Publicação Mensal Ano XV - Nº 168 Março de 2012
Os frutos da retidão
Increpado pelo Profeta
Natã, David reconhece
sua culpa - Catedral de
Vigevano, Pavia (Itália).
Feliz o homem a quem o Senhor não olha mais como sendo
culpado e em cuja alma não há falsidade! Eu confessei
afinal meu pecado e minha falta vos fiz conhecer. Disse:
“Eu irei confessar meu pecado!” E perdoastes, Senhor, minha
falta. Regozijai-vos, ó justos, em Deus, e no Senhor exultai de
alegria! Corações retos, cantai jubilosos!
(Cfr. Sl 31. )
Sumário
Publicação Mensal Ano XV - Nº 168 Março de 2012
Ano XV - Nº 168 Março de 2012
Os frutos da retidão
Na capa, Dr. Plinio
durante uma entrevista
concedida à BBC de
Londres, em 8/6/1993.
Foto: M. Shinoda.
As matérias extraídas
de exposições verbais de Dr. Plinio
— designadas por “conferências” —
são adaptadas para a linguagem
escrita, sem revisão do autor
Dr. Plinio
Revista mensal de cultura católica, de
propriedade da Editora Retornarei Ltda.
CNPJ - 02.389.379/0001-07
INSC. - 115.227.674.110
Diretor:
Antonio Augusto Lisbôa Miranda
Editorial
4 Retidão, limpeza e paisagens alpinas
Datas na vida de um cruzado
5 Março de 1913
Partida para a Itália
Hagiografia
6 São Leandro, Bispo de Sevilha
Conselho Consultivo:
Antonio Rodrigues Ferreira
Carlos Augusto G. Picanço
Jorge Eduardo G. Koury
Redação e Administração:
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02461-010 S. Paulo - SP
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Impressão e acabamento:
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.
Rua Barão do Serro Largo, 296
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Tel: (11) 2606-2409
Calendário dos Santos
10 Santos de Março
Dr. Plinio comenta...
12 Um reto caminho para a santidade…
As metáforas de Dr. Plinio
18 Retidão: limpa como uma paisagem alpina!
Eco fidelíssimo da Igreja
20 O caminho da dor - I
Preços da
assinatura anual
Comum .............. R$ 107,00
Colaborador .......... R$ 150,00
Propulsor ............. R$ 350,00
Grande Propulsor ...... R$ 550,00
Exemplar avulso ....... R$ 14,00
Serviço de Atendimento
ao Assinante
Tel./Fax: (11) 2236-1027
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
26 O mais belo mar! - II
Luzes da Civilização Cristã
30 A civilização da admiração
Última página
36 Oração da alma reta
3
Editorial
Retidão, limpeza
e paisagens alpinas
Q
uando Dr. Plinio era muito menino, encantava-lhe sentir a limpeza dos lençóis que, no começo
de cada semana, encontrava estendidos de maneira ordenada e convidativa sobre
sua cama. Ademais, no dia em que ficava pronta a roupa lavada, agradava-lhe visitar o cômodo
para onde era trazida, a fim de observar o brilho da limpeza. Isto lhe marcara tanto a infância
que, até o fim da vida, lembrar-se-ia do armário alto, de mogno bem torneado, onde era colocada essa
roupa, muito bem passada e arranjada pela cuidadosa lavadeira.
— Que importância pode ter uma recordação de infância tão corriqueira na vida de um homem da
estatura de Dr. Plinio? — poderá pensar alguém. — Tem-se a impressão de que puerilidades dessas
não merecem constar na biografia de um homem adulto.
Uma objeção desse tipo demonstraria falta de profundidade da parte de quem a formulasse. Com
efeito, a atitude do pequeno Plinio diante da roupa limpa não constituía um mero capricho infantil,
mas era uma plataforma para altos voos espirituais. Pequenas circunstâncias e fatos da vida estavam,
para ele, carregados de simbologia.
Desse modo, ele correlacionava a limpeza da roupa com a limpeza de alma; para ele, a roupa limpa
estava como que nimbada de pureza. Na mesma linha, sentir os carinhos castos da fronha a lhe roçar
no rosto, cheirar o odor do anil que naquele tempo se usava para acentuar a alvura da roupa, revolver-se
entre os lençóis frescos de sua cama — tudo isso lhe recordava o movimentar de uma consciência
livre de sentimentos de culpa; no caso concreto, de alguém inundado de felicidade por se sentir
um bom menino. Percebia uma inteira consonância entre a pureza da roupa de cama e a pureza de
sua alma, num tipo de relacionamento que, em linguagem filosófica, São Tomás de Aquino chama de
conhecimento por conaturalidade.
Passado o tempo da infância, Dr. Plinio desenvolveria sempre mais seu pendor para fazer correlações
quando tratava de explicar todo tipo de assunto, utilizando seu agudo senso das reversibilidades.
Esse era, aliás, um dos ingredientes para tornar atrativas e densas suas conferências, aulas e conversas,
nunca limitadas apenas a considerações abstratas, a meros jogos silogísticos, mas sempre coladas
na realidade e repletas de lições, como, aliás, é fácil comprovar a cada número da revista “Dr.
Plinio”.
No exemplar que vem a lume este mês, podemos ver como ele, ao tratar da retidão — qualidade
de alma própria de quem deseja trilhar o caminho da santidade —, relaciona-a com a limpeza, e esta,
por sua vez, lhe fará recordar as paisagens alpinas.
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
4
Datas na vida de um cruzado
Março de 1913
Partida para a Itália
Acometida por penosa enfermidade, em
virtude da formação de cálculos na visícula
biliar, Dona Lucilia viu-se obrigada
a partir para a Europa a fim de ser operada
pelo médico particular do Kaiser, Dr. August Karl
Bier. Entre os que a acompanhavam não estavam
incluídos apenas seu esposo e filhos, mas também
irmãos, cunhados, sobrinhos, e sua mãe.
Antes de retornar ao Brasil, como ponto de
honra para todo católico, figurava ainda nos horizontes
da família a passagem por Roma e a esperança
de um encontro com o Sumo Pontífice.
Assim, o jovem Plinio partiu da Gare de Lyon,
Paris, em companhia de sua mãe num trem com
destino a Gênova.
“Mamãe me contava que quando saímos da
capital francesa, rumo à Itália, o trem atravessava
os bairros e ela ia sentada, chorando, pois
sentia que nunca mais voltaria a Paris. Isso dá
uma ideia de quanto ela admirava a ‘Cidade-
-Luz’.
“Chegamos a Gênova. Lembro-me de nosso
hotel e das conversas na família a respeito do
cemitério dessa cidade, o qual é muito famoso.
Creio que fomos visitá-lo, mas dele nada me recordo.
“Entretanto, aconteceu um episódio muito
corriqueiro nessa cidade: minha irmã sofreu
uma dor de dentes e fomos ao dentista com ela.
Guardo lembrança do consultório, muito simples,
sem nada digno de nota.
“A impressão mais forte que tive na Itália foi
causada pelo extraordinário sabor do macarrão
que comi no hotel. Uns regatoni deliciosos!
Lembro-me da Fräulein Mathilde ordenando:
“— Du must dieser Nudeln essen! [Você tem
de comer esse macarrão!]
“Eu impliquei com aquele alimento de formato
singular, mas como ela obrigou, comi. Entretanto,
quando o pus na boca, achei-o fenomenal!
Até hoje me recordo do gosto que tive, sobretudo
pela manteiga derretida que vinha em
cima... E exclamei:
“— Oooh!
“Não conhecia ainda a palavra ‘arquetípico’,
mas fiz uma reflexão: ‘Este é o macarrão dos macarrões!
E qualquer macarrão que se preze tem
de se parecer com este ou não serve para nada...’.
“O embaixador brasileiro na Santa Sé, um
gaúcho chamado Bruno Chaves, era muito amigo
de um dos meus tios e havia convidado vovó
e todos nós para a audiência geral numa sala
do Vaticano; mas, nessa época, grassava uma
epidemia de gripe muito forte na Cidade Eterna
e mamãe temia que Rosée e eu fôssemos atingidos.
Por outro lado, estando ela ainda convalescente,
os familiares tiveram receio de continuar
a viagem. Além do mais, o Pontífice estava doente
e não dava audiência nesses dias. Decidiram,
então, partir logo para o Brasil.”
(Extraído da obra “Notas Autobiográficas”
de Plinio Corrêa de Oliveira)
5
Hagiografia
Catedral de Sevilha,
Espanha; na página
da direita, imagem de
São Leandro venerada
na mesma Catedral.
Fotos: C. Galvez; S. Hollmann.
6
São Leandro, Bispo
de Sevilha
Sem o auxílio da graça, o homem é incapaz de obter êxito em seu
apostolado; porém, amparado por ela, consegue o inimaginável. Disto
nos dá um belo exemplo São Leandro de Sevilha, o qual extirpou a
heresia que havia quase dois séculos grassava na Espanha.
Os grandes movimentos da História, em geral,
são impulsionados por homens a quem Deus
concede uma grandiosa missão, comunicando-lhes
seu espírito e sua força. Um destes homens foi
São Leandro de Sevilha. Convertendo os godos e salvando
uma nação inteira do jugo dos arianos, ele bem
pode ser considerado um dos fundadores da Idade Média.
Acompanhemos com especial veneração sua ficha
biográfica 1 :
São Leandro nasceu em Cartagena, Espanha. Seus
pais pertenciam à alta nobreza, e sua família estava repleta
de santos. Um de seus irmãos, Santo Isidoro, sucedeu-o
no trono episcopal de Sevilha; o outro, São Fulgêncio,
foi Bispo de Cartagena. Sua irmã, Santa Florentina,
tornou-se religiosa.
Quando era jovem ainda, São Leandro retirou-se para
um mosteiro, tornando-se perfeito modelo de ciência e
piedade. Seus méritos o levaram à Sé Episcopal de Sevilha,
onde não diminuíram em nada as austeridades que
praticava.
Quando Leandro foi nomeado bispo, parte do território
espanhol estava dominada pelos visigodos arianos havia
cento e setenta anos. Entregando-se imediatamente ao
combate da heresia, o novo Bispo rezava e implorava o
auxílio de Deus. O sucesso coroou seu zelo, e em pouco
tempo a heresia já contava com menos adeptos.
Entretanto, Leovigildo, então rei dos visigodos, e também
ariano, irritado com a atividade de São Leandro, e
principalmente com a conversão de seu filho primogênito,
condenou o santo ao exílio e o filho à morte.
7
Hagiografia
Seu segundo filho, Recaredo, que vindo a ser um fervoroso
católico, ao herdar o trono conseguiu a conversão de
todos os seus súditos.
