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Revista Dr Plinio 197

Agosto de 2014

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Publicação Mensal Ano XVII - Nº 197 Agosto de 2014

Rainha dos Profetas


Protótipo do homem amado

por Deus

Gustavo Kralj

São Bartolomeu

Basílica Santa Maria Sopra

Minerva, Roma (Itália)

O

elogio de Nosso Senhor a São Bartolomeu

é um dos maiores que possam ser feitos a

alguém, porque é o filho do povo eleito, protótipo

do homem amado por Deus, no qual não

há fraude.

Ele era, portanto, o contrário daqueles que

se encontravam em decadência, dentro da nação

eleita.

A este título, há uma relação muito grande

entre ele e um contrarrevolucionário que deseja

ser um verdadeiro católico no qual não há

fraude e que, por isso, em face da Revolução e

do espírito do demônio, não faz concessão alguma,

odeia tudo quanto o demônio ama e

ama tudo quanto o demônio odeia; odeia tudo

quanto a Revolução ama e ama tudo quanto

a Revolução odeia.

Nesse contrarrevolucionário não há fraude,

e ele merece inteiramente o nome de católico.

Assim, é natural que peçamos o auxílio da

intercessão de São Bartolomeu.

(Extraído de conferência de 24/8/1965)


Sumário

Publicação Mensal Ano XVII - Nº 197 Agosto de 2014

Ano XVII - Nº 197 Agosto de 2014

Rainha dos Profetas

Na capa,

Coroação de Nossa

Senhora - Igreja de

São Pedro e São Paulo,

Winterthur-Neuwiesen

(Suíça)

Foto: Charly Bernasconi

As matérias extraídas

de exposições verbais de Dr. Plinio

— designadas por “conferências” —

são adaptadas para a linguagem

escrita, sem revisão do autor

Dr. Plinio

Revista mensal de cultura católica, de

propriedade da Editora Retornarei Ltda.

CNPJ - 02.389.379/0001-07

INSC. - 115.227.674.110

Editorial

4 Rainha dos Profetas

Dona Lucilia

6 Respeito e afeto

Diretor:

Antonio Augusto Lisbôa Miranda

Conselho Consultivo:

Antonio Rodrigues Ferreira

Carlos Augusto G. Picanço

Jorge Eduardo G. Koury

Redação e Administração:

Rua Santo Egídio, 418

02461-010 S. Paulo - SP

Tel: (11) 2236-1027

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br

Impressão e acabamento:

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.

Rua Barão do Serro Largo, 296

03335-000 S. Paulo - SP

Tel: (11) 2606-2409

A sociedade analisada por Dr. Plinio

8 Organicidade e espontaneidade

Sagrado Coração de Jesus

10 A medula da Contra-Revolução

em Plinio Corrêa de Oliveira

De Maria nunquam satis

18 As alegrias de Nossa Senhora

na Assunção

Calendário dos Santos

24 Santos de Agosto

Preços da

assinatura anual

Comum .............. R$ 122,00

Colaborador .......... R$ 170,00

Propulsor ............. R$ 395,00

Grande Propulsor ...... R$ 620,00

Exemplar avulso ....... R$ 17,00

Serviço de Atendimento

ao Assinante

Tel./Fax: (11) 2236-1027

Hagiografia

26 São João Eudes:

Combate à tibieza e à heresia

Luzes da Civilização Cristã

32 Um imenso turíbulo

Última página

36 Verdadeira transfiguração

3


Editorial

Rainha dos Profetas

De Maria nunquam satis. Esta frase, que ressoou nos lábios e nos corações de tantos

de Deus, em cujos maravilhosos mistérios a Teologia sempre se aprofundará, sem jamais

esgotá-los.

santos ao longo da História, aponta para o oceano insondável de perfeições da Mãe

De fato, luminosas nuvens de mistério envolvem os diversos episódios da existência da Santíssima

Virgem, como a sua Assunção e consequente Coroação como Rainha do Céu e da Terra.

Que relação se poderia estabelecer entre esses augustos acontecimentos, a ordem do universo

e a História?

Considerando que Maria Santíssima é a mais excelsa das meras criaturas — pois Jesus é Homem-Deus

—, todas as operações humanas tomam n’Ela um caráter especial, paradigmático e sublime.

O nascimento d’Ela, como causa do nascimento do Menino Jesus, foi o nascer dos nasceres. Em

seu claustro virginal, o Verbo Se fez carne e habitou entre nós; pelo que, o conceber d’Ela foi o gerar

dos gerares. Por vontade de Deus, Ela teve a mais suave das mortes, intitulada de “Dormição”

pela Teologia. Sua ressurreição foi esplendorosa, mas não à maneira de um estampido, porque não

era removida nenhuma pesada laje, mas apenas dissipava-se um leve sono pelo qual Ela havia passado.

E, por fim, entre as meras criaturas, quem conheceu e amou a Deus como Ela?

Na vida espiritual, por sua vez, cada progresso de Nossa Senhora, de algum modo, era um nascimento,

um crescimento, um apogeu que dava origem a outro nascimento, a outro crescimento, a

outro apogeu, excetuada, é claro, a morte no sentido da perda da vida da graça.

A ação de Maria na História se desenvolve de modo a todas essas operações se centralizarem

em Nosso Senhor e atingirem seu ápice no Céu, após a Assunção, ao ser coroada pela Santíssima

Trindade como a Rainha do Universo.

Nesta vocação de conduzir tudo ao Pai Eterno, a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Divino Espírito

Santo, encontra-se o dom profético de guiar, animar e fazer com que se realizem os planos divinos.

Isso faz de Maria a Profetiza de toda a Criação.

Assim, a invocação “Rainha dos Profetas” reveste-se de um significado especial, porque é a

Rainha de todos os acontecimentos da História. Daí vem a particular nobreza deste título, pois se

trata da realeza das realezas, enquanto dando impulso a todo o acontecer histórico.

4


Maria é a Rainha de todos os nasceres,

de todos os felizes e ascensionais

desenvolvimentos, cheia de

desvelo nos delicados períodos

de crepúsculo, e repleta da glória

de tudo quanto ressurge de

dentro do anoitecer.

Por isso, se algo vai nascendo

e desejamos para isso

uma particular intensidade

de viço, se alguma coisa

vai indo bem e queremos

que chegue ao seu progresso

total, sem os mil desfalecimentos

do caminho, devemos

recorrer a Ela enquanto

Rainha dos acontecimentos.

E se algo tem que passar

por eclipses, quando tudo

parecer perdido, a Estrela

d’Alva, ainda é Ela, que

Coroação da Virgem Maria (obra de Fra Angelico)

Convento de São Marcos, Florença (Itália)

pode atrair a manhã e fazer

tudo recomeçar.

Poder-se-ia perguntar, então, se o título de “Rainha dos Profetas” ou “Rainha da História”

não A move especialmente.

Esta temática abre campo para outras belas indagações dentro da Mariologia:

Se todo caminho histórico tem magníficos nasceres, esplêndidos desenvolvimentos, terríveis

eclipses e amanheceres ainda mais radiosos, não haveria uma forma de vida espiritual, de ritmo

da própria vida sobrenatural em que a graça, como na natureza, ora instaura, ora confirma, ora

prova, ora ressuscita e coroa? E que relação teria isso com o Segredo de Maria e com o Imaculado

Coração d’Ela, fonte e impulso de todos os acontecimentos?

Eis cogitações próprias de uma devoção mariana considerada pelo prisma da Revolução e da

Contra-Revolução.

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.

5


Dona Lucilia

Respeito e afeto

A Revolução ensina um sofisma infame,

afirmando que quanto mais respeitamos

uma pessoa superior a nós, tanto mais

devemos temê-la, porque ela a qualquer

momento abusará de sua autoridade

para nos impor algo dolorido e injusto. O

convívio entre Dona Lucilia e Dr. Plinio,

bem como o deste com seus discípulos,

desfaz completamente esse sofisma.

As coisas inteiramente naturais, espontâneas, são

por vezes difíceis de serem explicitadas. Quando

as coisas não andam segundo a boa ordem

da natureza, aparecem os problemas impondo-nos a necessidade

de cogitar sobre eles e fazendo surgir, assim, as

explicitações.

A naturalidade do filho com a mãe

Meu relacionamento com mamãe era tão espontâneo,

tudo corria tão naturalmente e tão profundamente, que

eu não tinha ideia de que pudesse existir algum problema.

É um pouco como a respiração. É uma coisa tão natural

que não apresenta dificuldade. Assim também nas

relações de mamãe comigo. Era a coisa mais natural do

mundo que corresse de um modo excelentíssimo.

Certa ocasião, andando pela rua, torci o tornozelo e

este imediatamente se inflamou muito, tornando-me

qualquer passo extremamente difícil. E fui para casa de

táxi.

Chegando lá, mandei procurar mamãe e mostrei para

ela o que tinha acontecido. Ela preparou um emplastro e

prendeu-o fortemente, imobilizando meu tornozelo.

Ela possuía, além de seu quarto de dormir, um quarto

de toilette que servia ao mesmo tempo de sala de estar.

Mamãe prezava muito esse lugar, porque em certas horas

ela gostava de estar lá sozinha.

Depois de ela ter feito o emplastro, com toda a naturalidade

arrastei-me do meu quarto e fui para o quarto

de toilette dela, onde havia um sofá muito cômodo. Deitei-me

no sofá e resolvi, sem consultá-la, o seguinte: “Eu

vou passar um bom número de dias sem poder sair de casa.

Ficar no meu quarto de dormir é muito cacete. Eu

vou ficar aqui.” E implantei-me naquilo que se poderia

chamar os domínios dela.

Nem me passou pela cabeça que fosse preciso pedir

licença. Se aquilo fosse meu, eu teria agido exatamente

como agi. A naturalidade com que ela tomou essa minha

atitude foi espantosa também!

Quando o tratamento — que durou cerca de um mês

de imobilidade — estava chegando ao fim, um parente

disse-me, brincando: “Você não acha que está incomodando

sua mãe aí?” Só então me veio a ideia de que minha

presença pudesse incomodá-la, do contrário nem me

viria à mente.

Abnegação e amabilidade

Isso era assim em todos ou quase todos os domínios

da existência, formando um tipo de relacionamento que

tem como pressuposto uma mútua abnegação, uma capacidade

de dar-se muito grande. Essa capacidade de

dar-se já é uma coisa que nas gerações posteriores à minha

foi mudando, e hoje em dia quase não existe, simplesmente.

A abnegação tornou-se, hoje, uma coisa tão inverossímil,

que a pessoa custa a se convencer de que está diante

de um sentimento verdadeiro e não de um gesto de mera

amabilidade. Sendo que a palavra “amabilidade” tam-

6


ém perdeu um tanto de seu verdadeiro

sentido, daquele tempo para

cá. Amabilidade vem de “amar”.

A pessoa amável é a pessoa apropriada

para ser amada, que pode

ser amada. É o sentido evidente

da palavra.

Assim, a amabilidade é a expressão

de um estado interior, de

uma disposição nossa para com

os outros, que os leva a quererem

ter a mesma disposição em relação

a nós, constituindo um vínculo

de amizade.

Para quem levou a vida na atmosfera

das gerações mais recentes,

é dificílimo ter esse pressuposto,

porque quase não teve

experiência dele. Por isso é levado

a dizer: “Será que é mesmo?

Não será uma mera fórmula

de gentileza? Eu não chego

a me convencer de que isto

seja uma realidade.” Donde

resulta uma atitude indecisa diante da posição amável

que se toma conosco.

Compreendo muito bem essa dificuldade. E, em geral,

quando vejo alguém com uma certa dificuldade de

ter a vivência da minha boa disposição para com ele, a

minha atitude não deve ser de falar sobre isso, mas de

dar a impressão de que não percebi e que, na minha espontaneidade,

continuo daquele jeito. Se ele quiser tomar

isso assim, tome; se não, à força de paciência e insistência

minha, acabará aceitando.

Intimidade e respeito indizíveis

Quem lê as cartas que escrevi a mamãe, nota como

eu a tratava com muita intimidade, mas aquela intimidade

vinha com um respeito colossal. Eu a admirava a

mais não poder e, de outro lado, a venerava, na consideração

da superioridade dela sobre mim. Superioridade

como mãe, é natural, mas, sobretudo, pelas qualidades

morais, virtudes que simplesmente me encantavam, e me

punham numa atitude de veneração.

Essa veneração não introduzia nenhum obstáculo ao

respeito, que continuava íntegro. Venerava-a, tinha por

ela um afeto enorme. Embora o respeito e o afeto sejam

sentimentos diversos, e às vezes até podem tomar aparência

antitética, de fato se completam. Daí vinha aquele

misto de respeito e de afeto que transluz nas minhas

cartas.

