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Um homem<br />
de certezas
Refulgente nas<br />
profundidades da<br />
noite, a Catedral de<br />
Chartres lança suas<br />
torres — e nossos<br />
pensamentos — rumo<br />
ao Céu<br />
Para as condições da época, a Civilização Cristã foi,<br />
tanto quanto possível, um espelhar fulgurante da<br />
ordem paradisíaca e angélica entre os homens. oi<br />
uma superior disposição da vida temporal, por onde o espírito<br />
humano subiu tão alto que chegou a realizar coisas e a se<br />
exprimir em símbolos nos quais superou toda beleza contenível<br />
nesta terra — a ponto de lembrar o Céu.
Sumário<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
durante uma de<br />
suas conferências,<br />
em 1995<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Jornalista Responsável:<br />
Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues erreira<br />
Marcos Ribeiro Dantas<br />
Edwaldo Marques<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
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otolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
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4<br />
5<br />
6<br />
12<br />
15<br />
20<br />
24<br />
EDITORIAL<br />
Disponhamo-nos para ouvir...<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Via-Sacra que privilegia o “pulchrum”<br />
DONA LUCILIA<br />
Transpondo o umbral dos 50 anos<br />
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
O sacrifício indispensável<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Candura e afabilidade medievais<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Na extrema aflicão,<br />
a hora da Providência<br />
O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />
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Março de 2001<br />
Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />
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Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./ax: (11) 6971-1027<br />
29<br />
31<br />
<strong>36</strong><br />
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Cristo e a sociedade<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
rutos esplendorosos do<br />
Sangue de Cristo<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Arca da aliança e velo de Gedeão<br />
3
Editorial<br />
Disponhamo-nos para ouvir...<br />
No salão, simples mas bem-ordenado e decorado<br />
com muito bom gosto, apinham-se homens<br />
de todas as idades, sentados ou de pé,<br />
desde respeitáveis senhores até vivazes colegiais. Alguns<br />
mantêm-se recolhidos a rezar, outros lêem, uma parte<br />
deles, por fim, trocam as novidades ou comentam as impressões<br />
sobre algum fato recente.<br />
Todos estão na expectativa da chegada de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
para “saborearem” mais uma de suas brilhantes e<br />
abençoadas conferências diárias, denominadas de “Santo<br />
do Dia”. Esta designação se deve ao fato de que<br />
tais palestras, iniciadas por volta de 1960, consistiam<br />
em comentários de resenhas hagiográficas. Com o passar<br />
do tempo, os assuntos foram variando, mantendose,<br />
entretanto, o nome primitivo.<br />
Mas eis que, com passo decidido, um homem de robusto<br />
aspecto adentra o salão: é <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> que chega.<br />
Com uma fisionomia paternal, apazigua os aflitos, encoraja<br />
os desalentados, entusiasma os fervorosos.<br />
Nesses anos intranqüilos da década de 60, o mundo<br />
vivia profundas transformações sócio-psicológicas<br />
acarretadas pelo movimento hippie, o rock e as freqüentes<br />
convulsões estudantis, que culminariam na revolução<br />
da Sorbonne, em Paris. De outro lado, o progresso<br />
técnico ia atingindo culminâncias que tornavam<br />
deliciosa a vida no seu aspecto material. atores que<br />
podiam gerar insegurança e ao mesmo tempo atração<br />
mundana nos ouvintes de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Ora, os “Santos do Dia” eram a melhor ocasião para<br />
o apostólico líder católico acertar os rumos dos que<br />
seguiam sua orientação. Não se pense que, de cada vez,<br />
ele procurava remediar as carências e necessidades espirituais<br />
de seu auditório, tratando puramente de ca-<br />
tecismo e ascese. Não! Conquanto o substrato de suas<br />
palavras fosse sempre religioso, ele passeava com desenvoltura<br />
e sabedoria também pelas sendas da história,<br />
da literatura, da arte, da filosofia, da situação política<br />
internacional e de muitos outros campos do conhecimento<br />
humano.<br />
Nos seus comentários, louvava os lados sublimes do<br />
assunto em pauta, censurava o que era rejeitável, com<br />
uma espantosa fecundidade de observações, todas apropriadas<br />
e cheias de vigor, que desvendavam aos olhos<br />
maravilhados do auditório aspectos pouco notados.<br />
Nunca partia de seus lábios uma palavra vã, nunca um<br />
conceito vago ou mal definido.<br />
Na doutrina, era imutável, fidelíssimo filho da<br />
Igreja e seguidor exímio de todos os ensinamentos do<br />
Magistério eclesiástico. Mas as formulações com que<br />
revestia seu pensamento jamais se repetiam, demonstrando<br />
a riqueza de seu espírito. Acima de tudo, transparecia<br />
uma intensa piedade, que nada tinha de pieguismo.<br />
E toda a conferência transcorria num ambiente<br />
em que se harmonizavam, de modo extraordinário,<br />
intimidade familiar, bem-estar e leveza, respeito,<br />
elevação e distinção.<br />
Mas, fiquemos atentos. Rezadas as orações com que<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> costuma iniciar suas palestras, ele começa a<br />
fazer uso da palavra: “Hoje gostaria de comentar um<br />
episódio que vem narrado no livro Les moines d’Occident<br />
[“Os monges do Ocidente”], de Montalembert.<br />
O texto é o seguinte...”<br />
Disponhamo-nos para ouvir as palavras do inesquecível<br />
pensador católico, que ecoam na variada matéria<br />
do presente número. O tema enunciado acima encontra-se<br />
na seção “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta”.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Via-Sacra<br />
que privilegia o “pulchrum”<br />
“C<br />
a laje. Parece tudo acabado. É o<br />
“Correu-se<br />
momento em que tudo começa. É o reagrupamento<br />
dos Apóstolos. É o renascer<br />
das dedicações, das esperanças. A Páscoa se aproxima.”<br />
Com estas palavras que prenunciam a vitória de<br />
Nosso Senhor, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> iniciava a narração da 14ª<br />
Estação de uma Via-Sacra publicada em março de<br />
1951.<br />
Quando, certa vez, alguém observou em sua presença<br />
que as meditações de suas Vias-Sacras se revestiam<br />
de muito “pulchrum”, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comentou:<br />
Ao redigi-las, tive a intenção de sair do clichê<br />
de tantas outras, doutrinariamente corretas, muito<br />
boas, nas quais porém não se reconhece a nascente<br />
extraordinária que as inspiram. Eu quis dar a conhecer<br />
essa nascente.<br />
Outra nota de pulchrum parece-me advir da seguinte<br />
circunstância: no Português, a linguagem tem<br />
como que três “andares”, pelo menos. Há um tipo<br />
de locução muito elevada, séria, que, sem recorrer<br />
a pedantismos, não tolera a expressão banal das coisas;<br />
há outra muito correta, mas sem essa elevação;<br />
por fim, existe a linguagem vulgar. Nessa Via-<br />
Sacra, procurei manter-me fiel ao propósito de exprimir<br />
meu pensamento segundo o estilo do primeiro<br />
“andar”.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> terminava a 14ª Estação proclamando<br />
sua confiança no triunfo da Santa Igreja:<br />
“Possa eu também, Senhor, não temer. Não temer<br />
quando tudo parecer irremediavelmente perdido.<br />
Não temer quando todas as forças da Terra parecerem<br />
postas em mãos de vossos inimigos. Não<br />
temer porque estou aos pés de Nossa Senhora,<br />
junto da qual se reagruparão sempre, e sempre<br />
mais uma vez, para novas vitórias, os verdadeiros<br />
seguidores da vossa Igreja.”<br />
Há 50 anos vinha a<br />
lume a segunda Via-<br />
Sacra composta por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em cujo texto<br />
sobressai a elevação<br />
e a seriedade de<br />
seu estilo; ao lado, facsímile<br />
de uma das<br />
primeiras edições<br />
5
DONA LUCILIA<br />
Dona Lucilia<br />
nos seus 50 anos<br />
Transpondo<br />
o umbral dos 50 anos<br />
6
Vinte e dois de abril de 1926.<br />
Dª Lucilia completa 50 anos.<br />
Nunca esperara atingir essa<br />
idade, pois sua frágil saúde continuamente<br />
lhe dava a sensação de que<br />
em breve poderia falecer. Na verdade,<br />
ainda viveria mais 42 longos anos.<br />
Para comemorar a feliz data, reuniram-se<br />
no palacete Ribeiro dos Santos<br />
seus familiares mais próximos. Em<br />
contraste com a atmosfera geral de alegria,<br />
quão diferentes eram as cogitações<br />
de seu coração! A vida já lhe tinha<br />
dado bastantes decepções e havia<br />
muito que não guardava ela qualquer<br />
ilusão.<br />
Imersos no passado estavam os saudosos<br />
e tranqüilos dias da infância na<br />
pacata Pirassununga de antanho; a radiosa<br />
juventude na “São-Paulinho” da<br />
Belle Époque; a fundação do lar, em<br />
meio às incertezas do início do século<br />
XX; o nascimento dos filhos; a cirurgia<br />
na Alemanha; os belos dias em Paris<br />
e a educação de Rosée e <strong>Plinio</strong>...<br />
enfim, quantas alegrias, mas também<br />
