Revista Dr Plinio 190
Janeiro de 2014
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Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>190</strong> Janeiro de 2014<br />
A irreversibilidade<br />
da Contra-Revolução
S<br />
ão João Bosco possuía o dom de suscitar<br />
muita confiança e muita paz nas almas.<br />
Ele tinha um sorriso, uma bondade impregnada<br />
de fortaleza, mas de tal maneira comunicativa,<br />
generosa e apaziguante, que basta<br />
rezarmos diante de uma boa imagem dele<br />
para percebermos algo de indefinivelmente<br />
suave que se perpetuou no seu modo de ser,<br />
no seu estilo.<br />
2<br />
Virtudes irmãs<br />
É essa suavidade espiritual que devemos<br />
pedir a São João Bosco, nesta época<br />
de árduos combates. Todas as virtudes<br />
são irmãs. Portanto, a combatividade<br />
mais irredutível e implacável é irmã<br />
afetuosíssima dessa bondade, delicadeza<br />
e suavidade próprias do espírito de São<br />
João Bosco.<br />
(Extraído de conferência de 31/1/1969)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>190</strong> Janeiro de 2014<br />
Ano XVII - Nº <strong>190</strong> Janeiro de 2014<br />
A irreversibilidade<br />
da Contra-Revolução<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
na década de 1980.<br />
Foto: Sérgio Miyazaki<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Editorial<br />
4 A irreversibilidade da Contra-Revolução<br />
Dona Lucilia<br />
6 Dores incompreendidas, mas<br />
nobremente aceitas<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
10 Finalidade e unidade do ser humano - I<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
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03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2606-2409<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
14 A arte de cumprimentar<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
18 Entusiasmo e lógica<br />
Reflexões teológicas<br />
24 Meditação sobre o Natal - II<br />
Calendário dos Santos<br />
28 Santos de Janeiro<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 114,00<br />
Colaborador .......... R$ 160,00<br />
Propulsor ............. R$ 370,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 590,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 15,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Hagiografia<br />
30 São Lourenço Justiniano: força e astúcia<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
34 Duas formas de grandeza<br />
Última página<br />
36 Virgem e Mãe<br />
3
Editorial<br />
A irreversibilidade<br />
da<br />
Contra-Revolução<br />
N<br />
os albores de 2014, quando nossas atenções são atraídas por diversas notícias desastrosas,<br />
tanto do ponto de vista material quanto espiritual, de grande alento é considerar as palavras<br />
transbordantes de Fé pronunciadas por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em conferência de 29 de janeiro de 1967,<br />
para jovens discípulos latino-americanos.<br />
Devemos formar nosso entusiasmo a partir do estudo calmo e profundo da realidade e dos princípios,<br />
para daí subir aos mais altos páramos da dedicação e do fervor. É dentro desse espírito que vou<br />
tratar do tema da irreversibilidade da Contra-Revolução.<br />
A Contra-Revolução é um movimento de almas, de ideias, de influências, de esforços que deve estancar<br />
a marcha do grande movimento universal que no tratado “Revolução e Contra-Revolução” tivemos<br />
ocasião de definir: um movimento que começou igualitário, sensual, orgulhoso e ímpio, com<br />
os primeiros vagidos do Renascimento e da Pseudo-reforma protestante, se estendeu pela Revolução<br />
Francesa, até encontrar o seu apogeu no comunismo; é esse movimento que vem triunfante através<br />
dos séculos, chamado “Revolução”, que se trata de deter.<br />
A Contra-Revolução é um movimento que visa frear a Revolução. Mas ele não visa apenas freá-<br />
-la, e sim derrotá-la, exterminá-la. Ele não visa apenas exterminá-la, mas visa a implantação do Reino<br />
de Maria.<br />
Quer dizer, ele visa a instauração, nesta terra, de uma ordem temporal, e mais do que uma ordem<br />
temporal, de uma cultura, de uma civilização, de um estado espiritual, que seja marcado pelos<br />
princípios que a Revolução tentou eliminar. E não só marcado predominantemente por esses princípios,<br />
mas de tal maneira que esses princípios sejam agudamente levados até as suas últimas consequências,<br />
até o seu maior brilho, até o seu apogeu, de tal maneira que da noite profunda da Revolução,<br />
pelos esforços da Contra-Revolução, saia a maior luz, o maior esplendor da Civilização Cristã,<br />
o estado mais radioso da Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, aquilo que com a Fé de nossas<br />
almas e com a certeza de nossa confiança, saudamos como a era que há de vir: o Reino de Maria.<br />
Afirmando a irreversibilidade da Contra-Revolução, o que nós afirmamos? Afirmamos que a<br />
Contra-Revolução não poderá voltar atrás. Há pouco foram mencionadas as palavras do Evangelho<br />
de São João: “A luz brilhou nas trevas e as trevas não conseguiram circunscrevê-la.” 1 É bem o que temos<br />
de dizer da Contra-Revolução.<br />
A Contra-Revolução é uma luz que brilha nas trevas e as trevas não conseguirão circunscrevê-la.<br />
Mais: ela brilhará cada vez mais a ponto de reluzir sozinha no firmamento, sob o sorriso e as bênçãos<br />
de Maria Santíssima.<br />
4
No ensaio “Revolução e Contra-Revolução”,<br />
mostramos como a Revolução é<br />
um enorme processo originado por uma<br />
explosão do orgulho e da sensualidade,<br />
que no século XIV ou, se quiserem, no<br />
século XV, começou a produzir as suas<br />
primeiras manifestações de intemperança,<br />
que dominou a alma humana e transformou<br />
a cultura e a civilização.<br />
Deus dispôs muitos santos, muitos heróis,<br />
ordens religiosas, movimentou acontecimentos<br />
extraordinários para que os<br />
homens pudessem fazer face ao ciclo revolucionário,<br />
mas Deus não quis operar<br />
uma intervenção tal que pelo seu simples<br />
poder este ciclo se detivesse.<br />
Nossa Senhora apareceu em Fátima e<br />
predisse que a Rússia espalharia seus erros<br />
por toda parte. Esses erros eram um castigo<br />
para a humanidade, e haveria uma perseguição<br />
na qual o Papa teria muito de sofrer.<br />
E Ela indicou a extensão do fenômeno<br />
e, portanto, o caráter devastador dele. E<br />
afirmou que, por fim, quer dizer, ao cabo<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em novembro de 1967.<br />
de uma longa sucessão de acontecimentos,<br />
o Imaculado Coração d’Ela triunfaria.<br />
É um triunfo d’Ela e não pode deixar de ser um triunfo esplêndido. Porque tudo quanto Deus<br />
faz por Ela e em nome d’Ela é obra-prima d’Ele. Ele reservou para Ela todas as suas grandezas. O<br />
triunfo pessoal d’Ela tem de ser o mais maravilhoso da História. Ela não diz: “Eu triunfarei!” Ela<br />
diz: “O meu Imaculado Coração triunfará”. E com esse triunfo do seu Imaculado Coração é aquilo<br />
que, por assim dizer — se se pudesse empregar a expressão incorreta por audaciosa —, há de melhor<br />
n’Ela que triunfará, porque na mãe o que há de melhor é o coração. E é assim o triunfo do coração,<br />
o triunfo da maior misericórdia, mais extensa, mais dadivosa, mais esplêndida. É esse triunfo<br />
que está anunciado!<br />
E, então, temos um triunfo que será o maior da História. Um triunfo que é necessário que seja assim.<br />
Porque se é para triunfar de um grande inimigo, só uma grande vitória. E se é para sair de trevas<br />
profundas, é apenas com a maior abundância da luz. Assim, podemos ter a certeza de que o Reino<br />
de Maria é irreversível. Porque há sinais de que ele começa a vir. Porque, por fim, temos uma promessa<br />
indefectível de que ele virá e de que, portanto, depois do castigo, virá a misericórdia. Depois<br />
do como que dilúvio virá o arco-íris. E teremos, então, afinal, a glória imarcescível do Reino de Maria.<br />
É uma glória, também ela, irreversível.<br />
1) Cf. Jo 1, 5.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Dores incompreendidas,<br />
mas nobremente aceitas<br />
Dona Lucilia admirava seu pai, o qual muito sofrera, e a<br />
partir dele ascendeu à figura de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
de Nossa Senhora e de tudo quanto ensina a Religião católica.<br />
Com o olhar posto na cruz, sua alma desabrochou na dor,<br />
o que a fez acumular reservas de afeto e de solicitude que<br />
ficaram como uma espécie de tesouro a ser bondosamente<br />
distribuído a partir da eternidade.<br />
M<br />
inha mãe era uma senhora muito mais feita<br />
para considerar as qualidades de alma<br />
das pessoas do que a Cristandade como<br />
um todo. Ela apreciava, sobretudo, o convívio entre<br />
as almas, e o objeto imediato de sua atenção foi a nobreza,<br />
a elevação de alma daqueles com quem se relacionava.<br />
O pai de Dona Lucilia sofreu<br />
muito, desde pequeno<br />
Dona Lucilia foi educada mais por seu pai, <strong>Dr</strong>. Antônio,<br />
do que por sua mãe, Dona Gabriela. Esta era<br />
um tipo de senhora como havia naquele tempo, mais<br />
um ornato para o lar do que propriamente dona de casa:<br />
muito bonita e fina, cuidava-se muito bem. E no<br />
sertão de Pirassununga 1 daquela época, isto aparecia<br />
enormemente. <strong>Dr</strong>. Antônio, meu avô, gostava que sua<br />
esposa fosse assim. Portanto, era ele quem mandava<br />
na família.<br />
6
Ele tinha sofrido muito, desde pequeno. Sua mãe, Dona<br />
Maria Jesuína, casara-se muito jovem com <strong>Dr</strong>. Cândido<br />
Ribeiro dos Santos, mas ela falecera também muito<br />
cedo, deixando quatro filhos. <strong>Dr</strong>. Cândido casou-se, então,<br />
com uma senhora muito frívola, leviana, afeiçoada<br />
às coisas mundanas.<br />
Não tardou para os filhos do primeiro matrimônio serem<br />
empurrados de lado, e os do segundo leito colocados<br />
na primeira linha, criando assim na casa um ambiente<br />
de muita tristeza.<br />
Meu avô esperou estar formado em Direito, e logo<br />
depois saiu de casa, passando a morar em Pirassununga,<br />
cidade que então estava apenas começando.<br />
Lá ele acabou por fazer uma bonita carreira, mas sempre<br />
encontrando circunstâncias muito tristes e até trágicas<br />
em seu caminho. Depois de muitas dificuldades,<br />
mandou construir uma casinha, onde foi morar com a esposa,<br />
e ali viviam na pobreza. Meu avô lutou contra todos<br />
esses problemas de um modo tremendo, e sempre<br />
ganhando menos dinheiro do que precisava.<br />
Ele pedia a Nossa Senhora que arranjasse<br />
um jeito de ele viver bem financeiramente.<br />
Afinal, a Santíssima Virgem<br />
resolveu os problemas, e ele ficou<br />
bem de fortuna, mas sempre levando<br />
uma vida de sacrifício.<br />
Minha mãe notava nele certa<br />
melancolia e o admirava.<br />
Compondo um<br />
padrão de católico<br />
Santa Teresinha, numa<br />
de suas cartas, afirma<br />
que seu tio Guérin era<br />
um verdadeiro santo. Muitas<br />
atitudes dele, vistas fora<br />
do contexto, parecem um<br />
pouco duvidosas: ganhou de<br />
repente uma alta soma de dinheiro,<br />
herdou um castelo, ficou<br />
meio metido a nobre, embora fosse<br />
da pequena burguesia. Teve assim coisas<br />
discutíveis, não imorais; mas um santo é<br />
muito mais do que um homem que apenas não é imoral!<br />
O tio Guérin parece ter sido, o tempo inteiro, um<br />
homem íntegro. Mas parece-me muito mais provável<br />
que o Sr. Martin, pai de Santa Teresinha, tenha sido<br />
santo. Mas a Igreja ainda não se pronunciou 2 .<br />
Percebe-se que Santa Terezinha via no tio Guérin um<br />
analogado primário 3 . Portanto, uma pessoa pode compor<br />
o seu analogado primário, e Dona Lucilia o compôs<br />
O jovem casal Ribeiro dos<br />
Santos (acima), <strong>Dr</strong>. Antônio na<br />
idade avançada (ao lado)<br />
de acordo com aquele gênero. A consideração<br />
sobre se as almas correspondiam ou não àquele<br />
padrão e qual era o relacionamento que assim<br />
se estabelecia, foi o objeto da atenção direta e primeira<br />
dela na época de sua infância, e durante algum tempo<br />
depois.<br />
A isto se somou, de um modo muito natural e orgânico,<br />
a Religião, porque se vê que aquele analogado primário<br />
era construído segundo uma noção católica de homem,<br />
a qual por sua vez se formava conforme uma ideia<br />
da Igreja Católica inteiramente exata e verdadeira; ideia<br />
essa muito alimentada pelo que a Igreja ensina sobre a<br />
santidade, enfim, a respeito de todas as virtudes cristãs.<br />
7
Dona Lucilia<br />
Uma montanha atrás da qual<br />
se levanta o Sol<br />
Para Dona Lucilia, portanto, o grande homem da<br />
vida temporal era o pai dela, visto nessa perspectiva.<br />
Mas percebe-se que, a partir daí, seu espírito elevou-se.<br />
E, de uma série de satisfações e decepções na<br />
ordem pessoal, veio uma certa ideia geral sobre a vida,<br />
o conjunto dos homens, o gênero humano, e uma ascensão<br />
muito maior, relativa à figura do Sagrado Coração<br />
de Jesus, de toda a Religião católica, da piedade,<br />
de Nossa Senhora, etc.<br />
E nessa fase, partindo de um ponto de vista moral,<br />
há elucubrações metafísicas e religiosas que culminaram<br />
na figura do “Quadrinho” 4 , em cujo olhar se percebe<br />
tudo isso, mas se nota também uma enorme e suave<br />
decepção, sem vingança nem amargura, sem abandonar<br />
uma esperança que está no fundo e faz a alma<br />
reportar-se a muito mais alto. No fim do processo, o<br />
material primeiro não ficou posto de lado, mas foi ultrapassado,<br />
como por exemplo, uma montanha atrás<br />
da qual se vê levantar o Sol: a primeira coisa que aparece<br />
é a montanha, depois se levanta o Sol, e a montanha<br />