Acontece que a Revolução

ensina nesse ponto este sofisma

infame: “Quanto mais você

respeita uma pessoa, tanto

mais tenha medo dela, porque

ela vai a qualquer momento

abusar da autoridade que

tem sobre você, abusar da sua

reverência para com ela, para

lhe impor uma coisa dolorida e

injusta. A tirania está oculta sob

estas palavras: respeito e afeto.”

Sendo, em geral, muito grande

a diferença de idade entre mim e

meus discípulos, e, ademais, pelo

fato mesmo de ser eu o Fundador,

decorre daí uma série de autoridades

e venerabilidades especiais,

podendo acontecer que alguém,

sujeito a essa autoridade, fique

com um certo temor.

Uma desconfiança

revolucionária

Esse temor vem do seguinte preconceito: “Nesse momento,

Dr. Plinio parece estar falando com bondade,

com afeto. Mas ele é um homem arbitrário e despótico,

e a qualquer hora manda-me fazer alguma coisa dura. E,

na previsão de que eu não vá gostar do que ele diga, vai

mandar com dureza, para achatar qualquer resistência

que eu queira opor. Portanto, eu que, de um lado, quero

estar sob essa autoridade, pois vejo ser essa minha vocação,

de outro, vejo que, pelo temperamento dele, posso

ser sujeito a uma injustiça. Fico, então, receoso, distante

e com um certo alívio quando consigo me afastar.”

Esse medo deve desaparecer, substituído pela confiança

absoluta, fundada nos fatos: “Ao longo de vinte,

trinta anos de convívio não ouvi falar de um abuso de poder,

de um gesto de autoritarismo orgulhoso e destinado

a meter medo. Pelo contrário, os que convivem com

Dr. Plinio antes que eu tivesse nascido, e já estavam sob

a autoridade dele, não contam uma coisa a esse respeito.

Já é bastante para ter confiança que Nossa Senhora me

pôs, como mãe carinhosa, em mãos que velem por mim.

Portanto, tenho o dever de confiar.”

De fato, no convívio diário procuro estabelecer

com aqueles que me seguem, nas menores coisinhas, o

mesmo tipo de relacionamento que tinha com Dona

Lucilia.

v

(Extraído de conferência de 23/5/1994)

7


A sociedade analisada por Dr. Plinio

Organicidade e

espontaneidade

Nesta página e na seguinte,

aspectos do Vale do Roncal

O pecado original trouxe consequências nocivas para

o homem e também para a natureza. Assim como deve

procurar praticar a virtude e corrigir seus erros, o homem

precisa aprimorar e, quando necessário, retificar os outros

seres, preservando sempre sua organicidade.

Há um modo de expor o que é a sociedade orgânica

e, consequentemente, de elogiá-la, que

glorifica muito a espontaneidade como próprio

daquilo que é orgânico.

Fica, assim, meio insinuado que a organicidade de algo

traz com ela uma tal maravilha que o intelecto humano

não é capaz de superar, por uma ação própria, aquilo

que a natureza fez; portanto, o afastamento do homem

experiente, cultivado, inteligente, da elaboração orgânica

é o que melhor se pode imaginar.

O Vale do Roncal

Em princípio, isso assim enunciado não é verdade; deve-se

matizar muito.

Faz parte da organicidade, da autenticidade e, portanto,

da identidade da coisa viva consigo mesma, que ela

exista para o homem e seja melhorável por ele. Por isso,

torna-se necessária a intervenção do homem para aprimorar

o orgânico, e às vezes para retificá-lo, porque depois

do pecado original houve um efeito nocivo sobre a

natureza e sobre o homem, que fez com que fossem necessárias

retificações.

Portanto, a organicidade não elimina a ciência política

ordenativa, mas é preciso que ela conheça bem o seu

lugar, seus limites para não se transformar num desastre.

Tomemos como exemplo os municípios do Vale do Roncal

1 . Aquilo ficou parado até o momento em que a Revolução

o debelou. Pelo fato de terem sido destruídos com tanta

facilidade, segue-se que a organicidade estava comprometida

previamente. Porque as coisas que têm organicidade não

são tão destrutíveis com um peteleco. E quando caem com

um peteleco, elas de fato já estavam destruídas por um processo

interior inadequado, estavam sem raízes.

Mas caberia a um homem clarividente no Vale do

Roncal ter percebido com muita antecedência que uma

8


decadência começara, a qual não

seria necessariamente, em seu

início, uma decadência das

estruturas, mas precisaria

ter afetado também

as estruturas para que

elas fossem tão derrubáveis.

E esse homem

teria obrigação de saber

discernir isso e corrigir.

Mas há também outro lado:

aquilo não seria melhorável?

E quem sabe se começou a decair

porque não foi melhorado? As coisas podem

existir muito tempo sem melhorar? É um problema

que está ligado à própria organicidade delas e que se deve

tomar em consideração.

Nasce, então, a seguinte questão: existe um modo de

melhorar sem ferir a organicidade? E existe um modo de

restaurar a organicidade, ou de curá-la quando ela for

ferida?

São problemas delicados, mas sem os quais a própria

organicidade não dura muito.

Medicina, Veterinária e Botânica

A Medicina, a Veterinária, a Botânica fazem coisas

dessas com seres vivos. E basta observarmos bem para

podermos aplicar o método a essa ordem de realidade.

O que se supõe de um médico, de um veterinário ou

de um botânico é que conheça profundamente o operar

vivo do objeto de sua ação, e quais são todas as linhas

de ordem e de perfeição que aquilo tem dentro de si. Se

ele conhecer, fica capaz de detectar o que ali dentro começa,

em determinado momento, a andar errado. E sua

primeira preocupação não deve ser de intervir com bisturi

ou com remédio, mas se perguntar como despertar

as reações normais desse organismo de maneira que este

liquide o elemento nocivo.

Quer dizer, não se trata de fazer uma intervenção

anorgânica, mas despertar as antitoxinas — para me exprimir

assim — no organismo vivo, a fim de que este vença

por si. Isso significa intervir o menos possível, e segundo

o princípio da subsidiariedade, buscando no próprio

movimento da planta, do animal ou do homem aquilo

que poderá dar a vitória.

Se não houver outro meio — ou por falta de conhecimento,

ou porque o processo de cura orgânica, por essas

ou aquelas razões, não teve êxito —, então se recorre

ao emprego de energias gradativamente mais violentas e

menos ligadas ao ser doente.

Por exemplo, pode ser que se chegue

à seguinte conclusão: as antitoxinas

dessa planta existem,

mas elas não prosperam

nesse clima onde o

vegetal está. Há tal injeção

que pode paralisar

bruscamente o processo

enfermiço, com

certo trauma para o organismo.

Então, deve-se

injetar aquilo que paralisa

a enfermidade repentinamente

e, conforme o caso — tratando-se de

homens ou animais —, chega-se até à cirurgia

ou mesmo à amputação.

Mas é preciso haver sempre a preocupação de voltar

ao natural tão depressa quanto possível, e desconfiar da

cura pelo processo não natural, pois esta tem frequentemente

algo de nocivo ao organismo, tornando necessário

um segundo tratamento para corrigir os desequilíbrios

produzidos pelo remédio.

Necessidade do discernimento dos espíritos

Quanto à organicidade, no que diz respeito ao homem,

é preciso partir da ideia de que quando ele faz alguma coisa

contrária à sua ordem natural, quase sempre aquela

ação partiu do intelecto. Houve um princípio errado que

provocou o movimento errado. E é necessário conhecer o

princípio para reformar as mentes naquele ponto.

Então, há uma proteção da organicidade que começa

pelo ideológico e faz uma espécie de política especial da

Contra-Revolução nas tendências e no campo das ideias.

Portanto, o Estado e a própria Igreja devem estar aparelhados

para estudar todos os problemas respectivos, por

uma tabela de perguntas que vêm nessa linha. De maneira

a não acontecer que a solução mais rápida e barata

pareça ao governante ser, necessariamente, a melhor,

mas ele saiba ir ao mais profundo, que é sempre moral e

ideológico, e ali ter continuamente a sua linha de ação

principal.

Para se fazer corretamente isso é preciso que a Providência

— que ama a ordem como criatura d’Ela e gradua

os bens de acordo com seus desígnios — mande normalmente

pessoas com discernimento dos espíritos para o

bem, que saibam tocar essa batalha.

v

(Extraído de conferência de 7/6/1991)

1) Situado ao norte da Espanha, na província de Navarra.

9


Sagrado Coração de Jesus

A medula da

Contra-Revolução em

Plinio Corrêa de Oliveira

Desde a infância, pode-se dizer que Dr. Plinio teve uma

verdadeira troca de vontades com a Igreja, e foi recusando,

uma por uma, as coisas revolucionárias que passavam diante

dele. E, em sentido oposto, gradualmente foi concebendo

uma Ordem Religiosa contrarrevolucionária, através da qual

vislumbrou o Reino de Maria.

C

omigo, as devoções se inserem dentro de ciclos

de pensamento e vão sendo assim relacionadas. É

uma coisa muito singular. Suponho ser assim com

todo o mundo, mas as pessoas não tomam o trabalho de

explicitar.

A tintura-mãe mais sacral, forte, perfeita,

insondável da Contra-Revolução

As graças que recebi quando pequeno, e até mocinho,

na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, foram muito profundas

como visão de Quem e de como é Nosso Senhor.

De tal profundidade e alcance que pude, depois, crescer

em explicitação, mas duvido que eu pudesse — salvo um

fenômeno da vida mística que não tive — conhecer mais

do que conheci.

E isso foi acompanhado o tempo inteiro pela devoção

a Maria Santíssima, a partir daquela graça de Nossa Senhora

Auxiliadora, que se deu quando eu era ainda muito

menino 1 .

Na minha impostação, toda a luta da Contra-Revolução

é uma defesa do que poderíamos chamar a mentalidade,

o espírito do Sagrado Coração de Jesus contra a

Revolução; porque é a tintura-mãe mais sacral, mais forte,

mais perfeita, mais insondável da Contra-Revolução.

E daí se dar, com o passar do tempo, um contínuo relacionar

disso com a luta Revolução e Contra-Revolução,

por onde eu ia conhecendo o mesmo espírito, a

mesma mentalidade, mas já no contraste com o oposto,

aplicando e crescendo muito mais em fidelidade do

que compreensão, nessa segunda fase. Em compreensão

também, naturalmente, pois ia maturando com a idade;

mas o crescimento da fidelidade era muito maior, porque,

uma por uma, as coisas revolucionárias passaram

diante de mim, e eu tive que recusá-las.

O lado positivo desse processo foi a elaboração gradual

do que eu chamaria nossa Ordem Religiosa e, através

dela, o vislumbre do Reino de Maria, que antigamente

era para mim a mera Idade Média.

Isso levou anos e anos — quase toda a minha vida —

correspondendo a elucubrações que, afinal de contas,

pressupõem não haver uma concepção cultural, artística,

política, moral, ou de qualquer outro caráter, que não

gire direta e especificamente em torno disto: o Sagrado

Coração de Jesus.

A certa altura, entrou o Tratado da Verdadeira Devoção

à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort,

e com isso uma ideia muito maior da intimidade

com Nosso Senhor, por meio da sagrada escravidão a

Nossa Senhora.

10


Então, a devoção a Ela cresceu muito, enquanto

que a Ele continuou, dando numa dessas adesões

estáveis, tranquilas, profundas, se Deus

quiser da vida inteira, mas que parece não

se mover. Precisamente por ter chegado

a um certo ponto onde tem todo o

necessário para alimentar o resto da

trajetória.

Mario Morales Baveloni

Reflexões a partir da

infinita nobreza

de Nosso Senhor

Lembro-me de coisas ínfimas.

Por exemplo, quando eu era pequeno,

e até moço, meu quarto

na casa de vovó ficava numa posição

em que da janela avistava-se

a escada de serviço, por onde entravam

os empregados. E eu os ouvia,

subindo, descendo e conversando.

Ademais, minha avó era caritativa e

apareciam umas figuras populares pitorescas

por lá, para pedir esmolas. Por exemplo,

uma italiana, velhinha, muito branca, nariz aquilino,

com umas veias azuis aparecendo pelo rosto, mãozinhas

pequenas, arqueadas, as quais ela não conseguia

fechar inteiramente, de tão velha que estava. Ela se arrastava,

não sei de que porão das redondezas onde morava,

e ia comer, juntamente com o “Antônio cego” e

uma mulher chamada Serafina, embaixo da escada, que

era um pequeno “Pátio dos Milagres” 2 .

Eu ficava deitado na cama, fazendo a sesta, mas acordado,

e ouvia o borbulhar daquela gente. Depois, olhava

para meu quarto que era muito bem arranjado, agradável,

espaçoso, com um papel de parede que me encantava,

vindo de Paris.

Chegavam-me também os ecos da sala de jantar: minha

mãe, minhas tias, minha avó conversando, com risos,

exclamações, o telefone que soava, o cachorrinho lulu da

minha prima, que ladrava, etc.

