestade.
Essa é a verdade.
Há a dor, há a cruz. A Cruz sacrossanta de Nosso Senhor
Jesus Cristo.
Quem ama a dor? Quem ama a cruz? É tal a ligação
entre a cruz e a majestade que, a partir de certo momento
da História cristã, nenhuma coroa houve que não fosse
encimada pela cruz. O píncaro da majestade, a cruz
pequena sobre a coroa, como se a cruz estivesse numa altura
tal que mesmo sobre a coroa ela fosse difícil de ver.
Tal é a majestade da cruz!
Quem amará esses pensamentos? Quem se habituará
a conviver com eles? Quem quererá morar no santuário
da majestade, ajoelhado aos pés da cruz? v
(Extraído de conferência de 20/11/1982)
21
A sociedade analisada por Dr. Plinio
Desejo do sublime
Kris de Curtis (CC 3.0)
Maddaloni, Itália
Continuando suas clarividentes explicitações sobre a sociedade
orgânica, Dr. Plinio mostra que os habitantes de uma cidade, animados
pelo espírito católico, devem sempre procurar as coisas mais elevadas,
o maravilhoso, o sublime. Do contrário, a cidade vai decaindo
e acaba chegando à estagnação.
T
odo regionalismo vive em torno de uma tradição
que se aprofunda. Ao invés de o progresso se
dar no sentido de adquirir elementos novos, realiza-se
na aquisição de aprofundamentos novos, e então
ocorre uma espécie de enclausuramento nos tradicionalismos
ou nos regionalismos, por onde os regionalistas
são tradicionais e os tradicionalistas são regionais. Isso
provém da íntima ligação do espírito tradicional com
as profundidades inesgotáveis, que jazem numa determinada
região.
Um palácio de antigos reis
transformado em Palácio de Justiça
Então, destruir uma região é desviar a atenção de suas
profundidades para novidades que ficam borboleteando
no noticiário. E, pelo contrário, vivificar uma região é
fazê-la viver das novas conquistas que o aprofundamento
proporciona. Esse dado me parece indispensável para
formarmos uma noção exata de um verdadeiro regionalismo.
É importante notar o seguinte: por vezes, o tradicionalismo
chega a um ponto de estancamento em que, por
falta de novos aprofundamentos, ele não anda mais, fica
estagnado, sem fecundidade, pitoresco, mas embolorado
e malcheiroso como pode suceder com certos arquivos.
Entretanto, isso nunca acontece ao verdadeiro tradicionalismo.
O que ocorre quando um tradicionalismo estagna?
Senti muito esse problema vendo uma fotografia de
um pequeno palácio com as proporções de uma casa
de família muito confortável, provido de certa seriedade,
certo donaire. A legenda da foto indicava tratar-se do
palácio dos antigos reis de um daqueles pequenos reinos
— menores do que Aragão, Castela, etc., que a Espanha
teve em certo momento —, hoje transformado em Palácio
da Justiça. E refleti sobre o caso.
Por um lado, para o prédio não ficar abandonado ou
tornar-se um museu, é melhor que ali figure o Palácio da
Justiça. Mas constitui certa decadência uma construção,
outrora habitação de reis, ser transformada em Palácio da
Justiça, com o cotidiano próprio a uma repartição como
essa. Por exemplo, as partes que entram para se querelar
sobre as causazinhas locais: um pato que fugiu do quintal
de um e entrou para o do outro; então, a quem pertence o
pato? Os dez ou quinze metros de profundidade existen-
22
tes no quintal são propriedade de quem? E o galinheiro
que ali está, a quem pertence, então? Assuntos como esses
são discutidos nas salas onde viveu uma pequena corte,
e reinaram os pequenos reis daquele lugar.
Causa certa tristeza imaginar os primeiros dias da época
em que essa cidadezinha não foi mais habitada pelos
seus antigos reis, porque ela deixou de ser a capital do reino.
Então, houve a alegria dos medíocres, pois, tendo ido
embora o rei, a vida se tornou mais acomodada e banal.
Depois, aquela vida banal se perpetuou e a tradição
transformou-se em paralisia.
A estagnação abriu as portas
ao progresso descontrolado
Em seguida, entra o progresso… Por exemplo, em
frente daqueles antigos palácios, transformados em repartições
públicas, instalam-se um ponto de ônibus, uma
bomba de gasolina e um bar com anúncio iluminado a
gás neon.
O palácio dos reis continua e nele todo mundo vai discutir
os frangos, os patos e os fundos de quintal. Entretanto,
alguma coisa correu errada ali…
O fenômeno da estagnação é o mesmo em diversas
manifestações da vida. Mas o que vem a ser a estagnação?
Do que ela decorre? A que males ela conduz? Até
que ponto ela é o grande argumento dos inimigos da tradição?
Parece-me ser esse um ponto muito importante dentro
do assunto da sociedade orgânica, pois, mais ou menos
por toda parte, o progresso descontrolado entrou
porque a estagnação lhe abriu as portas.
Quando se estuda o século XIX — por excelência o
período em que os progressos entraram: eletricidade,
bonde, ônibus, trem, enfim todas as novidades foram
muito mais do século XIX do que do XX —, nota-se uma
estagnação em diversas áreas, e os povos se voltam deslumbrados
para essas novidades, pois a estagnação lhes
tinha fechado todos os horizontes.
Então, os partidários da tradição começam a escrever
revistinhas, lembrando como tal coisa era pitoresca, tal
outra era bonita. Ou fazendo uma polêmica: como se deve
escrever tal palavra típica da região: com K ou com C?
Nascem, então, os pequenos eruditos locais que são verdadeiros
vermes devoradores de papel: “O Rei tal escreveu,
em sua carta de tanto, tal coisa assim; mas tal Juiz,
que era um luminar e redigiu um livro de Direito, traduzido
na Universidade de Compostela, refutou de tal jeito...”
E faz-se uma erudiçãozinha local, que ainda agrava
o peso da estagnação. Uma espécie de necrologia.
Em geral, quando vem ao espírito esse problema da
estagnação, ele se associa à ideia de um lugar pequeno
no qual tudo ficou imóvel. Não obstante, essa situação
pode exercer um poder de atração extraordinário.
