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Nos<br />
passos<br />
da<br />
Paixão
Nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo e de<br />
gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Santa Ceia. Somente uma inteligência<br />
divina poderia excogitar a Sagrada Eucaristia, e imaginar esse Sacramento santíssimo<br />
como um meio de Jesus permanecer presente neste mundo, depois de sua gloriosa<br />
Ascensão. Mais ainda: de estabelecer um convívio íntimo e inexcedível, todos os dias, com<br />
todos os homens que O queiram receber nos seus corações.<br />
Sim, só mesmo Deus poderia realizar esse mistério tão maravilhoso, essa obra de misericórdia<br />
prodigiosa para com suas humanas criaturas.<br />
“Santa Ceia”, por Fra Angélico
Sumário<br />
Na capa, imagem<br />
de Jesus Nazareno,<br />
venerada na Igreja<br />
de La Merced,<br />
Cidade de Guatemala<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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36<br />
EDITORIAL<br />
No Getsêmani<br />
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Ainda tão jovem, e já conhecido líder católico<br />
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Não durmamos enquanto se renova a Paixão!<br />
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
O mundo aos pés do Trono da Verdade<br />
DONA LUCILIA<br />
Reencontro transbordante de afeto<br />
DR. PLINIO COMENTA...<br />
“Passio Christi, conforta me”<br />
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Personalização dos cargos<br />
e a dignidade na Idade Média<br />
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
O “Legionário”, arma de batalha pela Igreja<br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Maravilha, sonho, realidade!<br />
ÚLTIMA PÁGINA<br />
Soberana intercessora<br />
3
Editorial<br />
No GetsêmaniEditorial<br />
Poucos homens tiveram uma vida tão movimentada<br />
como a de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Quem se debruce<br />
sobre os registros de sua biografia constata<br />
que seu dia-a-dia se constituía de uma incessante<br />
atividade, enfrentando com energia e serenidade as dificuldades<br />
esperadas ou imprevistas próprias a quem<br />
dedicou sua vida a combater pela Santa Igreja. Batalhador<br />
incansável, eis aí um dos traços mais notáveis da<br />
existência desse líder católico, cuja única ambição era<br />
servir à Igreja, em favor da qual colheu muitas vitórias.<br />
Vitórias, não se conquista sem luta. E luta, não se<br />
trava sem sacrifício. Assim, toda a longa trajetória terrena<br />
de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ficou marcada pelos tons violáceos<br />
do sofrimento. Sofrimentos para esmagar os obstáculos<br />
ao seu propósito de nunca macular a própria alma<br />
com o pecado; para conservar a serenidade ante a incompreensão<br />
e ingratidão até de seus mais próximos<br />
colaboradores; para enfrentar com ânimo as terríveis<br />
provações espirituais que assaltam toda alma posta<br />
nas vias da santidade. Por cima de todos esses padecimentos,<br />
o esforço contínuo para manter desfraldado<br />
e bem alto o estandarte da luta contra os inimigos da<br />
Igreja.<br />
Somente um homem dotado de profundo espírito<br />
sobrenatural e de ardente piedade dispõe de forças suficientes<br />
para suportar sem desfalecimento as inúmeras<br />
situações dramáticas decorrentes desses combates<br />
interiores e exteriores.Uma das fontes onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
hauria essas forças era a meditação a respeito da Paixão<br />
e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tocava-lhe<br />
a alma de modo especial a inabalável decisão do Homem-Deus,<br />
de aceitar o oceano de dores que via aproximarem-se.<br />
“Nosso Senhor é o modelo infinitamente perfeito<br />
do cavaleiro. Agonia, em grego, significa luta. O Divi-<br />
no Salvador tomou a imagem da dor e da morte, procurou<br />
primeiro afastá-la e depois enfrentou-a. Há uma<br />
semelhança entre a agonia de Nosso Senhor com a<br />
vigília de armas dos cavaleiros”, comentou ele.<br />
Foi com essa firmeza, haurida no exemplo de nosso<br />
Redentor, e com toda a paz de alma que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
enfrentou suas dores: “Quando posto diante de todo<br />
o sofrimento que O esperava, Jesus disse: ‘Se for possível,<br />
afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa<br />
vontade e a não a minha’. Deve ser esta nossa posição<br />
diante de nossos sofrimentos particulares. Assim<br />
como veio um Anjo consolar Nosso Senhor, assim<br />
também a graça nos consolará nos sofrimentos”.<br />
Procurando forças no episódio do Getsêmani, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> as buscava também n’Aquela que foi a estrela<br />
que iluminou sua vida. Esta disposição de alma, ele<br />
a exprime numa meditação o sobre o Primeiro Mistério<br />
Doloroso do Rosário:<br />
“Renunciastes a tudo, neste passo, e até à companhia<br />
física e sensível de vossa Mãe. Entretanto, tivestes<br />
uma consolação que não Vos abandonou: a certeza<br />
de que, em espírito, Ela esteve conVosco, sofrendo<br />
absolutamente todas as vossas dores, com um<br />
amor e uma intensidade de participação que nenhuma<br />
linguagem humana é capaz de exprimir. [...] Desejo<br />
pedir-Vos uma graça. É possível que me reserveis<br />
ao longo da vida tormentos inexprimíveis. É possível<br />
que durante estes tormentos não tenha de Maria<br />
Santíssima nenhuma consolação sensível. Eu Vos<br />
peço, entretanto, que não permitais que nesses momentos<br />
se apague de meu espírito a convicção de<br />
que em toda a realidade Ela está ao lado de mim, como<br />
esteve ao lado de Vós. Pois isto só, quanto conforta,<br />
Vós mesmo o sabeis, Divino Jesus.”*<br />
* Catolicismo, 10/1951.<br />
DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />
e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />
ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />
têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />
Ainda tão jovem,<br />
e já conhecido líder católico<br />
Em abril de 1932, foi divulgado na imprensa<br />
brasileira um manifesto assinado<br />
por muitos católicos de renome nos<br />
ambientes políticos e sociais de nosso País. Intitulado<br />
“Apelo aos Católicos”, exortava todos estes<br />
a se unirem em torno dos princípios ensinados<br />
pela Igreja, no interesse maior da Religião.<br />
A repercussão foi grande. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, com apenas<br />
23 anos de idade, advogado recém- formado,<br />
já era conhecido como um dos principais expoentes<br />
do laicato católico. Assim, foi ele procurado<br />
pelos jornalistas para comentar o documento.<br />
Na declaração prestada pelo jovem militante<br />
católico ao jornal carioca Diário Nacional, de 27<br />
de abril, vemos duas regras de ação às quais manteve-se<br />
fiel durante toda a vida: a cautela em<br />
pronunciar-se sobre temas delicados do interesse<br />
da Igreja, e a colocação do ideal religioso acima<br />
de quaisquer outras questões.<br />
Eis a matéria publicada:<br />
Procuramos ontem o <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira,<br />
Redator-chefe de “O Século”, membro do Centro<br />
D. Vital e um dos chefes da Ação Católica em<br />
São Paulo. O <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira, que encontramos<br />
em seu escritório na rua Líbero Badaró,<br />
manteve a respeito a maior reserva, furtando-se<br />
a fazer declarações. Finalmente, dada a nossa insistência,<br />
consentiu s.s. em nos adiantar o seguinte:<br />
“O último apelo aos católicos revestiu-se de<br />
grande significação. A elevada esfera doutrinária e<br />
religiosa em que se manteve soube colocar nos seus<br />
devidos termos a adesão dos católicos em relação<br />
aos problemas políticos e sociais que presentemente<br />
agitam a Nação. (...) Não se apressariam, portanto,<br />
os católicos, de agir. E quando o fizerem, farão<br />
com um elevado critério de idealismo e moderação,<br />
e com a preterição absoluta de seus interesses<br />
pessoais, em benefício da vitória de sua causa. (...)<br />
Fora e acima dos partidos, eis a senha que, no momento<br />
oportuno, quando os fatos nos chamarem à<br />
ação, saberemos adotar e impor” — concluiu o<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira.<br />
Com apenas 23 anos,<br />
advogado recémformado,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> já se<br />
destacava como um dos<br />
principais expoentes do<br />
laicato católico brasileiro.<br />
Na foto, ele é o segundo<br />
da esquerda para a<br />
direita, durante a reunião<br />
de fundação da Liga<br />
Eleitoral Católica,<br />
presidida por Dom Duarte<br />
Leopoldo e Silva,<br />
Arcebispo de São Paulo<br />
(ao centro).<br />
5
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
No Horto das Oliveiras, Jesus recomendou aos<br />
seus apóstolos que orassem e vigiassem.<br />
Também nós devemos vigiar e orar com a Igreja,<br />
quando esta sofre as investidas de seus<br />
inimigos. (Nesta página e na seguinte, imagens<br />
do “Passo da Oração no Horto”, Sevilha)<br />
6
Não durmamos enquanto se<br />
renova a Paixão!<br />
E<br />
m suas invectivas ao povo israelita, os profetas do Antigo Testamento eram instrumentos<br />
da misericórdia de Deus: seu objetivo era chamar o povo à conversão. De<br />
igual forma procederam os Papas ao longo dos séculos. Já as admoestações de <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> tinham amiúde por objetivo despertar os católicos para suas obrigações, como se pode<br />
ver neste artigo.<br />
Há dois funestíssimos erros, que não raramente<br />
lavram entre os católicos brasileiros e que,<br />
com extraordinária oportunidade, devem ser<br />
desmascarados na Semana Santa. Como freqüentemente<br />
ocorre, esses erros não provêm propriamente de premissas<br />
falsas, mas de premissas incompletas. É uma visão parcial<br />
e estreita das coisas, que os provoca. E só uma meditação<br />
acurada, feita à luz de considerações naturais ou de<br />
argumentos inspirados em motivos sobrenaturais, pode<br />
pôr à luz o mau germe que neles se oculta.<br />
Ineficiência da Igreja diante da crise?<br />
O primeiro desses erros consiste em acoimar de ineficiente<br />
a ação da Igreja, para a solução da crise contemporânea.<br />
[...] E [dizem] que, portanto, é preciso apelar<br />
para uma outra organização, que, ela sim, salvará a civilização<br />
católica.<br />
Argumentemos. E argumentemos só com a infalível<br />
autoridade dos Pontífices. Porque se para algum católico<br />
um argumento inspirado nas palavras dos Papas não for<br />
suficientemente convincente, é melhor que esse católico<br />
estude bem o seu Catecismo, antes de tentar “salvar a civilização”.<br />
Diz o Santo Padre Leão XIII, e, depois dele, todos os<br />
Pontífices o têm repetido, [...] que essa crise moral gerou<br />
crises econômicas, sociais ou políticas. E só quando ela<br />
for resolvida, serão resolvidos os problemas relacionados<br />
com as finanças, a organização política e a vida social dos<br />
povos contemporâneos.<br />
7
DENÚNCIA PROFÉTICA<br />
Por outro lado, a solução desse problema moral só pode<br />
estar na ação da Igreja, porque só o Catolicismo, armado<br />