Ora eu analisava o meu quarto, ora os ruídos vindos

de fora, e fazia reflexões sobre classes sociais que eram,

no fundo, pensamentos sobre a transcendência, mas a

partir da ideia da infinita nobreza de Nosso Senhor Jesus

Cristo, que me parecia a própria personificação do

nobre.

Mas percebia que se não abrisse os olhos e não fizesse

essas classificações direito, na ambiguidade de todas

as coisas, eu acabaria sendo devorado para baixo. E, portanto,

precisava evitar, a todo custo, decair porque deixaria

de assemelhar-me a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Sagrado Coração de Jesus

Basílica da Estrela, Lisboa (Portugal)

As maneiras “hollywoodianas” pareciam-me o contrário

da sacralidade, e um atentado contra Ele. A tintura-

-mãe do conceito de nobreza é a sacralidade.

Podia ser que, terminada a sesta, eu conseguisse encontrar

aberta a sala de visitas, a mais fina da casa. Entrava,

então, escondido e ia me ambientar ali. E me regalava

com aquela ambientação, que era o extremo da

meditação iniciada junto à escadaria, onde estava o meu

quarto, e que ia subindo, subindo, até aquele ponto.

Tudo isso representava destilações e aplicações ao

concreto da fidelidade ao Sagrado Coração de Jesus.

Quer dizer, era uma verdadeira meditação, por onde Ele

me acompanhava nisso tudo.

Sucessão de dois estados de espírito

Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia

em mim a qual mais ou menos se resolveu, cicatrizou de

todo em todo quando entrei para o Movimento Católico.

Não era a dualidade clássica, que naturalmente havia

e há em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem

bom, entre o estado de graça e a tentação para o

11


Sagrado Coração de Jesus

pecado mortal. Não se tratava disso.

Nem a matéria de pecado estava

diretamente envolvida no assunto.

Eram dois estados de espírito

que se sucediam, mais ou menos

como uma luz que se apaga ou se

acende dentro de uma sala, por

exemplo.

Um era de um personagem menino,

já muito sério, com as vistas

muito voltadas para o maravilhoso,

para tudo quanto há de

mais elevado, para todas as harmonias,

todas as profundidades;

portanto, para uma coisa que eu

não sabia que se chamava recolhimento

— mas que era uma espécie

de recolhimento contínuo — e

algo que eu não sabia que era piedade

— porque piedade para mim

existia só na hora estrita de rezar

—, mas noto hoje que era piedade.

Era, então, um menino muito

voltado para os assuntos relacionados

com a Revolução e a Contra-Revolução.

Este menino não era um asceta e julgava como natural

próprio dele fruir as coisas normais que, dentro do estado

de graça, o menino pode desfrutar. Não tinha ideia de

santidade, não possuía o intuito de alcançar a perfeição

moral, mas apenas o de realizar uma obra para a qual se

sentia chamado. Entretanto, tinha um propósito firme de

se manter no estado de graça.

Este estado de espírito, no fundo, apesar das misérias,

era profundamente bom, elevado e revelando um chamado

muitíssimo marcado, que transpassava a minha alma

de lado a lado. Era congênere com este estado de espírito

uma certa seriedade um tanto melancólica, tristonha,

mas carregada com ânimo varonil. E detestando tudo

quanto era superficial, brincadeira idiota, etc.

De repente, havia uma amnésia de tudo isso e vinha,

durante uma, duas, três horas, um estado de espírito diferente,

superficial, brincalhão, e me deixando arrastar

pelas formas de alegria dos anos 20 — que eram muito

vivas, muito comunicativas, muito “hollywoodianas” —,

sempre que eu não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário.

E elas comportavam muitas coisas que não

eram revolucionárias, mas constituíam uma espécie de

embalagem para entrar na Revolução. Esta eu não bebia,

mas o que não era Revolução eu tomava e gostava,

até muito.

Plinio em fantasia de carnaval

Por exemplo, quando tinha

entre 13 e 15 anos, de repente

eu cantarolava a plenos pulmões

esta ou aquela música que

estava na moda — e em casa

toleravam, não sei como, pois

sempre tive uma voz muito forte.

Cantarolava ou intimamente

me lembrava de alguma coisa

divertida, que assistira em

algum teatro, repetia aquilo e

achava graça.

Nas conversas com minha irmã

e meus primos, sobretudo nas

quintas-feiras, quando eles iam

jantar em casa, havia uma mesa

dos mais moços, na qual a brincadeira

era debandada e eu era um

dos chefes desse divertimento.

Nunca havia coisas imorais, mas

eram brincadeiras de mocinho,

de mocinha, com toda intimidade.

Então falando mal deste, daquele,

da sociedade, dos parentes

deles, empregando apelidos, debicando

a minha família do norte...

Sem nada de insultante. E às vezes

um acentuando o defeito do outro, etc.

Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito

dessa seriedade que eu devia tomar. E, se me deixasse

entregar, isso me levaria depois para uma atitude de

alheamento em relação à minha própria vocação, e estremeço

em pensar até onde esse alheamento me poderia

conduzir. Mas disso tudo eu não tinha noção.

Como eu vivia continuamente na companhia desses

primos, minha presença também determinava, excetuadas

as quintas-feiras à noite, muitas conversas sérias

sobre História, às vezes discussão a respeito de religião

com o marido de uma prima, que era ateu, mas muito

meu amigo. Chegava à discussão furibunda, e entrava

muito de seriedade pelo meio.

Aos poucos fui me dando conta da contradição entre

aquelas brincadeiras e o meu perfil de contrarrevolucionário,

e eu mesmo comecei a acentuar o corte com aquilo,

até cortar completamente.

Ouvindo músicas de Chopin e Verdi

Certas músicas e formas literárias do século XIX pareciam

contrarrevolucionárias, em comparação com o

que a Revolução apresentava nesse período descrito

por mim. E levei algum tempo para perceber que elas,

12


no fundo, eram revolucionárias também, embora correspondessem

à Revolução atrasada.

Então, havia certos compositores que me diziam muito.

Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de

condescendência até hoje — não cumplicidade, mas

compreensão —, Mozart. Eu ainda não conhecia Boccherini...

Mas tinha uma certa admiração, por exemplo, por

Chopin. Então, na Polonaise Triunfal eu apreciava o lado

heroico, contrário ao cinema norte-americano. Na Marcha

Fúnebre, via um hino da seriedade, que era o oposto

dos funerais hollywoodianos, com o cadáver maquiado

sentado numa sala, bem como outras coisas que já naquele

tempo se faziam e repercutiam sobre mim muito

desfavoravelmente.

Certos trechos de Lamartine e outros literatos franceses

do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes,

e eu não percebia diretamente o aspecto revolucionário.

Nessa idade eu não tinha conivência com a Revolução;

isto posso afirmar. Havia falta de percepção. Por ingenuidade,

eu via um lado que existia mesmo e, por contradição,

era contrarrevolucionário. Mas não notava o

aspecto revolucionário. Com o tempo, percebendo que

era ruim, fui deixando também.

Confesso que até Verdi teve uma certa repercussão

na minha alma. A Marcha da Aida eu reputava o auge

da Contra-Revolução! Eu tinha uma vitrola, um gramofonezinho,

comprava discos e certo dia adquiri o dessa

marcha. Ao mesmo tempo, comprei-o pela música e pelo

fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem

ver as cogitações infantis, misturadas com o encanto pelas

cores, desde o começo.

Aqueles atores italianos cantavam a plenos pulmões,

e eu colocava o gramofone a todo volume e a Marcha

da Aida enchia a casa! Não havia quem se lastimasse

com aquilo. Fico pasmo e, rememorativamente, agradecido

pela paciência que todos tinham, pois eu também

não percebia. Não existia a mínima ideia sensual ou sentimental

com a Aída, nem nenhuma Aida no meu espírito.

Mas aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama

do teatro.

Eu imaginava o Scala de Milão repleto de gente, o rei,

a rainha — a Itália ainda era uma monarquia naquele

tempo — assistindo em camarotes, e os atores cantando

a plenos pulmões, sustentando aquela espécie de desafio,

de maneira a simbolizar a pompa social e a monarquia

real em termos culturais no seu esplendor.

O teatrinho ”João Minhoca”

Dou um outro exemplo.

Havia em Santos, onde íamos passar as férias no meio

do ano, um parque de diversões próximo ao Hotel Parque

Balneário, onde existia o “João Minhoca”, teatro de

fantoches animados por um italiano. As figurinhas entravam,

cantavam, diziam isto, aquilo, etc., e o bom italiano,

talvez sem se dar conta, era extremamente pitoresco.

Um colega descobriu isso e convidou-me para assistir,

com mais três ou quatro amigos. Fomos e fizemos

propaganda. De maneira que, em certas noites, ia um

farrancho de gente do Parque Balneário para ver a representação

do “João Minhoca”.

Como a sociedade daquele tempo era muito mais

hierarquizada do que a atual, reservavam espontaneamente

os primeiros lugares para os eventuais espec-

Aspectos do teatro Scala de Milão, Itália

Janericloebe

13


Sagrado Coração de Jesus

tadores do Parque Balneário. Então, ficávamos sentados

na primeira fila, acabando por dar a nota ao ambiente,

cujas pessoas aplaudiam o que aplaudíamos e achavam

graça naquilo em que também achássemos.

Um dos bonequinhos representava um engraxate que

entrava no palco cantando, em português macarrônico,

toda uma ária. Nós achávamos muita graça quando chegava

a hora do engraxate, e aplaudíamos vigorosamente.

Eu, naturalmente, era dos puxadores de palmas. Depois,

em casa, eu cantava a “ária do engraxate”. E todo mundo

tolerava de modo surpreendente.

Mas isso revelava uma tendência para súbitos cansaços

da clave superior, meio subconscientes, e repentinos

anseios de levar uma vida desengajada, não responsável

e feita para meu próprio lazer. Mas eu não percebia, no

começo, uma incompatibilidade absoluta entre uma coisa

e outra; notava serem diferentes, mas julgava que podiam

coexistir bem.

Com o tempo fui percebendo que não. Nesse período,

os meus olhos foram se abrindo mais para esse problema,

e quando me engajei no Movimento Mariano cortei

com isso completamente.

Já moço, nas fotografias tiradas antes de me formar

em Direito — na Linha de Tiro, nas Congregações Marianas

e em outras ocasiões —, nota-se como esse lado

desapareceu e o outro preponderou, graças a Nossa Senhora.

Esperança de

encontrar pessoas mais

contrarrevolucionárias

Ao mesmo tempo, a consciência

de minha vocação se apresentava

em termos tão altos, que eu podia

dizer — sem me comparar, nem de

longe, com Carlos Magno — que a

missão tinha um porte carolíngio. E

o futuro se apresentava a mim com

lufadas de caráter profético, de

uma grandeza enorme!

Nessa mesma época em que, de

vez em quando, eu tinha esses acessos

– um misto de infantilidade e de

evasão dessa grandeza, que constituíam

uma tentação —, ficava na

dúvida sobre o real valor dessas

previsões que sentia.

Que estava diante de mim a Revolução

eu não tinha dúvida nenhuma.

Que era preciso fazer a Contra-

-Revolução e eu teria de trabalhar

Dr. Plinio na época de seu serviço militar

muito para fazê-la, eu não tinha dúvida nenhuma. Que

ao longo de minha vida não encontrasse pessoas mais

contrarrevolucionárias do que eu, tinha receio, mas uma

esperança enorme que não fosse assim; pelo contrário,

esperava encontrar tais pessoas, investidas de um verdadeiro

direito ao mando nessa matéria, e das quais eu pudesse

ser um campeão, mas nunca um diretor, um mentor.

Pensava eu: “Nas fileiras das classes sociais que a Revolução

pretende destruir, devo encontrar os contrarrevolucionários

perfeitos, com direito a mando, e junto aos

quais eu possa exercer uma influência na linha do que está

no meu espírito.”

Mas, às vezes, a esse pensamento seguia-se outro:

“Coitada de Nossa Senhora! Desconfio que Ela terá que

se contentar comigo. Porque vejo que fazer Ela fará, pega

qualquer ‘dois de paus’ e o utiliza para realizar sua

obra, se os naturalmente chamados não quiserem.”

Isso eu considerava sem ambição e, sobretudo, sem

qualquer vaidade, sentindo bem minha desproporção.

Aquela expressão de São Luís Maria Grignion de Montfort,

“petit vermisseau et miserable pécheur” 3 , entrou na

minha alma até o fundo. Assim sou eu e assim é todo o

mundo.

De outro lado, tinha até certo receio de que isso fosse

verdade, pois exigiria de mim mais esforço para chegar

ao píncaro de mim mesmo, e mais

luta do que eu teria se seguisse um

chefe. Mas, poderia ser eu, e deveria

me preparar inclusive para isso.

