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Revista Dr Plinio 61

Abril de 2003

Abril de 2003

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Nos<br />

passos<br />

da<br />

Paixão


Nossa alma não pode deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo e de<br />

gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Santa Ceia. Somente uma inteligência<br />

divina poderia excogitar a Sagrada Eucaristia, e imaginar esse Sacramento santíssimo<br />

como um meio de Jesus permanecer presente neste mundo, depois de sua gloriosa<br />

Ascensão. Mais ainda: de estabelecer um convívio íntimo e inexcedível, todos os dias, com<br />

todos os homens que O queiram receber nos seus corações.<br />

Sim, só mesmo Deus poderia realizar esse mistério tão maravilhoso, essa obra de misericórdia<br />

prodigiosa para com suas humanas criaturas.<br />

“Santa Ceia”, por Fra Angélico


Sumário<br />

Na capa, imagem<br />

de Jesus Nazareno,<br />

venerada na Igreja<br />

de La Merced,<br />

Cidade de Guatemala<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

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024<strong>61</strong>-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

Preços da assinatura anual<br />

Abril de 2003<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

12<br />

16<br />

20<br />

26<br />

31<br />

36<br />

EDITORIAL<br />

No Getsêmani<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Ainda tão jovem, e já conhecido líder católico<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Não durmamos enquanto se renova a Paixão!<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

O mundo aos pés do Trono da Verdade<br />

DONA LUCILIA<br />

Reencontro transbordante de afeto<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

“Passio Christi, conforta me”<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Personalização dos cargos<br />

e a dignidade na Idade Média<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

O “Legionário”, arma de batalha pela Igreja<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Maravilha, sonho, realidade!<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Soberana intercessora<br />

3


Editorial<br />

No GetsêmaniEditorial<br />

Poucos homens tiveram uma vida tão movimentada<br />

como a de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Quem se debruce<br />

sobre os registros de sua biografia constata<br />

que seu dia-a-dia se constituía de uma incessante<br />

atividade, enfrentando com energia e serenidade as dificuldades<br />

esperadas ou imprevistas próprias a quem<br />

dedicou sua vida a combater pela Santa Igreja. Batalhador<br />

incansável, eis aí um dos traços mais notáveis da<br />

existência desse líder católico, cuja única ambição era<br />

servir à Igreja, em favor da qual colheu muitas vitórias.<br />

Vitórias, não se conquista sem luta. E luta, não se<br />

trava sem sacrifício. Assim, toda a longa trajetória terrena<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ficou marcada pelos tons violáceos<br />

do sofrimento. Sofrimentos para esmagar os obstáculos<br />

ao seu propósito de nunca macular a própria alma<br />

com o pecado; para conservar a serenidade ante a incompreensão<br />

e ingratidão até de seus mais próximos<br />

colaboradores; para enfrentar com ânimo as terríveis<br />

provações espirituais que assaltam toda alma posta<br />

nas vias da santidade. Por cima de todos esses padecimentos,<br />

o esforço contínuo para manter desfraldado<br />

e bem alto o estandarte da luta contra os inimigos da<br />

Igreja.<br />

Somente um homem dotado de profundo espírito<br />

sobrenatural e de ardente piedade dispõe de forças suficientes<br />

para suportar sem desfalecimento as inúmeras<br />

situações dramáticas decorrentes desses combates<br />

interiores e exteriores.Uma das fontes onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

hauria essas forças era a meditação a respeito da Paixão<br />

e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tocava-lhe<br />

a alma de modo especial a inabalável decisão do Homem-Deus,<br />

de aceitar o oceano de dores que via aproximarem-se.<br />

“Nosso Senhor é o modelo infinitamente perfeito<br />

do cavaleiro. Agonia, em grego, significa luta. O Divi-<br />

no Salvador tomou a imagem da dor e da morte, procurou<br />

primeiro afastá-la e depois enfrentou-a. Há uma<br />

semelhança entre a agonia de Nosso Senhor com a<br />

vigília de armas dos cavaleiros”, comentou ele.<br />

Foi com essa firmeza, haurida no exemplo de nosso<br />

Redentor, e com toda a paz de alma que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

