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O dogma da<br />
Imaculada Conceição
Personagem envolto na áurea e<br />
inocente legenda natalina, São<br />
Nicolau foi um modelo de caridade<br />
cristã, desvelado benfeitor do<br />
próximo mais necessitado, ao qual<br />
prodigalizava seu auxílio, sem<br />
que ele soubesse de onde viera o<br />
inestimável socorro.<br />
Príncipe da Igreja, sucessor<br />
dos Apóstolos, sua compaixão<br />
e generosidade o tornaram<br />
para sempre essa figura<br />
mítica, repassada de<br />
bondade e carinho, fonte das<br />
alegrias e sorrisos com que as<br />
crianças festejam seus presentes<br />
de Natal.<br />
Também eu, quando menino,<br />
aguardava ansioso a manhã do<br />
25 de dezembro, na certeza de que o<br />
bom São Nicolau viria durante a noite<br />
depositar aos pés de nossa cama os<br />
brinquedos que tanto desejávamos. E<br />
ele os trazia sempre...<br />
São Nicolau de Bari -<br />
Museu do Louvre, Paris<br />
S. Hollmann<br />
2
Sumário<br />
O dogma da<br />
Imaculada Conceição<br />
Na capa, imagem<br />
da Imaculada<br />
Conceição - Catedral<br />
de Sevilha, Espanha<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
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EDITORIAL<br />
4 Triunfante albor do Reinado de Maria<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
5 Dezembro de 1935: Uma coluna<br />
“dardejante” de sã doutrina<br />
DONA LUCILIA<br />
6 Incansável afeto<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
10 A Imaculada Conceição<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
14 O luminoso caminho dos “flashes”<br />
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
18 Noções gerais de temperamento - I<br />
24 Calendário Litúrgico<br />
Preços da assinatura anual<br />
Dezembro de 2004<br />
Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />
Colaborador . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />
Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />
Grande Propulsor . . . . . . R$ 370,00<br />
Exemplar avulso . . . . . . . R$ 10,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />
O SANTO DO MÊS<br />
26 São João da Cruz,<br />
mestre do amor a Deus<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
31 Universo Natalino<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
36 Nasceu-nos um Menino<br />
3
Editorial<br />
Triunfante albor do Reinado de Maria<br />
Há cento e cinqüenta anos, na manhã do dia 8 de dezembro, o Papa Bem-aventurado Pio IX proclamava<br />
o Dogma da Imaculada Conceição. Do alto deste Sinai do Novo Testamento que é a Cátedra<br />
Infalível da Verdade, o Pontífice declarou: “A doutrina que defende ter sido a Beatíssima Virgem<br />
Maria preservada de toda a mancha do pecado original, desde o primeiro instante da sua concepção, por<br />
singular graça e privilégio de Deus onipotente e em atenção aos merecimentos de Jesus Cristo salvador do gênero<br />
humano, foi revelada por Deus e, portanto, deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis” 1 .<br />
Dando início às celebrações dessa magna data mariana, quis o Papa João Paulo II honrá-la com sua recente<br />
peregrinação ao Santuário de Lourdes, onde, quatro anos após aquela declaração dogmática, Nossa<br />
Senhora apareceu a Santa Bernadette Soubirous, dizendo-lhe (no dialeto local): “Eu sou a Imaculada Conceição”.<br />
Era, pelos próprios lábios da Rainha do Céu, uma espécie de ratificação da sentença pontifícia.<br />
Mais. O milagre de Lourdes corroborando o dogma, afirmará <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em memorável artigo, representava<br />
uma retumbante vitória do bem sobre o mal, da Contra-Revolução sobre a Revolução, abrindo as vias<br />
para a implantação do Reino de Maria neste mundo:<br />
“Ver um Vigário de Jesus Cristo erguer-se na plenitude e na majestade de seu poder, para proclamar um dogma<br />
em pleno século XIX, era presenciar um desafio admiravelmente sobranceiro e arrojado ao ceticismo triunfante,<br />
que já então corroía até as entranhas a civilização ocidental. (...)<br />
“E não estava só nisto o que ousaríamos chamar o sal do glorioso acontecimento da definição do dogma.<br />
É impossível pensar na Virgem Imaculada sem ao mesmo tempo lembrar a serpente cuja cabeça Ela esmagou<br />
triunfal e definitivamente com o calcanhar. (...) Ora, ver assim afirmada [a apoteose] de sua máxima, de sua invariável,<br />
de sua inflexível inimiga, era, para o poder das trevas, a mais horrível das humilhações. De onde um<br />
concerto de vozes humanas e rugidos satânicos por todo o mundo, semelhante a uma imensa e fragorosa tempestade.<br />
Ver que contra essa tempestade de paixões inconfessáveis, de ódios ameaçadores, de desesperos furiosos,<br />
se erguia só, e intrépida, a figura majestosa do Vigário de Cristo, desarmada de todos os recursos da Terra e<br />
fiada apenas no auxílio do Céu, era fonte, para os verdadeiros católicos, de um júbilo igual ao que sentiram os<br />
Apóstolos vendo erguer-se, na tempestade desencadeada sobre o Lago de Genesaré, a figura divinamente varonil<br />
do Salvador, a comandar soberanamente os ventos e o mar: ‘Venti et mare oboediunt ei’ (Mt 8, 27).<br />
“Assim como diante dos hunos se deixaram derrotar ou debandaram todos os generais e governadores do Império<br />
Romano, assim também, diante da Revolução, estavam em deplorável derrota ou debandada, em número<br />
incontável, os que na sociedade temporal deveriam defender a Igreja e a civilização cristã.<br />
“Nesta situação, de uma nobre e solene dramaticidade, Pio IX, como São Leão Magno, era o único a enfrentar<br />
o adversário e a lhe impor a retirada. Recuar? A proposição parece ousada. Entretanto, nada mais verdadeiro.<br />
A partir de 1854, a Revolução começou a sofrer suas grandes derrotas.<br />
“É certo que, na aparência como na realidade, ela continuou a desenvolver seu império sobre a Terra. O igualitarismo,<br />
a sensualidade, o ceticismo foram alcançando vitórias sempre mais radicais e extensas. Mas algo de<br />
novo surgiu. E este algo, que é modesto, apagado, insignificante de aspecto, por sua vez vem crescendo incoercivelmente<br />
e acabará por matar a Revolução. (...)<br />
“O que quer dizer, afinal, que de acordo com a Mensagem de Fátima, os dias do domínio da impiedade estão<br />
contados. A definição do dogma da Imaculada Conceição marcou o início de uma sucessão de fatos que conduzirá<br />
ao Reinado de Maria.” 2<br />
1<br />
) Bula Ineffabilis Deus, de 8/12/1854; 2 ) Catolicismo, nº 86, fevereiro de 1958.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Dezembro de 1935<br />
Uma coluna “dardejante”<br />
de sã doutrina<br />
E<br />
m 8 de dezembro de 1935 era estampado<br />
nas páginas do Legionário o primeiro<br />
artigo de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, intitulado “À<br />
margem dos fatos”, com o qual inaugurava sua<br />
coluna Sete dias em <strong>Revista</strong>. Até o ano de 1947,<br />
exceto em cinco ocasiões, escreverá ele toda semana<br />
essa seção, totalizando 608 rubricas.<br />
Sete dias em <strong>Revista</strong> foi concebida por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> na convicção de que ao povo brasileiro<br />
agrada mais as novidades enriquecidas de um<br />
pequeno comentário.<br />
“O desastre para os meus patrícios — disse ele<br />
certa vez — é um artigo com pouca notícia e extensas<br />
análises. Assim, para essa coluna, sobretu-<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> quando<br />
diretor do<br />
“Legionário” e<br />
sua coluna “7 dias<br />
em revista”<br />
do era preciso que cada comentário fosse por si<br />
um acontecimento, seguido de uma observação<br />
concisa: ‘diante de tal fato, o pensamento católico<br />
tece tal ponderação’. E esta tinha de ser uma<br />
flecha que se crava, para criticar ou elogiar. Quando<br />
houvesse lugar para louvores, evitar os aplausos<br />
convencionais. Quando se dava o momento<br />
da crítica, devia-se começar dizendo, por exemplo:<br />
‘Não foi acertada a atitude de Fulano’ (nomeando<br />
o personagem em questão). Sete dias em revista<br />
tomava, então, tudo o que se passara na semana<br />
e dardejava! Fosse quem fosse o alvo, os dardos<br />
eram lançados...”<br />
Esse estilo direto, simples e profundo, inteiramente<br />
alicerçado na realidade dos fatos, granjeou<br />
para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> o prestígio de jornalista criterioso<br />
e sempre atual, além de conquistar para<br />
o Legionário uma importante influência no ambiente<br />
católico nacional e estrangeiro (cfr. “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>” nº 78). Desse entrelaçamento com outras<br />
folhas católicas resultaram amizades e contatos<br />
preciosos, através dos quais <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> pôde<br />
ampliar seu apostolado no Brasil e no mundo.<br />
Anos mais tarde, o “dardejante” estilo de<br />
Sete Dias em <strong>Revista</strong> viria à tona novamente<br />
na Folha de S. Paulo, quando este jornal<br />
paulistano convidou <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para ser um<br />
dos colaboradores de sua seção “Tendências<br />
e Debates”. De 1968 a 1975, os artigos dele<br />
foram publicados semanalmente nessa tribuna<br />
e reproduzidos por jornais de diversos<br />
países. Após essa data, as<br />
ingentes ocupações em<br />
prol da causa católica<br />
o obrigaram a<br />
diminuir suas luminosas<br />
colaborações<br />
à imprensa<br />
brasileira. <br />
5
DONA LUCILIA<br />
Dona Lucilia<br />
aos 91 anos<br />
Incansável afeto<br />
6
P<br />
assados os dias de apreensão<br />
que vivera o País no início<br />
dos 60, momentos nos<br />
quais a confiança na proteção divina<br />
foi seu principal consolo, Dª Lucilia<br />
tomou aquela pena tantas vezes<br />
utilizada para transmitir palavras de<br />
afeto, que faziam os encantos do filho<br />
distante, para escrever uma missiva<br />
à sua cunhada, a madrinha de<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
A última carta<br />
Dona Lucilia não via Dª Teresa<br />
desde a viagem a Pernambuco, havia<br />