Troca de vontades com

a Igreja Católica

Depois de minha viagem a Europa,

em 1950, a ideia de uma missão

pessoal se vincou muito mais em

meu espírito, dando-se uma espécie

de união entre esta vocação e eu,

no sentido de que, na Terra inteira,

quem abriu o coração de par em

par para isso, pelo menos naquela

ocasião, fui eu. E mais ou menos

como a pomba de Noé, que teve de

voltar para a arca por não encontrar

lugar onde pousar, eu sentia incidir

sobre mim a vocação.

Com a convicção de que era

preciso amar, mais do que nunca,

todas as grandezas do passado. E

não somente amá-las, mas de algum

modo sê-las! De maneira tal

14


Janericloebe

Igreja do Coração de Jesus - São Paulo, Brasil

que eu percebia tratar-se de uma tradição quase milenar

que estava expirando, e que não morria inteiramente

porque habitava em mim; e a partir de mim teria o

seu renascimento.

Tenho até dificuldade em descrever a união de alma, a

verdadeira troca de vontades com a Igreja Católica, enquanto

oposta a tudo quanto a Revolução tinha feito, e

trazendo em si todos os gérmens para realizar o contrário.

E na Igreja Católica, ao pé da letra, com Aquele que

era para mim a personificação, por superação, da Igreja

Católica: o Sagrado Coração de Jesus.

Para ser bem positivo, essa espécie de troca de vontades

começou em menino. E com a minha compenetração,

com o exercício progressivo do papel que eu devia

realizar, foi-se estabelecendo em minha alma, cada vez

mais, uma união com aquilo que em determinado momento

se tornou completa.

Tudo isso num processo interior do qual estou marcando

algumas etapas, sem cronologia muito definida,

porque não me lembro. Recordo-me apenas de que uma

etapa sucedeu a outra.

Comecei a frequentar a igreja desde não sei quando.

Mamãe me levava à Missa aos domingos no Coração de

Jesus, e o edifício material da igreja exercia sobre mim

um efeito sobrenatural da graça, que naquele tempo eu

não sabia discernir. Eu pensava que decorria do aspecto

do templo — de uma majestade doce, suave, acolhedora,

embebida de uma tristeza compassiva, mas que ao mesmo

tempo pedia compaixão —, de algo em que minha alma

se sentia como diante do seu analogado primário 4 do

modelo perfeito que queria ter. Tudo me falava de seriedade,

de bondade, até o extremo concebível! Eu via que

isto se exprimia muito nas cerimônias do culto, nos paramentos,

na liturgia, no órgão, etc.

O órgão me maravilhava! O que eu tinha de pendor

pelo órgão, era impossível dizer. Mas eu fazia raciocínios

assim: “Este órgão parece a imitação de uma voz humana.

E dir-se-ia ter havido uma vez na História um homem

que falou de tal maneira, que todas as sílabas pronunciadas

por ele tiveram o timbre de um órgão. Quem teria sido

esse homem? Como é que o espírito dele chegou até

quem compôs esse instrumento?”

A imagem do Sagrado Coração de Jesus

e o Santo Sudário

Não custei a perceber que a imagem do Sagrado Coração

de Jesus ali presente representava isso, ou seja, a

Pessoa da qual emanavam todas essas coisas. Era Ele,

especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos

homens, com todas as perfeições, todas as maravilhas de

alma possíveis, tudo quanto pode haver de bom realizado

de um modo que eu não podia ter imaginado.

Por não possuir ainda suficiente formação catequética,

supunha discernir tudo isso n’Ele pela análise psicológica

da imagem. Hoje, quando a observo, vejo como

ela está distante, na realidade, daquilo que a graça me fazia

ver. É uma imagem digna de respeito, não tem dúvida,

a qual quero muito, mas não diz o que eu via nela.

Era uma graça obtida por Nossa Senhora para mim.

Eu arquetipizava corretamente a imagem. De maneira

que, por exemplo, quando vi o Santo Sudário, eu disse:

“É Ele!”

Mas hoje posso afirmar que isso que eu via, por ação

da graça, na imagem era ainda mais fielmente Ele do que

o Santo Sudário. O que se compreende, porque o Santo

Sudário é a posição d’Ele como morto e como vítima. E

a imagem do Sagrado Coração de Jesus representa-O vivo,

acolhedor, afável...

Donde eu deduzia o seguinte: Jesus merece adoração,

e eu O adoro inteiramente. É preciso querer até o fim,

ter esta mentalidade completamente, assim se deve ser,

isto é o meu ideal. Eu só sou congênere com quem é con-

15


Sagrado Coração de Jesus

gênere com Ele. E quem não é congênere com Ele não o

é comigo. Eu tenho parte com Ele, e quem não tem parte

com Ele, não a tem comigo também.

Por conveniências sociais, educação, necessidade de

apostolado, posso conduzir um convívio cordial. Mas ter

parte com minha alma, querer bem, só quem for como

Nosso Senhor.

Ele é Deus, porque ninguém tem inteligência nem virtude

para inventar esta figura, a começar por mim. Se eu

não tivesse visto isto na Igreja, não seria capaz de ter esta

ideia que tenho d’Ele.

De onde longas orações ao pé da imagem, Ladainha

do Coração de Jesus, etc.

E isso era o ponto de partida da Contra-Revolução na

minha alma. Porque eu via o mundo “hollywoodizado”

como o contrário daquilo tudo. E o mundo que a Revolução

Francesa destruiu, e que eu também arquetipizava,

eu o via como realizando em grande parte aquilo que

Ele era. E percebia que quando se destruiu aquilo, quis

se destruir a Ele, e não se desejou o que era conforme a

Ele.

Donde a medula da Contra-Revolução, em mim, ser a

devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Alguém poderia perguntar: “Mas por que o Sagrado

Coração de Jesus, e não Jesus expirando na Cruz, por

exemplo?”

A graça chama a cada um para certo tipo de devoção.

É legítimo. Deus me livre de negar as outras mil formas

magníficas de devoção, com que a Igreja Católica não

cessa de louvar a Nosso Senhor Jesus Cristo durante a

História. Mas sinto que fui chamado para adorá-Lo especialmente

assim.

Menino Jesus entre os doutores - Igreja do

Coração de Jesus, São Paulo (Brasil)

Dona Lucilia e o Sagrado Coração de Jesus

Meu afeto para com mamãe era por isto. Em geral, eu

me sentava ao lado dela na igreja, e a olhava rezar e pensava:

“É curioso, isto tudo vive nela.”

Eu a via rezar em casa para a imagem do Coração de

Jesus que ela possuía em seu quarto, naquele oratório, a

qual é muito anterior à imagem de alabastro do salão, e

pensava: “Há uma atração entre Ele e ela. Mamãe é assim

porque reza para Ele.” De onde o benquerer derivado.

Eu a queria enormemente bem, mas por isto.

Para mim, a Igreja Católica é santa porque é como

Ele. A influência e a presença d’Ele estão totalmente nela.

A própria auréola que nimba a cabeça de Nosso Senhor

é a Igreja Católica. É por isto que a amo.

A primeira coisa que me chama a atenção n’Ele é a

presença de algo — que eu sei ser a divindade, mas estou

procurando descrever o que vejo e não o que conheço

pela Fé — de excelso, altíssimo, e que leva todas as qualidades

que Ele tem a um grau inimaginável. Por mais que

eu tente imaginar, qualquer qualidade d’Ele é de uma

elevação, uma altitude, uma plenitude que não chego a

compreender, mas vagamente entrevejo.

Por exemplo, Jesus ensinando os doutores no Templo.

Aquele grupo de imagens, na Igreja do Coração

de Jesus, é interessante, exprime mais ou menos isso.

A crítica de homem maduro àquilo tudo eu fiz de modo

completo, mas guardei com o máximo cuidado o que

interessava.

Ali está Ele difundindo em torno de Si um halo de virtude

divina, por onde todas as virtudes de um adolescente

eram conduzidas a um elevado grau e procediam de

uma fonte altíssima, insondável; por onde tudo o que no

adolescente existe, por exemplo, de irrupção

de vida, n’Ele era uma vida

que irrompia tão cheia de elevação, de

grandeza, de nobreza, que nem se sabe

o que dizer. E também tão repleta

de bondade, de misericórdia, de sabedoria,

que galopava muito além da idade;

mas que se exprimia com o timbre

de voz e num vocabulário que não era

inadequado para a idade. Entretanto,

dizia muito mais do que todos aqueles

doutores juntos.

O píncaro dos píncaros o qual nunca

sonhei que existisse, a minha alma

entreviu!

É mais ou menos como um monte

altíssimo, no cume do qual vejo nascer

um fio de água, que pode chegar

até mim; mas tenho presente, durante

todo o tempo em que bebo a água,

16


que ela vem do alto daquela

montanha, que eu vi nascer,

a bem dizer, dentro do azul

do céu.

A obra-prima

de Maria Santíssima

Isto para mim é a primeira

impressão, diante da qual

a tendência imediata é, ao

mesmo tempo, de aproximar-

-me de Jesus, ajoelhar-me e,

se Ele tolerasse, segurar seus

pés para tê-Lo junto comigo,

para ver se Ele me impregna

mais.

Daí eu gostar tanto do

Anima Christi, sanctifica me 5 .

Porque, se eu O visse, a primeira

coisa que Lhe diria é:

“Santifica-me!” Porque quero

ser parecido com Ele. Depois

desta elevação, vem tudo

quanto uma alma inocente,

habitada pela graça, pode

imaginar no Menino Deus adolescente: o modo de Ele

responder uma pergunta audaciosa, de ser afável com

outro, de liquidar uma questão com três palavras simples

que os deixavam boquiabertos. Mas com a despretensão

e a naturalidade de quem diz: “Olhai os lírios do campo,

não tecem nem fiam...” 6 . Uma coisa superior, mas de tal

superioridade, que junto a ela minha alma respira. Sinto

falta de ar em tudo o que não é isto.

Tudo quanto é virtude, que vejo reluzir na Igreja, brilha

daquela maneira porque tem n’Ele a fonte, e que em

Jesus é de um modo a perder de vista!

Por exemplo, uma procissão nos bons tempos, que sai

da Basílica de São Pedro com o Santíssimo Sacramento,

o Papa levado numa espécie de estrado e ajoelhado

diante da Hóstia; e a longa fileira dos Cardeais, dos Arcebispos,

dos Bispos, dos Superiores Gerais das Ordens

religiosas, etc., que dão a volta na Colunata de Bernini e

entram na Basílica pelo outro lado; os sinos que tocam,

o incenso que enche o ar, as pombas que esvoaçam e a

multidão genuflexa que pede perdão. Tudo isso é reflexo

d’Ele.

Compreende-se como é, no fundo, a Igreja reportando

todas essas coisas a Nosso Senhor e, imaginado

n’Ele, tudo isto fica tão alto... Mas, nos momentos em

que se tem a experiência do petit vermisseau et miserable

pécheur, vem à nossa mente, de vez em quando, a noção

Basílica de São Pedro (por Viviano Codazzi) - Museu do Prado, Madri (Espanha)

aflitiva da desproporção. Porque, enquanto a afinidade é

empolgante, a desproporção é acabrunhadora.

Então, Jesus mesmo preencheu essa distância com a

bondade d’Ele. A obra-prima do Coração d’Ele é Aquela

de quem Ele é a obra-prima. Nosso Senhor é a obra-prima

de Maria, mas antes de todos os séculos Maria foi

ideada como a obra-prima da misericórdia d’Ele para

preencher essa desproporção. Sem Ela, eu me sentiria ao

mesmo tempo atraído indizivelmente, mas apavorado e

aniquilado, pensando diante d’Ele: Si iniquitates observaveris,

Domine, Domine, quis sustinebit? 7 A Mãe d’Ele me

sustenta.

v

(Extraído de conferências

de 26/11/1985 e 12/12/1985)

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 122, p. 18-23.

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 32, p. 27.

3) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

4) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

5) Do latim: Alma de Cristo, santifica-me.

6) Cf. Mt 6, 28.

7) Do latim: Se consideras as culpas, Senhor, quem poderá se

sustentar? (Sl 130, 3).

Michael Hurst

17


De Maria nunquam satis

As alegrias de

Nossa Senhora

na Assunção

Devemos nos alegrar não

só com as boas coisas que

acontecem em nossas vidas,

mas também pensar nas

alegrias extraordinárias da

Assunção, depois da qual

Maria Santíssima, entrando

no Céu, encontrou-Se com São

José, com as almas dos eleitos

e todos os Anjos, e foi coroada

como Rainha por ser Mãe de

Nosso Senhor Jesus Cristo,

Filha do Padre Eterno e Esposa

do Divino Espírito Santo.

Timothy Ring

Assunção de Maria - Pró-Catedral de Hamilton, Canadá

T

em-se tratado muitas vezes a respeito das

dores de Nossa Senhora, mas os antigos falavam,

mais do que os contemporâneos, das

alegrias de Maria Santíssima. E era até uma devoção

bastante intensificada, generalizada outrora, a

tal ponto que uma das igrejas mais famosas do Brasil

foi exatamente a de Nossa Senhora dos Prazeres dos

Guararapes, onde os hereges holandeses foram derrotados,

e depois se realizou uma espécie de primeiro

armistício com eles.