São Leandro dedicou-se a manter o fervor dos fiéis e foi
a alma de dois grandes concílios: o de Sevilha e o de Toledo,
os quais condenaram o arianismo.
Homem de ação, Leandro a todos inspirava o amor à
prece, especialmente aos religiosos. Escreveu instruções admiráveis
à sua irmã sobre o exercício da oração e o desprezo
do mundo. Reformou a liturgia na Espanha.
Afligido por numerosas enfermidades, o apóstolo dos visigodos
faleceu em 596.
A ação do Espírito Santo e a
pujança da santidade
A ficha é riquíssima de aspectos passíveis de comentário.
O primeiro deles é o florescimento de santos numa
mesma família da alta nobreza espanhola: Santo Isidoro
de Sevilha — um dos maiores santos da história da Espanha
—, São Fulgêncio, Santa Florentina e São Leandro.
Vemos que beleza há na conjunção de tantos santos
numa mesma estirpe. Com isso, Deus faz sentir a importância
do fenômeno “estirpe” na formação dos santos e
na realização dos planos da Providência.
Pelo apostolado de São Leandro
começa a história católica da Espanha
E
m 567 subiu ao trono de Toledo um homem de grande
energia: Leovigildo. Tratava-se de um soberano
faustoso, que em matéria de religião mantinha-se ariano
fanático.
No ano de 580, Leovigildo, ingenuamente, convida os
seus súditos católicos a aderir à fé ariana, e enfeita a sua
proposta com tantas promessas vantajosas e aparentemente
substanciais que alguns se deixam iludir. Mas esta
política encontrou pela frente a clarividência de um
monge notável: São Leandro, o futuro Arcebispo de Sevilha.
Sob a influência de São Leandro, Hermenegildo, filho
primogênito de Rei, abjurara o arianismo, o que lhe valeu
as maiores violências por parte de seu pai. Mas, num
abrir e fechar de olhos, agrupou-se em torno de Hermenegildo
um verdadeiro partido, constituído por todos os
católicos que estavam cansados das perseguições arianas,
pelos Bispos e, sobretudo, por São Leandro. Não demorou
a formar-se uma autêntica coligação contra Leovigildo.
O Rei intimou o filho a regressar à fé ariana e, perante
a sua recusa, rebentou a guerra.
Refugiado na Andaluzia, o jovem chefe católico organiza
a resistência, enquanto São Leandro embarca para
o Oriente a fim de pedir o auxílio do Imperador. Mas
Hermenegildo, embora plenamente consciente do direito
que lhe assiste, sofre por ter de lutar contra o próprio
pai. Então, a pedido de seu irmão Recaredo, aceita encontrar-se
com o Rei para entrar em negociações. Leovigildo
abraça-o e declara que está tudo perdoado. Mas, de
repente, a um sinal do Rei, os guardas prendem o Príncipe,
despojam-no das suas vestes e lançam-no na masmorra.
Começa então uma “paixão” digna dos antigos mártires.
Em vão, enviam ao Príncipe bispos e teólogos arianos
para convencê-lo a voltar ao credo de seu pai; nada
o faz ceder. Durante longos meses sofre o cativeiro, os
maus tratos e — ainda mais — a privação da Sagrada Eucaristia.
Por fim, louco de cólera, Leovigildo dá a ordem
fatal para decapitar Hermenegildo na prisão.
Mas é verdadeiramente o caso de repetir a célebre frase
de Tertuliano: “O sangue dos mártires é semente de
cristãos”. Não se passara ainda um ano da morte de Santo
Hermenegildo, e já em maio de 586 Leovigildo morria
no seu palácio de Toledo, sucedendo-lhe o seu filho Recaredo.
O novo Rei deu uma reviravolta completa em toda a
política: os Bispos católicos foram chamados do exílio e
São Leandro, nomeado Arcebispo de Sevilha, foi recebido
na corte com as mais delicadas atenções. Começava a
história católica da Espanha.
(Rops, Daniel. A Igreja dos tempos bárbaros.
Cap. IV. São Paulo: Quadrante, 1991. p. 211-212.)
8
Por outro lado, observamos a pujança
de santidade existente naquela época.
Trata-se de um dos mais belos fenômenos
da História, onde inúmeros santos
inauguraram o Reino de Nosso Senhor
Jesus Cristo durante a Idade Média;
fenômeno não atribuível a nenhum
homem, a nenhuma Ordem religiosa,
mas diretamente oriundo da ação do Espírito
Santo.
De fato, a não ser por um verdadeiro
sopro universal do Divino Espírito Santo,
não seria possível o surgimento de tantas
almas santas ao mesmo tempo.
Em pleno domínio
dos bárbaros arianos…
Ao ser eleito Bispo de Sevilha, São
Leandro encontrou-se diante do seguinte
problema: havia cento e setenta anos,
bárbaros hereges exerciam uma função
dominadora na Espanha.
Ao contrário do que muitos pensam,
a maior parte dos bárbaros não era pagã,
mas sim ariana. Quando invadiram o
Império Romano, muitas tribos bárbaras
já haviam sido visitadas, em suas respectivas
regiões, por um Bispo ariano chamado
Úlfilas 2 , o qual as perverteu para
o arianismo.
Desta maneira, enquanto descendentes
dos antigos cidadãos do Império Romano,
os católicos eram os vencidos, os pobres,
estavam por baixo e gemiam sob o jugo
dos arianos, os quais, por sua vez, constituíam
o povo novo, forte e vencedor.
…a Providência
suscita São Leandro de Sevilha
São Leandro recebeu, então, da parte de Deus, a missão
de derrubar o domínio ariano. De que maneira ele o fez?
Em primeiro lugar, chorando diante de Deus e pedindo,
por meio de Nossa Senhora, os auxílios necessários
para a tarefa que deveria realizar de modo admirável.
Cônscio da incapacidade humana perante as tarefas
apostólicas, São Leandro sabia que o homem não é senão
um instrumento de Deus e de Nossa Senhora, os verdadeiros
realizadores do apostolado. Assim, as conversões
deram-se em número colossal e o poder ariano foi
diminuindo graças às suas pregações.
São Leandro, Bispo -
Museu da Catedral de
Sevilha, Espanha.
Aspectos fugazes, porém importantes, se desvendam
na vida de São Leandro, uma das maiores figuras da hagiografia
e da história espanhola.
v
(Extraído de conferências de 26/2/1964 e 27/2/1967)
1) Butler, Alban. Lives of the Saints - With Reflections for
Every Day in the Year.
2) Educado no Catolicismo, Úlfilas aderiu ao arianismo por
ocasião de uma viagem a Constantinopla, onde Eusébio o
sagrou bispo. Tendo voltado para o grêmio dos godos, dedicou-se
à conversão de seus irmãos de raça à fé ariana.
9
C
alendário
dos Santos – ––––––
1. Santa Inês Cao Kuiying, Mártir (†1856). Após a morte
do marido, dedicou-se ao ensino da Doutrina Católica,
por mandato do Bispo, em Xilinxian, China. Por esse motivo
foi presa e torturada até a morte.
Santo Albino, Bispo de Angers, França (†496-550).
2. Beato Carlos, o Bom, Mártir (†1127). Foi Príncipe da
Dinamarca, Conde de Flandres e de Amiens. Por defender
a justiça e dos pobres, o assassinaram enquanto rezava
diante de um altar de Nossa Senhora.
3. Santa Catarina Drexel, Virgem e Fundadora (†1955).
Fundou a Congregação das Irmãs do Santíssimo Sacramento,
na Filadélfia, Estados Unidos, e utilizou com generosidade
os bens de sua herança para formar os nativos.
4. II Domingo da Quaresma.
Beata Plácida Viel, Virgem (†1877). Dirigiu a Congregação
das Escolas Cristãs da Misericórdia, na Normandia,
França. Sucedeu a Santa Maria Madalena Postel no cargo
de Superiora Geral por 30 anos.
5. Santo Adriano de Cesareia,
Mártir (†309). Em Cesareia, na
Palestina, durante a perseguição
do Imperador Diocleciano, foi
morto a espada.
6. Santo Olegário, Bispo de
Tarragona e Barcelona, na Espanha
(1059-1137).
7. Beato Leônidas Fëdorov,
Bispo e Mártir (†1935). Nascido
em São Petersburgo (Rússia),
de família greco-sismática,
converteu-se ao Catolicismo. Foi
nomeado Exarca Apostólico dos
católicos russos de rito bizantino,
sendo depois enviado aos
campos de Kirov, onde foi martirizado.
8. São Pôncio de Cartago, Diácono
(†séc. III). Foi diácono de
São Cipriano, acompanhando-o
no exílio até sua morte, deixando
um valioso volume sobre sua vida
e seu martírio.
Fotos: T. Ring.
São José - Catedral de Assunção, Paraguai.
9. São Domingos Sávio, Confessor (†Riva de Chieri,
Itália, 1857). Aluno e filho espiritual de São João Bosco,
morreu com apenas 15 anos de idade. Seu lema de vida era
“antes morrer que pecar”. É um dos patronos da juventude
católica.
10. São Macário, Bispo de Jerusalém, contemporâneo
da Imperatriz Santa Helena. Construiu a Igreja do Santo
Sepulcro (†335).
São Simplício, Papa (†483). Governou a Igreja no tempo
da invasão dos bárbaros à Itália. Nesta época confortou
os aflitos, encorajou a unidade da Igreja e lutou contra a
heresia monofisista.
11. III Domingo da Quaresma.
Beato João Kearney, Presbítero e Mártir (†1653). Franciscano
irlandês, foi condenado à morte em Londres por
exercer o ministério sacerdotal, mas conseguiu fugir. No
governo de Oliver Cromwell foi novamente preso e enforcado.
12. São Rodrigo de Córdoba,
Mártir (†857).
13. Santa Catarina da Pérsia,
Mártir (†559). Recebeu a coroa
do martírio no tempo de Cosroes
I, rei dos persas, após ser
açoitada.
São Leandro de Sevilha, Bispo
(† cerca de 600). Ver página
6.
14. Beato Jacó Cusmano,
Presbítero e Fundador (†1888).
Fundou o Instituto de Missionários
Servos e Servas dos Pobres,
na Itália. Destacou-se por
sua caridade com os enfermos,
abandonados e carentes.
15. Santa Luísa de Marillac,
Fundadora, junto com São Vicente
de Paula, das Filhas da
Caridade (Vicentinas) (1591-
1660).
16. Santo Heriberto de Colônia,
Bispo (†1021). Chanceler
10
––––––––––––––––– * Março * ––––
do Imperador Oton III, da Alemanha,
serviu também o Imperador
Santo Henrique. Foi Arcebispo de
Colônia e fundador da abadia beneditina
de Deutz.