quantas dores e tristezas!<br />
Dª Lucilia, ao fim de cada etapa de<br />
sua existência, com olhar sereno e consciência<br />
tranqüila, podia dizer com São<br />
Paulo: “Bonum certamen certavi” —<br />
“combati o bom combate”. Mas muito<br />
ainda faltava para poder afirmar:<br />
“Cursum consummavi, fidem servavi”<br />
— “acabei a minha carreira, guardei a<br />
é” (2 Tim. 4, 7), pois o mais difícil<br />
estava ainda por trilhar.<br />
O mundo que a vira nascer, impregnado<br />
das últimas fragrâncias da Civilização<br />
Cristã, cessara de existir. E ela,<br />
fiel ao ideal que abraçara — o reinado<br />
do Sagrado Coração de Jesus —<br />
encontrava-se quase isolada numa<br />
sociedade cada vez mais distante dos<br />
divinos preceitos e desenfreadamente<br />
entregue ao gozo da vida.<br />
A auréola de cabelos prateados que<br />
lhe iam ornando a fronte era testemunho<br />
das duras provações que ficaram<br />
para trás. Seu olhar denotava a determinação<br />
tranqüila e resignada de abraçar<br />
todas as cruzes que a Providência<br />
quisesse colocar no longo caminho ainda<br />
a percorrer. Que desagradáveis surpresas<br />
reservaria o futuro a Dª Lucilia?<br />
Preocupava-a sobremaneira o rumo<br />
que seus filhos tomariam. À medida<br />
que iam amadurecendo, os perigos<br />
necessariamente aumentavam, e com<br />
eles, as apreensões maternas.<br />
O casamento da filha<br />
Dª Rosée em traje de noiva<br />
Quantas circunstâncias há na vida<br />
de todos, nas quais se mesclam dor e<br />
alegria! oi o que se passou com Dª<br />
Lucilia ao se aproximar o dia do matrimônio<br />
de sua filha com Antônio de<br />
Castro Magalhães, ativo homem de<br />
negócios, filho de abastados agricultores<br />
de Minas Gerais.<br />
Para conferir esplendor à festa de<br />
casamento de sua filha, Dª Lucilia nenhum<br />
esforço poupou. Em meio ao júbilo<br />
daquela data, no entanto, seu<br />
maternal coração, todo feito de solicitude,<br />
também se revestia de tristeza,<br />
pois para ela nada melhor do que permanecer<br />
em companhia dos entes<br />
mais amados. “O que será de mim<br />
quando Rosée for para longe, e se eu<br />
viver um pouco, você tambem fizer<br />
seu ninho?”. Expressivas palavras, escritas<br />
por Dª Lucilia numa carta a<br />
<strong>Plinio</strong>, cerca de um ano após o casamento<br />
de Rosée.<br />
Efetivamente, algum tempo depois<br />
das referidas núpcias, <strong>Plinio</strong> e Antônio<br />
Magalhães compraram a azenda<br />
Santa Alice, que este último dirigiria,<br />
experimentado como era nas coisas<br />
do campo. Situada em Cambará, no<br />
norte paranaense, região muito fértil<br />
7
DONA LUCILIA<br />
e de futuro promissor, ali os recémcasados<br />
passaram longas temporadas.<br />
Apesar de a fazenda distar 500 km<br />
de São Paulo, foi possível a Dª Lucilia<br />
visitá-la, pois uma estrada de ferro<br />
ligava Cambará à capital paulista.<br />
No oratório, uma carta<br />
Em relação ao filho, eram outros<br />
os cuidados de Dª Lucilia. Ao entrar<br />
<strong>Plinio</strong> para a aculdade de Direito,<br />
uma das apreensões que mais pesavam<br />
no espírito daquela mãe extremosa<br />
dizia respeito à fidelidade dele à<br />
Igreja Católica. Muitos rapazes, dos<br />
meios sociais que ela conhecia, não tiveram<br />
coragem de enfrentar a pressão<br />
dos colegas e do ambiente, acabando<br />
por abandonar não só a prática<br />
da religião como até mesmo a é.<br />
Com o passar dos meses, porém,<br />
constatou ela com grande alegria que<br />
<strong>Dr</strong>. Antônio de Castro Magalhães, esposo de Dª Rosée;<br />
ao lado, páginas da carta elogiosa ao jovem <strong>Plinio</strong><br />
seu filho permanecia<br />
firme em sua<br />
adesão aos bons<br />
princípios.<br />
Restava-lhe uma<br />
preocupação: como<br />
enfrentaria <strong>Plinio</strong> a árdua<br />
luta da vida? Talento<br />
e maturidade não<br />
lhe faltavam, mas daí a saber<br />
se alcançaria êxito em suas<br />
realizações, seguindo a<br />
esteira de seus ilustres<br />
antepassados, era outra<br />
questão. Procurava<br />
aconselhá-lo e guiá-lo,<br />
sem no entanto intrometer-se em sua<br />
vida particular.<br />
Pouco depois de entrar para a aculdade,<br />
<strong>Plinio</strong>, através de seu tio, <strong>Dr</strong>.<br />
Gabriel, então Secretário da Agricultura<br />
de São Paulo, conseguiu um emprego<br />
no Patronato Agrícola. Dª Lucilia<br />
considerava serem esses os primeiros<br />
passos de seu filho rumo a um<br />
brilhante porvir. E com fervor passou<br />
a pedir ao Sagrado Coração de Jesus<br />
que o protegesse e lhe proporcionasse<br />
êxito no emprego.<br />
Testemunho de que suas preces estavam<br />
sendo atendidas foi uma carta<br />
enviada a <strong>Dr</strong>. Gabriel pelo distinto<br />
8
Dª Lucilia pedia fervorosamente<br />
que seu filho permanecesse em seu<br />
emprego no Patronato Agrícola<br />
(fotos acima e ao lado), obtido<br />
através de seu irmão,<br />
<strong>Dr</strong>. Gabriel, então secretário<br />
da Agricultura<br />
de São Paulo (abaixo)<br />
homem de letras, <strong>Dr</strong>. Eugênio Egas, diretor do<br />
Departamento Agrícola, onde <strong>Plinio</strong> trabalhava,<br />
pedindo que o jovem não fosse transferido para<br />
outro setor, pois lhe faria muita falta. A carta<br />
era tão elogiosa que <strong>Dr</strong>. Gabriel a entregou a Dª<br />
Lucilia, certo de lhe causar contentamento, e<br />
ela, em sinal de gratidão, guardou-a em seu oratório<br />
junto à imagem do Sagrado Coração, onde<br />
a conservou por longos anos.<br />
Eis o texto:<br />
Patronato Agrícola, 20-VI-27<br />
Prezado <strong>Dr</strong>. Gabriel, chegou ao meu conhecimento<br />
que o seu sobrinho <strong>Plinio</strong> vai para as<br />
Estradas de Rodagem. Para o Patronato é um desastre.<br />
O rapaz é ótimo, pontual, correto, e falando línguas<br />
presta-nos grande serviço, quando somos procurados por<br />
alemães, austríacos e semelhantes.<br />
Não o remova, peço-lhe encarecidamente. A questão de<br />
ordenado, desde que o amigo remova o sr. Renato (que de<br />
pouco serve, por ser estudante de medicina, e não ter horário<br />
aproveitável) não tem importância, porquanto o orçamento<br />
em vigor tem verba para o pagamento dele, na base de 525<br />
mil réis. Seja como for, eu preciso dizer-lhe que o <strong>Plinio</strong> representa<br />
as belas qualidades de duas famílias de Tradição: Corrêa<br />
de Oliveira e Ribeiro dos Santos.<br />
O meu expediente vai sofrer com a saída de tão fino, correto,<br />
educado e zeloso funcionário. De resto, ele é estudante de<br />
direito, pelo que o meio do Patronato lhe é propício. Que vai<br />
fazer ele com engenheiros?<br />
Esperando que o amigo não nos prive do trabalho desse distinto<br />
moço, subscrevo- me como sabe,<br />
Seu velho amigo<br />
Eugenio Egas
DONA LUCILIA<br />
“Devo aproveitar o<br />
tempo que me resta a te<br />
guiar e aconselhar”<br />
Embora a carta do <strong>Dr</strong>. Eugênio<br />
Egas atestasse as qualidades e a integridade<br />
de <strong>Plinio</strong>, nem por isso Dª Lucilia<br />
afrouxaria em seu dever de aprimorar<br />
com uns últimos retoques a educação<br />
deste. Por outro lado, sofrendo<br />
contínuos achaques, tinha ela a sensação<br />
de que não viveria muito e desejava<br />
apresentar-se ante o divino Tribunal<br />
tendo cumprido de modo exímio<br />
suas obrigações maternas. É o que se<br />
pode ver nesta carta, tão característica<br />
do afetuoso relacionamento entre<br />
ela e ambos os filhos, mesmo quando<br />
se via obrigada a adverti-los. Como de<br />
costume, sabia transformar as repreensões<br />
em suaves carícias.<br />
Prata - 23-5-928<br />
<strong>Plinio</strong> querido<br />
Recebi ontem tua carta em que me<br />
dizes ter-te o “X” faltado ao respeito pelo<br />
telefone.... Não me dizes como foi a<br />
história, mas, lembra-te bem, que já eu<br />
te preveni que devias voltar ao seu escritório<br />
ou casa, para tratares pessoalmente<br />
teu negócio, e o fizeste pelo telefone,<br />
o que não foi nada, nada correto.<br />
Esqueces de que és uma criança perto<br />
dele, que além de muito mais velho, é<br />
um senhor bem colocado, e até adulado<br />
na alta sociedade, e além disso, nenhum<br />
de nós, e você ainda menos, tem<br />
intimidade com ele para falar-lhe pelo<br />
telefone sobre negócios, ou dar-lhe satisfações<br />
pela longa demora em dar-lhe<br />
a resposta atrasada, o que já foi outra<br />
falta de delicadeza, de tato, meu filho.<br />
Ignoro o que entre ambos se passou, mas<br />
com isto, deste uma amostra de falta de<br />
distinção, de finura, na tua educação, e<br />
nobreza nos teus gestos ou atos, ou<br />
mesmo deferência da mocidade para<br />
com os mais velhos, e os que já na vida<br />
galgaram uma certa posição, pelo seu<br />
mérito pessoal, ou boa chance. Sei que<br />
estou desagradável hoje, meu querido,<br />
mas lá vai outra observação..... é o meu<br />
dever...! ilho, por um mês vais substituir<br />
o secretário do Instituto: não te esqueças<br />
de que este tempo é rápido, e<br />
que se tomares uns certos ares de superior<br />
e fores impertinente, medindo as pequeninas<br />
coisas que fizerem os outros,<br />
te tornarás antipatizado e hostilizado<br />
por todos, e quando voltares para o teu<br />
lugar, dirão que estás com cara de “bezerro<br />
desmamado”, como diz o público<br />
dos presidentes da república quando deixam<br />
o poder. Sobretudo, querido, é preciso<br />