de seus recursos sobrenaturais e naturais, tem o dom<br />
maravilhoso de produzir nas almas os frutos de virtude<br />
indispensáveis para que floresça a civilização católica.<br />
O que acabamos de dizer é diretamente extraído das<br />
Encíclicas. Basta abri-las, para encontrar o que afirmamos.<br />
Como conseqüência, de duas uma: ou os Papas estão<br />
errados, ou devemos reconhecer que só o Catolicismo<br />
salvará o mundo da crise em que está mergulhado.<br />
Portanto, é inútil discutir se, no país A ou no país B, os<br />
católicos agiram ou não agiram bem. [...]<br />
Se é verdade que só a Igreja pode remediar os males<br />
contemporâneos, é só nas fileiras da Igreja que devemos<br />
procurar lutar pela eliminação desses males. Pouco nos<br />
importa que outros não cumpram o seu dever. Cumpramos<br />
o nosso. E, depois de termos feito todo o possível —<br />
a palavra “todo” significa tudo, mas absolutamente tudo,<br />
e não apenas “um pouco” ou “muito” — resignemo-nos<br />
diante da avalanche que vem. Porque, ainda que pereçam<br />
o Brasil e o mundo inteiro, ainda que a própria Igreja seja<br />
devastada pelos lobos da heresia, ela é imortal. Nadará<br />
sobre as águas revoltas do dilúvio. E é de dentro de seu<br />
seio sagrado que sairão depois da tempestade, como Noé<br />
da Arca, os homens que hão de fundar a civilização de<br />
amanhã.<br />
Duas lições, para duas mentalidades erradas<br />
Mas é aí que não querem chegar certos católicos. Como<br />
os [apóstolos antes de Pentecostes], eles só compreendem<br />
Cristo sobre um trono de glória. Eles só Lhe são fiéis<br />
nos dias parecidos com o Domingo de Ramos, quando a<br />
multidão O aclama e cobre o seu caminho com suas vestes.<br />
Porque, para eles, Cristo deve ser um Rei terreno. Deve<br />
dominar o mundo constantemente. E se, por algum tempo,<br />
a impiedade dos homens O reduzirem de Rei a Crucificado,<br />
de Soberano a Vítima, não mais querem saber d’Ele. [...]<br />
No entanto, Cristo quis passar por todos os opróbrios,<br />
todos os vexames, todas as humilhações, mostrando que<br />
a História da Igreja também teria seus Calvários, suas<br />
humilhações, suas derrotas. E que muito mais meritória<br />
era e é a fidelidade no Gólgota do que no Tabor.<br />
Foi para ensinar a gente assim que Nosso Senhor se<br />
submeteu a todas as humilhações, no Calvário. Entretanto,<br />
foi para ensinar gente diferente que Ele quis a glória<br />
do Domingo de Ramos.<br />
“Entrada de Jesus em<br />
Jerusalém”, por Giotto<br />
— Se desejou os<br />
opróbrios do Calvário<br />
pela Redenção do<br />
mundo, Nosso Senhor<br />
quis também a glória do<br />
Domingo de Ramos<br />
para lição daqueles cuja<br />
mentalidade errada e<br />
comodista os leva a<br />
achar absolutamente<br />
natural que a Igreja seja<br />
constantemente<br />
humilhada e perseguida<br />
8
Devemos lutar pela Igreja até a<br />
extenuação de nossos últimos<br />
recursos de energia e inteligência; se,<br />
apesar de tudo, ela continuar a ser<br />
oprimida, soframos com a Igreja, como<br />
São João aos pés da Cruz<br />
Passo da Paixão, Sevilha.<br />
Há gente de uma mentalidade detestável, que acha<br />
absolutamente natural que Cristo sofra, que a Igreja<br />
seja vexada, humilhada, perseguida. Gente comodista,<br />
“cujus Deus venter est” — “que têm por Deus o seu<br />
próprio ventre”, e que pensa que, como a Igreja deve<br />
imitar a Cristo, é natural que todos os [seus inimigos]<br />
se atirem contra ela e a façam sofrer. É a Paixão de<br />
Cristo que se repete, dizem eles. E enquanto essa Paixão<br />
se repete, eles levam sua vida farta e cômoda, nas<br />
orgias, nas imundícies, na exacerbação de todos os<br />
sentidos e na prática de todos os pecados.<br />
Para gente como esta é que foi feito o látego com<br />
que foram expulsos os vendilhões do Templo.<br />
Devemos estar sempre com a Igreja<br />
Não é verdade que devamos cruzar os braços ante<br />
as investidas dos inimigos da Igreja. Não é verdade<br />
que devamos dormir enquanto se renova a Paixão. O<br />
próprio Cristo recomendou que seus Apóstolos orassem<br />
e vigiassem. E se devemos aceitar os sofrimentos<br />
da Igreja com a resignação com que Nossa Senhora<br />
aceitou os padecimentos de seu Filho, não é menos<br />
exato que será um motivo de [reprovação] para nós,<br />
se nos portarmos ante as dores do Salvador com a sonolência,<br />
a indiferença e a covardia de discípulos infiéis.<br />
A verdade é esta: devemos estar sempre com a Igreja,<br />
“porque só ela tem palavras de vida eterna”. Se ela é<br />
atacada, lutemos por ela. Mas lutemos como mártires,<br />
até a efusão de nosso sangue, até o emprego de nosso<br />
último recurso de energia e de inteligência. Se, apesar<br />
disto tudo, ela continuar a ser oprimida, soframos com<br />
ela, como São João Evangelista aos pés da Cruz. E estejamos<br />
certos de que, neste mundo ou no outro, Jesus<br />
misericordioso não nos negará o esplêndido prêmio<br />
de assistirmos à sua glória divina e suprema.<br />
(Excertos do “Legionário”, nº 236, de 21/3/1937.<br />
Título e subtítulos nossos.)<br />
9
ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />
O mundo aos pés<br />
do Trono da Verdade<br />
J<br />
á tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão,<br />
pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo<br />
para o “Legionário” em 1946.<br />
As notícias provenientes da<br />
Cidade do Vaticano informam<br />
que o Corpo Diplomático<br />
junto à Santa Sé fez uma démarche<br />
coletiva para obter da Secretaria<br />
do Estado o privilégio de participar<br />
de Consistório em que vão ser<br />
concedidos os chapéus vermelhos aos<br />
Cardeais recentemente nomeados.<br />
A atitude dos diplomatas não terá<br />
sido tomada sem o consentimento,<br />
pelo menos tácito, dos respectivos governos.<br />
Assim, pode-se considerar<br />
que quase todas as nações do mundo<br />
quiseram expressamente estar presentes<br />
àquele ato, manifestando de<br />
modo delicado e nobre, seu agradecimento<br />
pela honra que o Papa Pio<br />
XII lhes concedeu, com a internacionalização<br />
ainda mais ampla do Sacro<br />
Colégio.<br />
Por sua vez, este gesto vem demonstrar<br />
o alto grau de importância<br />
moral e política que todos os governos<br />
do mundo reconhecem ao Papado.<br />
Em toda a longa e gloriosa história<br />
do Vaticano, durante a qual tantas<br />
cerimônias brilhantes se desenrolaram<br />
sob o teto de Pedro, em nenhuma<br />
talvez, a universalidade da Igreja<br />
se tenha patenteado de modo mais<br />
evidente. Aos pés do Trono da Verdade,<br />
estarão os embaixadores de quase<br />
todas as nações do mundo. E, nos<br />
lugares reservados ao Sacro Colégio,<br />
figurarão lado a lado Cardeais europeus,<br />
americanos, asiáticos e africanos.<br />
Nunca se viu na História da Igreja,<br />
que a Púrpura cardinalícia cobrisse<br />
uma tão grande porção da terra.<br />
Dir-se-ia que a sombra do báculo de<br />
Pedro cresceu, que entre suas extremidades<br />
que vão de mar a mar, de<br />
monte a monte, dos Alpes ao Himalaia,<br />
fica o mundo inteiro. O quadro<br />
é de uma grandeza apocalíptica. É<br />
impossível não pensar nas lágrimas,<br />
no suor e no sangue, nas mortificações,<br />
nas preces, na paciência e no<br />
heroísmo por meio do qual a Igreja<br />
ajudada por Deus chegou a tamanha<br />
glória. Quando se pensa nos primórdios<br />
do Catolicismo, comparado por<br />
seu Divino Fundador com o pequenino<br />
grão de mostarda, e se vê hoje<br />
que a copa da árvore é maior que os<br />
mais extensos desertos e as mais vastas<br />
nações, são todas as fibras católicas<br />
que vibram e se dilatam nos nossos<br />
corações.<br />
Do esplendor desta magnifica realidade<br />
se desprende uma voz, porque<br />
os fatos falam. E esta voz, eco de outra<br />
Voz, nos diz com firmeza mais do<br />
que nunca: non praevalebunt! Do que<br />
adiantou a [tantos inimigos] investir<br />
contra a Igreja com uma fúria desabrida<br />
e ferina? Do que adiantou [...]<br />
procurar infiltrar-se como um cupim<br />
silencioso e cheio de lepra, nas próprias<br />
fileiras dos católicos? Non praevalebunt.<br />
Não prevaleceram.<br />
Está dito, porém, que as alegrias<br />
neste vale de lágrimas nunca serão<br />
completas. Uma sombra passa diante<br />
de nossos olhos.<br />
Se é tal, tão universal, tão incontrastável<br />
o prestígio da Igreja, como<br />
explicar que ela esteja à margem da<br />
Organização das Nações Unidas? Como<br />
explicar que, precisamente neste<br />
fastígio de sua universalidade, ela seja<br />
mantida à margem da universal<br />
organização dos povos? Se a circunda<br />
uma auréola de prestígio, é impossível<br />
não reconhecer que é no exílio,<br />
é fora de seu trono natural, que é a<br />
presidência das nações cristãs, é fora<br />
de tudo isto, que nasce em torno dela<br />
este arrebol de glória. Extraordinária<br />
expressão de sua força, que brilha<br />
até mesmo no isolamento. Mas<br />
motivo não menos extraordinário para<br />
que temamos por esta humanidade<br />
que vê a Luz, mas que não se utiliza<br />
dela para “iluminar a casa inteira”,<br />
para iluminar e dirigir a sociedade<br />
universal das nações. [...]<br />
10
Como de direito, o máximo de nosso<br />
filial afeto voa aos pés do Santo Padre.<br />
Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia<br />
ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia (Onde<br />
está Cristo, aí está Deus; onde esta<br />
a Igreja, aí está Cristo; onde está<br />
Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos<br />
a Deus em Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro<br />
Deus. Só nos unimos a Jesus<br />
Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica,<br />
Romana que é o próprio Corpo<br />
Místico do Senhor. E só estaremos<br />
unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
mediante uma união sobrenaturalmente<br />
forte, união de vida e de morte,<br />
à Cátedra de São Pedro. Onde está<br />
Pedro, aí está a Igreja de Deus.<br />
Dizem as notícias telegráficas que<br />
o Santo Padre pronunciará nesta ocasião<br />
um discurso de grande importância,<br />
seguido poucos dias depois<br />
de mais outro, igualmente importante.<br />
Aguardamos sua palavra com amor<br />
e confiança. Amor e confiança que,<br />
como de costume, se traduzem num<br />
inabalável propósito de adesão e submissão.<br />
Não há melhor meio de testemunhar<br />
amor ao Papa, senão obedecendo-lhe.<br />
E obedecer significa fazer<br />
aquilo com que estamos de acordo, e<br />
aquilo que por nossa própria vontade<br />
faríamos; significa aceitar como<br />
verdadeiro o que ele ensina e nós vemos<br />
que é verdadeiro, e o que ele<br />
ensina e a nossos olhos mortais pareceria<br />
fraco e errôneo.<br />
(Excertos de artigo publicado no<br />
“Legionário”, nº 706, de 17/2/1946.<br />
Título nosso.)<br />
Só estaremos unidos a Nosso Senhor por uma união de vida e de morte à Cátedra de São Pedro: onde está<br />
Pedro, aí está a Igreja de Deus (Imagem de São Pedro, basílica do Vaticano)
DONA LUCILIA<br />
Reencontro transbordante de afeto<br />
Aviagem de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à Europa, em 1950, caminhava<br />
para seu termo. Dirigira-se ele para a<br />