parece pequenininha porque o astro-rei está brilhando<br />
no horizonte.<br />
Assim também, nesse processo mental, primeiro<br />
surgem certos aspectos terrenos, os quais depois<br />
são considerados pequenos porque algo maior apareceu.<br />
As almas desabrocham na dor<br />
A personalidade dela era natural e legitimamente<br />
construída para um âmbito que, ao longo dos dias e<br />
das dores, devia se abrir. E somente dores muito sérias<br />
e nobremente aceitas, com o olhar posto na cruz,<br />
iriam abrindo aquele âmbito, mas abrindo dolorosamente.<br />
Dir-se-ia que a Providência quis reservar o espetáculo<br />
de um desabrochar. Era normal que tivéssemos,<br />
portanto, um horizonte que se fosse abrindo.<br />
A abertura na dor... Isso daria para falar nem sei<br />
quantas coisas; pretendo dizê-las no momento oportuno<br />
porque está chegando a hora de insistir a respeito<br />
do papel do sofrimento e da suprema beleza da luta<br />
na vida, etc., de se valorizar essa noção em toda a sua<br />
perspectiva.<br />
O próprio de uma alma é desabrochar na dor e, para<br />
esse tipo de alma, o sofrer gradualmente é um sofrer<br />
dolorido. E quando há união de almas assim, muitas<br />
vezes elas maturam ora na alegria e na afinidade,<br />
ora na dor.<br />
8
Não quero dizer que nos contatos de mamãe comigo<br />
não tenham, às vezes, surgido perplexidades e dificuldades,<br />
porque acho que ela tomou toda a sua abertura<br />
mais ou menos no fim da vida.<br />
Quanto mais ela me quisesse, mais minha ausência<br />
devia fazê-la sofrer. Ela estava no direito de pensar,<br />
normalmente: “Ou sou eu a mãe tão vazia que não comove<br />
meu filho, ou ele é um filho de pedra. Que equívoco<br />
existe entre nós?” E eu saía para fazer uma reunião<br />
onde alguns não aproveitavam o que eu lhes oferecia.<br />
Eu a deixava sozinha e ia cumprir o meu dever.<br />
Quantos equívocos assim pode haver? E tanto mais<br />
doloridos quanto mais íntimos! Todos sabem que um<br />
grão de areia entre o globo ocular e a pálpebra deixa<br />
um homem louco, por causa da íntima adesão entre<br />
a pálpebra e o globo ocular. Entre mãe e filho, nessas<br />
condições, isso é como um grão de areia...<br />
Isto fica dito apenas de passagem para entenderem<br />
bem que não é um processo pacífico, como o desabrochar<br />
de uma flor, mas que as almas desabrocham crucificando-se.<br />
Creio que aquilo que ela não compreendeu em vida<br />
fê-la acumular reservas de afeto, de solicitude, as<br />
quais ficaram como uma espécie de tesouro para post<br />
mortem. E hoje ela compreende.<br />
Vendo como mamãe trata os aqui presentes, eu me<br />
lembro de como ela tratava a mim. Tenho a impressão,<br />
às vezes, de que estiveram há minutos com ela,<br />
conversaram um pouco, mas saíram impregnados da<br />
presença dela; um certo bom trato grave, sério, suave,<br />
enormemente condescendente, abarcativo, que diz<br />
uma palavra e passa e é o suficiente para um dia, mas<br />
cria uma vontade de voltar.<br />
Toda graça, de que o “Quadrinho” ou a sepultura<br />
dela possa ser ocasião, diz “até daqui a pouco” ou,<br />
“até amanhã”; nunca corre a cortina, bem à maneira<br />
dela.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 16/5/1981)<br />
1) Município localizado na região centro-leste do Estado de<br />
São Paulo.<br />
2) Os pais de Santa Teresinha do Menino Jesus, Luís Martin<br />
e Zélia Guérin, foram beatificados em 31 de outubro<br />
de 2008.<br />
3) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.<br />
4) Quadro a óleo, que muito agradou a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado<br />
por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias<br />
de Dona Lucília. Ver <strong>Revista</strong> “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” n. 119, p. 6-9.<br />
9
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Finalidade e unidade<br />
do ser humano - I<br />
Com grande riqueza de metáforas e exemplos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> explica<br />
a íntima relação existente entre o transcendental unum e a<br />
finalidade da pessoa humana. Na presente conferência — feita de<br />
improviso e para ouvintes, em sua maioria jovens —, transparece<br />
uma das características do pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>: a<br />
reversibilidade entre as considerações filosóficas e as teológicas.<br />
H<br />
á pouco, eu estava vendo umas<br />
fotografias do Himalaia.<br />
Quem o contempla<br />
deve ter uma sensação de<br />
quantidade total impressionante,<br />
e que o monte,<br />
em si mesmo considerado,<br />
deixando ver o ponto<br />
onde ele, como que,<br />
emerge do chão e aquele<br />
em que o seu píncaro<br />
se perde nas nuvens —<br />
ou parece fazer fugir o<br />
céu astronômico para mais<br />
alto, a fim de não encostar<br />
nele —, dá a impressão de realidade<br />
tangível, de um ser que serve<br />
de ponto de partida para considerações<br />
que, de proche en proche 1 , vão até Aquele que é o<br />
Ser por excelência: Deus, nosso Senhor.<br />
Partindo de realidades<br />
elementares, chegar às<br />
mais elevadas<br />
Himalman<br />
Nessas condições, é evidente<br />
estar na ordem da<br />
natureza que aquilo que<br />
o monte tem de tão esplêndido,<br />
ou seja, sua<br />
realidade palpável, imponente,<br />
magnífica, ele<br />
perderia de um momento<br />
para outro, não se fosse<br />
privado de seu píncaro<br />
— ficaria, então, mais baixo<br />
—, mas se algum monstruoso<br />
serrote o cortasse e o monte deixasse<br />
de ter contato com o chão. A partir do<br />
momento em que perdesse o contato com o solo,<br />
ele daria a impressão de irrealidade, de uma coisa que não<br />
Abhishekjoshi<br />
10
pode existir. Como podemos compreender algo de fixo suspenso<br />
no ar e sem contato com o chão? É incompreensível!<br />
Nada vive suspenso no ar; tudo precisa ter seu contato com<br />
o solo. Esse monte se evanesceria. Se olhássemos o seu píncaro<br />
e depois a sua base, e víssemos que ela não tem continuidade<br />
com o solo, diríamos: todo o resto que está acima<br />
parece realidade, mas é ilusão.<br />
Este princípio de que as realidades básicas, elementares,<br />
as que estão ao nosso alcance, servem para nos levar<br />
às mais altas realidades — como, por exemplo, o primeiro<br />
degrau do estrado existente neste auditório conduz,<br />
através dos outros degraus, ao topo do estrado —,<br />
aplica-se à ordem hierárquica que Deus pôs no universo.<br />
Nesta, ao considerarmos o primeiro degrau que tenhamos<br />
diante de nós, podemos contemplar todas as grandezas<br />
que virão sucessivamente. Por conseguinte, devemos<br />
saber contemplar o primeiro degrau de maneira a ver essas<br />
grandezas, sem confundir o primeiro degrau com as<br />
grandezas a que ele conduz.<br />
Todo homem é criado com<br />
determinada missão<br />
Quais são as mais altas realidades para as quais o homem<br />
está voltado? Ele nasce, cresce, atinge a maturidade,<br />
depois vai fenecendo e morre. Assim também o dia é aurora,<br />
em seguida é manhã, depois é o meio-dia em que ele<br />
aparentemente se fixa e, pelas três horas da tarde, quando<br />
se diz “há tanto tempo que o Sol está brilhando com todo<br />
o seu vigor e provavelmente não deixará mais de brilhar”,<br />
presta-se mais atenção e se afirma: “Curioso! Parece<br />
faltar um pouco de claridade! Será mesmo? Há três horas<br />
que ele brilhava sem diminuir de luminosidade e agora<br />
ela está decrescendo. Oh, deve ser um engano da vista!<br />
Vou prestar atenção em alguma outra coisa e daqui a<br />
pouco olharei novamente para o Sol”. Pelas quatro horas,<br />
percebe-se o incontestável; algo de belo, de nobre, está se<br />
dando na natureza, por onde as sombras começam a aparecer.<br />
Aquelas mesmas sombras dentro das quais, depois,<br />
gloriosamente afundará o Sol, na aparência para dormir.<br />
Depois o movimento do astro rei se repete, dias e noites<br />
se sucedem, e os homens também se repetem: as gerações<br />
se sucedem sobre a Terra e a quantidade inumerável<br />
dos homens se multiplica, a ponto de estar tendendo, debaixo<br />
de certo ponto de vista, a encher o globo. Assim é a<br />
sucessão dos acontecimentos, numa aparente monotonia.<br />
Há um provérbio francês que diz: “On entre, on crie:<br />
c´est la vie; on crie, on sort: c´est la mort! — Entra-se e grita-se,<br />
é a vida; grita-se e sai-se, é a morte!” Entre esses<br />
dois gritos está a vida humana.<br />
Como isto é pouco e parece não levar a nada! Um homem<br />
repete os passos de outro e a sucessão dos homens<br />
seria como a sucessão das formigas. O que é a vida? A<br />
que grandeza tudo isso conduz?<br />
Esse raciocínio é errado, pois não toma em conta a<br />
verdadeira realidade da vida humana e as grandezas para<br />
as quais o homem está voltado. Qual é a realidade da vida<br />
humana? É esta: nós viemos a esta Terra com uma determinada<br />
missão, cuja atração constitui o dinamismo de<br />
nosso próprio ser. Realizada essa missão na Terra, sobre<br />
a qual falaremos daqui a pouco, dir-se-ia então que perdemos<br />
a nossa razão de ser.<br />
Na aparência é isso, pois o homem morre. Porém, na<br />
realidade, ele inicia, na outra vida, outra missão que é a<br />
projeção dentro do infinito da vida que ele teve e da missão<br />
que ele exerceu na Terra.<br />
Cada ação humana tem uma<br />
razão de ser mais alta<br />
De maneira que cada ação humana, considerada no<br />
que ela tem de mais imediato, acaba tendo sempre uma<br />
razão de ser mais elevada.<br />
Por exemplo, o modo pelo qual estou acenando com<br />
a mão enquanto vos falo. Esse gesto tem uma finalidade<br />
imediata. Eu sinto, como todo homem, que a fisionomia<br />
e a voz não têm expressão suficiente para dizer tudo<br />
quanto está na alma. Que o menear da cabeça pode<br />
ajudar a essa expressão, mas não basta. E, por causa disso,<br />
devo falar também com os braços como involuntariamente<br />
falo com o tronco. O homem fala com o corpo inteiro.<br />
De imediato, eu movo a mão sem uma razão aparente<br />
que justifique o meu movimento. Mas, se mantivesse<br />
as minhas mãos sempre imóveis, elas sofreriam na sua<br />
circulação. E, conforme a sabedoria divina, a necessidade<br />
moral que tenho de mover as mãos se alia à necessidade<br />
física que possui a minha mão de ser movida;<br />
é uma necessidade que está nela, enquanto membro<br />
do meu corpo. Mas, sendo atendida nessa necessidade<br />
de se mover para não se atrofiar, ao mesmo tempo ela<br />
serve a um destino mais alto que ela, enquanto mão, ig-<br />
11
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Precisaríamos prestar atenção, e apenas os muito<br />
dotados em explicitar, servidos para isto de uma faculdade<br />
de atenção muito pormenorizada e de um vocabulário<br />
vasto, poderiam acabar explicando o que alguns<br />
dos seus movimentos quiseram dizer e, entretanto,<br />
dizem. E até no modo de andar longamente — dez<br />
quilômetros, por exemplo —, cada passo que o homem<br />
dá tem sua expressão. De maneira que, terminados<br />
os dez quilômetros, está concluído um discurso.<br />
Prefácio de um livro<br />
intitulado ”Eternidade”<br />
nora. Entretanto, eu sei qual é o pensamento que quero<br />
sublinhar e qual a razão de fazer este ou aquele gesto<br />
com minha mão.<br />
Eu quisera, por esse exemplo tão corrente, ao alcance<br />
de cada um dos presentes, que tivéssemos em consideração<br />
o entrelaçamento e a subordinação magnífica das<br />
várias finalidades de tudo quanto o homem faz, rumo a<br />
uma finalidade central da qual falarei depois.<br />
Mas, para entenderem bem e terem em consideração<br />
a complexidade desse entrelaçamento de fins e sua beleza<br />
ordenativa, todos nós, quando falamos em público<br />
ou em privado, de vez em quando mexemos as mãos. Os<br />
que estão neste auditório, ao falarem comigo, ao ouvirem<br />
a minha exposição no momento, involuntariamente<br />
mexem as mãos, a cabeça ou qualquer parte do corpo,<br />
mas exprimem algo ao longo desta conferência que<br />
vou lhes fazendo. E de tal maneira exprimem não só no<br />
rosto, o que é instintivo e natural, mas no corpo inteiro,<br />
que se imaginasse aqui, nesse momento, que todos estivessem<br />
atrás de um parapeito e que só lhes pudesse ver<br />
as cabeças, eu teria a sensação de que não acompanharia<br />
bem como estariam acolhendo a reunião. Porque a expressão<br />
do rosto é completada pela atitude do corpo. Todos<br />
não percebem, como eu não percebo também, mas<br />
nossos corpos estão falando.<br />
Quem diria que o homem tem busto, tem peito, também<br />
para falar? Entretanto, nós podemos imaginar um<br />
homem do qual se faça um busto, porque se conjectura<br />
o resto do corpo a partir de um busto. Mas se fôssemos<br />
imaginar apenas uma cabeça sem o busto, ficaria horrorosa!<br />
E perderia sua expressão, seria um monstro. O peito<br />
é a moldura do homem e ajuda a interpretar aquilo<br />
que ele está pensando. Mas o que o peito nos ajuda a interpretar?<br />
O que nós quereríamos dizer quando movemos<br />
a mão? Nós mesmos não sabemos.<br />
Vemos assim como tudo se entrelaça no homem<br />
e como, além das finalidades imediatas de todas as<br />
coisas que ele faz, por exemplo, andar, respirar, há<br />
outras finalidades. Tal é a linda complexidade da vida<br />
humana e do ser humano! Como é nobre pensar! Tudo<br />
quanto o homem possui no corpo existe para expressão<br />
de algo que ele tem na ideia, no pensamento, e todo<br />
o seu corpo não serve senão para expressão de sua alma<br />
espiritual, impalpável, que jamais morrerá e terá uma finalidade,<br />
mesmo quando ela não estiver unida ao corpo.<br />