que exerças este cargo com tanta<br />
pontualidade e acerto, e sem distrações<br />
que, quando o secretário voltar, não possa<br />
fazer-te desagradáveis observações para<br />
vingar-se de tuas correções de português.<br />
Peço-te também que trates a todos<br />
como gostas de ser tratado, aí e em toda<br />
parte, e nada, nada de “mandos”!, sim?<br />
Tive ontem uma nova tontura, porém<br />
não tão forte como a última, o que obrigou-me<br />
a guardar o leito toda a tarde,<br />
mas hoje levantei-me. Como sabes, estes<br />
achaques são avisos de que devo aproveitar<br />
o tempo que me resta antes da viagem,<br />
a te guiar e aconselhar, querido da<br />
minha alma, e espero que não vás zangar-te<br />
e amarrotar minha pobre carta,<br />
nem fazer olhos duros, quando os tens<br />
tão lindos, quando estás bonzinho!<br />
Estou com tantas saudades de vocês<br />
que nem imaginam. O que será de mim<br />
quando Rosée for para longe, e se eu<br />
viver um pouco, você também fizer seu<br />
ninho?<br />
Estou cansada. Termino recomendando-me<br />
a todos, e beijando-te, abraçando-te<br />
e abençoando-te muito.<br />
De tua mãe muito extremosa,<br />
Lucilia<br />
Beijos a Rosée e Maria Alice 1 , e um<br />
abraço ao Antônio.<br />
10
Mesmo com o filho já<br />
crescido, Dª Lucilia não<br />
se esquivava do dever de<br />
guiá-lo e aconselhá-lo,<br />
como fez através da<br />
carta de 23/5/1928<br />
(abaixo, seu fac-símile)<br />
Se saíssem estas linhas da<br />
pena de uma pessoa comum,<br />
poder-se-ia elogiar seu profundo<br />
bom senso, qualidade<br />
rara em nossos tumultuados<br />
dias. Mas, sabendo-se terem<br />
elas brotado do amor mater-<br />
nal de Dª Lucilia, os conselhos<br />
que transmitem mais<br />
parecem fruto de uma sábia<br />
e virtuosa prudência, haurida<br />
no Divino Coração de<br />
Nosso Senhor.<br />
Tal é o caso das recomendações de<br />
suavidade e diplomacia no trato com<br />
superiores e inferiores, as quais denotam<br />
profundo senso de hierarquia. De<br />
outro lado, torna-se patente uma vez<br />
mais que sua imensa bondade não a<br />
impedia de ver, até o fundo, a mal-<br />
dade da natureza humana, procurando<br />
precaver <strong>Plinio</strong> contra as ciladas<br />
que a inveja e o amor-próprio ferido<br />
podem armar.<br />
(Transcrito, com adaptações, da obra<br />
“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />
1) ilha de Rosée e Antônio de Castro<br />
Magalhães<br />
11
“O que a Igr<br />
de toda a no<br />
mister lutar<br />
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
O sacrifício<br />
12
indispensável<br />
“<br />
E<br />
u me rio, por minha vez, da<br />
loucura do mundo”. Através<br />
desta afirmação tão categórica<br />
quanto pontiaguda, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> exprime<br />
sem rodeios sua certeza de que a<br />
saída para a grave situação em que se<br />
debate o mundo só pode estar com as<br />
almas que se imolam por amor de<br />
Deus, sacrificando tudo em aras à santidade.<br />
eja pede aos seus fiéis é o sacrifício generoso<br />
ssa personalidade à grande causa por que é<br />
Não é a qualquer pessoa que é dado exercer o duro ofício<br />
de pescador de pérolas. As compleições fortes são<br />
capazes de resistir à pressão da água e às agressões<br />
dos polvos, para descer até o fundo do oceano, e colher lá a<br />
pérola alvíssima que procuram. Mas os organismos débeis se sentem<br />
asfixiados desde que se aprofundem um pouco nas águas<br />
verdes do oceano, e são forçados a retroceder com as mãos vazias,<br />
para respirar a brisa amena e retornar à pressão fraca longe<br />
das quais são incapazes de viver.<br />
É o que se dá também no mundo do espírito. Há certas almas<br />
capazes de descer à profundeza das mais sérias cogitações, onde<br />
vão buscar a pérola inestimável da verdade. Outras, porém, se<br />
sentem asfixiadas desde que as idéias se tornam um pouco mais<br />
densas, e retrocedem imediatamente, de mãos vazias, àquela banalidade<br />
estéril que é o único ambiente que conseguem suportar.<br />
O grande sentido da vocação desta geração que atualmente<br />
atingiu a mocidade é o sacrifício. Ou esta geração enfrentará a<br />
dureza de sua vocação com a generosidade do martírio, ou ela<br />
será inevitavelmente devorada pelas tempestades que as gerações<br />
anteriores acumularam por seus erros, e que estão prestes a<br />
desabar sobre o mundo contemporâneo.<br />
13
ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
Mas o sacrifício que se requer não é o do sangue. Não é<br />
a morte que a graça impõe ao moço de hoje como perigo<br />
supremo a enfrentar, mas a própria vida. Não é mais o<br />
tempo de atestarem os crentes a sua fé pelo testemunho<br />
sangrento do martírio. O que hoje a Igreja pede aos seus<br />
fiéis é o testemunho de uma vida exemplar, e o sacrifício generoso<br />
de toda a nossa personalidade à grande causa por<br />
que é mister lutar.<br />
Este sacrifício é o sacrifício dos bens temporais. É o sacrifício<br />
do tempo que se emprega no apostolado, quando<br />
poderia ser utilizado na caça ao dinheiro. É o sacrifício das<br />
atitudes que se tomam para salvar as almas, com prejuízo<br />
da reputação social, das mais caras relações de família ou<br />
de amizade, das mais preciosas simpatias.<br />
Mas, sobretudo, este sacrifício é o da alma que se purifica<br />
pela prática da virtude, que se imola no sofrimento<br />
interior, que sobe espontaneamente ao altar das mais<br />
dolorosas provas espirituais, com aquela resolução magnânima<br />
com que caminhavam para o martírio os primeiros<br />
cristãos. Porque o mundo atual foi perdido pelo pecado, e<br />
só pela virtude se há de resgatar. Porque de nada vale a<br />
mais útil das obras de apostolado aos olhos de Deus, quando<br />
o apóstolo leva na alma aquele mesmo espírito do<br />
mundo, que combate por suas ações.<br />
É precisamente isto que o mundo não quer compreender,<br />
e é a esta incompreensão que atribuo o pequeno número<br />
de vocações entre nós.<br />
A vocação sacerdotal é, por excelência, a vocação para<br />
o sacrifício. Em primeiro lugar, é toda a<br />
ambição humana que se sacrifica, pela<br />
humildade voluntariamente abraçada, e<br />
que é inseparável do estado sacerdotal.<br />
Em segundo lugar, é a santidade que<br />
se tem em vista. E quem diz santidade<br />
diz o sacrifício completo de toda felicidade<br />
que o mundo pode dar, através de<br />
sua sistemática bajulação dos sentidos,<br />
através de sua louca exaltação da concupiscência<br />
e do orgulho da vida.<br />
E, em terceiro lugar, vem o sacrifício<br />
supremo, em que o sacerdote já não imola<br />
à justiça de Deus apenas a sua própria<br />
pessoa, mas o próprio ilho de Deus,<br />
feito Homem para resgatar os pecados<br />
do mundo.<br />
Vejo às vezes passar pelas ruas algum<br />
seminarista, trazendo na gravidade do<br />
traje e na humildade do porte a afirmação<br />
de todos os princípios de renúncia<br />
que o mundo detesta. Muitos seguem-no<br />
com o olhar. Ora são alvejados pelo ódio,<br />
ora pelo escárnio.<br />
Em torno de mim, o mundo se agita<br />
febrilmente. O jornal que tenho em mãos<br />
me dá notícia de que grandes estadistas<br />
querem salvar o Brasil, reerguendo seu<br />
câmbio, saneando suas finanças ou reformando<br />
sua administração.<br />
E, em meu coração, eu me rio por minha<br />
vez da loucura do mundo. Não é o<br />
grande estadista, nem o grande cientista,<br />
nem o grande jornalista, que todos<br />
aplaudem, que salvarão o Brasil.<br />
Seminarista humilde de que todos se<br />
riem, tu serás santo, e serás tu o verdadeiro<br />
salvador do Brasil.<br />
O sacerdote oferece ao Criador o sacrifício supremo, no qual imola o próprio<br />
ilho de Deus, feito Homem para remir os pecados do mundo<br />
(Transcrito do “Legionário”, nº 173,<br />
9/6/1935)<br />
14
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
CANDURA E<br />
AABILIDADE MEDIEVAIS
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
No último artigo desta seção, vimos <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ressaltando a coragem e a fé que caracterizaram<br />
a Idade Média. No de hoje, ele sublinha outras facetas dessa época<br />
áurea da Cristandade: a candura e a serenidade que permeavam as almas daqueles<br />
homens e mulheres de outrora, cuja mentalidade, pode-se dizer, era mais própria a habitantes<br />
do Paraíso do que aos desta terra de exílio.<br />
Quando vemos nas pinturas e gravuras que retratam<br />
a Idade Média aqueles altos castelos com<br />
ameias, torres e barbacãs, o fosso com ponte levadiça,<br />
etc., concebemos a idéia de um edifício construído<br />
para a luta. E como o castelo é, junto com a igreja, o principal<br />
tipo de edificação que nos restou da época medieval,<br />
facilmente pensamos nesta como sendo uma época de extraordinária<br />
gravidade, de seriedade admirável, de compostura<br />
perfeita. Época onde todos se encontravam perpetuamente<br />
numa atitude tendente ao severo. E dessa concepção<br />
deduzimos que na Idade Média não cabia um sorriso,<br />
não cabiam a alegria nem as manifestações de contentamento;<br />
e que aquela magnífica apresentação hierática<br />
— dir-se-ia decorativa — dos seus personagens excluía<br />
uma certa intimidade, uma qualquer<br />
bondade e abertura de alma.<br />
nas mais diversas do cotidiano medieval. Por exemplo, um<br />
boi que vai puxando o arado e um camponês que vai jogando<br />
as sementes. Mais adiante, um grupo de mulheres que<br />