Cidade Eterna, onde o aguardava o mais importante<br />
de seus compromissos nessa passagem pelo Velho<br />
Continente.<br />
Audiência com o Santo Padre<br />
Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 50<br />
Conhecedora da profunda devoção de seu filho ao Papado,<br />
Dª Lucilia rezara confiantemente ao Sagrado Coração<br />
de Jesus para que ele obtivesse uma audiência com<br />
o Sumo Pontífice, no que foi atendida. Ao ler a extensa<br />
carta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre esse encontro, seu coração maternal<br />
exultou, e à medida que corria os olhos pela narração,<br />
ela o acompanhava em espírito, meditando nas<br />
conseqüências do fato. Em ação de graças, mandou celebrar<br />
uma Santa Missa, além de elevar redobradas preces<br />
a Nosso Senhor, a fim de Lhe exprimir seu reconhecimento<br />
pelo favor alcançado.<br />
Eis a missiva de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />
Roma, 13-VI<br />
Mãezinha queridíssima do coração<br />
Querido Papai<br />
Escrevo-lhes a 1,30 da noite, depois de ter tomado apontamentos<br />
(jornais falados, diríamos na gíria do 6º andar)<br />
desde 11 horas da noite até agora. Estou com todas<br />
as minhas orações para fazer. Tenho tido um<br />
mundo de contatos, tipo marquês Pallavicino,<br />
Príncipe Lancelotti, Príncipe Ruffo, Príncipe Chigi,<br />
Embaixador da Espanha junto ao Vaticano,<br />
etc. Mas o mais formidável foi o Papa. É favor<br />
entregar esta carta para o pessoal do 6º andar ver<br />
logo. Estávamos [um prelado amigo] e eu preparando<br />
o longo relatório para o Papa, e íamos<br />
telegrafar para aí pedindo orações, quando veio<br />
— com uma rapidez inusitada — a notícia de<br />
que o Papa nos receberia em audiência especial<br />
no dia seguinte.<br />
Corre-corre tremendo para aprontar o relatório,<br />
que ficou concluído à ultimíssima hora, datilografado<br />
com o auxílio do Adolphinho. Fomos<br />
[o prelado], eu, e um Padre cubano, ex-colega<br />
[do primeiro] que servia de secretário a este. Atravessamos<br />
salões e salões, [o prelado] de grande<br />
gala, eu de roupa azul clara (....), o cubano com<br />
uma capa soleníssima. Na passagem, os Suíços e<br />
os “gendarmes” pontifícios apresentavam armas.<br />
Os salões cheios de diplomatas e de peregrinos.<br />
Afinal chegamos ao salão do Papa.<br />
A audiência fora pedida em nome [do prelado]<br />
e meu. [Ele] entrou primeiro, e teve uma conversa<br />
de uns 10 minutos, ou pouco menos. Em seguida<br />
entrei eu e o Cubano. O Papa foi muito<br />
amável comigo. Pedi bênção especial para a Senhora<br />
e Papai, e tinha intenção de pedir para a<br />
família toda, pelo que traduzindo mal disse “mes<br />
parents”, o que quer dizer propriamente só os pais.<br />
Pedi também bênção especial para meus com-<br />
12
panheiros de trabalho. O Papa concedeu tudo muito afetuosamente,<br />
e benzeu os objetos de piedade que lhe levei. [O<br />
prelado amigo] disse ao Papa que eu tenho uma mãe que<br />
me quer um bem louco, e pediu mais uma bênção para a<br />
Sra. Como ousa [ele] mentir ao Papa por esta forma? (...)<br />
Agora quanto ao regresso:<br />
1 - Não sei como podem ter achado que eu estaria de<br />
volta dia 10. Só poderei sair daqui por volta de 15 ou 16.<br />
Quero visitar Veneza, depois ir à Suíça, onde tenho gente<br />
com quem falar. Da Suíça, França, onde pretendo tomar<br />
avião para Lourdes, e se possível interrupção em Portugal<br />
para tentar falar com a Irmã Lúcia de Fátima.<br />
2 - Assim, correndo muito, estarei de volta em fins de<br />
junho, como disse no telegrama. “Cela vá de soi” que estarei<br />
presente para o casamento de Maria Alice.<br />
3 - Quando eu marcar o regresso, telegrafarei. (...)<br />
4 - Terei que ficar no Rio 24 horas. Assim, chegarei a São<br />
Paulo no dia seguinte ao de minha chegada ao Rio.<br />
5- Ficarei no Glória. Quero que uma hora depois de o<br />
avião ter chegado Mamãe me telefone.<br />
6 - Logo depois de ter falado com Mamãe e Papai,<br />
falarei também com Rosée e Maria Alice, se estas puderem<br />
estar perto. (...)<br />
7 - Logo depois de ter falado com Papai e Mamãe, (...)<br />
quero falar com o pessoal do 6º ao menos os que estiverem<br />
disponíveis a esta hora.<br />
8 - Daqui por diante, escrever-me ao Regina Hotel, Paris.<br />
Para Papai um longo e afetuoso abraço. Para Mamãe,<br />
milhões e milhões de beijos. A ambos peço a bênção,<br />
<strong>Plinio</strong>.<br />
. . . . . . . . . . . . . . . .<br />
Meus carissimos do 6º. andar<br />
Como vêem, esta carta é tanto para vocês quanto para<br />
Papai e Mamãe. Acrescento que por deferência especial de<br />
Mons. Montini¹, assisti ontem a canonização de São Vicente<br />
Strambi na tribuna dos diplomatas, ao lado do embaixador<br />
e secretário do embaixador do Egipto! Sei que gostariam<br />
de mais notícias sobre a audiência. Esperem jornal falado.<br />
Mil e mil abraços,<br />
<strong>Plinio</strong><br />
Saudades e ansiosa espera<br />
Esses pequenos e grandes fatos alimentaram, após a<br />
volta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, as abençoadas “prosinhas” noturnas<br />
de Dª Lucilia com ele. A cerimônia de canonização de<br />
São Vicente Strambi, por exemplo, terá sido, sem dúvida,<br />
tema de algumas delas.<br />
Com efeito, Dª Lucilia, que tanto amava o protocolo e<br />
o cerimonial, ter-se-á encantado ao ouvir, dos lábios de<br />
seu próprio filho, a descrição de uma das mais belas pompas<br />
da Cristandade.<br />
Bênção papal concedida por Pio XII<br />
a Da. Lucilia e <strong>Dr</strong>. João Paulo<br />
Quanto e com que brilho marcaram a História as gloriosas<br />
vitórias dos guerreiros romanos! Entretanto, as celebrações<br />
destas nada foram em comparação às preparadas<br />
pela Santa Igreja para elevar à honra dos altares e<br />
louvar seus heróis. Estes últimos terão seus feitos lembrados<br />
até o fim do mundo, em todos os recantos da Terra.<br />
Para o augusto ato da canonização de São Vicente<br />
Strambi, compareceram as mais insignes autoridades da<br />
Igreja presentes em Roma, todo o corpo diplomático<br />
acreditado no Vaticano, além de grande número de personalidades<br />
eminentes da nobreza romana, do mundo da<br />
cultura e da política. Por assim dizer, estava representado<br />
simbolicamente, na Basílica de São Pedro, o que de<br />
mais seleto há nas sociedades espiritual e temporal. Tudo<br />
para glorificar a heroicidade das virtudes de uma pessoa<br />
que talvez tenha levado uma vida obscura e apagada, entre<br />
as paredes de um mosteiro.<br />
Esses e outros pensamentos terão passado pela mente<br />
de Dª Lucilia, enquanto aguardava a volta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
para se deliciar com os pormenores do evento.<br />
Embora não tivesse a certeza de que uma carta ainda<br />
o fosse encontrar em Paris — para onde ele seguiria de<br />
Roma —, e apesar de já estar se ocupando muito com os<br />
preparativos para o casamento de sua neta, não quis deixar<br />
de enviar-lhe um comentário a propósito da audiência<br />
dele com o Sumo Pontífice:<br />
13
DONA LUCILIA<br />
São Paulo 21-VI-950<br />
Filho querido de meu coração!<br />
Segue mais esta, “pour un en cas”², como dizem os<br />
franceses teus amigos, pois asseguram-me os do sexto andar<br />
e teu pai, que ao chegar esta a Paris, já estarás de volta,<br />
ou melhor, em casa. Será possível?<br />
Estou escrevendo com uma pena de bico torcido, e muito<br />
tarde, e já cansada, ainda vou começar as orações, por<br />
quem está tão longe! Não sei dizer-te quanto alegrou-me<br />
tua visita ao Papa! Pedi tanto a Deus para que te desse esta<br />
graça, pelo que vou mandar dizer uma missa em ação de<br />
graças, por isso, e pelo bom resultado de tua viagem.<br />
Até quando, querido? As saudades crescem, e são tantas,<br />
tantas,.... agora, na hora do nosso rosário, andando no<br />
salão!... Venha logo!<br />
Bênçãos, beijos e abraços de tua mãe extremosa,<br />
Lucilia<br />
Reze por tua sobrinha e por nós, em Lourdes e Fátima!<br />
De fato <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> rezaria em Fátima, no local onde<br />
Nossa Senhora aparecera aos três pastorinhos, Lúcia,<br />
Francisco e Jacinta. Da primitiva azinheira, do cimo da<br />
qual a Santíssima Virgem lhes falara, nada mais restava,<br />
pois a devoção do povo a fizera desaparecer em pouco<br />
tempo, levando cada um seu pedacinho de lembrança...<br />
Apenas uma singela capelinha, que a Mãe do Céu mandara<br />
construir, recordava o ponto exato das aparições na<br />
Cova da Iria.<br />
“Filhão, graças a Deus você é o<br />
mesmo!”<br />
Às dez horas da manhã do dia 29 de junho, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
embarcou em Paris com destino ao Brasil. Em suas cartas<br />
não definira a data de seu regresso, com o objetivo de<br />
poupar a Dª Lucilia “a angústia da travessia”. No entanto,<br />
logo ao chegar ao Rio, pediu que fosse avisada, a fim<br />
de com ela poder falar pelo telefone. Após dois longos<br />
meses de ausência, contados dia por dia, minuto a minuto,<br />
pôde ela ter uma longa prosinha com seu “queridão”.<br />
Na manhã seguinte, com o intuito de deixar tudo pronto<br />
para receber seu filho, Dª Lucilia não seguiu a reco-<br />
Aspecto da cerimônia de canonização de São Vicente Strambi, onde se pode ver<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na tribuna do Corpo Diplomático<br />
14
lhos”, não se fazia ilusão alguma acerca da natureza humana.<br />
Ela jamais faria o seguinte raciocínio: “<strong>Plinio</strong> é muito<br />
bom filho, católico exemplar e, portanto, na Europa não<br />
corre risco algum! Posso ficar inteiramente tranqüila”.<br />
Seu modo de ver a realidade era bem diverso, e ela deve<br />
ter pensado o contrário: “É bem verdade que ele é um bom<br />
filho, mas, como todo homem, pode cair. A Europa é um<br />
continente de sedução e de prazeres. Ele vai com razoável<br />
quantia de dinheiro para gastar, levará uma vida bem diferente<br />
da que tem no Brasil. Irá a grandes restaurantes,<br />
estará em hotéis excelentes, de vida social intensa, freqüentará<br />
a sociedade. O que passará por seus olhos e por sua<br />
imaginação durante a viagem? Essa velha Europa, eu e ele<br />
a admiramos tanto, mas... devolver-me-á ela meu filho tal<br />
qual ele é, ou com o espírito desfavoravelmente marcado?”<br />
Duas vistas do hall do apartamento de Da. Lucilia<br />
mendação médica de repousar até mais tarde.<br />
Mandou preparar um farto lanche a ser servido<br />
quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> chegasse, pois certamente viria<br />
cansado da viagem e precisaria recompor as<br />
forças.<br />
Uma vez tudo pronto, foi para o hall do apartamento<br />
e sentou-se à espera dele. Imenso foi o júbilo<br />
que lhe inundou a alma ao vê-lo assomar à porta.<br />
Abraços, beijos e bênçãos foram as primeiras manifestações<br />
de gáudio. Dona Lucilia, sempre idêntica a si própria,<br />
não poderia deixar de aliar, aos extremos de alegria,<br />
uma infatigável vigilância. Após os afetuosíssimos cumprimentos,<br />
afastou-se um pouco de seu filho e o fitou atentamente,<br />
com seu tranqüilo, sereno e penetrante olhar. <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> não entendeu logo qual a intenção de sua mãe, mas,<br />