E quanto é pouco o corpo, quando compreendemos que<br />
um dia a alma se desprenderá dele, deixando-o para se<br />
pôr na presença de Deus.<br />
O corpo se desfaz, mas virá o momento em que esse<br />
pó esparso pela terra será recolhido pelos Anjos com um<br />
empenho enormemente maior do que o do pescador de<br />
pérolas, que as apanha no mais escuro do mar; mais do<br />
que qualquer pesquisador de brilhantes no seio da terra<br />
e nas galerias mais profundas. Assim, a ação dos Anjos<br />
se estenderá sobre toda a Terra e recolherá o pó de<br />
cada um, para que renasça sob a forma da ressurreição<br />
dos mortos e se apresente de novo gloriosamente. Quanta<br />
queda! Quanto desfazimento! Quanta nulidade! Que<br />
glória magnífica, e que eternidade!<br />
Portanto, o homem viveu nesta Terra, levou sabe-se<br />
lá que existência — são tão variadas as vidas! Em certo<br />
momento, morre. Mas não acabou tudo; o melhor ou o<br />
pior está para começar. É o prefácio que acabou; o livro<br />
vem depois. É o grande livro da eternidade.<br />
Este é o primeiro passo que damos na consideração<br />
dos grandes horizontes e das grandes perspectivas. Contudo,<br />
não é senão um primeiro passo. Como se pode<br />
prosseguir numa meditação desse gênero?<br />
A unidade na variedade<br />
Dada a mutabilidade do homem — quanto o homem<br />
varia ao longo de um dia, de uma hora, às vezes de alguns<br />
minutos! —, ele não seria a criatura excelente que é, se<br />
12
não tivesse um unum. Não há nessa variedade uma<br />
unidade?<br />
Quando não se sente esta unidade no homem, ele<br />
parece um livro desencadernado cujas folhas o vento<br />
da loucura leva para onde entende. O que caracteriza<br />
o homem que não é louco? É exatamente a<br />
concatenação de tudo quanto ele cogita e faz, dando<br />
um certo rumo ao seu pensamento e à sua ação na<br />
vida. Ora, essa concatenação e esse rumo só podem<br />
provir de uma unidade interna. O homem é fundamentalmente<br />
uno, dentro de toda sua variedade. E<br />
o fazer sentir esta unidade na variedade é uma das<br />
maiores atrações que o convívio humano pode proporcionar.<br />
Quando tratamos com uma pessoa monótona,<br />
não sentimos a variedade. É cacete! E se<br />
conversamos com uma pessoa que é por demais variada,<br />
temos um enfaramento daquilo que é agitado,<br />
atormentado e desconexo. Vendo um indivíduo que possui<br />
variedades as quais se sucedem, imprevistas, mas ordenadas<br />
e que vão desembocando umas nas outras, aprazível<br />
ou magnificamente, então se tem uma noção exata<br />
do que é o panorama da psicologia de um homem.<br />
Se o homem tem uma unidade, devemos nos perguntar<br />
que comparação fazer entre a unidade de um homem<br />
e a de outro. Se esse unum difere de uma pessoa para outra,<br />
no que consiste esta diferença? O que faz a unidade<br />
e a variedade?<br />
Certa vez, li o seguinte comentário de um escritor católico<br />
das primeiras décadas deste século, do Rio de Janeiro.<br />
Ele estava assistindo ao desembarque de passageiros<br />
de uma daquelas enormes barcas que, antigamente,<br />
transportavam pessoas entre o Rio de Janeiro e Niterói.<br />
Um mundo de gente passava diante desse autor, o qual<br />
teve esta reflexão singular que não saiu mais de meu espírito:<br />
Como Deus conseguiu, com tão poucos elementos<br />
— olhos, nariz, boca, orelhas — que compõem o rosto,<br />
fazer uma quantidade incontável de fisionomias que<br />
nunca se repetem?<br />
O ”unum” de cada pessoa face ao Juízo Final<br />
O mesmo se deve dizer do nosso unum. Cada um de<br />
nós tem um unum que abarca a pessoa toda, e determina<br />
o nexo com ela e uma finalidade na vida.<br />
A humanidade constitui uma coleção. E o vale de Josafá,<br />
onde se acredita que se dará o Juízo Final, vai ser<br />
como um estojo onde vão estar guardados todos os espécimes<br />
dessa coleção, desde Adão até o último homem. E,<br />
vistas em conjunto, compreenderemos melhor a relação<br />
entre todas essas peças da coleção, como quando diante<br />
de um mosaico, se bem ordenadas as peças, entendemos<br />
o desenho que forma. Se as peças estão jogadas ao léu,<br />
Pórtico do Juízo Final<br />
Catedral de Notre-Dame, Paris (França)<br />
não se compreende o desenho tão bem. Não será possível<br />
conceber, ou compreender toda a grandeza, toda a<br />
beleza do gênero humano ao qual nós pertencemos, senão<br />
quando estivermos no vale de Josafá, tendo toda a<br />
humanidade debaixo de nossos olhos.<br />
Está escrito no Gênesis que Deus criou todos os seres<br />
e, contemplando-os, considerou que, se cada um era<br />
bom, o conjunto era melhor 2 . Deus criou e vai criando os<br />
homens até o fim do mundo. Mas o conjunto de todos os<br />
homens é mais belo do que cada homem individualmente.<br />
Olhando esse conjunto, diremos: “Que coisa magnífica<br />
é ser homem!”<br />
No conjunto de todos os homens que habitam, habitaram<br />
ou habitarão a Terra, tenho uma tarefa especial, como<br />
uma pessoa dentro de um mosaico. E aqui está meu unum.<br />
É uma nota central constitutiva de todas as aptidões e tendências<br />
ordenadas e boas de meu corpo, que, por sua vez,<br />
obedece a um impulso ordenado e bom de minha alma, o<br />
qual me leva a fazer na Terra determinadas coisas que<br />
Deus quer que eu faça. Essas coisas fazem-me compreender<br />
que tenho uma missão. O meu unum proporciona à<br />
minha vida um fim, o qual é maior do que cada uma dessas<br />
ações imediatas. Esse fim é um todo só, para o qual eu, como<br />
o meu unum, devo tender. E o belo da vida de alguém<br />
é observar sua existência inteira que vai andando, passo a<br />
passo, na mesma linha até realizar o unum final. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
1) Do francês: de próximo em próximo.<br />
2) Cf. Gn 1, 31.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 10/1/1981)<br />
Sérgio Hollmann<br />
13
Gesta marial de um varão católico<br />
A arte de cumprimentar<br />
Devido a sua inocência e ao ambiente criado por<br />
Dona Lucilia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não cedeu à ação<br />
revolucionária exercida por muitos dos seus companheiros<br />
de colégio. Para opor-se a essa má influência, que<br />
se manifestava, entre outras coisas, pelo modo de saudação,<br />
ele elaborou uma verdadeira arte contrarrevolucionária<br />
de cumprimentar, própria às circunstâncias.<br />
Poder-se-ia dizer que, dando rapidamente como<br />
introdução o histórico de como nasceu a observação<br />
da vida e da luta revolucionária e contrarrevolucionária,<br />
depois se compreende melhor como a galharia<br />
enorme da ação nasceu em doutrina, já articulada,<br />
e como esta dirige a ação. É algo que parece quase impossível<br />
de conceber; porém — como tantas coisas quase<br />
impossíveis —, tendo o segredo e efetuando as devidas<br />
voltas, a questão acaba sendo muito simples.<br />
A inocência, o bom espírito e o<br />
ambiente criado por Dona Lucilia<br />
Nessas reminiscências, sempre me reporto ao começo<br />
da minha ação contrarrevolucionária, portanto, no Colégio<br />
São Luís; e também em dois estabelecimentos secundários,<br />
que frequentei como intervalo do São Luís: o curso<br />
do Prof. Aquiles Raspantini e outro estabelecimento<br />
de ensino chamado, se não me engano, Colégio Paulistano.<br />
Além disso, o contato com o meu mundo de criança,<br />
e depois a sociedade nos cinco ou seis anos em que a frequentei,<br />
metido nela até o alto da cabeça. E um pouco a<br />
Faculdade de Direito, que representou um papel muito<br />
menor para isso.<br />
Tudo isso somado constituiu o seguinte:<br />
Eu já possuía posição tomada a respeito de uma porção<br />
de coisas, em virtude da inocência, do bom espírito,<br />
do ambiente criado por mamãe. E um pouco da atmosfe-<br />
<strong>Plinio</strong>, Ilka, Fräulein Mathilde e Rosée<br />
14
a de minha casa, que eu considerava como sendo muito<br />
boa. Nessa época eu não via, no ambiente de uma família<br />
tradicional, o que pode haver de não tradicional e já<br />
desviando para as coisas modernas; então, eu dava àquilo<br />
uma adesão inteira, sem jaça — sobretudo à Igreja Católica,<br />
evidentemente —, pois apresentava um modo de<br />
ser harmônico e coerente diante de mim.<br />
Sentindo o choque disso, daquilo, daquilo outro, eu<br />
percebia o contraste. Mas não o notava apenas entre<br />
uma coisa e outra, quer dizer, o mundo revolucionário<br />
faz determinada coisa de tal jeito, e eu faço de outro jeito;<br />
eu percebia muito claramente o espírito que presidia<br />
aquilo, o qual era o oposto do espírito que havia em mim.<br />
Por detrás do modo de se cumprimentar<br />
havia todo um mundo<br />
Vou dar um exemplo. Um dos primeiros choques que<br />
tive foi o modo de muitos meninos se cumprimentarem<br />
fora do meu ambiente, no colégio.<br />
É de bom senso que os meninos, chegando à escola,<br />
não fiquem se saudando. São quatrocentos, quinhentos<br />
alunos, não podem estar desejando bom dia uns aos outros.<br />
Isto é uma coisa que entra pelos olhos.<br />
Mas muitas vezes se encontravam na rua, por exemplo,<br />
no que hoje é o centro velho e naquele tempo era o centro<br />
da São Paulinho. Ia-se lá para tomar sorvete, comer doces<br />
em alguma confeitaria, comprar um chapéu, enfim, para<br />
mil outras coisas, e se deparava com colegas. E a regra era,<br />
encontrando qualquer pessoa conhecida, inclusive meninos,<br />
cumprimentá-la tirando o chapéu, amavelmente. Todos<br />
os meninos usavam chapéu naquele tempo.<br />
Ora, eu encontrava, muitas vezes, os meus colegas e, ao invés<br />
de receber um cumprimento afável, cerimonioso, a que<br />
estava habituado — não imaginava que houvesse outro cumprimento<br />
—, davam-me uma saudação despachada. E não<br />
era só comigo, mas todos eles, entre si, quase não se cumprimentavam.<br />
Eu percebia logo que isso era uma abreviação das fórmulas<br />
de cumprimento antigas, europeias, em benefício<br />
das fórmulas hollywoodianas, pois a saudação que eu via<br />
as pessoas se darem nas fitas de cinema era essa. E notava,<br />
por uma conexão, que havia todo um mundo atrás<br />
dessa maneira de se cumprimentar. A recusa da amabilidade,<br />
do respeito, da cortesia, da confiança recíproca, e o<br />
ritmo acelerado, o modo meio bruto de fazer, o desprezo<br />
das fórmulas antigas como sendo coisas completamente<br />
inúteis, indicavam uma introdução de uma certa brutalidade<br />
na vida. Eu via isso com toda a clareza.<br />
Aspectos do Colégio São Luis<br />
São Paulo, Brasil<br />
15
Gesta marial de um varão católico<br />
Se imitasse os outros meninos,<br />
inalaria seu espírito<br />
E, observando que esse menino, aquele, aquele outro,<br />
faziam, sentiam exatamente dessa maneira, eu percebia<br />
definida uma oposição que apresentava um problema<br />
de ação: à vista de eles fazerem assim, nada mais fácil<br />
do que eu me pôr em dia, cumprimentando-os como<br />
eles se saudavam; era até mais simples do que o cumprimento<br />
afável.<br />
Mas surgia a questão: Se eu imitar o jeito deles, inalo<br />
o seu espírito, é inevitável. Se os cumprimentar a meu<br />
modo, coloco-me em situação inferior porque estou gastando<br />
gentilezas e afabilidades com indivíduos que me<br />
respondem com um aceno das sobrancelhas, e fico fazendo<br />
papel de tonto, e isto também não posso admitir. Um<br />
homem que não é capaz de manter a sua própria nota<br />
não é homem.<br />
Então, como agir? Tenho que arranjar um meio-termo,<br />
que faça com que eu mantenha todo o meu espírito,<br />
e o manifeste do modo mais discreto possível para evitar<br />
um entrechoque, mas é necessário que seja visível para<br />
evitar uma capitulação. De que forma, então, vou cumprimentar?<br />
Quer dizer, até que ponto este indivíduo com<br />
quem estou tratando — e outros que têm a mesma mentalidade<br />
— tolera que eu leve adiante alguma coisa parecida<br />
com o cumprimento tradicional? Até que ponto ele<br />
explode? Isso de um lado.<br />
De outro lado, como posso tapear a situação, pondo<br />
num modo de cumprimentar aggiornato 1 tudo quanto eu<br />
quero?<br />
Seriedade e afabilidade no<br />
trato com os colegas<br />
Fica aqui enunciado um problema que se repete em<br />
série, em centenas de outros casos. É toda uma clave do<br />
estilo de vida que se põe.<br />
Então o que devo fazer? Tirar do cumprimento a solenidade<br />
de um homem? Porque eu cumprimentava com<br />
a solenidade de um homem, e não de um menino, pelo<br />
modo com o qual fui educado. Eu percebia que não podia<br />
exigir dos outros essa solenidade assim, porém deveria<br />
pôr, no meu modo de cumprimentar um colega, algo<br />
de cerimonioso. Mas qual é o modo de um menino ser<br />
cerimonioso sem imitar os mais velhos, sem parecer, portanto,<br />
um doutorzinho?<br />
Refleti: Isto se faz assim, assim, assim. Bem, então vou<br />
agir desse modo. Posso entrar nos pormenores, explicando<br />
como era a forma de meu cumprimento; naturalmente<br />
isso alonga muito a série de reuniões que me pediram<br />
fazer.<br />
O primeiro ponto era a seriedade de uma pessoa capaz<br />
de qualquer resposta, e de correr qualquer risco:<br />
Não mexam comigo porque dá encrenca! E encrenca de<br />
argumentação, mas se for preciso vou mais longe e, em-<br />
Botaurus<br />
16
ora eu não seja muito forte, tomo de uma<br />
vez uma atitude que manifeste muita segurança,<br />
coragem e força! E até lá minha força<br />
chegava.<br />
Acima disso, uma afabilidade um tanto<br />
maior da que todos eles tinham uns com os<br />
outros, mas por detrás deveriam entender<br />
que estava a força.<br />
A linguagem como instrumento<br />
contrarrevolucionário<br />