enfrentou suas dores: “Quando posto diante de todo<br />

o sofrimento que O esperava, Jesus disse: ‘Se for possível,<br />

afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa<br />

vontade e a não a minha’. Deve ser esta nossa posição<br />

diante de nossos sofrimentos particulares. Assim<br />

como veio um Anjo consolar Nosso Senhor, assim<br />

também a graça nos consolará nos sofrimentos”.<br />

Procurando forças no episódio do Getsêmani, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> as buscava também n’Aquela que foi a estrela<br />

que iluminou sua vida. Esta disposição de alma, ele<br />

a exprime numa meditação o sobre o Primeiro Mistério<br />

Doloroso do Rosário:<br />

“Renunciastes a tudo, neste passo, e até à companhia<br />

física e sensível de vossa Mãe. Entretanto, tivestes<br />

uma consolação que não Vos abandonou: a certeza<br />

de que, em espírito, Ela esteve conVosco, sofrendo<br />

absolutamente todas as vossas dores, com um<br />

amor e uma intensidade de participação que nenhuma<br />

linguagem humana é capaz de exprimir. [...] Desejo<br />

pedir-Vos uma graça. É possível que me reserveis<br />

ao longo da vida tormentos inexprimíveis. É possível<br />

que durante estes tormentos não tenha de Maria<br />

Santíssima nenhuma consolação sensível. Eu Vos<br />

peço, entretanto, que não permitais que nesses momentos<br />

se apague de meu espírito a convicção de<br />

que em toda a realidade Ela está ao lado de mim, como<br />

esteve ao lado de Vós. Pois isto só, quanto conforta,<br />

Vós mesmo o sabeis, Divino Jesus.”*<br />

* Catolicismo, 10/1951.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Ainda tão jovem,<br />

e já conhecido líder católico<br />

Em abril de 1932, foi divulgado na imprensa<br />

brasileira um manifesto assinado<br />

por muitos católicos de renome nos<br />

ambientes políticos e sociais de nosso País. Intitulado<br />

“Apelo aos Católicos”, exortava todos estes<br />

a se unirem em torno dos princípios ensinados<br />

pela Igreja, no interesse maior da Religião.<br />

A repercussão foi grande. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, com apenas<br />

23 anos de idade, advogado recém- formado,<br />

já era conhecido como um dos principais expoentes<br />

do laicato católico. Assim, foi ele procurado<br />

pelos jornalistas para comentar o documento.<br />

Na declaração prestada pelo jovem militante<br />

católico ao jornal carioca Diário Nacional, de 27<br />

de abril, vemos duas regras de ação às quais manteve-se<br />

fiel durante toda a vida: a cautela em<br />

pronunciar-se sobre temas delicados do interesse<br />

da Igreja, e a colocação do ideal religioso acima<br />

de quaisquer outras questões.<br />

Eis a matéria publicada:<br />

Procuramos ontem o <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira,<br />

Redator-chefe de “O Século”, membro do Centro<br />

D. Vital e um dos chefes da Ação Católica em<br />

São Paulo. O <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira, que encontramos<br />

em seu escritório na rua Líbero Badaró,<br />

manteve a respeito a maior reserva, furtando-se<br />

a fazer declarações. Finalmente, dada a nossa insistência,<br />

consentiu s.s. em nos adiantar o seguinte:<br />

“O último apelo aos católicos revestiu-se de<br />

grande significação. A elevada esfera doutrinária e<br />

religiosa em que se manteve soube colocar nos seus<br />

devidos termos a adesão dos católicos em relação<br />

aos problemas políticos e sociais que presentemente<br />

agitam a Nação. (...) Não se apressariam, portanto,<br />

os católicos, de agir. E quando o fizerem, farão<br />

com um elevado critério de idealismo e moderação,<br />

e com a preterição absoluta de seus interesses<br />

pessoais, em benefício da vitória de sua causa. (...)<br />

Fora e acima dos partidos, eis a senha que, no momento<br />

oportuno, quando os fatos nos chamarem à<br />

ação, saberemos adotar e impor” — concluiu o<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira.<br />