17. São João Sarkander, Presbítero
e Mártir (†1620). Jesuíta,
foi pároco de Holesov, na Morávia
(República Tcheca). Por negar-
-se a revelar um segredo de confissão,
foi submetido ao suplício da
roda, falecendo um mês mais tarde
na prisão.
18. IV Domingo da Quaresma.
Santo Alessandro de Cesareia,
Bispo e Mártir (†cerca de 250).
Indo da Capadócia a Jerusalém,
aceitou ser Bispo da Cidade Santa,
onde fundou uma preciosa biblioteca
e abriu uma escola. Foi
martirizado em Cesareia com
avançada idade.
19. Solenidade de São José, Esposo
de Maria Santíssima e Pai legal
do Menino Jesus.
20. Beato Francisco de Jesús
María José Palau y Quer, Presbítero (†1872). Religioso espanhol
da Ordem dos Carmelitas Descalços. Em seu ministério
sofreu graves perseguições e, acusado falsamente,
foi relegado à ilha de Ibiza, abandonado por todos. Foi favorecido
com dons e visões extraordinárias.
21. São Lupicino, Abade (†480). Junto com seu irmão
São Romano, deu impulso à vida monástica no Jura francês
e fundou um convento de religiosas, em Lyon, França,
dirigido por sua irmã.
22. São Basílio de Ancira, Presbítero e Mártir (†362).
Formado pelo Bispo São Marcelo, não cessou de exortar o
povo da Galícia a permanecer fiel à Fé Católica. Resistiu
energicamente aos arianos até ser martirizado pelo Imperador
Juliano.
23. São Turíbio de Mongrovejo, Arcebispo de Lima, Peru
(1538-1606). Pertenceu à Ordem Dominicana.
São Turíbio de Mongrovejo -
Catedral de Lima, Peru.
Beata Anunciata Colcchetti,
Virgem (†1882). Em Cemmo, Itália,
governou o Instituto das Irmãs
de Santa Doroteia com fortaleza
e humildade, falecendo aos
82 anos.
24. Beato João do Báculo, Monge
e Presbítero (†1290). Havendo
terminado seus estudos em Fabriano,
Itália, seguiu São Silvestre, abade,
em uma vida monástica segundo
as regras beneditinas.
25. V Domingo da Quaresma.
Anunciação do Anjo e Encarnação
do Verbo.
26. São Ludgero de Münster,
Bispo (†809). Discípulo de Alcuíno,
pregou o Evangelho na Frísia,
Dinamarca e Saxônia, estabelecendo
a sede episcopal em Münster,
Alemanha, e fundando vários mosteiros,
convertidos em centros de
propagação da Fé.
27. São Ruperto, Bispo e Confessor
(†708). Pregou o Evangelho
no vale do Danúbio. Foi o
fundador da cidade de Salzburg, na Áustria, e seu primeiro
bispo.
28. Santo Estevão Harding, Abade (†1134). Junto com
São Roberto de Molesmes, foi fundador da Ordem Cisterciense.
Recebeu São Bernardo de Claraval com mais 30
companheiros e fundou 12 mosteiros, que uniu com o vínculo
da Carta da Caridade, sem discórdias e com fidelidade
à regra.
29. São Ludolfo, Bispo e Mártir (séc. XIII).
30. São Júlio Álvarez Mendoza, Presbítero e Mártir
(†1927). Durante a perseguição contra a Religião Católica
em Guadalajara, México, testemunhou com seu
sangue sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo e
sua Igreja.
31. São Benjamin, Diácono e Mártir (†421).
11
Dr. Plinio comenta...
Um reto caminho
Fotos: T. Ring; G. Kralj; S. Hollmann; M. Shinoda.
para a santidade…
A retidão está no âmago de todas as outras virtudes; sem ela,
pequenos defeitos tornam-se monstros gigantescos.
P
ara entendermos o que é a retidão, comecemos
tratando a respeito do contrário dela: a falsidade.
A falsidade do homem para consigo mesmo,
para com os outros e para com Deus, de si, é repelente.
Por falta de retidão, um pequeno problema
pode tornar-se gigante
Quando uma alma recebe graças de Nossa Senhora,
ela é muitas vezes tocada tão a fundo que o demônio fica
impossibilitado de agir sobre ela. Quando este percebe
tal impossibilidade, ele propõe, então, a falta de retidão.
Quer dizer, um compromisso, um arranjo, um meio-
-termo, em função do qual a alma, sem abandonar aquilo
que amou, passa a amar aquilo que abandonou. Não há
aí um jogo de palavras; vou dar um exemplo, para que o
tema seja bem entendido.
Uma pessoa tem um problema que não quer ver nem
explicitar para si mesma; e isto lhe dá um misto de prazer
e sofrimento, no qual ela se deixa refocilar, pelo gosto de
ter uma encrenca, pela satisfação da coisa mal explicada
dentro da alma. E, por falta de retidão, o micróbio que
ela possui na própria alma se transforma numa cobra, a
qual pode vir a ser uma sucuri. Ao cabo de um, dois, cinco
anos ela está numa crise, e numa crise enorme. Qual
foi a origem dessa crise?
Quem desvia os passos do caminho reto
é levado para onde não quer ir…
O ponto inicial foi um problema para o qual a pessoa
não quis abrir os olhos; a respeito do qual ela não quis
abrir-se para alguém, nem ouvir um conselho ou receber
uma refutação. Ela desviou seus passos do caminho reto,
o qual seria o seguinte:
Primeiro, reconhecer: “Tal ponto constitui em mim
uma dificuldade.” Segundo: “Não posso continuar assim.
Tenho que me abrir com alguém, e rezar a Nossa Senhora
para ver claro.” Terceiro: “Ainda que eu não veja claro,
minha fidelidade em nada se abala, porque quanto mais
demorar, tanto mais claramente eu verei um dia. Debaixo
deste cupim colocado no chão, onde eu não consigo ver
nada, um sol está nascendo para me iluminar no futuro.”
Mas se a pessoa sai da verdadeira via, ela começa a
andar no oblíquo, e do oblíquo ela derrapa para longe.
Se o demônio a tivesse tentado num ponto onde ela adere
muito, a pessoa teria rejeitado; entretanto, ele a tenta
num ponto pequeno e inicia-se assim o caminho oblíquo.
Não é o caminho para baixo, direto para o inferno, mas
oblíquo intencionalmente: cada passo a afasta mais um
pouco; ao cabo de algum tempo, a pessoa foi levada longe,
aonde não queria. Por que ela foi levada longe? Porque
lhe faltou a retidão.
Assim somos nós com quase todos os nossos defeitos.
Para dizer pouco, não gostamos de olhá-los de frente e,
quando os analisamos, só reconhecemos os que saltam aos
olhos e não podem ser negados. Entretanto, não abrimos
inteiramente o mapa de nossa mentalidade; não temos a
coragem de nos censurar de frente e totalmente, procurando
as agravantes, ponto por ponto, implacavelmente.
A retidão de uma alma
que reconheceu suas faltas
Um famoso escritor francês do século XIX, Louis Veuillot,
escreveu um livro com o título “Le parfum de Rome
— O perfume de Roma”. Referia-se à Roma pré-garibaldina,
anterior aos Saboias; a Roma magnífica do tempo
em que os Papas eram reis da Cidade Eterna e de uma
província vizinha que formavam os Estados Pontifícios.
Conta Veuillot que, em Roma, ele visitou uma velha
basílica a qual o encantou; percorreu-a por dentro e por
fora. Passando detrás do templo, numa pedra que fazia
parte do fundamento de seu muro externo, ele notou que
alguma coisa estava escrita. Então ele se agachou para
olhar e verificou que estava escrito o seguinte: “No dia
12
Nossa Senhora
das Graças - São
Paulo, Brasil.
13
Dr. Plinio comenta...
tal de tal ano pequei! Meu Deus, tenha pena de mim! No
dia tal pequei de novo! Meu Deus, tenha pena de mim!
Dia tal não pequei, graças a Deus!” Assim, caindo em
pecado ou se mantendo em estado de graça, essa alma
tinha escrito o seu diário espiritual. E, um belo dia, ela
anotou o seguinte: “Meu Deus, há tanto tempo — digamos
seis meses, um ano — eu não peco! Gloria in excelsis
Deo — Glória a Deus no mais alto dos Céus!”
Louis Veuillot fez, a este propósito, um comentário
magnífico, dizendo que se ele tivesse encontrado sangue
de mártires naquela pedra, não a teria venerado mais do
que o fez ao ver esse itinerário que exprimia o sacrifício
de uma alma para se libertar de um pecado e readquirir
o estado de graça.
Humildade e admiração: frutos da retidão
Isso nos mostra exatamente o que é a retidão. Trata-se
de uma alma que o tempo inteiro analisou-se como era e
se increpou como merecia. E teve humildade: “Como eu
sou torto e errado! Minha Mãe, que estais no mais alto
dos Céus, bem junto a Deus, como Vós sois diferente de
mim!” Nesse abismo de diferença, ergue-se uma coluna
de incenso, de encanto e de admiração.
Quando sabemos increpar os nossos próprios defeitos,
nos tornamos capazes de admirar. Porque, quando vemos
o mal que há em nós, podemos admirar o bem que não
há em nós; assim nós temos admiração sem inveja. Então,
do fundo da nossa miséria, sobe aquela coluna de incenso:
“Minha Mãe, eu me dobro diante de Vós, não só por
execração aos meus defeitos, mas por um corolário necessário
dessa execração: a admiração de vossas qualidades.”
Mas quando uma pessoa não tem a coragem de olhar
de frente para seu próprio defeito, ela não é capaz de admirar.
E o defeito pelo qual não se olha bem a própria
alma chama-se falta de retidão. A virtude pela qual nós
nos vemos como somos, e admiramos quem não é como
nós, chama-se retidão.
A retidão do Imaculado Coração de Maria
A retidão é a integridade por onde a alma realiza tudo
quanto deve, e como deve, sem delongas, sem tapeação,
sem protelação; e o faz total e inteiramente, ainda que,
devido à fraqueza humana, caindo, mas pedindo perdão
e se levantando, dizendo a verdade para si mesma. Desta
virtude da retidão nascem as famílias de alma retas,
das quais surgem as grandes correntes de retidão dentro
da História; tudo isso é um reflexo do Sapiencial e Imaculado
Coração de Maria, eu diria, do Retíssimo Coração
de Maria.
Alguém perguntará: “Mas haverá um símbolo que fale
da retidão do Imaculado Coração de Maria?” Sim. É
o Coração da Virgem transpassado por sete espadas, representando
suas sete dores, que poderiam ser chamadas
as sete retidões.