Prêmio Nobel para um indivíduo
de uma cidadezinha
Li certa vez, em uma revista francesa, o caso de uma
família que vivia numa cidade bem pequena da França.
Todas as noites, terminado o jantar, o pai, a mãe e o filho
iam a uma confeitaria, em frente à casa deles. Embora o
filho já fosse homem feito e os pais bem idosos, ainda saíam
juntos, como no tempo em que ele era menino. O filho
era um solteirão que passava o dia estudando, não fazia
outra coisa.
Nessa confeitaria tomavam sempre as mesmas bebidas,
puxavam um jogo de dominós, que ficava junto à
mesa desde tempos imemoriais.
Certo dia estoura a notícia que deixou todo mundo da
cidadezinha pasmo e entusiasmado.
Esse homem, que jogava dominó com os pais, passara a
vida inteira estudando, sem que ninguém lhe perguntasse
qual o tema dos estudos. De repente, ele recebe uma carta
da comissão Nobel comunicando-lhe que, devido a um
trabalho fantástico por ele realizado, receberia o Prêmio
Nobel. Nessa ocasião, ele seria convidado pelo Rei para
um jantar de gala no palácio, junto com sua família.
Aquilo produziu um movimento extraordinário na cidadezinha.
O homem viajou para a Suécia e, no mesmo
dia em que voltou para o lugarejo onde morava, foi com
seus pais jogar dominó na confeitaria.
É um sintoma característico de estagnação com aquilo
que ela tem de simpático, pois são costumes preservados,
nos quais se nota certa candura aprazível. Isso também
revela uma seriedade de afeto entre ele e seus pais,
uma serenidade de vida, um desapego de uma porção de
coisas que o mundanismo oferece.
Mas, de outro lado, é de assustar! Toda noite, durante
uma vida inteira, jogar dominó com o pai e a mãe, sem
ninguém de fora na roda!
Não se pode afirmar que, neste caso, a estagnação
conservou alguma fecundidade que permitiu ao homem
aquela invenção. O Prêmio Nobel foi proporcionado pela
cidade, na medida em que esta evitava uma série de
obstáculos que a vida moderna põe para a produção; mas
a descoberta não foi, nem um pouco, inspirada pela vida
local, nem trazia benefícios para esta. A cidade continuava
inteiramente estagnada.
A vida popular na Idade Média
Devem existir centenas de coisas dessas, mais ou menos
em todos os países da Europa.
23
A sociedade analisada por Dr. Plinio
Contudo, sempre levados pela ideia de a estagnação
ser um fenômeno de pequenos lugares, nosso espírito se
volta para a Ásia, África, Austrália para ver se encontra
alguma coisa parecida com essa estagnação.
É evidente que nesses continentes há um mundo de
aldeias. Porém, não se ouve falar de um lugar pequeno
que seja célebre pelo seu pitoresco, e a respeito do qual
se poderia fazer um conjunto como, por exemplo, a “Exposição
do pueblo español”, em Barcelona.
Por quê? Pela simples razão de que não se constituíram
aldeias nas quais houvesse um regionalismo no sentido
do existente na Europa, ou seja, um local com suas
características próprias, vivas, e que em determinado
momento progrediu e formou um ambiente de vida distinto
dos outros: quase se diria uma civilizaçãozinha.
Então, chegamos à conclusão de que a Europa, em determinado
momento, teve um enorme florescimento de
pequenas unidades que vicejaram extraordinariamente,
e isso não se encontra em nenhuma outra zona do mundo,
sendo um fenômeno de vitalidade europeia, medieval,
e com a característica curiosa de ser, não exclusiva,
mas preponderantemente popular.
Portanto, mais do que todas as declamações do enciclopedismo,
do iluminismo sobre os direitos dos pobres,
o que comunicou à vida popular uma chama, por onde
cada local poderia ser uma lamparina acesa, foi a Idade
Média. Não se poderia fazer coisa mais importante para
o povo do que dar-lhe elementos pelos quais ele fosse
capaz de gerar isso. Em vez de viver obscuramente e sem
originalidade à sombra dos ricos, fazer ele mesmo, seu
mundinho e sua civilização.
Em Roma e na Grécia, o povo era considerado uma
ralé
Uma vez mais os incito a pensarem nesse assunto. Isso
não existiu nem sequer entre os romanos ou gregos.
Quem ouviu falar de uma aldeia clássica, grega, do mundo
helênico, ou do mundo romano? Na cultura clássica,
alguém se ocupou de aldeias, da arte popular? O povo
era uma ralé anônima, no pior sentido da palavra, porque
não tinha personalidade. Roma era Roma por causa
de uma elite de patrícios, no começo, e de aventureiros
depois, no tempo do Império, com certas características.
Mas o povo não tinha nada.
Trata-se de saber qual a origem desse fenômeno na
Idade Média e, tendo-a localizado, procurar estudar a
estagnação.
A única força atuante, no mundo no período originário
da Idade Média, era a Igreja, porque todas as outras
forças do antigo Império Romano ruíram, dando lugar
à barbárie, em luta contra a Igreja Católica. A barbárie,
de si mesma, não tinha a intenção de combater a Igreja,
mas era completamente plasmada e formada de um modo
oposto ao da Igreja. E, portanto, formavam-se entrechoques,
a Igreja era obrigada a dizer para tal guerreiro,
tal rei ou rainha bárbara quais eram os deveres de cada
um e, por vezes, eles não gostavam de cumprir.
Como surgiu o feudalismo
Tomemos a origem do feudalismo, como é narrada pela
maioria dos historiadores. Em propriedades agrícolas
os habitantes, atacados por hordas de invasores, recorrem
ao proprietário da região, que é o chefe natural, para
se defenderem. Esse proprietário se dispõe a acolhê-
-los nas suas próprias terras e se defender junto com eles.
Então eles mesmos pensam em construir uma muralha, e
com o tempo sofisticam as suas formas para resistir melhor
à agressão. Depois, edificam no recinto da muralha
a torre de ménage, para poder ver mais longe o inimigo,
e, posteriormente, residências de refúgio para a população
quando o agressor ataca.