Com apenas 23 anos,<br />

advogado recémformado,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> já se<br />

destacava como um dos<br />

principais expoentes do<br />

laicato católico brasileiro.<br />

Na foto, ele é o segundo<br />

da esquerda para a<br />

direita, durante a reunião<br />

de fundação da Liga<br />

Eleitoral Católica,<br />

presidida por Dom Duarte<br />

Leopoldo e Silva,<br />

Arcebispo de São Paulo<br />

(ao centro).<br />

5


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

No Horto das Oliveiras, Jesus recomendou aos<br />

seus apóstolos que orassem e vigiassem.<br />

Também nós devemos vigiar e orar com a Igreja,<br />

quando esta sofre as investidas de seus<br />

inimigos. (Nesta página e na seguinte, imagens<br />

do “Passo da Oração no Horto”, Sevilha)<br />

6


Não durmamos enquanto se<br />

renova a Paixão!<br />

E<br />

m suas invectivas ao povo israelita, os profetas do Antigo Testamento eram instrumentos<br />

da misericórdia de Deus: seu objetivo era chamar o povo à conversão. De<br />

igual forma procederam os Papas ao longo dos séculos. Já as admoestações de <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> tinham amiúde por objetivo despertar os católicos para suas obrigações, como se pode<br />

ver neste artigo.<br />

Há dois funestíssimos erros, que não raramente<br />

lavram entre os católicos brasileiros e que,<br />

com extraordinária oportunidade, devem ser<br />

desmascarados na Semana Santa. Como freqüentemente<br />

ocorre, esses erros não provêm propriamente de premissas<br />

falsas, mas de premissas incompletas. É uma visão parcial<br />

e estreita das coisas, que os provoca. E só uma meditação<br />

acurada, feita à luz de considerações naturais ou de<br />

argumentos inspirados em motivos sobrenaturais, pode<br />

pôr à luz o mau germe que neles se oculta.<br />

Ineficiência da Igreja diante da crise?<br />

O primeiro desses erros consiste em acoimar de ineficiente<br />

a ação da Igreja, para a solução da crise contemporânea.<br />

[...] E [dizem] que, portanto, é preciso apelar<br />

para uma outra organização, que, ela sim, salvará a civilização<br />

católica.<br />

Argumentemos. E argumentemos só com a infalível<br />

autoridade dos Pontífices. Porque se para algum católico<br />

um argumento inspirado nas palavras dos Papas não for<br />

suficientemente convincente, é melhor que esse católico<br />

estude bem o seu Catecismo, antes de tentar “salvar a civilização”.<br />

Diz o Santo Padre Leão XIII, e, depois dele, todos os<br />

Pontífices o têm repetido, [...] que essa crise moral gerou<br />

crises econômicas, sociais ou políticas. E só quando ela<br />

for resolvida, serão resolvidos os problemas relacionados<br />

com as finanças, a organização política e a vida social dos<br />

povos contemporâneos.<br />

7


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Por outro lado, a solução desse problema moral só pode<br />