na expectativa, nada lhe disse. Ao cabo de alguns instantes<br />
de observação, concluiu ela, contente:<br />
— Filhão, graças a Deus você é sempre o mesmo!<br />
Em seguida, levou todos à sala de jantar, onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
contou as primeiras impressões de viagem, enquanto<br />
tomava o saboroso lanche.<br />
Essa tocante atitude de Dª Lucilia revela como a virtuosa<br />
preocupação pela perseverança de seu filho não só não<br />
esmorecia com o passar dos anos, mas crescia tanto quanto<br />
a estima que lhe devotava. Apesar de conhecê-lo bastante<br />
bem e ter plena certeza de ser ele “o melhor dos fi-<br />
Como vimos, essas apreensões, acumuladas nos dois<br />
meses de ausência, foram logo dissipadas após os primeiros<br />
instantes de análise, feita, aliás, muito mais com o coração<br />
do que com a vista.<br />
(Transcrito, com adaptações, da obra<br />
“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />
1) Mons. João Batista Montini, futuro Papa Paulo VI, na época<br />
Substituto da Secretaria de Estado de S. S. Pio XII.<br />
2) “Por via das dúvidas”.<br />
15
DR. PLINIO COMENTA...<br />
“PASSIO CHRISTI,<br />
CONFORTA ME”
E<br />
m outubro de 1944, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou a comentar, em sua coluna<br />
do “Legionário”, o plano pastoral do novo Arcebispo de São Paulo,<br />
destacando como dos mais importantes o tópico sobre a caridade.<br />
“Atrair todos os elementos<br />
supracitados do Clero e da<br />
Ação Católica para a obra<br />
social e multifária da caridade cristã,<br />
em socorro de todas as necessidades<br />
físicas ou morais do nosso próximo,<br />
sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade<br />
ou de classes”. É este<br />
um dos itens mais importantes do<br />
plano de ação do novo Arcebispo de<br />
São Paulo.<br />
Humildade e altivez cristãs<br />
“Socorro das necessidades físicas<br />
ou espirituais”: é bem este o conceito<br />
das obras de misericórdia que Nosso<br />
Senhor ensinou ao mundo, e que<br />
a Santa Igreja vem realizando ininterruptamente<br />
através dos séculos. Todo<br />
o espírito da Igreja é feito de contrastes<br />
fecundos que se resolvem em<br />
uma divina harmonia. Durante a Idade<br />
Média, viajava pela Europa um potentado<br />
muçulmano, feito prisioneiro<br />
pelos guerreiros feudais, defensores<br />
da Fé. Encontraram-no um dia muito<br />
pensativo, e aos que lhe indagaram<br />
o motivo, respondeu: “Não posso<br />
compreender como constroem monumentos<br />
tão altivos, esses homens tão<br />
humildes”.<br />
Almas humildes, construtoras de<br />
obras divinamente altivas, eis bem<br />
genuinamente representadas nesse<br />
traço as almas resgatadas pelo Precioso<br />
Sangue de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo. Aparentemente, entre a humildade<br />
e a altivez, há uma contradição.<br />
O mundo pagão não compreendia<br />
essa contradição, e uma das acusações<br />
que os romanos faziam aos mártires<br />
era precisamente que sua Religião<br />
glorificava a baixeza. Eles não sabiam<br />
que admirável sementeira de almas<br />
altivas eram aquelas escuras e misteriosas<br />
catacumbas, em que patrícios<br />
e escravos, grandes e pequenos, se<br />
confundiam em torno dos altares,<br />
aprendendo de Jesus Cristo o segredo<br />
da humildade e da altivez de que<br />
Ele nos deu em sua vida terrena tão<br />
adoráveis exemplos.<br />
“Christianus alter Christus” (o cristão<br />
é um outro Cristo), e a humildade<br />
do cristão, ou a altivez do cristão,<br />
não é senão um reflexo da altivez e<br />
da humildade de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo.<br />
Doçura e combatividade<br />
Outro contraste que o mundo não<br />
compreende, e que entretanto é tão<br />
harmônico e fecundo quanto o da altivez<br />
e da humildade do verdadeiro<br />
cristão, é o da doçura e da combatividade.<br />
Se o árabe de que falamos<br />
observasse a vida dos Santos, esbarraria<br />
por certo neste mistério, e diria<br />
deles: “Não posso compreender como<br />
almas tão pacíficas são tão belicosas,<br />
como almas tão belicosas podem<br />
ser tão pacíficas”. É que no catolicismo<br />
tudo é amor, e mesmo quando,<br />
por necessidade, e imitando a Nosso<br />
Senhor, alguém empunha o látego<br />
que há de fustigar os erros do século,<br />
fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fálo<br />
com amor. A combatividade cristã<br />
tem o sentido exclusivo de legítima<br />
defesa. Não há para ela outra possibilidade<br />
de ser legítima. É sempre o<br />
amor de alguma coisa ofendida que<br />
move o cristão ao combate. Todo combate<br />
é tanto mais vigoroso quanto<br />
mais alto for o amor com que se combate.<br />
E, por isso mesmo, não há, no<br />
católico, combatividade maior do que<br />
aquela com que ele luta pela defesa<br />
da Igreja ultrajada, negada, calcada<br />
aos pés. Por que combate ele? Para<br />
defender os direitos das almas que se<br />
quer arrancar à Igreja. Para manter<br />
livres e desobstruídas as portas de<br />
acesso que devem permitir aos eleitos<br />
de Deus a aproximação de sua<br />
Igreja. Para abater a insolência da impiedade,<br />
e para exaltar a Santa Madre<br />
Igreja. Para essas coisas é que se deve<br />
bater o católico. E, quando esgotados<br />
um a um, pacientemente, irremediavelmente,<br />
todos os meios pacíficos,<br />
o católico se ergue com o valor<br />
de um novo Macabeu, incendido em<br />
zelo pela Esposa de Cristo, ele bem<br />
pode dizer que em toda a sua combatividade<br />
só há uma coisa: amor.<br />
Abandonemos esse quadro e, em<br />
vez de olharmos para o guerreiro cristão,<br />
olhemos para a irmã de caridade.<br />
Ela que docemente se aproxima<br />
do leito em que agoniza um doente<br />
repugnante. É para ela um desconhecido,<br />
em que ela vê, entretanto,<br />
um membro do Corpo Místico de<br />
Cristo, que é a Santa Igreja Católica.<br />
E, por isso, aproxima-se dele cheia<br />
de sobrenatural ternura, desata os panos<br />
que ocultam a hediondez de suas<br />
chagas e recebe em pleno rosto, mais<br />
forte do que nunca, o odor terrível das<br />
carnes em putrefação. No rosto da<br />
irmã de caridade a impassibilidade é<br />
completa. Ela olha para as chagas como<br />
se fossem pérolas, respira o odor<br />
da podridão como se fosse um perfume.<br />
Sabe Deus que terríveis repugnâncias<br />
ela está esmagando em seu<br />
interior, e que luta tenaz, violenta,<br />
titânica ela tem de desenvolver para<br />
não abandonar o lugar de sacrifício<br />
17
DR. PLINIO COMENTA...<br />
em que Nosso Senhor Jesus Cristo a<br />
quer! Quanto amor! dirão os que<br />
atentarem apenas para a placidez de<br />
seu semblante e de seus gestos. Quanta<br />
combatividade! dirão os que forem<br />
mais penetrantes e desvendarem o tumulto<br />
da luta interior diante da qual<br />
a Religião não cede. Quanto amor<br />
nessa combatividade! Quanta combatividade<br />
nesse amor!<br />
Combatividade e amor, se o mundo<br />
contemporâneo pudesse compre-<br />
É na meditação<br />
do que sofreu o<br />
“Homem das Dores”<br />
que nosso coração<br />
se dilata na<br />
comiseração para<br />
com o próximo,<br />
na prática da<br />
verdadeira caridade<br />
(“Cristo coroado de<br />
espinhos”, imagens de<br />
freira e paciente —<br />
Hôtel-Dieu, de<br />
Beaune, França)<br />
ender como se harmonizam essas<br />
virtudes, como é preciso amar até o<br />
que se combate... e combater com as<br />
duas mãos até o que, por vezes, se<br />
ama ternamente por mais de um título<br />
justo, como estaria diversa a face<br />
da terra!<br />
É para as santas pugnas da caridade<br />
cristã, pugnas interiores que aumentem<br />
em nós os mananciais de<br />
amor, pugnas exteriores, vitórias tanto<br />
mais jubilosas quanto mais pacíficas,<br />
porque Cristo é o Rei da Paz,<br />
mas em todo caso vitórias que não<br />
desdouram com a energia e não perdem<br />
seu lustre se a luta aberta tiver<br />
sido o único meio para as conseguir<br />
— é para as santas pugnas da caridade<br />
cristã que nosso Arcebispo nos<br />
conclama.<br />
Olhando de longe para seu rebanho<br />
espiritual, Dom Carlos Carmelo<br />
de Vasconcelos Mota tem palavras<br />
de ternura e compaixão que são um<br />
eco da exclamação divina: “Misereor<br />
super turbam” — tenho pena desta<br />
multidão. E com que razão! Pio XII,<br />
na alocução magistral que recentemente<br />
publicamos, diz que é preciso<br />
ter um heroísmo comparável ao dos<br />
mártires, para praticar com fidelidade<br />
e esmero a Religião em nossos<br />
dias. Assim, pois, as grandes cidades<br />
modernas são verdadeiros lugares de<br />
luta e tormenta para os “christifideles”<br />
(fiéis cristãos) de nossos dias.<br />
No luxo dos salões aristocráticos, no<br />
conforto dos ambientes burgueses,<br />
na calma das classes pequeno-burguesas,<br />
na simplicidade das camadas<br />
operárias, na crua indigência das classes<br />
pobres, em tudo isso se ocultam<br />
hoje terríveis tentações, cuja vitória<br />
custa e custa muito, custa sofrimento
espiritual que é o sangue de alma. É<br />
preciso correr, voar em auxílio dessas<br />
almas que sofrem para se manterem<br />
fiéis a Nosso Senhor ou para<br />
se aproximarem d’Ele. Toda demora<br />
é uma derrota, nesta tarefa, e toda<br />
negligência um crime. Por isso, Dom<br />
Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota<br />
conclama uma verdadeira cruzada<br />
para a salvação de tantas almas aflitas<br />
em nossos dias.<br />
Socorrer sobretudo os<br />
inocentes que sofrem<br />
Mas isso não basta. Não basta fazer<br />
aceitar às almas o jugo duro e<br />
suave da moral cristã. É preciso ainda<br />
consolar os que sofrem misérias<br />
físicas de toda a ordem. Para que<br />
relembrar o quadro doloroso que temos<br />
sempre diante dos olhos, os hospitais<br />
repletos que rejeitam doentes<br />
por falta de espaço, as pessoas doentes<br />
que definham por falta de dinheiro<br />
para a aquisição de remédios caríssimos,<br />
as pessoas sãs que vão imergindo<br />
lentamente no estado de doença<br />
por excesso de trabalho, necessário<br />
para a manutenção da família, ou<br />
por falta de alimentação? Por que<br />
relembrar com terror as inúmeras pessoas<br />
que, sem Fé nem horizontes espirituais,<br />
arrastam na sombra de suas<br />
casas ou premidas nas paredes dos<br />
hospitais uma vida de desespero e<br />
de revolta? Tudo isso corta por<br />
demais o coração, e tudo isso<br />
ainda não é tudo. Existe o<br />
problema da infância, da<br />
infância inocente, da infância<br />
promissora, da<br />
infância que o ambiente<br />
deletério das<br />
grandes cidades<br />
torna tão cedo miserável e pecadora.<br />
Como bem acentua nosso novo Arcebispo,<br />
muito já se tem feito entre<br />
nós nesse sentido. A Cidade dos Menores<br />
da Liga das Senhoras Católicas<br />
é simplesmente uma maravilha.<br />
Mas... quanto ainda há por fazer!<br />
E se de todos temos pena, que especialíssimo<br />
lugar ocupa em nosso<br />
coração a infância, que Jesus Cristo<br />
tão entranhadamente amou!<br />
É necessária a caridade<br />
cristã<br />
É preciso muita caridade. Mas as<br />