18


Nesta Terra temos necessidade

das verdadeiras alegrias

Devemos tratar também dos prazeres de Nossa Senhora,

porque todos os aspectos da vida d’Ela nos são caros,

mas também por causa de um lado muito importante,

que é o seguinte: São Tomás de Aquino diz que nenhuma

pessoa pode subsistir nesta Terra numa infelicidade

total. Esta por pouco tempo se aguenta, mas por um

longo período é sempre preciso haver algum alívio, sem

o qual esse infortúnio não é suportável. Portanto, devemos

nos alegrar pelas razões que merecem alegria, e é

virtuoso que assim façamos.

A virtude não consiste só em nos entristecermos com

as coisas que devem despertar tristeza, mas também em

nos alegrarmos com aquilo que causa alegria. E há muitas

coisas que devem despertar júbilo na vida do católico,

embora não seja de nenhum modo a alegria como o

mundo a entende.

Quando falta nas almas a alegria pelas boas razões de

alegrar-se, surge a má tristeza, a depressão, e as pessoas começam

a sentir atrativo pelas coisas do mundo e a se alegrarem

com elas. A partir desse momento, naturalmente, inicia-se

um processo de entibiamento, porque um dos sintomas

da tibieza é a incapacidade de se alegrar com as coisas

boas, santas, acompanhada de uma alegria ruim com uma

porção de coisas indiferentes ou positivamente más.

Por isso, notamos na vida da Santíssima Virgem muitos

movimentos de alegria, o mais insigne dos quais é,

evidentemente, o Magnificat. Mas há outros fatos de sua

vida que indicam o prazer que Ela teve. E daí os mistérios

gozosos do Rosário, que mostram as alegrias da Mãe

de Deus desfrutada em vários momentos de sua existência.

Mas nenhuma alegria de Nossa Senhora nesta vida foi

tão grande quanto à da Assunção, que foram as maiores

que Ela teve na sua existência terrena, se é que a Assunção

pode ser considerada da existência terrena.

Mas elas são passageiras e desaparecem

Como podemos refletir a respeito da Assunção? Usemos

de uma comparação.

No cerimonial de coroação da Rainha da Inglaterra, a

soberana, portando um diadema, entra numa carruagem

dourada magnífica, esplendidamente ornada.

Tocam os sinos, troam os canhões, a carruagem avança,

precedida por um esplêndido cortejo de cavalaria, em

direção à Abadia de Westminster, onde a rainha recebe

a homenagem de todos os pares do Reino, dos membros

da Casa Real e de outras notabilidades. Em seguida dirige-se

ao seu trono à espera do momento máximo em

que, após algumas cerimônias, ela será coroada. Realizada

a coroação, o júbilo toma conta da cidade, espalha-se

Dornicke

Batalha dos Guararapes - Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro (Brasil)

19


De Maria nunquam satis

pelo reino e deste para o mundo. Há uma espécie de alegria

universal.

Podemos compreender que a alegria desta rainha passe

por etapas. Ela amanhece jubilosa e este júbilo — feito

de honra, de dignidade e de consórcio com um destino

magnífico que o Criador lhe deu: o de reger um enorme

povo — vai subindo de grau até o momento da coroação,

quando o seu triunfo é completo.

Mas, no meio de todas essas alegrias, quantas pequenas

coisas incomodam...

Ela está andando na carruagem e, de repente, sente

uma coceira no rosto, mas não pode se coçar porque fica

feio. Aguenta esse incômodo e, ao invés de estar cogitando

na popularidade, começa a pensar na coceira.

Certa vez, li um comentário da Imperatriz Maria Teresa,

do Sacro Império Romano Alemão, descrevendo a

coroação dela como Rainha da Boêmia.

Ela falava dos joalheiros que tinham estado, dias antes,

adaptando a antiga coroa da Boêmia ao formato de

sua cabeça, o que é uma obra de ourivesaria, mas também

de estética; porque se um chapéu de senhora precisa

ser bem colocado, quanto mais uma coroa! E descrevia,

então, a paciência de ficar sentada, enquanto provavam

a coroa: mexe um pouco para lá, põe para cá, e ela

equilibrando aquele peso na cabeça. Depois, o cortejo,

portando a coroa pesadíssima, dentro de uma carruagem

que dava solavancos, nos maus calçamentos de Praga daquela

época.

Esses pequenos pormenores acabam ofuscando, com

seu prosaísmo, cenas magníficas. E, por outro lado, sabemos

que tais júbilos desaparecem, não têm continuidade.

O momento da coroação é transitório; o dia seguinte

já se apresenta pálido em relação à véspera, e

cheio de preocupações face ao próximo dia. Essas são as

alegrias autênticas desta vida! Porque essa é uma alegria

verdadeira e nobre.

A coroação de Nossa Senhora no Céu

Reportemo-nos, agora, à Assunção de Maria Santíssima.

Nossa Senhora sabia o dia da sua Assunção e que,

imediatamente após sua ressurreição, seria elevada pelos

Anjos ao Céu. Ela estava na plenitude de sua santidade,

sua alma santíssima, que durante toda sua existência terrena

não deixou um instante de progredir de um modo

perfeitíssimo em matéria de vida espiritual, tinha chegado

àquele clímax em que Maria possuía a perfeição perfeita,

a beleza belíssima, a virtude virtuosíssima, portanto

ao apogeu dos apogeus, e o seu amor de Deus nunca fora

maior do que naquele momento.

Podemos imaginar o estado de espírito d’Ela, sabendo

que, a partir daquele instante, iria gozar da visão beatífica,

passaria por um cortejo infindo de Anjos, dos quais

receberia as maiores homenagens possíveis, como nunca

nenhuma rainha do mundo recebera ou receberá.

Johan

Johann

Cenas da coroação da Imperatriz Maria Teresa

Galeria mesta Bratislavy,

Bratislava-Staré Mesto (Eslováquia)

20


A festa de coroação foi o auge

total e pleno de alegria, mas

sem sombra, sem mancha, sem

incerteza, sem preocupação,

sem a menor nuvem. Porque

Ela foi coroada como Rainha

por ser Mãe de Nosso

Senhor Jesus Cristo, Filha

do Padre Eterno e Esposa

do Divino Espírito Santo

Coroação da Virgem Maria

Museu Condé, Chantilly (França)

Ademais, a Santíssima Virgem é capaz de compreender

a natureza, a luz primordial, a graça de

cada Anjo, o amor que cada um deles tem a Deus

e o amor do Altíssimo a cada Anjo. E teve um conhecimento

perfeito da veneração e da hiperdulia

dos milhões e milhões de Anjos, todos se dirigindo

a Ela e aclamando-A com o maior amor, o maior

respeito, a maior veneração; e sentindo um amor e

uma alegria completa por todos e cada um desses

louvores, ciente de que eram merecidos porque Ela tinha

sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e o espelho fidelíssimo

d’Ele.

Imaginem que um Anjo da Guarda aparecesse para

um de nós e dissesse: “Meu filho dileto, você é extraordinário

e sobre você pousam todas as minhas complacências!

Você é digno inteira e perpendicularmente do jorro

de minha benevolência!” Um elogio como esse, feito por

uma natureza imensamente maior do que a nossa, seria

inebriante.

O que seria, então, para uma mera criatura humana,

como era Nossa Senhora, o amor entusiástico de todos

os Anjos, com o Céu angélico transformado numa coisa

lindíssima porque a Rainha estava indo para lá. Era

uma corte que durante milhares de anos tinha esperado

sua Rainha, a qual chegava e ia pôr o termo final na beleza

do Paraíso.

Depois de Nossa Senhora ter percorrido todos esses

Anjos — e, antes disso, as almas santas que já haviam subido

ao Céu após a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo,

bem como ter Se encontrado com seu esposo São José e

ali permutado com ele uma saudação cheia de um respeito

e de um afeto, de que nós nem sequer podemos fazer

uma ideia —, a Assunção estava no auge. Maria Santíssima

tinha chegado ao termo da Assunção, que foi a coroação

d’Ela.

Quer dizer, Ela ia ser coroada como Rainha dos Anjos

e dos Santos, do Céu e da Terra, pela Santíssima Trindade.

E, com a coroação, houve uma verdadeira festa no

Céu; isso não é uma hipérbole, pois se realizou uma festa

autêntica no Céu, embora em termos e modos que não

podemos imaginar bem.

A festa de coroação foi o auge total e pleno de alegria,

mas sem sombra, sem mancha, sem incerteza,

sem preocupação, sem a menor nuvem. Porque Ela foi

coroada como Rainha por ser Mãe de Nosso Senhor

Jesus Cristo, Filha do Padre Eterno e Esposa do Divino

Espírito Santo.

E podemos imaginar o que foi para Nossa Senhora o

primeiro momento da visão beatífica — mas desde logo

um instante eterno, porque a visão beatífica é eterna —,

a primeira alegria da visão direta de Deus? Ora, toda a

Assunção d’Ela era uma marcha para isso. E Maria Santíssima

o sabia e o desejava ardentemente.

Petrusbarbygere

21


De Maria nunquam satis

De maneira que é possível, por aí, aquilatar os oceanos

— eu diria infinitudes — de alegrias que Ela teve em

sua alma santíssima por causa disso.

No Céu, nossas dores serão transformadas

em alegrias

Podemos fazer alguma aplicação para nós e tirar disso

algum proveito? Evidentemente sim.

Precisamos tomar em consideração que também nós

somos chamados para uma verdadeira assunção. Devemos

morrer, mas logo depois nossas almas serão julgadas

e mostradas a Nossa Senhora, e vão gozar — pela

misericórdia d’Ela, evidentemente — da visão beatífica.

Depois, quando vier o Juízo Final, seremos levados para

o Céu. É misterioso se será por ação angélica ou por

império de Deus, mas também nós vamos fazer essa viagem

da Terra, completamente transformada, para o Paraíso

celeste a fim de gozarmos daquilo que Nossa Senhora

já desfruta.

Então, nas delícias do Céu, teremos a familiaridade

dos Anjos, dos santos, iremos nos encontrar novamente

uns com os outros. E uma das fontes maiores de alegria

que teremos lá vai ser de lembrar as dores desta Terra, e

tudo quanto aqui passamos.

Ao encontrarmos alguém com quem tínhamos implicância,

diremos:

— Oh, meu caro, lembra-se daquele desacordo

entre nós? E também daqueles

aborrecimentos que lhe

dei? Olhe, eu passei no Purgatório

tanto tempo...

O outro responde:

— Eu o aborreci

também, mas Nossa

Senhora nos perdoou.

Aquilo vai

constituir entre nós

um vínculo maior.

Lembra-se dos favores

que Ela nos

concedeu? E de Fulano

e Sicrano que

eram tão nossos amigos?

— Onde estão? — pergunta

o primeiro.

— Estão lá.

Não tenho a menor dificuldade

em admitir que haverá festas no Paraíso,

em que todos os de nosso Movimento

se encontrarão juntos para

Johan

Rosácea da Basílica Santa

Maria do Mar - Barcelona (Espanha)

louvar de um modo especial Maria Santíssima. Então, todas

as dores que temos no momento presente serão transformadas

em alegrias superabundantes, em satisfações insondáveis,

que nos inundarão durante toda a eternidade.

Em comparação com a eternidade nossa

vida terrena é um pesadelo

Meus caros, nossa vida pode durar trinta, cinquenta

anos, mas passa. É um minuto quando nos colocarmos

diante da ideia da eternidade. Sofremos agora, mas depois,

quantas alegrias! E a maior delas será olhar para

Nossa Senhora.

Há uma história medieval, bastante conhecida, referente

a um homem que pediu muito para ver Nossa Senhora.

A Mãe de Deus apareceu-lhe e ele ficou encantado,

deliciado com a vista d’Ela. Quando Maria Santíssima

desapareceu, ele estava cego de um olho. Então

um Anjo perguntou-lhe se ele quereria vê-La ainda

mais uma vez, com a condição de perder o outro olho.

Ele pensou e respondeu: “Quero. Vale a pena ficar cego

para ver Nossa Senhora mais uma vez. Qualquer treva

é aceitável, desde que, por um instante, eu possa pôr

os meus olhos outra vez nessa luz!”

A Santíssima Virgem veio de novo. Ele A contemplou

longamente e, quando Ela foi embora, estava curado da

outra vista!

Se é tão magnífico ver Nossa Senhora,

imaginem o que significa ver Nosso

Senhor Jesus Cristo! E, depois,

a essência de Deus na visão

beatífica. Tudo isso é eterno,

pelos séculos dos séculos!

E agora pergunto:

Em comparação dessa

eternidade fixa,

imóvel, perpetuamente

nova, sem jaça,

insondavelmente

interessante, curiosa

para ver, animada,

empolgante, o que

é esta vida que passa?