sessenta anos. No entanto, com<br />
ela mantivera sempre afetuosa correspondência.<br />
Comovedoras são as linhas desta<br />
carta, a última escrita por Dª Lucilia<br />
antes de partir para a eternidade.<br />
São Paulo, [abril de 1964]<br />
Querida Tetê!<br />
Penso que ainda não recebeste a<br />
carta que te escrevi dando notícias<br />
nossas. (...) Estava sofrendo muito<br />
com reumatismo nos pés, e nas pernas,<br />
e o fígado péssimo!... Só ando de<br />
braço com uma empregada, e uma<br />
bengala na outra [mão], e com dificuldade!...<br />
Sinto bem que não possas vir ver<br />
como o teu afilhado trabalha pela nossa<br />
religião... Tem escrito diversos livros<br />
católicos, fala em toda parte, a convite<br />
de uns e outros, para falar nas recepções,<br />
etc., e não chega para tudo!!<br />
Sinto-me tão enfraquecida, que<br />
penso que já não te escreverei mais!!<br />
Recomenda-me com afeto a todos<br />
que ainda se lembrem de mim!<br />
Com um afetuoso abraço, beija-te<br />
a cunhada que muito te quer,<br />
Lucilia<br />
A rejeição de Dª<br />
Lucilia ao horrendo<br />
Dona Tetê, cunhada de Dona<br />
Lucilia, para a qual esta<br />
escreveu sua última carta<br />
O Brasil não estava imune ao contágio<br />
da 4ª Revolução 1 , que em breve<br />
iria eclodir e difundir-se com virulência<br />
pelo mundo inteiro. Um dos<br />
aspectos mais salientes desta nova<br />
fase do processo revolucionário era<br />
a exaltação do horrendo.<br />
Não houve civilização na História,<br />
por mais decadente que fosse,<br />
que não conservasse aceso um certo<br />
amor ao belo, refletido na arte e nos<br />
demais aspectos da vida, como por<br />
exemplo no vestuário ou nos utensílios<br />
de uso doméstico.<br />
O homem do século XX, porém,<br />
não só sistematicamente sacrificou<br />
o pulchrum 2 em aras da modernidade<br />
ou do utilitarismo, como perdeu o<br />
senso da harmonia, passando a exaltar<br />
o feio e o desproporcionado. A<br />
arte moderna, em qualquer de seus<br />
ramos, é bastante elucidativa desse<br />
fato.<br />
Sendo o homem criado à imagem<br />
e semelhança de Deus, que é a Beleza,<br />
e estando sua alma bem ordenada,<br />
não pode deixar de admirar profundamente<br />
tudo quanto é maravilhoso.<br />
Razão pela qual têm as crianças<br />
inocentes esse senso tão vivo.<br />
Em nossos dias operou-se uma silenciosa<br />
revolução no mundo infantil,<br />
com a substituição dos belos brinquedos<br />
de outrora, evocativos de<br />
uma era ideal, por figuras que representam<br />
seres disformes e repelentes.<br />
Não é difícil conjecturar qual a reação<br />
da temperante alma de Dª Lucilia<br />
ante as primeiras manifestações<br />
dessa nova mentalidade.<br />
Episódio significativo deu-se por<br />
ocasião da visita de alguns conhecidos<br />
ao apartamento da Rua Alagoas.<br />
Vinham estes acompanhados de suas<br />
filhas, duas menininhas encantadoras.<br />
Dir-se-ia anjos de uma iluminura<br />
medieval.<br />
Aproximando-se de Dª Lucilia,<br />
atraídas por sua bondade e por seus<br />
modos afáveis, tiraram do bolso um<br />
pequeno pacote contendo bonequinhos<br />
de plástico, e puseram-nos nas<br />
mãos dela, exclamando alegremente:<br />
“Os monstros, os monstros!...”<br />
Estava longe o tempo das bonecas<br />
de porcelana, vestidas de rendas,<br />
e dos vistosos soldadinhos de chumbo...<br />
Dª Lucilia deitou especial atenção<br />
sobre um deles e, ao dar-se conta do<br />
que se tratava, ficou horrorizada e<br />
o afastou de si. Por certo terá interiormente<br />
lamentado não poder ela<br />
mesma velar pela educação das pequenas,<br />
introduzindo-as no universo<br />
das histórias maravilhosas que tão<br />
encantadoramente sabia narrar.<br />
“Como ela é boazinha”<br />
A saúde de Dª Lucilia, com o correr<br />
do tempo, ia cada vez mais inspirando<br />
preocupações. Tendo sofrido,<br />
em determinado momento, um agravamento<br />
súbito, foi necessário tirar<br />
uma radiografia. Por estar ela já com<br />
as forças debilitadas, seu filho contratou<br />
um técnico que realizasse esse<br />
exame no próprio apartamento.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ficou à espera dele, a<br />
fim de conduzi-lo ao quarto materno.<br />
Quando ele chegou, carregando<br />
7
DONA LUCILIA<br />
todos os apetrechos radiológicos, entraram<br />
ambos no aposento. Era um<br />
homem de meia-idade, avantajada<br />
compleição, moreno, pele escurecida<br />
pelo sol, habituado a trabalhos<br />
pesados, e com uma certa insensibilidade<br />
às dores alheias. Este último<br />
aspecto não é de estranhar, pois<br />
sua profissão o punha em constante<br />
contato com as mais variadas formas<br />
de sofrimento humano causado pela<br />
enfermidade ou até pela iminência<br />
da morte.<br />
Sem sequer olhar Dª Lucilia,<br />
o técnico a saudou com um banal<br />
“boa-noite”, e começou a preparar<br />
os aparelhos para efetuar “mais<br />
um serviço”, quiçá o último daquele<br />
dia. Porém, tais eram a ternura e<br />
o carinho com que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tratava<br />
sua mãe, que o homem talvez se tenha<br />
surpreendido. Parou, então, de<br />
lidar com seus instrumentos, e quis<br />
ver quem era objeto de tanto afeto.<br />
Olhou detidamente para Dª Lucilia.<br />
Visivelmente comoveram-se<br />
as fibras mais sensíveis de sua alma.<br />
Aproximou-se da cama e, num gesto<br />
de carinho, passou seu enorme dedo<br />
por debaixo do queixo dela, dizendo<br />
ao mesmo tempo, enlevado:<br />
— Como ela é boazinha!<br />
Era a afetividade brasileira que<br />
falava no fundo da alma daquele robusto<br />
homem... Dona Lucilia permaneceu<br />
em silêncio, sem se mover, como<br />
se nada tivesse notado, apesar de<br />
tão inopinado gesto constituir involuntária<br />
falta de respeito para com a<br />
veneranda enferma.<br />
Seu filho, percebendo como a<br />
benquerença de Dª Lucilia tocara<br />
aquele coração, por sua vez nada<br />
disse. Apenas guardou do fato terna<br />
e saudosa recordação.<br />
Zelo pela conversão<br />
de um cunhado<br />
Com certa freqüência, eram convidados<br />
a almoçar ou jantar em casa<br />
de Dª Lucilia alguns dos mais antigos<br />
companheiros de ação e de luta<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, aos quais ela concedia<br />
maior intimidade.<br />
Durante a refeição, a conversa<br />
atingia freqüentemente elevados temas<br />
religiosos, políticos e outros.<br />
Dona Lucilia se mantinha em atitude<br />
de discreta atenção, a tal ponto<br />
que um amigo particularmente íntimo<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lhe dizia por vezes<br />
num tom de voz imperceptível para<br />
ela:<br />
— Preste atenção. Repare como<br />
ela está te olhando...<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sem deixar de conversar,<br />
observava discretamente Dª Lucilia,<br />
comprovando como ela sorvia<br />
enlevada cada uma de suas palavras.<br />
Noutras ocasiões, em que estava<br />
presente algum eclesiástico, e a conversa<br />
enveredava por temas doutrinários<br />
ou teológicos, Dª Lucilia interrompia<br />
amavelmente e perguntava:<br />
— Por que não contam isso para<br />
meu cunhado?<br />
Dona Lucilia estimava muito esse<br />
parente, e acreditava que despertar<br />
o interesse dele para tais assuntos<br />
lhe faria bem à alma. Por seu turno,<br />
ele também gostava de visitá-la<br />
e de manter com ela longas prosas,<br />
atraído precisamente por certos reflexos<br />
de alma que nela notava e que<br />
nunca deixou de admirar. Conforme<br />
comentou em certa ocasião, impressionavam-no<br />
sobretudo a atitude dela<br />
perante o sofrimento, e a distância<br />
que ela sempre soube manter em<br />
relação aos dissabores da vida, sem<br />
deixar que seus nervos fossem abalados<br />
por eles.<br />
A última caixa de<br />
gravatas oferecida<br />
a seu filho<br />
Passando um dia pelo corredor do<br />
apartamento, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> notou que<br />
sua mãe estava no escritório redigindo<br />
algo, sentada à escrivaninha. Tratava-se<br />
da “surpresa” que ela prepa-<br />
8
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em meados da década de<br />
1960, e a última caixa de gravatas<br />
que ele ganhou de Dona Lucilia.<br />
Na página anterior, o<br />
presente sobre a escrivaninha<br />
do escritório do “1º Andar”<br />
rava para mais um aniversário do “filho<br />
querido de seu coração”.<br />
Vencendo as dificuldades naturais<br />
da avançada idade, Dª Lucilia escreveu<br />
uma última dedicatória para <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, no papel de seda da caixa de<br />
gravatas que ela lhe daria de presente.<br />
Linhas traçadas com muito esforço,<br />
no qual entrava um enorme afeto,<br />
e o desejo de uma alma delicada<br />
de fazer tudo bem feito e com senso<br />
do dever.<br />
Mais. Aquele gesto traduzia sua<br />
admiração por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, a ilimitada<br />
confiança que nele depositava, seu<br />
incansável desejo de lhe agradar e o<br />
reconhecimento do quanto seu filho<br />
lhe era dedicado.<br />
Enlevado com tal cena, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
não deixou sua mãe perceber que ele<br />
a observara e, após receber o presente,<br />
conservou a dedicatória como<br />
preciosa lembrança daquele incomparável<br />
amor materno. Eram estes<br />
os dizeres:<br />
Lembrança de Mamãe ao filho<br />
querido!!<br />
<br />
(Transcrito, com adaptações,<br />
da obra “Dona Lucilia”,<br />
de João Clá Dias)<br />
1) A expressão “4ª Revolução” é aqui<br />
usada no sentido que lhe dá o Prof.<br />
<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira em sua obra<br />
“Revolução e Contra-Revolução”,<br />
Parte III, cap. III, p. 210 a 225.<br />
2) Belo.<br />
9
DR. PLINIO COMENTA...<br />
A Imaculada Conceição<br />
P<br />
rimeiro dos augustos privilégios outorgados a Maria em vista da maternidade<br />
divina, a Imaculada Conceição sempre despertou na alma<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> um intenso e fervoroso enlevo. Eloqüente prova dessa devoção<br />