estar na ação da Igreja, porque só o Catolicismo, armado<br />

de seus recursos sobrenaturais e naturais, tem o dom<br />

maravilhoso de produzir nas almas os frutos de virtude<br />

indispensáveis para que floresça a civilização católica.<br />

O que acabamos de dizer é diretamente extraído das<br />

Encíclicas. Basta abri-las, para encontrar o que afirmamos.<br />

Como conseqüência, de duas uma: ou os Papas estão<br />

errados, ou devemos reconhecer que só o Catolicismo<br />

salvará o mundo da crise em que está mergulhado.<br />

Portanto, é inútil discutir se, no país A ou no país B, os<br />

católicos agiram ou não agiram bem. [...]<br />

Se é verdade que só a Igreja pode remediar os males<br />

contemporâneos, é só nas fileiras da Igreja que devemos<br />

procurar lutar pela eliminação desses males. Pouco nos<br />

importa que outros não cumpram o seu dever. Cumpramos<br />

o nosso. E, depois de termos feito todo o possível —<br />

a palavra “todo” significa tudo, mas absolutamente tudo,<br />

e não apenas “um pouco” ou “muito” — resignemo-nos<br />

diante da avalanche que vem. Porque, ainda que pereçam<br />

o Brasil e o mundo inteiro, ainda que a própria Igreja seja<br />

devastada pelos lobos da heresia, ela é imortal. Nadará<br />

sobre as águas revoltas do dilúvio. E é de dentro de seu<br />

seio sagrado que sairão depois da tempestade, como Noé<br />

da Arca, os homens que hão de fundar a civilização de<br />

amanhã.<br />

Duas lições, para duas mentalidades erradas<br />

Mas é aí que não querem chegar certos católicos. Como<br />

os [apóstolos antes de Pentecostes], eles só compreendem<br />

Cristo sobre um trono de glória. Eles só Lhe são fiéis<br />

nos dias parecidos com o Domingo de Ramos, quando a<br />

multidão O aclama e cobre o seu caminho com suas vestes.<br />

Porque, para eles, Cristo deve ser um Rei terreno. Deve<br />

dominar o mundo constantemente. E se, por algum tempo,<br />

a impiedade dos homens O reduzirem de Rei a Crucificado,<br />

de Soberano a Vítima, não mais querem saber d’Ele. [...]<br />

No entanto, Cristo quis passar por todos os opróbrios,<br />

todos os vexames, todas as humilhações, mostrando que<br />

a História da Igreja também teria seus Calvários, suas<br />

humilhações, suas derrotas. E que muito mais meritória<br />

era e é a fidelidade no Gólgota do que no Tabor.<br />

Foi para ensinar a gente assim que Nosso Senhor se<br />

submeteu a todas as humilhações, no Calvário. Entretanto,<br />

foi para ensinar gente diferente que Ele quis a glória<br />

do Domingo de Ramos.<br />

“Entrada de Jesus em<br />

Jerusalém”, por Giotto<br />

— Se desejou os<br />

opróbrios do Calvário<br />

pela Redenção do<br />

mundo, Nosso Senhor<br />

quis também a glória do<br />

Domingo de Ramos<br />

para lição daqueles cuja<br />

mentalidade errada e<br />

comodista os leva a<br />

achar absolutamente<br />

natural que a Igreja seja<br />

constantemente<br />

humilhada e perseguida<br />

8


Devemos lutar pela Igreja até a<br />

extenuação de nossos últimos<br />

recursos de energia e inteligência; se,<br />

apesar de tudo, ela continuar a ser<br />

oprimida, soframos com a Igreja, como<br />

São João aos pés da Cruz<br />

Passo da Paixão, Sevilha.<br />

Há gente de uma mentalidade detestável, que acha<br />

absolutamente natural que Cristo sofra, que a Igreja<br />

seja vexada, humilhada, perseguida. Gente comodista,<br />

“cujus Deus venter est” — “que têm por Deus o seu<br />

próprio ventre”, e que pensa que, como a Igreja deve<br />

imitar a Cristo, é natural que todos os [seus inimigos]<br />

se atirem contra ela e a façam sofrer. É a Paixão de<br />

Cristo que se repete, dizem eles. E enquanto essa Paixão<br />

se repete, eles levam sua vida farta e cômoda, nas<br />

orgias, nas imundícies, na exacerbação de todos os<br />

sentidos e na prática de todos os pecados.<br />

Para gente como esta é que foi feito o látego com<br />

que foram expulsos os vendilhões do Templo.<br />

Devemos estar sempre com a Igreja<br />

Não é verdade que devamos cruzar os braços ante<br />

as investidas dos inimigos da Igreja. Não é verdade<br />

que devamos dormir enquanto se renova a Paixão. O<br />

próprio Cristo recomendou que seus Apóstolos orassem<br />

e vigiassem. E se devemos aceitar os sofrimentos<br />

da Igreja com a resignação com que Nossa Senhora<br />

aceitou os padecimentos de seu Filho, não é menos<br />

exato que será um motivo de [reprovação] para nós,<br />

se nos portarmos ante as dores do Salvador com a sonolência,<br />

a indiferença e a covardia de discípulos infiéis.<br />