Torna-se um sistema pelo qual o proprietário se transforma
em autoridade. Todos dependem dele, e um direito público
se constitui. O mesmo se passa em inúmeras propriedades,
sob a pressão das mesmas circunstâncias. Surgem os
castelos, nasce o feudalismo. Tudo parece tão lógico!
Mas eu pergunto se os proprietários de hoje, querendo
se opor a eventuais invasões, fariam uma resistência
da qual surgiria o feudalismo. Creio que não, por faltar
aquele espírito católico que caracterizava os medievais.
Estes eram tão católicos que punham sempre uma capela
na praça central do castelo, rezavam quando o inimigo
chegava, enquanto este os sitiava, e davam graças quando
o expulsava. Com isso o espírito religioso ia crescendo,
a virtude aumentando também, resultando daí uma
expansão religiosa.
Procurar sempre o mais elevado
Resta, então, uma pergunta: como do espírito católico
pode dimanar o regionalismo e o feudalismo?
Por meio de sua doutrina, evidentemente baseada na
Revelação; a Igreja põe diante de nossos olhos ideais
imensos, uma noção do Céu que nos dá o desejo de uma
perfeição e de um tipo de vida verdadeiramente maravilhosos,
extraordinários. E que faz a alma ter o anseio do
admirável, do magnífico e até do sobrenatural.
Ora, o normal é que esse desejo da sublimidade e do
maravilhoso repercuta na vida terrena, levando as pessoas
a espelhá-lo no seu cotidiano, não se conformando
com a banalidade e a vulgaridade.
Disso não decorre o desejo de cada um fazer um palácio,
mas sim de ornar com verdadeira arte, beleza e bom
gosto o pequeno mundo em que está.
24
De onde decorre algo que o mundo pré-medieval não
conheceu: a necessidade de ir sempre mais alto na ordem
espiritual e, consequentemente, também na temporal.
Um desejo de altura mais ou menos incomensurável,
que fazia darem-se, por exemplo, coisas como esta:
camponeses suíços, para ocupar suas noites de inverno,
passavam longas horas conversando e, ao mesmo tempo,
trabalhando a título de distração. Produziam, assim, esculturas
de madeira para ornar a própria matriz. Por isso
encontra-se, em certas igrejas da Suíça, uma magnífica
exuberância de ornamentação oriunda do trabalho
popular, artesanal.
Há nisso uma espécie de desejo de subir, de melhorar,
sem sair necessariamente de sua classe, mas ornando
e aprimorando as suas próprias condições de existência,
que é muito expressiva de uma vida local, original,
profundamente modelada de acordo com as circunstâncias,
e que forma propriamente o que se chama “povo”
numa sociedade orgânica, que a meu ver é muito diferente
do que se denomina “povo”, por exemplo, em qualquer
grande cidade moderna. O povo assim movido por
esse desejo da perfeição, do maravilhoso, do sublime, era
a expressão mais direta da vida espiritual fervorosa.
Febricitação das grandes cidades
Nota-se nisso uma forma de vitalidade religiosa, um
desejo, ainda que subconsciente, do Céu Empíreo, o qual
tem como consequência que a alma não se contenta em
jogar dominó toda noite, não se satisfaz com a estagnação,
mas quer subir, tende, de um jeito ou de outro, para
a santidade e vive na grande admiração dos Santos.
À medida que as gerações foram passando, o culto aos
Santos continuou, mas a admiração por eles foi, paradoxalmente,
diminuindo. O Santo deixou de ser um personagem
da família, para se tornar uma pessoa na qual se
pensa quando se vai à igreja, e com a qual temos relações
quando precisamos de favores. Já não é mais o que era o
Santo antigamente, diante de cuja imagem a família rezava
unida em casa, e cujo nome era dado a vários filhos,
e sua vida era conhecida por todos os membros da família,
servindo de ponto de referência. O Santo era um personagem
da família.
Compreende-se, assim, o processo de estagnação.
Acaba a Idade Média, o impulso de ascensão diminui e
termina dando lugar a um esforço penoso, para evitar a
decadência. Torna-se um sacrifício meditar em Deus, nos
seus Anjos, nos seus Santos. O Céu não é mais um atrativo.
Com isso, o progresso verdadeiro fica cortado no seu
único nervo vital.
Notamos essa estagnação nas aldeiazinhas, porém não
nas grandes cidades, porque estas foram invadidas pelo
progresso promotor de uma vitalidade falsa, em que a estagnação
foi substituída pela febricitação, pelas neuroses,
pelas psicoses. Por isso, a estagnação, vista de dentro
da cidade moderna, fica até simpática.
Entretanto, a cidadezinha do interior, que vai se modernizando,
acaba tornando-se uma gota sem graça da
grande cidade, ou uma pequena aldeia estagnada, sem
vida, mantendo ainda algumas virtudes do passado,
mas também estas sem vitalidade. Em certo momento,
uma parte das gerações novas rompe com aquilo. E não
adianta o bom vigário pregar contra isso, porque não há
o que segure esse resultado da estagnação que devora
o lugar, abrindo as portas a um progresso sem tradição,
sem passado.
A piedade não é um meio, mas um fim
Temos, então, dois pontos extremos e opostos: de um
lado, esse progresso que rompe com a tradição; de outro,
o aprofundamento tranquilo das próprias originalidades
e regionalidades, movido pelo desejo do sublime.
Creio que aqui tocamos o fundo da vida da sociedade
orgânica.
A meu ver, as pessoas que constituíram uma sociedade
orgânica não quiseram explicitamente fazer isso. É algo
muito mais profundo, como em geral é o fervor religioso,
que vem de um efervescer interior de amor, de
dedicação, que não passa pelos alambiques de um raciocínio,
mas explode diretamente como uma garrafa de
champanhe.
Como esse fervor morreu, somos obrigados a acentuar
muito o lado racional, mas em condições normais,
em que toda a sociedade é movida pelo mesmo impulso
rumo à perfeição, essas coisas nascem subconscientemente.
O amor de Deus, a união com Ele, com seus Anjos,
seus Santos na vida espiritual, a piedade podem, pela
graça divina obtida por meio de Nossa Senhora, se tornar
tão extraordinários que deem na era descrita por
São Luís Grignion de Montfort, o Reino de Maria, e cuja
grande característica é um impulso para o sublime essencialmente
sobrenatural.