Quando sabemos increpar
os nossos próprios defeitos,
nos tornamos capazes de
admirar. Porque, quando
vemos o mal que há em
nós, podemos admirar o
bem que não há em nós.
Dr. Plinio durante uma
entrevista concedida à BBC
de Londres, em 8/6/1993.
14
Sete é um número simbólico na Escritura, que indica
totalidade. “As Sete Dores de Nossa Senhora” simbolizam
as principais, não as únicas.
Assim também podemos dizer que cada espada retilínea
foi uma posição firme e reta que Ela tomou diante
de tudo. De todas as suas “retilinidades” veio toda a sua
dor. E toda a sua dor Lhe veio porque tinha retidão. Maria
Santíssima olhou tudo de frente, sofreu e foi até o fim!
Para sermos retos, não devemos olhar
para nossas qualidades
O que se passa com os nossos defeitos que não queremos
ver de frente, ocorre também com os nossos sofrimentos.
Poucas pessoas têm a coragem de pôr diante de si a
ideia seguinte: a vida é um vale de lágrimas, para usar
uma expressão mais rigorosa, um campo de batalha. Portanto,
só vive uma vida digna de ser vivida quem luta
contra o mal, a favor do bem, e se expõe a todos os sofrimentos
inerentes à luta! E, então, observa as coisas como
o guerreiro dirige seu olhar para o adversário: olha de
frente e desfere o golpe.
Outra condição para possuir a virtude da retidão é
não olhar para as próprias qualidades. Olhando-as, a
pessoa as perde. O melhor meio de perder uma qualidade
é olhar para ela. O melhor meio de perder um defeito
é olhar para ele.
Por falta de retidão, as pessoas
formam uma ideia falsa a seu próprio respeito
A maior parte das pessoas tem preguiça de pensar, e,
por causa disso, não prestam real atenção em si mesmas.
Fazem, então, uma análise incompleta de si. E a análise
incompleta de si própria tem dois aspectos: a pessoa não
olha inteiramente seus defeitos e, por causa disso, cai
num outro erro, também por falta de retidão: ela começa
a imaginar que tem qualidades que não possui. Porque
quem não quer ver os defeitos que tem, imagina possuir
qualidades que não tem. É forçoso.
A partir desse momento, ela forma uma ideia falsa a
seu próprio respeito. Formando uma ideia falsa de sua
pessoa, segue um itinerário errado na vida. Quem, por
exemplo, está andando de bicicleta e imagina-se num automóvel,
não pode chegar ao termo da viagem. Quem
tem automóvel e pensa que este é um tanque de guerra,
dirige-o de tal maneira que ele se espandonga inteiramente.
Nós somos o veículo de nós mesmos ao longo da
vida, e se cada um não sabe que tipo de veículo é, como
pode bem dirigir-se a si próprio, de maneira a chegar até
ao fim da vida?
Imaculado Coração de Maria - Catedral de Barcelona, Espanha.
As frustrações de quem vive um sonho
Por causa disso o indivíduo cai num erro pior do que
os outros: começa a viver uma vida que não era para ele.
Então dá tudo errado. O indivíduo sonha ter uma vida
que não é para ele; e vive a vida que ele não sonhou, porque
nessa situação ninguém realiza o próprio sonho. Nota
que está tudo torto dentro de si, porque percebe que
ele é outro. E tem frustrações horrorosas.
Lembro-me de um velho senhor que conheci, o qual
era muito distinto de maneiras e agradável de trato. Eu
o vi, num dia de calor, sentado junto a uma mesa, com
o aspecto mais emburrado e desagradado que possa haver.
De vez em quando, ele retirava seu relógio do bolso,
o olhava e o guardava novamente. Eu francamente fiquei
com medo de que ele quisesse se suicidar. Então, com o
desejo de ser-lhe útil e para aliviar um pouco sua vida,
me aproximei dele e perguntei:
— O senhor precisaria de alguma coisa?
Ele levantou a cabeça e me disse:
— Você não sabe o que é a vida.
15
Dr. Plinio comenta...
Eu era muito mais moço que ele; tinha
uns vinte e dois anos.
— Você pensa que sabe o que é a
vida, mas você não sabe. Cada vez
que eu tiro o relógio, não consigo ver
o quadrante dele, porque aos meus
olhos se apresenta a figura de algo de
irreal que sonhei. E quando eu vou verificar
a hora, consulto as velhas reminiscências
dos meus sonhos que não se
realizaram, e por causa disso me desespero
dessa maneira.
Achei aquilo uma coisa terrível. Era
o horror da falta de retidão.
Duas reações diante
de tal problema
Diante do que estou dizendo, alguém
poderia ter a seguinte reação:
“Isto mexe tanto com os fundos de
minha moleza e do meu amor-próprio,
que eu não tenho nenhuma coragem
de fazer o que Dr. Plinio está
recomendando. Portanto, eu ouço
o que ele diz, não contesto, mas, sobretudo,
não adiro; e saio daqui como
entrei.”
Essa pessoa, máxime depois do
que estou explicando, compreende que se pede pouco
para ela. É que ela acuse a si mesma, eventualmente em
Confissão — mas não se trata aqui de questão de Confissão
—, acuse a si mesma o defeito que vê, com todas
as agravantes. Não estou pedindo que ela olhe desde
logo até o fundo de sua alma, mas observe o que está
ao alcance de seu olhar, e o descreva para si mesma
com clareza. De camada em camada, de defeito em defeito
ela chegará até a profundidade e acabará vendo-
-se totalmente.
A Providência se serve de modos variados para fazer
cessar os nossos defeitos. Às vezes, eles cessam como não
imaginávamos. Desde que peçamos, conseguimos, por
assim dizer, o absurdo. E se não corrigimos os nossos defeitos
é porque, no fundo, não temos retidão.
Para reparar seus pecados,
Santo Agostinho escreve as “Confissões”
Sagração Episcopal de Santo
Agostinho - Metropolitan
Museum of Art, Nova York.
Em suas “Confissões”, Santo Agostinho narra que,
em certa ocasião, estava sozinho e angustiado. Ele era
gnóstico, corrupto, tinha um filho ilegítimo. Era, portanto,
herege e impuro. De repente, ele ouve uma voz interior
que lhe diz: “Tolle lege! tolle lege!
— Toma e lê! Toma e lê!” Era a voz
de Deus mandando que ele lesse, se
não me engano, um livro da Escritura.
Ele faz a leitura e encontra um trecho
que resolvia o seu problema. A partir
daquele momento ele se converteu, e
depois se tornou o grande Doutor da
Igreja.
Esse Doutor da Igreja, para castigar-se
dos pecados que cometeu, escreveu
essa biografia à qual deu o título
de “Confissões”, para se confessar a
si próprio diante do mundo inteiro pelos
seus defeitos. E a morte dele foi a
mais bela morte de penitente, que se
possa imaginar. Elevado a Bispo da cidade
de Hipona, ele foi um luminar na
Igreja Católica.
Hipona, situada no Norte da África,
era uma cidade de cultura e língua
romanas, que estava cercada pelos
vândalos, os quais vieram da Germânia,
atravessaram a França, a Espanha
e desceram pela África, e sitiaram várias
cidades que encontravam pelo caminho.
Hipona ia ser tomada por eles,
e Santo Agostinho, moribundo, provavelmente
já com a vista enfraquecida,
mandou que os Salmos Penitenciais fossem escritos numa
parede diante do seu leito, em letras bem grandes,
para ele poder ler. E ele, então, no fim de sua vida, lia os
Salmos pedindo perdão, para ser recebido por Nossa Senhora.
Foi uma alma que com muita retidão e lealdade se
examinou a si mesma, e confiou na misericórdia de Maria
Santíssima. A essa alma as portas do Céu se abriram
e ele entrou pelo eixo reto que conduz a Deus. Por quê?
Porque ele tinha sido reto durante a vida.
A alma reta que comparece diante de Deus
Linda frase a respeito da retidão é a de São Paulo:
“Bonum certamen certavi cursum consummavi fidem servavi
— Combati o bom combate, terminei a minha carreira,
guardei a Fé” (2 Tm 4, 7). Não pode haver coisa
mais bonita do que um homem olhar para o decorrer
de sua vida e dizer isto. Em latim, ao pé da letra,
“bonum certamen certavi” não quer dizer “eu travei um
bom combate”, mas “combati todo o bom combate que
eu tinha que combater”. “Cursum consummavi” significa
“percorri todo caminho longo e difícil que eu tinha
16
Nossa Senhora recebeu em
suas mãos o cadáver d’Aquele
que é a própria Retidão, o
fruto do consentimento que
Ela havia dado. Através da
morte Ele nos deu a vida; era
a vitória esplendorosa dentro
do esmagamento completo.
À direita, Santo Cristo da Misericórdia -
Paróquia Santa Cruz, Sevilha (Espanha).
que percorrer”; ou seja, “fui reto”. Combatendo, combateu
tudo. Tendo que percorrer o caminho, percorreu-
-o inteiro. E com a calma, a paz de espírito dos retos, o
Apóstolo se voltava para Deus e dizia: “Resta-me agora
receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz,
me dará naquele dia” (2 Tm 4, 8). E o recebeu! Esse é o
modo de expirar da alma reta. Ou é na penitência confiante
de Santo Agostinho, ou nessa quase respeitosa
cobrança de cheque de São Paulo: “Eu paguei,
meu Deus! Chegou a hora dos vossos
juros! Eu entro na eternidade.” É
uma beleza!
Não se sabe qual é a mais bonita das
duas formas de morte reta.
Nossa Senhora,
exemplo de retidão
São Paulo - Real Alcázar
de Sevilha, Espanha.
Consideremos também
a retidão de Nossa Senhora,
pura criatura concebida
sem pecado original! Qual foi
o primeiro momento em que Maria
Santíssima soube que Jesus seria
crucificado? Ela certamente o
conheceu pelas Escrituras, porque
possuía uma visão, um conhecimento
lucidíssimo da Bíblia. E, como
Esposa do Espírito Santo, Ela não se tornou Mestra
infalível, mas era pessoalmente infalível, não caia
mais em erro.
Ela acompanhava cada passo da vida de Jesus, ciente
de todos os horrores que iriam acontecer até o momento
da morte d’Ele na Cruz, em que o Padre Eterno pediu-Lhe,
como Mãe e Senhora do Filho, que Ela consentisse
na morte d’Ele. E Ela, no meio das agonias de Jesus,
disse mais uma vez: “Faça-se n’Ele segundo a vossa
palavra!” Quer dizer, Ela levou retilineamente o sacrifício
até o fim.
Depois Nossa Senhora recebeu em suas mãos o cadáver
d’Aquele que é a própria Retidão, o fruto do consentimento
que Ela havia dado. Através da morte Ele nos
deu a vida; era a vitória esplendorosa dentro do esmagamento
completo.