A verdade é esta: devemos estar sempre com a Igreja,<br />

“porque só ela tem palavras de vida eterna”. Se ela é<br />

atacada, lutemos por ela. Mas lutemos como mártires,<br />

até a efusão de nosso sangue, até o emprego de nosso<br />

último recurso de energia e de inteligência. Se, apesar<br />

disto tudo, ela continuar a ser oprimida, soframos com<br />

ela, como São João Evangelista aos pés da Cruz. E estejamos<br />

certos de que, neste mundo ou no outro, Jesus<br />

misericordioso não nos negará o esplêndido prêmio<br />

de assistirmos à sua glória divina e suprema.<br />

(Excertos do “Legionário”, nº 236, de 21/3/1937.<br />

Título e subtítulos nossos.)<br />

9


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

O mundo aos pés<br />

do Trono da Verdade<br />

J<br />

á tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão,<br />

pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo<br />

para o “Legionário” em 1946.<br />

As notícias provenientes da<br />

Cidade do Vaticano informam<br />

que o Corpo Diplomático<br />

junto à Santa Sé fez uma démarche<br />

coletiva para obter da Secretaria<br />

do Estado o privilégio de participar<br />

de Consistório em que vão ser<br />

concedidos os chapéus vermelhos aos<br />

Cardeais recentemente nomeados.<br />

A atitude dos diplomatas não terá<br />

sido tomada sem o consentimento,<br />

pelo menos tácito, dos respectivos governos.<br />

Assim, pode-se considerar<br />

que quase todas as nações do mundo<br />

quiseram expressamente estar presentes<br />

àquele ato, manifestando de<br />

modo delicado e nobre, seu agradecimento<br />

pela honra que o Papa Pio<br />

XII lhes concedeu, com a internacionalização<br />

ainda mais ampla do Sacro<br />

Colégio.<br />

Por sua vez, este gesto vem demonstrar<br />

o alto grau de importância<br />

moral e política que todos os governos<br />

do mundo reconhecem ao Papado.<br />

Em toda a longa e gloriosa história<br />

do Vaticano, durante a qual tantas<br />

cerimônias brilhantes se desenrolaram<br />

sob o teto de Pedro, em nenhuma<br />

talvez, a universalidade da Igreja<br />

se tenha patenteado de modo mais<br />

evidente. Aos pés do Trono da Verdade,<br />

estarão os embaixadores de quase<br />

todas as nações do mundo. E, nos<br />

lugares reservados ao Sacro Colégio,<br />

figurarão lado a lado Cardeais europeus,<br />

americanos, asiáticos e africanos.<br />

Nunca se viu na História da Igreja,<br />

que a Púrpura cardinalícia cobrisse<br />

uma tão grande porção da terra.<br />

Dir-se-ia que a sombra do báculo de<br />

Pedro cresceu, que entre suas extremidades<br />

que vão de mar a mar, de<br />

monte a monte, dos Alpes ao Himalaia,<br />

fica o mundo inteiro. O quadro<br />

é de uma grandeza apocalíptica. É<br />

impossível não pensar nas lágrimas,<br />

no suor e no sangue, nas mortificações,<br />

nas preces, na paciência e no<br />

heroísmo por meio do qual a Igreja<br />

ajudada por Deus chegou a tamanha<br />

glória. Quando se pensa nos primórdios<br />

do Catolicismo, comparado por<br />

seu Divino Fundador com o pequenino<br />

grão de mostarda, e se vê hoje<br />

que a copa da árvore é maior que os<br />

mais extensos desertos e as mais vastas<br />

nações, são todas as fibras católicas<br />

que vibram e se dilatam nos nossos<br />

corações.<br />

Do esplendor desta magnifica realidade<br />

se desprende uma voz, porque<br />

os fatos falam. E esta voz, eco de outra<br />

Voz, nos diz com firmeza mais do<br />

que nunca: non praevalebunt! Do que<br />

adiantou a [tantos inimigos] investir<br />

contra a Igreja com uma fúria desabrida<br />

e ferina? Do que adiantou [...]<br />

procurar infiltrar-se como um cupim<br />

silencioso e cheio de lepra, nas próprias<br />

fileiras dos católicos? Non praevalebunt.<br />

Não prevaleceram.<br />

Está dito, porém, que as alegrias<br />

neste vale de lágrimas nunca serão<br />

completas. Uma sombra passa diante<br />

de nossos olhos.<br />

Se é tal, tão universal, tão incontrastável<br />

o prestígio da Igreja, como<br />

explicar que ela esteja à margem da<br />

Organização das Nações Unidas? Como<br />

explicar que, precisamente neste<br />

fastígio de sua universalidade, ela seja<br />

mantida à margem da universal<br />

organização dos povos? Se a circunda<br />

uma auréola de prestígio, é impossível<br />

não reconhecer que é no exílio,<br />

é fora de seu trono natural, que é a<br />

presidência das nações cristãs, é fora<br />

de tudo isto, que nasce em torno dela<br />

este arrebol de glória. Extraordinária<br />

expressão de sua força, que brilha<br />