lavam roupa, esfregando-as em pedras junto ao rio. Noutro,<br />
um copista, homem do povo, sentado ao lado de uma<br />
janela cujos vidros “fundo de garrafa” coam uma luz irisada;<br />
perto dele, um pequeno vaso bem medieval, de onde<br />
surde uma única flor, enorme, colhida em algum jardim<br />
maravilhoso. Céus claros, azul anil, onde voam aves brancas<br />
ou de cores variadas, em vôos também bonitos. Modestas<br />
cercas de agricultura, fileiras de legumes, de outras<br />
plantações, tudo apresentado com um colorido tão lindo e<br />
tão real que se percebe a alma inocente do homem medievo.<br />
Alegria do cotidiano e das<br />
festas medievais<br />
Nada mais falso. Quem conhece o bêa-bá<br />
a respeito da Idade Média, tem<br />
noção dos grandes festins que a caracterizaram.<br />
Não só as celebrações aristocráticas<br />
nos castelos e residências reais,<br />
mas também as grandes festas populares,<br />
quando nas praças públicas de certas<br />
cidades as fontes jorravam vinho ou leite<br />
durante horas seguidas, por conta do rei<br />
ou do senhor feudal. Além da bebida copiosa,<br />
organizavam-se churrascos, com<br />
cantorias e danças em torno de fogueiras<br />
e dos espetos em que se assavam as carnes.<br />
Como término e ápice da festa, o senhor<br />
do lugar se aproximava e jogava<br />
peças de ouro a mancheias sobre o povo,<br />
para imenso regozijo de seus súditos.<br />
Há mais, porém, do que essa marcante<br />
alegria das festas. Há um sorriso da vida<br />
de todos os dias, há uma beleza inocente<br />
e cândida do contato das almas<br />
nas ocasiões normais da existência, que<br />
podemos apreciar bem nas iluminuras e<br />
às vezes nos vitrais que, com suas magníficas<br />
policromias, nos apresentam as ce-<br />
Nas suas festas e em suas pompas litúrgicas (acima e na página seguinte), a<br />
sociedade medieval deixava transparecer o grande regozijo de almas que<br />
sabiam desfrutar da felicidade oriunda da virtude e do amor a Deus<br />
16
Nas pompas litúrgicas, intimidade<br />
com Deus<br />
O mesmo se dava com a piedade. A Igreja Católica já<br />
realizava naquele tempo cerimônias magníficas, de uma<br />
pompa extraordinária, em catedrais cujos interiores se iluminavam<br />
com as cores dos vitrais trespassados<br />
pelos raios do sol, enquanto a Missa se<br />
desenrolava no altar-mor, o órgão tocando,<br />
os paramentos sacerdotais<br />
reluzindo, o incenso perfumando<br />
o templo e o povo, todo de joelhos,<br />
acompanhando enlevada<br />
e devotamente o<br />
Santo Sacrifício. Dirse-ia<br />
que nessa pompa<br />
não caberia intimidade.<br />
Mas é o contrário.<br />
Se houve época em<br />
que os homens sentiram<br />
a sua intimidade<br />
com Deus, experimentaram<br />
a misericórdia<br />
e a bondade divinas,<br />
bem como o convite da<br />
afabilidade para uma<br />
aproximação com o<br />
Criador, esta época foi<br />
a Idade Média.<br />
Os contos medievais<br />
— alguns floreados<br />
de fantasias, outros<br />
bastante verídicos<br />
no total — celebram a<br />
extraordinária amenidade<br />
de Deus, de seus<br />
Anjos, de seus Santos,<br />
sobretudo de Nossa<br />
Senhora, Rainha de<br />
todas as virtudes, e<br />
portanto também Rainha<br />
da ternura para<br />
com seus fiéis.<br />
Milagre da afabilidade divina<br />
Nesse sentido, vem a propósito recordar aqui um episódio<br />
da Idade Média em que está envolvido Aquele que é o<br />
próprio símbolo da amenidade cristã: Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo Menino. O fato é extraído de uma antiga tradução<br />
portuguesa da Vie des Saints (“Vida dos Santos”), da<br />
Bonne Presse de Paris. Embora sempre pese a dúvida<br />
quanto à credibilidade de narrações como essa, não se<br />
pode negar que, segundo a doutrina católica, tal acontecimento<br />
poderia ter se verificado. Ou seja, nada nele contraria<br />
a ortodoxia cristã, e está na onipotência divina o realizar<br />
esplêndidos milagres como o do seguinte exemplo:<br />
São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era<br />
sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele<br />
como discípulos dois meninos, filhos de um cavaleiro de<br />
Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monástica,<br />
e daí por diante passavam os dias no convento,<br />
ajudando as Missas e estudando com<br />
rei Bernardo.<br />
A pedagogia antiga preceituava<br />
que as crianças se vestissem desde<br />
pequenas como pessoas adultas.<br />
Por isso vemos nas pinturas de<br />
pouco antes da Revolução<br />
rancesa as meninas<br />
com saia balão,<br />
os meninos com trajes<br />
de homens que poderiam<br />
se dirigir a uma<br />
reunião de negócios ou<br />
a um evento na Corte.<br />
Os trajes propriamente<br />
infantis foram introduzidos<br />
pelo Marquês<br />
de Girardin, no Jardim<br />
do Luxembourg, pouco<br />
antes da Revolução<br />
rancesa. Eram inspirados<br />
na moda inglesa<br />
e visavam não mais a<br />
apresentar a criança<br />
com a compostura e<br />
gravidade de um adulto,<br />
e sim como um ente<br />
que pula, salta e não<br />
se quebra. Então, as<br />
roupas triviais que hoje<br />
conhecemos.<br />
A Igreja, porém,<br />
sempre mais conservadora<br />
do que a sociedade<br />
temporal, ainda<br />
preservou esse costume.<br />
Não posso deixar<br />
de me lembrar de uma visita que fiz a um monge na<br />
austera e magnífica Abadia dos beneditinos, no Rio de<br />
Janeiro, quando presenciei esta cena que me pareceu uma<br />
visão de outros tempos: dois meninos de talvez 10 ou 11<br />
anos, vestidos como monges e andando com toda gravidade<br />
pelo meio do claustro. Eles passaram conversando<br />
tão direitos e tão sérios, que eu tive a vaga impressão de<br />
que se tratava de uma aparição. Quando o religioso chegou,<br />
perguntei-lhe:<br />
— Dom ulano, o que fazem esses meninos aqui, vestidos<br />
de monges?<br />
17
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
— Trata-se de um velho costume beneditino. Recebemos vocações da<br />
mais tenra idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já vestem<br />
o hábito desde pequenos.<br />
Assim, podemos também imaginar esses dois meninos da narração, recebidos<br />
na Ordem Dominicana e vestidos de “fradinhos”. É-nos familiar o<br />
hábito de São Domingos. Aliás, um dos predicados da Igreja é que ela sabe,<br />
como nenhuma outra instituição, a partir das coisas muito simples, produzir<br />
efeitos estéticos extraordinários. O hábito dominicano é uma túnica com escapulário<br />
brancos, cobertos por uma grande capa negra; por cima desta, sobressai<br />
o capuz branco do escapulário. É a simplicidade extrema da Igreja,<br />
aliada ao magnífico senso da beleza que ela coloca em tudo quanto faz.<br />
O convite para um banquete no Céu<br />
Prossegue a narração:<br />
Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se<br />
dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária. Uma manhã, com<br />
uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa<br />
Senhora, que trazia ao colo o Menino Jesus, diante da qual sempre rezavam o<br />
Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum. Com a mesma candura,<br />
concertaram entre eles que não seria muito gentil comerem a refeição sem para<br />
ela convidarem o outro Menino ali presente. E, todas as vezes, o hóspede divino<br />
dignou-se aceitá-lo, até que se tornou desnecessário convidá-Lo. Mal os pequenos<br />
entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus<br />
lá estava entre eles. Isso tornou-se tão familiar que não só comiam juntos, mas<br />
também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.<br />
Apraz imaginar essas duas crianças fazendo toda sorte de perguntas, e<br />
Nosso Senhor que lhes responde, no aconchego de uma capelinha do interior<br />
de Portugal. Contudo, ao lado de tanta candura, não tarda em se manifestar<br />
o drama que freqüentemente aparece nas relações entre a criatura e o<br />
Criador: a miséria humana vai mostrar-se nesses meninos magníficos, do<br />
modo mais incoerente e mais inesperado. E nesse conto encantador, ouve-se<br />
de súbito o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio a tentação.<br />
Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus<br />
nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir<br />
mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres. “Não haverá muitas<br />
coisas boas no Paraíso?” — perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em<br />
murmúrios. E resolveram confiar a rei Bernardo suas angústias. Esse, tendo<br />
examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus<br />
que o iluminasse e o fizesse conhecer seus desígnios sobre os meninos. Um dia,<br />
dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua<br />
não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao<br />
menos uma vez, à casa de seu pai?”<br />
A saída do padre é muito inteligente. Não é pedir ao Menino Jesus que<br />
traga pão, que traga comida, mas rogar que os deixe ver o Céu.<br />
“Oh, sim! gostaríamos muito”, responderam, “mas Ele nunca nos falou sobre<br />
isso”. Disse o frade: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido,<br />
não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais<br />
do que Lhe destes”.<br />
Note-se que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos<br />
um tanto comerciais, a fim de mover aquelas almas, entretanto tão cândidas,<br />
tão puras. Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e assim todos<br />