Um indivíduo que quisesse ser piedoso para ter uma
sociedade orgânica, não seria piedoso e não faria a sociedade
orgânica. A piedade não é um meio, mas um fim.
Se ela deixa de ser o fim da sociedade orgânica, esta morre.
É preciso nascer do desinteressado amor a Deus, a
seus Anjos e Santos, à sua Igreja, portanto, à Fé e à Moral
da Igreja. A partir disso, o resto floresce. v
(Extraído de conferência
de 20/8/1991)
25
C
alendário
1. Beata Maria Clara do Menino
Jesus, virgem (†1899). Desejosa
de evangelizar, fundou a Congregação
das Irmãs Hospitaleiras da Imaculada
Conceição, em Lisboa, Portugal.
2. São Silvério, Papa e mártir
(†537). Por não querer restabelecer
o bispo herético Antimo na sede
de Constantinopla, foi enviado
pela Imperatriz Teodora para a ilha
de Palmarola, Itália, onde veio a falecer.
3. São Francisco Xavier, presbítero
(†1552). Ver página 2.
4. São João Damasceno, presbítero
e Doutor da Igreja (†c. 749).
São Bernardo de Parma, bispo
(†1133). Como monge, procurou a
perfeição de vida; como Cardeal, o
bem da Igreja; e como Bispo, a salvação
das almas de sua diocese de
Parma, Itália.
dos Santos – ––––––
5. Beato Nicolau Stensen, bispo
(†1683). Polímata, médico e anatomista
dinamarquês de origem luterana, converteu-se ao
catolicismo. Morreu em Schwein, Alemanha, sendo Vigário
Apostólico para o norte da Europa.
6. São Nicolau, bispo (†séc. IV).
São José Nguyen Duy Khang, mártir (†1861). Catequista
capturado na perseguição do imperador Tu Duc. Foi flagelado,
encarcerado e degolado em Hai Duong, Vietnã.
7. II Domingo do Advento.
Santo Ambrósio, bispo e Doutor da Igreja (†397).
Santa Maria Josefa Rosello, virgem (†1880). Fundadora
do Instituto das Filhas de Nossa Senhora da Misericórdia,
em Savona, Itália.
8. Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem
Maria.
São Teobaldo de Marliaco, abade (†1247). Abade do
Mosteiro Cisterciense de Vaux-de-Cernay, França, alcançou
a fama de santidade ainda em vida.
Santiebeati.it
São Domingos de Silos
9. São João Diego Cuauhtlatoatzin
(†1548).
São Pedro Fourier, presbítero
(†1640). Escolheu para exercer seu
ministério a paupérrima paróquia
de Mattaincourt, França, e fundou
o Instituto das Cônegas Regulares
de Nossa Senhora.
10. Beato Marco Antônio Durando,
presbítero (†1880). Religioso
da Congregação das Missões e
fundador da Congregação das Irmãs
de Jesus Nazareno, em Turim,
Itália.
11. São Dâmaso I, Papa (†384).
São Daniel Estilita, presbítero
(†493). Após viver em um mosteiro,
seguiu o exemplo de São Simeão e
permaneceu durante 33 anos no alto
de uma coluna até sua morte, em
Constantinopla, Turquia.
12. Nossa Senhora de Guadalupe,
padroeira da América Latina.
Beato Bartolo Buonpedoni, presbítero
(†1300). Atingido pelo mal
de Hansen aos 60 anos, retirou-se a
um leprosário em Cellole, Itália, onde deu assistência aos
doentes ali encerrados.
13. Santa Luzia, virgem e mártir (†c. 304/305).
Beata Maria Madalena da Paixão, virgem (†1921). Fundadora
da Congregação das Irmãs Compassionistas Servas
de Maria, em Castellamare di Stabia, Itália.
14. III Domingo do Advento.
São João da Cruz, presbítero e Doutor da Igreja
(†1591).
15. Santa Virgínia Centurione Bracelli, viúva (†1651).
Dedicando-se ao serviço de Deus, socorreu os pobres, ajudou
as igrejas rurais e fundou e dirigiu a Obra das Irmãs de
Nossa Senhora do Refúgio do Monte Calvário, em Gênova,
Itália.
16. Santo Everardo, confessor (†867). Duque de Friuli
e importante figura do Sacro Império, fundou o mosteiro
26
–––––––––––––– * Dezembro * ––––
de Cônegos Regulares de São Calixto em Cysoing, França,
onde foi sepultado após sua morte.
17. Beata Matilde do Sagrado Coração de Jesus, virgem
(†1902). Vendo a imagem de Cristo no próximo, fundou a
Congregação das Filhas de Maria, Mãe da Igreja em Don
Benito, Espanha.
18. São Graciano de Tours, bispo (†séc. III). Primeiro
Bispo de Tours, França, que segundo a tradição, foi
enviado de Roma a esta cidade, onde se encontra sepultado.
19. Beatas Maria Eva da Providência e Maria Marta
de Jesus, virgens e mártires (†1942). Religiosas da
Congregação das Irmãs da Imaculada Conceição, que
durante a guerra na Polônia, foram fuziladas em Slonim.
20. São Domingos de Silos, abade (†1073). Após ter sido
eremita, restaurou o mosteiro de Silos, Espanha, que
se encontrava quase em ruínas,
restabelecendo nele a observância
e prática do louvor divino.
21. IV Domingo do Advento.
São Pedro Canísio, presbítero
e Doutor da Igreja (†1597).
benfeitora de São Wilibrordo. Fundou e dirigiu o mosteiro
de Öhren, Alemanha.
25. Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Beato Miguel Nakashima, religioso e mártir (†1628).
Catequista jesuíta, que por sua fé em Cristo, foi mergulhado
em água fervente, em Unzen, Japão.
26. Santo Estêvão, diácono e protomártir.
São Dionísio, Papa (†268). Depois da perseguição do
imperador Valeriano, consolou com suas cartas e sua presença
os irmãos aflitos, resgatou os cativos dos suplícios e
ensinou aos ignorantes os fundamentos da Fé.