Depois, uma linguagem que foi, durante toda<br />
a minha vida, o instrumento que procurei<br />
usar, aproveitando talvez facilidades nordestinas.<br />
Sem ser pedante nem rebuscada, precisaria<br />
ser uma linguagem com muito mais vocábulos<br />
do que a deles, e, portanto, falando coisas<br />
que eles não sabiam dizer, e pondo na conversa<br />
uma espécie de natural superioridade<br />
bem como consistência nos temas que eu invocava,<br />
e cabendo numa atmosfera de brincadeira<br />
composta, não de brincadeira decomposta.<br />
Essas coisas criavam em torno de mim uma esfera<br />
de superioridade, ajustada a menino.<br />
Mas tudo isso, que é uma solução para um<br />
caso concreto, se desdobra, tem subjacentes,<br />
regras a respeito de como tratar os revolucionários.<br />
Eles se vingavam a seu modo, quer dizer,<br />
não sabendo como sair disso, boicotavam.<br />
Então, que atitude tomar diante do boicote?<br />
Ao longo da minha vida, houve muitas outras<br />
situações as quais precisei estudar milímetro<br />
a milímetro e constituíram um acervo<br />
de experiências “regulogênicas”, que geravam<br />
regras. Entretanto não era a concepção<br />
do princípio no ar para depois aplicá-lo, mas<br />
a experiência transformada em regra. Tratava-se<br />
de uma coisa completamente diferente<br />
e, por essa razão, muito útil.<br />
Acrescentem-se inúmeras situações históricas<br />
estudadas; tudo isso forma uma caudal<br />
de regras que, se eu quisesse escrever, poderia<br />
levar dez anos de minha vida… v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 29/08/1987)<br />
1) Do italiano: atualizado. Aqui tem a conotação<br />
de estar de acordo com a moda.<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Entusiasmo e lógica<br />
Segundo a escola de pensamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, deve haver<br />
junção entre teoria e exemplos. Nesta conferência, ele trata de um<br />
tema doutrinário, mas o explana apresentando diversos exemplos,<br />
que tornam a exposição leve, clara e atraente. O entusiasmo e a<br />
lógica convivem harmoniosamente na alma em ordem,<br />
o que se obtém pela graça de Deus, sem a qual o homem<br />
não consegue perseverar na prática do bem.<br />
Oque é propriamente entusiasmo? É o gosto por<br />
uma pessoa, um lugar, uma coisa, uma situação,<br />
uma atividade, levado a um tal grau que enche o<br />
homem a ponto de deixá-lo transbordante.<br />
A cerveja que transborda numa<br />
caneca de porcelana<br />
Garitan & Kaldari<br />
Eis uma imagem que pode dar a ideia do que é entusiasmo:<br />
numa confeitaria ou restaurante, um garçom<br />
serve numa caneca de porcelana — própria<br />
para chope — uma cerveja espumosa. E depois<br />
de posta a cerveja até o bordo da caneca, a espuma<br />
transborda de um modo suave, digno e forma<br />
um como que tecido bonito em volta;<br />
e é agradável tomar a cerveja quando ela<br />
está nesta situação.<br />
Assim é o entusiasmo da alma humana<br />
quando conhece algo; não é logo<br />
no primeiro momento, mas depois<br />
aquilo vai produzindo em nós<br />
um certo transbordamento. E ficamos<br />
tão encantados que precisamos<br />
falar com os outros: “Olha isto, aquilo,<br />
que bonito, que agradável, etc.!”<br />
Isto é o entusiasmo na nossa alma.<br />
Há vários modos de ser do entusiasmo:<br />
do afeto, da admiração, o<br />
provocado por uma pessoa e também<br />
o causado por uma situação: ver, por exemplo, num<br />
vitral dois cavaleiros combatendo, armados inteiramente<br />
dos pés à cabeça.<br />
O mar, uma carga de cavalaria,<br />
aviões de combate<br />
O mar me entusiasma sistematicamente. Qualquer<br />
trecho de mar que eu vejo, dos menos poéticos e menos<br />
capazes de provocar entusiasmo, a mim me interessa<br />
profundamente; olho o mar com entusiasmo, e é um<br />
entusiasmo fixo de minha vida. Quase não tenho tempo<br />
de ir ao mar, mas às vezes eu descanso só em lembrar-<br />
-me dele. Dizendo essas rápidas palavras sobre o mar,<br />
em cuja descrição não posso me aprofundar porque a<br />
reunião iria até não sei que horas, tenho a impressão de<br />
que o auditório gostaria que eu fizesse tal descrição. Todos<br />
veem que transborda em mim o gosto por assim dizer<br />
maior do que eu, o qual pede para se expandir como<br />
a espuma da cerveja, que se espalha num bonito filão sobre<br />
a taça de porcelana.<br />
O entusiasmo é, portanto, algo mais do que uma plenitude,<br />
não é uma taça cheia, mas uma taça que transborda;<br />
é o transbordamento do nosso gosto por uma determinada<br />
coisa.<br />
Esse entusiasmo pode também ser épico, que decorre<br />
das grandes lutas e das grandes ações. E há feitios de espírito<br />
que se entusiasmam extraordinariamente por todas<br />
as formas de luta, por exemplo, uma carga de cava-<br />
18
laria, uma onda sucessiva<br />
de aviões que avançam;<br />
todas essas coisas<br />
são bonitas e dão gosto.<br />
Outra coisa bonita é o<br />
paraquedas: o indivíduo<br />
se joga de um avião, vestido<br />
com aquela roupa<br />
camuflada, maquiagem<br />
para, ao entrar no mato,<br />
não ser visto, e com uma<br />
missão a realizar. Tudo<br />
isso entusiasma.<br />
O paraquedista<br />
e o homem que<br />
faz um trabalho<br />
raciocinado<br />
Dir-se-ia que o entusiasmo é contrário à lógica,<br />
pois um homem entusiasmado não tem vontade de<br />
parar para refletir. Imaginem, por exemplo, um indivíduo<br />
que saltou de paraquedas a dois mil metros<br />
de altitude; ele desceu mil e começa a ver que está se<br />
aproximando da terra. Por outro lado, está com medo<br />
de que alguma coisa no seu paraquedas funcione mal.<br />
Agita os pés e estes lhe dão uma notícia inquietante:<br />
não tem chão em baixo. O vento sopra e está levando-o<br />
para um lugar onde não quer descer; ele não sabe<br />
nadar e pode cair em alto mar, se o vento soprar<br />
errado. E, ao mesmo tempo, está entusiasmado: o ar,<br />
o vento, a natureza toda a seus pés, ele distante de<br />
todos os homens e posto numa solidão, onde ele só é<br />
racional e, portanto, rei. Que situação bonita! É um<br />
herói, e em breve vai conseguir fazer um grande feito,<br />
pois está levando uma mensagem para um Estado<br />
Maior, e quando a tiver entregue vão felicitá-lo e ele<br />
vai ser promovido.<br />
Se nesse momento se apresentar ao paraquedista a<br />
pergunta: “Você já pensou o que significa metafisicamente<br />
estar descendo de paraquedas nessa situação?”,<br />
não seria a indagação que os presentes neste auditório<br />
gostariam de receber em tal ocasião; seria até o contrário<br />
do que apreciariam.<br />
Então, pareceria que o raciocínio, o qual leva a aprofundar<br />
as coisas pela aplicação da inteligência, é o contrário<br />
do entusiasmo. Porque este leva a pessoa a sentir<br />
intensamente a situação, deleitar-se com a sensação, e isto<br />
parece o oposto do raciocínio.<br />
De outro lado, um homem que precisa fazer um trabalho<br />
primorosamente raciocinado, não pode gostar que<br />
A alma em ordem se entusiasma<br />
pelas coisas retas<br />
Staff Sgt. Elizabeth Rissmiller<br />
estejam perto dele coisas<br />
entusiasmantes. Ele<br />
está sentado junto à sua<br />
escrivaninha, com a cabeça<br />
entre as mãos, esforçando-se<br />
para tornar<br />
seu raciocínio convincente:<br />
Tal formulação<br />
convence ou não? Tal<br />
coisa vai bem ou não? E<br />
de repente alguém toca<br />
para ele uma linda música<br />
militar... O homem,<br />
então, diz: “Para com isso,<br />
eu quero pensar, não<br />
posso me entusiasmar,<br />
preciso ter a cabeça fria<br />
para raciocinar!”<br />
Então, dir-se-ia que, falando-lhes a respeito de lógica,<br />
preguei o antientusiasmo, e tratando do assunto entusiasmo<br />
eu exaltaria o ilogismo. E seriam convidados à seguinte<br />
escolha: O que é melhor, um homem de entusiasmo,<br />
que pega fogo e faz alguma coisa, ou um indivíduo<br />
frio, calculista, mas que tem três boas razões iguais à evidência<br />
para a conclusão a que chegou, e, portanto, ninguém<br />
lhe tira aquela convicção?<br />
E se eu lhes pedisse para escolherem, não se sentiriam<br />
à vontade porque diriam que a escolha incomoda, e me<br />
perguntariam se não é possível colar uma coisa na outra.<br />
Portanto, ser um homem ao mesmo tempo de raciocínio<br />
e de entusiasmo. Por que razão o entusiasmo deve<br />
ser oposto ao raciocínio? Não há um jeito de pôr tudo na<br />
mesma linha?<br />
Afirmo que quando uma alma está em ordem — aqui<br />
está toda a questão —, ela se entusiasma pelas coisas retas,<br />
e por causa disso, refletindo depois sobre o seu entusiasmo,<br />
o raciocínio chancela: “Mereceu mesmo entusiasmar-me!”<br />
E quando ela tem o raciocínio em ordem,<br />
ela compreende o valor do entusiasmo, quando este é reto;<br />
e a alma, ao sentir-se entusiasmada, a lógica lhe diz:<br />
“Muito bem, o entusiasmo é o meu irmão!”<br />
Árvores secas<br />
Então vamos analisar o tema detidamente, para compreendermos<br />
como esses dois elementos aparentemente<br />
opostos, o entusiasmo e o raciocínio, podem conviver numa<br />
mesma alma.<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Jacqui Barker<br />
Começo por um exemplo que está ao alcance de todos os<br />
presentes neste auditório. A Rua Alagoas, onde moro, desce<br />
até o Pacaembu, e no ponto onde ela termina há uma espécie<br />
de canteiro, no qual estão plantadas algumas árvores.<br />
Habitualmente vejo ali uma árvore morta, completamente<br />
seca. Sua seiva extinguiu-se e ela está sem nenhuma<br />
folha; é um cadáver de árvore. Entretanto, quando<br />
passo em frente sinto um certo agrado de olhar para<br />
aquela árvore.<br />
Como se pode compreender que eu tenha tanto comprazimento<br />
em ver uma árvore seca e morta? Não parece<br />
ilógico? Pois o que é seco e morto deve logicamente determinar<br />
repulsa, horror.<br />
Lembro-me de ter visto nos Champs Elysées, em Paris<br />
— numa época ruim do ano, em que todas as árvores<br />
ficam secas e caem suas folhas —, ter gostado enormemente<br />
daquela galharia, e pensado: “Debaixo de certo<br />
ponto de vista, gosto mais disto do que quando estão<br />
com as folhas.” Não é uma coisa irracional apreciar mais<br />
árvores secas do que as com folhagem? Então eu deveria<br />
me corrigir a mim mesmo, porque não poderia consentir<br />
neste gosto que é ilógico.<br />
Mas percebo que é um gosto ordenado, e que há uma<br />
razão para gostar disso. E se eu descobrir esta razão, fico<br />
com o direito de apreciar árvores secas, porque é lógico;<br />
e gostar mais ainda delas do que antes. Vou dar a razão.<br />
Proporção entre galharia e tronco<br />
Toda árvore tem uma arquitetura, uma estrutura<br />
geral, constituída de dois elementos: o tronco e os<br />
galhos. Mas para que ela não seja monstruosa,<br />
o tronco frequentemente deve ser menos alto<br />
do que a galharia; em grande número de árvores,<br />
quando o tronco está pouco acima da terra<br />
já começa a deitar os galhos que sobem. Entretanto<br />
deve haver uma certa proporção entre<br />
a grossura do tronco e os galhos, de maneira<br />
a não dar a impressão de que a árvore está<br />
carregando os seus galhos quase como castigo,<br />
estertorando, como num purgatório; ela deve<br />
causar a impressão de que o tronco é poderoso,<br />
e carrega os galhos com facilidade e elegância.<br />
E que, por assim dizer, é uma delícia para<br />
o tronco o fato de se desprenderem dele aqueles<br />
galhos e formem, assim, um fabuloso candelabro<br />
vegetal.<br />
Então, a proporção entre a galharia e o tronco<br />
é um elemento fundamental da beleza da árvore.<br />
Depois de ter percebido isso, eu analiso aquela<br />
arvorezinha morta do Pacaembu e, vendo nela só<br />
o esqueleto, admiro a esplêndida proporção entre<br />
o tronco e os galhos. O que dá à árvore um vulto elegante,<br />
leve e com uma certa força. E é disto que eu, sem<br />
perceber, gostava na árvore.<br />
O meu gosto por essa árvore seca era racional, ordenado.<br />
Eu a apreciava por causa de um elemento de<br />
ordem nela existente, e que corresponde à natureza<br />
de cada ser humano o qual, quando procura ser virtuoso<br />
e católico, é ordenado, gosta do que está em<br />
ordem. De maneira que me atrevo a dizer que é o<br />
meu senso católico que, em mim, gostava dessa árvore.<br />
”Meu entusiasmo é filho da lógica”<br />
O resultado é que, estando a boa ordenação da árvore<br />
de acordo com a boa ordenação do meu ser, a lógica<br />
manda que eu goste e tenha um entusiasmo, o qual também<br />
é filho da lógica. Não é filho único da lógica, pois os<br />
sentidos entram em algo; eu precisei ver, tomar conhecimento.<br />
Mas conhecendo percebi a ordem e o bem. Percebendo<br />
a ordem e o bem, eu me entusiasmei; o meu entusiasmo<br />
é filho da lógica.<br />
Então não é verdade que qualquer entusiasmo seja<br />
inimigo da lógica. Há uma hora de sentir, e outra hora de<br />
raciocinar. Em certos campos, primeiro se sente e depois<br />
se raciocina. É o caso da árvore; vê-se a árvore diversas<br />
vezes, depois se pergunta: “Por que gostei? O que aquilo<br />
tem de apreciável?” Então vem o raciocínio e a resposta:<br />
“Entre mim e a árvore há um nexo ordenado, e a minha<br />
lógica jubila ao mesmo tempo em que os sentidos se alegram,<br />
vendo a árvore.”<br />
20
Isso que com uma arvorezinha seca num jardim é um<br />
mero comprazimento, pode ser uma deleitação muito viva,<br />
quando se tratar de algo superior.<br />
Tomei o tema “árvores” inteiramente de improviso,<br />
para exemplificar. Não julguem, portanto, que eu penso<br />
tanto em árvores. Apenas tenho uma série de recordações<br />
de árvores que estou tirando do “baú” da memória<br />
e utilizando aqui, um pouco a esmo.<br />
