Revista Dr Plinio 20

Novembro de 1999 Novembro de 1999

EUCARISTIA:<br />

VIA DE<br />

SANTIFICAÇÃO


É próprio ao sabor das coisas celestes nos fazer sentir a bondade<br />

e a doçura de Deus, ao mesmo tempo que comunicam às<br />

nossas almas uma grande força. Assim, quando somos visitados<br />

por uma graça que nos leva a experimentar a doçura do<br />

Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria,<br />

sem percebermos, saímos mais resistentes nas tentações,<br />

mais fortes no perigo, mais perseverantes na Fé!<br />

Interior da<br />

catedral de Bourges


Sumário<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

aos oito anos<br />

com o traje de<br />

Primeira Comunhão,<br />

e uma lembrança<br />

dessa inesquecível data<br />

4<br />

EDITORIAL<br />

Apelo à santidade<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

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Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

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Pedro Paulo de Figueiredo<br />

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Esta revista não é órgão oficial nem oficioso da<br />

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NOVEMBRO de 1999<br />

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ao Assinante<br />

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DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

24 de novembro de 1929: diretor dos estudos<br />

na Congregação Mariana<br />

DONA LUCILIA<br />

Retorno à vida no lar<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

“Com Cristo, sede felizes”<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Nossa Senhora no Templo de Jerusalém<br />

A EXPANSÃO DA OBRA DE DR. PLINIO<br />

Filipinas<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Encontro com o<br />

Coração Eucarístico de Jesus<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

O mundo precisa de santos<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

A Renascença: golpe desfechado<br />

contra a Cristandade<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Elevação e coerência<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Mãe da Divina Graça<br />

3


Apelo à santidade<br />

Editorial<br />

Que relação tem a fé no Deus vivo e verdadeiro<br />

com a solução dos problemas que<br />

atormentam a humanidade? Assim se expressa<br />

o Papa João Paulo II na “Mensagem para o<br />

Dia Mundial das Missões”, celebrado a 24 de outubro.<br />

E o Santo Padre responde que tal solução<br />

“não depende primeiramente do dinheiro, nem<br />

dos auxílios materiais, nem das estruturas técnicas,<br />

mas, sobretudo, da formação das consciências, do<br />

amadurecimento das mentalidades e dos costumes”.<br />

Quer dizer, para reformar o nosso Ocidente excristão,<br />

cumpre antes de mais nada reformar o<br />

homem, estimulando-o à conversão e ao retorno<br />

ao regaço da Santa Igreja. Daí o empenho do Papa<br />

na nova evangelização, para a qual ele convoca<br />

também os leigos. Há, contudo, um requisito primordial<br />

para, de fato, tocarem-se os corações. É o<br />

Pontífice novamente quem o diz:<br />

“O renovado impulso para a missão ad gentes —<br />

escrevi na Redemptoris Missio — exige missionários<br />

santos. Não basta renovar os métodos pastorais,<br />

nem organizar e coordenar melhor as forças<br />

eclesiais, nem explorar com maior perspicácia os<br />

fundamentos bíblicos e teológicos da fé; é necessário<br />

suscitar um novo ‘ardor de santidade’ entre<br />

os missionários e em toda a comunidade cristã”.<br />

Pouco antes, em 18 de outubro, durante a oração<br />

do Ângelus Dominical, João Paulo II destacara<br />

a necessidade de todo apóstolo empenhar-se para<br />

alcançar a perfeição espiritual: “A evangelização<br />

cobra valor e credibilidade pela santidade dos cristãos<br />

e das comunidades eclesiais que se esforçam<br />

por viver como autênticos filhos de Deus, colocando<br />

em prática o duplo mandamento do amor”.<br />

Esse reiterado apelo do Sumo Pontífice nos leva<br />

a recordar uma das mais firmes convicções de <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> ao longo de sua vida: se houver um reflorescimento<br />

da santidade, não há o que não se possa<br />

esperar de grandioso na linha da regeneração do<br />

mundo. Daí proclamar ele no artigo transcrito na<br />

seção “Denúncia profética”: “Por mais que o homem<br />

desça abaixo de si mesmo, sempre será sensível<br />

à influência irresistível da santidade”. Também<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> insistia em que a fecundidade do labor<br />

de evangelização não provém dos dotes pessoais<br />

ou da formação cultural do apóstolo, e muito<br />

menos dos recursos materiais de que disponha,<br />

mas do borbulhar de sua vida interior, alimentada<br />

pela oração, o sacrifício, a contemplação e os sacramentos.<br />

O robustecimento da virtude, eis a saída para a<br />

encruzilhada em que o mundo se encontra. Conselho<br />

que o próprio Salvador nos deu há 2 mil anos:<br />

“Buscai, pois, o reino de Deus e sua justiça, e todas<br />

as outras coisas vos serão dadas por acréscimo”<br />

(Mt 6, 33).<br />

*<br />

Não existe melhor fortificante para a alma, na<br />

luta pela santidade, do que o Corpo de Cristo. Como<br />

já temos observado outras vezes, a Comunhão<br />

freqüente era uma prática aconselhada com empenho<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, à qual ele próprio se manteve<br />

fiel desde o dia 19 de novembro de 1917, em que<br />

recebeu Nosso Senhor pela primeira vez. Considerava<br />

ele essa data uma das mais significativas de<br />

sua vida, havendo até, em algumas conferências,<br />

atendido aos pedidos de contar recordações a tal<br />

respeito. Uma delas, reproduzida na seção “Gesta<br />

de um varão católico”, nos transporta de volta<br />

àquela atmosfera serena e encantadora na qual o<br />

pequeno <strong>Plinio</strong>, guiado por sua piedosa mãe, se<br />

preparou para o solene encontro com Jesus Eucarístico.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

24 de novembro de 1929: diretor dos<br />

estudos na Congregação Mariana<br />

Admitido havia poucos meses como<br />

membro pleno da Congregação Mariana<br />

de Santa Cecília, o jovem universitário<br />

<strong>Plinio</strong> era já eleito diretor do Departamento<br />

de Estudos dessa agremiação católica.<br />

Nada mais natural, pois ele, desde seus primeiros<br />

dias nas fileiras marianas, empenhara-se<br />

a fundo para proporcionar à juventude católica<br />

uma primorosa formação cultural, com vistas a<br />

se defender com brilho dos adversários da Igreja.<br />

Durante anos, deteria também o cargo de<br />

presidente da Academia Jackson de Figueiredo<br />

— que ele idealizara para preparar uma elite intelectual<br />

no seio do movimento mariano.<br />

Através do Legionário (de <strong>20</strong>/3/1932), podemos<br />

conhecer o programa de estudos elaborado<br />

por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para seus companheiros daquele<br />

tempo. Eis alguns de seus tópicos:<br />

“V. A Igreja e os modernos aperfeiçoamentos<br />

do progresso material. Longe de combater<br />

tal progresso, a Igreja o vê com benevolência e<br />

se serve freqüentemente dele. Exige, porém<br />

,que o progresso espiritual acompanhe o material<br />

e que dos meios naturais que o progresso<br />

material põe à nossa disposição, não se abuse<br />

com prejuízos da moral.[...]<br />

“VIII. O Catolicismo como elemento formador<br />

do Brasil no passado. A Igreja e o momento<br />

presente do Brasil: 1) a dissolução dos<br />

costumes e dos caracteres; 2) o confucionismo<br />

no terreno das idéias. O que a Igreja pode fazer<br />

pelo futuro do Brasil?[...]<br />

“IX. Sublime missão do moço realmente católico<br />

no Brasil. Para que seu apostolado seja<br />

eficaz exige-se: 1) que seja absolutamente desassombrado;<br />

2) que seja católico de palavras e<br />

católico de exemplos; 3) que seja escudado<br />

sempre que possível em séria ciência. Confiança<br />

nos meios sobrenaturais, que são a arma máxima<br />

da Igreja através da história e que, suprindo<br />

a deficiência dos meios naturais, nos assegurarão<br />

a vitória.”<br />

Um ano depois de ingressar na Congregação<br />

Mariana de Santa Cecília, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — então com<br />