palavras de nosso Arcebispo são muito<br />
nítidas: do que precisamos é de<br />
caridade cristã, e não simplesmente<br />
de uma filantropia qualquer.<br />
Por quê? Simplesmente porque<br />
sem a Igreja de Jesus Cristo não há<br />
caridade verdadeira. Não negamos<br />
que possa haver almas que vivem fora<br />
da Igreja, em nossa civilização atual,<br />
e que fazem bem ao próximo. Elas<br />
possuíram a Fé, e essa Fé que perderam<br />
deixou nelas um vago perfume,<br />
como o que fica no vaso de que retiramos<br />
as rosas. São essas as palavras<br />
do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade<br />
ou é cristã ou não existe. [...]<br />
E, no catolicismo, qual o maior<br />
foco da caridade? A contemplação da<br />
Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
É na meditação minuciosa do que<br />
sofreu o “Homem das Dores”, é na<br />
rememoração afetuosa e constante<br />
daquele em quem “do alto da cabeça<br />
até a planta dos pés não havia um só<br />
lugar que fosse são”, é tendo diante<br />
dos nossos olhos dia e noite aquele<br />
que, sob a mão violenta de seus adversários,<br />
foi desfigurado a ponto de<br />
ser “um verme e não um homem, o<br />
opróbrio dos homens e o escárnio do<br />
povo”, que nosso coração se dilata para<br />
a comiseração para com os próximos.<br />
Revendo em todo o sofrimento<br />
um sofrimento do próprio Cristo, em<br />
toda a chaga, uma chaga de Cristo,<br />
remediando todo sofrimento, curando<br />
toda chaga como se debruçássemos<br />
nossa alma amorosa sobre tanta<br />
dor, como se aplicássemos com nossos<br />
próprios dedos à chaga de Cristo<br />
o bálsamo confortador, é com este<br />
meio que verdadeiramente teremos<br />
a virtude da caridade.<br />
Narra a História que antes de Cristo<br />
não havia hospitais nem instituições<br />
de caridade. Foi uma católica,<br />
Fabíola, quem fundou o primeiro hospital.<br />
De lá para cá, quantas obras de<br />
caridade se têm fundado! De onde<br />
nasceram? Das chagas santíssimas<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado<br />
na cruz. Foi da Paixão de Cristo<br />
que nasceu o reconforto de tantas<br />
criaturas sofredoras.<br />
Mas não é só. O melhor bálsamo<br />
para as dores humanas não é o remédio,<br />
é a compaixão. Compaixão, “com<br />
paixão”, é o sofrimento em união com<br />
o próximo, só porque o próximo sofre.<br />
É o reflexo dos sofrimentos alheios<br />
em nossa própria alma. Como fazer<br />
brotar do coração humano, tão frio,<br />
tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão?<br />
Pela meditação da Paixão de<br />
Cristo. As almas saturadas dessa meditação<br />
sabem verdadeiramente condoer-se<br />
do próximo. Só elas têm em<br />
seus gestos bastante ternura, em sua<br />
voz bastante sinceridade, em seu procedimento<br />
bastante discrição, para<br />
instilar na alma sofredora do próximo<br />
o remédio inigualável da compaixão.<br />
Se, da Paixão de Cristo, brota a<br />
misericórdia, brotam as obras de misericórdia,<br />
brota a consolação, que<br />
jaculatória mais adequada para todos<br />
os que se aprestam a atender à<br />
grande mobilização da misericórdia<br />
cristã que Dom Carlos Carmelo de<br />
Vasconcelos Mota promoverá, senão<br />
esta: “Passio Christi, conforta me”<br />
(Paixão de Cristo, confortai-me)?<br />
(Transcrito do “Legionário”,<br />
22/10/1944. Subtítulos nossos.)<br />
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PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
Personalização dos cargos<br />
e a dignidade na Idade Média<br />
F<br />
azendo uma exposição sobre a personalização dos cargos públicos durante<br />
o período medieval, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não se contenta com a mera narração<br />
dos fatos, mas procura as razões mais profundas que moldaram as instituições<br />
dessa era histórica.<br />
Em direito podem-se distinguir duas espécies de<br />
pessoas jurídicas: as associações e as fundações.<br />
Associação é, pelo menos na prática, um conjunto de<br />
pessoas que são ou podem vir a ser, coletivamente, proprietárias<br />
de um determinado patrimônio. Seu direito de<br />
propriedade sobre esse patrimônio é tal que podem, em<br />
determinados condições, dissolver a sociedade por mútuo<br />
acordo, dividindo os bens entre si. Se quiserem, podem<br />
também fazer doação do patrimônio para outra sociedade.<br />
E se lhes aprouvesse, poderiam até queimá-lo.<br />
Ou seja, elas exercem sobre o patrimônio social a plenitude<br />
da propriedade.<br />
A configuração jurídica da fundação é diferente. Trata-se<br />
de um conjunto de bens, doados ou legados por um<br />
instituidor, acrescido muitas vezes por doações sucessivas,<br />
e que constituem um só patrimônio. Este patrimônio<br />
não pertence a ninguém. Há os beneficiários do patrimônio,<br />
as pessoas em vantagem das quais ele existe, e há os<br />
que o administram, mas como empregados, sem retirarem<br />
para si nenhuma vantagem pessoal.<br />
Concepção medieval do governo do<br />
Estado<br />
Pelo direito moderno, quem governa situa-se, em relação<br />
ao Estado, como o gestor de uma fundação em relação<br />
aos bens desta. O governante não tem o direito de<br />
usar ou de reger os negócios sociais em proveito próprio,<br />
mas apenas em benefício do Estado. Recebe um ordenado,<br />
como empregado, presta determinados serviços e se<br />
retira. Nada há que o ligue a este patrimônio por alguma<br />
espécie de propriedade. Isto se dá de alto a baixo na escala<br />
social: desde um rei ou um presidente da República,<br />
até um contínuo de repartição, em face do Estado todos<br />
estão, segundo o pensamento moderno, mais ou menos<br />
como os gerentes ou os empregados de uma fundação<br />
em face desta.<br />
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A característica do direito medieval era inteiramente<br />
outra. O governador de um Estado, o senhor feudal, o<br />
dirigente da cidade, colocavam-se em face do bem público<br />
não como um simples terceiro, mas de maneira tal que<br />
houvesse um certo direito de propriedade sobre a função<br />
pública de que eram detentores. Não se tinha, portanto,<br />
a concepção de um Estado gerido à maneira de uma fundação,<br />
em relação à qual todos são terceiros. Mas ele era<br />
entendido como uma sociedade, na qual todos têm um<br />
tal ou qual direito de propriedade.<br />
Isto se dava, ora graças a um direito histórico; ora a<br />
grandes feitos, grandes habilidades, grande dedicação na<br />
defesa dos bens públicos; ou a qualquer outra razão pela<br />
qual um homem se afirma e sobrepuja os demais. Eram<br />
os que constituíam as famílias e os homens mais importantes<br />
e graduados. Eles dirigiam o Estado à maneira de<br />
co-proprietários. O rei ou o senhor feudal não eram simples<br />
titulares do cargo que ocupavam, mas sim os eminentes,<br />
dentre os inúmeros proprietários do reino ou do<br />
feudo. Os demais tinham um direito de propriedade<br />
menor. A idéia de tudo se considerar como propriedade<br />
era tal que, na casa real, até as menores funções eram<br />
consideradas como propriedade. Assim é que se chegou<br />
a referir-se em alguns documentos a determinada pessoa<br />
que “tinha por feudo a cozinha real”.<br />
O cartório, revivescência da<br />
propriedade dos cargos<br />
No direito brasileiro, temos uma pálida revivescência<br />
disso: os cartórios de notas. O tabelião não é propriamente<br />
um funcionário público, mas o proprietário do cartório.<br />
Ele presta determinado serviço ao público, credenciado<br />
pelo Estado; mas, sendo proprietário de seu cartório,<br />
sua posição é profundamente diferente da de um funcionário<br />
público, que não é o proprietário da repartição<br />
onde trabalha. Um secretário da Repartição de Águas e<br />
Esgotos, por exemplo, é apenas um funcionário que dirige<br />
uma máquina anônima.<br />
Como é hoje o tabelião para seu cartório, assim era o<br />
funcionário na concepção medieval. O reino poderia ser<br />
considerado como um grande cartório onde o rei seria o<br />
tabelião-mor; os nobres, oficiais graduados e co-participantes<br />
dos lucros; e por fim a plebe que também participaria<br />
desses lucros.<br />
Na Idade Média, os senhores e<br />
governantes tinham um<br />
certo direito de propriedade sobre a<br />
função pública de que eram<br />
detentores, devido aos<br />
seus grandes feitos, grande<br />
dedicação, ou qualquer outra razão<br />
que os distinguia dos demais.<br />
(À esquerda, busto-relicário<br />
de Carlos Magno; na página anterior,<br />
um bastão de comando ducal)<br />
21
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
No Estado moderno, monárquico ou republicano, impera<br />
o anonimato, a pura repartição pública. Ele é completamente<br />
despersonalizado, impessoal.<br />
Na Idade Média, quando se fala de Estado, fala-se de<br />
dinastia. E quando se fala de dinastia, fala-se do rei que<br />
personifica a dinastia e o Estado. Em relação aos dias de<br />
hoje, não poderíamos dizer o mesmo. Tomemos ao vivo<br />
um exemplo. Ninguém poderia dizer que a rainha Elisabeth<br />
é a Inglaterra. Ela é uma inglesa bem situada, de<br />
muito prestígio social, simpática, esperta, como uma<br />
magnífica atriz num grande palco, vivendo como se fosse<br />
rainha, usando jóias dignas de uma antiga rainha. Mas,<br />
na ordem concreta dos fatos, a Inglaterra praticamente<br />
não tem rainha.<br />
Na Idade Média, pelo contrário, o Estado monárquico<br />
era personificado pelo rei e pelos que participavam do<br />
poder real, era uma instituição profundamente pessoal.<br />
Poder-se-ia dizer algo de análogo a respeito de vários dos<br />
Estados não-monárquicos da Idade Média.<br />
Participação na propriedade das<br />
funções públicas<br />
Como dissemos, o rei era a personificação do Estado<br />
feudal. Mas, quando comparamos o rei com um nobre —<br />
o rei da França, por exemplo, com o duque da Normandia<br />
ou o da Bretanha —, vemos nesse nobre uma miniatura<br />
do rei. Ele é, em âmbito menor, tudo aquilo que<br />
o rei o é num âmbito maior. E se considerarmos<br />
um nobre de categoria inferior,<br />
ele é uma miniatura do duque da<br />
Normandia. E por esse processo, de miniatura<br />
em miniatura, chegaríamos até<br />
ao último grau da hierarquia feudal.<br />
Contudo, pode-se simplesmente afirmar<br />
que o rei está para um senhor feudal<br />
como o original está, em ponto grande,<br />
para a sua miniatura, ou há nisto alguma<br />
realidade mais profunda? Podese<br />
dizer que um príncipe de Condé era<br />
uma simples miniatura de um rei da Fran-<br />
Pelos laços do feudalismo, o<br />
poder monárquico se<br />
desmembrava em<br />
“miniaturas” do rei, que<br />
eram os nobres nos seus<br />
respectivos feudos. Essa<br />
cadeia de dignidades se<br />
desdobrava até o mais<br />
simples dos camponeses,<br />
considerado o “rei” de seus<br />
próprios filhos<br />
(Ao lado, Luís XI de França<br />
cercado de nobres; na página<br />
seguinte, um feudo com seus<br />
senhores e camponeses)<br />
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ça? O fato de se afirmar que é uma miniatura não mostra<br />
a existência, entre eles, de um laço feudal? No que consiste<br />
propriamente este laço feudal?<br />