Palmeiras imperiais do<br />
Jardim Botânico do Rio de Janeiro<br />
Mas há uma espécie de árvore inteiramente diferente<br />
daquela do Pacaembu: palmeiras imperiais, das quais<br />
existe um renque magnífico no Jardim Botânico do Rio<br />
de Janeiro. Aquelas duas filas de palmeiras muito altas,<br />
tendo só em cima a galharia, parecem soldados apresentando<br />
armas a um rei de sonho que deve passar entre<br />
elas, e em cuja expectativa estão alinhadas para continência.<br />
Esse renque de palmeiras é muito bonito e determina<br />
em mim movimentos orientados para o entusiasmo,<br />
muito mais do que aquela arvorezinha seca do Pacaembu<br />
com a qual tenho uma simples complacência,<br />
um simples gosto; enquanto que o renque de palmeiras é<br />
grandioso e me entusiasma.<br />
Por que me entusiasma?<br />
Vou examinar — a<br />
pergunta já está mais precisa:<br />
se o meu entusiasmo<br />
é bom, aquilo deve agradar<br />
elementos de ordem<br />
que existem em mim.<br />
Aquelas palmeiras altas<br />
têm algo que se aprecia<br />
muito em colunas, e que<br />
vegetalmente possuem a<br />
beleza das coisas feitas diretamente<br />
por Deus. Uma<br />
coluna não é tão bonita<br />
quando ela é um cilindro,<br />
igual desde o chão até o<br />
teto. Por exemplo, as colunas<br />
deste auditório; não<br />
vejo nelas beleza nenhuma.<br />
Porque no chão e na<br />
parte de cima são iguais,<br />
nem têm capitel; estão encostadas<br />
no teto, aguentando<br />
um fardo; cada uma<br />
é como um carregador<br />
sem poesia, que leva um<br />
peso cansativo e feio.<br />
Palmeiras imperiais no Jardim Botânico<br />
do Rio de Janeiro, Brasil<br />
O tronco, a folhagem, as cores<br />
de uma palmeira<br />
Uma coluna é bonita quando há uma proporção entre<br />
o círculo embaixo e o círculo em cima; ela vai afinando até<br />
chegar ao cume, mas sem nenhum salto, como um taco de<br />
bilhar. E aquela coluna do tronco da palmeira, como não<br />
tem folhagem, mas apenas casca, percebe-se que ela sobe<br />
com uma espécie de facilidade, de graça. E chega, digamos,<br />
a tocar as nuvens com uma naturalidade, com uma<br />
lógica que o meu senso da ordem se encanta de ver.<br />
Uma palmeira que em cima não tem folhas é uma coisa<br />
medonha. Porque dá a impressão de um palito espetando,<br />
não tem graça. Então, depois de uma grande ascensão, muito<br />
lógica, existe a folhagem entregue à fantasia dos ventos. E<br />
é uma folhagem muito nobre, com folhas largas, e que parecem<br />
feitas para esvoaçar de todo lado, e que atestam a firmeza<br />
da árvore, porque ela não cede, e não há vento que a faça<br />
hesitar; aquele espanador de folhas se move devido aos ventos<br />
e, no meio daquela mobilidade, a palmeira é imóvel.<br />
Percebendo esse contraste, instintivamente, intuitivamente,<br />
eu gosto porque vejo que aquilo está ordenado. E<br />
a minha natureza se alegra em observá-lo. Mas, também<br />
há diferença de cores: aquele seco, estorricado, marrom<br />
muito escuro, tendente ao preto, da coluna da palmeira,<br />
chega em cima e dá numa<br />
parte verde, atestando que<br />
a árvore não está morta;<br />
sem percebermos, do chão<br />
ao longo de sua casca escura,<br />
numa ascensão espantosa,<br />
a seiva sobe e, chegando<br />
ao alto, irriga aquela parte<br />
mais delicada que brilha ao<br />
sol. É uma coisa bonita!<br />
Eurico Zimbres<br />
A sensação de ordem<br />
existente na palmeira<br />
causa entusiasmo<br />
Então, percebemos que<br />
a palmeira por vários lados<br />
satisfaz o nosso senso da<br />
ordem. Há uma bonita proporção<br />
de cor entre aquele<br />
verde claro, da parte palmito<br />
da palmeira, e a madeira<br />
escura; existe uma bonita<br />
sensação de ordem.<br />
Esta sensação de ordem<br />
encanta-me vendo a palmeira,<br />
e me dá entusiasmo.<br />
21
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Leandro S. Souza<br />
Mas há uma coisa mais sutil: a palmeira, pela sua posição,<br />
só se explica inteiramente num panorama que ela domina,<br />
ou em função do qual está numa atitude de serviço.<br />
É muito bonito ver uma palmeira no alto de um montezinho,<br />
isolada; ela cresceu meio oblíqua em relação ao<br />
solo e se agita inteira. É uma palmeira frágil que dá graça<br />
a um panorama. Mas, a palmeira durona, espetada no<br />
alto de um morro, causa susto. E posta no terreno plano<br />
ela representa alguém que está em atitude de serviço<br />
diante de outrem. Lembra um soldado em atitude de<br />
sentido, à espera do seu general, a ideia de homenagem,<br />
de disciplina, de hierarquia, de guerra; os elementos ordenados<br />
da palmeira têm qualquer coisa de militar.<br />
Analisando a palmeira e seus reflexos em mim, percebo<br />
a ordem dela. Assim, vejo que o meu entusiasmo pela<br />
palmeira é lógico; então eu digo: “Viva o meu entusiasmo,<br />
a lógica o apoia! Viva a lógica porque o meu entusiasmo<br />
se ilumina!” Assim é feita a alma do católico.<br />
Quando o católico é muito ordenado, logo nos primeiros<br />
movimentos ele se entusiasma muito. E não tem razão<br />
para temer, porque sente no fundo de si que nele é a<br />
ordem que se entusiasma sempre, e nunca a desordem. É<br />
um filho da luz. Nós todos somos ou precisamos querer<br />
ser filhos da luz, e só devemos nos entusiasmar com as<br />
coisas que nos provocam essa impressão da ordem.<br />
Fazer ”pushing ball” com a ”baixa”<br />
Mas acontece que muitas pessoas têm um temperamento<br />
cheio de calombos, cujos nervos não são perfeitamente<br />
ideais; então às vezes amanhecem na “baixa” 1 . E<br />
se formos lhes descrever uma coisa bonita, elas não gostam<br />
e, pelo contrário, estão irritadiças e se entusiasmam<br />
com brigas, e querem brigar com todo o mundo. Essas<br />
pessoas têm um entusiasmo ordenado segundo a lógica?<br />
Não. Elas precisam aprender a retificar-se.<br />
Quando um indivíduo, por exemplo, amanhece na<br />
“baixa” devo perguntar-lhe se essa “baixa” é razoável. E<br />
se ele responder:<br />
— É. O meu médico disse que eu sofro — nem sei se<br />
isso faz sentido ou se é uma palavra no ar — de “esquisitona”,<br />
e tem uma coisa qualquer que me aperta o estômago<br />
e me causa esse mal-estar.<br />
Eu lhe digo:<br />
— Então você é escravo do seu estômago, não da sua cabeça?<br />
E pretende ser um filho da luz? Oh! Se você acordou<br />
na “baixa”, trate de retificá-la. Procure ver coisas que<br />
lhe deem alegria, satisfação. Passe o dia inteiro, ainda que<br />
não esteja com vontade — não sei se os que estão neste auditório<br />
conhecem, mas havia uma espécie de jogo chamado<br />
pushing ball, que consistia em esmurrar uma bola, que logo<br />
retribuía com um golpe na pessoa —, fazendo esse esforço.<br />
Devemos fazer um pushing ball com a “baixa”, não ceder,<br />
e durante todo o tempo em que ela nos esmurra nós damos<br />
murros nela. À força de esmurrar, acaba acontecendo que a<br />
“baixa” vem menos e depois deixa de vir. Fora disso, o entusiasmo<br />
que a “baixa” poderia proporcionar é depressivo, a<br />
pessoa se irrita, fica furiosa, e briga por qualquer coisinha.<br />
Necessidade de controlar os nervos<br />
e jugular o mau humor<br />
Palmeiras próximas à Igreja de São Francisco<br />
São João del Rei, Minas Gerais (Brasil)<br />
Por exemplo, um indivíduo é corretor e precisa ter<br />
bons amigos para fazer proveitosos negócios. Ele tem um<br />
muito bom amigo que, sem querer, pisou no pé dele no<br />
local onde havia um calo, causando-lhe dor; por isso ele<br />
fica o dia inteiro com birra desse homem e perde o amigo,<br />
bem como uma série de negócios. O corretor é um tolo,<br />
e poderíamos dizer-lhe: “Domine-se, tenha entusiasmo<br />
pelo ato interno por onde você domina os seus nervos<br />
e jugula o seu mau humor!”<br />
Ele dirá:<br />
— É duro.<br />
Respondo-lhe:<br />
22
O homem só tem<br />
força quando sobre<br />
sua vontade pousa<br />
a graça de Deus,<br />
por meio da qual<br />
ele é capaz de<br />
fazer toda espécie<br />
de sacrifícios.<br />
Eric Salas<br />
Procissão de Nossa Senhora<br />
de Begoña - Bilbao, Espanha<br />
— Se um homem foge diante de uma coisa porque é<br />
dura, ele não merece o nome de homem.<br />
— Ah! mas sofro muito.<br />
— Mas você não é capaz de sofrer? E já pensou que<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para que você<br />
seja capaz de se dominar, e você não se domina?<br />
Mas alguém afirmará: “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o senhor diz todas<br />
essas coisas, que me convencem, mas não me vencem; na<br />
hora dura do sacrifício, sei que não vou ter coragem, e,<br />
depois de ouvir o senhor, saio daqui mais desanimado.”<br />
Frequência aos Sacramentos,<br />
confiança em Nossa Senhora e oração<br />
Explico-lhe: “Se você é ateu, há uma certa lógica dentro<br />
do seu péssimo ateísmo. Mas se é católico apostólico<br />
romano, deve saber que o católico recebe uma ajuda sobrenatural<br />
de Deus, que dá ao homem de vontade fraca<br />
força para se vencer.”<br />
Rogando a graça por meio de Nossa Senhora, sempre<br />
obtemos tudo o que pedimos de bom, conseguimos realmente<br />
a graça necessária para nos vencermos. É preciso<br />
ter essa convicção inteiramente, apaixonadamente, entusiasmadamente.<br />
Eu sou fraco, e se contar com as minhas<br />
meras forças não consigo nada. Esta é a doutrina católica.<br />
Se um homem de minha idade passasse a vida inteira<br />
no cumprimento perfeito dos Mandamentos porque a graça<br />
divina o apoiou, de repente afirmasse que fez isso pelas<br />
suas forças e não precisa da graça de Deus, ele pecaria<br />
no dia seguinte, se é que não fosse daqui a cinco minutos.<br />
A fonte da perseverança do homem no bem não reside<br />
principalmente na sua vontade. Esta é indispensável,<br />
mas ele só tem força quando sobre essa vontade pousa a<br />
graça de Deus; pela graça divina o homem é capaz, tem<br />
meios, forças para fazer toda espécie de sacrifícios.<br />
Então, essa coesão entre a lógica, de um lado, e o entusiasmo,<br />
do outro lado, se obtém, sobretudo, pela graça<br />
de Deus que penetra em nós e nos torna retos. Quando<br />
os nossos sentidos, nossos impulsos são bons, e queremos<br />
aquilo que é reto, pedindo a Nossa Senhora obtém-<br />
-se essa retidão. E no homem reto o entusiasmo e a lógica<br />
são irmãos.<br />
Tudo isso conflui para a frequência aos Sacramentos,<br />
a oração intensa, o desejo ardente de que Nossa Senhora<br />
nos ajude. E para uma confiança muito grande n’Ela. Rezamos<br />
para a Santíssima Virgem, mas abusamos da graça<br />
que Ela nos consegue e pecamos. Sabemos que, pedindo<br />
perdão, a Mãe de Deus perdoa sempre, e atende o nosso<br />
pedido de outras graças. Assim Ela vai sempre nos atendendo,<br />
até um certo dia em que as graças são tantas que<br />
nós nos levantamos e declaramos com alegria: “Eu agora<br />
sinto que não vou mais pecar.”<br />
Nenhum homem tem o direito de ser ilógico para cultivar<br />
o entusiasmo, nem estrangular o entusiasmo para<br />
ser lógico. O homem deve encontrar esse fio de ouro,<br />
que faz o nexo entre o entusiasmo ordenado e a lógica.<br />
Dessa forma, quanto mais entusiasmado será mais lógico,<br />
quanto mais lógico, mais entusiasmado. v<br />
1) “Baixa”: depressão, desânimo.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 24/10/1987)<br />
23
Reflexões teológicas<br />
A adoração dos Magos<br />
Galleria degli Uffizi, Florença (Itália)<br />
Meditação sobre<br />
o Natal - II<br />
Quais seriam nossas emoções se, logo após o nascimento de<br />
Jesus, entrássemos na gruta de Belém e contemplássemos a<br />
majestade, a acessibilidade e a misericórdia do Menino-Deus,<br />
bem como o ambiente que O cercava? Eis o tema do segundo<br />
estilo de meditação explanado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Passarei a fazer uma meditação inteiramente diversa<br />
da anterior 1 para, depois, efetuarmos a<br />
comparação.<br />
Suponhamos que cada um de nós tivesse a alegria de<br />
entrar na gruta de Belém e ver Nossa Senhora com São<br />
José, o Menino Jesus, os pastores, o boi e o asno. E visse<br />
também os Reis Magos — entre os quais o Rei negro Baltazar<br />
— vindos do Oriente, se aproximando com suas caravanas,<br />
seus cortejos, a estrela; adoram o Menino-Deus e<br />
Lhe oferecem ouro, incenso e mirra.<br />
Como imaginariam a cena? Sob que aspecto ela lhes<br />
causaria mais alegria na alma e por onde se sentiriam<br />
mais próximos do Divino Infante?<br />
N’Ele, poderíamos considerar, entre muitos outros<br />
pontos, a infinita grandeza, a infinita acessibilidade, e<br />
também o infinito amor.<br />
24
Infinita grandeza do Menino Jesus<br />
Quanto a sua infinita grandeza, podemos imaginar<br />
uma gruta enorme, alta, quase como uma catedral, que<br />
não tivesse evidentemente uma arquitetura definida,<br />
mas suas pedras nos fizessem pressentir vagamente as<br />
ogivas de uma catedral da futura Idade Média. O berço<br />
do Menino Jesus estaria colocado bem no ponto majestoso<br />
da encruzilhada das várias naves laterais, naturais, e<br />
uma luz celeste toda de ouro pairaria sobre Ele naquele<br />
momento.<br />
O Divino Infante, embora deitado em seu presepe e<br />
sendo uma criança, é o Rei de toda majestade e toda glória,<br />
o Criador do Céu e da Terra, Deus encarnado e feito<br />
Homem, tendo desde o primeiro instante de seu ser —<br />
portando já no ventre de Nossa Senhora —, mais grandeza,<br />
mais manifestação de força e de poder do que<br />
todos os homens que houve na Terra, incomparavelmente<br />
mais inteligente do que São Tomás de<br />
Aquino, mais poderoso do que Carlos Magno,<br />
Napoleão, Alexandre; Ele sabia todas as coisas<br />
extraordinariamente mais do que qualquer<br />