podemos constatar nos comentários transcritos a seguir, exemplos dos<br />
inúmeros feitos por ele ao longo de sua gesta católica.<br />
N<br />
a Bula Ineffabilis Deus, com a qual Pio IX definiu<br />
o dogma da Imaculada Conceição, encontra-se<br />
este trecho:<br />
“A doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem<br />
Maria, no primeiro instante da sua conceição, por singular<br />
graça e privilégio de Deus onipotente, em vista dos<br />
méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi<br />
preservada e imune de toda mancha de pecado original,<br />
essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser<br />
crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis.”<br />
Rompida a lamentável<br />
herança da culpa original<br />
O Sumo Pontífice afirma, portanto, que Nossa Senhora,<br />
por uma graça singular e em vistas dos méritos de<br />
Cristo, a partir do primeiro instante de seu ser foi isenta<br />
da mancha do pecado original. Essa doutrina foi revelada<br />
por Deus, e por isso deve ser “crida firme e inviolavelmente<br />
por todos os fiéis”.<br />
Para se avaliar o extraordinário significado da Imaculada<br />
Conceição, é preciso ter em conta que, em conseqüência<br />
da queda de Adão, todos os seus descendentes haviam<br />
de nascer com o pecado original. Lamentável herança<br />
em virtude da qual os sentidos do homem continuamente<br />
se revoltam contra a sua razão, expondo-o a novos<br />
e incontáveis pecados.<br />
Durante milênios verificou-se, inexorável, essa lei da<br />
maldição. Em determinado momento, porém, os Anjos<br />
assistem atônitos a um fato sem precedentes na história<br />
da humanidade decaída: Deus quebranta a funesta lei,<br />
e um ser é inteiramente concebido sem pecado original.<br />
É Nossa Senhora que surge imaculada, resplandecente,<br />
com todo o brilho e todo o fulgor de uma criatura perfeita,<br />
como o foram Adão e Eva ao saírem das mãos do<br />
Onipotente.<br />
Pode-se imaginar que, nesse sublime instante, um frêmito<br />
de júbilo e de glória percorreu todo o universo,<br />
acentuado pelo fato de que Maria, isenta do pecado original,<br />
era também a obra-prima da criação. Acima d’Ela<br />
haveria de estar, apenas, a Humanidade santíssima de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Narra a Sagrada Escritura que o Padre Eterno, depois<br />
de concluída a obra da Criação, repousou na enlevada<br />
consideração do que Ele tinha feito. Descansou, porém,<br />
tendo-se proposto criar um ser que superasse em maravilha<br />
tudo o que até então sua onipotência realizara, uma<br />
mulher da qual haveria de nascer o Verbo Encarnado. E<br />
foi precisamente no momento da Conceição Imaculada<br />
de Nossa Senhora que Deus executou essa sua obra-prima.<br />
“Como um exército em<br />
ordem de batalha”<br />
Concebida sem pecado original, Nossa Senhora não<br />
sentia em si nenhuma inclinação para o que fosse ruim.<br />
Pelo contrário, possuía todas as facilidades para dar à<br />
graça de Deus uma perfeita e constante correspondência.<br />
De sorte que, n’Ela, as grandezas sobrenatural e natural<br />
se entrelaçavam numa profunda e maravilhosa harmonia.<br />
Em conseqüência, Nossa Senhora tinha como ninguém<br />
uma altíssima noção da excelência de Deus, e da<br />
glória que Lhe devem render todas as criaturas. Por isso,<br />
nutria em sua alma vivíssimo horror ao pecado, que é um<br />
10
Fotos: T. Ring / S. Hollmann<br />
Imaculada Conceição -<br />
Catedral de Sevilha,<br />
Espanha<br />
11
DR. PLINIO COMENTA...<br />
ultraje à mesma glória divina. Donde possuir Ela, também,<br />
uma ardorosa combatividade, no sentido de execrar<br />
toda forma de mal.<br />
Compreende-se, à vista disto, porque Nossa Senhora<br />
é comparada a um exército em ordem de batalha: sicut<br />
castrorum acies ordinata. Ou, como d’Ela se diz, que sozinha<br />
esmagou todas as heresias na Terra inteira. Por quê?<br />
Exatamente porque, já no privilégio de sua Imaculada<br />
Conceição, Ela é o modelo de combate ao mal.<br />
Início da vitória da Contra-Revolução<br />
Porque concebida sem pecado original, Nossa Senhora,<br />
afirmam os teólogos, foi dotada do uso da razão desde<br />
o primeiro instante de seu ser. Portanto, já no ventre<br />
materno Ela possuía altíssimos e sublimíssimos pensamentos,<br />
vivendo no seio de Sant’Ana como num verdadeiro<br />
tabernáculo.<br />
Temos uma confirmação indireta disso no que narra a<br />
Sagrada Escritura (Lc 1, 44) a respeito de São João Batista.<br />
Ele, que fora engendrado no pecado original, ao<br />
ouvir a voz de Nossa Senhora saudando Santa Isabel, estremeceu<br />
de alegria no seio de sua mãe.<br />
Assim, pode-se acreditar que a Bem-aventurada Virgem,<br />
com a altíssima ciência que recebera pela graça de<br />
Deus, já no seio de Sant’Ana começou a pedir a vinda do<br />
Messias e, com Ele, a derrota de todo mal no gênero humano.<br />
E desde o ventre materno se estabeleceu, certamente,<br />
no espírito de Maria, aquele elevadíssimo intuito<br />
de vir a ser, um dia, a servidora da Mãe do Salvador.<br />
Na realidade, por essa forma Nossa Senhora já começava<br />
a influir nos destinos da humanidade. Sua presença<br />
na Terra era uma fonte de graças para todos aqueles que<br />
d’Ela se aproximavam na sua infância, ou mesmo quando<br />
ainda se encontrava no seio de Sant’Ana. Pois se da túnica<br />
de Nosso Senhor — conta o Evangelho (Lc 8, 44-47)<br />
— se irradiavam virtudes curativas para quem a tocasse,<br />
quanto mais da Mãe de Deus, Vaso de Eleição!<br />
Por isso, pode-se dizer que, embora fosse Ela criancinha,<br />
já em seu natal graças imensas raiaram para a humanidade.<br />
Naquele bendito momento, a vitória da Contra-Revolução<br />
começou a ser afirmada e o demônio a ser<br />
esmagado, percebendo que algo de seu cetro estava irremediavelmente<br />
partido.<br />
Derrota dolorosa e pessoal<br />
para o demônio<br />
Por isso, tem o demônio especial ódio à Imaculada<br />
Conceição. Esta singular prerrogativa de Nossa Senhora<br />
constituiu para ele uma derrota dolorosíssima e, por assim<br />
dizer, pessoal.<br />
Com efeito, tendo Satanás conseguido arrastar nossos<br />
primeiros pais ao pecado original, as vantagens que lhe<br />
traria essa queda, caso não houvesse a futura Redenção,<br />
seriam simplesmente espetaculares. O homem, criatura<br />
nobre de Deus, ficou desfigurado pelo pecado e sujeito<br />
às más tendências. Com isso, tornou-se incalculável o número<br />
de pessoas capazes de cair, ao longo dos séculos,<br />
no Inferno. Portanto, imenso foi o êxito imediato que o<br />
demônio obteve com o pecado de Adão e Eva.<br />
O único modo de anular esse triunfo do mal seria o<br />
Verbo se encarnar e, enquanto Homem-Deus, oferecerse<br />
como vítima pela nossa salvação.<br />
Ora, essa vitória do Bem teve sua primeira realização<br />
no nascimento de uma criatura excelsa, imaculada, que,<br />
apesar de todos os embustes do demônio, surgia livre da<br />
trama na qual ele pretendia envolver todo o gênero humano.<br />
Em favor dessa criatura, Deus rompeu a urdidura<br />
satânica, e Ela nasceu inteiramente fora da lei do pecado<br />
original. Essa criatura eleita é Maria Santíssima, Mãe de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Portanto, a raiz da salvação do mundo, o ponto de<br />
partida da Redenção da humanidade, foi o fato de Nossa<br />
Senhora ter sido concebida isenta do pecado original.<br />
Donde nos ser fácil compreender como o primeiro lan-<br />
12
Glorioso revide<br />
contra o demônio<br />
que perdera nossos<br />
primeiros pais, ...<br />
ce da Contra-Revolução foi, precisamente, a Imaculada<br />
Conceição de Maria Virgem, prelúdio da Encarnação do<br />
Verbo.<br />
Invocação propícia aos<br />
contra-revolucionários<br />
... a Imaculada<br />
Conceição esmaga<br />
para todo o sempre<br />
a cabeça da<br />
infernal serpente<br />
Imaculada<br />
Conceição - Quito,<br />
Equador; na página<br />
12, detalhe da<br />
“Anunciação”, de<br />
Fra Angélico<br />
Compreendemos, de outro lado, como Nossa Senhora,<br />
concebida sem pecado original, realmente pisa na cabeça<br />
do demônio. E, portanto, o profundo sentido teológico<br />
que há no fato de se representar a imagem da Imaculada<br />
Conceição calcando a serpente.<br />
Imaculada Conceição! Essa é a invocação propícia para<br />
os contra-revolucionários. O modelo para estes é Nossa<br />
Senhora que, ao contrário de Eva, não conversa com a<br />
serpente e, ademais, esmaga-lhe constantemente a cabeça.<br />
Tal é a atitude de espírito que devemos pedir a Nossa<br />
Senhora da Imaculada Conceição.<br />
Pois, que outra coisa é o calcanhar da Virgem, senão<br />
os filhos que Ela suscitou para seu serviço, humildes, desapegados<br />
de honras e glórias mundanas, unicamente desejosos<br />
de serem instrumentos d’Ela para esmagar a Revolução?<br />
Esse deve ser nosso maior anelo: sermos células vivas<br />
do glorioso calcanhar da Santíssima Virgem, a cuja pressão<br />
nada tem resistido ao longo da História!<br />
Especial brilho da imaculada<br />
beleza de Maria<br />
Na mesma Bula Ineffabilis Deus, o Papa Pio IX assim<br />
se exprime: “E depois reafirmamos a nossa mais confiante<br />
esperança na Beatíssima Virgem que, toda bela e imaculada,<br />
esmagou a cabeça venenosa da crudelíssima serpente,<br />
e trouxe a salvação ao mundo”.<br />
É interessante notar como o Sumo Pontífice reúne, no<br />
mesmo pensamento, a beleza e o poder de Nossa Senhora.<br />
De outro lado, evoca ele, por contraste, a hediondez e<br />
a fraqueza do demônio, o qual é esmagado por Ela.<br />
Portanto, uma vez que existe a diabólica serpente, a<br />
beleza e a perfeição da Santíssima Virgem só se manifestam<br />
completas porque Ela triunfa, vence e esmaga o demônio.<br />
Satanás é um escabelo aos pés d’Ela. Sendo Maria<br />
imaculada e soberanamente linda, não basta que todas<br />
as criaturas deste mundo, as do Céu e as do Purgatório<br />
Lhe prestem homenagem: importa que o inimigo esteja<br />
quebrado sob seu calcanhar.<br />