21 anos incompletos — já era eleito diretor de seu<br />

Departamento de Estudos<br />

5


DONA LUCILIA<br />

Retorno à vida no lar<br />

Em 17 de abril de 1913, atracava<br />

no porto de Santos o<br />

navio Duca d’Aosta, no<br />

qual Dª Lucilia e seus filhos regressavam<br />

da Europa, após longa permanência<br />

no Velho Continente. Um<br />

radioso e cálido sol os acolheu na sua<br />

chegada ao embarcadouro santista,<br />

onde os aguardava <strong>Dr</strong>. João Paulo.<br />

Antecipara ela seu regresso, deixando<br />

na Europa, por mais algum tempo,<br />

sua mãe e os outros familiares.<br />

Encerrava-se assim, ao pisar em<br />

terras brasileiras, um importante<br />

capítulo da vida de Dª Lucilia. Enquanto<br />

o trem que a conduzia a São<br />

Paulo ia subindo com lentidão a<br />

Serra do Mar, voltava ela a contemplar<br />

aquelas elevações recobertas<br />

de exuberante mata tropical, salpicada<br />

aqui e acolá dos vistosos e por<br />

ela tão apreciados manacás, intensamente<br />

floridos. Tais impressões se<br />

mesclavam em seu espírito com a<br />

lembrança dos esplendores e tradições<br />

européias que acabara de deixar.<br />

Chegados à Estação da Luz, na<br />

capital paulista, lá estavam alguns<br />

de seus criados para lhes dar as<br />

6


oas-vindas, recolher as bagagens e<br />

prestar-lhes pequenos serviços. E-<br />

ram por certo os mais antigos da<br />

casa, a quem as saudades de tão longa<br />

ausência proporcionavam maior<br />

alegria pelo retorno daqueles que<br />

tanto respeitavam. Evidentemente<br />

os tempos eram outros. O espírito<br />

patriarcal e familiar impregnava ainda<br />

de profunda benquerença as relações<br />

entre as classes sociais, fazendo<br />

com que os reencontros entre<br />

patrões e empregados, após as separações<br />

prolongadas, se revestissem<br />

da doçura de verdadeiros acontecimentos<br />

de família.<br />

Um curto trajeto de landau até a<br />

alameda Barão de Limeira constituía<br />

a derradeira etapa da longa viagem.<br />

À medida que a confortável<br />

carruagem calmamente percorria<br />

ruas e avenidas emolduradas por<br />

luxuosos palacetes, uma suave alegria<br />

inundava a alma de Dª Lucilia,<br />

pois aproximava-se o momento de<br />

rever a casa paterna que, meses<br />

atrás, havia deixado em condições<br />

incertas e dolorosas. Aos poucos, as<br />

impressões de viagem iam passando<br />

para um segundo plano, enquanto<br />

afluíam-lhe à mente as recordações<br />

que o regresso a São Paulo evocava.<br />

Ao dobrar a última esquina, Dª<br />

Lucilia avista o palacete Ribeiro dos<br />

Santos e em poucos instantes está<br />

diante da escadaria de mármore da<br />

entrada principal. Alertados pelo<br />

rodar da carruagem, os membros<br />

mais novos da criadagem saem à rua<br />

para receber os recém-chegados. Dª<br />

Lucilia os cumprimentou com<br />

palavras de bondade, que nunca lhe<br />

faltavam nos lábios, transbordantes<br />

de seu afável coração.<br />

Vista da cidade de Santos<br />

Trocadas as primeiras saudações,<br />

subiu ela os degraus, penetrando na<br />

atmosfera recolhida e nobre do santuário<br />

familiar. Quantas lembranças<br />

não lhe vêm ao espírito nesse momento!<br />

Começa a percorrer então,<br />

com vagar, aqueles ambientes tão<br />

adequados a seus gostos: a saleta de<br />

visitas, o salão... Porém, seu olhar<br />

torna-se interrogativo ao notar, em<br />

uma e outra sala, que os lustres já<br />

não eram os mesmos, nem condiziam<br />

com o ambiente. O que teria<br />

acontecido?<br />

Estação da Luz, em São Paulo<br />

Os lustres de bronze<br />

De fato, havia sido contratado<br />

um engenheiro para fazer algumas<br />

reformas na casa, durante a viagem<br />

da família à Europa. Dª Lucilia<br />

acabava de verificar que, infelizmente,<br />

a troca dos lustres não fora<br />

das mais acertadas. Sem qualquer<br />

sobressalto ou impaciência, indagou<br />

de alguns criados o destino dos antigos<br />

lustres de bronze, até que um<br />

deles lhe contou haverem sido vendidos<br />

a um pequeno comerciante do<br />

bairro.<br />

7


DONA LUCILIA<br />

Após um merecido e necessário<br />

repouso, Dª Lucilia procurou reparar<br />

o erro cometido pelo engenheiro.<br />

No entanto, após percorrer<br />

algumas das boas lojas da cidade,<br />

constatou ser impossível conseguir<br />

lustres iguais ou melhores que os<br />

anteriores. Por isso, resolveu ir falar<br />

com o comprador dos antigos.<br />

Deparou com o modesto comerciante<br />

sentado à porta de um barracão,<br />

limpando afanosamente as<br />

belas peças de cristal e a armação<br />

de bronze dourado, que faziam o<br />

encanto daqueles objetos, já desmontados.<br />

Ao ver aproximar-se aquela distinta<br />

senhora, ele desde logo se<br />

levantou, tirando o chapéu em sinal<br />

de respeito. Dª Lucilia o cumprimentou<br />

amavelmente e explicou o<br />

ocorrido, fazendo-lhe ver a dificuldade<br />

em que se encontrava, e manifestou<br />

o desejo de readquirir os lustres.<br />

Perguntou-lhe quanto pediria<br />

por eles, ao que o homem, apesar<br />

de sua simplicidade, gentilmente<br />

respondeu:<br />

— Mas, minha senhora, nada!<br />

Peço o prazer de servi-la.<br />

Dª Lucilia não seria ela mesma se<br />

não recusasse:<br />

— Não, isso não. O senhor aplicou<br />

dinheiro neles, gastou material<br />

de limpeza, está tomando seu tempo<br />

e tendo o trabalho de os polir.<br />

Ao comprá-los do senhor, comproos<br />

beneficiados; é natural inclusive<br />

que eu lhe pague alguma coisa a<br />

mais.<br />

Tendo diante de si tão nobre dama,<br />

o comerciante se sentia movido<br />

a gestos de cavalheirismo:<br />

— É verdade, mas o prazer de<br />

servi-la me é mais valioso do que o<br />

próprio lucro. A senhora vai-me fazer<br />

o favor de ficar com os lustres.<br />

Dª Lucilia respondeu:<br />

— Nesse caso me desculpe, não<br />

posso ficar com eles. O senhor me<br />

deixa numa posição muito difícil,<br />

porque em São Paulo não há outros<br />

assim.<br />

Palacete Ribeiro dos Santos<br />

Ele continuou a insistir e nem<br />

gorjeta aceitou. Alguns dias depois,<br />

os lustres estavam de novo na casa<br />

dos Ribeiro dos Santos, perfeitos e<br />

reinstalados.<br />

O nobre comportamento desse<br />

simples comerciante, mais próprio a<br />

figurar em páginas de histórias do<br />

Ancien Régime, deixa-nos entrever<br />

como Dª Lucilia estimulava as almas,<br />

tão-só com sua doce e elevada<br />

ação de presença, a praticar a virtude.<br />

Olhar sereno, voz<br />

aveludada, sorriso<br />

luminoso<br />

Nem de longe suas palavras eram<br />

desprovidas de significado e atração.<br />

Todavia, mais do que por elas,<br />

era especialmente através de suas<br />

atitudes e modos de ser que ela<br />

transmitia aos outros, sobretudo aos<br />

filhos, o desejo de fazer o bem, de<br />

trilhar as vias da perfeição moral.<br />

Símbolo vivo das virtudes por ela<br />

praticadas, sua presença impregnava,<br />

intensa e discretamente, de refrigério,<br />

luz e paz qualquer ambiente<br />

onde estivesse.<br />

Seu olhar era sereno e de um castanho<br />

muito escuro; a luminosidade<br />

dos olhos era de uma intensidade<br />

cambiante, em função do quanto<br />

queria caracterizar o que dizia.<br />

Quando alegre, por apreciar a pessoa<br />

a quem se dirigia, seu brilho era<br />

meigo e envolvente. Se as circunstâncias<br />

exigiam posturas sérias, seu<br />

reluzir era profundo, carregado e<br />

definido. No movimento dos olhos,<br />

sempre compassado, revelando um<br />

interior sem efervescências, bem se<br />

refletia sua temperança.<br />

Quem a conheceu jamais se esquecerá<br />

das suavidades harmônicas<br />

de sua voz melodiosa, modulada<br />

conforme o tema e o estado de espírito<br />

do interlocutor. As inflexões<br />

eram meigas, variadas e acolhedoras.<br />

Todos esses aspectos da personalidade<br />

— olhar sereno, pequenos<br />

gestos, voz de timbre aveludado,<br />

sorriso luminoso — manifestavam o<br />

cerne de sua alma pervadida pela<br />

Fé, que habitava sempre um píncaro<br />

de considerações e perspectivas<br />

elevadas. Seu modo de ser defluía<br />

dessas alturas, conferindo-lhe<br />

uma atitude tal que tornava impossível,<br />

a quem quer que fosse, dela se<br />

aproximar sem muito respeitá-la.<br />

Era notável, também, em Dª Lucilia,<br />

o fato de reunir em si duas<br />

qualidades aparentemente opostas:<br />

8


ao lado da elevação e retidão — a<br />

elevação não é senão uma forma excelente<br />

de retidão —, a doçura. Ela<br />

era elevada porque doce, e doce<br />

porque elevada. São duas qualidades<br />

que segundo o conceito moderno<br />

se excluem, pois uma pessoa<br />

afeita ao sublime afastaria os outros<br />

de si, tenderia ao severo e a se impor<br />

sem doçura. Ela era um exemplo<br />

do contrário.<br />

Preparando os filhos<br />

para trilharem o<br />

caminho do dever<br />

Esse conjunto excelente de qualidades,<br />

Rosée e <strong>Plinio</strong> podiam apreciá-lo<br />

continuamente em sua mãe,<br />

em todas as circunstâncias da vida<br />

quotidiana, e nos mil cuidados dispensados<br />

por ela a fim de que tivessem<br />

a melhor formação.<br />

Com efeito, na educação de seus<br />

filhos, não poupou Dª Lucilia nenhuma<br />

parcela de sua solicitude<br />

materna. Sendo que, a bondade, o<br />

afeto e a doçura, nela superabundantes,<br />

não excluíam as virtudes<br />

opostas a estas: a severidade, a intransigência<br />

em relação ao mal e o<br />

senso de justiça.<br />

Quando se tratava do cumprimento<br />

do dever, por mais difícil que<br />

fosse, ou da rejeição ao mal, ela não<br />

cedia um milímetro, conservando<br />

embora toda a suavidade de trato.<br />

Nos horários, por exemplo, não permitia<br />

nenhuma mudança. Exigia as<br />

orações da manhã e da noite, de<br />

antes e depois das refeições, como<br />

Fräulein Mathilde<br />

também hora exata para deitar, levantar<br />

e fazer sesta.<br />

Assim, numerosas obrigações<br />

diárias, observadas fielmente, iam<br />

preparando seus filhos para escolherem<br />

o caminho do dever, até<br />

mesmo nas grandes dificuldades da<br />

vida. Foi em razão do desejo de assim<br />

os educar que ela, quando esteve<br />

na Europa procurou uma governanta<br />

capaz de formá-los segundo<br />

esses princípios.<br />

“Fräulein” Mathilde<br />

Heldmann<br />

Durante sua convalescença na<br />

Alemanha, Dª Lucilia pudera apreciar<br />

de perto algumas das qualidades<br />

do povo germânico, dignas de<br />

admiração, embora a diferença de<br />

temperamento e os modos de ser,<br />

bem diversos dos do brasileiro, tenham<br />

dado lugar a pequenos desacordos.<br />

Ao observar o senso de ordem e<br />

disciplina dos alemães, a profunda<br />

noção que eles têm do cumprimento<br />

do dever, aliada a uma certa candura<br />

— muito evidente na música e<br />

em outros tipos de arte — bem como<br />

seu alto nível cultural, Dª Lucilia<br />

logo avaliou todo o proveito que<br />

seus filhos teriam se fossem educados<br />

por uma governanta dessa nacionalidade.<br />

“Um dos maiores benefícios que<br />

mamãe nos fez foi contratar a<br />

Fräulein”, comentou anos depois<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

De fato, coube a esta última estimular<br />

e formar <strong>Plinio</strong> e Resée, com<br />

maestria, na arte de saber aproveitar<br />

todas as energias naturais com<br />

que Deus dota cada homem, qualidade<br />

que faz dos alemães povo tão<br />

laborioso. Como servira em várias<br />

casas nobres, falava freqüentemente<br />

dos pupilos que tivera e contava<br />

suas recordações da Europa, o que<br />

ajudava a reforçar a atmosfera tradicional<br />

da educação em casa dos<br />

Ribeiro dos Santos.<br />

9


DONA LUCILIA<br />

“Enquanto ela me vestia ou me<br />

arranjava — lembra <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — ia<br />

explicando:<br />

“— Essa gente da nobreza é que<br />

sabe como se vive, como se pensa,<br />

como se veste. Viver como se deve,<br />

é viver como eles.<br />

“Como professora, era estupenda.<br />

Aprimorou nosso francês, ensinou-nos<br />

inglês e, como é natural,<br />

também alemão, que falávamos fluentemente.<br />

Aliás, conversava conosco<br />

sempre nesta língua.<br />

“O que de mais útil minha irmã e<br />

eu recebemos dela foi o método<br />

alemão”.<br />

Contos atraentes,<br />

métodos enérgicos<br />

Fräulein Mathilde quase não conversava<br />

com os adultos, passando o<br />

dia todo com as crianças. Narravalhes<br />

pequenos e significativos fatos,<br />

episódios históricos, e contos típicos<br />

germânicos. Dava-lhes a ler livrinhos<br />

infantis em língua alemã, muito<br />

propícios a desenvolver a inocência<br />

e o senso do maravilhoso. As<br />

ilustrações eram as bem conhecidas<br />

de um anãozinho — de barbas e cabelos<br />

brancos, com carapuça vermelha<br />

comprida e pompom branco<br />

na ponta — que vivia no meio do<br />

prado, junto a um enorme cogumelo,<br />

numa casinha de pão-de-mel.<br />

Ora eram historietas de um renomado<br />

educador e sacerdote bávaro<br />

(o Abade Schmid, autor de “Rosa<br />

de Tannenburg”), ora algo da mitologia<br />

teutônica, como Lohengrin, o<br />

herói que vogava pelas límpidas<br />

águas do Reno numa concha de<br />

cristal puxada por cisnes.<br />

A par da candura sem igual do<br />

mundo infantil alemão, que a Fräulein<br />

se empenhava em transmitirlhes,<br />

não faltavam métodos enérgicos,<br />

às vezes muito necessários, mas<br />

quão pouco do agrado das crianças.<br />

Tais métodos e os de Dª Lucilia não<br />

se compaginavam inteiramente. Na<br />

pedagogia da governante, a suavidade<br />

tinha uma presença diminuta.<br />

No entanto, como Dª Lucilia sabia<br />

bem qual era o papel da firmeza,<br />

deixava Fräulein Mathilde assim<br />

proceder, procurando depois colocar<br />

a nota da amenidade.<br />

Por exemplo, em sua infância,<br />

<strong>Plinio</strong> tinha uma compleição franzina,<br />

e os médicos lhe recomendaram<br />

alimentar-se bem. Cônscia de seu<br />

dever, Fräulein Mathilde se empenhava<br />

em fazer cumprir as determinações<br />

da medicina, utilizando um<br />

método cuja eficácia indiscutível o<br />

futuro haveria de confirmar... Apertava,<br />

com seus dedos pontudos, as<br />

faces do menino e lhe dizia:<br />

— Abra a boca!<br />

Ele a abria, mal-humorado, e ela<br />

continuava:<br />

— Não feche, porque será pior!<br />

Introduzia-lhe a colher na boca e<br />

<strong>Plinio</strong>, dada a placidez natural de<br />

Os pequenos<br />

<strong>Plinio</strong> e Rosée<br />

seu temperamento, optava por comer<br />

a ter de enfrentar aquela tenacidade<br />

germânica. Fräulein Mathilde,<br />

muito esperta e inteligente, não<br />

demorou a compreender que para<br />

ser bem sucedida com os pequenos,<br />

e sobretudo com <strong>Plinio</strong>, deveria ser<br />

muito lógica e demonstrativa.<br />

Boas maneiras, afeto, disciplina,<br />

energia, lógica, eram elementos que<br />

iam levando as crianças a adquirir<br />

maturidade, de acordo com o respectivo<br />

desenvolvimento. Progresso<br />

este que Dª Lucilia acompanhava<br />

com imensa satisfação, e não menor<br />

reconhecimento à governanta alemã,<br />

pelo inestimável benefício que<br />

esta prestava a seus queridos filhos.<br />

(Transcrito, com adaptações,<br />

da obra “Dona Lucilia”, de<br />

João S. Clá Dias)<br />

10


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

“Com Cristo,<br />

sede<br />

felizes!”<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, década de 50,<br />