nos devemos olhar. Ou há muita vigilância sobre nossas más inclinações, ou<br />
saem misérias como essas.<br />
E continuando a falar-lhes, rei Bernardo<br />
fez entrever simbolicamente o palácio<br />
do Pai Celeste, com suas magnificências e<br />
delícias, e concluiu: “Quando o Menino<br />
da capela vier novamente comer convosco,<br />
não vos esqueçais de pedir que vos<br />
convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que<br />
quero também ser convidado. Não vos<br />
permito que vades sozinhos à festa. Eu vos<br />
acompanharei, ou tereis de recusar o convite,<br />
porque desejo muito ter parte neste<br />
festim.<br />
18
“Nosso mestre gostaria de participar também da festa.<br />
Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será a Ascensão. Haverá grande<br />
alegria na casa de meu Pai. Dizei a rei Bernardo que Eu o convido convosco à<br />
minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.<br />
Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao mestre a boa notícia.<br />
Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iam participar<br />
de um banquete no Céu. rei Bernardo comunicou o mesmo ao seu Diretor<br />
Espiritual. Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração,<br />
ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O frade explicou aos meninos o sentido<br />
do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa<br />
senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.<br />
Chegou o dia da Ascensão. Todas as missas já haviam sido celebradas na<br />
aldeia. Enquanto os frades estavam no refeitório, rei Bernardo dirigiu-se ao altar<br />
do Rosário, acompanhado por seus acólitos, e começou o Santo Sacrifício.<br />
Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o<br />
Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam-se nos<br />
degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a<br />
morada celeste. Mais tarde, quando a comunidade voltou à igreja para a<br />
recitação das orações após a refeição, encontraram o frade e os dois acólitos<br />
imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se<br />
deles e — oh! morte preciosa e mil vezes digna de inveja! — constataram<br />
que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna.<br />
Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar. Em 1577, quando foi aberto<br />
o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso<br />
perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje<br />
num rico tabernáculo.<br />
Candura e amenidade, vigilância e holocausto<br />
No dia 21 de Maio de 1227, segundafeira<br />
das Rogações, o Menino Jesus desceu<br />
de novo para tomar o desjejum com as<br />
duas crianças. Terminada a refeição, antes<br />
que o Divino Infante se pusesse de pé sobre<br />
o pedestal de pedra para subir aos<br />
braços de Nossa Senhora, os dois pequenos<br />
expressaram timidamente o seu<br />
desejo:<br />
“Não nos convidais também uma vez?”<br />
Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto<br />
os pequenos acrescentavam:<br />
Aí temos a candura com seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto.<br />
Sem tais complementos, ela jamais é autêntica. O homem verdadeiramente<br />
cândido deve ter uma vigilância constante sobre si mesmo, noite e<br />
dia, uma vigilância infatigável, para não ceder aos maus impulsos inumeráveis<br />
que formigam no interior de cada alma. Este é um primeiro ponto<br />
a considerar.<br />
Em segundo lugar, quando é genuína, a candura recebe o convite para o<br />
holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência<br />
pede a ela sua própria imolação. Donde vermos esses meninos, que tiveram<br />
seu mau momento, serem perdoados e, depois, convidados para o holocausto.<br />
Seguramente souberam que iam morrer. oram consultados sobre se desejavam<br />
a morte e a aceitaram. Tiveram suas almas levadas para o Céu, envoltas<br />
na doçura e na suavidade dos que adormecem no Senhor.<br />
Depois desse relato que tanto nos fala da inocência medieval, fica-nos<br />
muito menos a imagem das duas crianças ou a de rei Bernardo, do que a<br />
figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender<br />
a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade.<br />
D’Ele está dito na Escritura: “Minhas delícias consistem em estar com<br />
os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um<br />
preço, igual ao que Ele próprio pagou: o preço do holocausto. Em certo momento<br />
Ele nos convida ao sacrifício e é preciso aceitá-lo. Então a vida termina<br />
maravilhosamente bem.<br />
Candura e amenidade, vigilância e conformidade com o sacrifício eram<br />
disposições de alma correntes na Idade Média, as quais merecem ser lembradas<br />
e imitadas pelos homens de hoje, assim como pelos das épocas vindouras.<br />
v<br />
19
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Na<br />
a hora da<br />
20
extrema aflição,<br />
Providência<br />
I<br />
ncutir em seus filhos espirituais<br />
a mesma confiança<br />
sem limites em Deus e<br />
na Santíssima Virgem que o animava,<br />
era este um dos cuidados<br />
constantes de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Ótima<br />
oportunidade para isto foi-lhe<br />
oferecida por uma maravilhosa<br />
narração do livro do Conde de<br />
Montalembert, “Les Moines d’Occident”,<br />
comentada por ele numa<br />
das conferências denominadas<br />
“Santo do dia”.<br />
OConde Raul de Chester voltava da Cruzada,<br />
na qual havia se coberto de glórias tomando<br />
Damieta [no Egito], quando uma violenta<br />
tempestade caiu sobre o navio em que viajava.<br />
Eram já dez horas da noite. Como o perigo aumentava<br />
a cada instante, o conde exortou, pois, os viajantes a<br />
redobrar os esforços [para estabilizar a embarcação]<br />
por mais um minuto, prometendo que a tormenta passaria<br />
logo. Ele próprio se pôs a manobrar e a trabalhar<br />
mais do que os outros. O vento parou dentro em pouco, o<br />
mar serenou e, quando o piloto perguntou a Raul porque<br />
ele lhe tinha ordenado trabalhar apenas um minuto a<br />
mais, o nobre respondeu: “Porque, a partir dessa hora,<br />
os monges e outros religiosos que meus ancestrais e eu<br />
estabelecemos em vários lugares se preparavam para<br />
cantar o Ofício. Sabendo que nesse momento eles estariam<br />
rezando, eu esperava do Céu que, graças às orações<br />
deles, cessasse a tempestade”.<br />
Embora não falte quem julgue controvertida a<br />
autenticidade histórica de acontecimentos como<br />
este, é muito provável que as coisas se tenham passado<br />
assim como narra o autor, não havendo, portanto,<br />
nenhuma razão especial para duvidarmos de<br />
sua veracidade. Para os que não têm espírito cético<br />
nem incréu, esse é um lindíssimo episódio que indica<br />
um igualmente belo princípio da doutrina católica.<br />
21
DR. PLINIO COMENTA...<br />
Deus, o “vértice” para o qual olham os que<br />
oram e os que se afligem<br />
O fato nos apresenta a imagem poética de um grupo de<br />
cruzados singrando o Mediterrâneo, numa época em que<br />
os meios de navegação eram ainda tão insuficientes que<br />
atravessar esse mar constituía uma façanha náutica.<br />
Não é difícil imaginar o aperto da situação: uma forte<br />
tempestade que sopra, a nau repleta de combatentes extenuados,<br />
alguns feridos, cheia de pesadas armas das quais<br />
não podiam se desfazer, atirando-as às águas, pois sempre<br />
havia a possibilidade de, ao abordarem em terra firme, necessitarem<br />
delas para se defender de algum ataque. É noite,<br />
uma noite escura, sinistra, o mar povoado de incógnitas,<br />
e a tormenta que uiva e cai sobre os homens, deixando-os<br />
apavorados. É uma cena que evoca em algo o episódio da<br />
tempestade no Lago de Generazé, quando os Apóstolos se<br />
tomaram de medo e foram despertar Jesus, que dormia tranqüilamente<br />
na barca.<br />
No navio dos cruzados não estava Nosso Senhor, mas<br />
christianus alter Christus: encontrava-se ali presente um homem<br />
de fé, o Conde Raul de Chester. Ele sabe que a gratidão<br />
dos verdadeiros religiosos jamais se desmente e que,<br />
portanto, pode contar com as orações dos monges que viviam<br />
nas numerosas abadias fundadas por seus ancestrais.<br />
Ele tem a firme confiança de que, na hora costumeira, começará<br />
o Ofício Divino rezado naqueles mosteiros. E tem<br />
a certeza de que, desde as primeiras palavras recitadas, essas<br />
preces seriam feitas também nas intenções dos nobres<br />
fundadores e dos seus descendentes. Logo, nas intenções<br />
dele, Raul de Chester, provavelmente o primogênito na linha<br />
de descendência.<br />
Então ele pede apenas mais um minuto de atenção, mais<br />
um minuto de paciência, de perseverança. Ele luta, mas roga<br />
que esperem ainda um pouco, porque a tempestade não<br />
demoraria em amainar. A tormenta cessa, e ele diz: “Os<br />
monges começaram a recitar o Ofício”. O Mar Mediterrâneo<br />
cede.<br />
É o poder da prece, que ignora as distâncias. Naquele<br />
tempo de primitivos meios de locomoção, era muito longo<br />
o caminho por terra que ia do Mediterrâneo à Inglaterra.<br />
Devia ser percorrido devagar, atravessando regiões habitadas<br />
por povos muito diferentes e com estradas incertas.<br />
Por isso, no episódio do qual tratamos, a extensão que se<br />
interpunha entre o cenário da tragédia iminente — o mar<br />
— e os locais onde a salvação devia se operar, isto é, as<br />
abadias inglesas, era bastante considerável, física e psicologicamente.<br />