27. São João, Apóstolo e Evangelista.
Beato Francisco Spoto, presbítero (†1964). Sacerdote
da Congregação dos Missionários Servos dos Pobres, assassinado
por guerrilheiros Simba quando era missionário
em Biringi, Congo.
28. Domingo. Festa da Sagrada Família, Jesus, Maria
e José.
Santos Inocentes, mártires.
Beato Gregório Khomysyn,
bispo e mártir (†1945). Bispo de
Ivano-Frankivsk, que no tempo
de perseguição foi martirizado
em Kiev, Ucrânia.
22. Santo Isquirião, mártir
(†c. 250). Apesar dos opróbrios
e injúrias, recusou sacrificar aos
ídolos e morreu no Egito, atravessado
por uma estaca pontiaguda.
23. São João Câncio, presbítero
(†1473).
Santo Ivo, bispo (†1116).
Restabeleceu a ordem entre os
cônegos, e muito agiu e escreveu
a fim de promover a concórdia
entre o clero e os poderes civis,
para bem da Igreja, em Chartres,
França.
24. Santa Irmina, abadessa
(†c. 710). Após ficar viúva, consagrou-se
a Deus e tornou-se
São João Diego Cuauhtlatoatzin
Tetraktys (CC 3.0)
29. São Tomás Becket, bispo e
mártir (†1170).
São Gerardo Cagnoli, religioso
(†1342). Franciscano dotado
de dons taumatúrgicos, que manifestou
curando os enfermos,
em Palermo, Itália.
30. São Lourenço de Frazzanò,
monge (†c. 1162). Monge
segundo a observância dos Padres
orientais, insigne pela austeridade
de vida e incansável
pregação, em Frazzanò, na ilha
da Sicília.
31. São Silvestre, Papa
(†335).
Santa Melânia, a jovem,
monja (†439). Ver página 28.
27
Hagiografia
Santa Melânia:
Invencível
Reprodução
e heróica
Filha de uma família romana nobilíssima e fabulosamente
rica, Santa Melânia vendeu judiciosamente todos os seus bens,
fez doações às igrejas, aos pobres, resgatou cativos e construiu
mosteiros. Tornou-se religiosa e praticou as virtudes de forma
vigorosa, autêntica, genuína, coerente, levando até as últimas
consequências os princípios que adotara.
Santa Melânia nasceu em 383, filha de nobilíssima
família senatorial romana. Aos 14 anos quis
se consagrar a Deus, mas seus pais fizeram-na
casar com Valério Piniano, somente três anos mais velho
que ela.
Possuidora de grande fortuna...
Com esse casamento, reuniam-se dois ramos de uma
das maiores famílias do Império, conservando-se também
o patrimônio mais rico existente na aristocracia romana.
Depois de ter dois filhos, que morreram em tenra idade,
os dois esposos decidiram adotar vida de castidade.
Resolveu, então, Melânia, desfazer-se de seus bens
e se dedicar inteiramente à oração e ao estudo dos livros
santos.
Mas foram necessários anos para que a Santa conseguisse
doar sua fortuna, definida por um autor como “mundial”.
De fato, além de joias, pratarias e preciosidades artísticas,
Melânia possuía latifúndios na Itália, Sicília, Gália,
Espanha, África Proconsular, Numídia, Mauritânia, Mesopotâmia,
Síria, Palestina e Egito. Essa fortuna era tão grande
que um palácio em Roma ficou sem comprador, por não
se achar quem tivesse dinheiro para adquiri-lo. O próprio
senado romano levantou objeções ao que ele considerou esbanjamento.
Mas a Santa persistiu em seu intento, tendo-o
levado a cabo após anos e anos de luta.
À medida que ia vendendo seus bens, erguia mosteiros,
protegia os pobres, fazia doações às igrejas e resgatava prisioneiros.
Ao mesmo tempo, esses negócios obrigavam a Santa
a viajar muito, sendo interessante notar que ela procurava
fixar residência em lugares onde o bispo era homem de vida
santa e conhecedor das Escrituras. Assim, teve contato com
grandes santos de sua época, como Santo Agostinho.
Depois de ter conseguido completar a “obra de Marta”,
como chamava a preocupação com seus bens terrenos, dedicou-se
“à de Maria”, como sempre desejava. Retirou-se para
um mosteiro em Jerusalém. Vestiu-se com um saco de penitência,
entregando-se à oração, ao jejum e aos estudos das
Escrituras. Escreveu muito, e tão bem, que realizou notável
trabalho de copista, dado seu grande conhecimento de latim
e grego. Incentivou a reza do Ofício Divino durante a noite
e foi orientadora espiritual de muitos mosteiros femininos.
Santa Melânia, que morreu em 31 de dezembro de 439,
teve sua vida minuciosamente relatada por seu filho adotivo
e discípulo espiritual. Considerada uma das grandes figuras
de sua época, mereceu grande elogio de São Jerônimo
que a citava como exemplo para suas dirigidas. 1
28
...quis doá-la para praticar a pobreza
Essa resenha biográfica sobre Santa Melânia só pode ser
devidamente compreendida tomando-se em consideração
o modo pelo qual as riquezas estavam distribuídas, tanto no
Império Romano do Ocidente como no do Oriente.
De um modo geral, em tudo quanto se publica a respeito
dos povos pagãos, a historiografia oficial é cheia de elogios
aos romanos, aos gregos, à civilização egípcia, à Índia, à
China, ao Japão. Entretanto, não encontramos referências
elogiosas, por exemplo, à classe média indiana. Nem sobre
o bem-estar dos trabalhadores manuais entre os romanos.
A maior parte dos habitantes da cidade de Roma, e do Império
Romano, era constituída de escravos. A lei, o senso
jurídico dos romanos era fabuloso. Contudo, a maior parte
da população estava colocada à margem da lei...
No mundo pagão, vemos se acumularem riquezas fabulosas
sem qualquer proporção com a capacidade de fruir — ou
mesmo de se ornamentar — do homem. O luxo ordenado
não é censurável. Portanto, é compreensível que um potentado
tenha grandes palácios. Mas que ele possua tantos palácios
que não tenha tempo para conhecê-los nem para deles
usar, tantas terras que não disponha de tempo para geri-las,
evidentemente há uma desproporção entre ele e esses bens.