discursa outra vez<br />

no Colégio Arquidiocesano<br />

de São Paulo<br />

E<br />

m novembro<br />

de 1936, ao<br />

discursar para<br />

os diplomandos do<br />

Colégio Arquidiocesano<br />

de São Paulo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

indicou para a juventude<br />

— de todos os tempos e<br />

lugares — o caminho que<br />

conduz à verdadeira<br />

felicidade nesta vida:<br />

Meus jovens amigos. Há onze anos, precisamente,<br />

quase dia por dia e hora por hora,<br />

eu me encontrava na situação em que hoje<br />

vos achais. Concluía os meus estudos ginasiais, e tinha<br />

abertas diante de mim as portas dos cursos superiores.<br />

Nos discursos dos paraninfos, que os jornais publicavam,<br />

nos comentários dos meus colegas, nos cumprimentos<br />

de meus amigos, ecoava essa grande e justa<br />

alegria de quem vence uma etapa na vida e repousa por<br />

um momento sobre os louros legitimamente conquistados,<br />

antes de encetar nova caminhada. Incessantemente<br />

se me dizia que minha vida passava por uma fase feliz<br />

que era como um laço de ouro, reunindo uma infância<br />

risonha e saudosa a uma mocidade cheia de prazer e,<br />

talvez... a uma idade adulta cumulada de honras e de<br />

glória.<br />

E, no entanto, no meio de tanta alegria, eu me sentia<br />

interiormente devastado por uma grande angústia, feita<br />

de nostalgia e de apreensões. As felicitações que minha<br />

geração recebia, os prognósticos felizes com que a<br />

presenteavam, as perspectivas risonhas que lhe eram<br />

apontadas, me pareciam de um oco e cruel formalismo,<br />

à vista do drama que eu sofria no isolamento de minha<br />

vida interior. Eu sentia que a geração que nos tinha educado<br />

faltara lamentavelmente à missão para conosco.<br />

Onde procurávamos diretrizes, só encontrávamos gentilezas.<br />

Onde procurávamos conselhos, só ouvíamos<br />

frases gastas pela banalidade e repetidas sem convicção.<br />

Não quero que alguém dentre vós me faça a censura,<br />

muda mas amarga, com que minha geração condenou a<br />

maior parte dos paraninfos e conselheiros que teve.<br />

11


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Disse o eloqüente orador que, em vosso nome, discursou<br />

há pouco, que vós me escolhestes para ser o cavaleiro<br />

experimentado na luta da vida, que vos arme, a<br />

vós também, guerreiros da vida. Esperais, pois, que eu<br />

seja para vós outra coisa que não um cicerone amável e<br />

insincero que vos mostre todos os encantos da vida, escondendo<br />

as agruras e os percalços que nela encontrareis.<br />

Não vos direi, portanto, as gentilezas convencionais<br />

ou as promessas falaciosas que já se tornaram de estilo<br />

em circunstâncias como esta.<br />

O que ouvireis de mim e, por meu intermédio, da<br />

mocidade mariana de São Paulo, é uma palavra franca<br />

até à rudeza, mas sinceramente amiga. Mentiríamos<br />

perante Deus, perante vós e perante nós, se vos apresentássemos<br />

esta vida como uma sucessão de triunfos<br />

Para Nosso Senhor Jesus Cristo devemos fazer convergir todos os nossos<br />

ideais (Escultura na fachada da Catedral de Chartres, França)<br />

fáceis e de acontecimentos felizes. Trazemos na alma as<br />

cicatrizes dos grandes combates que travamos. Como<br />

um hino marcial, sentimos vibrar a todos os instantes,<br />

em nossos corações, o chamado divino que nos convoca<br />

para a grande batalha. Concebemos a vida não como<br />

um festim, mas como uma luta. Nosso destino deve ser<br />

de heróis e não de sibaritas. É esta verdade, sobre a<br />

qual mil vezes meditamos, que hoje vos venho repetir.<br />

Qual é a angústia que sobre os meus companheiros<br />

de turma e sobre mim baixava como um crepúsculo<br />

cheio de dúvidas, exatamente na fase de nossa vida que<br />

a literatice dos discursos oficiais convencionara chamar<br />

de aurora radiosa?<br />

Esta angústia era, na sua expressão mais aguda e<br />

mais cruel, a grande crise da adolescência, que constitui<br />

um dos fenômenos mais importantes da história da civilização<br />

contemporânea. [...]<br />

Hoje como ontem — ontem muito<br />

mais do que hoje — a influência da Religião<br />

se exerce sobre a infância de modo<br />

todo particular. Essa influência, que a<br />

sociedade moderna tolera por um resto<br />

de Fé ou de tradição, entra em choque<br />

com as exigências do ambiente que<br />

rodeia a mocidade. Deste choque, nasce<br />

para os adolescentes a necessidade de<br />

optar por Cristo ou contra Ele. Mais<br />

consciente em uns, menos consciente em<br />

outros, esta necessidade se impõe a todos.<br />

E é nas lutas íntimas que esta opção<br />

provoca que consiste, em síntese, a crise<br />

da adolescência. [...]<br />

Compreendeis, agora, qual a mensagem<br />

que vos trago.<br />

Antes de tudo, nossa luta é interior. Se<br />

queremos que Cristo reine no mundo<br />

contemporâneo, devemos começar por<br />

querer que Ele reine em nós. É inadmissível<br />

que queiramos (nosso país) governado<br />

pela lei de Cristo, mas que esta Lei<br />

não reine invariavelmente em nossa inteligência,<br />

em nossa vontade e em nosso<br />

coração. Nossa maior luta, nosso primeiro<br />

combate é todo interior. Combatemos<br />

dentro de nós mesmos o mundo<br />

moderno, que nos quer arrastar para<br />

uma vida que nossos princípios condenam.<br />

Em um mundo impuro, esforçamonos<br />

por sermos puros. Em um mundo<br />

entregue aos prazeres, vivemos de trabalho<br />

e de austeridade. Em um mundo<br />

sedento de dinheiro, vivemos de renúncia<br />

e de abnegação. Em um mundo apai-<br />

12


xonado pela desordem e pela<br />

indisciplina, vivemos na disciplina<br />

por amor à Ordem. [...]<br />

Meus jovens amigos:<br />

Uma tradição já consagrada,<br />

impõe aos paraninfos o dever<br />

do acenar aos bacharelandos<br />

com risonhas imagens de<br />

felicidade.<br />

Não quero fugir à regra. Mas,<br />

em lugar de vos dirigir simplesmente<br />

um voto de felicidade,<br />

quero fazer-vos aqui uma promessa<br />

solene. Sede (verdadeiros<br />

católicos), e a felicidade descerá<br />

sobre vós como uma aurora<br />

magnífica. No seio de todas<br />

as lutas, de todas as tribulações,<br />

de todas as dificuldades<br />

que a vida nos possa apresentar.<br />

Colocai Cristo no centro da<br />

vossa vida. Fazei convergir para<br />

Ele todos os vossos ideais.<br />

[...]<br />

Nos meus braços, que ora se<br />

abrem afetuosamente para vós,<br />

estão os vinte mil amplexos<br />

dos vinte mil Congregados Marianos<br />

do Estado de São Paulo.<br />

Neste imenso amplexo com<br />

que vinte mil corações e vinte<br />

mil almas vos esperam no caminho<br />

do dever, no campo da luta<br />

pela Igreja e pela civilização,<br />

sentireis eflúvios dulcíssimos<br />

em que palpitaram o heroísmo e o amor que só aos pés<br />

de Cristo se podem haurir.<br />

Não tenhais medo da luta que se abre diante de vós.<br />

É dos que lutam como vós, a felicidade.<br />

E é esta a felicidade que eu vos prometo.<br />

Há vinte séculos já foi ela prometida ao mundo, do<br />

alto de uma montanha da Palestina:<br />

Felizes os que têm o espírito desapegado das riquezas<br />

deste mundo, porque deles é o reino dos céus.<br />

Felizes os mansos, porque eles possuirão a terra.<br />

Felizes os que choram, porque eles serão consolados.<br />

Felizes os que têm fome e sede de virtude, porque<br />

eles serão fartos.<br />

Felizes os misericordiosos, porque eles alcançarão a<br />

misericórdia.<br />

Felizes os puros, porque eles verão a Deus.<br />

Há <strong>20</strong> séculos, numa montanha da Palestina, o Divino Redentor prometia aos homens<br />

a verdadeira felicidade neste mundo (O Sermão da Montanha, por Doré)<br />

Felizes os pacíficos, porque serão chamados filhos de<br />

Deus.<br />

Felizes os que padecem perseguição por amor da virtude,<br />

porque deles é o reino dos céus.<br />

Felizes sereis quando vos amaldiçoarem e perseguirem,<br />

e mentindo disserem todo o mal contra vós, por<br />

ódio a Cristo. Enchei-vos de alegria e exultai, porque o<br />

vosso galardão é muito grande nos céus.<br />

Meus jovens amigos:<br />

É esta a felicidade que vos desejo. Felicidade profunda,<br />

felicidade completa, felicidade solidamente alicerçada<br />

na maior fonte de venturas que o homem possa ter<br />

e que é a paz de um coração que vive na lei de Deus.<br />

Com Cristo, meus jovens amigos, sede felizes!<br />

(Excertos da matéria publicada em<br />

“Echos”, de 22/11/1936)<br />

13


DR. PLINIO COMENTA...<br />

NOSSA SENHORA<br />

NO TEMPLO DE JERUSALÉM<br />

N<br />

o dia 21 de novembro a Igreja celebra um dos mais significativos momentos da vida<br />

de Nossa Senhora: sua Apresentação no Templo, quando Ela contava apenas<br />

três anos de idade. Segundo a tradição, ali a menina permaneceria num contínuo<br />

exercício de união com Deus, até a hora de sair para cumprir a augusta missão a que fora predestinada:<br />

conceber e trazer ao mundo o Divino Redentor.<br />

Na conferência a seguir transcrita, tece <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> piedosas considerações acerca de tão<br />