Não é absolutamente nada,

é uma escória, um pesadelo.

Temos a impressão de

que esta vida é uma realidade.

Muito mais do que ser uma realidade,

ela é um pesadelo.

Então, pensarmos que vamos ter

alegrias análogas às de Nossa Se-

22


Quanto mais sofrermos,

mais devemos

lembrar-nos da glória

e alegria que teremos

na passagem desta

Terra para o Céu, e,

sobretudo neste, pelos

séculos dos séculos.

Coroação da Virgem (por

Fra Angelico) - Galleria degli

Uffizi, Florença (Itália)

nhora, uma ida ao Céu a qual é uma analogia com a ida

de Maria Santíssima ao Paraíso no dia da Assunção, é, a

meu ver, a melhor das meditações.

Representa-se Nossa Senhora com um coração circundado

de rosas brancas, para lembrar a pureza; e também

perfurado por sete gládios. Estes evidentemente são gládios

espirituais e o coração simboliza a alma d’Ela, ferida

pela espada de dor sobre a qual falou o Profeta Simeão.

Eu gostaria de ser pintor para representar Maria Santíssima

subindo ao Céu, com o coração à mostra e desses

gládios saindo a maior das luzes que se possa imaginar.

Porque essa era a grande alegria d’Ela, ou seja, os

tormentos sofridos, as lutas aceitas. E também vai ser a

nossa. Quanto mais sofrermos, mais devemos lembrar-

-nos da glória e alegria que teremos na passagem desta

Terra para o Céu, e, sobretudo neste, pelos séculos dos

séculos.

Na Ladainha do Espírito Santo, há uma jaculatória

que sempre me impressionou muito: “Senhor, dignai-vos

elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes!” É

com meditações assim que nos damos conta das coisas

celestes, temos alegria e inteira consolação para suportar

as coisas da Terra porque o Céu existe.

Contaram-me que uma senhora simples viu pela primeira

vez a sala do Reino de Maria 1 , e fez este comentário:

“Depois de ver esta sala, a gente tem menos medo

de morrer.”

Isto é de uma teologia profunda. Até então ninguém

fizera igual elogio à sala do Reino de Maria. É o mais

faustoso elogio que se possa fazer de uma sala.

Assim deveríamos pensar nós: vendo a sala do Reino

de Maria e outras maravilhas, não só não termos medo,

mas quase vontade de morrer, para sair depressa daqui e

irmos para o Céu. Só não fazemos isso porque, vivendo

na Terra todo o tempo que Nossa Senhora quiser, teremos

o Paraíso perfeito que para nós Ela destina.

Peçamos a Maria Santíssima, nesta festa de sua Assunção,

que essas considerações tenham vida em nossas

almas.

v

(Extraído de conferência

de 15/8/1966)

1) Sala nobre da sede social do Movimento fundado por Dr.

Plinio. Ver Revista Dr. Plinio, n. 194, p. 14.

23


santiebeati.it

C

alendário

dos Santos – ––––––

1. Santo Afonso Maria de

Ligório, bispo e Doutor da

Igreja (†1787).

São Pedro Fabro,

presbítero (†1546). Discípulo

de Santo Inácio

de Loyola que participou

da fundação

da Companhia de Jesus.

Morreu em Roma

quando se dirigia

para o Concílio de

Trento.

2. Santo Eusébio de

Vercelli, bispo (†371).

São Pedro Julião Eymard,

presbítero (†1868).

Santa Teresa Benedita da Cruz 3. XVIII Domingo do

Tempo Comum.

São Pedro de Anagni,

bispo (†1105). Monge beneditino, eleito Bispo de Anagni,

Itália.

4. São João Maria Vianney, presbítero (†1859).

Beata Cecília Cesarini, virgem (†1290). Recebeu o hábito

monacal das mãos do próprio São Domingos, em Bolonha,

Itália.

5. Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior.

Beato Francisco Zanfredini, eremita (†c. 1350). Terciário

franciscano que, após doar seus bens aos pobres,

viveu quase 50 anos numa ermida em Montegranaro,

Itália.

6. Transfiguração do Senhor.

Santo Hormisdas, Papa (†523). Amante da paz, resolveu

o cisma provocado por Acácio no Oriente e combateu

a simonia.

7. São Sisto II, Papa, e companheiros, mártires (†258).

São Caetano de Thiene, presbítero (†1547).

Beatos Agatângelo de Vendôme e Cassiano de Nantes,

presbíteros e mártires (†1638). Religiosos capuchinhos

que na Síria, Egito e Etiópia procuraram reconciliar

os cristãos separados com a Igreja. Foram enforcados

com os próprios cordões por ordem do rei em Gondar,

Etiópia.

8. São Domingos de Gusmão, presbítero (†1221).

Beata Maria Margarida Caiani, virgem (†1921). Fundadora

do Instituto Franciscano das Irmãs Mínimas do Sagrado

Coração, em Poggio, Itália.

9. Santa Teresa Benedita da Cruz, virgem e mártir

(†1942).

Santa Cândida Maria de Jesus, virgem (†1912). Fundou

em Salamanca, Espanha, a Congregação das Filhas de

Jesus.

10. XIX Domingo do Tempo Comum.

São Lourenço, diácono e mártir (†258).

Beatos Francisco Drzewiecki e Eduardo Grzymala,

presbíteros e mártires (†1942). Evangelizadores poloneses

mortos por inalação de gás em Dachau, Alemanha.

11. Santa Clara de Assis, virgem (†1253).

Beato Luiz Biraghi, presbítero (†1879). Sacerdote da

Diocese de Milão, Itália, fundador da Congregação das Irmãs

de Santa Marcelina.

12. Santa Joana Francisca de Chantal, religiosa (†1641).

Beato Carlos Leisner, presbítero e mártir (†1945).

Membro do Movimento Apostólico de Shönstatt, preso no

campo de concentração

de Dachau, Alemanha.

Morreu logo após ser

libertado, em decorrência

dos maus tratos sofridos.

13. Santos Ponciano,

Papa, e Hipólito, presbítero,

mártires (†c. 236).

São Máximo o Confessor,

abade (†662). Abade

de Crisópolis, mutilado,

preso e desterrado

de Constantinopla pelo

Imperador Constante II,

por seu zelo em combater

o monotelismo.

14. São Maximiliano

Maria Kolbe, presbítero

e mártir (†1941).

Santo Domingos Ibáñez

de Erquicia, presbítero

(†1633). Missionário do-

São Roque

Anual

24


––––––––––––––––– * Agosto * ––––

minicano morto em Nagasaki, Japão, por ordem do xógum

Tokugawa Yemitsu.

15. Solenidade da Assunção de Nossa Senhora (no

Brasil, transferida para domingo, dia 17).

Santo Alípio, bispo (†c. 430). Bispo de Tagaste, Argélia,

discípulo de Santo Agostinho, foi também companheiro

dele na conversão, no ministério pastoral e na luta contra

os hereges.

16. Santo Estêvão da Hungria, rei (†1038).

São Roque, peregrino (†c. 1379). Nascido na França,

peregrinou pela Itália cuidando dos afetados pela peste.

17. Solenidade da Assunção de Nossa Senhora.

São Mamede, mártir (†273/274). Humilde pastor que

viveu solitário nas florestas dos montes da Capadócia,

Turquia, e foi morto por ter proclamado sua Fé.

18. São Reinaldo de Concorezzo, bispo (†1321). Governou

com zelo, prudência e caridade a diocese de Ravena, Itália.

19. São João Eudes, presbítero (†1680). Ver página 26.

20. São Bernardo de Claraval, abade e Doutor da

Igreja (†1153).

São Filiberto, abade (†c. 684). Educado na corte do Rei

Dagoberto, tornou-se monge ainda adolescente. Fundou e

dirigiu as abadias de Jumièges e Noirmoutier, na França.

21. São Pio X, Papa (†1914).

São Sidônio Apolinário,bispo (†c. 479). Alto funcionário

do Império Romano eleito Bispo de Clermont-Ferrand,

França.

22. Nossa Senhora Rainha.

Beato Elias Leymarie de Laroche, presbítero e mártir

(†1794). Encarcerado numa sórdida embarcação, em Rochefort,

França, por não ter aceitado assinar a constituição

civil do Clero, morreu consumido pelas enfermidades

aí contraídas.

23. Santa Rosa de Lima, virgem (†1617).

São Zaqueu, bispo (†séc. II). Segundo a tradição, foi

o quarto bispo a dirigir a Igreja de Jerusalém depois do

Apóstolo São Tiago.

24. XXI Domingo do Tempo Comum.

São Bartolomeu, Apóstolo. Ver página 2.

25. São Luís IX, Rei de

França (†1270).

São José de Calasanz,

presbítero (†1648).

Beata Maria Troncatti,

virgem (†1969).

Filha de Maria Auxiliadora

que exerceu

longa e generosa

atividade entre

os shuaras, ou jíbaros,

do Equador.

26. Beata Lourença

Harasymiv, virgem

e mártir (†1952).

Religiosa da Congregação

das Irmãs de

São José, morreu tuberculosa

no campo

de concentração de

Kharsk, Sibéria.

Beato Francisco Drzewiecki

27. Santa Mônica (†387).

São Guarino, bispo (†1150). Tendo sido monge de

Molesme na época de São Roberto, fundou a abadia de

Aulps, França, e a agregou à Ordem Cisterciense. Foi eleito

Bispo de Sion, Suíça.

28. Santo Agostinho, bispo e Doutor da Igreja (†430).

Santa Joaquina de Vedruna, viúva (†1854). Após educar

seus nove filhos, fundou o Instituto das Carmelitas da

Caridade em Vic, Espanha.

29. Martírio de São João Batista.

Beata Eufrásia do Sagrado Coração de Jesus, virgem

(†1952). Religiosa da Congregação da Mãe do Carmelo,

de rito Sírio-Malabar, falecida no convento de Ollur, em

Kerala, Índia.

30. São Bonônio, abade (†1026). Seguiu a vida eremítica

no Egito e no Monte Sinai. Ao retornar à Itália, foi nomeado

abade do Mosteiro de Lucédio.

31. XXII Domingo do Tempo Comum.

São Paulino de Trier, bispo e mártir (†358). Recusou-

-se a condenar Santo Atanásio no Sínodo de Arles e por

isso foi exilado para a Frígia, Turquia, onde consumou

seu martírio.

santiebeati.it

25


Hagiografia

São João Eudes:

Combate à tibieza

e à heresia

Para evitar as tragédias e

as apostasias causadas pela

Revolução Francesa, Deus

suscitou grandes santos, como

São João Eudes que difundiu

com ardor a devoção aos

Sagrados Corações de Jesus e

Maria e fustigou energicamente

os vícios e os erros doutrinários

de seu tempo. Não se intimidou

inclusive diante de Luís XIV, ao

censurar os costumes da corte,

em Versailles.

Mathiasrex

São João Eudes

Ao tratarmos de São João Eudes, convém tomar

em consideração que a devoção aos Sagrados

Corações de Jesus e Maria suscitou, nos séculos

XVII e XVIII, toda espécie de movimentos destinados a

evitar a Revolução Francesa. No século XIX, e durante

uma parte do XX, foi também a devoção própria de todos

os contrarrevolucionários.

É preciso notar que essa devoção, tão combatida pelos

jansenistas, é de uma substância teológica extraordiná-

26


ia, muito recomendada pelos documentos pontifícios e

por vários santos.

Grandes praças públicas se enchiam

para ouvir suas prédicas

Vejamos o que diz uma ficha 1 sobre esse Santo.

São João Eudes nasceu em Ery, pequena cidade da

Normandia, a 14 de novembro de 1601. Era o filho mais

velho do casal Isac Eudes e Maria Ruber. Depois dele,

seus pais tiveram mais quatro filhas e dois filhos. Família

profundamente religiosa, cresceram todos num ambiente

sério, impregnado de vida sobrenatural. Receberam excelente

educação, orientada pelos ensinamentos da Igreja.

Em 1615, sendo educado pelos jesuítas de Caen, fez

voto de virgindade, doou-se a Maria e votou-Lhe, desde

então, um culto fervoroso. Da Universidade de Caen entrou

na Congregação do Oratório, fundada por Bérulle,

onde permaneceu durante vinte anos.

Bérulle quisera restabelecer entre o clero a doutrina e

a santidade, mas não havia pensado em seminários, e foi

para instituí-los que São João Eudes, em 1643, deixou o

Oratório e fundou a Congregação de Jesus e Maria; e com

seus cinco companheiros padres abriu o primeiro seminário

de Caen, logo seguido de muitos outros.

Para reconduzir os pecadores à vida cristã, fundou a

Ordem de Nossa Senhora da Caridade e, para evangelizar

as almas desamparadas, fez-se missionário durante

longos anos, pregando nos campos abandonados, nas

cidades e até na corte, com uma liberdade e uma eloquência

que tinham como suporte a sua eminente santidade.