Os monges não sabiam que os descendentes de seus benfeitores<br />
estavam em perigo. Tudo os separava, exceto um<br />
traço de união, o vértice para o qual as duas partes se voltavam:<br />
Deus Nosso Senhor. Os religiosos olham para Deus,<br />
ao recitar o Ofício nas intenções de seus fundadores; os<br />
cruzados olham para Deus, ao implorar o seu onipotente<br />
socorro. Em Deus se encontram a oração daquele que pede<br />
e a necessidade do que dela carece. E a prece de uns liberta<br />
os outros.<br />
De passagem, é interessante notar uma circunstância que<br />
confere ainda maior beleza a esse episódio. A se tomar a<br />
narração ao pé-da-letra, é provável que os monges ingleses<br />
Recolhimento e<br />
meditação nas<br />
abençoadas galerias<br />
do mosteiro<br />
de Poblet<br />
(Espanha) — Acima<br />
de todos os<br />
recursos humanos<br />
prevalece a<br />
oração fervorosa<br />
e confiante, capaz<br />
de alcançar<br />
do Céu favores<br />
que nenhuma de<br />
nossas melhores<br />
realizações poderia<br />
obter<br />
22
não estavam começando a cantar o Ofício no<br />
exato momento em que o imaginava o Conde<br />
Raul, devido à diferença dos fusos horários.<br />
Ou seja, a hora não podia ser a mesma<br />
no relógio (ou outro mecanismo para<br />
determinar o tempo) do navio e nos das<br />
abadias.<br />
Contudo, Deus, que não se atrapalha<br />
com a ciência nem se deixa prender<br />
por esses pormenores, quis fazer<br />
jogar algo à maneira de uma coincidência<br />
de horários — na realidade,<br />
inexistente — e operou essa<br />
maravilha cuja narração nos<br />
enche de entusiasmo, e da<br />
qual podemos tirar algumas<br />
lições.<br />
Prevalência da oração<br />
sobre todos os<br />
recursos humanos<br />
A primeira delas, e a mais<br />
importante, é ficar compreendendo<br />
a prevalência da<br />
oração sobre todos os outros<br />
recursos humanos.<br />
O Papa Leão XIII, ao<br />
redigir um de seus célebres<br />
documentos, escreveu umas<br />
frases que nunca mais me<br />
saíram do espírito. Dizia ele<br />
que, no tempo de seu pontificado,<br />
havia muitos homens que agiam para promover a<br />
causa católica, porém trabalhavam mais do que rezavam.<br />
Ora, afirmava o Pontífice, se esses homens rezassem tanto<br />
quanto agiam, obteriam eles resultados maiores do que os<br />
alcançados simplesmente pela ação. Porque o grande meio<br />
de vitória do homem é a prece. É um meio impreterível e<br />
supereminente em relação à ação: ele não a dispensa, ele a<br />
prepara e a torna fecunda.<br />
Essa tese vem ilustrada de modo perfeito no episódio<br />
que acabamos de recordar. O Conde de Chester foi um cruzado.<br />
Atraído pela graça de Deus, ele se dirigiu até o Oriente.<br />
Ação. E uma forma de ação das mais belas e nobres,<br />
que é a luta por um ideal católico. Ele chega ao Oriente e<br />
arranca do poder dos maometanos uma cidade importante:<br />
Damieta. Êxito no seu empreendimento. Entretanto, logo<br />
se faz patente a necessidade da oração. O Conde tem a<br />
sua vida exposta a um perigo imenso, onde quase não lhe<br />
adiantaria nenhuma indústria humana: a tempestade açoitando<br />
o mar em cujas águas ele navegava de volta para casa.<br />
Como se salvar? Oração. E a prece fervorosa assegura<br />
o regresso de Raul à terra de seus ancestrais, a preservação<br />
da sua própria vida e a dos seus<br />
bravos. Porém, muito mais do que isso,<br />
dá um exemplo de como Deus atende as<br />
nossas súplicas, e como Ele vela por<br />
aqueles que confiam na oração dos<br />
outros. Mostra-nos o dogma da Comunhão<br />
dos Santos, por assim dizer,<br />
funcionando e fazendo com que<br />
essas duas formas de heroísmo se encontrem:<br />
o heroísmo do cruzado<br />
no alto mar, e o do monge pontual<br />
na igreja de sua abadia,<br />
rezando com fé por aqueles<br />
que estão expostos a riscos.<br />
Daí podemos deduzir como<br />
é importante nossa vida de<br />
oração, como tem um peso inestimável<br />
a reza diária do Rosário ou<br />
do Terço, e de nossas demais práticas<br />
de piedade, desde que imbuídos<br />
da certeza e da fé de que,<br />
para o êxito da causa católica,<br />
esse esforço de oração encerra<br />
um valor maior do que o próprio<br />
esforço nobre e indispensável da<br />
ação. Mesmo quando se trata de<br />
grandes guerreiros, que empreenderam<br />
feitos extraordinários e<br />
conquistaram magníficas vitórias<br />
e vantagens para a Igreja, o papel<br />
da oração ainda é preponderante.<br />
Essa é a principal nota que<br />
devemos tirar desse episódio.<br />
Nas horas da extrema aflição, o sorriso de<br />
Nossa Senhora<br />
Entretanto, outra lição há para se colher em tudo isso.<br />
Por que Deus permitiu que chegasse ao extremo de angústia<br />
a situação desses cruzados, para só então intervir?<br />
Exatamente para provar a confiança n’Ele. As horas de<br />
extrema aflição são as horas da Providência, são as horas<br />
da misericórdia. O verdadeiro católico, quando sabe que tudo<br />
está perdido, reza e confia mais do que nunca, porque é<br />
a hora do sorriso de Maria Santíssima para ele, assim como<br />
o foi para aqueles valorosos guerreiros em meio à tempestade<br />
no Mediterrâneo. Quando já não havia mais esperanças<br />
nos recursos humanos, Nossa Senhora, a Estrela do<br />
Mar, interveio, libertou-os e resolveu a angustiante situação<br />
em que se encontravam.<br />
Lembremo-nos sempre disso: nos momentos de nossas<br />
maiores provações e aflições, rezemos com redobrado<br />
fervor e confiança. Nossa Senhora não tardará em nos<br />
sorrir.<br />
v<br />
23
O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />
Para a escola de pensamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, as impressões e observações que povoam<br />
a mente de cada homem contêm mais elementos preciosos para o raciocínio e a formação das certezas<br />
do que uma biblioteca repleta de livros<br />
24
Como adquirir<br />
certezas<br />
C<br />
omo se enriquece o conhecimento na escola de pensamento de <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>? — Privilegiando-se uma reflexão baseada no bom senso e<br />
na explicitação e avaliação das próprias impressões.<br />
Como já tivemos ocasião de observar, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sabia reduzir temas<br />
complexos a seus termos mais acessíveis e elementares, para daí elevar-se<br />
às culminâncias nas quais era mestre. Ele costumava tratar de filosofia em<br />
conversas informais, ou em conferências para auditórios bastante heterogêneos,<br />
tanto no tocante às idades quanto ao nível cultural dos ouvintes.<br />
omos buscar nessas fontes os textos aqui apresentados. Como não<br />
chegaram a ser revistos por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, podem conter alguma imprecisão de<br />
linguagem, nunca porém de conceitos. E o leitor terá a vantagem de conhecer<br />
o tema no verdor de suas primeiras explicitações.<br />
Quase toda a filosofia moderna — inclusive os sistemas mais opostos<br />
entre si, desde o idealismo de Kant até o mais crasso materialismo<br />
—, procede de Descartes (1596-1650). Este considera que, para se<br />
conhecer com certeza alguma coisa, é preciso rejeitar o testemunho dos<br />
sentidos, duvidando-se de todas as impressões adquiridas, e começar<br />
do zero a elaboração da análise.<br />
Na verdade, Descartes (ao lado) tentou transplantar a certeza matemática<br />
para todos os campos do saber, acabando por gerar um método<br />
geométrico, abstrato e apriorístico (segundo Saisset), com “raciocínios<br />
por demais generalizadores e aéreos” (segundo Leibniz).<br />
Nada mais natural que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se opusesse ao método cartesiano.<br />
Era ele adepto entusiasta da Escolástica — o ensinamento dos mestres<br />
católicos medievais aprovados pela Igreja —, aos quais Descartes tinha<br />
verdadeiro horror. A base para as cogitações filosóficas plinianas<br />
é principalmente São Tomás de Aquino, a par de outros astros do saber<br />
católico, como São Boaventura.<br />
25
O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />
Conforme me pediram, passo a<br />
tratar a respeito da verdade e<br />
do erro, e depois falarei sobre a<br />
questão da incerteza.<br />
No tocante ao primeiro tema, é necessário<br />
antes apontar uma doutrina<br />
que devemos repudiar completamente.<br />
É a tese de Descartes, que hoje é<br />
adotada subconscientemente por milhões<br />
de pessoas.<br />
Descartes — famoso filósofo francês<br />
do século XVII — afirmava o seguinte:<br />
antes de alguém estudar um<br />
assunto, deve duvidar de tudo o que<br />
já aprendeu a respeito dele, e começar<br />
a raciocinar de novo.<br />
Por exemplo, se quero estudar a<br />
natureza das velas acesas diante de<br />
uma imagem de Nossa Senhora, preciso<br />
cancelar tudo o que já está na minha<br />
cabeça a respeito de vela, pois<br />
não tem valor algum. Devo começar<br />
as minhas deduções prescindindo disto.<br />
Ora, ignorar todo o conhecimento<br />
anterior gera uma conseqüência psicológica,<br />
da qual Descartes não tratou,<br />
mas que é um dos resultados do seu<br />
sistema.<br />
Que conseqüência é essa? Como é<br />
impossível que alguém consiga estudar<br />
todas as coisas que deve conhecer<br />
utilizando o método por ele preconizado<br />
— ignorando o que já apreendeu<br />
por meio das impressões, etc. —, a solução<br />
é buscar esse conhecimento nos<br />