E existe, portanto, um fenômeno de má distribuição.
Entre os antigos romanos encontramos homens tidos
como possuidores de uma riqueza média, por exemplo,
Cícero, cujo inventário de bens era considerado como
de uma fortuna mediana. Entretanto,
era um nababo. Ele
mesmo reconhece, em cartas
e outros documentos, não saber
no que consistia a maior
parte de seu patrimônio.
Santa Melânia era herdeira
de uma dessas famílias fabulosamente
ricas, que tinham
patrimônio por todo o
Império Romano do Ocidente.
E ela, então, realiza uma
dessas verdadeiras belezas
de sabedoria da Igreja, que
é a seguinte: uma nobre que
quer não só reduzir a sua fortuna
a proporções humanas,
mas doá-la inteiramente para
praticar a pobreza.
Assis, que simplesmente tirou a túnica, jogou-a para
o pai dele, Pietro di Bernardone, e disse: “Agora eu
posso dizer: meu Pai que estais no Céu...”; entregou-
-se ao bispo que lhe impôs um hábito, e estava liquidada
a questão. Deserdado pelo pai, ele só tinha uma
túnica para dar, de maneira que era um ato rápido de
executar-se.
Santa Melânia, não; ela possuía um patrimônio fabuloso,
como vimos: preciosidades artísticas, palácios, riquezas
de toda ordem, terras, latifúndios etc. E não podia
dilapidar essa fortuna de um modo estúpido. Porque,
por mais que quisesse ser religiosa e, portanto, pobre, ela
era responsável perante Deus por essa fortuna. E, portanto,
deveria vendê-la e aplicá-la ordenadamente. Só
depois de tudo vendido e bem aplicado, ela, em consciência,
podia entrar para o convento.
Vemos, então, este fato que nas histórias dos povos
pagãos absolutamente não se encontra: uma grande dama,
de uma grande família, trabalhando para ser pobre.
Mas, ao mesmo tempo, esse ímpeto radical de uma pobreza
completa se conjuga com a sabedoria de uma boa
gestão dos bens desta Terra, e a noção de que essa aplicação
deve ser criteriosa.
De outro lado, vê-se a perseverança do propósito dela.
Um propósito mais débil, ao longo desses anos e anos de
despojamento, em certo momento teria se rompido: “Ah,
não! Essa pérola eu deixo para dar no fim, aquela outra
Sabedoria para gerir
os bens terrenos
E ela não está nas condições
de São Francisco de
“Embarque de Ulisses” (por Claude Lorrain) - Museu do Louvre, Paris, França
Reprodução
29
Hagiografia
Guillom (CC 3.0)
joia vai ser a última coisa que venderei; essa tal coisinha
eu guardo para mim...”
Essa Santa não agiu assim. Invencível e heroica, perseverou
durante todos os anos, vendendo, aplicando, vendendo,
aplicando. E enfrentando — a ficha deixa entrever isto
— alguma dificuldade, porque a venda dos seus bens produziu
um certo regurgitamento no mercado, a tal ponto que
um palácio dela valia tanto que não houve comprador. Pois
bem, ela acaba liquidando tudo e vai para o mosteiro.
Conversou com Santo Agostinho,
foi elogiada por São Jerônimo
São Jerônimo - Igreja da
Natividade, Belém, Palestina
Então se manifesta outro aspecto de sua alma. Depois
desse despojamento, ela é constituída em dignidade e se
torna uma excelente superiora do mosteiro; passa a dirigir
almas. E após ter dirigido a destruição de seu patrimônio,
ela constrói o patrimônio espiritual de outras almas.
Ela aconselha numerosos conventos, orienta toda
uma vasta família de almas, em vários lugares. E depois
de anos e anos da prática efetiva de uma pobreza completa,
ela entrega sua alma a Deus.
Durante esse tempo, dispersando tesouros que todos
recolhem e recolhendo tesouros que muitos dispersam.
Ela não tem sede de posição social, de dinheiro, de conforto,
mas tem sede de almas. Quer ser pobre, sacrificar-
-se pelas almas dos outros para dá-las a Nosso Senhor Jesus
Cristo, por meio de Nossa Senhora.
Ademais, procurava o convívio das pessoas virtuosas,
indo morar — antes de ser religiosa — em dioceses onde
havia homens santos com quem ela pudesse se aconselhar.
Teve, assim, a graça e o privilégio extraordinários de
conhecer Santo Agostinho e conversar com ele.
Uma virtude assim severa, vigorosa, autêntica, genuína,
coerente, igual a si mesma até os últimos desdobramentos
das últimas consequências dos princípios que
aceitou, mereceria bem o panegírico que teve. Ser louvada
por um Santo é uma grande coisa, mas por São Jerônimo
é uma coisa grandíssima! Porque São Jerônimo tinha
o gênio, o fogo da descompostura. Para arrasar alguém
com palavras candentes e merecidas, para dizer-
-lhe verdades ao pé da letra, não havia como São Jerônimo.
Até a Santo Agostinho ele escreveu uma carta dizendo
coisas duras, a tal ponto que Santo Agostinho escreveu-lhe
depois uma carta, gracejando, brincando, afirmando
que afinal não precisava tanto furor, que ele se
convenceria com menos zanga, etc. Não era uma intemperança
de São Jerônimo, era o feitio do seu espírito, a
apreciabilíssima forma de santidade dele.
Coube-lhe ter como comentador da vida dela São Jerônimo,
o homem implacável, arguto, que via os defeitos até
o fim e que a julgou como um ouro perfeito, no qual não
havia nenhuma liga e nenhuma impureza. E ela morreu
tendo esta glorificação suprema: foi a dama elogiada por
São Jerônimo! O Santo da apóstrofe vigorosa e inflexível,
o Santo da severidade completa, analisou-a e achou-a boa.
Ela estava inteiramente pronta para ser entregue a Deus.
Grandeza e verdadeira imortalidade
dos Santos
O que devemos dizer, em nossa época, a respeito da
biografia de uma Santa como esta? Sem dúvida, edifica
muito, mas pede, de outro lado, um comentário.