Podemos, então, perceber e amar o pulchrum da retidão;
e compreender como se consegue obtê-la. Dirijamos
nossas orações desta noite a Nossa Senhora, pedindo
que Ela nos obtenha a virtude da retidão. v
(Extraído de conferência
de 18/11/1978)
17
Metáforas de Dr. Plinio
Retidão: limpa como
uma paisagem alpina!
J. Johnston
18
H
oje, indo para uma das sedes de nosso Movimento,
vi ao longe uma pessoa sentada num
caminhão, a qual estava com uma roupa de
uma cor tão pouco cuidada que fiquei espantado.
Na realidade, seu traje era um pano imundo. Não
sei há quanto tempo a pessoa não o lavava; e ela parecia
sentir-se, dentro daquela sujeira, perfeitamente bem.
Veio-me então à cabeça o seguinte pensamento: “Se esse
homem lavasse sua roupa, ela ainda seria aproveitável?”
E imaginei o aguaceiro imundo que sairia dela. Depois
pensei com os meus botões: “Se fosse lavada uma vez,
ter-se-ia que passar para outra pia, porque a primeira deveria
ser lavada só porque nela foi lavada aquela roupa.
Mas, se, de tanto lavar, o traje acabasse ficando inteiramente
limpo, eu me pergunto se aquela pessoa, vestindo-
-o, não sentiria um bem-estar diferente desse bem-estar
de deboche, de sujeira e de desordem que ela está sentindo
agora.” E cheguei à conclusão: sentiria.
Depois veio ao meu espírito esta ideia: “Assim é a alma
que chegou a se lavar inteira, porque viu totalmente
a sua sujeira e não se contentou enquanto não se lavou
por completo.” A alma, quando se lava a si própria e tem
a sua túnica limpa, sente um bem-estar que nenhuma outra
forma de conforto dá. Por causa disso, se um homem
nesta Terra quer a verdadeira felicidade, deve ir à busca
da retidão. Porque não há nada comparável ao bem-estar
interior que a retidão proporciona.
Portanto, se alguém quer levar uma vida agradável e
depois ir para Céu, seja reto! Vai ser duro, mas magnífico,
porque ele se sentirá mais ou menos como quem escalou
montanhas vertiginosas e vê depois panoramas extraordinários.
Embaixo pode haver até poeira levantada
pelo vento, mas na altura em que ele está o pó não chega;
tudo ali está limpo.
Ainda há pouco eu estava vendo uma paisagem alpina.
Que limpeza! A alma de um santo seria dessa maneira.
É esta felicidade que cada um deveria desejar para si.
(Extraído de conferência de 18/11/1978)
Alpes Berneses, Suiça.
19
Eco fidelíssimo da Igreja
Fotos: G. Kralj; S. Miyasaki; M. Shinoda; F. Boulay.
A caminho do Calvário,
Jesus cai com a Cruz às
costas - Sevilha, Espanha.
20
O caminho da dor - I
A trajetória de um homem que ao longo de sua vida procura santificarse
é repleta de sofrimentos. Quem, à semelhança de Nosso Senhor,
abraça com amor e resignação as cruzes que lhe advêm adquire
têmpera moral, corrige-se de seus defeitos e chega à glória eterna.
Quais são as dores que uma pessoa precisa sofrer
ao longo da vida?
A Providência permite que alguém, em determinado
momento, sofra dores extraordinárias. Por exemplo,
ser caluniado injustamente e, por causa disso, passar
anos mal visto por todos aqueles a quem mais se admira.
Sacerdote caluniado por jansenistas
São Luís Grignion de Montfort, em uma de suas
obras, menciona um padre, grande devoto de Nossa Senhora
— para mim isso tem um luzimento parecido com
o de uma canonização; ser elogiado por São Luís Grignion,
enquanto grande devoto de Maria, é o auge dos auges.
Esse homem, que era muito bom padre, estava certo
dia na sacristia para atender o público, quando lá entrou
um dos meninos que serviam à igreja, o qual mexeu numa
coisa qualquer, saiu correndo e dirigiu-se a uma rua
ou praça, situada junto ao templo, gritando uma calúnia
medonha, dizendo que o sacerdote tinha querido atentar
contra a pureza dele.
Bastou esse menino, sem outras testemunhas, gritar
na via pública tal calúnia, que se produziu na cidade uma
emoção extraordinária. Embora esse padre fosse de vida
muito digna, todos acreditaram na calúnia. O Bispo
o privou dos cargos eclesiásticos, e o sacerdote, que possuía
alguma coisinha para subsistir, durante dez anos viveu
no horror e na rejeição de todo mundo. Dez anos se
passaram, mas podia-se temer que isso durasse uma vida
inteira...
Determinado dia, o Bispo se apresenta e lhe diz amavelmente:
“Meu padre, faz favor, venha cá.” Ele se aproximou
para beijar o anel do Bispo, o qual o abraçou. Vieram
também outras pessoas as quais contaram que aque-
le menino, que se tornara moço, havia morrido. E, antes
de falecer, diante de testemunhas, declarou que ele tinha
feito aquela calúnia, pago por uma corrente teológica, na
aparência católica, chamada jansenista, existente naquele
local e que, aliás, tinha se espalhado como uma lepra
por toda a Europa. Para difamar esse padre, que criticava
muito aquela corrente, um dos seus chefes deu dinheiro
ao menino.
Creio que a corrente interessada nisso — é opinião
minha — mandou colocar gente próximo à igreja naquela
hora, para acreditar imediatamente: “Oh! que horror!
Mas imagine...”, e assim dar corpo à calúnia, a qual se difundiu
como um mar sobre a cidade. E somente quando
a Providência dispôs que esse menino, depois moço,
mal à morte, dissesse a verdade — ele sabia que não podia
ir para o Céu se não se retificasse, morreria em estado
de pecado mortal e, com o inferno diante de si, acabou
confessando —, o padre foi reabilitado. Mas foram
dez anos terríveis.
Então, sobre um homem que levava sua vida normal
de padre, com os sacrifícios inerentes à vida de sacerdote,
de repente caiu como que um raio e estraçalhou-o durante
algum tempo.
Madre Mariana de Jesus Torres
padeceu tormentos do inferno
Creio que já narrei aqui a história da Madre Mariana
de Jesus Torres, religiosa diante da qual se deu o milagre
primeiro de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em
Quito, no Equador. Tendo sido eleita abadessa do seu
convento, ela começou a governar com muita bondade
— era uma pessoa de virtudes eminentes; espero que
seja canonizada. Havia ali algumas freiras novas, que
eram descendentes de índios. Como manda a Igreja,
21
Eco fidelíssimo da Igreja
com toda a sabedoria e razão, não fazer segregação racial,
essas filhas ou netas de índios foram recebidas no
convento.
Entretanto, uma delas, que tinha vontade de ser
abadessa, tramou a destituição de Madre Mariana de
Jesus Torres e a substituição por ela mesma, criando
um choque entre as freiras índias e as freiras espanholas
ou descendentes de espanhóis. Houve então uma
divisão entre as religiosas, e afinal de contas tornou-
-se abadessa essa revoltosa, ou uma freira dependente
da revoltosa. E a primeira coisa que fez foi mandar
prender Madre Mariana de Jesus Torres na prisão do
convento, porque naquele tempo os conventos tinham
cárceres. E Madre Mariana ficou muito tempo presa,
injustamente.
Durante esse período, vivendo a pão e água, com toda
a serenidade, ela rezava pela alma de sua perseguidora.
E a Providência deu-lhe a entender que essa freira
era tão ruim, estava tão comprometida que só havia um
jeito de salvá-la: Madre Mariana de Jesus Torres deveria
oferecer-se para, em espírito, passar cinco anos sofrendo,
inclusive fisicamente, as chamas infernais. Uma coisa
horrorosa!
Ela contou depois que, às vezes, durante esse tempo,
pensava estar condenada de fato; mas ao mesmo tempo
tinha a ideia um tanto contraditória de que ela sofria isto
para salvar a alma da outra. Ela então dizia: “Se eu estou
condenada, que minha condenação sirva pelo menos para
salvar minha inimiga. Considero meu sofrimento por
bem empregado.” É belíssimo!
Durante esses cinco anos, Madre Mariana sofreu barbaramente.
Terminado o prazo, foi libertada, saiu do inferno,
voltou a paz para sua alma e ela foi reeleita abadessa.
A freira revoltosa adoeceu, e Madre Mariana tratou-
-a com a maior bondade possível, de maneira que aquela
freira acabou reconhecendo que tinha andado mal, pediu
perdão e faleceu. E Madre Mariana de Jesus Torres
recebeu a revelação de que a alma dessa freira foi para o
purgatório, onde deveria ficar por um prazo longuíssimo,
se não me engano, até o fim do mundo. Uma coisa de assustar!
Assim ela salvou essa alma.
Foi um sofrimento que a Providência pediu a Madre
Mariana e ela aguentou.
Médico famoso que
ficou cego repentinamente
Lembro-me de um médico de São Paulo, que era famoso
e rico. Ele estava assistindo a corridas de cavalos;
pôs o binóculo e começou a acompanhar o percurso dos
equinos na pista. Em certo momento, não viu mais nada.
Achou esquisito, tirou o binóculo e nada enxergava. Ficou
cego de repente, devido a um deslocamento de retina.
Como era muito rico, ele contratou o melhor oculista
de São Paulo para ir com ele à Europa — os grandes
centros médicos, naquele tempo, eram exclusivamente
os europeus; a América do Norte ainda tinha se destacado
muito menos –, a fim de consultar os maiores oculistas.
Para abreviar, não tinha mais solução; ele continuou
cego e morreu vinte anos depois.
A vida de um verdadeiro católico
é repleta de sofrimentos
Nossa Senhora do
Bom Sucesso - São
Paulo, Brasil.
Mas não é propriamente desses sofrimentos que vou
tratar. Isso é fácil compreender; são episódios que ocorrem
na vida de uma pessoa.
O problema é diferente: todo homem, mesmo que não
lhe aconteçam coisas dessas, deve sofrer muito na vida.
O curso comum da existência de um homem verdadeira-
22
É através dos
sofrimentos que um
homem autenticamente
católico conquistará
verdadeira têmpera
moral, corrigirá seus
defeitos e atingirá
a santidade.
Dr. Plinio durante uma
conferência, em julho de 1991.
mente católico, apostólico, romano, praticante, é cheio
de sofrimento, primeiro ponto.
Segundo ponto: com esse sofrimento o homem atinge
a têmpera moral que deve possuir. Terceiro: ele se corrige
dos seus defeitos. Quarto: com isto pode chegar até a
santidade.