Pai, apóstolo e doutor da devoção aos Sagrados Corações

de Jesus e de Maria, quando morreu já tinha conseguido

a introdução dessa festa em um grande número de

dioceses, não só da França, como de outros países. Foi ele

também que compôs o seu primeiro ofício. Grande pregador,

nas suas missões atraía multidões. E, muitas vezes, era

obrigado a falar em grandes praças públicas completamente

tomadas pelo povo. Novo São Vicente Ferrer, conquistava

os ouvintes pelo ardor de sua fé, pela energia com que

fustigava os vícios e pela caridade com que tratava os arrependidos

e penitentes.

Existe um testemunho histórico de grande valor que

comprova o seu êxito. É uma carta de São Vicente de Paula,

comentando as missões que assistira. Diz ela:

“Alguns sacerdotes da Normandia, conduzidos pelo Padre

Eudes, pregaram uma missão em Paris com uma bênção

extraordinária. O pátio dos Quinze Ventos é muito

grande, porém tornou-se pequeno, dado o grande número

de pessoas que desejavam ouvi-lo.”

São João Eudes e os Sagrados Corações

Igreja São Pedro de Dourdain, França

O bispo pró jansenista,

Ana d’Áustria e Luís XIV

Os hereges não lhe perdoavam o combate enérgico que

movia contra os seus erros. Sendo a heresia o maior dos

males, ele não compreendia ter, com os seus adeptos, nem

a mais leve aparência de relações, chegando mesmo a não

cumprimentá-los.

Conta-se um fato que, de um lado mostra o cuidado

com que guardava a pureza de sua Fé, e de outro, a frivolidade,

a prepotência dos eclesiásticos de então.

Um dia, o Bispo de Bayeux convidou-o a subir em sua

carruagem na qual já se encontrava outro sacerdote. Quando

ela se pôs em movimento, o bispo lhe perguntou se sabia

com quem viajava.

27


Hagiografia

Bocachete

— Tenho a honra — respondeu — de me encontrar em

companhia de Vossa Excelência.

— Não é o que eu lhe estou perguntando — disse o bispo.

Sabe o senhor que este eclesiástico que está conosco é

um dos mais ferrenhos jansenistas?

Imediatamente São João Eudes abriu a porta, e pediu ao

cocheiro que parasse a carruagem porque precisava descer.

O bispo o impediu em nome da obediência e, durante o resto

da viajem, divertiu-se com o mal-estar criado.

Não eram só os hereges que o atacavam. Algumas congregações

religiosas os ajudavam, dizendo que ele era exagerado

e criticando a violência de sua linguagem. Chamavam

de exagero e violência a santa liberdade com que chamava

à ordem os pecadores, mesmo os de condições elevadas.

Certa vez, pregando em Versailles, censurou com tanta

energia os escândalos da corte, que seus amigos temiam

que fosse enviado para a Bastilha.

Ana d’Áustria, ao ter conhecimento desses comentários,

mandou-lhe dizer que fizera bem e, desde então, tornou-se

sua protetora.

Noutra ocasião, estava celebrando Missa na corte,

quando percebeu que Luís XIV estava ajoelhado, mas que

a nobreza não se comportava convenientemente. Depois

do Evangelho, voltou-se para o Rei e o cumprimentou pela

piedade com que assistia à Missa, acrescentando: “Admiro-me,

no entanto, de que, estando Vossa Majestade prostrado

diante do Criador do Céu e da Terra, vossos cortesãos

estão longe de imitar tão belo exemplo.” Luís XIV olhou

para trás e imediatamente todos os homens se ajoelharam.

Foi canonizado em 1925, no dia de Pentecostes.

Santos de fogo

São João Eudes com os membros das

Congregações por ele fundadas

Sendo um grande orador e

um santo muito fogoso, ele

fundou uma Congregação para

ver se, com o prestígio de uma

Ordem religiosa nova, essa

devoção pegava na França.

Na vida de São João Eudes há uma coincidência entre

a obra jurídica e a obra espiritual, que é muito bonito assinalar.

Ele viveu num país católico, como era a França,

e sua tarefa não foi a de combater os inimigos expressos

e extrínsecos da Igreja. Ele estava num país corroído por

uma profunda crise religiosa da qual haveria de nascer,

afinal, a Revolução Francesa.

Essa crise religiosa provinha do fato de que o fervor tinha

decaído inteiramente, o senso católico estava muito

baixo. Para evitar as tragédias e, sobretudo, as apostasias

provocadas pela Revolução, a Providência suscitava

grandes almas que, de várias maneiras, procuravam reacender

o fervor na França.

Todos os santos dos séculos XVII e XVIII foram santos

de fogo. Não foram tanto grandes teólogos quan-

28


to santos que tomavam por intenção contaminar, com

o amor de Deus, essa mecha que ainda fumegava, mas

na qual havia apenas um fogo em estado de brasa e não

mais em estado de chama.

Vemos, então, entre outros, São Vicente de Paula,

que era um homem de um amor de Deus irradiante; São

Francisco de Sales, que exercia uma penetração profunda

de amor de Deus nas camadas da alta sociedade. Para

essa obra de combustão de amor de Deus, de acender

de caridade, encontramos, sobretudo, duas obras fundamentais:

a de São Luís Grignion de Montfort, no século

XVIII, na Vendeia e na Bretanha, da qual nasceu depois

a Chouannerie; e a de São João Eudes, que devemos

analisar mais especialmente hoje.

Quem lê as revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida

Maria Alacoque, nota que elas tiveram como intenção

expressa enunciar a devoção ao Sagrado Coração

de Jesus, dizendo que essa devoção, especificamente

considerada, tinha um dom de tirar os tíbios de sua tibieza,

de acender o amor de Deus nas almas frias. É a finalidade

específica dessa devoção.

Quando se toma um tíbio, um homem que está mais

amando suas coisas pessoais do que as de Deus, a devoção

indicada para acender nele o amor de Deus desfalecente

é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e naturalmente

também ao Imaculado Coração de Maria.

Luís XIV recusou acolher o pedido

de Nosso Senhor

Santa Margarida Maria, portanto,

recebeu essa devoção, mas era uma

freira visitandina reclusa e não podia

sair do convento. Ela não tinha

como missão difundir essa devoção,

mas sim registrá-la, praticá-la, e com

isso ser canonizada o que significaria

uma espécie de aprovação dessa

nova devoção. Ela possuía como

missão fazer conhecer essa devoção

aos homens que poderiam difundi-

-la. Entre outros, Luís XIV.

Ela mandou pedir a Luís XIV que

fizesse uma alteração na bandeira da

França, incluindo a figura do Sagrado

Coração de Jesus, e realizasse a

consagração desse país ao Sagrado

Coração de Jesus. Luís XIV recusou-

-se a isso. Como resultado dessa recusa,

no que diz respeito ao poder

real, foi água abaixo a monarquia

francesa.

Luís XVI, na prisão do Templo, fez essa consagração

e prometeu que, se fosse salvo dos perigos da morte que

já o circundavam, ele a realizaria de modo solene. Mas

já era tarde! Ele ainda tinha o poder de direito, porém

não mais o de fato. E a França estava em tais condições

que essa consagração não podia mais ser considerada um

ato nacional — como o seria se feita por Luís XIV —,

mas era o ato de um rei desacompanhado da população,

que estava naquelas convulsões da Revolução e não podia

acompanhar esse ato.

Além do rei, Santa Margarida Maria quis também fazer

chegar essa devoção a missionários. E assim, espalhando-se

nos círculos piedosos, tal devoção tocou São

João Eudes que chamou sobre si a tarefa de difundi-la.

Um profeta não atendido que combateu

tenazmente contra a tibieza

Sendo um grande orador e um santo muito fogoso, ele

fundou uma Congregação para ver se, com o prestígio

de uma Ordem religiosa nova, essa devoção pegava na

França. E aí nós vemos uma outra recusa, já não do rei,

mas do povo francês, pecador solidariamente com o monarca.

A devoção impressionou pouco.

Os escritos de São João Eudes foram muito aproveitados

para a generalização que a devoção ao Sagrado Coração

de Jesus teve, no século XIX. Mas no século XVIII

não pegou.

Temos, então, um grande santo o qual é uma espécie

de profeta não atendido, e que empregou todas as suas

Os últimos momentos de Luís XVI, por Charles Benazech

29


Hagiografia

forças no campo espiritual para combater a tibieza francesa,

por meio dessa devoção.

Com esse objetivo, São João Eudes utilizou dois métodos:

um de caráter espiritual, fundando uma Congregação

destinada a difundir tal devoção; outro de cunho

jurídico, erigindo um tipo de organização de ensino, os

seminários, já existentes em tese, mas ainda não de fato

na França, e que ele constituiu dando-lhes as características

atuais.

Os seminários eram destinados a tirar os seminaristas

das respectivas famílias e educá-los num ambiente fervoroso,

de maneira tal que, quando eles fossem padres, tivessem

verdadeiro entusiasmo, verdadeira consagração à

sua vocação e não ficassem presos às coisas do mundo.

Os seminários constituíram um elemento realmente admirável

para a formação do clero, e uma das grandes alavancas

para a restauração religiosa da Europa, no século

XIX.

Repulsa ao herege e respeito à

autoridade eclesiástica

Eu gostaria de lembrar três aspectos mencionados por

essa ficha biográfica de São João Eudes: a presença do

herege na carruagem, o mal-estar do santo com esta presença

e a atitude do bispo.

Vê-se que o bispo, pregando ao santo aquela cilada,

não era inimigo dos jansenistas. Para ter um jansenista

viajando com ele, evidentemente é porque não sentia esse

mal-estar.

O bispo tratava São João Eudes com a atitude com a

qual a impiedade trata quem é verdadeiramente piedoso,

ou seja, divertindo-se durante a viagem com o mal-estar

de São João Eudes, pela vizinhança daquele herege. Enquanto

o prelado, naturalmente, bancava que se encontrava

com muito bem-estar com o herege, São João Eudes

manifestava uma espécie de repulsa, de horror, de aversão,

como se houvesse uma possibilidade de contágio. E

o bispo, então, caçoando do santo, divertia-se com o fato.

É a velha atitude do ímpio em relação ao piedoso que

se recata e, por isso, defende-se contra coisas dessas, e é

tido como imaginoso, fantasioso, medroso, homem sem

coragem, sem decisão.

E, por se tratar de um bispo, São João Eudes, que

era um homem tão enérgico, não queria tomar a atitude

enérgica que adotara com Luís XIV. Nota-se o grande

respeito de São João Eudes pela autoridade do bispo.

Porque, quem era capaz de dizer ao maior rei da Terra

o que ele afirmou, evidentemente teria facilidade também

de dizer para o bispo. Não lhe faltava personalidade

nem coragem.

Mas, uma é a autoridade eclesiástica, outra é a autoridade

civil. E sempre que se pode tomar uma atitude submissa

em relação à autoridade eclesiástica, a melhor via

é a da submissão.

De maneira que, diante da má atitude do bispo e do

outro jansenista, a posição de São João Eudes nos mostra

bem qual é o amor que o católico deve ter à obediência,

sempre que, em consciência, lhe seja possível manter

essa obediência. E, de outro lado, em que alta conta se

deve ter a autoridade eclesiástica.

Pecados que preparavam as

monstruosidades de hoje

Serein

Gravura representando a condenação dos jansenistas

O episódio com Ana d’Áustria mereceria

ser narrado depois do fato ocorrido

com Luís XIV.

Não pensem que a atitude dele elogiando

Luís XIV, como vem narrada na

ficha, não ia sem uma censura ao rei, porque

era óbvio que Luís XIV sabia o que

estava se passando ali, pois eram esses os

costumes da corte precedida pelo monarca.

Havia, portanto, ao lado do modo

cortês de começar por elogiar o rei,

uma verdadeira censura. E, de fato, o

mal que podia ser ali removido, de tal

forma dependia do soberano, que bastou

o rei olhar para os fidalgos que todos

se ajoelharam.

30


Mas não é este o único fato da vida de

Luís XIV em que ele ouviu — humildemente,

como filho da Igreja — uma porção

de verdades do alto do púlpito. Ele

era, sem dúvida, um pecador público e

prestou à Igreja, ao lado de alguns serviços,

alguns desserviços insignes. Mas a

profundidade e o modo de ser do pecado

— e até do pecado grave — nas almas

daquele tempo, não era a profundidade

nem o modo de ser do pecado nas almas

de hoje em dia.

Se considerarmos pecadores daquela

época, às vezes de má vida, encontraremos

neles restos de moralidade, de piedade,

de fé, de humildade que, no pecador

de hoje, absolutamente não se encontram.

Isso indica bem que naqueles tempos,

em que se preparavam as monstruosidades de hoje, havia

ainda muita seiva, muita possibilidade de resistência,

a qual só não foi levada a cabo inteiramente por um conjunto

de circunstâncias históricas, que não vem ao caso

narrar no momento. Mas era, em todo caso, uma época

muito mais católica do que a nossa.