Uma perfeita consideração do esplendor de Nossa Senhora<br />
envolve, portanto, a idéia do demônio estraçalhado<br />
e humilhado por Ela. Essa vitória sobre Satanás resulta<br />
em particular brilho na celestial beleza da Imaculada<br />
Conceição.<br />
<br />
13
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
O luminoso caminho<br />
dos “flashes”<br />
Evocando marcantes momentos de sua infância, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> prossegue na<br />
descrição das graças especiais que, como verdadeiros “flashes”, foramlhe<br />
concedidas para discernir e amar as perfeições de Deus, de Maria Santíssima<br />
e da Igreja. Esses dons divinos, insistirá <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
longe de serem um privilégio, estão<br />
ao alcance de todos nós: basta<br />
que tenhamos o espírito<br />
atento para as belezas<br />
celestiais e seguirmos<br />
a radiosa<br />
trajetória que elas<br />
nos traçam.<br />
Fotos: T. Ring<br />
14
E<br />
m anterior ocasião, narrei<br />
aqui alguns flashes que tive<br />
em menino, os quais me levaram<br />
a compreender a santidade e<br />
a divindade da Igreja.<br />
“Flashes” com a pureza<br />
de Nossa Senhora<br />
Também na infância, outras graças<br />
dessa natureza me foram concedidas,<br />
ao contemplar as imagens de<br />
Nossa Senhora Auxiliadora, na Igreja<br />
do Sagrado Coração de Jesus, e de<br />
Nossa Senhora do Bom Conselho,<br />
no Colégio São Luís.<br />
Em ambos os casos não houve milagre,<br />
como se as imagens se movessem<br />
e se manifestassem a mim de<br />
modo extraordinário. Porém, elas<br />
me foram ocasião de graças sensíveis,<br />
à maneira das que recebemos,<br />
por exemplo, diante da imagem peregrina<br />
de Nossa Senhora de Fátima<br />
1 , cuja maravilhosa expressividade<br />
nos faz ter a sensação de que ela<br />
muda de fisionomia, como se quisesse<br />
nos dizer algo.<br />
Assim, de modo análogo, junto<br />
àquelas imagens tive uma dupla noção,<br />
da realeza e da misericórdia de<br />
Nossa Senhora.<br />
Poder-se-ia afirmar tratar-se da<br />
realeza da castidade. Maria Santíssima<br />
é a Soberana de todo esse setor<br />
do universo chamado pureza, de<br />
tudo capaz de ser considerado casto,<br />
com primazia para a alma humana.<br />
Nossa Senhora possui a castidade<br />
em grau tão supereminente, que<br />
todas as purezas abaixo da d’Ela não<br />
são senão pálida figura da sua virgindade.<br />
E a pureza tem em si algo que é<br />
oposto, não contraditório, com a misericórdia.<br />
Porque a castidade é profundamente<br />
exclusiva. A pessoa pura<br />
constitui em torno dela uma espécie<br />
de halo que se chama pudor, uma<br />
distância de tudo que não seja casto.<br />
Ela é inquebrantável quanto à impureza,<br />
mostra-se altaneira em relação<br />
a esta e a afasta para longe. Donde<br />
entre o puro e o impuro se estabelecer<br />
uma situação parecida com a que<br />
se poderia imaginar numa cena da<br />
Revolução Francesa, entre a Rainha<br />
Maria Antonieta e um daqueles ferozes<br />
revolucionários. Ela representaria<br />
de algum modo a pureza, a ordem,<br />
e ele, a revolta, o partidário de<br />
toda feiúra, sordície e más maneiras.<br />
Tal cena exprimiria de maneira tênue<br />
a idéia de que realeza e pureza<br />
se casam com toda a intransigência<br />
inerente aos conceitos de ambas. Isto<br />
de um lado.<br />
De outro, porém, Nossa Senhora<br />
possui insondável misericórdia, inclusive<br />
e principalmente para com<br />
o impuro. Embora faltoso, este continua<br />
sendo seu filho, e Ela o considera<br />
com seu ilimitado desvelo de<br />
Mãe, com sua incansável bondade,<br />
desejando perdoá-lo a todo momento,<br />
reerguê-lo e tirá-lo da charneca.<br />
Nossa Senhora Auxiliadora,<br />
venerada na Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus; na página<br />
anterior, Nossa Senhora<br />
do Bom Conselho, exposta<br />
no Colégio São Luís<br />
15
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Ora, a conjunção de todas essas<br />
qualidades da Santíssima Virgem<br />
me falou na alma de forma inenarrável.<br />
E vi naquelas imagens d’Ela essas<br />
várias expressões. Marcou para<br />
minha vida inteira a devoção a Nossa<br />
Senhora, com a idéia de que Ela<br />
é um modelo a ser imitado custe o<br />
que custar, um auxílio no qual se deve<br />
confiar a todo preço, por pior que<br />
seja a situação. A bem dizer, duas incondicionalidades:<br />
na vontade de imitar,<br />
no propósito de esperar o perdão<br />
e a clemência.<br />
Um muro de horror<br />
ao pecado<br />
A graça de compreender e admirar<br />
a realeza da pureza de Nossa Senhora,<br />
cuja noção adquiri através<br />
desses flashes, veio trazendo dentro<br />
de si um verdadeiro muro de horror<br />
contra a impureza.<br />
Para se entender essa afirmação,<br />
imagine-se uma pérola absolutamente<br />
branca. Qualquer grão de poeira<br />
que se deposite sobre ela a deprecia,<br />
porque macula em algum ponto<br />
aquela alvura, quebra sua homogeneidade.<br />
Assim, a virtude da pureza<br />
imaculada, ilibada, traz consigo o<br />
padrão do muro de horror contra a<br />
impureza e, por extensão, também<br />
contra tudo quanto é erro e mal.<br />
Por exemplo, entre o deplorável defeito<br />
da inveja e a virtude contrária<br />
(isto é, a admiração e a alegria pelos<br />
dons concedidos por Deus a outros),<br />
há um muro de horror semelhante<br />
àquele da relação pureza-impureza.<br />
Essa parede de aversão se repete<br />
ao longo de toda a muralha das virtudes,<br />
sobretudo no tocante à principal<br />
delas, a Fé, face ao pecado que a<br />
ela se opõe: a heresia.<br />
Por definição, a Fé é tão casta<br />
que, muitas vezes, quando a Escritura<br />
se refere a alguém que pecou<br />
contra essa virtude, afirma ter ele<br />
caído na impureza. E quando o Antigo<br />
Testamento nos apresenta os judeus<br />
praticando atos impuros no alto<br />
das montanhas, alude com isso ao<br />
pecado de apostasia que eles cometiam<br />
ao adorar ídolos postos naqueles<br />
locais. Ou seja, entregar-se à idolatria<br />
é cometer atos impuros, é pecar<br />
contra a Fé.<br />
Em contrapartida, a Santa Igreja,<br />
guardiã da verdadeira Fé, é a Mãe<br />
casta, virgem e reta, a santa, a ilibada,<br />
que nos leva à pratica da virtude<br />
e à repulsa ao vício.<br />
Certo estou, portanto, de que naqueles<br />
momentos dos meus flashes<br />
com Ela, Nossa Senhora me concedeu<br />
a graça de edificar em minha alma<br />
esse muro de horror ao pecado.<br />
Muro este que todos devemos procurar<br />
desenvolver em nosso interior,<br />
em relação a qualquer defeito e pecado<br />
que nos afastam do caminho da<br />
santidade.<br />
“Flashes” que se<br />
desdobram em princípios<br />
A esse propósito, alguém poderia<br />
me indagar: “Para se criar esse muro<br />
de horror, importa ter tido antes<br />
um flash?”<br />
O flash produz necessariamente<br />
o muro do horror. Porém, com freqüência<br />
este último é obtido através<br />
do estudo da boa doutrina, feito<br />
de modo sério por uma alma honesta<br />
que deteste o vício e o mal, embora<br />
não tenha recebido a graça sensível<br />
que chamamos de flash. Entretanto,<br />
a meu ver, na vida espiritual<br />
de uma pessoa é indispensável haver<br />
certo número de flashes, a fim de<br />
que ela construa de maneira profunda<br />
essa muralha de repulsa ao pecado.<br />
E para minha cara “geração nova”<br />
2 , o flash é uma graça particularmente<br />
valiosa, devido à própria contextura<br />
de seu espírito.<br />
Agora, os flashes devem se desdobrar<br />
em princípios, os quais cumprem<br />
ser, não analisados como coisa<br />
geométrica, mas amados. Quer dizer,<br />
compreendendo uma verdade a<br />
partir do flash, é necessário amá-la<br />
e detestar o erro oposto. Nesse sentido,<br />
lembra-me um Salmo que diz:<br />
“Amei a justiça e odiei a iniqüidade,<br />
por isso Deus me ungiu com seu óleo<br />
santo”. Na linguagem da Escritura, a<br />
justiça é o símbolo de todas as virtudes,<br />
e a iniqüidade representa o conjunto<br />
dos erros. A unção da qual fala<br />
o Salmo seria, pois, o flash que torna<br />
a alma articulada, leve, aromatizada,<br />
azeitada para a prática do bem.<br />
Trilhando o caminho<br />
dos “flashes”<br />
Para concluir essas considerações,<br />
é oportuno dizer que cada um, com<br />
a peculiaridade de seu espírito e a riqueza<br />
de sua personalidade, em relação<br />
aos flashes deve ir apalpando<br />
e tateando suas impressões, a fim de<br />
procurar seguir um caminho análogo<br />
ao que trilhei. Esforçar-se em lembrar<br />
dessas graças recebidas, explicitar<br />
as sensações que causaram, de<br />
maneira a saber dizer qual foi sua<br />
substância e, posteriormente, estabelecer<br />
correlações e princípios.<br />
Assim foi como procedi: recordei<br />
meus flashes de menino, explicitei-os,<br />
compus com eles um quadro<br />
de impressões, de correlações e conceitos:<br />
a santidade da Igreja, a realeza<br />
da virgindade de Maria Santíssima,<br />
etc.<br />
Naturalmente, cada alma realiza<br />
essa operação num movimento que<br />
16
lhe é próprio. Não pretendo que façam<br />
como eu, mas acredito ser este<br />
um bom método para, efetuando as<br />
necessárias adaptações, seguir esse<br />
luminoso “caminho dos flashes”. <br />
1<br />
) Essa imagem verteu lágrimas em Nova<br />
Orléans (EUA), em 1972. Em suas<br />
peregrinações através do mundo,<br />
passou diversas vezes pelo Brasil, sendo<br />
aqui venerada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e seus<br />
discípulos.<br />
2<br />
) Sendo já homem maduro, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
foi notando entre os jovens com que<br />
fazia apostolado uma mudança de<br />
modos de pensar, querer e agir. Enquanto<br />
as pessoas de igual ou maior<br />
idade que ele demonstravam certas<br />
qualidades de espírito, esses mais novos<br />
apresentavam debilidades, tais como<br />
falta de perfeita lógica, de segurança,<br />
de direção, de perseverança,<br />