De maneira que essas grandes tragédias, esses grandes
sofrimentos, com frequência acontecem na vida dos santos.
Um teólogo do século XIX fazia uma afirmação interessante:
“Dai-me um frade que cumpre simplesmente
a regra de sua Ordem e eu vos darei um santo.” Como?
Sofrendo coisas extraordinárias? Não. Aguentando o duro
da vida, como Deus quer.
Como é esse duro da vida? Como os presentes neste
auditório estão mais próximos do começo da vida do
que do fim, e as suas memórias só versam sobre esse início,
falemos dele.
Uma criança desobedece a seus pais...
Desde pequena, a criança começa a ser partilhada entre
dois impulsos contrários. Por um lado, ela quer muito
bem a seus pais, gosta de ser acariciada por eles, etc.
Mas, de outro lado, os progenitores lhe dão ordens: não
faça tal coisa, faça tal outra.
No momento em que os pais lhe dão uma ordem, põe-
-se para ela um problema: “Se você quer realmente bem
a seu pai e sua mãe, não fará o que eles estão proibindo;
se fizer, vão ficar tristes. Mas ninguém proíbe uma pessoa
de fazer algo que não seja gostoso. Porque, se não é
gostoso, ela não faz, e se faz é porque acha gostoso. Você
recebeu uma proibição... Como é isso?” É um não gostoso
que se põe no caminho da criança. Então vem a questão
da escolha.
Imaginemos o seguinte:
O pai ou a mãe diz à criança: “Somente suba na cadeira,
para pegar o brinquedo que está em cima do armário,
se houver uma pessoa mais velha para ajudá-la. Do
contrário, não dou licença”. É-lhe explicada a razão evidente:
se subir sozinha, terá que fazer certo esforço para
alcançar o objeto, digamos um boneco, poderá cair e se
machucar. A criança mais ou menos entende isso.
Seus pais saem de casa, a criança fica só e sente o
desejo de apanhar o boneco para brincar com ele. Surge,
então, em sua cabeça uma porção de pensamentos:
“Meus pais não estão aqui; quando voltarem vão me
ver brincar com o boneco... Mas eles não mais se lembrarão
se o boneco estava em cima ou embaixo. Subo
na cadeira, pego o boneco e depois coloco a cadeira no
lugar em que estava; posso passar um bom tempo brincando
com o boneco, porque eles me disseram que eu
ficaria trancado neste quarto umas duas horas, até que
voltassem”.
23
Eco fidelíssimo da Igreja
Em certo momento, a vontade de brincar com o boneco
é tão grande que a criança empurra a cadeira, sobe
e pega o boneco; e na hora de descer da cadeira,
com o boneco nas mãos, a cadeira cambaleia, a criança
tem um susto enorme, quase cai, mas dá um jeito e
se equilibra.
...e vêm à sua mente algumas questões...
Ela começa a brincar e, depois do primeiro momento,
vem à sua mente uma questão: “Eu deveria ter feito
o que fiz?”
E uma reflexão desagradável: “Mamãe, chegando, ao ver
que estou com o boneco aqui, é capaz de lembrar-se que
ele estava em cima do armário, e notará minha desobediência.
Quem sabe se seria melhor, para evitar o castigo, eu desobedecer
uma segunda vez, subir na cadeira novamente e
pôr o boneco lá em cima? Já andei mal uma vez... Quando
faltar mais ou menos meia hora para meus pais voltarem,
colocarei o boneco no lugar em que estava.”
Mas o pensamento continua: “Agora que você andou
mal, aguente. Brinque com o boneco e quando eles chegarem
você dirá: ‘Olha, me perdoem, eu peguei o boneco.’
Eles vão se zangar com você, será uma coisa desagradável.”
A criança cessa de brincar e diz a si mesma: “Por que
pensar nisso tudo? Falta uma hora e meia para eles voltarem.
Quando faltar quinze minutos, vou resolver esse
problema. Agora vou brincar.”
Ficam, então, na cabeça da criança três convites. Primeiro:
agir bem, quer dizer, contar para os pais o que ela
fez; segundo: agir mal, desobedecer mais uma vez e colocar
o boneco em cima do armário; terceiro: não pensar
no problema, a não ser no último momento, e brincar, ou
seja, gozar a vida.
É possível que, conforme a psicologia da criança, esse
problema do boneco estrague a tarde dela. Ela pode ainda
pensar: “Seria melhor eu não ter desobedecido. Nunca
mais vou desobedecer.” Mas depois lhe ocorre esta
ideia: “Mas a vida fica tão cacete se eu nunca mais desobedecer
que, de vez em quando, desobedecerei.”
...cuja solução significa
um programa para sua vida
Conforme a decisão dessa criança, que pode ter quatro
ou cinco anos de idade, ela traçou um programa para
sua própria vida: Ela escolheu o prazer ou a dor.
Digamos que a criança desobedeça e coloque o boneco
novamente em cima do armário; os pais regressam, nada
percebem e encontram a criança alegre, a mãe trouxe-lhe
um docinho, e o pai, uma revista para ela ver. Agradam a
criança e a vida continua.
Mais tarde a criança pensa: “Valeu bem a pena enganá-los.
Fiz o que eu não devia, ganhei presentes e passei
uma tarde gostosa. Em alguns casos, talvez minha atitude
dê errado, mas tantas vezes dará certo que vou fazer
assim.”
E pode começar a existir uma dobra no espírito da
criança, devido à qual vai ficando cada vez mais difícil
para ela andar direito, e mais fácil andar mal. Ela vai inventando
jeitos, habilidades para desobedecer, ideias novas,
outras travessuras para fazer coisas mais gostosas;
quer dizer, desobediências ainda maiores, por onde, praticando
uma falta venial, pecado de criança, ela compra
um prazer. E essa dobra vai se marcando cada vez mais.
A grande batalha pela castidade
Imaginemos dois tipos de crianças. Uma, que sempre
pratica o bem e nunca desobedece aos pais. Outra, fazendo
sempre o mal e desobedecendo de duas maneiras:
ou pensando: “Eu quero fazer o mal”, ou não pensando,
mas no fundo praticando o mal.
Elas chegam aos dez anos de idade, mais ou menos,
quando começa a crise da puberdade e se apresenta a primeira
tentação contra a pureza. Qual das duas crianças está
preparada para travar a grande batalha pela castidade?
A criança da travessura, que seguiu a escola do prazer?
Ou a séria, que pensa nas coisas retamente, ama a verdade?
Esta última, quando se lhe apresenta a tentação da
impureza, diz: “Isso não pode ser!” Ela reage e não peca.
Mas quanto à outra criança, há noventa e nove probabilidades
sobre cem de que, se lhe apresentando o prazer
da impureza, ela peque. Ela está habituada a não se recusar
nenhum prazer. No momento em que aparece um
prazer que seduz os homens muito mais do que brinquedos
de criança, ela está muito menos preparada para resistir
àquela pressão. Resultado: ela cai. E vai ser um homem
impuro, porque foi uma criança que não quis a dor.
Essa criança deveria ter sido séria e não ter levado
as coisas na brincadeira; precisaria ter raciocinado: “Eu
não quero o mal, mas o bem. Percebo que estou indo
por uma via ruim que vai me conduzir para o inferno;
não quero isso. Amo aos meus pais, mas sobretudo amo
a Deus, a Nossa Senhora, não quero ofendê-los. E, por
causa disso, não vou fazer uma ação má.” Então, ela começa
uma luta.
Lutando contra si, ela se torna forte. Se a criança vence
a crise da pureza, ao cabo de ter feito a batalha da castidade,
ela se torna um herói. O homem que nunca pecou
contra a pureza pode dizer: “Graças a Nossa Senhora,
pelo favor que Ela me obteve de Deus, sou um herói.”
Se ela pecou contra a pureza, mas se arrepende, poderá
dizer: “Sou um pecador regenerado e a graça de Deus
24
Ao fim de uma longa
existência, os braços de
Deus estarão abertos para
quem praticou a castidade.
Sagrado Coração de Jesus -
Montreal, Canadá.
pousou sobre mim, arrancou-me do charco imundo onde
eu estava, levantou-me; minha alma hoje é pura, graças a
Deus. Nossa Senhora, Virgem Puríssima, rogai por mim!”
Um osso partido, quando se consolida, fica mais forte
no local da fratura do que nos outros pontos. Assim também,
a pessoa que caiu em matéria de pureza, arrependeu-se
e depois praticou a castidade, torna-se mais forte.
Dizer não para si mesmo e sim
à voz da graça
Ao fim de uma longa existência, oitenta, noventa anos,
se a pessoa viveu sempre assim, ao morrer, os braços de
Deus estão abertos para ela. Nosso Senhor Jesus Cristo
lhe sorri, ela vê no peito do Redentor o Sagrado Coração
que pulsa de amor por ela. Nossa Senhora a afaga
e a conduz junto ao Divino Salvador. Seu Anjo da guarda
canta, há uma alegria em toda a corte celeste por uma
alma que entra para o Céu. O objeto dessa alegria é ela,
porque no fundo compreendeu que toda a prática da virtude
é um dizer não para si mesmo, e sim à voz da graça,
a qual nos convida a cumprir o dever.
A graça diz no interior da criança: “Obedeça a seu
pai, a sua mãe; obedeça a Deus que ordenou honrar pai
e mãe.” Sendo fiel à graça, ela vai se fortificando e resistindo
a outras tentações. Por exemplo, uma criança que
aprende a não brincar com os brinquedos não permitidos,
aprende também a estudar nas horas em que deve.
É claro, porque uma coisa é reversível na outra.
Aprendendo a estudar nas horas em que precisa estudar,
ela vence a preguiça de pensar, a preguiça do
trabalho mental, e se torna uma pessoa que gosta de
ler um livro, estudar uma doutrina, e pode ser um homem
inteligente e até célebre. Pode tornar-se um defensor
da Fé.
Se a criança não estuda, fica com preguiça de estudar.
No tempo de minha infância, conheci um menino que às
vezes batia na testa e dizia: “Eu sou burro! Mas não tenho
culpa de ser burro.” E pedia aos colegas para fazerem
redação para ele, a fim de ele copiar com a letra dele
e passar no exame. Os colegas o atendiam, mas eu, que
o conhecia bem, sabia que ele era burro de preguiça, mas
se fizesse esforço poderia tornar-se uma pessoa razoável.
Entretanto, devido à preguiça, ficou fadado a ser burro a
vida inteira.
Continua no próximo número…
(Extraído de conferência de 30/8/1986)
25
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
Transatlântico navegando
diante de Veneza.
Fotos: G. Kralj; F. Lecaros; S. Hollmann.
O mais belo mar! - II
Após descrever vários tipos de embarcação, Dr. Plinio prepara os
ouvintes para o tema de sua conferência: a Metafísica.