cientista moderno, e na fisionomia sempre<br />
variável do Menino Jesus, de vez em<br />
quando esta majestade feita de sabedoria,<br />
de santidade, de ciência,<br />
de poder, haveria de aparecer.<br />
Então, imaginem que encontrassem<br />
isso misteriosamente expresso<br />
na fisionomia deste Menino.<br />
Que Ele, às vezes, se movesse<br />
e no seu movimento se percebesse<br />
um rei; abrisse os olhos e o<br />
fulgor de seu olhar tivesse uma<br />
profundidade tal que se sentisse<br />
n’Ele um grande sábio; haveria<br />
uma atmosfera circundando-<br />
-O e que nimbasse de virtude todos<br />
aqueles que d’Ele se acercassem;<br />
algo puríssimo, de tal maneira<br />
que as pessoas não poderiam<br />
aproximar-se dali sem antes pedir<br />
perdão por seus pecados, mas ao<br />
mesmo tempo atraídas e incentivadas<br />
a se corrigirem de suas faltas,<br />
pela santidade que emanava<br />
daquele local.<br />
Majestade<br />
de Nossa Senhora<br />
E aos pés d’Ele Nossa Senhora,<br />
Ela também como<br />
Nossa Senhora da Estrela (por Fra Angelico)<br />
Museu de São Marcos, Florença (Itália)<br />
uma verdadeira Rainha — a Virgem Santíssima era e é<br />
Rainha —, com uma dignidade e imponência, que não<br />
precisava de roupas nobres nem de tecidos de grande<br />
qualidade para se fazer valer.<br />
Todos sabem que Santa Teresinha do Menino Jesus<br />
era tão imponente que seu pai a chamava “minha pequena<br />
rainha”. O jardineiro do Carmelo, no processo de canonização,<br />
contou uma vez que viu uma freira, que estava<br />
de costas, fazer tal coisa e era Santa Teresinha. Então<br />
o advogado do diabo perguntou: “Mas como o senhor<br />
sabia que esta freira, estando ela de costas, era Santa Teresinha?”<br />
A resposta foi: “Pela majestade da santa, porque<br />
ninguém possuía a majestade que ela teve.”<br />
Podemos imaginar Nossa Senhora majestosíssima,<br />
transcendente, puríssima, rezando para o Menino Jesus,<br />
os Anjos invisivelmente cantando, em volta, canções<br />
de glorificação, e toda a atmosfera saturada<br />
de valores tais que se diria haver, naquela pobreza<br />
e miséria, um ambiente de corte.<br />
E nós nos aproximando do presépio, sentindo<br />
a grandeza do Menino Deus e, como<br />
contrarrevolucionários que somos, amando<br />
n’Ele tudo quanto é nobre, belo,<br />
santo, intransigente e combativo;<br />
adorando aquele Menino que,<br />
ao mesmo tempo, atrai junto a<br />
Si todas as formas de grandeza<br />
que dimanam, são reflexos<br />
e uma participação na santidade<br />
d’Ele, e rechaça para longe<br />
de Si o pecado, o erro, a desordem,<br />
o caos, a Revolução, que<br />
nem sequer ousa levantar os<br />
olhos para aquela cena magnífica<br />
em que a ordem, a hierarquia,<br />
a pompa e o esplendor<br />
dominam completamente.<br />
JarektUploadBot<br />
Acessibilidade<br />
do Divino Infante<br />
Consideremos agora outro<br />
aspecto: o Menino Jesus imensamente<br />
acessível.<br />
Suponhamos que esse Rei<br />
tão cheio de majestade, em<br />
certo momento abrisse os<br />
olhos para nós e notássemos<br />
— mas cada um deve imaginar-se<br />
visto por Ele —<br />
que o olhar puríssimo, inteligentíssimo,<br />
lucidíssimo do<br />
25
Reflexões teológicas<br />
Divino Infante penetra em nossos olhos profundamente,<br />
vê o mais fundo de nossos defeitos bem como o melhor<br />
de nossas qualidades; e naquele momento toca a nossa<br />
alma, como tocou, trinta e três anos depois, a São Pedro,<br />
e nos dá uma tristeza profunda de nossos pecados.<br />
Conta o Evangelho que o olhar de Nosso Senhor para<br />
São Pedro foi tal que este se retirou e chorou amargamente.<br />
Então, imaginemos o olhar d’Ele nos dando o<br />
horror de nossos defeitos e nos mostrando seu amor às<br />
nossas qualidades. E também o seu amor à nossa condição<br />
de criatura feita por Ele; apesar de nossos defeitos,<br />
fomos criados por Ele e destinados a um grau de santidade<br />
e perfeição, que o Menino Jesus conhece e ama enquanto<br />
podendo existir em nós.<br />
De maneira que, embora pecadores, quando menos<br />
esperássemos, por um rogo amável de Nossa Senhora,<br />
Ele sorrisse para nós e, apesar de toda a sua majestade,<br />
sentíssemos as distâncias desaparecerem, o perdão<br />
que invade a nossa alma, e algo nos atraísse de<br />
tal forma que caminhássemos para junto<br />
do Menino-Deus, e Ele afetuosamente<br />
nos abraçasse e pronunciasse o nosso<br />
nome: “Fulano, Eu te quis e te quero<br />
tanto, desejo para ti tantas coisas,<br />
perdoo-te tanto, não pense<br />
mais nos teus pecados, daqui<br />
por diante pensa apenas<br />
em servir-Me. E em todas as<br />
ocasiões de tua vida, quando<br />
tiveres alguma dúvida,<br />
lembra-te dessa condescendência,<br />
dessa amabilidade,<br />
desse beneplácito e recorre<br />
a Mim por meio de minha<br />
Mãe, e Eu te atenderei, serei<br />
o teu amparo, a tua força que<br />
há de levar-te ao Céu para ali<br />
reinares ao meu lado por toda a<br />
eternidade.”<br />
Sua compaixão sem limites<br />
Imaginemos a misericórdia do Menino<br />
Jesus, olhando não só para o que há de bom e<br />
mau em nós, mas também para nossa tristeza, para a<br />
condição miserável de todo homem na Terra, para o sofrimento<br />
que cada um de nós traz em si, para o sofrimento<br />
passado e o sofrimento futuro que Ele conhece. Contemplando<br />
inclusive o risco que nossa alma corre de ir<br />
para o Inferno, para os tormentos eternos; todo homem,<br />
enquanto vive nesta terra, está exposto a ir para o Inferno.<br />
E o Divino Infante olhando para o Purgatório e os<br />
tormentos que ali nos aguardam, se não formos inteiramente<br />
fiéis. Então é um olhar de compaixão, de pena, de<br />
uma participação profunda na nossa dor; e um desejo de<br />
removê-la em toda medida que for possível, de nos dar<br />
forças para suportá-la na medida em que a dor for necessária<br />
para nos santificarmos.<br />
Então, notarmos n’Ele aquilo que consola tanto o homem,<br />
e que Jesus não teve quando chegou sua hora de sofrer.<br />
Qualquer pessoa, no momento da dor — está na natureza<br />
humana e é reto —, se consola em ter alguém que sinta<br />
pena dela, pois a compaixão divide o sofrimento. O homem<br />
é feito de tal maneira que, quando ele está alegre e<br />
comunica a sua alegria, esta se duplica, quando está triste e<br />
comunica a sua tristeza, esta se divide. Assim também, e a<br />
fortiori, passa-se conosco em relação ao Menino Jesus.<br />
Então, em todos os sofrimentos de nossa vida, quando<br />
a taça para beber for muito amarga, repetiríamos por<br />
meio de Maria Santíssima a oração de Nosso Senhor:<br />
“Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este<br />
cálice, mas faça-se a vossa vontade e não<br />
a minha.” 2 Quer dizer, pediríamos, em<br />
todos os momentos, que a dor passasse,<br />
mas se fosse a vontade d’Ele<br />
a dor viesse sobre nós. Assim, durante<br />
nossos sofrimentos, teríamos<br />
compaixão d’Ele, como se<br />
nos dissesse: “Meu filho, Eu<br />
sofro contigo. Vamos padecer<br />
juntos porque sofri por ti, e<br />
há de chegar o momento em<br />
que tu participarás eternamente<br />
da minha alegria.” E<br />
o olhar compassível de Jesus<br />
não nos abandonará um momento<br />
em nossa existência.<br />
Carlos Moya<br />
Três presépios<br />
representando cada<br />
um desses aspectos<br />
Então, ao fazermos essa meditação<br />
durante todo o tempo de Natal, ao<br />
longo das vicissitudes da existência quotidiana,<br />
devemos nos lembrar destes três pontos:<br />
a majestade infinita, a acessibilidade infinita, e<br />
a compaixão sem limites do Menino Jesus em relação a<br />
nós. E ter a recordação sensível, porque procuraríamos<br />
compor um pouco o quadro.<br />
Alguém me diria: “Mas <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o presepe não poderia<br />
ter esses três aspectos ao mesmo tempo.” Não é<br />
verdade. Em Nosso Senhor todas as perfeições, todos os<br />
estados de alma perfeitos coexistiam na sua natureza hu-<br />
26
mana em graus e modos diversos,<br />
conforme as circunstâncias<br />
da vida. Portanto, Ele era cheio<br />
de majestade, de acessibilidade<br />
e de compaixão para com os<br />
homens desde o momento em<br />
que entrou na Terra. E é natural<br />
que, apesar de ser Menino,<br />
conforme as almas que d’Ele se<br />
acercassem, ora uma qualidade,<br />
ora outra, aparecesse.<br />
Seria até muito bonito que<br />
numa igreja, em vez de um presépio,<br />
houvesse em três altares<br />
diferentes três presépios, em<br />
que as figuras e toda a ambientação<br />
representassem, em cada<br />
altar, um desses aspectos para<br />
facilitar às almas a meditação<br />
sobre esses pontos como, aliás,<br />
sobre outros que também se poderiam<br />
considerar.<br />
Como pintar o olhar<br />
do Menino-Deus?<br />
Aqui estaria um outro tipo<br />
de meditação sobre o Santo<br />
Natal. O primeiro é um estilo<br />
de meditação que chamaríamos mais teórico, mais doutrinário;<br />
o segundo seria uma recomposição mais sensível,<br />
tocando-nos mais de perto.<br />
Na segunda meditação, há lógica também, pois sem<br />
lógica não há meditação; mas a parte do embebimento<br />
da fantasia, da sensibilidade para preparar o jogo da lógica<br />
é muito grande. A primeira é muito mais seca. Aí está<br />
a diferença entre as duas escolas. A geração posterior<br />
à minha é muito apetente de embebimento e de preparação<br />
desta natureza, conforme a segunda meditação.<br />
Como eu gostaria de ter em nosso Movimento pintores<br />
ou desenhistas que soubessem, por exemplo, pintar três<br />
presépios de acordo com esta concepção, ostentando toda<br />
a grandeza, ou toda a acessibilidade, afabilidade, ou toda<br />
a compaixão de Nosso Senhor! Como seria bonito! Mas o<br />
difícil é que seria preciso saber pintar aquilo que é o centro<br />
do presépio: um Menino recém-nascido que, sem perder<br />
as características de menino, tivesse tudo isso e, sobretudo,<br />
um olhar onde essas perfeições se refletissem. Como<br />
pintar um olhar infantil capaz de dizer tudo isso? Antes<br />
de ser pintor, que psicólogo o artista precisa ser para<br />
imaginar este olhar! E, depois de imaginado, como pintar?<br />
Este seria o pintor que iniciaria nossa escola de pintura,<br />
porque tenho a impressão<br />
de que, no pintar expressões de<br />
olhar, nossa escola estaria largamente<br />
representada.<br />
”Minha alma é<br />
eminentemente<br />
inaciana”<br />
Menino Jesus (por Fra Angelico)<br />
Museu de São Marcos, Florença (Itália)<br />
Essa meditação sobre o Santo<br />
Natal conduz à seguinte convicção:<br />
convém fazer um estilo<br />
e outro, porque há diversas vias<br />
espirituais, e não devemos nos<br />
fixar só num estilo. Vale a pena<br />
alternarmos, meditando ora<br />
de um modo, ora de outro, para<br />
atender aos anseios de todas<br />
as almas.<br />
Se me perguntassem o que<br />
me impressiona mais, eu responderia<br />
que, embora tendo<br />
composto o segundo tipo, me<br />
impressiona mais o primeiro,<br />
talvez por ser mais próprio de<br />
minha geração ou do meu feitio<br />
de espírito. Aquilo que é inteiramente<br />
racional e que eu posso<br />
ver amarrado por um raciocínio<br />
inexorável, me enche e me basta. Compreendo que<br />
outros não sejam assim, a tal ponto que tomei o trabalho<br />
de compor, para uso de outros, uma meditação diferente,<br />
e dou o meu tempo por muito bem empregado.<br />
Nessa opinião transparece a seguinte posição: na Igreja<br />
há várias escolas espirituais, todas aprovadas por ela.<br />
Em geral, inauguradas e seguidas por santos, essas escolas<br />
são esplêndidas, e cada um deve seguir o que sua alma<br />
lhe pede. Minha alma é eminentemente inaciana e o<br />
sistema de Santo Inácio me encanta. O raciocínio simples,<br />
claro, límpido, que conclui e que arrasta, e a respeito<br />
do qual não há tergiversação nem sofisma, me deixa<br />
entusiasmado! Sejamos cada um como Deus o fez para<br />
a glória d’Ele.<br />
Que Nossa Senhora nos ajude para que possamos<br />
tirar proveito de qualquer dessas meditações, de maneira<br />
a compreendermos cada vez mais a Ela e ao Menino<br />
Jesus.<br />
Gustavo Kralj<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 29/12/1973)<br />
1) <strong>Revista</strong> “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”, n. 189, p. 20-25.<br />
2) Cf. Mc 14, 36.<br />
27
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. Solenidade da Santa Mãe de Deus, Maria.<br />
São José Maria Tomasi, religioso (†1713). Presbítero<br />
teatino e cardeal, dedicou quase toda sua vida à investigação<br />
e publicação dos antigos textos e documentos da sagrada<br />
Liturgia.<br />
2. Santos Basílio Magno (†379) e Gregório Nazianzeno<br />
(†c. 389),bispos e Doutores da Igreja.<br />
3. Santíssimo Nome de Jesus.<br />
São Daniel, diácono e mártir (†c. 304). Diácono da Igreja<br />
de Pádua, Itália, onde morreu martirizado durante as<br />
perseguições de Diocleciano.<br />
4. Santa Elizabeth Ana Seton,viúva (†1821). Ao ficar<br />
viúva, converteu-se à Fé Católica e fundou em Emmetsburg,<br />
Estados Unidos, a Congregação das Irmãs da Caridade<br />
de São José.<br />
5. Solenidade da Epifania do Senhor (no Brasil, transferida<br />
do dia 6).<br />
Santa Genoveva Torres Morales, virgem (†1956). Fundadora<br />
do Instituto das Irmãs do Sagrado Coração de Jesus<br />
e dos Anjos, em Saragoça,<br />
Espanha, para atender a moças e<br />
mulheres necessitadas.<br />
6. Santo André Bessete, religioso<br />
(†1937). Religioso da Congregação<br />
da Santa Cruz, em<br />
Montreal, Canadá, exerceu a<br />
função de porteiro do Colégio de<br />
Nossa Senhora das Neves e erigiu<br />