importante data mariana.<br />

Nesta<br />

N<br />

festa da Apresentação de Nossa Senhora,<br />

gostaria de comentar algumas reflexões<br />

de São Francisco de Sales a tal respeito, publicadas<br />

no livro “Os mais belos textos sobre a Virgem”.<br />

Assim se exprime o Doutor Suavíssimo:<br />

“É ato de admirável simplicidade o desta gloriosa<br />

criança que, presa ao regaço de sua mãe, agia como as<br />

outras crianças de sua idade, embora falasse já com<br />

sabedoria. Ela ficou como um suave cordeiro junto a<br />

Santa Ana pelo espaço de três anos, após os quais foi<br />

conduzida ao Templo, para ali ser ofertada como Samuel,<br />

que também foi conduzido ao Templo por sua<br />

mãe e dedicado ao Senhor na mesma idade.<br />

“Ó meu Deus, como desejaria poder representar vivamente<br />

a consolação e suavidade dessa viagem, desde<br />

a casa de Joaquim até o Templo de Jerusalém! Que contentamento<br />

demonstrava essa criança vendo chegar a<br />

hora que tanto desejara!<br />

“Os que iam ao Templo, para adorar e oferecer presentes<br />

à Divina Majestade, cantavam ao longo da viagem.<br />

E, para essas ocasiões, o real profeta David compusera<br />

expressamente um salmo, que a Santa Igreja nos<br />

faz repetir todos os dias no Ofício Divino. Ele começa<br />

pelas palavras: Beati inmaculati in via. Bem-aventurados<br />

são aqueles, Senhor, que na tua via (ou seja, na observância<br />

dos Mandamentos) caminham sem mácula, sem<br />

mancha de pecado.<br />

“Os bem-aventurados São Joaquim e Santa Ana cantavam<br />

então esse cântico ao longo do caminho, e com<br />

eles, nossa gloriosa Senhora e Rainha.<br />

“Oh Deus, que melodia! Como Ela a entoava mil<br />

vezes mais graciosamente que os Anjos! Por isso ficaram<br />

estes de tal forma admirados que, aos grupos, vinham<br />

escutar essa celeste harmonia. E os Céus, abertos,<br />

inclinavam-se nos alpendres da Jerusalém celeste para<br />

olhar e admirar essa amabilíssima criança.<br />

“Eu quis vos dizer isso, embora rapidamente, para<br />

que tenhais com que vos entreter o resto desse dia considerando<br />

a suavidade dessa Virgem. Também para que<br />

fiqueis comovidos escutando esse cântico divino que<br />

nossa gloriosa Princesa entoa tão melodicamente. E isso<br />

com os ouvidos de nossa devoção, porque o muito feliz<br />

São Bernardo diz que a devoção é o ouvido da alma.”<br />

Admiráveis contrastes<br />

numa criança imaculada<br />

O fundamento teológico desse trecho de São Francisco<br />

de Sales — em que, aliás, transparece toda a doçura<br />

e todo o suco dos escritos dele — é a Imaculada Conceição<br />

de Nossa Senhora.<br />

Ela, concebida sem pecado original, desde o primeiro<br />

instante de seu ser foi isenta de todas as limitações<br />

decorrentes da mancha que herdamos de Adão. Entre<br />

essas carências está o fato de o homem nascer sem o uso<br />

da sua inteligência, o que só ocorre mais tarde, à medida<br />

que ele cresce e se desenvolve. Em Nossa Senhora,<br />

porém, essa regra não se verificou. É sentença corrente<br />

na Teologia que Ela, tão logo foi concebida, teve imediato<br />

uso da sua inteligência, naturalmente altíssima.<br />

14


Esse singular privilégio fazia com que, uma vez vinda<br />

ao mundo, se reunissem na excelsa menina aspectos admiráveis<br />

e aparentemente contraditórios. De um lado,<br />

possuía Ela, já naqueles primeiros passos de sua existência,<br />

uma capacidade de contemplação que sobrepujava<br />

a dos maiores Santos da Igreja. Mas, de outro, Ela<br />

mantinha uma postura de criança, não exteriorizando a<br />

perfeição de sua alma. Desejava assim, por humildade,<br />

viver como uma menina comum, de maneira tal que,<br />

quem tratasse com a pequena Maria, teria a impressão<br />

de estar em contato com uma criança igual a todas —<br />

exceto por alguma expressão de olhar ou palavra d’Ela.<br />

Tal o Filho, tal a Mãe<br />

O mesmo se deu com Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

que queria ser nutrido, protegido e custodiado como<br />

uma criança comum, embora Ele fosse Deus, soberano<br />

Senhor e Rei do Céu e da Terra.<br />

Quem poderá imaginar, então, na vida quotidiana<br />

de Nossa Senhora e São José, o<br />

momento em que era preciso aleitar o<br />

Menino-Deus? Ou em que era necessário<br />

trocar suas roupinhas, e um dos<br />

dois O toma nos braços, reclina-O<br />

com todo o carinho sobre uma<br />

mesa e começa a vesti-Lo? Sabendo<br />

que, unida à natureza humana<br />

daquela criancinha que Lhe<br />

sorri, daquele menino que tudo<br />

entende, mas parece nada<br />

entender, está a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade,<br />

constantemente<br />

imersa nas alegrias,<br />

nas grandezas, na<br />

majestade e nos<br />

esplendores<br />

divinos!<br />

Apresentação<br />

de Nossa Senhora,<br />

quadro de Vittore<br />

Carpaccio<br />

15


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Quem poderá imaginar a admiração e o aturdimento<br />

que tais contrastes despertavam em São José e em Nossa<br />

Senhora!?<br />

Pois bem, algo disso se dava igualmente com São<br />

Joaquim e Santa Ana, em relação à sua filha imaculada.<br />

Ainda que não tivessem conhecimento de que Ela estava<br />

predestinada a ser a Mãe do Deus Humanado, certamente<br />

compreendiam ser uma menina destinada a altíssima<br />

vocação em vista do Messias. Menina que, por<br />

vontade própria, levava a vida de uma criancinha como<br />

as outras. Simples, cheia de bondade e acessibilidade,<br />

deixando que os parentes a tomassem no colo, ou, assim<br />

que o foi capaz de fazer, servindo às visitas e dispensando<br />

pequenas atenções a todos. Ela, Rainha incomparável,<br />

Soberana do Universo!<br />

Santa Ana e sua<br />

Filha Imaculada<br />

Cantando, a caminho do Templo<br />

Nessas condições, aos três anos de idade foi Nossa<br />

Senhora levada ao Templo por seus pais. E, como já<br />

afirmamos, no caminho iam entoando cânticos e salmos<br />

compostos pelo Rei David, obedecendo ao lindo costume<br />

dos judeus daquela época.<br />

Como se sabe, embora houvesse espalhadas pela<br />

Judéia inúmeras sinagogas onde eles se reuniam para<br />

rezar e promover certos cultos, o Templo era um só, o<br />

de Jerusalém. E os fiéis de todo o território judaico, e<br />

também os da Diáspora, dispersos pelo mundo, iam periodicamente<br />

a Jerusalém para participar do sacrifício<br />

do Templo. E para externar a alegria de se dirigir até o<br />

lugar onde se manifestavam a glória e as consolações de<br />

Deus, ao lugar que representava o vínculo entre o Céu e<br />

a terra, era bonito que eles fossem cantando. Como,<br />

aliás, tantas vezes acontece em romarias católicas, nas<br />

quais o povo intercala seguidamente preces e hinos religiosos.<br />

Compraz-nos imaginar os caminhos que conduziam à<br />

Cidade da Paz, nas épocas de visita ao Templo, repletos<br />

de judeus chegados de todos os lados, enchendo com<br />

seus cânticos os ares da terra judaica. Numa dessas ocasiões<br />

encontravam-se entre eles São Joaquim, Santa<br />

Ana e a pequena Maria. Sem dúvida, haveria de ser belo<br />

o cântico da menina, entoado com uma voz inefável,<br />

repetindo o salmo que David, por inspiração do Espírito<br />

Santo, compusera para tais circunstâncias:<br />

“Bem-aventurados os que se conservam sem mácula<br />

no caminho, os que andam na lei do Senhor. / Bemaventurados<br />

os que estudam os seus testemunhos, os<br />

que de todo o coração O buscam.” (Salmo 108)<br />

É interessante notar que, com extraordinária<br />

finura de tato, São Francisco de Sales não comenta<br />

a impressão que o canto de Nossa Senhora<br />

produziria nas pessoas ao redor d’Ela.<br />

E isto porque, como a Santíssima Virgem<br />

não deixava transparecer sua grandeza, era<br />

possível que Ela não cantasse com toda a<br />

perfeição que estava a seu alcance. Na realidade,<br />

uma música cantada por Nossa<br />

Senhora, sem as limitações intencionais<br />

impostas por Ela, teria de ser o cântico!<br />

Antes e depois de Maria Virgem, excetuando<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo, ninguém<br />

cantou nem igual a Ela.<br />

Mas, se não era dado aos homens<br />

compreender a excelência das melodias<br />

entoadas por Nossa Senhora, diz São Francisco<br />

de Sales que os Anjos a conheciam, e por<br />

isso se punham a ouvir, extasiados, as harmonias<br />

de alma com que Ela cantava. E São<br />

16


Francisco vai mais longe: compara o Céu a<br />

uma cidade, a Jerusalém celeste, em cujos<br />

alpendres e terraços os Anjos se debruçavam<br />

para contemplar Maria Santíssima cantando<br />

pelos caminhos da Judéia. E essa visão os<br />

enchia de um gáudio inexprimível.<br />

Já nos primeiros passos<br />

de sua existência, Maria<br />

possuía uma capacidade<br />

de contemplação superior<br />

à dos maiores Santos da<br />

Igreja (Nossa Senhora<br />

menina, por Zurbarán)<br />

Ápice da história do Templo<br />

A meu ver, pensamento mais apropriado<br />

e mais bonito do que esse, só mesmo o que<br />

nos sugere a entrada de Nossa Senhora no<br />

Templo de Jerusalém, o lugar mais abençoado<br />

da terra, envolto em grandeza e majestade<br />

sacrais, e ainda habitado pela glória do<br />

Pai Eterno.<br />

Podemos imaginar o estremecimento de<br />

alegria de todos os Anjos que pairavam no<br />

Templo, ao verem Nossa Senhora entrando<br />

pela primeira vez na Casa do Altíssimo, como<br />

uma Rainha entra naquilo que lhe é próprio;<br />

como uma jóia posta no escrínio onde<br />

deve ser guardada!<br />

Os espíritos celestiais deviam saber, por<br />

revelação de Deus, ser aquele o momento<br />

em que a grande história e, ao mesmo tempo,<br />

a grande tragédia do Templo iam se iniciar.<br />

A história: em breve, o próprio Filho de<br />

Deus, nascido de Maria Imaculada, entraria<br />

por aquelas sagradas paredes. A tragédia: o<br />

Templo ia recusar o Messias. E o fim dessa<br />

história e dessa tragédia seriam — no magnífico<br />

dizer de um autor eclesiástico (Bossuet) — as pompas<br />

fúnebres de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ou seja, assim<br />

que Ele expirou, o Pai Eterno começou a preparar<br />

suas exéquias: o céu se obscureceu, o sol se toldou, a<br />

terra e o Templo tremeram!<br />

No caso deste último, tenho a impressão de que os<br />

Anjos receberam ordem divina de abandoná-lo ao<br />

poder dos demônios, e que estes fizeram ali uma espécie<br />

de festa sacrílega, à maneira de cem mil gatos selvagens<br />

soltos naquele local, praticando abominações de<br />

toda ordem e fazendo estremecerem as colunas do outrora<br />

edifício sagrado.<br />

Mas, apesar de tudo, o Templo conheceu sua plenitude<br />

quando Maria atravessou uma vez mais aqueles<br />

pórticos — que abandonara para se unir a São José —<br />

trazendo em seus braços o Menino Jesus, o Esperado<br />

das nações. Mãe e Filho foram recebidos por Ana e<br />

Simeão, representantes da fidelidade, os quais reconheceram<br />

Jesus como o enviado por Deus. Estava fechado<br />

o elo entre os justos da Antiga Lei e a promessa que se<br />

cumpria. Era o ápice da história do Templo de Jerusalém.<br />

Ora, o primeiro passo para esse auge foi realizado<br />

naquele momento em que Nossa Senhora, menina de<br />

três anos, apresentou-se no Templo com seus pais.<br />

Quem poderá descrever o que devem ter sentido nessa<br />

hora os Simeões e as Anas ali presentes? E as graças, as<br />

fulgurações do Espírito Santo que se espargiram pelo<br />

Templo nessa ocasião?<br />

Sigamos, porém, o conselho do suavíssimo São Francisco<br />

de Sales: conservemos todas essas cogitações em<br />

nossa alma, e, tanto quanto possível, pensemos nelas<br />

serena e alegremente. Máxime nestes tempos agitados<br />

em que vivemos. Nada mais recomendável do que, ao<br />

cabo de um dia de faina, nos distendermos na consideração<br />

desses fatos: Nossa Senhora, São Joaquim e Santa<br />

Ana a caminho do Templo, cantando pelas estradas da<br />

Judéia, enquanto nos alpendres da Jerusalém Celeste<br />

os mais altos Anjos se debruçam, embevecidos com a alma<br />

daquela menina.<br />

<br />

17


A expansão da obra de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

2<br />

1<br />

Graças ao maternal patrocínio<br />

da Santíssima Virgem e ao<br />

infatigável esforço de<br />

entusiasmados filipinos (foto 4),<br />

a Obra de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> desenvolvese<br />

com impressionante pujança<br />

pelas inúmeras ilhas desse<br />

país-arquipélago. Prova-o<br />

a recente peregrinação com a<br />

Imagem de Nossa Senhora de<br />

Fátima, durante a qual<br />

se colheram, nas mais<br />

variadas cidades, promissores<br />

frutos de apostolado.<br />

Funcionários do histórico Hotel<br />

Manila (foto 1), que hospedou<br />

grandes personalidades,<br />

recebem a imagem peregrina de<br />

Nossa Senhora de Fátima.<br />

Professores e alunos da<br />

Universidade de Cebu (fotos 2 e<br />

3) acorrem à Virgem de Fátima<br />

na visita àquela instituição.<br />

3<br />

4<br />

18


5<br />

7<br />

6<br />

Respeito, veneração e alegria<br />

marcaram a chegada da imagem<br />

peregrina à Universidade<br />

São José, em Cebu (foto 5 ).<br />

Após doze horas de viagem de<br />

barco, a Rainha de Fátima<br />

chega à província de<br />

Surigao del Norte (foto 6 ).<br />

Fervor e devoção caracterizaram<br />

também a visita de Nossa<br />

Senhora a um dos mais<br />

conhecidos shopping-centers<br />

de Cebu (foto 7 ).<br />

Incontáveis fiéis desfilaram<br />

diante de Nossa Senhora,<br />

exposta à veneração pública na<br />

Prefeitura de Surigao (foto 8 ).<br />

8<br />

19


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

ENCONTRO COM O<br />

CORAÇÃO EUCARÍSTICO<br />

DE JESUS<br />

<strong>20</strong>


C<br />

erta vez perguntaram a Napoleão Bonaparte<br />

qual havia sido o dia mais feliz de sua vida. Apesar<br />

de toda a glória que lhe obtiveram seus ribombantes<br />

triunfos militares e políticos, ele não hesitou em<br />

responder: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”. Este é<br />

um exemplo muito ilustrativo de quanto uma alma fica<br />

marcada, de modo indelével, pelo momento em que se abre<br />

para ela o convívio com Nosso Senhor sacramentado.<br />

Tal se passou também com <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, naquele 19 de<br />