livros. Se alguém não pode coordenar<br />
tudo o que sabe, começa por ler. E o<br />
conhecer uma ampla bibliografia sobre<br />
o assunto é, então, o primeiro passo<br />
de um estudo. Assim, o pensamento<br />
começa pela leitura.<br />
Não julgo isto correto. Volto ao<br />
exemplo da vela: tenho já uma idéia<br />
embrionária sobre velas, embora seja<br />
a mais rudimentar e vaga possível. Se<br />
fosse começar a pensar sobre as velas,<br />
talvez tratasse primeiro de reunir o que<br />
já sei, e ordenar um pouco essas idéias;<br />
depois, fazer algumas observações.<br />
Quando o que está na minha cabeça e<br />
o que eu poderia pensar por mim mesmo<br />
sobre velas tivesse chegado a um<br />
certo ponto, aí, sim, eu ia ler sobre o<br />
assunto em algum livro.<br />
O livro não pode ser a pista do meu<br />
pensamento, mas uma espécie de bomba<br />
de gasolina que eu tenho à margem<br />
do caminho. E eu me abasteço tanto<br />
quanto queira, mas não é meu pensar.<br />
O livro é um servo a quem eu mando<br />
que me traga materiais para o meu<br />
pensamento. Mas vou refletir segundo<br />
minhas coordenadas, meus antecedentes,<br />
meus modos de ver, etc.<br />
Esta é a maneira de pensar característica<br />
da nossa escola. Estudamos<br />
nos livros para nos completarmos.<br />
Quem é da outra escola, começa por<br />
procurar nas bibliotecas tudo quanto<br />
outros pensaram sobre uma matéria,<br />
para depois tirar suas conclusões. Ele<br />
faz o estudo, ou com o intuito de<br />
aprender o que outros concluíram, ou<br />
para derrubar tudo em função do que<br />
outros disseram, ou ainda para acrescentar<br />
algo às opiniões de outros.<br />
Não sei se percebem que a finalidade<br />
do estudo se deslocou. Notem<br />
bem: não estou afirmando que Descartes<br />
recomendou isto; estou dizendo<br />
que o método dele, como é inumano,<br />
na ordem prática das coisas produz,<br />
por via de extrapolação, esse resultado.<br />
O mais curioso é que, na concepção<br />
de Descartes, uma certeza adquirida<br />
previamente ao estudo é considerada<br />
um preconceito. A certeza, para<br />
o cartesiano, é um fruto só do estudo:<br />
depois de ter estudado fantasticamente,<br />
ele adquirirá a certeza. Eu nego<br />
que isto seja assim.<br />
Um conceito de estudo<br />
formado com base no bom<br />
senso<br />
Parece-me chegado o momento de<br />
exprimir o nosso conceito de estudo.<br />
Ele consiste no seguinte: tenho na mente<br />
dados de bom senso — incluindo o<br />
senso lógico — que constituem um<br />
patrimônio comum de todos os homens.<br />
Ou seja, assim como nasci sabendo<br />
mover os olhos para ver o que quero,<br />
também nasci sabendo raciocinar. Ninguém<br />
precisa de um “tratado de movimentação<br />
dos olhos” para saber como<br />
fazer. Isto poderá ser necessário<br />
26
“O livro<br />
é um servo<br />
que deve me<br />
trazer<br />
materiais<br />
para meu<br />
pensamento”<br />
para algum doente, mas não para uma<br />
pessoa normal. Toda criança mexe naturalmente<br />
os olhos, a cabeça, etc.<br />
O senso lógico é assim também.<br />
Está na condição humana. Portanto,<br />
aprendi diretamente, no contato com<br />
o mundo externo, uma série de verdades<br />
primevas que não necessitam<br />
de demonstração. Isto forma em mim<br />
um patrimônio de certezas que são inteiramente<br />
lógicas, naturais, primeiras.<br />
Considerar isto sem valor seria insensatez.<br />
Essas certezas são os pressupostos<br />
com os quais vou analisar e pensar.<br />
Alguém poderá me objetar:<br />
— Não pode haver erro nessas certezas<br />
primeiras?<br />
— Pode. Como ocorre com tudo o<br />
que é humano, é normal que haja.<br />
— Então, rejeite-as e parta do zero.<br />
Para mim, um conselho deste tipo<br />
equivale a dizer:<br />
— O senhor não pode ter algum<br />
defeito na vista?<br />
— Posso.<br />
— Então, antes de começar a olhar<br />
qualquer coisa, arranque os olhos.<br />
Quem age assim com suas certezas<br />
iniciais não vê mais nada. Cai na noite<br />
da incerteza.<br />
O fundamento da certeza é, portanto,<br />
esse patrimônio primeiro, semi-explícito,<br />
semi-implícito, que são as certezas<br />
iniciais.<br />
Relação entre as certezas e o<br />
senso do bem e do mal<br />
Alguém pode retrucar: mas qual é<br />
o valor lógico dessa certeza? Como o<br />
senhor pode se certificar de que dentro<br />
desses dados não haja uma grande<br />
série de erros?<br />
A minha resposta é: a imensa maioria<br />
dos erros vem de apegos. Para alguém<br />
ter confiança nas suas certezas<br />
primeiras, precisa ter possuído um<br />
senso do bem e do mal muito vivo.<br />
Porque, neste caso, seu olho é límpido<br />
para ver. As deformações “visuais”<br />
se originam, em sua quase totalidade,<br />
da vontade.<br />
Quem, com a alma limpa, procura<br />
conhecer assim essa verdade primeira,<br />
poderá cometer erros acidentais, poderá<br />
cometer erros secundários, mas<br />
o grosso do conhecimento sobre determinada<br />
coisa, ele obtém. Ou seja, na<br />
linha-mestra não erra. É do senso natural.<br />
Isto é ainda mais verdade quando<br />
ele é batizado e assistido pela graça.<br />
Qual é, então, o sistema da conquista<br />
da verdade? Esta começa por uma<br />
lenta explicitação do que já se sabe. E<br />
uma ordenação das coisas novas que<br />
se vai sabendo, mas em função do bom<br />
senso fundamental desses dados primeiros.<br />
A marcha “de proche en<br />
proche” para atingir a<br />
verdade última<br />
Sem isso, o senso da verdade não<br />
existe. Chega-se à verdade mais ou menos<br />
numa marcha de proche en proche<br />
(“da próxima à próxima”). Das verdades<br />
primeiras, não se deve saltar logo<br />
para as últimas, mas é preciso caminhar<br />
modestamente para verdades<br />
mais próximas. E assim, de uma para<br />
outra, embora já se possa ter intuído a<br />
verdade última — costuma acontecer<br />
que muita gente a intui —, é preciso<br />
construir a demonstração de proche<br />
en proche. Construí-la sem aparato,<br />
27
O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />
sem espalhafato, sem agitação, mas<br />
humilde, sólida e organicamente.<br />
A esse respeito, sustento que o nosso<br />
melhor livro somos nós mesmos.<br />
Não somos só um livro; cada um de<br />
nós é uma biblioteca que contém imensamente<br />
mais do que as bibliotecas<br />
em que estão os livros. Jamais alguém<br />
escreveu tudo o que possa haver na<br />
mente de um homem.<br />
Por exemplo: ao repararmos, num<br />
tecido, o contraste entre o vermelho e<br />
o azul, há milhares de impressões que<br />
saltam no nosso subconsciente. Se tomarmos<br />
o trabalho de as explicitar,<br />
teremos muito mais que numa biblioteca.<br />
Este é o grande trabalho intelectual<br />
ao qual devemos nos dedicar.<br />
Qual é, então, o papel do livro? Ele<br />
me ajuda a colher dados de que eu<br />
preciso, me transmite alguma consideração<br />
interessante de alguém, etc. Mas<br />
nunca devo “entornar” o livro na minha<br />
cabeça. Ele deve servir de depósito<br />
de material para a minha construção.<br />
Sei que estou indo de encontro à<br />
cultura em voga em muitos círculos<br />
intelectuais.<br />
Há alguns anos, fui almoçar com<br />
um grande medievalista francês, escritor<br />
de vários livros e com obras laureadas.<br />
Eu não havia lido nem a terça<br />
parte do que ele lera sobre a Idade<br />
Média. Contudo, no meio da nossa<br />
conversa, após eu ter feito alguns comentários<br />
sobre coisas medievais, ele<br />
me disse: “Caro amigo! O senhor precisa<br />
indicar-me sua bibliografia. De<br />
que livros o senhor tirou essas observações?”<br />
Quase respondi: li a minha<br />
própria cabeça...<br />
É assim. E não é sério levantar a<br />
objeção de que em algumas mentes<br />
há mais do que noutras. Quando alguém<br />
quer saber mais do que tem na<br />
cabeça, não adianta afundar-se em leituras.<br />
Primeiro ele precisa saber aproveitar<br />
o que já possui. Um homem<br />
que saiba bem aproveitar todo o cabedal<br />
que já adquiriu é um talento,<br />
um gênio.<br />
Dessas considerações concluo: ao<br />
analisar determinado assunto, não é<br />
preciso ler tudo sobre ele, nem é o caso<br />
de dar todos os argumentos a respeito<br />
dele. Necessário mesmo é ter<br />
dele uma noção básica sólida. Pode<br />
até acontecer que não saibamos fundamentar<br />
alguns pontos numa discussão.<br />
Ora, discussão não é teste de<br />
certeza. Pensa-se hoje em dia que<br />
sim: “Discuti com ulano, ele ficou<br />
sem resposta; logo, quem tem razão<br />
sou eu”. Esta dedução não se justifica.<br />
Qual é, então, o teste da certeza?<br />
Sustento que é a verificação da consonância<br />
entre aquilo que se afirma e<br />
os dados do bom senso que todos possuem.<br />
É uma certeza inicial que, de<br />
proche en proche, vai se desenvolvendo.<br />
Contudo, ela mesma não é, no fundo,<br />
senão uma projeção do senso do<br />
bem e do mal e desse senso nativo da<br />
verdade e do erro, que se apóiam e se<br />
vão tornando mais vigorosos.<br />
(Transcreveremos no próximo número<br />
a 2ª parte dessa conferência)<br />
“Para alguém ter<br />
confiança nas suas<br />
certezas primeiras<br />
deve possuir um senso<br />
do bem e do mal<br />
muito vivo.”<br />
28
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Cristo e a sociedade<br />
S<br />
ó a Igreja Católica é “especialista” em Jesus Cristo. Será defeituosa, portanto, qualquer<br />
interpretação da Pessoa do Homem-Deus que não se conformar com a do Magistério<br />