Um rei de França desmembra o seu reino em feudos e<br />
dá, a cada senhor feudal, uma parcela do poder real de<br />
que ele é detentor. Desse modo o senhor feudal não é<br />
apenas uma miniatura do rei, mas participante do seu poder.<br />
Ele é, por assim dizer, uma extensão do rei. Sua ligação<br />
com o rei faz dele uma espécie de desdobramento<br />
do próprio rei.<br />
Os senhores feudais de categoria secundária têm um<br />
desdobramento do poder do primeiro senhor feudal. E<br />
assim, de participação em participação, chegamos às últimas<br />
escalas da hierarquia feudal. Partimos de uma grande<br />
fonte de poder, que é o rei, e encontramos participações<br />
sucessivas, semelhantes aos galhos de uma árvore.<br />
O rei seria o tronco e as várias categorias de nobreza seriam<br />
os galhos, sucessivamente mais delgados, até constituir<br />
o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma<br />
mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e<br />
para o qual tudo tende. Mas não é absorvente; deita seus<br />
inúmeros galhos em todas as direções.<br />
Dignidade pessoal: no rei, no nobre,<br />
no camponês<br />
Estudando essa idéia da participação do poder real na<br />
hierarquia feudal, chegamos a uma consideração de outra<br />
ordem, relacionando a distinção pessoal de cada homem<br />
com a dignidade conferida pela função ou o cargo<br />
que ocupa.<br />
Quando nos referimos ao rei, dizemos que ele tem<br />
uma tal grandeza que chamaríamos de majestade. Nesse<br />
conceito, a majestade é aquele tipo de grandeza que constitui<br />
propriamente o seu pináculo, e que corresponde ao<br />
poder real. Seria impróprio dizer que um duque, por<br />
exemplo, tem majestade. Diríamos que tem elevação, alteza,<br />
distinção, eminência, que são o próprio dom da majestade,<br />
mas num grau menor. Do mesmo modo, não<br />
podemos nos referir a um conde e a um marquês como<br />
23
PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />
nos referiríamos a um duque. Dizer que têm alteza ou<br />
eminência seria demasiado. Poderíamos dizer que têm saliência,<br />
relevo, destaque, projeção. É, portanto, mais uma<br />
redução. De um nobre menos elevado poderíamos dizer<br />
simplesmente que tem fidalguia, ou seja, é um homem um<br />
pouco mais saliente, distinto, elevado, mas que já toca na<br />
massa geral dos outros homens.<br />
Analisando mais profundamente essas idéias de dignidade,<br />
de majestade, de distinção, de elevação, vemos que<br />
podem também aplicar-se, embora com menos plenitude,<br />
às pessoas da plebe.<br />
Quando consideramos um chefe de família medieval,<br />
podemos dizer que ele, ao sentar-se em seu por assim<br />
dizer trono, para presidir as refeições de sua numerosa<br />
família, o faz com majestade. Entre os camponeses de<br />
certa região da Espanha, era costume o chefe da família,<br />
ao sentar-se para presidir a mesa — com até cinqüenta<br />
pessoas de sua casa — dizer: “Comeremos, pues”, e todos<br />
repetirem: “Comeremos, pues”. Recitava depois a<br />
oração, que dizia em Navarra: “Que o Menino Jesus, que<br />
nasceu em Belém, abençoe a pátria, o rei e a nós também”.<br />
E iniciava-se a refeição. Diante desse quadro,<br />
poderíamos dizer com toda propriedade que havia ali a<br />
majestade simples do patriarca, do homem rude do povo,<br />
do lavrador, na qual se sente uma grandeza da natureza,<br />
de seiva, de terra.<br />
Poder-se-ia falar em distinção no povo? Certamente.<br />
O camponês espanhol ao qual nos referimos, quanto não<br />
tem de distinção e de garbo? Assim, tudo quanto dissemos<br />
da nobreza, poder-se-ia dizer analogamente da plebe,<br />
embora com menos plenitude. Verificamos, portanto,<br />
que estes conceitos de nobreza e de majestade não repousam<br />
numa só classe social, mas podem aplicar-se até<br />
ao menor e ao mais simples dos camponeses. “O rei é o pai<br />
dos pais, e o pai é o rei dos filhos”, dizia-se na França antiga.<br />
Ensina-nos a Filosofia que todo ser, enquanto ser, é bom.<br />
E bom não apenas no sentido moral da palavra, mas no<br />
sentido ontológico.<br />
Quando o homem inteligente toma conhecimento<br />
dessa dignidade intrínseca do ser e se mostra, por seu<br />
livre arbítrio, à altura de sua bondade de ser inteligente,<br />
racional e livre, adquire uma elevação que não é comparativa<br />
de nada, mas deduzida de seu próprio ser. O mais<br />
ínfimo dos homens, consciente do que é ser homem, e<br />
mais ainda, do que é ser cristão, e bom cristão, pode elevar-se<br />
a uma autêntica majestade<br />
moral.<br />
Isto é tão verdadeiro que<br />
a Igreja canonizou uma<br />
Santa que nos serve<br />
de exemplo característico:<br />
Santa Ana<br />
Maria Taigi. Era cozinheira<br />
em Roma.<br />
A bondade intrínseca do ser e a<br />
majestade moral<br />
Quanto de majestade não havia em Jó, deitado no seu<br />
monturo, limpando sua lepra com um caco de telha, dizendo<br />
frases inspiradas e sublimes, carregando o seu infortúnio,<br />
falando com Deus, apostrofando seus adversários,<br />
impressionando toda a posteridade! Como podemos<br />
falar de majestade num homem que está reduzido<br />
ao último grau de humilhação? Esta majestade que há<br />
nele significa o quê: mando? poder? ou é algo diferente e<br />
superior a isto?<br />
Aquilo que chamamos de distinção, nobreza, majestade,<br />
elevação, com possibilidade de existir em todos os seres<br />
racionais, não é senão a bondade intrínseca do ser.<br />
24
Entretanto, andava pelas ruas com um porte tão majestoso<br />
que as pessoas instintivamente recuavam para lhe dar<br />
passagem. Não por ter servidores e arrogar-se em grande;<br />
a Igreja jamais canonizaria uma cozinheira que quisesse<br />
se fazer passar por duquesa. Isto lhe advinha da plenitude<br />
de dignidade humana, fruto da correspondência<br />
perfeita à graça.<br />
A propriedade do cargo aumenta a<br />
dignidade pessoal<br />
Essa grandeza pessoal, como afirmamos, provém da<br />
consciência da dignidade humana levada ao seu mais alto<br />
grau. Quando, porém, além de ter em si a dignidade<br />
comum a todos os homens e própria a todo católico, a<br />
pessoa acumula a isto outro título — senhora, por exemplo,<br />
de um reino, de um Estado, de uma instituição — algo<br />
se lhe acrescenta que a engrandece mais.<br />
O mesmo não acontece quando alguém é um mero<br />
funcionário de um reino ou de uma república, pois ao<br />
deixar o cargo fica apenas um ex-presidente, por exemplo,<br />
e nada mais. Na Idade Média, era preciso que a pessoa<br />
estivesse fundida em determinada coletividade humana<br />
e fosse a proprietária, por vinculação pessoal, da<br />
direção dessa coletividade, para que acrescesse realmente<br />
sua pessoa de uma dignidade, que era uma participação<br />
da dignidade daquela coletividade humana. Quanto<br />
maior e mais ilustre fosse essa coletividade, tanto mais<br />
se lhe acrescentava nova dignidade. Era a dignidade do<br />
poder público, fundida na sua pessoa, constituindo-se assim<br />
na nota própria da nobreza.<br />
Príncipes houve, contudo, que não estiveram à altura do<br />
cargo que exerceram nem da posição que ocuparam, e por<br />
isso ficaram muito abaixo da situação que deveriam ter.<br />
Realização plena da majestade e papel<br />
da Graça<br />
Qual a razão de dizermos que Carlos Magno encheu a<br />
história de seu tempo? Por haver tido uma personalidade<br />
tão inteiramente à altura do cargo que ocupava, que o<br />
próprio cargo foi uma decorrência de sua pessoa. Tornou-se<br />
necessária a criação do cargo de Imperador, pois<br />
ele não cabia na categoria de rei.<br />
A majestade se realiza plenamente num homem quando,<br />
além da dignidade da pessoa humana, ele eleva sua<br />
Porte firme, olhar profundo e simplicidade de maneiras:<br />
a distinção eclesiástica medieval expressa nas<br />
esculturas de bispos nos pórticos das catedrais<br />
personalidade à grandeza que compete à sua função. A<br />
majestade plena lhe advém quando ele encarna o poder<br />
supremo, o detém a título de propriedade pessoal e o exerce.<br />
Poder-se-ia perguntar se é possível ter majestade sem<br />
auxílio da graça. Esta grandeza pessoal, inerente à personificação<br />
de uma grande condição, é uma virtude. Para<br />
o homem praticar as virtudes duravelmente e na sua totalidade,<br />
precisa da colaboração da graça, mas não para<br />
a prática de uma ou outra virtude. Compreende-se, pois,<br />
que esta virtude possa ser praticada sem a colaboração<br />
da graça. Por isso encontramos a majestade realizada, a<br />
seu modo — e que não é artificial — em grandes personagens<br />
pagãos da antiguidade, como o faraó Ramsés II,<br />
considerado o Luiz XIV do Egito. Contudo, a nobreza, a<br />
dignidade, a majestade, alcançam sempre uma realização<br />
mais profunda quando resultam da colaboração da<br />
graça.<br />
Uma distinção própria a cada classe<br />
social<br />
Por fim, podemos examinar o problema da personalização<br />
dos cargos e a distinção que lhe é inerente nas<br />
várias categorias sociais.<br />
Na Idade Média havia uma forma de distinção própria<br />
a cada classe social e condicionada à função de cada qual<br />
na sociedade. Havia uma distinção eclesiástica, uma distinção<br />
aristocrática e uma burguesa. É necessário não confundir<br />
a distinção segundo a concepção medieval da dos<br />
tempos modernos. No “Ancien Régime”, por exemplo, a<br />
distinção eclesiástica era ter o cabelo empoado, usar lencinho<br />
e uma série de atitudes congêneres. Já o espelho<br />
da distinção eclesiástica medieval pode ser visto nas esculturas<br />
de bispos nos portais das catedrais: homens eretos,<br />
de porte firme, olhar profundo e simplicidade de maneiras,<br />
mas, ao mesmo tempo, com uma racionalidade e<br />
uma nobreza extraordinárias; verdadeiros pastores de almas,<br />
guias, príncipes na ordem do espírito, sem preocupação<br />
de caráter mundano. O nobre tinha uma distinção<br />
guerreira, porque a classe aristocrática era a classe militar.<br />
Devia ser um batalhador corajoso, de peito aberto,<br />
olhar inflamado, atitude decidida. A distinção plebéia,<br />
no fim da Idade Média, era a do burguês: sério, calmo,<br />
bonachão, pensativo, de aspecto grave, colocado atrás de<br />
uma verdadeira tribuna que era seu balcão.<br />
São três estilos de vida, três funções diferentes na sociedade,<br />
dando origem a três tipos distintos. Eram pessoas<br />
profundamente enriquecidas em sua dignidade pessoal,<br />
que encarnavam e personificavam suas posições. É<br />
uma das mais profundas razões da força e solidez das instituições<br />
medievais.<br />
❖<br />
25
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
O “LEGIONÁRIO”,<br />
arma de batalha pela Igreja<br />
D<br />
urante duas décadas, o “Legionário” foi para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> excelente tribuna de defesa<br />
dos princípios católicos e valioso instrumento de ação apostólica. Numa conferência<br />
para jovens alunos, abaixo transcrita, ele descreve como idealizou as modificações<br />
necessárias para o jornal atingir esse objetivo.<br />
Ia dar um balanço [da situação]<br />
em que então me encontrava,<br />
com referência às possibilidades<br />
de desenvolver um apostolado<br />