novembro de 1917, quando se aproximou pela primeira vez<br />

da Sagrada Eucaristia. Décadas mais tarde, ele se comprazeria<br />

em recordar essa inesquecível data:<br />

A<br />

Aatmosfera que cercava<br />

as Primeiras Comunhões,<br />

no meu tempo<br />

de menino, era muito especial,<br />

porque fora organizada segundo a<br />

doutrina e a mentalidade de São<br />

Pio X, o Pontífice das Primeiras<br />

Comunhões. Antes dele, a tendência<br />

corrente era de que uma pessoa<br />

só se aproximasse da Santa<br />

Mesa quando inteiramente adulta,<br />

não sendo raro o caso de homens<br />

e mulheres que comungavam<br />

pela primeira vez nas vésperas<br />

de seu casamento.<br />

Essa atitude era determinada<br />

pela compreensível idéia de que a<br />

Comunhão é algo por demais sagrado<br />

para que as crianças a recebam,<br />

pois não têm critério para<br />

comungar com o respeito e a devoção<br />

necessárias.<br />

O que importa<br />

é o grau de inocência<br />

São Pio X, entretanto, entendia<br />

de modo diferente, e colocou a<br />

questão em outros termos. Dizia<br />

ele: “Não se trata de saber o que a<br />

criança é capaz de pensar, e sim<br />

que grau de inocência ela tem.<br />

Porque, se fôssemos raciocinar em<br />

função de sua capacidade intelec-<br />

tual, então não deveríamos batizála<br />

nos primeiros dias após seu nascimento”.<br />

Um juízo muito acertado, cujo<br />

desenvolvimento é este: no momento<br />

do Batismo, embora o recém-nascido<br />

ainda não pense, a<br />

recepção do Sacramento significa<br />

para ele uma comunicação de graças<br />

extraordinárias, que agirão sobre<br />

sua alma até o dia em que comece<br />

a fazer uso da razão. E, mesmo<br />

nesse início da vida de pensamento,<br />

as graças do Batismo lhe<br />

serão de extrema valia, guiando<br />

seus primeiros passos e o fortalecendo<br />

na Fé. É esse um dos motivos<br />

primordiais pelos quais a<br />

Igreja inteira batiza as crianças logo<br />

depois do nascimento.<br />

E análogo princípio aplicou São<br />

Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão<br />

para as crianças. Quer dizer,<br />

tomando em consideração que<br />

estas, via de regra, ainda conservam<br />

sua inocência, ser-lhes-á ocasião<br />

de graças superabundantes<br />

receberem a Sagrada Eucaristia.<br />

Para tanto, basta compreenderem<br />

a mudança de substância operada<br />

na hóstia no momento em que é<br />

consagrada, quando ela passa a<br />

ser, verdadeiramente, Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, em seu corpo e<br />