eclesiástico católico. Assim pensava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e assim o afirmava.<br />
29
DENÚNCIA PROÉTICA<br />
Não podem os brasileiros, e em especial os católicos,<br />
iludir-se no momento que passa. Quando<br />
vemos a indisciplina generalizar-se [...], e uma<br />
indisciplina que implanta suas raízes no princípio da<br />
dissolução social, temos que abandonar o nosso comodismo<br />
e desprezar o nosso bem-estar, para enfrentá-la, não<br />
com algum símbolo morto, mas com a mesma vida: com<br />
Jesus Cristo. Na verdade, só Ele pode curar todos os<br />
males da nossa sociedade.<br />
Até agora, os doutrinadores políticos ignoraram a Cristo.<br />
Conheciam todas as doutrinas filosóficas anteriores à<br />
sua vinda, e desses pensamentos desencontrados tiravam<br />
algo para suas concepções, ditas modernas. Depois, desconheciam<br />
a sociedade medieval, com sua organização<br />
política perfeita, inspirada toda no Cristianismo, com seus<br />
doutores, com seus filósofos, com seu pensamento único,<br />
reto, católico. Para eles, essa época não existiu, e toda a<br />
glória do mundo se reduziu a estes últimos quatro séculos,<br />
quando a humanidade, retrogradando<br />
das alturas a que chegara,<br />
iniciava sua volta ao paganismo de<br />
onde fora arrancada pelo Cristianismo.<br />
Esse o pensamento político<br />
que plasmou a sociedade contemporânea<br />
e que chegou, como corolário<br />
mesmo de seu agnosticismo, à<br />
crise moral do presente.<br />
Lembraram-se então os homens<br />
de que Cristo existira e foram buscar<br />
o que Ele ensinara, não para o<br />
dar lealmente como alimento às<br />
multidões famintas de ideal, mas<br />
para o adaptar às suas próprias<br />
idéias e fazer de Jesus o testemunho<br />
de seu ensino. E assim viram<br />
n’Ele, uns, apenas o homem que<br />
apostrofava os ricos e poderosos e<br />
exaltava os humildes, e o tomaram<br />
como o primeiro socialista, o primeiro<br />
comunista. Outros, viram<br />
apenas o homem que mandava dar a<br />
César o que é de César, o homem<br />
que mandava respeitar e obedecer<br />
aos superiores, e O transformaram<br />
no primeiro endeusador do Estado<br />
absoluto. [...]<br />
Só a Igreja Católica manteve e<br />
mantém, entretanto, a verdadeira<br />
doutrina de Cristo, e só ela tem de<br />
seu undador a verdadeira concepção,<br />
adorando-O como Deus e<br />
anunciando-O como Redentor dos<br />
homens, sem exceção. Só ela se<br />
submete a Cristo e não deforma,<br />
segundo a vontade de seus membros, a doutrina que Ele<br />
pregou. E só ela dá por isso mesmo a disciplina que salva,<br />
a que vem da submissão integral da criatura ao seu Criador,<br />
verdade que tem que ser repetida diariamente contra<br />
o orgulho humano que se julga único no universo inteiro.<br />
Por isso mesmo, só a sociedade moldada pela Igreja de<br />
Cristo será perfeita, porque só esta prega o verdadeiro Jesus.<br />
Inútil é querer galvanizar a matéria sem o espírito: sem<br />
este, aquela será sempre e só matéria. Do mesmo modo, à<br />
sociedade, à matéria viva que quer subir ao alto, ao ideal<br />
perfeito por excelência, só Cristo, só o Catolicismo podem<br />
dar-lhe o espírito que vivifica e que salva. Esse pois o<br />
grande programa dos católicos no Brasil e também fora<br />
dele, nesta época agitada e trágica, de rebeliões, de crimes,<br />
de decadência moral.<br />
Só a Igreja Católica é capaz de pregar o<br />
verdadeiro Jesus; portanto, somente será<br />
perfeita a sociedade modelada por ela<br />
(Catedral de Segóvia, Espanha)<br />
(Transcrito do “Legionário”, nº 167, 17/3/1935)<br />
30
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
RUTOS ESPLENDOROSOS<br />
DO SANGUE DE CRISTO
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Segundo o ensinamento da Igreja,<br />
no Paraíso Celeste, além da<br />
visão beatífica que inunda de<br />
gáudio as almas dos justos, há também<br />
uma realidade material — o Céu<br />
Empíreo — onde Deus semeou maravilhas<br />
inimagináveis, para que os corpos<br />
ressurrectos vivam imersos num<br />
universo físico que lhes fale das grandezas<br />
de seu Criador.<br />
Por essa disposição divina percebese<br />
quão necessário é ao homem alimentar<br />
o seu espírito, não só na consideração<br />
dos aspectos teóricos e doutrinários<br />
da Religião, mas igualmente<br />
através das coisas temporais que o façam<br />
desejar aquelas superiores belezas<br />
da bem-aventurança eterna.<br />
Compreenderam-no muito bem os<br />
filhos da velha Europa, a Europa da<br />
Civilização Cristã, os quais corresponderam<br />
de modo único às graças que<br />
receberam da Providência, alcançando<br />
realizações magníficas nesta terra.<br />
Por isso, até hoje olha-se para os esplendores<br />
europeus como para uma<br />
espécie de mito que a Religião Católica<br />
elevou à condição de ante-câmara<br />
ou de “seminário” do Éden celestial.<br />
A Sainte Chapelle e o rei São Luís<br />
Na página anterior, Vitrais da Paixão, na mesma capela<br />
32
Tempo houve, pois, em que todo o<br />
teor da vida era diverso do de nossos<br />
dias, num continente onde foi possível<br />
ao homem idealizar e construir um<br />
mundo de maravilhas, de coisas arquitetônicas<br />
e sapienciais capazes de<br />
nos falar do Céu e, ao mesmo tempo,<br />
deleitar de maneira virtuosa o “irmão<br />
corpo” de quem as contempla. São os<br />
símbolos excelentes e nobres daquelas<br />
magnificências que nos aguardam<br />
no Céu Empíreo.<br />
Dado, porém, que o efeito é sempre<br />
menor que a causa, comprazo-me<br />
em salientar que a maior dessas pulcritudes<br />
da antiga Europa é precisamente<br />
o espírito daqueles que as conceberam,<br />
as almas sedentas das grandezas<br />
celestiais, os corações nos quais<br />
se sentia este anseio de modo mais intenso<br />
do que naquilo que produziram<br />
e legaram à posteridade.<br />
*<br />
Penso nisto, ao considerar uma Sainte<br />
Chapelle e o monarca que a construiu,<br />
São Luís IX; ao admirar um<br />
Eremo delle Carceri e seu mais ilustre<br />
habitante, São rancisco de Assis; ou<br />
ao examinar a pujança e beleza de<br />
formas de uma Torre de Belém, diante<br />
da qual eu gostaria de passar uma<br />
noite inteira, sob as refulgências do<br />
luar, meditando no heroísmo dos valorosos<br />
portugueses de que ela é portentosa<br />
expressão.<br />
E por que não lembrar do palácio<br />
do Rei Sol, do Versailles de Luís XIV,<br />
cujas linhas e arquiteturas, no que têm<br />
de virtude e catolicidade, nasceram<br />
da Igreja e, a fortiori, estavam conti-<br />
D. Sebastião de Portugal<br />
e a Torre de Belém<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
das na mentalidade e no modo de ser<br />
dos homens e instituições sagrados<br />
que incutiram nos seus artífices o espírito<br />
católico? Logo, num São Vicente<br />
de Paulo, por exemplo, insigne santo<br />
do tempo do pai de Luís XIV e que<br />
freqüentava a corte, proporcionando<br />
uma abertura de alma para as virtudes<br />
que realizaram Versailles.<br />
O mesmo se poderia dizer do Escorial,<br />
concebido por elipe II de Espanha,<br />
o qual era mais “Escorial” que<br />
todo o seu famoso palácio. E como<br />
não imaginar a influência sobre essa<br />
idealização de uma alma que sobrepujava<br />
a do próprio Rei: a grande<br />
Santa Teresa de Jesus, ela mesma um<br />
“Escorial do Céu”?<br />
*<br />
Portanto, na causa de tantas maravilhas<br />
que duram há séculos e que ainda<br />
hoje encantam o mundo, havia toda<br />
uma estrutura moral, virtudes e<br />
qualidades de alma, havia um portentoso<br />
vínculo entre Igreja, Religião e<br />
civilização, concorrendo para realizálas.<br />
Para se dizer tudo, havia o Sangue<br />
infinitamente precioso de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo e as lágrimas de Nossa<br />
Senhora, fontes de graças inapreciáveis<br />
que fecundaram e geraram um<br />
mundo inteiro posto na perspectiva das<br />
grandezas eternas, apetecendo-as e<br />
procurando espelhá-las do modo mais<br />
perfeito possível nesta terra de exílio.<br />
*<br />
E assim são os esplendores da Europa<br />
cristã, da Europa sacrossanta, cujos<br />
passado e relíquias nos enchem do<br />
desejo de, ali chegando, oscular o solo<br />
em que primeiro pousam nossos pés.<br />
Porque, seja como for, é a parte do<br />
mundo por excelência onde os sofrimentos<br />
de Cristo e as dores de sua Mãe<br />
Santíssima engendraram uma grandiosa<br />
civilização, ante-câmara do Paraíso<br />
Celeste.<br />
v<br />
elipe II<br />
e seu famoso palácio,<br />
o Escorial<br />
34
Na origem de Versailles<br />
se encontram virtudes<br />
desabrochadas pela<br />
presença de um<br />
São Vicente de Paulo<br />
na corte francesa
Arca da aliança<br />
e velo de Gedeão<br />
No Ofício consagrado a Nossa Senhora, Ela é cognominada Arca da<br />
Aliança e Velo de Gedeão. Conforme prefigurado pelo manto deste<br />
guerreiro bíblico, apenas Maria Santíssima foi isenta, desde o momento de<br />
sua concepção, da mancha original, enquanto toda a terra a seu redor estava<br />
úmida de pecado. E porque concebida sem mácula, na alma d’Ela estão<br />
gravados os Mandamentos do Altíssimo, de modo mais perfeito do que nas<br />
tábuas de Moisés, encerradas na Arca da Aliança.<br />
É a partir do Imaculado Coração de Nossa Senhora que, pelo ministério da<br />
Santa Igreja Católica, a Lei de Deus se irradia para a humanidade inteira.