Transportando-nos da vida quotidiana para outros horizontes,
ele nos faz velejar pelos mares da Filosofia.
D
uas ideias ficam em nosso espírito: a de nau e
a de homem. Existe imensa variedade de naus
e imensa variedade de homens.
Diversidade de homens
Só num gênero de atividades humanas, a navegação,
quanta diversidade de homens! Desde o comandante
preciso, seguro, técnico, habilitado e competente dos
últimos transatlânticos, até o antepassado dele, o velho
viking de bigode louro comprido, com trancinha, olhos
azuis injetados, perscrutando os mares e adivinhando,
em meio às penumbras, os caminhos, sem bússola nem
nada.
Que diferença entre esse bárbaro pagão, capaz de arrancar
um carvalho com as mãos, e São Luís manejando
sua espada de ouro, todo refulgente de luz, como se ele
mesmo estivesse vestido de sol para combater entre os
homens! São Luís católico, São Luís santo, São Luís da
Sainte Chapelle, que ascensão! Dele para os navegantes
descobridores, quanta diferença! Apenas quanto à psicologia,
que diferença entre um tipo de homem e outro!
Os espíritos se bifurcam
E nosso espírito, então, fica maravilhado. Há duas espécies
de espírito: os insaciáveis de admirar e os que se
cansam de admirar.
26
Se eu declarasse que está terminada a reunião, as
pessoas que têm espírito insaciável de admirar diriam:
“Não! Admiramos, todos juntos, tantas coisas! Não cortemos
assim de repente esse tecido! Vamos continuar ao
menos até que a peça tenha se desdobrado por inteiro e
o seu esgarçado final nos indique que ela acabou.”
Mas há espíritos preocupados apenas com coisas concretas.
Tais indivíduos querem saber se está frio lá fora,
se trouxeram lenço, pois são capazes de espirrar. E se espirrarem,
o que pode acontecer... Enfim, preocupam-se
com probleminhas sobre os quais nem vale a pena falar.
Quando algum deles consente em achar graça naquilo
que nós estamos meditando juntos, ele o faz por instantes
porque logo tem saudades do terra a terra, daquilo
que se pega com as mãos, que se cheira com o nariz,
que se degusta com a boca; ou que dá dinheiro, conforto,
segurança, saúde. Todos esses veleiros, para ele, ficaram
para trás e nós fazemos papel de poetas. Para eles o
ser é só o que se apalpa, traz vantagens materiais, nutre e
agrada o corpo e prolonga a vida.
Para as pessoas admirativas, pelo contrário, as coisas
práticas existem para que o corpo não amole e o espírito
possa livremente musicar, voar. Indivíduos assim não
querem a cadeira para estar bem sentados, mas para esquecer
que têm corpo e pensar, pensar, pensar. E, neste
auditório, nós somos no momento como um grande transatlântico
povoado de espíritos desses. Acabamos de navegar
pelos mares da História e pela limitada história da
navegação. Consideramos homens, embarcações e nem
vos falei dos litorais e dos outros povoadores dos mares,
os piratas e os aventureiros, os berberes, etc. Deixo tudo
de lado para não tornar por demais extenso o quadro.
O espírito admirativo, depois de pensar em todas essas
coisas, diz: “Há mais algo... Todas essas embarcações
são belas. Só poderia haver essas ou seriam possíveis outras?
Não haverá uma arquiembarcação, que requinte
essas embarcações em tudo?”
Então, mais uma vez, os espíritos se bifurcam.
O indivíduo que tem espírito admirativo começa a
compor uma embarcação, não para que nela fosse gostoso
viajar, mas que o enlevasse. Ele tem dotes artísticos
e desenha uma embarcação de um gênero inteiramente
novo. Fica contente e guarda o desenho numa
gaveta.
Para mostrar a alguém? Não, ainda que os outros admirem.
Ele engendrou um tipo ideal de embarcação, que
exprime a alma dele. É quase como ele feito embarcação!
Ele se definiu para si mesmo, como um guerreiro viking
se definia para si mesmo nas volutas e nas formas
da proa de seu barquinho; aquilo era o gráfico de um
temperamento. Ou como um descobridor espanhol ou
português se definia no esplendor das velas enfunadas
pelo vento, um grumete, em cima, naquele cestinho espiando
os mares.
Outros não têm talentos para isso e não compõem
uma obra artística. Porque o talento artístico é um dom
concedido por Deus, por onde o homem exprime de um
modo simbólico e deleitável, admirável, aquilo que lhe
vai dentro da alma. Mas há outros a quem Deus não deu
esse talento; eles não exprimem o símbolo, mas ficam
pensando. Eu me coloco entre esses.
Definindo o que é embarcação
Embarcação... Quantas embarcações! Depois de ter
pensado em cada uma, elas se sobrepõem umas às outras
e formam como que um caleidoscópio de embarcações.
Eu mexo na minha fantasia e as embarcações vão passando.
Depois as pedrazinhas do caleidoscópio vão como
que se fundindo umas nas outras, e vai aparecendo
uma ideia da arquiembarcação, ou seja, da embarcação
enquanto embarcação; é uma embarcação que não sei
compor, mas da qual faço uma ideia sem formas, sem cores
e nem nada de sensível. A embarcação em tese, a abstração.
É uma ideia de embarcação — e aqui está o engano de
muita gente — que não corresponde meramente à defi-
Francisco Pizarro,
conquistador do
Peru - Praça Maior
de Trujillo, Espanha.
27
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
nição. Nunca em minha vida pensei em fazer uma exposição
sobre embarcações; estou tirando do meu caleidoscópio
as figuras de embarcações e analisando pedrinha
por pedrinha. Se eu fosse definir embarcação, eu diria —
mais ou menos como deve estar no dicionário —: veículo
aquático, destinado a transporte de passageiros ou de
mercadorias.
Alguém dirá: “Por que o senhor não diz marítimo?”
— Porque tem os fluviais.
— Então por que o senhor não diz marítimo e fluvial?
— Porque há os lacustres, que navegam nos lagos.
Para ser uma verdadeira embarcação tem que ser um
veículo para água. Então, veículo aquático está correto.
Conceituada a embarcação em si — porque ela não é outra
coisa —, vejamos agora qual é o seu fim. Especificada
o que é uma coisa, bem como seu fim, está dada a sua
definição. Uma embarcação é destinada ao transporte de
homens ou de mercadorias. Está subentendido que pode
levar uma coisa e outra, pois as mercadorias não viajam
sem homens e, por razões econômicas, os homens não
viajam sem mercadorias.
Então, está definida a embarcação. Mas, por um apanhado
pouco feliz das coisas, tem-se a sensação semelhante
à de uma pessoa que contempla uma bolha de sabão
que pousa numa de suas mãos e, de repente, alguém
fura essa bolha. E aquela armação lindíssima da bolha de
Cristóvão Colombo,
descobridor
da América
- Barcelona,
Espanha.
sabão, com as cores do arco-íris, escorre ao longo das suas
paredes externas e, na mão, ficam apenas umas gotinhas
de água com sabão. O ar que estava dentro dela e
lhe dava aquela contextura, um alfinete implacável liberou,
e a bolha se desestufou.
Carruagens: bonbonnières para
conduzir pessoas
Essas foram, um tanto ornadas, reflexões minhas feitas
no passado — não especificamente sobre embarcações,
mas sobre outras coisas —, que estou reapresentando
aqui para entretê-los um pouco neste fim de sábado.
Não sei por que não exemplifiquei com carruagens, pois
sobre elas eu fiz um raciocínio vagamente análogo a esse.
Ontem à noite, eu estava vendo fotografias de carruagens
feéricas, mais propriamente bonbonnières para
conduzir pessoas; havia também carruagens pretas, mas
não desprovidas de elegância. Numa majestosa carruagem
estavam o Rei da Inglaterra, Eduardo VII, e o Kaiser,
percorrendo as ruas de Berlim. Que imensa variedade
de carruagens havia!
O Museu dos Coches de Portugal é uma fábula. No
palácio real de Madrid, que lindas carruagens! Nele há
uma carruagem pequena, cor de gema de ovo, para carregar
o Infante; que coisa maravilhosa!
Observando-as, eu tinha no meu espírito dois movimentos.
Um consistia em querer ver todas as formas possíveis
de carruagens para ficar vagamente — como uma
espécie de som dos sons ou de nota das notas — com
uma ideia genérica, difusa, que eu não seria capaz de exprimir
artisticamente, de carruagem in genere. Uma carruagem
que contivesse, em síntese, as belezas possíveis
de todas as carruagens. Eu não seria capaz de pintá-la
nem de esculpi-la, mas sim de intuí-la. De tal maneira
que quando a visse eu diria: “Eis a carruagem!”
Talvez o carro, não a carruagem, em que Elias Profeta
subiu ao Paraíso. Como deveria ser aquele carro? Pintam-no
como uma biga romana comum, não sei por quê.
Como poderia ter sido um carro adornado com asas de
O espírito admirativo,
depois de pensar na beleza
que há nas embarcações,
começa a compor uma que
o enlevasse ainda mais.
28
Quanta diversidade de
homens há no gênero
da navegação! Desde
o velho viking até os
navegantes descobridores,
quanta diferença!
À beira-mar, conquistadores
observam a frota que se aproxima.
anjo? Ninguém imagina, é uma coisa fabulosa; fica-se
com uma ideia vaga: o carro dos carros.
O ”gancho” da defininção
Mas depois de tudo isso considerado, há na minha
alma, graças a Deus, algo como um gancho; ao mesmo
tempo em que com a sensibilidade analisou, degustou tudo
e chegou como que a um ápice imponderável e transcendente,
minha alma tem certa vontade de deitar o gancho
e definir: “Agora eu pego isso e o reduzo, numa ou
em algumas palavras, num conceito sólido!” E depois de
definir, penso: “É isto mesmo!”
E no meio de todas essas sensações, munido dessa definição,
eu me sentiria como um guerreiro viking armado
com sua lança.
O barco e o mar são lindos, mas na minha mão a definição
é uma lança! Tal coisa, analisada, penetrada no seu
âmago, assim se define. Dessa forma, eu sinto o poder
de, com minha inteligência, atacar novas ideias e abrir
novos continentes. Peguei algo, piso firme, respiro fundo
e, para dizer numa palavra só, sou mais eu mesmo. Minha
elucubração chegou até o fim.
O conceito de embarcação abrange
também as suas variedades
Então, numa mente bem ordenada, qual é o papel da
definição? É o da bolha de sabão que alguém desestufou?
É! Mas não é só!