Não podemos julgar que ser uma grande dama, senhora
de muitos bens, é contrário à santidade, e que Santa
Melânia deixou seu estado anterior por ser incompatível
com a santidade. Isto é falso.
Uma grande dama dotada de grandes bens deve, isto
sim, fazer grandes esmolas. Ela pode manter largamente
sua posição social e a dignidade de sua categoria gozando
de todos esses bens, mas doando, na medida do necessário,
uma parte do supérfluo. Agindo assim ela pode ser
uma grande dama e santificar-se. Não devemos, portanto,
nos iludir com o alcance do gesto de Santa Melânia.
Esse gesto foi belo porque constituiu a renúncia de
uma situação terrena boa, agradável, na qual ela pode-
30
Sergio Hollmann
Imagens de Santos em um detalhe do Retábulo da Crucifixão - Museu de Dijon, França
ria se santificar. Para se santificar, ela deveria ter o desapego
necessário das coisas da Terra, mas isto ela poderia
conseguir mesmo no gozo de uma grande fortuna.
Por causa disso houve na História numerosas rainhas
santas, numerosos reis santos, pessoas que, do ponto de
vista social, eram muito mais do que Santa Melânia e dispunham
também de grande quantidade de dinheiro.
Ela, entretanto, foi chamada pela graça para outra
forma de vida, e soube obedecer a esse chamado, seguiu-
-o e santificou-se. E nisto ela andou perfeitamente bem,
porque se deve fazer a vontade de Deus. E para com ela
a vontade de Deus foi muito generosa, porque a chamou
para o estado religioso, que é mais perfeito. Ela, então,
se santificou nesse estado com edificação para todos nós
e até para a posteridade. Esta é a glória de um Santo.
Certa vez, tendo Vitor Hugo sido eleito para a Academia
Francesa de Letras, alguém comentava que ele se tinha
tornado imortal, mas não era necessária a glorificação
da Academia de Letras, porque o nome dele já era
imortal para todos os séculos. Vitor Hugo, que conhecia
Dom Bosco, disse: “Imortal é Dom Bosco, porque ele vai
ser canonizado. E muito tempo depois de que ninguém
mais leia meus romances, e só alguns eruditos conheçam
meu nome, ainda a Igreja vai ter no mundo inteiro festas
litúrgicas em louvor de Dom Bosco. Não há senão
uma verdadeira forma de imortalidade: é a dos Santos da
Igreja Católica.” Perfeitamente bem apanhado!
Há uns dez anos, li a notícia de que os livros de Vitor
Hugo, que restaram nos estoques das livrarias por falta
de leitores, eram vendidos em carrocinhas a peso, nas ruas
de Paris.
Santa Melânia viveu há quantos séculos! O que eram
as nossas respectivas pátrias no tempo em que Santa Melânia
floresceu? Nunca se tinha ouvido falar dessas terras
da América! Ela morreu, seu corpo se desfez, não resta
nem o pó, mas num lugar onde naquele tempo talvez
houvesse uma taba de índios, há gente de várias nações
glorificando o nome dela. Isto acontecerá assim indefinidamente.
Tal é a grandeza e a imortalidade dos Santos da
Igreja Católica.
v
(Extraído de conferência
de 15/2/1972)
1) Não dispomos dos dados bibliográficos desta citação.
31
Apóstolo do pulchrum
Glen Youman (CC 3.0)
NASA, ESA, J. Hester and A. Loll (Arizona State University) (CC 3.0)
Stella Clarissima
A aparente desordem dos corpos celestes constitui, na
realidade, uma ordem dirigida pela sabedoria divina.
Entretanto, Deus presta mais atenção a uma Ave-Maria que
rezamos, do que ao movimento de todos os astros.
Mathias Krumbholz (CC 3.0)
A
Ao contemplarmos um céu estrelado temos, ao
mesmo tempo, uma impressão de beleza e de
uma pontinha de desordem. As estrelas estão,
aparentemente, meio jogadas de cá e de acolá. Dir-se-
-ia que elas foram atiradas no azul profundo da noite por
uma mão distraída…
Todos os seres têm seu papel
Então impressionam pelas distâncias, pela beleza de
cada uma delas, pela grandeza do conjunto, mas não notamos
certa ordenação a qual gostaríamos que existisse.
Parece-me haver nisso um sentido mais bonito e profundo
do que nos seria proporcionado por uma ordenação
evidente. Talvez Deus queira nos dar a entender que
Ele não faria essas maravilhas em meio a uma espécie
de desordem; e que, quando conhecermos bem como se
compõem as constelações, perceberemos realidades que
ainda não vemos, as quais indicarão uma ordem magnífica
dentro disso.
Nos corpos celestes acontece de tudo: vulcões que entram
em erupção dentro de alguns deles, estrelas cadentes,
outras explodem de repente...
Havendo, então, uma catástrofe qualquer numa estrela,
nós pensamos: “Deus nem toma conhecimento, porque
não tem tempo de prestar atenção nisso. Essas estrelas
são como um farelo luminoso que, numa hora de generosidade,
Ele jogou por aí e depois nem olhou mais;
deixou isso completamente de lado, não Se preocupa.”
Essa impressão não é verdadeira, e corresponde a uma
ideia absolutamente deformada da grandeza do Criador.
Tais são a ciência e o poder divinos que, para Ele, tanto
faz tomar conhecimento do que acontece em todas as estrelas
ao mesmo tempo, como o ocorrido em uma estrela
só. Deus sabe de cada estrela como se somente esta estivesse
diante d’Ele.
32
Ademais, não há estrelas inúteis nem repetidas. Deus
não gagueja, ou seja, não faz criaturas supérfluas como
um gago pronunciaria determinadas sílabas. Na Criação,
todos os seres têm seu papel para a realização dos planos
divinos, e estaria fora da sabedoria e abaixo do poder
d’Ele criar entes inúteis.
Portanto, todos os acontecimentos — mesmo as explosões,
estrelas cadentes, etc. — têm sua razão de ser e
obedecem a um plano por Ele traçado. E aquilo que para
nós é um desastre, como o desaparecimento de uma estrela,
Deus assim o quis e calculou para fazer parte da ordem
universal instituída por Ele.