sangue, alma e divindade.<br />

Na manhã do dia<br />

19 de novembro de 1917, o menino<br />

<strong>Plinio</strong> (página anterior) vestiu seu<br />

hábito<br />

de Primeira Comunhão<br />

— cópia do uniforme de gala<br />

do renomado Colégio Eaton,<br />

da Inglaterra —<br />

e se dirigiu à igreja de<br />

Santa Cecília,<br />

onde receberia o Coração Eucarístico<br />

de Jesus.<br />

Acima, santinhos da<br />

Primeira Comunhão dele<br />

e de sua irmã, Rosée.<br />

21


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Trajes especiais<br />

São Pio X determinou que a festa<br />

da Primeira Comunhão para as<br />

crianças fosse cercada de grande solenidade.<br />

Datam daí os ornamentos<br />

de que se revestem as igrejas nessas<br />

ocasiões, e os trajes cerimoniosos<br />

com os quais meninos e meninas se<br />

apresentam para receber a Jesus<br />

sacramentado, símbolos do coração<br />

inteiramente inocente e virginal que<br />

vai de encontro ao seu Salvador.<br />

Recordo-me de que, na minha<br />

época (e talvez esse costume se conserve<br />

até hoje), as meninas apareciam<br />

diante de Nosso Senhor, o Divino<br />

Esposo das almas, trajadas de<br />

noiva, com vestido longo, o véu cingido<br />

na fronte por uma grinalda de<br />

flores brancas, e brancos também os<br />

sapatos.<br />

Por sua vez, os meninos deveriam<br />

ir tão bem vestidos quanto o permitiam<br />

as posses de seus pais. Aqueles<br />

com mais recursos<br />

mandavam confeccionar<br />

uma roupa<br />

especial para a ocasião.<br />

E no meu tempo,<br />

o hábito de Primeira<br />

Comunhão<br />

masculino era a cópia<br />

do uniforme solene<br />

de um dos colégios<br />

mais famosos do<br />

mundo — o Eaton,<br />

da Inglaterra: uma<br />

roupa muito pomposa,<br />

consistente em<br />

paletó e calça de casimira<br />

inglesa e corte<br />

elegante, camisa<br />

engomada, de colarinho<br />

duro, gravata<br />

escura. No braço esquerdo<br />

fixava- se um<br />

laço de fita branca,<br />

em cujas pontas brilhavam<br />

pingentes<br />

dourados. O branco<br />

simbolizava a castidade<br />

e a virgindade<br />

do menino; o dourado<br />

lembrava a sua fé.<br />

Depois da<br />

cerimônia, a festa<br />

No dia da Primeira<br />

Comunhão, após o ato<br />

na igreja (comumente<br />

realizado pela manhã),<br />

as respectivas famílias<br />

costumavam se reunir<br />

nas casas dos meninos,<br />

onde as mães haviam<br />

preparado uma grande<br />

festa para celebrar a data<br />

memorável. Além dos<br />

parentes, eram convidadas<br />

todas as crianças<br />

com quem o filho ou a<br />

filha tinha relações, não<br />

sendo raro ajuntarem-se<br />

vinte ou trinta pimpolhos,<br />

em torno de uma<br />

lauta mesa. Naqueles<br />

Altar (acima) e confessionários (abaixo)<br />

da Igreja de Santa Cecília, onde <strong>Plinio</strong><br />

recebeu a Primeira Comunhão<br />

idos de 1917, a maravilha que fazia<br />

a alegria da meninada era o prato<br />

de chocolate com o que chamavam<br />

de creme chantilly. Como São Paulo<br />

era, entretanto, uma cidade ainda<br />

nos primórdios de seu desenvolvimento,<br />

não se conhecia o verdadeiro<br />

chantilly, mas apenas uma<br />

deliciosa imitação feita com clara de<br />

ovo batida. Então vinham aquelas<br />

copiosas porções de chocolates sob<br />

o “creme francês”, e as crianças se<br />

regalavam. O passo seguinte era fazer<br />

as honras às frutas, sorvetes, refrescos<br />

e toda espécie de sanduíches<br />

e doces.<br />

Terminado o banquete, começava<br />

a correria pelo jardim da casa, tanto<br />

maior quanto mais extenso fosse o<br />

terreno à disposição dos infatigáveis<br />

meninos. O cansaço só se apresentava<br />

à noite, quando se aprontavam<br />

para dormir, depois de terem rezado.<br />

22


Assim transcorria o dia da Primeira<br />

Comunhão.<br />

“Hoje, pensem apenas<br />

no Santíssimo Sacramento”<br />

Para mim, minha irmã e uma prima<br />

que fez a Primeira Comunhão<br />

conosco, as coisas se passaram de<br />

modo diferente. Dª Lucilia, exímia<br />

organizadora de tudo, entendia que<br />

a comemoração em família não deveria<br />

acontecer na volta da igreja.<br />

Julgava ela que, se realizada a festa<br />

no mesmo dia, poderia haver<br />

o risco de a criança, levada<br />

pela imaginação infantil,<br />

amanhecer pensando mais<br />

nos festejos do que na<br />

Sagrada Eucaristia.<br />

Então, com seu<br />

afeto e cuidado todo<br />

especial, mamãe nos<br />

chamou alguns dias<br />

antes para nos colocar<br />

a par do programa.<br />

Disse-nos:<br />

— Vocês devem entender<br />

que a festa não<br />

vai ser no mesmo dia.<br />

Nessa data vocês devem se<br />

preocupar somente com a<br />

Primeira Comunhão. É como<br />

se fosse um feriado: não vão estudar<br />

nem se entregar a atividades<br />

muito dispersivas. Devem passar o<br />

dia vestidos com o hábito de Primeira<br />

Comunhão e terem atividades<br />

tranqüilas, dentro de casa, sem ir ao<br />

jardim, e evitar de olhar pelas<br />

janelas, para não se distraírem com<br />

o movimento da rua. Passeiem de<br />

uma sala para outra, de um quarto<br />

para outro, andem pelos corredores,<br />

rezando e procurando lembrar-se<br />

do que se deu com vocês<br />

nessa ocasião. Quer dizer, pensem e<br />

concentrem a atenção no Santíssimo<br />

Sacramento. Depois, no dia<br />

seguinte, faremos a comemoração<br />

em grande estilo.<br />

Um passo muito sério<br />

a ser dado<br />

Nós três havíamos tido um curso<br />

de catecismo particular, ministrado<br />

por um padre amigo da família. Durante<br />

algumas semanas, ele nos explicou<br />

os pontos essenciais da Doutrina<br />

Católica, contou-nos a História<br />

Sagrada, etc., preparando-nos<br />

dessa forma para o solene encontro<br />

com Nosso Senhor Eucarístico.<br />

Dª Lucilia, por seu lado, também<br />

nos predispôs para a Primeira Comunhão,<br />

antes e mais do que tudo<br />

pelo ambiente que ela criava em<br />

casa, todo feito de piedade, de inocência,<br />

de inteira e ilimitada confiança<br />

nela, bem como de imenso<br />

afeto. Além disso, mamãe nos ajudava<br />

a entender melhor as lições recebidas<br />

do padre, e nos fazia ter<br />

uma alta idéia do que significava a<br />

graça da Primeira Comunhão. É supérfluo<br />

dizer que a materna e zelosa<br />

assistência dela nos foi de imenso<br />

proveito.<br />

Assim, a preparação feita com<br />

muito cuidado pelo padre, somada<br />

às explicações de Dª Lucilia, que<br />

completavam os ensinamentos do<br />

sacerdote, e depois o programa<br />

traçado por ela dias antes da Primeira<br />

Comunhão, fez-nos ver como<br />

era sério o passo que íamos dar.<br />

Evidentemente, esse ambiente criado<br />

em torno de nós era próprio a<br />

determinar todo o grau de recolhimento<br />

que uma criança possa ter.<br />

Eu, particularmente, fiquei muito<br />

compenetrado e fiz o propósito de<br />

observar esse recolhimento quanto<br />

me fosse possível, nos meus<br />

nove anos.<br />

Depois de termos sido<br />

examinados, e verificado<br />

que sabíamos o bastante<br />

para comungar, fizemos<br />

parte de uma turma<br />

de Primeira Comunhão<br />

da paróquia<br />

de Santa Cecília. Foi<br />

um mundo de crianças,<br />

vestidas de acordo<br />

com a situação financeira<br />

dos pais. Algumas<br />

estavam ricamente<br />

trajadas, levando nas<br />

mãos lindos rosários e livrinhos<br />

de oração encadernados<br />

com forro de madrepérola.<br />

Os de certas meninas<br />

eram até recamados de pérolas nas<br />

bordaduras. Outros eram impressos<br />

com várias cores e também muito<br />

bonitos.<br />

A primeira confissão...<br />

Antes desse grande dia, porém,<br />

fiz a minha primeira confissão.<br />

Tomei-a com tanta seriedade que,<br />

para não me esquecer de nenhum<br />

dos meus pecados na hora de dizêlos<br />

ao padre, fiz uma lista deles.<br />

Imagine-se o que podiam ser as faltas<br />

de um menino de nove anos...<br />

Entretanto, apesar da pouca gravidade<br />

que elas poderiam encerrar,<br />

23


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

tive de me arrepender a duras penas<br />

por havê-las cometido! Pois a Fräulein<br />

Mathilde, a governanta alemã<br />

que nos levara para confessar, era<br />

muito exigente. Antes de eu me dirigir<br />

ao confessionário, ela me perguntou:<br />

— Você está arrependido de seus<br />

pecados?<br />

Eu entendia que estar arrependido<br />

era sentir vontade de chorar pelas<br />

faltas cometidas. Como tal sentimento<br />

não me viera, respondi:<br />

— Não!<br />

Inflexível, a alemã (de quem conservo<br />

saudosa e boa recordação)<br />

replicou, num tom imperativo:<br />

— Faça uma Via-Sacra!<br />

Achei que, para uma alma dura<br />

como a minha, que não se arrependia<br />

dos seus pecados, a solução era<br />

mesmo rezar a Via-Sacra... Foi o que<br />

fiz com toda a convicção. Quando<br />

voltei para junto da Fräulein, ela me<br />

perguntou de novo:<br />

— Está arrependido?<br />

— Não!<br />

Creio que fiz umas duas ou três<br />

Vias-Sacras... Afinal, Nossa Senhora<br />

teve pena de mim e me concedeu<br />

algo vagamente parecido com uma<br />

tendência a chorar pelas faltas cometidas.<br />

A governanta voltou à carga:<br />

— Você sente agora verdadeiro<br />

pesar?<br />

Pensei: “As lágrimas estão vindo...”<br />

Respondi então: “Sinto!” Ela<br />

imediatamente ordenou:<br />

— Vá fazer a confissão!<br />

Entrei no confessionário, puxei a<br />

lista dos meus pecados e a li para o<br />

sacerdote. Ele ouviu tudo com muita<br />

bondade e me deu a absolvição.<br />

Na saída, tomado pela importância<br />

do momento, não me dei conta de<br />

ter deixado cair aquela folha de papel.<br />

Quando já havia voltado para<br />

casa, mexendo nos bolsos dei pela<br />

falta dele. Então procurei Dª Lucilia<br />

e lhe disse:<br />

— Mamãe, eu preciso voltar à<br />

igreja para pegar tal papel, porque<br />

se alguém encontrar a lista dos meus<br />

pecados, ficarei em má situação.<br />

Ela logo percebeu que era coisa<br />

de criança, mas ficou satisfeita ao<br />

ver como eu tinha levado a sério a<br />

minha primeira confissão.<br />

Enquanto nós dois<br />

conversávamos, aproximou-se<br />

uma lavadeira que<br />

trabalhava em casa, pessoa<br />

muito boa, piedosa,<br />

chamada Madalena. Ela<br />

vinha trazendo umas roupas<br />

dobradas para guardar<br />

num armário e, naturalmente,<br />

prestou atenção<br />

na nossa conversa. A<br />

Madalena achou graça na<br />

minha aflição de menino,<br />

e, voltando-se para mamãe,<br />

disse:<br />

— Ah, eu dava tudo<br />

para conhecer os pecados<br />

do <strong>Plinio</strong>. Então, Dª Lucilia,<br />

a senhora me dá licença<br />

e eu vou depressa à<br />

Igreja de Santa Cecília<br />

para ver se pego a lista<br />

dos pecados do <strong>Plinio</strong>!<br />

Eu fiquei ultrajado ao extremo,<br />

mas vi que mamãe não tomou ao<br />

trágico nem ficou com medo de revelações<br />

sensacionais. E eu, sabendo<br />

que ela não deu importância, até<br />

me esqueci do fato. A Madalena foi<br />

à igreja e não encontrou a lista.<br />

Com certeza um sacristão, ou alguma<br />

faxineira limpando o recinto<br />

sagrado, encontrou aquilo e jogou<br />

fora. Estava acabado. Eram já não<br />

sei mais que pecados, mentirinhas<br />

não sei de que tamanho. Creio, porém,<br />

que os ter relacionado para<br />

não deixar de acusar nenhum e<br />

pedir perdão a Deus por todos,<br />

demonstra a compenetração com<br />

que me preparei para o Sacramento<br />

da Penitência, enquanto prelúdio da<br />

Primeira Comunhão.<br />

Alegria por vestir o “Eaton”<br />

Numa outra ordem de preparação,<br />

também tive de experimentar<br />

o famoso “Eaton” que usaria no dia<br />

solene. Obrigação para mim bastante<br />

enfadonha, pois toda a minha<br />

vida tive não pequeno desagrado<br />

em experimentar roupas: põe-se alfinete,<br />

tira alfinete, vira de cá, vira<br />

de lá, traçam-se marcas de giz...<br />

Nunca gostei disso. Enfim, o alfaiate<br />

contratado por Dª Lucilia fez os<br />

ajustes necessários, e chegou à conclusão<br />

de que o “Eaton” estava muito<br />

bom. Foi essa igualmente a opinião<br />

de mamãe, que em tudo exigia<br />

perfeição e não se contentaria com<br />

um Eaton mal cortado. O alfaiate<br />

seria muito bem tratado, receberia<br />

o justo pagamento pelo trabalho<br />

que fez, mas sob a condição de este<br />

estar perfeito. Ela achou que estava.<br />

O encontro com Jesus<br />

Sacramentado<br />

Na manhã seguinte, minha irmã,<br />

minha prima e eu nos dirigimos à<br />

Igreja de Santa Cecília, levando<br />

nossas velas que, assim como as das<br />

24


A Primeira<br />

Comunhão de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

além de ter<br />

sido o marco<br />

inaugural<br />

de uma série<br />

de comunhões,<br />

fortaleceu<br />

e preparou<br />

sua alma<br />

para uma<br />

longa vida<br />

de piedade<br />

e amor<br />

à Igreja<br />

(No alto,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> indo<br />

receber a<br />

Comunhão,<br />

e abaixo,<br />

fazendo ação<br />

de graças)<br />

à seguinte pergunta: de que me<br />

serviu a Primeira Comunhão?<br />

Sendo o marco inaugural de uma<br />

série de comunhões, ela preparou e<br />

fortaleceu minha alma para enfrentar<br />

os combates que, dali a<br />

pouco, eu teria de travar pelo bem e<br />

pela virtude. Ajudou meu espírito a<br />

ter o vigor necessário para opor resistência<br />

— dolorida, mas forte e<br />

decidida — às solicitações más, e<br />

quantas vezes pecaminosas, que se<br />

apresentam a todo adolescente e a<br />

todo jovem.<br />

Ela me preparou para uma vida<br />

que, graças à Santíssima Virgem,<br />

procurou se fazer sempre de piedade,<br />

de vontade de cumprir perfeitamente<br />

os mandamentos, e de<br />

entranhado amor à Igreja, para cujos<br />

serviço e triunfo eu quis dedicar<br />

continuamente todos os meus esforços.<br />

<br />

outras crianças, seriam acesas em<br />

determinado momento da Missa.<br />

O Santo Sacrifício, um tanto longo,<br />

dado que solene e cantado, foi<br />

seguido por mim com muita atenção,<br />

embora eu não soubesse ainda<br />

tudo quanto a Missa significa. Porém,<br />

o simples fato de estar presente<br />

a uma cerimônia da Igreja, pela<br />

qual eu já nutria imensa veneração,<br />

era o bastante para me fazer assistir<br />

àquilo com espírito de oração, com<br />

enlevo e profundo respeito.<br />

Afinal, chegou o momento da<br />

Comunhão. Formaram-se, separadamente,<br />

a fila das meninas e a dos<br />

meninos que, pela primeira vez, receberiam<br />

em suas almas a visita de<br />

Nosso Senhor Sacramentado. Pelo<br />

favor de Nossa Senhora, comunguei<br />

com muito recolhimento<br />

e procurei fazer minha<br />

ação de graças com intenso<br />

fervor e devoção.<br />

Quando, terminada a celebração<br />

litúrgica,<br />

eu retornava<br />

para casa, estava radiante de contentamento.<br />

Junto com minha irmã<br />

e minha prima, passei o dia em recolhimento,<br />

conforme o programa<br />

estabelecido por Dª Lucilia.<br />

No dia seguinte houve uma festa<br />

soberba, com guloseimas de toda<br />

espécie, as costumeiras correrias<br />

pelo jardim, etc.<br />

Preparação para uma<br />

vida de amor à Igreja<br />

Para concluir essas<br />

reminiscências de uma<br />

data que me é tão cara,<br />

gostaria de frisar<br />

um ponto<br />

que responde<br />

25


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

precis T<br />

a de<br />

santos<br />

T<br />

enho<br />

para mim como indiscutível que, se em<br />

nossa época materializada e devassa surgisse<br />

novamente um São Francisco de Assis, sua<br />

personalidade se imporia à admiração universal de um<br />

modo muito mais definitivo e rápido do que em qualquer<br />

época passada.<br />

É certo que a virtuosa Idade Média, profundamente<br />

imbuída de espírito católico, estava muito mais apta a<br />

compreender devidamente o grande estigmatizado de<br />

Assis. Convém, no entanto, ponderar que, dado o próprio<br />

espírito católico e sua geral disseminação em todas<br />

as classes sociais, a sede de virtude, parcialmente saciada<br />

em cada indivíduo, era muito menos veemente do<br />

que nos dias desoladores em que vivemos.<br />

O homem — disse-o certo escritor pagão — é um anjo<br />

decaído. E, por mais que nele imperem os vícios e defeitos<br />

da decadência, há sempre no seu coração, consciente<br />

ou inconsciente, uma grande nostalgia do Céu.<br />

Se se perscrutar cuidadosamente qualquer coração<br />

humano, seja ele o de um santo, o de um sábio, o de um<br />

O mundo<br />

26


ignorante ou o de um detento de penitenciária, notarse-á<br />

sempre a existência de sentimentos mais ou menos<br />

profundos, que anseiam por um grande ideal de pureza<br />

e de santidade.<br />

Enquanto viveu a civilização cristã, a vida era uma<br />

série de altruísmos que colaboravam para a felicidade<br />

coletiva. Repudiado o Catolicismo como lei suprema<br />

das relações entre homens e povos, a vida passou a ser<br />

uma série de egoísmos que se combatem. Daí o homo<br />

homini lupus (o homem é o lobo do homem).<br />

A parte animal do homem pode sufocar temporariamente<br />

as manifestações de sua parte angélica. Nunca<br />

pode, porém, destruí-la radicalmente. E por mais que o<br />

homem desça abaixo de si mesmo, sempre será sensível<br />

à influência irresistível da santidade, que lhe aplacará as<br />

paixões e lhe serenará a tirania dos vícios, como a música<br />

de Orfeu domava as feras. [...]<br />

A esta altura do Artigo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ilustra com<br />

um exemplo concreto, a tese por ele defendida, comentando<br />

a vasta e profunda influência, no povo<br />

fiel, de Mons. Marcondes Pedrosa, pároco paulistano<br />

daquele tempo. A virtude que todos viam nesse<br />

personagem levava até pessoas sem convicção católica<br />

a lhe tributar uma sincera veneração. E <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> completava estas observações, escrevendo:<br />

É uma das muitas lições que a inquebrantável nobreza<br />

de alma [desse sacerdote] nos dá. Confirma ela a<br />

incontestável influência da santidade sobre o homem.<br />

E vem-nos ao espírito a conclusão a que atingiu<br />

Tristão de Athayde em suas conferências sobre o Problema<br />

da Burguesia: o Brasil e o mundo não precisam de<br />

sábios nem de heróis; precisam de santos...<br />

Em nossos dias, a sede de virtude é<br />

mais veemente do que na época<br />

do seráfico São Francisco<br />

(destaque). Ao fundo,<br />

o Eremo delle Carcere,<br />

convento dos<br />

franciscanos em Assis<br />

(Extratos do artigo publicado no “Legionário”, nº 96,<br />

21/4/32, sob o título de “O primado da santidade”)<br />

27


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

A Renascença: golpe<br />

desfechado<br />

contra a Cristandade<br />

C<br />

hama-se comumente de Renascença ou Renascimento à época abrangida grosso modo pelos<br />

séculos XV e XVI, quando uma vasta transformação cultural varreu todo o Ocidente.<br />