junto a ele um eminente santuário<br />
dedicado a São José.<br />
9. Santas Águeda Yi e Teresa Kim, mártires (†1840).<br />
Águeda, jovem de 16 anos, e Teresa, tia de Santo André<br />
Kim, foram presas, flageladas e decapitadas em Seul, Coreia,<br />
por defenderem a Fé Católica.<br />
10. Beato Gonçalo de Amarante,presbítero (†c. 1259).<br />
Sacerdote de Braga, Portugal, que após uma peregrinação<br />
pela Terra Santa, tornou-se dominicano e dedicou-se<br />
à pregação e oração.<br />
11. São Teodósio,monge (†529). Depois de uma longa<br />
vida eremítica, aceitou muitos discípulos e incentivou a vida<br />
comunitária em vários mosteiros que estavam sob sua<br />
autoridade, na Palestina.<br />
12. Batismo do Senhor.<br />
São Martinho da Santa Cruz,presbítero (†1203). Cônego<br />
regular em Leão, Espanha, grande estudioso e conhecedor<br />
das Sagradas Escrituras.<br />
13. Santo Hilário de Poitiers, bispo e Doutor da<br />
Igreja (†367).<br />
Beato Emílio Szramek, presbítero e mártir (†1942). Sacerdote<br />
da arquidiocese de Katowice,<br />
Polônia, foi deportado ao<br />
campo de concentração de Dachau,<br />
Alemanha, onde foi torturado<br />
até a morte.<br />
santiebeati.it<br />
14. São Félix de Nola, presbítero<br />
(†séc. III/IV). Após sofrer<br />
no cárcere atrozes tormentos,<br />
regressou a Nola, Itália, morrendo<br />
como invencível confessor<br />
da Fé.<br />
7. São Raimundo de Penyafort,<br />
presbítero (†1275).<br />
Beato Ambrósio Fernandes, <br />
mártir (†1620). Nascido em Portugal,<br />
dirigiu-se ao Oriente em<br />
busca de riquezas, mas tornou-se<br />
jesuíta e após muitos sofrimentos<br />
morreu por Cristo no cárcere<br />
em Suzuta, junto a Nagasaki,<br />
Japão.<br />
8. São Lourenço Justiniano, <br />
bispo (†1456). Ver página 30.<br />
Santo Ananias<br />
15. São Francisco Fernández<br />
de Capillas, presbítero e mártir<br />
(†1648). Sacerdote dominicano<br />
espanhol, que levou o nome de<br />
Cristo às Filipinas e depois a Fujián,<br />
China, onde foi preso e decapitado.<br />
16. Beata Joana Maria Condesa<br />
Lluch, virgem (†1916). Fundadora<br />
da Congregação das Servas<br />
da Imaculada Conceição Protetoras<br />
das Operárias, em Valên-<br />
28
––––––––––––––––– * Janeiro * ––––<br />
cia, Espanha, para ajudar às jovens<br />
operárias e meninos pobres.<br />
17. Santo Antão,abade (†356).<br />
Santa Rosalina, virgem (†1329).<br />
Filha de ilustre família francesa,<br />
tornou-se priora da Cartuxa<br />
de Celle-Rouhaud, em Provença,<br />
França, destacando-se por sua abnegação<br />
e austeridade.<br />
18. Beata Maria Teresa Fasce,<br />
abadessa (†1947). Abadessa do<br />
mosteiro agostiniano de Cássia,<br />
Itália, soube unir a ascese e a contemplação<br />
com obras de caridade<br />
com os peregrinos e indigentes.<br />
19. II Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Arsenio, bispo (†séc. X).<br />
Abraçou a vida monástica, aos 12<br />
anos. Nomeado Bispo de Corfu,<br />
Grécia, muito dedicado à sua grei e<br />
assíduo à oração noturna.<br />
20. São Fabiano,Papa e mártir (†250).<br />
São Sebastião, mártir (†séc. IV).<br />
21. Santa Inês, virgem e mártir (†séc. III/IV).<br />
Beata Josefa Maria de Santa Inês, virgem (†1696). Religiosa<br />
agostiniana descalça do convento de Benigànim, Valência,<br />
Espanha, favorecida com o dom do conselho. Faleceu<br />
no dia de sua padroeira Santa Inês.<br />
22. São Vicente,diácono e mártir (†304).<br />
Beato Guilherme José Chaminade,presbítero (†1850). Desejoso<br />
de atrair os leigos à devoção a Nossa Senhora e promover<br />
as missões, fundou o Instituto das Filhas de Maria Imaculada<br />
e a Sociedade de Maria, em Bordeaux, França.<br />
23. Santo Ildefonso, bispo (†667). Sucessor de Santo<br />
Eugênio à frente da arquidiocese de Toledo, Espanha. Autor<br />
de vários livros e textos litúrgicos. Destacou-se por sua<br />
devoção a Nossa Senhora.<br />
São Vicente<br />
santiebeati.it<br />
24. São Francisco de Sales, bispo e Doutor da Igreja<br />
(†1622). Fundou junto com Santa Joana de Chantal, a<br />
Ordem da Visitação. Através de escritos, pregações e conselhos<br />
espirituais, fez um grande<br />
apostolado. Faleceu em Lyon,<br />
França.<br />
São Timóteo Giaccardo, presbítero<br />
(†1948). Religioso da Pia Sociedade<br />
de São Paulo, que formou<br />
muitos discípulos para anunciar o<br />
Evangelho através dos meios de comunicação<br />
social.<br />
25. Conversão de São Paulo,<br />
Apóstolo.<br />
Santo Ananias. Discípulo de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, enviado<br />
a Damasco para batizar o Apóstolo<br />
São Paulo.<br />
26. III Domingo do Tempo Comum.<br />
São Timóteo e São Tito,Bispos.<br />
Santo Agostinho Erlandsön, bispo<br />
(†1188). Arcebispo de Nidaros<br />
(atual Trondheim – Noruega), defendeu<br />
contra os soberanos a Igreja<br />
que lhe foi confiada e a fortaleceu<br />
com admirável diligência.<br />
27. Santa Ângela de Mérici, virgem (†1540).<br />
São João Maria Muzei, mártir (†1887). Criado do rei de<br />
Uganda que, convertido ao cristianismo, não quis fugir à<br />
perseguição, mas declarou espontaneamente sua Fé, sendo<br />
por isso degolado.<br />
28. São Tomás de Aquino,presbítero e Doutor da Igreja<br />
(†1274).<br />
São Julião, Bispo (†c. 1207). Segundo Bispo de Cuenca,<br />
Espanha, favoreceu os pobres e obteve o sustento quotidiano<br />
trabalhando com as próprias mãos.<br />
29. Beata Boleslava Maria Lament, virgem (†1946).<br />
Fundadora da Congregação das Irmãs Missionárias da Sagrada<br />
Família, para promover a união dos cristãos, ajudar<br />
os desamparados e dar formação cristã às jovens.<br />
30. São David Galván, presbítero e mártir (†1915). Durante<br />
a perseguição mexicana, foi preso e fuzilado em<br />
Guadalajara, por defender a santidade matrimonial.<br />
31. São João Bosco, presbítero (†1888). Ver página 2.<br />
29
Hagiografia<br />
São Lourenço Justiniano:<br />
força e astúcia<br />
Devido a uma deformação da piedade católica, o demônio é sempre<br />
representado como sendo forte e astuto, e o Anjo da Guarda<br />
sorridente, amável, bonachão. Daí decorre a ideia errônea de que<br />
a pessoa boa é como o Anjo bom, sem força nem sagacidade, e a má,<br />
como o anjo mau, forte e astuto. Com base num trecho de<br />
São Lourenço, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> desfaz esse falseamento da realidade.<br />
D<br />
Em nossos dias se diria que o efeito psicológico produzido<br />
por um jovem muito piedoso é: “Eu fiquei tão coom<br />
Guéranger, em sua obra “L’Année Liturgique”,<br />
apresenta os seguintes traços biográficos<br />
de São Lourenço Justiniano 1 :<br />
Considerado o segundo Fundador<br />
de sua Ordem religiosa<br />
Lourenço nasceu em Veneza, em 1380, da família dos<br />
Giustiniani. Sua juventude foi marcada por uma grande<br />
piedade, que surpreendia e impunha aos seus próximos respeito<br />
e admiração. Aos dezenove anos ele teve uma visão<br />
da Sabedoria Eterna, que o convidava a entregar-se inteiramente<br />
a Ela.<br />
Persuadido de que a vida religiosa lhe permitiria responder<br />
plenamente ao chamado divino, ele entrou na Ordem<br />
dos Cônegos Regulares de São Jorge, na ilha de Alga, perto<br />
de Veneza. Lá ele se distinguiu por seu amor das austeridades<br />
e das humilhações; gostava de ir pedir esmolas na cidade<br />
e de encontrar, à guisa de esmola, os sarcasmos e o desprezo<br />
dos outros.<br />
Pouco depois de sua ordenação sacerdotal, foi eleito Geral<br />
de sua Ordem. Aplicou-se tão bem a reformar a Ordem<br />
que ele é considerado, a justo título, como seu segundo<br />
Fundador.<br />
Em 1433, nomeado Bispo de Veneza, tentou afastar de si<br />
esta dignidade. Mas o Papa Eugênio IV foi inflexível. Lourenço<br />
nada quis modificar no seu modo de viver, nas suas<br />
austeridades e na extensão de suas orações. Aplicou-se em<br />
pacificar as dissensões intestinas que agitavam o Estado,<br />
fundou quinze mosteiros, erigiu dez novas paróquias em<br />
sua cidade episcopal e velou pelo esplendor do culto divino.<br />
Em 1450, teve que aceitar a dignidade de Patriarca, mas<br />
não viu nisto senão uma indicação para seguir mais de perto<br />
os traços de Jesus, em sua pobreza e em seu zelo pela salvação<br />
das almas. Por isso mesmo ele é considerado justamente<br />
como o precursor da reforma eclesiástica que mais<br />
tarde São Carlos Borromeu empreenderá em Milão, depois<br />
do Concílio de Trento.<br />
Seus sermões, como seus livros de perfeição, respiram<br />
uma terna devoção para com os mistérios do Senhor, especialmente<br />
sua sagrada Paixão.<br />
Morreu no dia 9 de Janeiro de 1455; foi beatificado em<br />
1524, por Clemente VII, e canonizado em 1690, por Alexandre<br />
VIII.<br />
Sua piedade impunha respeito e admiração<br />
Notem esta formulação apresentada a respeito da piedade<br />
do santo:<br />
Sua juventude foi marcada por uma grande piedade, que<br />
causava surpresa e impunha aos seus próximos respeito e<br />
admiração.<br />
30
movido vendo esse moço tão piedoso...”<br />
Ou então: “Esse rapaz é<br />
tão piedoso! Ah, como ele deve<br />
ser misericordioso e amável!” E<br />
outras reações desse gênero. Por<br />
quê? Porque só se concebe a piedade<br />
enquanto causando ternura.<br />
Não nego que a piedade também<br />
possa causar ternura, mas<br />
colocar este sentimento como<br />
nota preponderante, parece-me<br />
um absurdo.<br />
Segundo Dom Guéranger, a<br />
piedade de São Lourenço incutia<br />
admiração e respeito. Este é um<br />
fruto essencial da verdadeira piedade.<br />
Ela pode inspirar aos outros<br />
a ternura, o embevecimento,<br />
o enlevo, mas nada vale e não<br />
será verdadeira piedade se não<br />
causar estes dois sentimentos, estas<br />
duas impressões de alma, que<br />
tudo quanto vem de Deus deve<br />
produzir: admiração e respeito.<br />
Quer dizer, incutir veneração,<br />
comunicar admiração são<br />
elementos indispensáveis à verdadeira<br />
vida espiritual. Porque<br />
Deus, sendo infinitamente santo,<br />
poderoso, grande, incute respeito e admiração.<br />
A unilateralidade com que são escritas algumas vidas<br />
dos santos deforma as almas. Imaginem uma pintura representando<br />
um santo jovem da nobreza de Veneza, rezando.<br />
Apresenta-se este jovem numa atitude capaz de<br />
incutir admiração e respeito. Para ele temos vontade de<br />
rezar.<br />
Entretanto, pinta-se um jovem com fisionomia de bobo,<br />
que não incute admiração nem respeito. Como se pode<br />
ter entusiasmo por ele? Não é possível, porque representa<br />
a imagem da falsa piedade. A verdadeira piedade<br />
incute muitos sentimentos, mas entre eles estão, necessariamente,<br />
a admiração e o respeito. Eis um ponto do<br />
qual não podemos abrir mão, nas nossas considerações<br />
hagiográficas.<br />
Reforma sua Ordem e se torna Arcebispo<br />
e Patriarca de Veneza<br />
São Lourenço Justiniano - Paróquia de São<br />
Magno, Bad Schussenried (Alemanha)<br />
AndreasPraefcke<br />
Sem dúvida, São Lourenço Justiniano é um homem<br />
completamente entregue à vida religiosa, e ao serviço da<br />
Igreja nas instituições eclesiásticas. Sua vida é bastante<br />
rica porque, muito moço, entra para uma Ordem decadente,<br />
da qual é eleito Geral, e a<br />
reforma, a ponto de ser considerado<br />
seu segundo Fundador.<br />
Essa Ordem estava tão decadente<br />
que precisou de uma reforma<br />
geral, e reconhece, de si mesma,<br />
ter renascido das mãos de um<br />
santo. Mas a decadência dessa<br />
Ordem não era tal que impedisse<br />
eleger um santo para seu Geral, e<br />
deixar-se reformar por ele.<br />
Aqui vemos a diferença dos<br />
tempos: Qual é o santo que hoje<br />
conseguiria fazer-se admitir<br />
em certas Ordens religiosas decadentes?<br />
E que, admitido, conseguiria<br />
ficar? E, permanecendo,<br />
far-se-ia eleger como Geral? E,<br />
eleito Geral, lograria reformar os<br />
outros?<br />
Chegamos a 1433. Faltam menos<br />
de cem anos para a grande explosão<br />
do protestantismo. Portanto,<br />
a Revolução, de modo tendencioso,<br />
já está lavrando na Cristandade<br />
o orgulho e a sensualidade.<br />
Isto faz com que, como uma vaga<br />
imensa, o Humanismo esteja começando<br />
a invadir até os ambientes<br />
eclesiásticos. Contudo, esse homem reforma sua Ordem e,<br />
em vez de tornar-se execrado, é nomeado Arcebispo de Veneza.<br />
Ele vai, intervém em tudo, reconcilia facções, combate<br />
a imoralidade. Quando se poderia esperar que fosse expulso,<br />
é elevado a Patriarca. Eram outros tempos...<br />
O repouso enfraquece as virtudes e a luta as fortifica.<br />
Passemos agora à leitura de uma ficha tirada dos escritos<br />
de São Lourenço Justiniano 2 .<br />
É próprio às grandes almas e aos generosos combatentes<br />
de Jesus Cristo desejar o tempo da guerra mais que o<br />
da paz, e os trabalhos mais penosos a uma perigosa ociosidade.<br />
Eles aprenderam, com efeito, que o repouso enfraquece<br />
muito as virtudes, e que a guerra as fortifica. Eles<br />
consideram também vergonhoso retirar-se quando o<br />
combate se apresenta; fugir ao choque dos atacantes, enquanto<br />
os outros enfrentam o inimigo; deixar-se vencer<br />
por uma vergonhosa pusilanimidade.<br />
Eis porque, cheios de magnanimidade, cobertos com<br />
suas armas poderosas, eles se lançam, os primeiros, ante<br />
o inimigo, e o obrigam a combater, estimando mais morrer<br />
com glória e honra do que fugir covardemente.<br />
31
Hagiografia<br />
E entre esses que combatem no estádio temporal, uns<br />
procuram vencer o inimigo pela força, outros pela astúcia.<br />
Seria enganar-se muito na arte da guerra, usar somente um<br />
desses meios. E eu penso que essa regra do combate temporal<br />