Tudo está calculado para a glória de Deus
É como um músico que, ao executar uma peça num
piano ou num órgão, interrompe uma nota que vinha
sendo tocada. Isso não é um desastre, mas está calculado
para dar continuidade à harmonia.
Também na ordem do universo tudo está calculado
para a glória de Deus. E faz parte dessa glória que contemplemos
as estrelas para melhor entendermos a Ele. E
se o Altíssimo está de tal maneira atento ao que se passa
com as estrelas, quanto mais prestará atenção em nós,
que somos uma razão para Ele as ter criado!
De maneira que tudo quanto acabo de dizer a respeito
das estrelas é particularmente verdadeiro em relação
aos homens.
Deus tem a alma de cada um de nós mais em vista
e, por assim dizer, presta mais atenção numa oração —
uma Ave-Maria ou, a fortiori, uma Comunhão — que façamos,
do que na rotação geral de todo o universo.
Por exemplo, a Santíssima Trindade está contemplando
esta reunião e a disposição das almas de todos nós.
33
Apóstolo do pulchrum
Compreendemos bem, dessa maneira, quanto Deus é
atento às orações, quanto Ele se inclina para ouvir aquilo
que temos a Lhe dizer, e como podemos, portanto, ter
a confiança de que não nos perdemos no vácuo nem no
caos.
O herói da Fé que morre no
campo de batalha
A humanidade não é um vácuo. Será talvez um caos
por culpa dos homens. Mas quanto Deus ama aqueles
que são as “estrelas” fiéis que continuam a brilhar!
E quanto a bondade d’Ele está pronta a amparar as “estrelas”
não fiéis que começam a cair, e solícito a tirar do
fundo dos abismos as que caíram para repô-las em seu
devido lugar e continuarem, assim, a executar as ordens
d’Ele!
Consideremos, por exemplo, que quando Deus criou
as estrelas, pensou em cada um dos homens que haveria
de criar. E ao fazê-las cintilar nos espaços vazios, uma
das intenções d’Ele era que elas iluminassem a morte dos
que morressem com heroísmo, por amor a Ele; e, na hora
de criar as estrelas, Deus — que conhece o presente,
o passado e o futuro perfeitamente, até nos seus últimos
pormenores — viu essas estrelas brilharem e pensou nos
heróis da Fé que haveriam de, um dia, morrer debaixo da
cintilação delas, aceitando voluntariamente aqueles padecimentos
e dizendo:
“Vim aqui e estou morrendo assim porque eu quis.
Deus, quando olhou para sua Criação, viu-me no campo
de batalha. E, como todos os que morrem combatendo
por amor à Fé, cintilei aos olhos d’Ele como essas estrelas
do céu.”
A mais brilhante de todas as criaturas
Há um hino a Nossa Senhora que A invoca como
Stella Clarissima: Estrela Luminosíssima. Esse título vem
muito a propósito porque no firmamento há muitos astros,
mas Ela é o mais luminoso dentre todos eles, ou seja,
a mais brilhante das criaturas.
Por que se fala de estrela? Porque a estrela brilha na
escuridão noturna, e é uma consolação para quem, de
noite, está olhando para o céu. Esta vida é para o cató-
Amandajm (CC 3.0)
ESO/G. Beccari (CC 3.0)
34
Os Magos seguem a estrela - Catedral de Santo André, Sydney, Austrália
lico uma noite, um vale de lágrimas, uma época de provação,
de perigo, de apreensão. Na eternidade vamos ter
o dia; esta vida terrena é noite para nós, mas temos uma
Estrela que nos guia, e constitui nossa consolação em
meio às trevas.
Sem dúvida, existem algumas relações entre a estrela
que guia um navegante no mar ou um viandante pelo deserto,
e o destino para onde se dirigem. Uma delas está
em que a rota da estrela é indicativa da chegada. Outra
relação muito bonita é o modo pelo qual a estrela já faz
prever como será o destino.
Está no senso popular da Fé que a estrela de Belém
seja representada de tal modo, que ela dê uma ideia da
coruscação incomparável que os Reis Magos vão contemplar,
ao encontrarem a Sagrada Família. De maneira
que a estrela indicava o caminho, mas também
simbolizava, de algum modo, Aquele que seria encontrado.
Por essa razão, analogamente, Nossa Senhora é aclamada
pela Igreja como a Estrela da Manhã. A estrela
d’alva se manifesta quando, em plena noite, de repente
o céu começa a ficar um pouco pálido. Então ela brilha.
Maria Santíssima é, pois, em meio às trevas deste
mundo, o sinal de que o Sol de Justiça está por nascer. 1 v
1) Cf. conferências de 24/8/1965, 16/1/1978, 28/4/1981,
25/1/1982, 21/12/1988, 1/12/1991 e 15/4/1994.
Maria, Estrela do Mar
Igreja de São Patrício
County Cork, Irlanda
35
Andreas F. Borchert (CC.3.0)
“Adoração dos Magos”
Catedral de São Miguel,
Toronto, Canadá
A Paz de Cristo no Reino de Maria
N
a Sagrada Família, o menor de todos era
o chefe: São José. Em seguida, vinha a
Mãe, enormemente superior ao esposo; e depois o
Filho, infinitamente maior do que os dois.
Em torno dessa Família se reúnem, desde os
primeiros dias, os grandes e os pequenos da Terra:
expressão significativa de que Cristo Nosso Senhor
veio trazer a paz como característica das relações
entre as classes sociais.
São José, nobre como um príncipe e humilde
como um carpinteiro; os Magos, dignos como
reis e súplices como mendigos; o jovem pastor, um
casto adolescente que parece trazer no cordeiro o
símbolo de sua pureza e ver no Menino-Deus a
fonte de toda castidade.
Queira a Sagrada Família obter para nós, para
nossas famílias, para nossa querida nação,
que se afastem tantos fatores de preocupação e de
tensão, por efeito da única solução que uns e outros
podem ter validamente: a Paz de Cristo no
Reino de Maria.
(Extraído de conferências de 30/8/1977 e 16/12/1991)
Aditt (CC 3.0)