Trata-se de termos impróprios — que pressupõem ter havido uma morte da cultura —,<br />

uma vez que a Idade Média fora marcada por um grande florescimento das letras, artes, ciências e da<br />

filosofia. Na verdade, o que caracterizou a Renascença foi sua oposição ao espírito medieval no que<br />

ele tinha de mais profundo: sua conformidade com a doutrina católica. O papel nefasto da Renascença<br />

no deperecimento da Cristandade foi analisado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em algumas conferências inéditas,<br />

cujos trechos mais significativos transcreveremos nesta seção.<br />

28


ARenascença foi um primeiro<br />

golpe desfechado<br />

contra a Cristandade, e,<br />

sob certo ângulo o poderíamos dizer,<br />

o mais carregado de malícia, pelo<br />

simples fato de ser o primeiro.<br />

Doença de sintomas aparentemente<br />

menos extremados que os das três<br />

revoluções 1 que se lhe seguiram; primeira<br />

e profunda fenda, entretanto,<br />

no edifício arquitetônico da Idade<br />

Média, por onde penetraram os germens<br />

de destruição que operaram<br />

todo o restante, desde o protestantismo<br />

até hoje. Nela estava<br />

já, como numa semente,<br />

todo o horror que se lhe seguiu.<br />

Como se poderia esperar, a<br />

Renascença ocultou o veneno<br />

virulento que continha em seu<br />

bojo, e se apresentou com uma<br />

roupagem tentadora para os<br />

homens do ocaso da Idade<br />

Média. A Renascença haveria<br />

de ser uma ampla Revolução<br />

feita em nome da arte e da cultura.<br />

Uma inaceitável<br />

concepção de cultura<br />

Seus corifeus tinham, entretanto,<br />

uma concepção toda peculiar.<br />

Diziam que cultura<br />

havia uma só: a do classicismo<br />

greco-romano, a única a satisfazer<br />

plenamente os anelos da<br />

alma humana. Todas as outras<br />

que se pudessem imaginar — egípcia,<br />

assíria, chinesa — que eles aliás<br />

conheciam muito vagamente, eram<br />

como que dialetos da cultura. Cultura<br />

por excelência era a clássica.<br />

Uma vez que ela desaparecera, fazê-la<br />

renascer era dar nova vida a algo<br />

de excelente que havia morrido.<br />

A Renascença era o reviver da Weltanschaung<br />

(visão do universo) dos<br />

clássicos, reputada verdadeira de modo<br />

absoluto para todos os tempos e<br />

para todos os lugares.<br />

E aqui já se estabelece, entre a<br />

Renascença e a maneira cristã de<br />

ver as coisas, uma espécie de dissonância<br />

profunda. Para nós, católicos,<br />

cultura é a expressão da alma<br />

de um povo, é a expressão de suas<br />

convicções e das condições em que<br />

ele vive. Portanto, para nós existem<br />

várias culturas. Pode-se falar numa<br />

cultura espanhola, como numa cultura<br />

japonesa ou numa cultura suíça.<br />

Existe, de fato, um ideal de perfeição<br />

humana. Mas esse ideal, cada<br />

Pedro Arentino. Na página anterior,<br />

o Cardeal Bessarion, “modelo” de<br />

humanista e amante da cultura clássica<br />

povo pode realizá-lo à sua maneira.<br />

E por isso mesmo afirmamos que,<br />

dentro de um só ideal genérico de<br />

cultura, cabem várias espécies diferentes.<br />

Essas culturas não podem ser<br />

fabricadas de um modo completamente<br />

teórico. Elas nascem de circunstâncias<br />

históricas. Dizer de uma<br />

cultura como a grega que em todos<br />

os tempos e em todos os lugares ela<br />

é a única verdadeira, constitui um<br />

absurdo que não podemos aceitar.<br />

Pois era sobre esse absurdo que estava<br />

construído o Renascentismo.<br />

Adoração da cultura,<br />

alçada a valor supremo<br />

Os renascentistas, entretanto, iam<br />

ainda mais além, não se contentando<br />

com essa visão exclusivista de<br />

cultura. Como veremos pelos exemplos<br />

que passaremos a citar, eles<br />

agiam, teórica ou praticamente, como<br />

se a cultura fosse o valor supremo.<br />

Bem ilustram esta tese<br />

certos fatos especialmente significativos,<br />

que recordaremos<br />

ao longo desta explanação. Cito<br />

agora alguns deles:<br />

Pedro Aretino, que viveu de<br />

1492 a 1552, autor sem moral e<br />

sem escrúpulos, usava da sátira<br />

para detratar a quem não lhe<br />

agradava. Por isso, numa época<br />

em que a fama importava muito,<br />

era temido e lisonjeado por<br />

todos aqueles que queriam gozar<br />

de suas boas graças e louvores.<br />

Recebia, por isso, inúmeras<br />

cartas, grande parte das quais<br />

publicou, assegurando, assim, a<br />

própria fama.<br />

Na carta que a seguir transcrevemos,<br />

pode-se notar a adoração<br />

da cultura, o fraseado vazio<br />

e o paganismo de uma das<br />

vítimas de Aretino: “Eu digo que<br />

sois o filho de Deus, com a limitação<br />

— a fim de não ver-me<br />

em um conflito com os frades mendicantes<br />

salmodiadores — de que Deus<br />

é a suprema verdade no Céu, e vós o<br />

sois na terra. Nenhuma cidade reúne<br />

as condições de Veneza para vos abrigar,<br />

porque sois o adorno da terra, o<br />

tesouro do mar, e a glória do céu; sois<br />

o vaso de ouro, cheio de pedras preciosas<br />

que se deveria colocar no dia<br />

da Ascensão no altar-mor da Igreja<br />

de São Marcos” (Guillermo Onken,<br />

Historia Universal, Mantaner y Simon,<br />

Editores, Barcelona, 1929).<br />

29


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

“Zeloso aluno estudando Cícero”. Desde cedo,<br />

os filhos da Renascença eram postos diante de<br />

um ideal de cultura pagão<br />

Profundo conflito de<br />

consciência<br />

A ereção da cultura em valor supremo<br />

acentuava ainda mais o absurdo<br />

que já era o exclusivismo cultural<br />

da Renascença. Desses absurdos<br />

decorria um conflito de consciência.<br />

Há uma expressão francesa<br />

que diz: “Chassez le naturel, il reviendra<br />

au galop” (expulsai o que é natural<br />

e ele voltará galopando). Cada<br />

vez que se quer violar a ordem natural<br />

das coisas, esta se vinga com<br />

uma energia extraordinária, impondo<br />

conseqüências com que não contávamos.<br />

Tomar uma Europa como a do<br />

século XV, ainda não dividida pela<br />

heresia protestante, mas homogeneamente<br />

católica, modelada por<br />

uma determinada formação histórica,<br />

com mil anos de civilização cristã,<br />

e querer, de repente, que essa<br />

Europa abandone toda a sua tradição,<br />

todo o seu passado e adote uma<br />

cultura morta há mais de um milênio,<br />

é coisa simplesmente absurda.<br />

Não se pode quase compreender como<br />

o homem renascentista<br />

pensou seriamente nesta<br />

transformação.<br />

O que sucedeu, então?<br />

As almas de formação católica,<br />

imbuídas entretanto<br />

de orientação pagã, sofreram<br />

um conflito de consciência.<br />

Tiveram diante de si<br />

um ideal de cultura pagão,<br />

como era o clássico, mas continuavam<br />

a viver segundo os<br />

princípios cristãos aos quais<br />

estavam habituadas. A conseqüência<br />

era um confronto<br />

no íntimo das mentalidades.<br />

Diante dessa crise de<br />

consciência, notaremos três<br />

atitudes de espírito diferentes.<br />

De um lado, as pessoas<br />

que, por causa da admiração<br />

que têm pelo ideal pagão,<br />

vão abandonando o ideal<br />

cristão. E a cultura clássica<br />

atua nelas como um corrosivo.<br />

Depois encontramos as que<br />

reagem contra esse ideal pagão. É a<br />

corrente que, na Alemanha, tomou<br />

o nome pejorativo de “obscurantista”.<br />

E entre essas duas correntes<br />

extremas, encontramos a das pessoas<br />

que, sendo pouco profundas,<br />

ou pouco lógicas, ou pouco coerentes<br />

ou pouco sinceras para consigo<br />

mesmas, procuraram acumular<br />

as duas influências, conservando-se<br />

mais ou menos cristãs e ao mesmo<br />

tempo mais ou menos adeptas do<br />

neo-paganismo clássico.<br />

Modo de se exprimir<br />

perfeitamente pagão<br />

Deram-se, então, fatos curiosos<br />

como este: o entusiasmo delirante<br />

pelos autores pagãos cria nos homens<br />

da Renascença um modo de<br />

se exprimir que, a pretexto de ser<br />

completamente clássico, é por inteiro<br />

pagão.<br />

Os autores clássicos não conheciam<br />

a religião católica, e por isso os<br />

princípios católicos não inspiravam<br />

seus vocabulários, suas figuras, sua<br />

oratória. Os neoclássicos, embora<br />

católicos, começam a usar uma linguagem<br />

tipicamente pagã, na qual a<br />

religião católica absolutamente não<br />

figura.<br />

Poderíamos citar aqui, por exemplo,<br />

o caso do humanista Bernardo<br />

Dovizi, autor de La Calandra, mais<br />

conhecido pelo nome de Bibbiena,<br />

vila em que nasceu. La Calandra era<br />

uma peça muito imoral, como imorais<br />

eram freqüentemente os autores<br />

clássicos, no que seguiam a tendência<br />

de todo o classicismo do século<br />

XV. Este Bernardo Dovizi não<br />

fugia à regra. Ora, em seu enterro,<br />

um orador o saudou desta forma:<br />

“Não investigamos a que ponto do<br />

Olimpo te levou a tua imortal virtude,<br />

em quadriga de ouro; mas quando<br />

percorreres os mundos celestes, para<br />

ver os heróis, não te esqueças de suplicar<br />

ao rei do céu e a todos os demais<br />

deuses, que aumentem à vida de<br />

Leão os anos que a Parca ímpia tirou<br />

a Juliano de Médicis e a ti, se querem<br />

conservar o culto que se lhes dedica<br />

na terra.”<br />

Este Leão de que se fala aqui é<br />

Leão X, o Papa. O orador no enterro<br />

de Bernardo, para fazer um elogio<br />

ao Papa, o inclui em toda essa<br />

mitologia. E, afinal de contas, era<br />

um homem católico que discursava.<br />

Mais ainda. O mesmo Bernardo<br />

Dovizi, apesar de escrever peças<br />

imorais, por ser grande literato foi<br />

cumulado de honras pelo próprio<br />

Papa Leão X, que, no ano de 1513,<br />

chegou a elevá-lo ao cardinalato, e<br />

depois o encarregou de várias missões.<br />

Por estes fatos pode-se ver a<br />

que extremos chegaram as coisas e<br />

como penetrou a fundo a influência<br />

do renascentismo.<br />

Estranha simbiose entre<br />

paganismo e Cristianismo<br />

Prossigamos, entretanto, em nossa<br />

exemplificação do que foi a infil-<br />

30


tração da mentalidade pagã na Civilização<br />

Cristã do Ocidente.<br />

É típico o que se disse de Jacob<br />

Sannazaro, outro humanista, que<br />

nasceu em Nápoles, no ano de 1458,<br />

tendo falecido na mesma cidade em<br />

1530. Viveu na corte de Frederico,<br />

rei de Nápoles, e escreveu vários<br />

trabalhos, entre os quais um poema<br />

intitulado De Partu Virginis.<br />

A respeito dele diz Oncken:<br />

“Se nesta obra estão misturadas<br />

coisas pagãs e antigas com<br />

o cristianismo e a vida moderna,<br />

mistura esta que fere<br />

desagradavelmente nossos<br />

sentimentos estéticos,<br />

não se deve vituperar por<br />

causa disso o poeta, porque,<br />

naquele tempo, achava-se<br />

muito natural que<br />

os pastores mesclassem<br />

com seus cânticos junto<br />

do presépio em que jazia<br />

o Salvador do mundo,<br />

versos da Quarta Écloga<br />

de Virgílio, mesmo que o<br />

poeta atribuísse a Deus<br />

rasgos de Júpiter, ao Arcanjo<br />

Gabriel virtudes de<br />

Mercúrio, e à Virgem Maria<br />

qualidades de Dido.<br />

E, o que é pior a nossos<br />

olhos, mesmo que os designasse<br />

diretamente com<br />

nomes gentílicos, ou que<br />

dissesse que, quando David<br />

cantava, comovia-se o<br />

Erebo, a Fúria mostrava<br />

os dentes de ódio, estremecia-se<br />

o Cocito, e Sísifo<br />

ficava imóvel; ou então<br />

quando, para dar mais<br />

crédito ao Profeta do Jordão,<br />

faz passar suas profecias<br />

pelas de Proteo.”<br />

Senhora como Dido, e associar o<br />

Padre Eterno a Júpiter, para que os<br />

homens se interessassem um tanto<br />

por Ele! Para as almas, tudo isto<br />

representa um formidável deslocamento<br />

interno.<br />

Outro fato significativo é uma<br />

afirmação de Petrarca. Esse autor<br />

— que ainda passa por ser dos literatos<br />

católicos — exalta a poesia, dizendo<br />

que, antes de se chamar os<br />

poetas de embusteiros, deve-se compará-los<br />

aos profetas. Segundo ele,<br />

uns e outros tinham visões maravilhosas.<br />

Eis, pois, o poeta clássico<br />

equiparado ao profeta do Antigo<br />

Testamento, que anunciou a vinda<br />

de Cristo.<br />

Revivem velhas<br />

superstições<br />

Vamos agora constatar como renasceram,<br />

nessa “época de cultura”,<br />

Como se a religião Católica<br />

não tivesse beleza<br />

nem prestígio suficiente<br />

para se impor às almas<br />

dos povos, sendo preciso<br />

pintar e decorar Nossa<br />

Pontífice profundamente influenciado pela cultura renascentista, o Papa Leão X<br />

não hesitou em conceder a Bernardo Dovizi, autor de peças imorais, a honra do cardinalato...<br />