etc. Aos primeiros, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> chamava<br />
de “geração velha”; e aos últimos,<br />
de “geração nova”.<br />
Cada um deve tatear suas impressões,<br />
a fim de procurar seguir a luminosa<br />
via traçada pelos “flashes”<br />
17
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
Noções gerais<br />
de temperamento - I<br />
T<br />
ema de especial interesse para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era analisar as mais diversas disposições<br />
e índoles da alma humana, e como estas a aproximam ou distanciam<br />
da excelência moral a que é chamada. Nessas considerações, comprazia-se ele em<br />
traçar paralelos pitorescos como o que aqui veremos, entre o beija-flor e o jacaré...<br />
P<br />
ediram-me que tratasse sobre<br />
temperamento. Matéria<br />
árdua, delicada, complexa e<br />
extensa.<br />
Não tomarei aqui a palavra em<br />
sentido técnico, mas nas suas várias<br />
acepções correntes. Aliás, perguntome<br />
se o termo é de fato comum, pois<br />
é bem possível que na linguagem de<br />
todos os dias não se fale quase de<br />
temperamento, e expressões como<br />
“fulano é temperamental” sejam ouvidas<br />
apenas em determinados círculos.<br />
“Temperamento” e<br />
termos correlatos<br />
Entretanto, defendemos os melhores<br />
valores da civilização, e um<br />
destes é o vocabulário rico e abundante,<br />
herança dos tempos em que<br />
18
A palavra bem<br />
definida é como um<br />
rochedo que ajuda<br />
o homem a não<br />
cair nas encostas<br />
do pensamento<br />
parado a uma dessas gemas, ou pelo<br />
menos a um bom e sólido pedaço<br />
de granito, dignos e próprios de estarem<br />
na mão do homem, ou de servir<br />
para a construção de sua casa.<br />
Há íntima correlação entre as palavras<br />
“temperamento”, “tempera-<br />
se empregava grande quantidade de<br />
palavras, expressando diferentes matizes<br />
e idéias, incentivando o prazer<br />
da conversa e o interesse por temas<br />
mais elevados.<br />
Assim, falarei de temperamento<br />
no sentido corrente da minha época<br />
de jovem, semelhante ao significado<br />
que possuía há alguns anos.<br />
Aproveitarei, então, como que<br />
pontos de apoio para erguer uma coluna<br />
— a noção de temperamento —<br />
para no alto dela colocar o conceito<br />
de uma virtude relacionada com este,<br />
chamada temperança. Não será difícil<br />
perceber que muito me apraz tomar<br />
as palavras e manuseá-las como<br />
se fossem pedras preciosas de encontro<br />
à luz... Cada termo pode ser commental”,<br />
têmpera”, etc. Muitos já ouviram<br />
falar, por exemplo, em têmpera<br />
de aço, em clima temperado,<br />
na virtude da temperança. Essas várias<br />
aplicações têm a mesma raiz,<br />
um denominador comum. E este, se<br />
examinarmos bem, acha-se presente<br />
na linguagem corriqueira, seja a<br />
do meu tempo de jovem, seja a dos<br />
dias atuais. Fixado esse denominador<br />
comum, poderemos entender o<br />
que é temperamento.<br />
Esse assunto se assemelha a uma<br />
montanha em cujas encostas aparecem<br />
regatos que se espraiam, árvores<br />
floridas que se levantam e penhascos<br />
que ajudam a pessoa a não cair. Uma<br />
palavra bem definida é como um rochedo<br />
que contribui para o homem<br />
No reino animal<br />
encontram-se interessantes<br />
exemplos que nos fazem<br />
entender melhor a noção de<br />
temperamento<br />
L.M.B.Varela<br />
19
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
não rolar nas encostas do pensamento.<br />
Quantos se enganam porque, na<br />
hora de encontrar uma palavra para<br />
exprimir o que pensam, utilizam um<br />
termo com dois sentidos! Sem perceberem,<br />
logo incorporam um sentido<br />
no outro e acabam dizendo algo diverso,<br />
e às vezes oposto àquilo que<br />
cogitavam. Quiçá esse equívoco não<br />
se verificasse nos prólogos do pensamento,<br />
mas empregaram um termo<br />
ambíguo a fim de explicar sua<br />
idéia. E devido a essa ambigüidade,<br />
Somos, portanto, um composto<br />
harmônico de alma e corpo. Mas, a<br />
partir do modo de ser de um bicho,<br />
podemos fazer reflexões que nos levarão<br />
a compreender melhor o papel<br />
do temperamento sobre a inteligênacostumado<br />
a permanecer à beira de<br />
um rio, arfando, espreitando a presa,<br />
vivendo, e o colibri, ágil, rápido, que<br />
voa de flor em flor, rutilante!<br />
Ambos têm sua índole peculiar, e<br />
abordar esse assunto tomando o bi-<br />
L.M.B.Varela<br />
O homem não é<br />
um centauro<br />
de anjo e bicho,<br />
um espírito que<br />
penetrou num<br />
animal irracional...<br />
o raciocínio derrapou, caiu no watershoot<br />
e se estatelou.<br />
Vê-se, portanto, como é necessário<br />
manusearmos, analisarmos todas<br />
as palavras, para que nossas reflexões<br />
sejam lógicas.<br />
Passemos então ao temperamento,<br />
a respeito do qual darei algumas<br />
noções gerais.<br />
Exemplos do reino<br />
animal: o colibri<br />
e o jacaré<br />
O homem é constituído de dois<br />
elementos: a alma e o corpo. Este<br />
pertence ao reino animal, enquanto<br />
a primeira estaria na ordem angélica.<br />
Porém, não somos centauros<br />
de anjo e bicho, um espírito angélico<br />
que penetrou num animal irracional.<br />
Temos uma alma que, por sua natureza,<br />
deve estar ligada a um corpo, e<br />
vice-versa. Ao corpo do bicho não é<br />
próprio estar unido a uma alma, e o<br />
anjo, sendo espírito, não lhe é característico<br />
estar vinculado à matéria.<br />
cia, a vontade e a sensibilidade humanas.<br />
Assim, do inferior para o superior,<br />
nossa análise alcançará o fim<br />
almejado.<br />
Consideremos uma lebre e uma<br />
tartaruga, ou um elefante e um cervo,<br />
ou quaisquer outros animais,<br />
posto serem infindos os exemplos.<br />
Ocorre-me o paralelo entre o jacaré,<br />
cho como exemplo é uma forma preciosa<br />
de fazê-lo, pois como o animal<br />
possui apenas corpo, podemos<br />
entender o que seja temperamento,<br />
abstração feita da alma. Veremos<br />
em seguida a relação temperamento<br />
e espírito. Desta sorte, teremos dado<br />
uma certa idéia de conjunto acerca<br />
do tema proposto.<br />
20
Cuidemos, portanto, da comparação<br />
entre o jacaré e o beija-flor.<br />
O contraste das duas anatomias<br />
não poderia ser mais diferente e<br />
chocante. Ao todo de cada um deles<br />
— corpo, esqueleto, musculatura,<br />
hábitos, tipos de nutrição, regime<br />
de repouso e de atividade, de agressão<br />
e defesa, etc. — corresponde um<br />
princípio vital próprio, pelo qual lhe<br />
é deleitável e natural fazer algumas<br />
coisas e não outras, executando-as<br />
ou omitindo-as de modo igualmente<br />
característico.<br />
Tomemos o jacaré. Além do corpo,<br />
há nele algo chamado vida, material,<br />
não um princípio espiritual,<br />
mas uma centelha comunicada por<br />
Deus que o torna capaz de agir. Essa<br />
comunicação é feita pela sabedoria<br />
e onipotência divinas de tal maneira<br />
O contraste das<br />
duas anatomias<br />
não pode ser mais<br />
diverso, cada qual<br />
com um princípio<br />
vital peculiar<br />
que o princípio vital tende a proceder<br />
exatamente de acordo com aquele<br />
corpo, o qual, por sua vez, existe<br />
para servir àquele princípio. Assim,<br />
no momento em que o jacaré — espécie<br />
ovípara — é concebido, o princípio<br />
vital e os elementos físicos dele<br />
se conjugam. Quando gerado, há<br />
uma diferenciação entre o corpo materno<br />
e o aparecimento de um princípio<br />
próprio, distinto do da mãe. O<br />
filhote começa a viver. Em determinado<br />
instante, quebra-se o ovo e o<br />
jacarezinho sai.<br />
E o mesmo pode ser dito do colibri,<br />
ele também ovíparo.<br />
Reflexos da<br />
formosura divina<br />
Vale acrescentar apenas que, se<br />
o colibri habitualmente é encantador,<br />
em geral o jacaré é hediondo.<br />
Contudo, Deus, próvido, não dei-<br />
21
O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO<br />
xou este último sem uma certa beleza.<br />
E muito crocodilo que causa nojo<br />
ao ser visto na lama, terá seu couro<br />
apanhado, lustrado e arranjado para<br />
servir de bolsa ou sapato a senhoras,<br />
de carteira a homens importantes e a<br />
uma série de outras finalidades.<br />
É um pulchrum oculto, distinto da<br />
beleza do colibri. Segundo os planos<br />
de Deus, cabia ao beija-flor encantar<br />
o homem. De maneira que até a pessoa<br />
mais mal-humorada e deprimida<br />
não consegue se esquivar de considerar<br />
com interesse o esvoaçar ligeiro e<br />
gracioso do pequeno colibri. Porém,<br />
a beleza que o Criador concedeu ao<br />
jacaré é oculta, a ser descoberta, lapidada<br />
e ressaltada pelo homem. E<br />
no couro trabalhado do jacaré há duas<br />
belezas: a própria, posta em evidência<br />
pelo tratamento a ele dado;<br />
e a do engenho e senso artístico do<br />
homem o qual, à força de examinar<br />
aquele ser naturalmente feio, percebe<br />
que deveria ser lindo, e parte à<br />
procura dos métodos para fazer com<br />
que aquele pulchrum aflorasse.<br />
Uma beleza oculta,<br />
a ser descoberta,<br />
lapidada e<br />
ressaltada pelo<br />
engenho humano<br />
Deus se mostra assim o modelo<br />
de toda formosura, criando o colibri,<br />
o jacaré, mas sobretudo o homem,<br />
a cujo serviço estão os animais. Capaz<br />
de tecer uma poesia que saliente<br />
o pulcro do beija-flor, e também de<br />
manusear o couro do jacaré, de modo<br />
a tornar evidente sua beleza.<br />
Vê-se, pois, como o plano de Deus<br />
se estrutura, semeado de esplendor.<br />
E, de passagem, faço notar como é<br />
deleitável, atraente e bom considerar<br />
esse tipo de assunto.<br />
O jacaré, símbolo<br />
da introspecção<br />
Prosseguindo, dir-se-ia que o jacaré<br />
possui vários predicados de temperamento.<br />
Refiro-me ao bicho na<br />
margem de um rio, pois ignoro como<br />
será a existência dele dentro da<br />
água. Trata-se, portanto, do jacaré<br />
do folclore corrente. Aliás, nunca<br />
em minha vida pensei tanto nessa<br />