deve ser aplicada ao combate espiritual. Aquele que<br />
quer combater e destruir os inimigos de sua salvação deve<br />
ter força e fineza de espírito. Se lhe faltar uma ou outra, será<br />
facilmente vencido, porque os inimigos contra os quais<br />
lutamos possuem as duas.<br />
O Leão de Judá venceu o leão do Inferno<br />
Sobre a força do demônio diz o livro de Jó que “nada há<br />
sobre a Terra que se lhe possa comparar, porque ele foi feito<br />
para nada temer”. Por isso São Pedro o compara a um<br />
leão. Sobre sua esperteza, diz o Gênesis que a serpente era<br />
o mais astuto dos animais, e que seduziu Eva por sua fineza<br />
e artifício.<br />
Vejam, então, como a coragem é necessária e como a<br />
força é indispensável. Se quiserdes combater somente com<br />
a força, sem a prudência, vosso adversário vos enganará<br />
por seus artifícios. Se empregardes só a astúcia, a força<br />
do leão vos esmagará. Buscai, pois, uma e outra. Sede fortes<br />
contra os rugidos do leão, sede sutis e prudentes contra<br />
a malícia oculta da serpente. Quem não temerá sua força,<br />
se foi capaz de arrancar do Céu a terceira parte das estrelas?<br />
Quem não terá cuidado com sua esperteza, que expulsou<br />
nossos pais do Paraíso? Confiai, então, em pedir o socorro<br />
desse Leão saído da tribo de Judá, segundo a carne, e<br />
que venceu o leão do Inferno com sua morte e d’Ele triunfou<br />
com sua ressurreição. É Ele somente que dará a graça<br />
da força e a sagacidade da serpente, dando aos combatentes<br />
a ciência para que obtenham a vitória.<br />
O combate físico e o espiritual<br />
Esta ficha evoca vários pensamentos que se cruzam e<br />
se multiplicam. São Lourenço fala, exatamente, do perigo<br />
de que a pessoa se deixe relaxar, distender pelo repouso,<br />
e pelas glórias dentro da tranquilidade sucessiva<br />
ao combate. E dá algumas regras para o combatente nesta<br />
vida.<br />
Ele se refere a duas espécies de combate: em primeiro<br />
lugar, ao combate físico — aludindo aos antigos gladiadores<br />
que desciam à arena para lutar ––, e às regras<br />
que o presidem; depois, por analogia, o santo deduz normas<br />
que dirigem o combate espiritual, aquele que o homem<br />
deve travar contra os seus inimigos internos, ou seja,<br />
suas paixões desordenadas e a ação do demônio dentro<br />
de sua própria alma.<br />
Assim como na pugna física é necessário que o guerreiro,<br />
ora pela astúcia, ora pela força, saiba vencer as batalhas,<br />
também no terreno espiritual devemos ser astutos<br />
e fortes contra nossos adversários. E se nos faltar qualquer<br />
uma dessas duas qualidades — fortaleza ou astúcia—,<br />
perdemos nossa batalha na vida espiritual.<br />
Por outro lado, São Lourenço explica como o demônio<br />
foi altamente forte quando, com sua cauda, levou<br />
uma terça parte das estrelas do céu para o abismo, isto<br />
é, promoveu uma revolta possante na qual arrastou muitos<br />
atrás de si.<br />
Entretanto, com Adão e Eva o demônio não manifestou<br />
força, mas astúcia, arquitetando uma tentação toda<br />
cheia de lábia, de artimanhas para induzir os nossos primeiros<br />
pais ao pecado.<br />
Falseamento da espiritualidade católica<br />
Eu gostaria de fazer uma reflexão para compreendermos<br />
o rumo que certas coisas tomaram dentro do falseamento<br />
da espiritualidade católica. O demônio é forte e astuto, não<br />
por ser ruim, mas por aquilo que ele tinha de bom, por sua<br />
natureza. Portanto, antes de cair ele já possuía essa força e<br />
essa astúcia.<br />
É claro que essa astúcia adquiriu um caráter pecaminoso,<br />
mau. O demônio passou a recorrer à falsidade, tornou-se<br />
o pai da mentira. Mas sua capacidade de agir astuciosamente<br />
não aumentou com o pecado; ela lhe vem<br />
de sua natureza angélica e foi conservada, mesmo após<br />
sua queda. Contudo, ele começou a lançar mão de meios<br />
ilegítimos, os quais não teria usado se tivesse continuado<br />
um Anjo na graça de Deus.<br />
Mas daí também se tira a conclusão de que os Anjos<br />
bons, que estão na graça de Deus no Céu, também são<br />
fortes e astuciosos.<br />
Ora, as coisas tomaram um tal rumo que todas as pinturas<br />
do demônio apresentam-no como astucioso e forte.<br />
Habitualmente as representações dos Anjos não dão<br />
a ideia nem de astuciosos nem de fortes, mas apenas sorridentes,<br />
amáveis, bonachões. Dão, portanto, uma ideia<br />
deformada, porque unilateral, da natureza do Anjo.<br />
A bondade e a afabilidade são sumamente convenientes<br />
à representação de um Anjo. Naturalmente,<br />
o Anjo é assim, por exemplo, o Anjo da Guarda,<br />
que protege. O Anjo é o veículo do amor de Deus para<br />
com os homens; ele os assiste, dirige-os. Mas não é só<br />
isso. Ele é forte também. Há um coro de Anjos, chamado<br />
Potestades, que, segundo São Tomás de Aquino,<br />
têm a missão especial de derrubar todos os obstáculos<br />
que se erguem contra a vontade de Deus no universo.<br />
E não são os Anjos mais fortes nem os mais altamente<br />
colocados.<br />
O Anjo, por outro lado, é sumamente sagaz. E o nosso<br />
próprio Anjo da Guarda é sumamente diplomático.<br />
32
Quantas e quantas vezes ele nos dá bons conselhos, bons<br />
impulsos de alma ajustados exatamente ao nosso estado<br />
de espírito, com toda a inteligência e a diplomacia que se<br />
pode imaginar num espírito de uma capacidade imensamente<br />
superior à nossa!<br />
Ora, essas representações poucas vezes aparecem. De<br />
onde decorre a ideia de que a pessoa boa é como o Anjo<br />
bom, e a má, como o anjo mau. Então, se se fala num homem<br />
forte ou sagaz já se pensa num homem ruim. Quando<br />
se fala num homem bom, se pensa num homem sem<br />
força nem sagacidade.<br />
Houve tempo em que era uma ideia comum que o<br />
homem deve ser sagaz e forte. Para evitar o abuso dessa<br />
ideia, insistiu-se no outro lado: ele deve ser também<br />
bom, afável, cândido, muito leal, etc. E para fazer um<br />
contrapeso, começaram a apresentar os Anjos assim. Depois<br />
os homens começaram a amolecer e a representação<br />
dos Anjos não tomou o contrapeso dos homens.<br />
Saltar em cima do trabalho desagradável,<br />
desde que este seja necessário<br />
Outra ordem de ideias para a qual esse texto convida,<br />
e eu gostaria que tivéssemos a atenção voltada, é a seguinte:<br />
Quem verdadeiramente é lutador não espera que o<br />
inimigo venha a si. Ele se lança contra o adversário, empreende<br />
a ofensiva para derrubá-lo. É por essa forma<br />
que a força se manifesta; isso é a luta propriamente dita.<br />
Há um ditado comum, em linguagem corriqueira, mas<br />
que diz uma grande verdade: “A melhor forma de defesa<br />
é o ataque.” Quando pegamos o inimigo desprevenido,<br />
no momento em que ele não desenvolveu ainda todas as<br />
suas forças, nós podemos vencê-lo, achatá-lo. Isso é verdade<br />
não só para a luta física, mas para os esforços que o<br />
homem tem que realizar sobre si mesmo.<br />
Por exemplo, um trabalho. O melhor jeito de o realizarmos<br />
bem é não o adiar. Quando vemos que um trabalho<br />
é inevitável, devemos pular em cima dele e fazê-lo logo.<br />
Por quê? Porque não há coisa pior do que passar um<br />
dia inteiro arrastando a perspectiva de um trabalho que<br />
deve ser realizado. Não é muito melhor fazê-lo de manhã,<br />
e passar o restante do dia livre daquela assombração<br />
do trabalho?<br />
Arrastar o trabalho com preguiça, deixá-lo para amanhã,<br />
para depois de amanhã, não significa uma fraqueza<br />
de alma que vai, após cada adiamento, tornando aquele<br />
trabalho mais difícil?<br />
Quer dizer, diante das coisas difíceis dessa vida, nós<br />
quase que deveríamos fazer um calendário assim: fazer<br />
primeiro as mais desagradáveis e mais difíceis e depois as<br />
mais leves e menos desagradáveis. E deixar o prazer para<br />
o fim. Porque nada é mais agradável do que o deleite depois<br />
do dever cumprido. Nada é mais desagradável, nada<br />
inutiliza mais o prazer, do que a ideia de que, terminado<br />
aquele prazer, temos um dever árduo para cumprir.<br />
De maneira que, por assim dizer, devemos saltar em<br />
cima do trabalho desagradável, desde que este seja necessário.<br />
Ninguém é bobo de fazer trabalho desagradável<br />
e inútil. Antes de fazer algo desagradável, devemos perguntar<br />
se é mesmo necessário. Mas se for, então devemos<br />
saltar em cima e executá-lo o mais cedo e o mais depressa<br />
possível, contanto que saia bem feito.<br />
O nível da conversa está na razão<br />
inversa da vagabundagem<br />
Entre nós, às vezes, surgem queixas a respeito de<br />
conversas vulgares. Prestem atenção: gente que tem<br />
conversação vulgar é gente preguiçosa; e o que abaixa<br />
o nível da conversa é a preguiça, a perspectiva do não<br />
cumprimento do dever, que dá o horror a qualquer<br />
conversação séria. Pelo contrário, considerem um homem<br />
varonil, sobrenatural, que acaba de fazer um trabalho<br />
cumprindo o seu dever; apresenta-se uma conversa<br />
de nível alto, ele tem vontade de participar. Porque,<br />
como ele fez uma coisa mais difícil, está pronto<br />
para a menos difícil.<br />
Mas se um indivíduo está na babugem, na hora de conversar<br />
só quererá tratar de besteiras. O nível da conversa<br />
está na razão inversa da vagabundagem. Quem é aplicado<br />
e trabalha nas obras de apostolado, conversa bem,<br />
tem apetência de coisas sérias. Por isso também é bom<br />
ouvinte de reunião quem, durante o dia, trabalhou e rezou<br />
pela salvação das almas.<br />
Eis a norma que São Lourenço Justiniano nos apresenta.<br />
Assim se edifica a cidade de Nossa Senhora, onde<br />
tudo se move por amor a Ela, e todo mundo é sequioso<br />
de sacrifício, da cruz, da luta.<br />
Então, aqui está o meu conselho: façam o melhor e o<br />
mais rapidamente possível as tarefas desagradáveis e inevitáveis,<br />
saltem em cima delas, deem graças a Nossa Senhora<br />
na hora que lhes pede sacrifícios, roguem o auxílio<br />
a Ela para realizarem esses sacrifícios, e toquem a vida<br />
para diante. É por essa forma que serão, ao mesmo tempo,<br />
fortes e astutos.<br />
v<br />
(Extraído de conferências<br />
de 5/9/1966 e 13/9/1969)<br />
1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.<br />
2) Cf. L’Arbre de vie ou les douze fruits de la foi. Paris: Ambroise<br />
Bray, Libraire-éditeur, 1858. p. 310 ss.<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Timothy Ring<br />
Jacoon<br />
Tillea<br />
Duas formas<br />
Basílica de São Pedro e Catedral de<br />
completamente diferentes. Na prim<br />
criatura tenta elevar-se até o Criador;<br />
até a cr<br />
N<br />
a minha ótica de homem do século XX, com<br />
os padrões deteriorados pelos apartamentos<br />
de São Paulo, quando entrei pela primeira vez<br />
na Basílica de São Pedro, depois de vê-la pelo lado de fora,<br />
tive uma certa surpresa, julgando-a muito menor do<br />
que eu a imaginava.<br />
Isto se deve ao fato de que, na construção da Basílica,<br />
Michelangelo teve o cuidado de ocultar, tanto quanto<br />
possível, o tamanho do Cupolone. Naquele tempo, onde<br />
o materialismo ainda não tinha feito tantos progressos,<br />
era bonito realçar a proporção e esconder o tamanho.<br />
Porque o tamanho é matéria, e a proporção é espírito.<br />
O espírito deve dominar sobre a matéria.<br />
Houve uma tal preocupação em disfarçar a altura dele,<br />
que eu não notei ser o duomo de São Pedro tão alto<br />
quanto o Martinelli, o maior edifício de São Paulo daqueles<br />
tempos.<br />
Porém, a Basílica de São Pedro é toda influenciada<br />
pela Renascença. E, portanto, do ponto de vista artístico,<br />
ela não é senão uma reapresentação de elementos de be-<br />
34
Atoma<br />
Elisa.rolle<br />
Pline<br />
de grandeza<br />
Notre-Dame de Paris, duas igrejas<br />
eira, com um esforço de piedade, a<br />
na segunda, é o Criador quem desce<br />
iatura.<br />
leza clássica, apresentados pelas gerações que vieram depois<br />
do Renascimento.<br />
Ora, isso não tem, absolutamente, o espírito católico<br />
da Idade Média.<br />
Nota-se, claramente, que a Basílica de São Pedro é uma<br />
igreja muito bem composta, cuja pompa está à altura do<br />
que os homens podem dispor para venerar a Sé de Pedro e<br />
ser, nesse sentido, a primeira igreja da Cristandade. Mas, de<br />
certo modo, o homem não tem ali a sensação de proximidade<br />
com Deus que há na Catedral de Notre-Dame, em Paris.<br />
Eu traduziria essa impressão nos seguintes termos: na<br />
Basílica de São Pedro eu vejo uma tentativa do homem<br />
elevar-se até Deus, num esforço de piedade; na Catedral<br />
de Notre-Dame, é Deus quem desce até os homens. Por<br />
causa disso, a impressão de proximidade de Deus lá é<br />
muito maior do que no próprio Vaticano. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 18/5/1976)<br />
35
Virgem e Mãe<br />
N<br />
ão há título maior do que o de Mãe de<br />
a graça divina para isso, a Igreja preza tanto esta<br />
virtude que quis conjugar esses dois títulos em<br />
Maria Santíssima.<br />
Deus. Não é dado a uma criatura ser elevada<br />
a honra maior do que esta. A Igreja, não satisfeita<br />
de chamar Nossa Senhora de Mãe de Deus,<br />
chama-A também de Virgem; e com frequência Ela<br />
é tratada de Virgem-Mãe, nos livros de piedade.<br />
O próprio Jesus, nosso Senhor, ama tanto a<br />
virgindade que não Se contentou em adornar<br />
sua Mãe com todos os dons, preservando-A do<br />
pecado original, mas quis que Ela fosse virgem<br />
Embora a virgindade esteja ao alcance de<br />
qualquer pessoa que queira ser pura e conte com<br />
antes, durante e depois do parto, realizando para<br />
isso um milagre estupendo!<br />
(Extraído de conferência de 22/5/1990)<br />
Sérgio Hollmann