31


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

velhas superstições, e como em face<br />

delas se procedia com extrema condescendência.<br />

A respeito de Dante, que alguns<br />

consideram um precursor da Renascença,<br />

Oncken afirma o seguinte:<br />

“Tinha ele o costume ou a afeição<br />

de aduzir juntos exemplos gentílicos e<br />

eclesiásticos, como se atribuísse igual<br />

autoridade a uns e outros. Porque reconhecia<br />

no governo do universo a<br />

influência do destino, do fado, que os<br />

antigos colocavam em igual e até em<br />

maior altura que os deuses. Assim,<br />

numa passagem abandona, pela boca<br />

de Virgílio, seu poeta favorito, o<br />

governo do mundo ao deus fortuna,<br />

com o que, se bem que indiretamente,<br />

desconhece e rebaixa a sabedoria e<br />

bondade de Deus, que recompensa e<br />

castiga os homens, segundo seus merecimentos<br />

e suas culpas.”<br />

Há aqui um aspecto curioso da<br />

Renascença. Os espíritos racionalistas,<br />

que começavam a aparecer naquele<br />

tempo, combatiam juntos todas<br />

as “superstições” da Idade Média,<br />

ou seja, as idéias de bruxas, de<br />

feitiços, de todos esses resquícios<br />

bárbaros. Ao mesmo tempo, atacavam<br />

o culto das relíquias e algumas<br />

práticas católicas que julgavam supersticiosas.<br />

Mas a adoração do<br />

mundo antigo era tão funda neles,<br />

que não se lembravam de combater<br />

as superstições dos gregos e romanos,<br />

os quais eram extraordinariamente<br />

supersticiosos.<br />

Por exemplo, na história dos romanos<br />

encontramos generais que<br />

têm todo um plano de batalha traçado,<br />

e que, prestes a executá-lo, tomam-se<br />

de receio que um fado cego<br />

pese sobre eles e os derrote. Então<br />

consultam os augúrios, para saber<br />

se os fados lhes são favoráveis ou<br />

contrários. Os processos utilizados<br />

para obter tal prognóstico variam.<br />

Por exemplo, soltam determinados<br />

cavalos no pasto, e, depois de correrem<br />

muito, mandam recolher a<br />

baba dos animais: conforme a densidade<br />

dela, os guerreiros decidem<br />

se haverá ou não o combate.<br />

Outro método consiste em pegar<br />

alguns frangos, esvaziá-los das suas<br />

entranhas e as examinar: de acordo<br />

com o seu colorido ou a sua posição,<br />

determinados sacerdotes estão<br />

aptos a dizer se a resposta é<br />

afirmativa ou negativa. Há ainda<br />

a opção de se soltar um cavalo<br />

manco no pasto; conforme<br />

o modo de ele mancar, a batalha<br />

será ou não realizada. Dessa<br />

forma, os planos de um Cipião<br />

ou de um César ficam suspensos<br />

devido à marcha de um<br />

cavalo manco...<br />

Por que — pergunta um autor,<br />

aliás protestante e inimigo<br />

da Idade Média — acusar de<br />

superstição a época medieval e<br />

não ver a crendice dos romanos<br />

e dos gregos? Ele mesmo responde:<br />

é que, para os homens<br />

da Renascença, imbuídos de<br />

profundo respeito e até de veneração<br />

pelo mundo antigo, parecia<br />

uma impiedade lembrar<br />

as fraquezas dessa distante quadra<br />

histórica...<br />

Numa próxima ocasião, continuaremos<br />

a analisar a Renascença,<br />

ressaltando a infiltração<br />

do paganismo nas tendências<br />

de intelectuais católicos. <br />

Considerado um precursor da Renascença,<br />

Dante Alighieri costumava introduzir exemplos e<br />

personagens pagãos em suas poesias<br />

1) A pseudo-reforma luterana, a Revolução<br />

Francesa e a revolução comunista.<br />

32


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Escadaria dourada,<br />

estado atual (Burgos)<br />

No espírito de quem a analisa, a Escadaria<br />

Dourada da Catedral de Burgos produz uma<br />

primeira impressão tão intensa, e apresenta<br />

uma idéia tão diversa de como se poderia imaginá-la,<br />

que o observador sente a necessidade de pôr um pouco<br />

em ordem as considerações que ela lhe sugere.<br />

Uma das belas gravuras que a retratam (p. 35) me faz<br />

pensar que ela é, em seu gênero, a escada. Ao construir<br />

esses sucessivos lances de degraus, o artista empreendeu<br />

uma verdadeira epopéia, compondo uma maravilha<br />

de ordenação arquitetônica. Essa gravura poderia ter<br />

como título: “Elevação e coerência”, pois tais são os<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

valores que a Escadaria Dourada exprime de modo extraordinário.<br />

A elevação se manifesta, por exemplo, na disposição<br />

das janelas cegas e das portas ao longo de um muro<br />

muito alto, formando uma linha perpendicular tão ascendente<br />

que, para a limitação do campo visual de<br />

quem a observa, ela como que se perde numa região superior,<br />

digamos o “céu” da atenção humana.<br />

Essa linha vertical fica assegurada por uma obra-prima<br />

de equilíbrio, composta de dois elementos. Em primeiro<br />

lugar, as janelas cegas atenuam o que a parede<br />

talvez tivesse de muito pesado, ou de muito liso e enfadonho.<br />

E depois, a força e o vigor da porta, que parece<br />

sustentar o bem-proporcionado de todo o conjunto.<br />

A nota de coerência, por sua vez, surge no moucharabié,<br />

todo ele feito de harmonias correlatas, que dão<br />

idéia de lógica, estabilidade e coesão. O teto, o corpo e<br />

a base, amparados por uma maravilhosa peanha — verdadeira<br />

obra de arte, com seus lavores que parecem<br />

rendas de pedra — formam uma linda e suave harmonia.<br />

Como harmônicas são também as duas extremidades<br />

simétricas, confinando ambas com as rampas laterais.<br />

Esse moucharabié assim concebido é rico em sugestões<br />

que se desdobram, como se fossem grandes leques<br />

de conseqüências, que acabam se fechando no mesmo<br />

ponto de onde partiram. Quer dizer, as harmonias brotam<br />

dele e para ele voltam, como de um rio sairiam dois<br />

afluentes os quais, chegados a um extremo, começam a<br />

retornar para a via essencial. E nisso temos então realçada<br />

a nota de coerência.<br />

Depois, como ponto terminal da escada, uma magnífica<br />

manifestação de certeza. Quando se esperaria que<br />

fosse morrer de modo comum e trivial, ela como que<br />

ressurge e se estende em movimentos diversos. O seu<br />

fecho, com os dois braços ou corrimões, é uma espécie<br />

de afirmação fundamental, é a última conseqüência, segura<br />

e proclamativa. É o ápice da harmonia: a leveza e a<br />

força, o compacto e o filigranesco extraordinários!<br />

E o hierático. As figuras dos dragões parecem pensar<br />

e dizer: “Isto é assim mesmo, e nós atacamos quem o<br />

negar!” Dir-se-ia a robustez e a vigilância a serviço da<br />

elevação e da coerência...<br />

<br />

Por outro lado, o mesmo moucharabié dá a idéia de<br />

enquadrar algo mais delicado e mais interno. Ele tem<br />

seu segredo. É como que um sacrário. Sua porta, esguia<br />

e linda como peça arquitetônica, ladeada por figuras esculpidas<br />

que lhe constituem magnífica moldura, parece<br />

abrir para um corredor profundo, que se perde além. É<br />

o senso do mistério, presente em tantas e tão esplendorosas<br />

obras de arte.<br />

Alguém poderia me dizer: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, essa é a<br />

porta da rua!”<br />

Pouco importa. Para o olho humano, a arquitetura<br />

comporta também essas simbologias. E, a meu ver, mais<br />

uma vez temos aqui um superior exemplo de coerência<br />

e elevação, magnificamente expressas no conjunto desse<br />

moucharabié.<br />

<br />

A gravura retrata um aspecto muito bonito, que é a<br />

pequena vida de todos os dias ao pé do monumento.<br />

Então são duas mulheres, meio latinas, meio mouras,<br />

que se dirigem para os degraus; é um homem cheio de<br />

vitalidade e decisão, subindo a escada, ou um casal que<br />

por ali passeia e conversa calmamente. São dois fidalgos,<br />

compondo a cena com a riqueza de seus trajes e o<br />

luzir de suas espadas; é um fiel que se aproxima da pia<br />

de água benta, enquanto uma mulher ao mesmo tempo<br />

reza e descansa, observando outro grupo de pessoas<br />

que trocam idéias junto à imponente escadaria.<br />

Esta visão nos conduz aos adornos do monumento,<br />

igualmente belos. Vale notar que toda a ornamentação<br />

visa ao gracioso, e compensa o que o grandioso teria<br />

por demais de severo. Não se vê aí um enfeite o qual,<br />

exceção feita dos dragões, não seja tão ameno que quase<br />

convide ao sorriso. Há, por exemplo, uma espécie de<br />

concha, soberba, cuja singeleza de linhas compensa o<br />

que ela tem de extremamente trabalhado. É a graça<br />

suavizando a severidade da grandeza...<br />

<br />

Uma última consideração. Dir-se-ia que essa construção,<br />

na qual se misturam estilos da Renascença e aspectos<br />

mouriscos, é o contrário do gótico. Entretanto,<br />

as ogivas da parede lateral se harmonizam de tal maneira<br />

com o conjunto da escada que são indispensáveis<br />

para compor o quadro.<br />

De fato, embora as decorações e os desenhos sofram<br />

influências renascentistas e árabes, o espírito inspirador<br />

dessa obra de arte ainda é o gótico. A nota ogival é a<br />

que nela predomina. O moucharabié, por exemplo, poder-se-ia<br />

chamar “variações dentro de uma ogiva”.<br />

Além do mais, o fator coerência de que acima falávamos,<br />

presente em todo o conjunto, é também muito<br />

próprio da arte ogival e, portanto, gótica. Como lhe é<br />

igualmente própria, na decoração, uma certa leveza, a<br />

mesma que se acha difusa nesse monumento. Assim,<br />

encontramos o casamento do gótico com a Escadaria<br />

Dourada. Obra que reputo uma verdadeira magnificência!<br />

<br />

34


Mãe da Divina Graça<br />

Como esse título diz<br />

tudo! Nossa Senhora é a<br />

dispensadora de todos os<br />

dons e favores celestiais.<br />

As graças de Deus<br />

constituem inexaurível<br />

tesouro, confiado por Ele à<br />

sua Mãe Santíssima. Ela é,<br />

portanto, a tesoureira das<br />

riquezas de Deus.<br />

Por outro lado, Ela é a<br />

Mãe dos que necessitam<br />

dessas preciosas dádivas.<br />

Assim, o título de Mater<br />

divinæ gratiæ exprime, de<br />

modo magnífico, a função<br />

maternal de Nossa Senhora<br />

em relação aos homens.<br />

Nessa invocação sentimos o<br />

quanto Ela é nossa Mãe, e<br />

Mãe na ordem da graça,<br />

tendo para conosco<br />

solicitudes e bondades<br />

inimagináveis!<br />

Nossa<br />

Senhora<br />

das Graças

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