espécie da fauna quanto agora, apenas<br />
observada por mim, sem simpatias<br />
maiores, através de algumas fotografias.<br />
Surpreendi-me, em pequeno,<br />
quando me dei conta de que carteiras,<br />
pastas, bolsas e sapatos bonitos<br />
de senhoras eram revestidos com<br />
couro de crocodilo, o animal feio<br />
com o qual me tinha antipatizado.<br />
Mas, tomando o jacaré do folclore,<br />
como é apresentado para todo o<br />
22
mundo, nas praias fluviais, o que faz<br />
ele?<br />
Antes de tudo, é lento. Suas pernas<br />
curtas não são para grande curso.<br />
Comparem-nas com as de um cervo,<br />
e se compreende qual dos dois foi<br />
criado para correr ou ficar parado.<br />
Porém, está no princípio que o anima<br />
e em seu corpo — vemos aí a noção<br />
de temperamento se aproximando<br />
— a inclinação para andar pouco<br />
e habitualmente sem pressa.<br />
Há uma regra que, tanto quanto<br />
pude constatar, se verifica amiúde<br />
na natureza, embora possa ser desmentida<br />
pelos fatos: todo animal<br />
que se move com parcimônia não é<br />
feroz para agredir, e sim para se defender.<br />
Todas as energias não consumidas<br />
andando, emprega-as se protegendo.<br />
A exceção que me ocorre no momento<br />
é a tartaruga, porque ela tem<br />
uma tal fortaleza natural, que se defende<br />
encolhendo: entra no casco e<br />
Símbolo da<br />
introspecção,<br />
o jacaré sente<br />
muito mais a si<br />
mesmo do que o<br />
mundo exterior<br />
ali se deixa ficar. É símbolo da obstinação,<br />
o que também é característico<br />
de uma forma de temperamento.<br />
Mas, os animais muito estáveis seguem<br />
em geral essa regra. É sabido<br />
que o jacaré, quando agredido, torna-se<br />
feroz, abocanha o inimigo e daí<br />
por diante. Porém, em situação normal,<br />
obedece às leis comuns da criação,<br />
provendo à sua própria sobrevivência.<br />
Estável, sem grandes hostilidades,<br />
e introspectivo, tanto quanto<br />
se possa dizê-lo de um bicho. Permanece<br />
quieto, com a bocarra semiaberta,<br />
respirando, sentindo-se a si<br />
mesmo e gostando de existir. Daí a<br />
sua imutabilidade. Pois o introspectivo<br />
não procura no exterior o que<br />
possui no seu interior. Ele se encolhe<br />
e frui. E compreende-se que sua<br />
natureza não lhe peça grandes movimentações,<br />
pois não precisa delas:<br />
ser-lhe-iam inúteis, um dom desnecessário.<br />
Ele tem dentro de si o que<br />
os outros buscam fora.<br />
Por que ir como o colibri, de flor<br />
em flor? Ele acharia perda de tempo.<br />
Fica arfando, ahhh... ahhh... ahhh...,<br />
boca aberta, tomando sol, deleitando-se<br />
até a hora em que algo<br />
lhe indica já ser o bastante, afundase<br />
nos pântanos, nas águas, e desaparece<br />
do olhar humano.<br />
Ponto fundamental<br />
de nosso assunto<br />
Percebemos que a noção corrente<br />
de temperamento vai assim se enriquecendo<br />
de elementos. É um modo<br />
de ser presente no princípio vital do<br />
bicho, no seu corpo, considerado do<br />
ponto de vista da constituição e da<br />
inter-relação de seus vários órgãos,<br />
das formas e da maneira de funcionar<br />
deles, bem como de um certo estilo<br />
de sentir a si mesmo e ao mundo<br />
exterior.<br />
Eis um ponto fundamental do<br />
nosso tema, que devemos frisar: o<br />
modo de sentir. O jacaré sente muito<br />
mais ele próprio do que o ambiente<br />
à sua volta.<br />
Alguém poderia objetar: “Não é<br />
assim, pois está provado que o crocodilo<br />
tem uma vista fantástica!”<br />
Não me refiro ao grau de visão,<br />
mas à importância que ele confere ao<br />
que observa. Pouca, pois do contrário<br />
se moveria mais freqüentemente.<br />
Prefere ficar parado, degustando sua<br />
existência pachorrenta. Parece-me o<br />
símbolo da hipertrofia da introspecção,<br />
verificada em certo tipo de homem.<br />
Conheço gente que se compraz<br />
em sentar-se, abancar-se, abanar-se<br />
e passar o tempo sentindo a<br />
si própria. Não precisa de mais nada.<br />
“E se ligarem a televisão?”, perguntará<br />
meu objetante.<br />
Prestem atenção na atitude de um<br />
desses introspectivos diante do aparelho<br />
de TV ligado. Julga que este<br />
lhe serve apenas como fundo musical<br />
e nem se importa com o que passa<br />
na tela. Se a desligarem, ele talvez<br />
nem perceba. O que está fazendo?<br />
“Jacarezando”...<br />
O que explanei até aqui são elementos,<br />
aspectos da índole do jacaré,<br />
em que salientei a maneira de<br />
sentir-se a si próprio e ao mundo externo.<br />
A proporção entre essas duas<br />
percepções fornece um fator preciso<br />
para se conhecer o temperamento<br />
do bicho, bem como o de uma pessoa.<br />
Em próxima oportunidade, consideraremos<br />
o exemplo do colibri para,<br />
então, desenvolver as noções gerais<br />
que propusemos no início dessa<br />
exposição.<br />
<br />
23
CALENDÁRIO LITÚRGICO<br />
1. Santo Eloi (Elígio) de Noyon,<br />
Bispo, séc. VII. Antes de se fazer<br />
padre, tinha sido ministro do tesouro<br />
do rei merovíngio Clotário II, e<br />
depois chanceler de seu sucessor,<br />
Dagoberto I. Foi Bispo de Noyon,<br />
na Bélgica.<br />
2. Santa Bibiana ou Viviana,<br />
Mártir, séc. IV.<br />
3. São Francisco Xavier, Presbítero,<br />
séc. XVI. De boa estirpe navarra,<br />
foi estudar em Paris, onde<br />
conheceu Santo Inácio de Loyola.<br />
Pertenceu ao primeiro grupo de jesuítas<br />
que fizeram os votos numa<br />
capelinha de Montmartre. Missionário<br />
na Índia e no Japão, faleceu<br />
aos 46 anos, próximo à China que<br />
tanto desejava evangelizar.<br />
4. Santa Bárbara, Mártir, séc.<br />
III.<br />
5. 2º Domingo do Advento.<br />
Santa<br />
Bárbara<br />
6. São Nicolau de Mira ou de Bari,<br />
séc. IV. Bispo de Mira na Ásia<br />
Menor. Preso sob Diocleciano, saiu<br />
do cárcere e alguns dizem que esteve<br />
presente no Concílio de Nicéia.<br />
Seu corpo foi trasladado em 1087<br />
a Bari, no sul da Itália, de onde lhe<br />
vem o nome pelo qual é mais conhecido.<br />
Na Suíça, Alemanha e nos<br />
Países-Baixos, o costume de distribuir<br />
presentes aos meninos em sua<br />
festa deu origem à lenda de Santa<br />
Claus (Nikolaus, ou sua contração<br />
Klaus, é Nicolau). Até hoje seu<br />
corpo exsuda um azeite miraculoso<br />
chamado Manna di San Nicola.<br />
7. Santo Ambrósio, Bispo e Doutor<br />
da Igreja, séc IV. Quando o Bispo<br />
de Milão, Ausêncio, morreu em<br />
374, um clamor se levantou na multidão:<br />
“Ambrósio, Bispo!”. Apesar<br />
de seus protestos — pois era ainda<br />
catecúmeno —, foi batizado e oito<br />
dias depois recebeu a consagração<br />
episcopal. Deu-se ao estudo da Sagrada<br />
Escritura e dos Padres, e chegou<br />
a ser um prolífico Doutor, mestre<br />
de Santo Agostinho, ao mesmo<br />
tempo que zeloso pastor da enorme<br />
diocese milanesa.<br />
8. Imaculada Conceição. Há<br />
150 anos, nesta data, o Bem-Aventurado<br />
Pio IX declarava que Maria<br />
Santíssima havia sido preservada<br />
do pecado original desde a concepção,<br />
por especialíssimo privilégio<br />
da vontade divina, para ser Mãe<br />
de Deus. Havia séculos, porém, que<br />
a Festa da Imaculada Conceição celebrava<br />
o que era doutrina comum<br />
entre pastores e fiéis.<br />
9. São Pedro Fournier, Presbítero,<br />
sécs. XVI-XVII.<br />
Santo Ambrósio<br />
10. Nossa Senhora de Loreto. A<br />
Casa da Sagrada Família em Nazaré,<br />
onde Nossa Senhora recebera<br />
a saudação de São Gabriel, foi levada<br />
pelos Anjos até Loreto, perto<br />
de Ancona, Itália, em 10 de dezembro<br />
de 1294. Um dos mais famosos<br />
santuários da península, tem sido<br />
venerado ao longo dos séculos por<br />
inúmeros santos, como Santa Brígida,<br />
Santo Inácio, São Luís Gonzaga,<br />
São Carlos Borromeu, Santa Teresinha<br />
do Menino Jesus, etc., e visitada<br />
várias vezes pelo Papa João<br />
Paulo II. Nossa Senhora de Loreto<br />
é a Padroeira dos aviadores.<br />
11. São Dâmaso I, Papa, séc. IV.<br />
De ascendência espanhola, provavelmente<br />
nascido em Roma. Encomendou<br />
a tradução latina das Sagradas<br />
Escrituras a São Jerônimo, o<br />
qual redigiu a Bíblia Vulgata. Presidiu<br />
o I Concílio de Constantinopla.<br />
12. 3º Domingo do Advento.<br />
Nossa Senhora de Guadalupe,<br />
Padroeira das três Américas. Em<br />
1531 apareceu Nossa Senhora ao<br />
índio São João Diego, deixando impressa<br />
no manto deste a sua extraordinária<br />
imagem, tal como aparecera<br />
ao vidente.<br />
13. Santa Luzia, Virgem e Mártir,<br />
sécs. III-IV.<br />
24
14. São João da Cruz, Carmelita<br />
e Doutor da Igreja, séc. XVI. Ver artigo<br />
na página 26.<br />
15. Santa Virgínia Centurione<br />
Bracelli, sécs. XVI-XVII. Filha<br />
do Doge da República de Gênova,<br />
Giorgio Centurione. Desde menina<br />
desejou a vida religiosa, mas o<br />
pai lhe ordenou o casamento. Muito<br />
sofreu com o marido, homem<br />
dissoluto e jogador, que veio a falecer<br />
piedosamente graças às orações<br />
e assistência dela. Viúva aos<br />
20 anos, fez voto de castidade e fundou<br />
a Obra de Nossa Senhora do<br />
Refúgio, dedicada ao amparo das<br />
jovens pobres e em perigo de corromper-se.<br />
Favorecida com muitas<br />
visões, êxtases e locuções interiores,<br />
foi canonizada por João Paulo<br />
II em 2003.<br />
16. Santa Adelaida, Imperatriz<br />
do Sacro Império Alemão, séc. X.<br />
17. São Lázaro, séc. I. O amigo<br />
cuja morte Jesus chorou, antes<br />
de ressuscitá-lo. Após a Ascensão<br />
de Nosso Senhor, foi para o sul da<br />
França e se tornou Bispo de Marselha.<br />
19. 4º Domingo do Advento.<br />
Santo Anastásio I, Papa, sécs.<br />
IV-V.<br />
20. São Zeferino, Papa e Mártir,<br />
séc. III.<br />
21. São Pedro Canísio, Presbítero<br />
e Doutor da Igreja, séc. XVI. Sacerdote<br />
jesuíta, nascido na Holanda,<br />
exerceu fecundo apostolado na<br />
Alemanha. Faleceu em 1597.<br />
21. São Tomé, Apóstolo, séc. I.<br />
Chamado “Dídimo” (ou seja, gêmeo),<br />
duvidou da Ressurreição de<br />
* DEZEMBRO *<br />
Cristo. Por isso Nosso Senhor permitiu<br />