frutuoso. Quais eram [os fa-<br />
tores] positivos e quais os negativos.<br />
Como estava o projeto de Ordem de<br />
Cavalaria, que era o centro de tudo.<br />
Era o centro de tudo, não como um<br />
fim em si, mas como instrumento mais<br />
idôneo e eficaz para conseguir o que<br />
eu queria: a Contra-Revolução¹.<br />
O primeiro desses meios era o<br />
“Legionário”. Podia ser considerado<br />
debaixo de dois pontos de vista. Em<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, à esquerda de Dom Duarte Lepoldo e Silva, e o primeiro grupo de redatores do “Legionário”<br />
26
primeiro lugar, como publicação. Em<br />
segundo lugar, como meio de recrutamento<br />
de elementos para o nosso<br />
grupo.<br />
Mudança no “Legionário”,<br />
inspirada em jornal<br />
francês<br />
Vamos tratar do “Legionário”, que<br />
era o que publicávamos naquele tempo,<br />
e que portanto tem mais relação<br />
com a história desse tempo. Era um<br />
jornal a respeito de cuja influência<br />
ou maneira de ação eu tive muitos<br />
esclarecimentos analisando um jornal<br />
chamado “Sept”, quinzenário francês<br />
mais ou menos com tantas páginas<br />
quanto o “Legionário”.<br />
Era organizado de um modo muito<br />
vivo, com uma paginação muito<br />
atraente, tratando de temas muito<br />
atuais. Por causa disso, apesar de ser<br />
um simples jornalzinho, com poucas<br />
páginas — não era revista, circulava<br />
na França e na Bélgica daquele tempo,<br />
e nem me lembro bem se o jornal<br />
era francês ou belga — mas com garra!<br />
Intervinha nos acontecimentos,<br />
influenciando. Numa palavra, tratava<br />
de tudo quanto havia de mais candente<br />
e delicado.<br />
Até então, o “Legionário” tinha<br />
uma certa tendência para se dirigir<br />
ao grande público, no interesse de<br />
conquistá-lo. Era escrito, em parte,<br />
para converter para a religião católica<br />
aqueles que não eram católicos,<br />
em parte para afervorar e orientar os<br />
que já eram católicos. Lendo o jornal<br />
“Sept”, compreendi que isso estava<br />
errado, pois um jornal de pequeno<br />
formato ou de pequeno tamanho,<br />
ou devia dirigir-se para um público<br />
especial, influente e não pequeno,<br />
e através desse público influenciar<br />
todo o conjunto, ou não adiantaria<br />
para nada.<br />
O “Legionário”, então, deixou de<br />
ser um jornal feito para converter os<br />
não-católicos, e passou a um jornal<br />
Inspirando-se no<br />
jornal francês “Sept”,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> resolveu<br />
dar ao “Legionário”<br />
um feitio novo,<br />
visando formar a<br />
mentalidade dos que<br />
atuavam no<br />
Movimento Católico<br />
destinado a orientar<br />
os católicos. E não<br />
quaisquer católicos<br />
em geral, mas os do<br />
Movimento Católico.<br />
O Movimento<br />
Católico<br />
O Movimento Católico<br />
era constituído naquele tempo<br />
pelos católicos mais fervorosos,<br />
que iam sempre à Missa aos domingos,<br />
e que em geral pertenciam a associações<br />
religiosas. Chamava-se movimento,<br />
porque era um conjunto de<br />
pessoas que dedicava uma parte de<br />
seu tempo, ou todo o seu tempo, a<br />
favorecer por sua atuação a Igreja<br />
Católica, a expansão da Fé. Tinha<br />
um número muito grande de pessoas.<br />
O resultado de minha eleição, em<br />
1934, exprimia bem isso. Fui eleito<br />
por essa gente. Eram muitas pessoas,<br />
muito unidas, dirigidas por um<br />
clero ortodoxo e muito coeso, um<br />
episcopado evidentemente muito católico<br />
e firme, e um Arcebispo que<br />
dirigia com energia, em cujo brasão<br />
estava este lema: “Ipse firmitas et autoritas<br />
mea” (Minha firmeza e minha<br />
autoridade é o próprio Cristo). E<br />
mandava!... Dom Duarte mantinha<br />
tudo isso coeso.<br />
E eu entendi bem que, agindo sobre<br />
esse público, e orientando-o, teríamos<br />
uma possibilidade de influenciar<br />
o conjunto dos acontecimentos<br />
no Brasil. Transformei, então, o “Legionário”<br />
num órgão especializado<br />
para o Movimento Católico. Não tinha<br />
por fim ajudar os católicos a<br />
converter não-católicos, mas formar<br />
sua mentalidade.<br />
Objetivo: formar a<br />
mentalidade dos católicos<br />
Quem tomasse outras revistas católicas<br />
e as folheasse, veria que tratavam<br />
mais ou menos de tudo: uma<br />
notazinha sobre missões no Tocan-<br />
27
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Deputado mais votado na<br />
eleição de 1934, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
compreendeu que uma<br />
importante atuação sobre o<br />
público católico que o elegeu<br />
seria o modo ideal de<br />
influenciar o conjunto dos<br />
acontecimentos no Brasil<br />
tins; outra informando que morreu<br />
um Bispo em Estocolmo; mais adiante,<br />
uma notícia de que foi lançada<br />
uma missão nova entre os esquimós<br />
e que os primeiros foram batizados,<br />
etc. Coisas apreciáveis... mas com isso<br />
não se formava a mentalidade de<br />
uma pessoa.<br />
A formação da mentalidade comportava,<br />
na nossa concepção, algumas<br />
características. Aqui no Brasil,<br />
em geral, dá-se um fato que eu costumo<br />
explicar da seguinte maneira:<br />
os outros povos crêem na verdade da<br />
Religião Católica, quando são tais; o<br />
brasileiro não crê, ele sabe que a Religião<br />
Católica é verdadeira. Ele crê,<br />
porque pesca no ar. Intui. É muito<br />
raro ver-se um brasileiro dar uma argumentação<br />
contra a Igreja Católica.<br />
Se a vida dele não é compatível<br />
com a Fé, e não quer emendá-la,<br />
abandona a Religião Católica. Quando<br />
pensa em converter-se, não vai<br />
refletir para escolher qual a religião<br />
verdadeira, pois já sabe que é a católica.<br />
De maneira que, quando ele<br />
volta, regressa ao Catolicismo. Fé,<br />
graças a Nossa Senhora, naquele tempo<br />
ainda era muito estável, entre os<br />
católicos que pertenciam ao Movimento<br />
Católico.<br />
Nós não tratávamos de afervorar<br />
um indivíduo sob esse ponto de vista,<br />
mas tínhamos a idéia de que o modo<br />
pelo qual um indivíduo podia ser extraviado<br />
da doutrina católica era no<br />
que dizia respeito à apreciação da<br />
sociedade temporal, das finalidades,<br />
da razão de ser desta. E, neste ponto,<br />
mesmo os católicos mais fervorosos<br />
tinham idéias esquisitas.<br />
Era preciso fazer lentamente uma<br />
apreciação dos acontecimentos que<br />
fosse mudando as mentalidades numa<br />
determinada direção. Mas, que<br />
acontecimentos? E em que direção?<br />
A política brasileira, considerada<br />
de um modo geral, tinha muito pouco<br />
conteúdo ideológico. Mesmo as<br />
correntes representantes de algo que<br />
era possível defender ideologicamente,<br />
não tinham vontade de fazer uma<br />
defesa ideológica. O brasileiro tem<br />
preguiça de raciocínios de caráter<br />
ideológico.<br />
Por outro lado, nosso povo, que é<br />
tão cordato e tão amigo de ser amigo,<br />
é muito sensível. Qualquer ataque ao<br />
interesse político de alguém, deixálo-ia<br />
num ressentimento único. Isso,<br />
para o “Legionário”, seria muito incômodo,<br />
muito desagradável.<br />
28
O jeito era preocuparmo-nos preponderantemente<br />
com a política exterior.<br />
E com o motivo de cuidar da<br />
política dos outros países, formar as<br />
mentalidades dos leitores sobre as<br />
grandes idéias que havia fora do Brasil.<br />
Através dos fatos, criar<br />
interesse pela doutrina<br />
Uma nota muito acentuada do<br />
“Legionário” passou a ser, então, a tomada<br />
de posição a respeito de questões<br />
internacionais. Não estavam incluídas<br />
as relações do Brasil com outros<br />
países — que eram muito tranqüilas<br />
e sem interesse —, mas os<br />
problemas internos das outras nações,<br />
sobretudo na Europa.<br />
Por que Europa? Porque pela sua<br />
cultura multissecular, pela inteligência<br />
e pela instrução de seus filhos,<br />
mesmo de partidos que execrávamos,<br />
davam um tom à vida política que<br />
era de pensamento e de ideologia.<br />
Esse tom ideológico, nos interessava<br />
comentar.<br />
No centro da perspectiva do mundo<br />
contemporâneo estava a Revolução<br />
Francesa, exatamente o fato que<br />
divide a História, dando fim aos Tempos<br />
Modernos e começo aos Contemporâneos.<br />
Quem prestar atenção, perceberá<br />
que muito disso ainda existe entre nós.<br />
Por exemplo, vêem bem a importância<br />
da Reunião de Recortes² na nossa<br />
vida. Se ela fosse extinta, ficaríamos<br />
reduzidos a um terço ou à metade<br />
de nossa vitalidade.<br />
Um modo de ensinar poderia ser:<br />
fazer artigos abstratos ou teóricos.<br />
Um outro modo seria noticiar os fatos<br />
e analisá-los e, a propósito destes,<br />
dar doutrina. Interessar na doutrina<br />
através dos fatos. Foi o sistema<br />
adotado pelo “Legionário”, e que<br />
até hoje é o nosso sistema de raciocinar.<br />
É um dos fatores que<br />
torna a Reunião de<br />
Recortes tão importante,<br />
e tão<br />
característica.<br />
Coerência na idéias<br />
Uma outra característica do “Legionário”,<br />
sob esse ponto de vista, era<br />
a seguinte:<br />
As idéias do tempo faziam com<br />
que a disputa ideológica fosse compreendida<br />
apenas no que diz respeito<br />
a assuntos políticos, sociais e econômicos.<br />
O “Legionário” abriu muito<br />
mais o leque. Demonstrou que esses<br />
assuntos e essas preferências religioso-filosóficos,<br />
sócio-político-econômicos<br />
podem manifestar-se em tudo:<br />
na forma de um lustre, na cor de um<br />
vaso, no modo de ser de um tecido,<br />
nos desenhos ou ornatos de um prato<br />
ou de um copo, no sabor de uma<br />
comida ou de uma bebida... Tudo é<br />
portador de uma preferência nesses<br />
assuntos.<br />
A par de sua incansável atuação pessoal<br />
como líder do Movimento Católico, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> procurava atingir pelas páginas do<br />
“Legionário” o melhor do seu público,<br />
promovendo o que ele chamava de uma<br />
“contra-revolução cultural”<br />
Acima, ele (o segundo da esquerda para<br />
a direita) durante a Semana da<br />
Adoração Perpétua, no Rio; ao lado (no<br />
centro da foto), numa homenagem do<br />
“Legionário” aos congregados marianos<br />
29
GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />
Portanto, o que cumpre fazer, mais<br />
do que tudo, é saber mostrar que não<br />
tem uma opção inteiramente correta<br />
quem é, digamos, pró-medievalista<br />
(no sentido amplo em que tomo a<br />
palavra) em matéria sócio-políticoeconômica,<br />
e, ao mesmo tempo, detesta<br />
o gótico e gosta da arte moderna.<br />
Não pode ser. Este está em contradição<br />
consigo. O homem não tem<br />
o direito de ser contraditório, mas<br />
deve ser coerente.<br />
De maneira que o “Legionário”<br />
fazia aquilo que, hoje, se chamaria<br />
uma contra-revolução cultural. Por<br />
revolução cultural se entende exatamente<br />
isto: uma revolução que não é<br />
apenas política, mas que envolve uma<br />
total transformação em toda a mentalidade,<br />
modos de ser e ambiente<br />
que cerca o homem.<br />
A contra-revolução cultural é a<br />
contra-revolução sofística mais a contra-revolução<br />
tendencial; somadas,<br />