O conceito de embarcação, “veículo etc.”, abrange todas
as variedades que as embarcações tomaram ao longo
dos tempos. Essas variedades estão dentro do conceito,
mais ou menos como as flores e os frutos estão dentro
da árvore. É claro que se rasgarmos uma árvore não
encontraremos o fruto dentro dela. Mas a árvore engen-
dra a flor e o fruto; a capacidade de florescer e de frutificar
jaz na árvore.
Nesse conceito vago, “veículo aquático para transporte
de homens ou de mercadorias”, eu poderia acrescentar
“correspondências”.
Veículo: quantas modalidades há!
Aquático: quantas formas de veículo aquático se pode
imaginar!
Transporte: quantas espécies de transportes: de guerra,
de comércio, de prazer, de gala, de ciência! Quantos
objetivos a operação de transportar comporta!
Mercadoria: Que riquezas! Que tesouros! Que maravilhas!
Quantos significados o termo “mercadoria” pode
conter!
Homens: Que bandidos! Que missionários! Que heróis!
Que santos! Que sábios! Que cientistas! Que nobres!
Então, com esse conceito reduzido ao mínimo, voltamos
a passar a fita e vemos embarcação por embarcação.
Começamos com o transatlântico de Porto Rico: Ah! É
um veículo aquático. Tendo sido projetados os diversos
tipos de embarcação, verificamos como a definição se
aplica a cada um. Temos, então, a ideia construída, é o
abstrato. A pura abstração coincide na nossa mente com
aquela espécie de navio dos navios, que contém em si todas
as formas de perfeições possíveis de todos os navios.
Continua no próximo número...
(Extraído de conferência
de 10/11/1979)
29
Luzes da Civilização Cristã
Fotos: F. Lecaros; J. Rodrigues; H. Grados.
A civilização da
admiração
A tendência para a elevação e o sobrenatural dava ao homem medieval
especial facilidade para admirar e venerar a Deus Nosso Senhor. Tal
estado de alma não pode ter sido privilégio de outrora; ao contrário,
Deus o quer e exige de todos os fiéis, ao longo de toda a História.
30
Suponhamos um copista que possuísse uma sineta para
chamar o empregado, e um canivete para cortar o pergaminho
e outros materiais.
Se o cabo da sineta fosse feio, ele, quando desse acordo
de si, estaria com o canivete esculpindo-o de maneira
a torná-lo belo.
Quanto ao canivete, ele se comprazia em fazer com
que a lâmina fosse afiada, de modo a aparecer inteiramente
a beleza do metal, e o cabo não fosse apenas prá-
Quando estudamos a História da Idade Média,
analisamos sobretudo os personagens mais característicos
daquela época: Carlos Magno, São
Luís, São Fernando, São Tomás de Aquino e, de modo
eminente, São Gregório VII. Entretanto, também no geral
da população daquele período havia um espírito de fé
eminente.
No auge da era medieval, a Cristandade era compacta
e homogênea e encontrava-se em sua época mais feliz.
Havia, como em todos os tempos, pecadores esparsos,
interessados em fruir o seu próprio pecado, porém
não obstinados em derrubar o edifício espiritual da Civilização
Cristã.
Naquela era histórica, o espírito de Fé moldava a
maneira de pensar e de viver do homem, tornando sua
mentalidade fundamentalmente diversa do homem
contemporâneo. Como se exprimia a mentalidade medieval?
Dois movimentos ascensionais
31
Luzes da Civilização Cristã
Detalhes do Mosteiro dos Jerônimos
(Lisboa, Portugal); em destaque, São Fernando
de Castela (Catedral de Sevilha, Espanha).
32
tico, mas também bonito. Assim, no cabo do canivete ele
esculpia um santo; e no alto da sineta uma cruz.
Quando ia escrever algo, ele não se limitava a fazer letras
legíveis, mas pensava em compor uma iluminura desenhando,
dentro da primeira letra, um pássaro voando,
ou um santo rezando com halo de santidade, ou um Rosário
entrelaçado nas letras.
Ou seja, os mais humildes homens do povo manifestavam,
continuamente, uma tendência para o mais perfeito,
mais santo e mais belo. Uma espécie de insaciabilidade
temperante, uma pressão saudável e contínua da
alma para o melhor, debaixo de todos os pontos de vista,
nunca se contentando com aquilo que tem, mas procurando
algo superior; era, portanto, uma tendência para
a elevação.
Devido a esta contínua procura do mais belo, existia a
ideia de que, acima dos seres visíveis, havia seres invisíveis,
mais nobres e mais belos do que os visíveis. E, no alto
da pirâmide destes seres espirituais estava Deus, a suma
Perfeição. Então, dois movimentos ascensionais: um
para melhorar as coisas terrenas, na procura da perfeição
delas, e outro para, através das coisas terrenas, caminhar
até Deus.
O maravilhamento é a postura de alma
necessária a todo homem
Isso significava, na alma do homem medieval, uma
tendência fundamental para o elevado, e uma necessidade
profunda de conhecer continuamente coisas que lhe
provocassem admiração.
Daí as canções de gesta, que eram a glorificação dos
grandes heróis da Cristan-
dade. E também as lendas a respeito da vida de santos,
que constituíam a glorificação deles. A Légende Dorée,
de Jacques de Voragine, por exemplo, tem magnificência
nesse sentido.
Essa tendência corresponde ao contínuo estímulo comunicado
por Deus à Criação. Não julguemos ser esse
estado de alma necessário apenas aos medievais. Esta é a
orientação de alma que, em virtude do primeiro Mandamento,
Deus quer e exige de todos os fiéis.
Podemos ver isso em dois campos: a ordem natural e
a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo.
Por mais que o examinemos, não encontramos um
ponto que não seja suscetível de aprofundamento. E no
extremo desse aprofundamento, não achamos nada que
não nos cause uma espécie de maravilhamento. O universo
foi construído por Deus para que o conhecimento
dele conduza a atos de admiração.
Consideremos, por exemplo, a coisa mais terra a terra:
a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata
é feia. Mas se um cientista vai estudá-la, ele encontra ali
dentro uma ordenação em razão da qual acaba concluindo
o que o artista nunca concluiria: é admirável a pata de
uma rã. O artista dirá que é hedionda a pata de uma rã,
mas o cientista afirmará: “Neste hediondo há uma maravilha!”
Na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura
de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda
parte encontramos algo admirável. Quer dizer, o universo
incita o homem a prestar atenção em seu Criador
fazendo atos de maravilhamento.
O émerveillement, o maravilhar-se, o admirar é a postura
de alma necessária a todo homem; é o ponto terminal
da peregrinação em toda espécie de seus estudos ou
elucubrações, seja no campo artístico, científico ou cultural.
Maravilhas da Igreja Católica,
Apostólica, Romana
E, bem no centro desse universo, que é um convite
contínuo à admiração, há a ordem sobrenatural, a Igreja
Católica, Apostólica, Romana, na qual isso também se
verifica. Nas menores coisas da Igreja Católica, se as analisarmos
bem, encontraremos verdadeiras maravilhas.
Tomo o mais corrente dos exemplos: o meio inventado
pela Igreja para chamar os fiéis à oração, o sino colocado
no alto de uma torre. Tão prático, mas quanta maravilha!
A Ave-Maria que é tocada na aurora ou na hora
do pôr do Sol, que maravilha! Os sinos que repicam alegremente
para anunciar a Missa, que maravilha! Os sinos
que dobram finados, quando o cadáver entra no templo
para receber a bênção, que maravilha!
33
Luzes da Civilização Cristã
Há certas coisas feitas
pela Igreja com tanta naturalidade,
que ninguém
se lembra de as achar bonitas;
é preciso prestar
atenção. Por exemplo, o
modo pelo qual a Igreja
trata o pecado e o pecador.
Entra numa igreja
um caixão, com um cadáver,
carregado pela família
do morto. Todo mundo,
com respeito, comenta:
“Coitado, era tão bom,
antes de morrer abençoou
os filhos, recebeu os Sacramentos,
despediu-se da esposa.”
De repente o coro
canta: Requiem aeternam
dona ei, Domine, et lux perpetua
luceat ei. É a dúvida
Pintura medieval representando
uma Missa de Requiem.
da Igreja: ele deve ter, pelo
menos, pecados veniais para pagar, e o normal é que
passe por um Purgatório bem ardente. “Meu Deus, dai-
-lhe o descanso eterno, e que a luz perpétua brilhe para
ele.” E depois o coro entoa: Requiescat in pace, e embaixo
todos respondem: Amen. É o modo pelo qual a Igreja
convida à humildade e ao reconhecimento da realidade
do pecado no homem, que ela está honrando dessa forma.
Nota-se aí um equilíbrio fantástico.
Na Idade Média, a moda consistia
em imitar os mais perfeitos
Dir-se-ia serem coisinhas dentro da vida da Igreja;
mas essas “coisinhas” são sóis, e indicam que a Esposa de
Cristo nos convida continuamente a uma impostação de
alma ávida de admirar tudo, quer na ordem natural, quer
na ordem sobrenatural.
Qualquer indivíduo que passa pela rua e possui a glória
de ser batizado deve ser ávido de admiração. O homem
de espírito católico tem esta tendência a procurar
em tudo coisas admiráveis e não é invejoso. Encontrando
alguém admirável, ele se alegra e dá graças a Deus; elogia,
aplaude aquele alguém e procura torná-lo conhecido.
Ele não é igualitário, não procura colocar-se no nível
dos outros, mas deseja que quem é superior a ele receba
mais, e seja mais glorificado.
Essa era a tendência de espírito existente durante a
Idade Média.
v
(Extraído de conferência de 8/2/1977)
34
Nas menores coisas da
Igreja Católica encontramos
verdadeiras maravilhas. Por
exemplo, o meio inventado
por Ela para chamar os fiéis
à oração: o sino colocado no
alto de uma torre. Tão prático,
mas quanta maravilha!
Torre da Catedral de Sevilha (Espanha);
abaixo, campanário da Igreja de
São Domingos (Arezzo, Itália).
35
A Virgem e o Menino -
Londres, Inglaterra.
G. Kralj
Oração da alma reta
Minha Mãe, se é verdade que, infelizmente, permaneço com este defeito,
consegui, pelo menos, vê-lo e detestá-lo por inteiro! Eu me inclino diante
de Vós e Vos peço perdão porque pequei e andei mal. Dai-me vossa
misericórdia e vossa ajuda!
Estou certo de que virá o dia no qual Vós tereis pena de mim e me atendereis!
Então, depois de tanto me humilhar, bater no peito e detestar minha maldade,
acabará nascendo em mim uma luz, uma força, uma capacidade de me modificar,
por onde me sentirei outro; e, de repente, estarei felizmente resgatado, livre do
defeito que eu tinha.
(Extraído de conferência de 18/11/1978)