que ele encostasse seus dedos<br />
nas chagas sagradas, e lhe disse:<br />
“Tomé, tu creste porque viste; bemaventurados<br />
os que acreditam sem<br />
ver”.<br />
22. Santa Francisca Cabrini,<br />
Virgem, sécs. XIX-XX. Nasceu na<br />
Itália em 1850. Sua vocação missionária<br />
a levou a fundar o Instituto<br />
das Missionárias do Sagrado Coração<br />
de Jesus, em 1880. A pedido<br />
de Leão XIII, transferiu-se com algumas<br />
irmãs do instituto para Nova<br />
York, onde se dedicou a auxiliar<br />
os emigrados. Suas casas se multiplicaram<br />
na América e na Europa.<br />
Visitava os cárceres, as minas e todos<br />
os lugares onde se precisava<br />
de conforto espiritual. Morreu em<br />
Chicago, em 1917.<br />
23. São João de Kety, ou Câncio,<br />
Presbítero, sécs. XIV-XV<br />
24. São Charbel Makhlouf, Eremita,<br />
séc. XIX. Libanês, aos 23<br />
anos entrou no mosteiro São Marão<br />
de Annaya, no seu país natal.<br />
Exemplo de humildade e obediência<br />
perfeitas, e de um entranhado<br />
amor ao Santíssimo Sacramento.<br />
25. Natividade de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
26. Domingo da Sagrada Família.<br />
Esta festa móvel cai no primeiro<br />
domingo após o Natal, e celebra<br />
o consórcio de Jesus, Maria e José<br />
como arquétipo de família segundo<br />
a vontade de Deus.<br />
I.<br />
Santo Estevão, Protomártir, séc.<br />
27. São João Evangelista, Apóstolo,<br />
séc. I. O discípulo “que Jesus<br />
amava”, autor do quarto Evangelho<br />
e do Apocalipse. Aos pés da Cruz,<br />
pelos lábios do Redentor, recebeu<br />
Maria Santíssima como Mãe.<br />
28. Santos Inocentes, Mártires.<br />
Imolados por ordem de Herodes,<br />
que almejava matar o Messias.<br />
29. São Tomás Becket, Bispo e<br />
Mártir, séc. XII. Arcebispo de Canterbury,<br />
nascido em 1118 e martirizado<br />
em 1170. Nomeado Chanceler<br />
pelo Rei Henrique II, em 1161<br />
sobe à Cátedra de Santo Anselmo.<br />
O monarca, que sustentava a primazia<br />
da coroa sobre a Igreja, voltou-se<br />
contra ele. Quatro assassinos<br />
o mataram aos pés do altar da própria<br />
Catedral de Canterbury.<br />
30. São Ruggero (ou Rogério),<br />
Bispo, séc. XII.<br />
31. São Silvestre I, Papa, séc. IV.<br />
Presidiu os destinos da Igreja na<br />
passagem entre a perseguição e a liberdade<br />
que a ela concedeu o Imperador<br />
Constantino.<br />
São João<br />
Evangelista<br />
25
O SANTO DO MÊS<br />
São João da Cruz,<br />
mestre do amor a Deus<br />
B<br />
aluarte e co-fundador da Ordem Carmelita Descalça, São João da Cruz sublimou-se<br />
numa vida entregue à ascese e à contemplação, ensinando aos<br />
homens, como Doutor da Igreja, não existir “trabalho melhor nem mais necessário<br />
que o amar a Deus”. Algo do perfil e da doutrina desse grande Santo nos é<br />
dado a conhecer este mês, através das incisivas palavras de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Duas almas extraordinárias foram suscitadas por<br />
Deus, no século XVI, para juntas empreenderem<br />
a reforma da Ordem do Carmo. Uma delas,<br />
a grande Santa Teresa de Jesus. A outra, São João da<br />
Cruz, contemplativo insigne, confessor e Doutor da Igreja,<br />
cuja festa é celebrada no dia 14 deste mês.<br />
“Uma das almas mais puras<br />
que há na Igreja”<br />
Dele sabemos que, assim como Santa Teresa, nasceu<br />
na província de Ávila, Espanha, e sua primeira formação<br />
se deu em Medina Del Campo, onde estudou com os pa-<br />
Fotos: S. Hollmann<br />
26
dres jesuítas. Desejava, porém, tornar-se carmelita e nesta<br />
Ordem ingressou aos 21 anos, recebendo sua educação<br />
teológica em Salamanca. Em 1567 ordena-se sacerdote<br />
e celebra sua primeira missa.<br />
Chamado a uma austera e sublime vida contemplativa,<br />
o jovem religioso logo se decepcionou com o relaxamento<br />
monástico dos conventos carmelitas. Quando<br />
tencionava procurar a Ordem dos Cartuxos, na qual poderia<br />
expandir seus anseios de alma, encontrou-se com<br />
Santa Teresa e aceitou dela o desafio de promoverem a<br />
reforma do Carmelo.<br />
São João da<br />
Cruz, convento<br />
carmelita de<br />
Segóvia, e as<br />
muralhas de<br />
Ávila, capital<br />
da província<br />
natal do Santo<br />
Ardorosa coluna da<br />
observância monástica, São<br />
João da Cruz se uniu a Santa<br />
Teresa na reforma da Ordem<br />
Carmelita, sem abandonar<br />
sua existência feita de<br />
austeridade e contemplação<br />
27
O SANTO DO MÊS<br />
Como sói acontecer, o zelo com que trabalhou pela<br />
observância religiosa lhe angariou maus tratos e difamações,<br />
chegando mesmo a ser encarcerado em Toledo.<br />
Nesse período de duras provações acendeu-se nele a labareda<br />
de sua poesia mística. Datam de então os célebres<br />
escritos, como a “Subida do Monte Carmelo”, Noite<br />
escura da alma”, “Cântico Espiritual”, “Chama de amor<br />
viva”, etc.<br />
Por mais de vinte anos consagrou-se à uma existência<br />
semeada de ascese e fecunda contemplação, vindo a falecer<br />
aos 49 anos de idade, no dia 14 de dezembro de 1591.<br />
Canonizado em 1726, é também cultuado como o Patrono<br />
dos poetas espanhóis.<br />
Santa Teresa o considerava “uma das almas mais puras<br />
que Deus tem em sua Igreja”, e outro de seus contemporâneos<br />
assim o descreve: “Homem de estatura mediana,<br />
de boa fisionomia, rosto sério e venerável. Seu trato<br />
era muito agradável e sua conversa bastante proveitosa<br />
para os que o ouviam. Foi amigo do recolhimento e falava<br />
pouco. Quando repreendia como superior, que o foi<br />
muitas vezes, agia com doce severidade, exortando com<br />
amor paternal.”<br />
Quem saboreia ninharias não<br />
pode deleitar-se com Deus<br />
Tendo conhecido esses breves traços biográficos e morais<br />
de São João da Cruz, analisemos agora algumas de<br />
suas máximas espirituais, valiosos ensinamentos que ele<br />
nos legou ao lado de seus grandes escritos.<br />
Não conhecia eu a Vós, meu Senhor, porque queria ainda<br />
saber e saborear ninharias. Secou-se meu espírito porque<br />
se esqueceu de se apascentar em Vós.<br />
Essa sentença é uma verdadeira maravilha.<br />
De fato, o amor à ninharia é das coisas mais invisceradas<br />
no gênero humano. E mesmo quando se trata de assunto<br />
sério, este geralmente é considerado sob o ponto<br />
de vista da bagatela. E não será exagero afirmar que muitos<br />
se comprazem em conversar sobre trivialidades.<br />
Por exemplo, os que se acham num restaurante, numa<br />
praça pública, num veículo de transporte coletivo, etc.,<br />
ou estão quietos, pensando em ninharia, ou conversam<br />
sobre a bagatela na qual cogitavam quando em silêncio.<br />
Mas, o gosto, o apego é pensar a respeito de ninharias.<br />
Então, diz São João Cruz com muita propriedade:<br />
Não vos conhecia eu a Vós, meu Senhor, porque ainda<br />
queria saber e saborear ninharias.<br />
Quer dizer, quem degusta ninharias, não pode se deleitar<br />
com Deus. Porque não é possível gostar de duas<br />
coisas opostas ao mesmo tempo. Ora, Deus é infinito, altíssimo,<br />
insondável, transcendente. A ninharia, pelo contrário,<br />
é a insignificância, a bagatelinha. Assim sendo,<br />
compreende-se que uma pessoa afeita às trivialidades<br />
não tem o espírito voltado para saborear Deus.<br />
Quem notar em si mesmo esse defeito, não deve tomar<br />
uma atitude mesquinha, dizendo: “Ah, então não<br />
tem remédio, porque gosto tanto de ninharia, que nunca<br />
me descolarei dela”. Importa, sim, fazer uma oração:<br />
“Meu Deus, dai-me o vosso espírito, o Espírito Santo,<br />
que me fará sentir apetência das coisas grandes e horror<br />
da ninharia.”<br />
No Evangelho, Nosso Senhor diz que, de todas as orações,<br />
a mais certamente atendida é aquela na qual pedimos<br />
o Espírito Santo, o bom espírito. Portanto, o oposto<br />
à bagatela e à ninharia. Esta deve ser a nossa súplica.<br />
Secou-se meu espírito, porque se esqueceu de se apascentar<br />
em Vós.<br />
Qual é o espírito que se apascenta em Deus? Aquele<br />
que se compraz em pensar nas belezas da Igreja Católica,<br />
na doutrina e na vida de nosso movimento, que<br />
são expressões da Igreja e seus princípios. Este se apascenta<br />
em Deus, ou seja, é como uma ovelha que se nutre<br />
da relva divina e das maravilhas do Criador. Ao contrário<br />
daquele cujo espírito secou porque não se deteve na<br />
contemplação dessas grandezas, preferindo saborear ninharias.<br />
A alma unida a Deus incute<br />
temor ao demônio<br />
Outro ditame de São João da Cruz:<br />
Se queres chegar ao santo recolhimento, não hás de ir<br />
admitindo, mas negando.<br />
Frase magnífica. Quer dizer, os espíritos polêmicos,<br />
que negam tudo quanto seja revolucionário, isolam-se,<br />
rompem com as coisas más e chegam ao recolhimento.<br />
Porém, aqueles que aprovam, admiram e se abrem para<br />
tudo que é mau, esses são incapazes de recolhimento.<br />
Sejas avesso em admitir em tua alma coisas destituídas<br />
de substância espiritual, para que não te façam perder o<br />
gosto da devoção e o recolhimento.<br />
É o mesmo princípio enunciado na sentença anterior.<br />
A alma que está unida a Deus incute temor ao demônio<br />
como o próprio Deus.<br />
Mais uma linda afirmação do Santo carmelita.<br />
Realmente, vê-se que o demônio teme o verdadeiro<br />
católico, e o ódio que demonstra contra este último é feito<br />
de temor. Ele estremece diante do que pratica a religião<br />
de modo íntegro, pois é uma alma unida a Deus.<br />
Não devemos nos fiar<br />
de nós mesmos<br />
Outra extraordinária proposição é esta:<br />
28
O mais puro padecer traz e produz o mais puro entender.<br />
Com tal pensamento São João Cruz nos ensina que só<br />
entendem profundamente as coisas aqueles que sabem<br />
sofrer até o fim. Aqueles aos quais aborrece o sofrimento,<br />
não compreendem coisa alguma.<br />
Quem se fia de si mesmo é pior que o demônio.<br />
Uma frase dura aos nossos ouvidos, mas brotada do<br />
coração e dos lábios de um Santo, Doutor da Igreja.<br />
Fiar-se de si mesmo significa julgar não ser necessário<br />