elas constituem um todo. Então, nesta<br />
amplitude temos a noção, a idéia<br />
de que a Revolução e a Contra-Revolução<br />
abrangem todo o pensamento<br />
humano. E que, ou um homem é totalmente<br />
uma coisa, ou ele não é nada.<br />
Tudo quanto há de bom na<br />
sociedade humana vem da<br />
Igreja Católica<br />
Outra coisa que era muito marcada<br />
na orientação do “Legionário” era<br />
a seguinte: tudo quanto há de bom<br />
na sociedade humana vem da Igreja<br />
Católica.<br />
É um erro condenado pela Igreja<br />
a afirmação de que, sem apoio da religião,<br />
o homem nada faz de bom. O<br />
pecado original atingiu, vulnerou a<br />
fundo a natureza humana, mas não<br />
tão fundo que um homem com as<br />
suas simples forças naturais não possa<br />
praticar várias ações boas, independente<br />
da religião. Mas, sem auxílio<br />
da graça, o homem não pode se<br />
manter, estável e duravelmente, na<br />
prática dos dez Mandamentos.<br />
Segundo ponto: se, numa determinada<br />
sociedade se torna habitual<br />
que a população viole um ou mais<br />
Mandamentos, esta sociedade está<br />
caminhando para o seu declínio. Não<br />
há remédio. A ordem humana perfeita<br />
decorre do cumprimento dos<br />
Mandamentos. E se estes não foram<br />
cumpridos, esta vai água abaixo. É<br />
uma questão de mais ou menos tempo...<br />
Terceiro: pelo contrário, se a sociedade<br />
humana toda — salvo as exceções<br />
baixas, que sempre há —<br />
cumprir estavelmente os dez Mandamentos,<br />
a sociedade sobe a um<br />
píncaro maravilhoso. Ainda que seja<br />
um pequeno país sem recursos econômicos<br />
e pobre, se o seu povo tiver<br />
muita Fé, sobe, na ordem temporal,<br />
ao mais alto grau que lhe é possível.<br />
Mais ainda: quanto mais uma sociedade<br />
subir na ordem temporal —<br />
pela cultura, pela riqueza ou por qualquer<br />
outro fator — tanto mais lhe será<br />
necessário cumprir bem os Mandamentos<br />
e amar a Deus. Porque essas<br />
qualidades naturais, se não forem<br />
encaminhadas pela virtude e pela prática<br />
habitual dos dez Mandamentos<br />
— prática, tanto melhor quanto mais<br />
fervorosa — os próprios fatores de<br />
grandeza precipitarão sua queda.<br />
Quer dizer, a podridão intelectual dos<br />
países muito intelectualizados, quando<br />
deixam a Fé, é tão alucinante e<br />
tremenda, que tende com todo o seu<br />
peso para levá-los a desatinos.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (de pé, no centro) e Da. Lucilia (sentada à direita de Dom Duarte), por<br />
ocasião da inauguração das novas máquinas do "Legionário"<br />
1) Este termo deve ser entendido no<br />
sentido empregado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />
“Revolução e Contra-Revolução”.<br />
2) Reunião semanal, baseada em notícias<br />
recortadas de jornais, na qual <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> analisava os acontecimentos<br />
mundiais à luz dos ensinamentos do<br />
Magistério da Igreja.<br />
30
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Maravilha, sonho, realidade!<br />
Ohomem de hoje sofre uma verdadeira caçada<br />
das novidades. Estas o perseguem, a bem dizer,<br />
o dia inteiro. Não há lugar onde ele entre e não<br />
esteja exposto a ouvir o rádio ou a televisão relatando os<br />
últimos acontecimentos. Em geral, neste mundo caótico<br />
em que vivemos, sucederam calamidades e misérias,<br />
tristezas e provações, e sobrevêm sustos.<br />
Porém, se o homem é tão perseguido pelo noticiário,<br />
cumpre notar que a recíproca é igualmente verdadeira:<br />
ele vai atrás das novidades, das quais tem uma fome inextinguível.<br />
E ainda que essas novidades o apedrejem, está<br />
disposto a receber as pedras, se estas lhe proporcionam<br />
as sensações mais recentes de seu cotidiano.<br />
O homem se torna, assim, inadequado para conhecer<br />
as verdadeiras novidades, aquelas que não são os fatos a<br />
espoucarem daqui, de lá e de acolá, não são nada da humanidade<br />
que passa, mas os sentidos, as correlações e<br />
os reflexos novos que partem dos grandes valores — es-<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
pirituais e materiais — que o passado nos legou e que tocam<br />
nossas almas.<br />
Exemplifico.<br />
Tive em mãos um lindo álbum de vitrais e, folheandoo,<br />
veio-me ao espírito uma consideração nova para mim.<br />
Olhando esses vitrais, por certo mais velhos do que eu,<br />
analisando-os com admiração, surgiu-me a pergunta:<br />
Esses vitrais são tão, tão belos. É bem certo que o<br />
Paraíso terreno tinha coisas mais belas do que eles?<br />
Uma pessoa que se imagina num lugar amplo, aos pés<br />
de um extraordinário vitral no momento em que torrencialmente<br />
atravessam por ele todos os raios de sol; em<br />
que o olhar dela é inundado por esses raios, mas a pessoa<br />
percebe no corpo inteiro que aquelas refulgências do<br />
sol estão vindo, estão ferindo os vitrais e a enchem de luz<br />
e de colorido, como se ela entrasse num mar luminoso e<br />
policromado — nesse momento, é bem certo que a pessoa<br />
não veja algo de tão belo quanto havia no Paraíso<br />
terrestre?<br />
Costuma-se entender que o Paraíso terrestre continha<br />
tudo quanto há de mais bonito e excelso na criação temporal.<br />
E, grosso modo falando, é verdade. Em confronto<br />
com a realidade deste nosso chão de exílio, a superioridade<br />
do Paraíso é incomparável. Mas, se formos conhecer<br />
alguns pormenores, determinados aspectos desta<br />
Terra, será que não existe aqui beleza ainda maior do<br />
que há no Paraíso?<br />
E não será que, por esta forma, nós conhecemos melhor<br />
um verdadeiro paraíso de nossas almas que existe<br />
neste vale de lágrimas, e que é a Santa Igreja de Deus?<br />
Se nós a sabemos ver, se nós a sabemos amar, se nós a<br />
sabemos sentir, se sabemos admirar tudo quanto ela engendrou<br />
de magnificências e riquezas ao longo de sua<br />
História , como os vitrais por exemplo, não é ela o nosso<br />
paraíso neste mundo?<br />
Imerso nessas reflexões, continuando a folhear o álbum,<br />
lembrei-me de dois personagens que a tradição nos<br />
autoriza a supor que ainda vivem em algum lugar misterioso<br />
da Terra, provavelmente no próprio Paraíso terrestre:<br />
Santo Elias e Santo Enoc.<br />
E então pensei: No ambiente onde eles passam os milênios,<br />
se for mesmo um lugar paradisíaco, haverá incontáveis<br />
maravilhas. Mas, na linha de minhas anteriores<br />
considerações, por um dom que lhes terá concedido<br />
a Providência, eles podem apreciar esses aspectos da<br />
Terra que sejam ainda mais belos do que aqueles do<br />
Éden criado por Deus para o homem inocente.<br />
Portanto, eles podem se encantar com os vitrais espalhados<br />
pelas igrejas de todo o orbe, conhecendo-os melhor<br />
que qualquer homem. Nas horas em que as igrejas<br />
estão vazias, nos momentos em que não há ninguém pa-<br />
32
a admirar os seus vitrais, Santo Elias e Santo Enoc os<br />
estarão contemplando.<br />
Mais ainda. Eles sabem de todos os vitrais que foram<br />
destruídos, como eram e como seriam se ainda hoje resplandecessem.<br />
Eles sabem de todos os vitrais que foram<br />
planejados, mas que por miséria humana ou por qualquer<br />
vicissitude não puderam ser elaborados.<br />
Eles têm conhecimento de quando e como nasceu o intenso<br />
desejo do maravilhoso na alma humana, um anseio<br />
que a preencheu de tal forma que ela teve a necessidade<br />
de extravasá-lo, de expressá-lo, e, à força de excogitar<br />
o meio de fazê-lo, tateando, de repente empreendeu a<br />
magnífica epopéia dos vitrais.<br />
Eles conhecem a história do senso artístico de que resultou<br />
o aparecimento das inexcedíveis policromias que<br />
guarnecem as aberturas em ogivas, em arcos, em rosáceas,<br />
das catedrais, igrejas, abadias, mosteiros e capelas<br />
semeados pela Terra.<br />
Eles se enlevaram diante da alma de um vitraleiro humilde<br />
e despretensioso que, na sua modesta oficina de<br />
artífice, desejou a cor perfeita para sua obra, pôs-se a<br />
fabricá-la e quando finalmente a elaborou, pensou: “A<br />
minha vida está explicada. Eu trouxe ao conhecimento<br />
dos homens, eu trouxe à piedade da Igreja, eu trouxe à<br />
glória de Santo tal, ou de tal mistério da vida de Nosso<br />
Senhor, de Maria Santíssima, essa nova cor. Ó, sol! tu<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Vitrais da Catedral de Léon (Espanha) e Reims (França).<br />
Acima: Santo Elias<br />
que me antecedeste na Criação, tu também<br />
foste feito para que um dos teus<br />
raios passasse sempre por este vitral. E<br />
enquanto tu fores sol e o mundo for mundo,<br />
um dos teus raios atravessará o azul<br />
com que eu sonhei, vai iluminar o chão<br />
de granito e arrebatará alguma alma<br />
fiel que o veja. Minha vida está justificada”.<br />
Santo Elias e Santo Enoc, ao verem e<br />
admirarem esses vitrais, compreendem<br />
que eles de algum modo resplandecem,<br />
à maneira dos inefáveis esplendores do<br />
Padre Eterno, matrizes de todas as cintilações,<br />
luminosidades e coloridos postos<br />
na Criação. Não será temeridade supor<br />
que os Anjos desçam do Céu para<br />
acompanhar e instruir a esses grandes<br />
personagens bíblicos na sua peregrinação<br />
pelo universo dos vitrais, colocando<br />
diante dos olhos deles a fabulosa<br />
coleção dos que existiram, existem e<br />
poderiam ter existido.<br />
E os dois, reconhecidos, entoam a<br />
Nossa Senhora um cântico de louvor,<br />
uma homenagem de todos os vitrais, de<br />
cada fragmento de vitral, de cada cor,<br />
de cada figura, de cada rosácea... Eles,<br />
pelo seu espírito, são o sol que atravessa<br />
esses vitrais. E Nossa Senhora os fita<br />
comprazida, e pensa: “Meus filhos e<br />
meus vitrais!”.<br />
Nestas condições, também é de se supor<br />
que eles concebam para si a idéia de<br />
que, no fim dos tempos, quando Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo vier em sua pompa<br />
e majestade, seguido de Maria Santíssima,<br />
de todos os Anjos e Santos do Céu,<br />
para julgar os vivos e os mortos, esse espetáculo<br />
de conjunto nos dê uma impressão<br />
à maneira de um fabuloso vitral<br />
que preenche, de ponta a ponta, o horizonte.<br />
Quando, no dizer da Escritura, o céu<br />
estiver enrolado como um pergaminho,<br />
tudo tiver acabado e a magnitude de<br />
Deus aparecer, será talvez este o<br />
“supremo” vitral que marca para sempre<br />
o começo de uma era onde não há<br />
mais história, mas apenas eternidade.<br />
Os vitrais, que maravilha! Os vitrais,<br />
que sonho! Os vitrais, que realidade! ❖<br />
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SOBERANA INTERCESSORA<br />
No alto do Calvário, Maria teve presente a vida de todos os homens que passaram e<br />
passariam sobre a Terra, até o fim dos tempos. Ela conheceu as virtudes de cada<br />
um, assim como seus lamentáveis pecados. E a cada um amou, por todos rezou, e<br />
para todos alcançou o perdão de seu Divino Filho, que acabara de ser imolado na Cruz.<br />
Mais do que nunca, com o Redentor exânime em seus braços, Ela era a nossa soberana intercessora,<br />
a incansável medianeira que jamais abandonou e jamais abandonará qualquer<br />
homem.<br />
Santíssimo Cristo da Misericórdia, Sevilha