Relíquias de

São João Eudes

Convento da

Caridade,

Caen (França)

Ana d’Áustria em adoração ao Santíssimo Sacramento

Característico também é o caso com Ana d’Áustria,

mãe de Luís XIV. Ela era uma soberana que, embora tivesse

um oratório em seu palácio, absolutamente não se

distinguia por uma piedade saliente nem deu uma educação

muito piedosa a seus filhos. Entretanto, quando

toma conhecimento de que São João Eudes falou fortemente

na corte contra a imoralidade, ela o apoia e manda

dizer-lhe que gostou. Ela mesma tinha como seu conselheiro

São Vicente de Paula.

É uma atitude completamente diferente do afastamento

sistemático de todo contrarrevolucionário, de todo

aquele que reage e procura ser séria e sinceramente

católico, nos dias de hoje.

Quer dizer, não havia o boicote completo do católico

verdadeiro, como existe atualmente. O que indica, exatamente,

que o vício, o erro, o mal ainda estavam num estado

de debilidade, e não se permitiam as insolências, os

despotismos que se permitem hoje.

Isso nos faz ver, com toda clareza, o tamanho de nossa

decadência e acende em nós a esperança

de um castigo, bem como de um auxílio

de Nossa Senhora para nos

tirar desta triste era histórica

na qual estamos. v

(Extraído de conferências

de 19/8/1965, 18/8/1966 e

19/8/1970)

Bocachete

Karldupart

1) Não dispomos dos dados bibliográficos

da ficha lida nesta conferência.

31


Luzes da Civilização Cristã

Um imenso turíbulo

A Grande Chartreuse causa admiração pela pulcritude de

seus edifícios. Entretanto, mais belo é imaginar os varões que

ali levavam uma vida de completo isolamento,

elevando continuamente aos Céus suas preces e sacrifícios.

V

amos considerar alguns aspectos da Grande Chartreuse

1 .

Em português isso se diz “cartuxa”, termo incomparavelmente

menos bonito do que chartreuse e chartreux,

em francês, se tomarmos em consideração como esses

vocábulos são escritos. As palavras, em francês, são especialmente

bonitas pelas letras inúteis que contêm. Por

exemplo, o vocábulo beau, que significa belo, é bonito porque

se escreve “b-e-a-u”. Se for escrito “b-ô”, torna-se um

termo para uma tribo errante no meio da África.

Eu ainda sou do tempo em que se escrevia “cysne”. O

“i” é para o mundo dos patos e o “y” para o mundo dos

cisnes. O “y” é o cisne do alfabeto português; por isso,

seria natural que “cysne” se escrevesse com “y”. Cristal

se escrevia com “c-h-r”; fica muito mais “cristalino” com

esse “h” do que sem ele.

32


“Chartreux” é bonito e a palavra canta!

Essa é a Grande Chartreuse por ser a primeira e a

maior dentre várias outras chartreuses existentes.

A neve: arco-íris em estado de síntese

Vemos nessa fotografia como a neve cobre o edifício

tão amplamente que essas chaminezinhas estão com o

seu “chapéu” de neve. Compreende-se perfeitamente a

razão de ser desses telhados e dessas torres em ponta.

Nota-se que as pontas são tão agudas para impedir a neve

de se fixar; pois, se a neve se acumulasse em maiores

quantidades, cairia o teto.

Apesar de a inclinação do telhado da abadia não ser

tão acentuada como a da igreja, a quantidade de neve

que se acumula é pequena, razão pela qual há condições

de resistência dele.

Os morros estão todos circundados de neve e os próprios

pinheiros, ao longo da encosta da montanha, encontram-se

cobertos de neve, a qual é muito bonita porque

dá a impressão de que todo o ambiente revestido por

ela está tirado das misérias da terra, e posto numa espécie

de atmosfera extratemporal.

A brancura total e completa fala da pureza, não somente

da castidade preceituada pelo sexto e nono Mandamentos,

mas de uma solidez de alma, uma temperança

e uma força que nos dão a impressão da tranquilidade

que só a virtude confere. A meu ver essa é a expressão

moral da neve que se liga à beleza da alvura.

Quando contemplamos o branco da neve, podemos

compreender o valor de uma síntese porque ele é a síntese

de todas as cores. No branco dessa neve dormem todas

as cores do arco-íris. Portanto, são arco-íris em estado de

síntese que estão aí. Isso talvez explique a beleza da neve.

Mais do que um prédio, trata-se de uma cidadezinha.

É um imenso Buissonnets 2 dos cartuxos. Há uma grande

praça central para a qual dão uma série de construções,

cuja forma lembra vagamente um pente.

A igreja destaca-se de todo o resto pela sua forma.

Nota-se ainda um prédio de construção mais recente,

que constitui também um corpo separado.

Mais adiante há um edifício, provavelmente uma outra

capela, com um torreãozinho muito gracioso, e as

construções vão se perdendo por aí afora, indicando o

método, a ordem, a concatenação, o entrelaçamento da

vida de todos os monges.

Essas montanhas não são habitadas, mas há um imponderável

qualquer pelo qual se percebe não existir

também do outro lado residência alguma. Elas fazem

parte de um maciço montanhoso impróprio para a cons-

Bahram Houchmandzadeh

33


Luzes da Civilização Cristã

Eusebius

trução de cidades. O verde da vegetação e a neve marcam

o espírito do edifício e da instituição que nele vive.

Isolamento, oração e penitência

Qual é essa instituição? Por que esse isolamento? Por

que todos esses edifícios? O que significa a vida de um

homem nesse lugar?

A Ordem dos Chartreux, fundada por São Bruno, na

Idade Média, tinha por objetivo separar do convívio humano

aqueles que tinham recebido de Deus uma altíssima

vocação: estar constantemente pensando em temas

relacionados com a doutrina e o espírito da Igreja, com

a Filosofia, a Teologia, os documentos do Magistério, em

suma, com a Doutrina Católica.

De maneira que nenhuma reflexão passeasse pela

mente de um cartuxo, nenhum comentário lhe atravessasse

a alma, que não fosse fundamentalmente relacionado

com a Doutrina Católica. Naturalmente, uma larga

parte do tempo era reservada para a prece, os ofícios rezados

na capela da instituição de dia e de noite, em horas

difíceis, interrompendo várias vezes o sono; jejum fortíssimo,

trabalhos manuais, flagelação, leitura, sobretudo

de assuntos teológicos e de vida espiritual.

Vida isolada de tal maneira que os cartuxos moram

verdadeiramente como eremitas, em pequenas casas separadas

umas das outras, e só se encontram para tomar

alimento no refeitório do convento e para rezar na capela.

O resto do tempo eles passam sós, e para fazer exercícios

físicos racham madeira.

De vez em quando, realizam passeios na propriedade deles,

em geral muito grande, com terras ermas, em fila indiana,

de maneira que um não vê a fisionomia nem conversa com

o outro. Caminham todos quietos, refletindo, pensando. Sobem,

descem morro, com um itinerário indicado pelo prior;

depois voltam todos para suas casas e vão se entregar cada

um à sua vida, completamente só. Cada um deles é um verdadeiro

solitário, um eremita no sentido literal da palavra.

A mais completa das renúncias

que se pode praticar

Por que isso? A razão é dupla. Em primeiro lugar,

porque as almas não são chamadas a pensar em todas as

coisas, a não ser debaixo do ângulo da eternidade, quer

dizer, relacionadas com a Doutrina Católica.

A algumas pessoas, por intercessão de Nossa Senhora,

Deus concede a graça de serem assim no meio da vida

quotidiana. A outras Ele dá essa graça, e até com opulência

extraordinária, desde que elas se isolem; então,

chama-as para esses lugares e, ali se isolando, elas pensam,

pensam, pensam, e acabam construindo castelos interiores

magníficos, mentalidades onde nada passa a não

ser de acordo com o espírito da Igreja Católica.

Mas uma coisa muito bonita é que, em atenção ao fato

de pertencermos ao Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus

Cristo, quer dizer, à Santa Igreja Católica Apostólica

Romana, há uma reversão entre nós por onde os méritos

e sacrifícios de uns podem reverter em méritos e perdão

para outros.

Então, os cartuxos vão para esses lugares e praticam

a mais completa das renúncias que se possa praticar, para

levar uma vida de sofrimento. Aí eles sentem frio, passam

fome durante horas e horas, ao longo dos dias, semanas,

meses, anos e decênios de solidão, sem sequer qualquer

pequena distração do afeto humano, mas quietos até

o momento de conversarem com os Anjos e com Deus.

Assim é a vida deles. Oferecem isso para a salvação

das almas, a respeito das quais Nossa Senhora tem planos

especiais para a glória d’Ela e para a expansão da

Santa Igreja; por todos aqueles que são necessitados, para

que sejam fiéis e perseverem.

34


Brucyn

Guillaume Piolle

Eusebius

É possível que estejamos

juntos neste momento porque

algumas almas dessas sofreram

e padeceram uma vida

inteira de isolamento. Nós não

sabemos, às vezes, a que heróis,

ou a que santos desconhecidos devemos

a nossa perseverança.

Quem não teve horas de moleza em que duvidou

se realmente perseveraria? Horas em que o pé resvalou

sobre o abismo... Entretanto, pelo favor de Maria Santíssima,

estão aqui. Quem sabe se algum desses varões ofereceu

a vida por uma alma que não conhecia, à qual Nossa Senhora,

do alto do Céu, destinou: “O sofrimento de Dom Fulano

é para meu filho Sicrano.” E eles só se encontrarão no Paraíso.

Esse é o sentido penitencial magnífico dessas almas.

Um turíbulo de onde se elevam,

continuamente, penitência e oração

Alguém poderia perguntar: Não haverá um atentado

do homem contra sua própria natureza, isolando-se

assim? Eles não ficarão neurastênicos ou convulsionados

na vida que levam? Não morrerão prematuramente?

Isso não será um excesso de austeridade?

São Pio X pensou em reformar a Regra deles, tomando

em consideração que os homens de seu tempo não tinham

mais a força dos homens de outrora. Por causa disso, a

Regra, feita na Idade Média, podia não se adaptar a eles.

Os cartuxos, então, mandaram uma delegação a São

Pio X, de várias chartreuses do mundo, para pedir a não

mitigação da Regra. Pelo que me contaram, eram dez

monges, todos com mais de 90 anos de idade, fortes, de

longas barbas brancas. Prosternaram-se diante do Papa e

rogaram-lhe que não alterasse a Regra, pois eles eram a

prova de que os cartuxos a aguentariam.

Mas São Pio X, em sua sabedoria

de santo, e tomando

em consideração a debilitação

do gênero humano, entendeu

que as gerações posteriores

que entrassem na Ordem

dos cartuxos — aqueles eram da geração

dos velhos, ainda suportavam —

não aguentariam mais. Então fez algumas alterações,

muito medidas e pequenas, na Regra dos cartuxos.

Compreendemos, então, o pulchrum verdadeiro desses

edifícios. Imaginemo-los habitados por homens perpetuamente

silenciosos, pensando nas coisas de Deus,

postos na oração e no sacrifício, em favor de almas que

eles ignoram. Pensemos nos anciãos de 90 anos, entrando

aos 20, e passando 70 anos num ambiente desses. O

que seria, no rigor do inverno, o uivar do vento nessas

montanhas e que, de repente, se enfurna por uma janela

dessas, e vem trazer o frio para dentro desses edifícios,

muito mediocremente aquecidos, atingindo homens

apenas alimentados do indispensável?

Consideremos que isso é um imenso turíbulo de onde

sobem continuamente ao Céu os perfumes da oração e

da penitência. Compreendamos que há qualquer coisa

de tranquilo, de sereno, de crucificado e varonil aí, que

realmente incute uma enorme veneração, um respeito

sem fim.

v

(Extraído de conferência

de 15/1/1977)

1) Mosteiro situado na comuna francesa de Saint-Pierre-de-

Chartreuse, a norte de Grenoble, na Isère, França.

2) Casa situada em Lisieux, França, onde residiu Santa Teresinha.

35


Verdadeira transfiguração

Durante a Assunção de Maria Santíssima,

é possível que o Sol

tenha brilhado de um modo magnífico,

o céu tenha ficado com cores

variadas, refletindo de modos

diversos, como uma verdadeira

sinfonia, a glória de

Deus. Mas nenhum desses

esplendores podia se

comparar ao próprio esplendor

de Nossa Senhora

subindo ao Céu.

Toda a glória de Maria

provinha de seu interior,

e à medida que Ela

ia Se elevando, essa glória

ia transparecendo

aos olhos dos homens

como numa verdadeira

transfiguração, alcançando

todo seu brilho quando,

já no alto de sua trajetória

celeste, Ela olhou uma última

vez para os homens, antes

de definitivamente entrar

nos Céus.

(Extraído de conferência

de 10/8/1968)

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