recorrer a Nossa Senhora, porque tudo se consegue pelo<br />
próprio esforço. Por exemplo, quanto à virtude da castidade,<br />
a pessoa diz: “Ah, eu consigo praticá-la por<br />
mim mesmo. É só uma questão de força de vontade.<br />
Diante da ocasião perigosa, eu me transformo<br />
num colosso, e não preciso pedir auxílio<br />
à Virgem Maria. Vocês são um beatério<br />
e ficam implorando a ajuda d’Ela. Mas<br />
eu, com a minha força de vontade e minha<br />
inteligência, não tenho necessidade<br />
de pedir. Na hora eu enfrento!”<br />
Na realidade, essa pessoa se estatela<br />
no chão; são derrubados cavalo e cavaleiro.<br />
E, segundo uma expressão arcaica<br />
que conheci, “cai de costas e quebra<br />
o nariz”, tão grande é o tombo.<br />
Por quê? Porque confiou em si mesma.<br />
Melhor sofrer por Deus<br />
que fazer milagres<br />
Quem opera com tibieza, perto está<br />
da queda.<br />
É um fato evidente.<br />
Certa vez alguém me disse (referindo-se<br />
a outro, e no fundo fazendo<br />
o elogio de si próprio): “Fulano<br />
é tíbio, mas é muito correto”.<br />
Retruquei-lhe: “Sim, muito correto,<br />
porém está se desmilingüindo”.<br />
Seria uma situação análoga à de<br />
quem, considerando um agonizante,<br />
afirmasse: “Ele está vivinho e inteiro”.<br />
Realmente o moribundo ainda<br />
não faleceu, mas a vida o está abandonando...<br />
São João da Cruz, convento<br />
carmelita de Sevilha<br />
29
O SANTO DO MÊS<br />
Sepultura de São João da Cruz, no convento carmelita de Segóvia, Espanha<br />
Como é possível negar a evidência? Por isso São João<br />
da Cruz adverte os tíbios: estão próximos da queda.<br />
Escreve ainda o Santo:<br />
É melhor vencer-se na língua, do que jejuar a pão e<br />
água.<br />
Outra grande verdade. E esta nos leva a perguntar<br />
quais vitórias devemos conquistar no uso de nossa língua.<br />
A primeira é não dizer coisas impuras; mas a maior<br />
é não falar algo que represente uma fraqueza diante da<br />
Revolução. Agrados, gentilezas, atitudes que dêem a impressão<br />
de sermos filhos deste século, isso é que se trata<br />
de não dizer. E é esta a imensa vitória sobre a utilização<br />
da língua que devemos obter.<br />
Por fim, essa bela e não menos verdadeira sentença de<br />
São João da Cruz:<br />
É melhor sofrer por Deus do que fazer milagres.<br />
Pode haver pessoas que realizaram milagres e, após a<br />
morte, foram para o inferno. Mas, não é possível que alguém<br />
sofra a vida inteira por Deus e depois se condene.<br />
E o maior, o mais evidente é o milagre moral que se<br />
opera quando o homem padece de todas as maneiras,<br />
mas, por Deus, aceita o sofrimento e não volta atrás. Esse<br />
é o milagre por excelência!<br />
Devemos, portanto, ter sempre em vista essa máxima<br />
do insigne São João da Cruz, expoente da ascese e da<br />
mística católicas: é realmente melhor sofrer por Deus do<br />
que fazer milagres.<br />
<br />
30
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Fotos: S. Hollmann<br />
Casa de brinquedos -<br />
Rothenburg, Alemanha<br />
Universo Natalino<br />
Uma das inocentes alegrias<br />
que o Natal proporciona<br />
às almas provém das tocantes<br />
canções com as quais os diversos<br />
povos louvam e homenageiam<br />
o Divino Recém-nascido.<br />
Ao longo dos séculos, cada nação<br />
da Cristandade, e notadamente<br />
as da Europa, compôs seus cânticos<br />
natalinos típicos, cujas letras e melodias<br />
se unem aos costumes e culinárias<br />
locais para conferirem mais<br />
luz e perfume à unção própria dessa<br />
grande festa católica.<br />
Já tivemos ocasião de comentar o<br />
Stille Nacht, a canção de Natal universal,<br />
entoada no mundo inteiro,<br />
surgida no século XIX numa aldeia<br />
austríaca. Deu-lhe vida o povo alemão,<br />
o povo da bravura, da proeza<br />
militar, mas também dessa profunda<br />
delicadeza de espírito que o levou<br />
a imaginar o sentimento de ternura<br />
de quem se colocasse junto à<br />
31
manjedoura do Menino Jesus e contemplasse<br />
aquela criança fraquinha,<br />
com todas as debilidades físicas<br />
da infância e, entretanto, o próprio<br />
Deus.<br />
Em qualquer canção natalina<br />
germânica encontra-se essa nota de<br />
compaixão humana, contemplativa<br />
e súplice, diante do que há de mais<br />
frágil e suave. Será, então, Maria<br />
Durch ein Dornwald ging, uma lenda<br />
cantada acerca de um bosque onde,<br />
por sete anos, apenas espinhos brotaram,<br />
sem flor e folhagem alguma.<br />
Por essa rude floresta entra Nossa<br />
Senhora, trazendo ao braço seu Divino<br />
Rebento, e à medida que Eles<br />
caminham, os espinhos vão se transformando<br />
em rosas...<br />
Maria Santíssima, com sua candura<br />
e força virginais, traz o Menino<br />
bem protegido sobre o seu coração.<br />
“Nascimento de<br />
Jesus” - Catedral<br />
de Strasbourg,<br />
França<br />
32
Ambos penetram num bosque de espinhos.<br />
Ora, como podem essa flor<br />
de delicadeza ímpar que é a Mãe de<br />
Deus, e esse tesouro da Terra que é o<br />
próprio Homem-Deus, exporem-se a<br />
natureza tão agreste e hostil? Não é<br />
possível concebê-lo. Então, enquanto<br />
andam, os espinhos viram rosas<br />
de agradável fragrância. Nossa Senhora<br />
compreende: foi uma amabilidade<br />
de seu Filho para com Ela! Jesus<br />
dorme junto ao seu coração, mas<br />
continua a governar a natureza. Ternura,<br />
enlevo, extremo respeito.<br />
Voltemos nossos olhos para a Espanha<br />
e seus célebres villancicos de<br />
Navidad.<br />
À semelhança do povo alemão, o<br />
espanhol é feito para o heroísmo de<br />
uma autenticidade e arrojo inegáveis.<br />
Encara a coragem como lance<br />
individual, atira-se na peleja sozi-<br />
33
34<br />
nho, como o toureiro diante do touro,<br />
banderilha na mão, disposto a<br />
todas as façanhas.<br />
Entre as inúmeras dádivas que<br />
Deus concedeu à Espanha, está a<br />
de lhe ter envolvido por um panorama<br />
de montanhas as quais nos dão<br />
a impressão de haverem sido moldadas<br />
pela truculência de um gigante,<br />
um quebra-montes que, à força<br />
de pancadas e pontapés, desenhou<br />
aquelas cordilheiras, enquanto talvez<br />
dançasse uma jota ou cantasse<br />
uma saeta.<br />
É uma natureza pobre, contrastando<br />
com a riqueza de vida e superabundância<br />
de coragem que leva o<br />
espanhol a realizar essa arte que nos<br />
deixam boquiabertos: são alegres na<br />
carência, na necessidade, na falta de<br />
doces, de confortos. E essa felicidade<br />
de existir, de sentir a sua própria vida,<br />
de olhar para o Céu e pensar em
A Santa Igreja<br />
vive na alma de<br />
povos diferentes,<br />
despertando distintos<br />
acordes com os<br />
quais eles cantam<br />
e glorificam o Natal<br />
de nosso Salvador<br />
Na página anterior, o “Nascimento”<br />
- Catedral de Sevilha, Espanha<br />
Deus, está presente na canção de Natal<br />
espanhola. Eles oferecem ao Menino<br />
Jesus o seu júbilo por pertencer<br />
a esse povo, como se dissessem: “Senhor,<br />
Vós me deixais muito contente<br />
e cheio da coragem que Vós me destes!<br />
Homenagem a Vós, Senhor!”<br />
É um modo diverso, porém digno<br />
de festejar o Natal, pois é o povo que<br />
se oferece a si mesmo e a sua alegria<br />
como ação de graças a Deus. Gratidão<br />
preciosa, daquele que recebeu<br />
menos mas demonstra toda a grandeza<br />
de sua alma.<br />
Já o inglês, tão diferente do espanhol,<br />
apresenta uma analogia na<br />
maneira de entoar suas canções natalinas.<br />
A nação britânica canta também<br />
a sua alegria de viver e de ser<br />
conforme seus costumes peculiares.<br />
Porém, não é saltitante nem procura<br />
se exprimir através dos superlativos<br />
como os castelhanos. A principal<br />
preocupação da música de Natal inglesa<br />
é ser equilibrada, procurando<br />
a beleza do sentimento proporcionado,<br />
adequado, comedido.<br />
E ele oferece ao Divino Infante a<br />
sua anglicidade, a sua personalidade,<br />
os seus problemas. Povo de gentlemen,<br />
dirige-se a Nosso Senhor como<br />
um gentleman, sem demonstrar<br />
tristeza nem aborrecimento. Sabe<br />
que essa existência é árdua, mas não<br />
desanima, pois o Menino Jesus nos<br />
socorre e ampara.<br />
São estes alguns exemplos de como<br />
a Cristandade canta o Natal. E<br />
servem para nos fazer compreender<br />
como a Igreja Católica vive na alma<br />
de povos diferentes, produzindo diferentes<br />
acordes. Porque Ela é riquíssima<br />
e inesgotável em frutos de<br />
santidade, de perfeição. É como o sol<br />
quando atravessa vitrais de variegadas<br />
policromias: oscula o vidro vermelho<br />
e acende um rubi, o verde, e<br />
faz fulgurar uma esmeralda.<br />
Assim o gênio da Igreja iluminando<br />
o povo alemão, o espanhol, o inglês<br />
ou qualquer outro, engendra<br />
maravilhas e inocências natalinas<br />
que devem nos cumular de admiração,<br />
comprazimento e desejo de louvar<br />
o Verbo Eterno que se fez carne e<br />
habitou entre nós.<br />
<br />
35
Nasceu-nos um Menino<br />
Puer natus est nobis, et filius datus<br />
est nobis: cujus imperium super humerum<br />
ejus: et vocabitur nomen ejus,<br />
magni consilii Angelus — Nasceu-nos<br />
um Menino e um Filho nos foi dado; o império<br />
repousa sobre seus ombros e será chamado Anjo<br />
do Grande Conselho.<br />
Sob o sopro do Espírito Santo, a Igreja<br />
canta o dom que Deus lhe fez. É a voz dela,<br />
o puro sol sem atravessar vitral algum. Música<br />
composta para ser entoada por todos os<br />
povos, de norte a sul, de leste a oeste da face<br />
da Terra. Em todas as latitudes e longitudes,<br />
eis a alma católica universal, serena, simples,<br />
repassada de significado e substância, exprimindo<br />
a alegria que se eleva diretamente ao<br />
Céu, o recolhimento desprendido dos valores<br />
terrenos, o caráter profundamente religioso<br />
do nascimento de Cristo Jesus.<br />
A Praça de São Pedro em<br />
noite de Natal; no detalhe,<br />
“Adoração dos Pastores” -<br />
Catedral de Rouen, França<br />
Fotos: David Domingues / S. Hollmann<br />
36