até mesmo no isolamento. Mas<br />

motivo não menos extraordinário para<br />

que temamos por esta humanidade<br />

que vê a Luz, mas que não se utiliza<br />

dela para “iluminar a casa inteira”,<br />

para iluminar e dirigir a sociedade<br />

universal das nações. [...]<br />

10


Como de direito, o máximo de nosso<br />

filial afeto voa aos pés do Santo Padre.<br />

Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia<br />

ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia (Onde<br />

está Cristo, aí está Deus; onde esta<br />

a Igreja, aí está Cristo; onde está<br />

Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos<br />

a Deus em Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro<br />

Deus. Só nos unimos a Jesus<br />

Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica,<br />

Romana que é o próprio Corpo<br />

Místico do Senhor. E só estaremos<br />

unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

mediante uma união sobrenaturalmente<br />

forte, união de vida e de morte,<br />

à Cátedra de São Pedro. Onde está<br />

Pedro, aí está a Igreja de Deus.<br />

Dizem as notícias telegráficas que<br />

o Santo Padre pronunciará nesta ocasião<br />

um discurso de grande importância,<br />

seguido poucos dias depois<br />

de mais outro, igualmente importante.<br />

Aguardamos sua palavra com amor<br />

e confiança. Amor e confiança que,<br />

como de costume, se traduzem num<br />

inabalável propósito de adesão e submissão.<br />

Não há melhor meio de testemunhar<br />

amor ao Papa, senão obedecendo-lhe.<br />

E obedecer significa fazer<br />

aquilo com que estamos de acordo, e<br />

aquilo que por nossa própria vontade<br />

faríamos; significa aceitar como<br />

verdadeiro o que ele ensina e nós vemos<br />

que é verdadeiro, e o que ele<br />

ensina e a nossos olhos mortais pareceria<br />

fraco e errôneo.<br />

(Excertos de artigo publicado no<br />

“Legionário”, nº 706, de 17/2/1946.<br />

Título nosso.)<br />

Só estaremos unidos a Nosso Senhor por uma união de vida e de morte à Cátedra de São Pedro: onde está<br />

Pedro, aí está a Igreja de Deus (Imagem de São Pedro, basílica do Vaticano)


DONA LUCILIA<br />

Reencontro transbordante de afeto<br />

Aviagem de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> à Europa, em 1950, caminhava<br />

para seu termo. Dirigira-se ele para a<br />

Cidade Eterna, onde o aguardava o mais importante<br />

de seus compromissos nessa passagem pelo Velho<br />

Continente.<br />

Audiência com o Santo Padre<br />

Dona Lucilia e <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 50<br />

Conhecedora da profunda devoção de seu filho ao Papado,<br />

Dª Lucilia rezara confiantemente ao Sagrado Coração<br />

de Jesus para que ele obtivesse uma audiência com<br />

o Sumo Pontífice, no que foi atendida. Ao ler a extensa<br />

carta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre esse encontro, seu coração maternal<br />

exultou, e à medida que corria os olhos pela narração,<br />

ela o acompanhava em espírito, meditando nas<br />

conseqüências do fato. Em ação de graças, mandou celebrar<br />

uma Santa Missa, além de elevar redobradas preces<br />

a Nosso Senhor, a fim de Lhe exprimir seu reconhecimento<br />

pelo favor alcançado.<br />

Eis a missiva de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />

Roma, 13-VI<br />

Mãezinha queridíssima do coração<br />

Querido Papai<br />

Escrevo-lhes a 1,30 da noite, depois de ter tomado apontamentos<br />

(jornais falados, diríamos na gíria do 6º andar)<br />

desde 11 horas da noite até agora. Estou com todas<br />

as minhas orações para fazer. Tenho tido um<br />

mundo de contatos, tipo marquês Pallavicino,<br />

Príncipe Lancelotti, Príncipe Ruffo, Príncipe Chigi,<br />

Embaixador da Espanha junto ao Vaticano,<br />

etc. Mas o mais formidável foi o Papa. É favor<br />

entregar esta carta para o pessoal do 6º andar ver<br />

logo. Estávamos [um prelado amigo] e eu preparando<br />

o longo relatório para o Papa, e íamos<br />

telegrafar para aí pedindo orações, quando veio<br />

— com uma rapidez inusitada — a notícia de<br />

que o Papa nos receberia em audiência especial<br />

no dia seguinte.<br />

Corre-corre tremendo para aprontar o relatório,<br />

que ficou concluído à ultimíssima hora, datilografado<br />

com o auxílio do Adolphinho. Fomos<br />

[o prelado], eu, e um Padre cubano, ex-colega<br />

[do primeiro] que servia de secretário a este. Atravessamos<br />

salões e salões, [o prelado] de grande<br />

gala, eu de roupa azul clara (....), o cubano com<br />

uma capa soleníssima. Na passagem, os Suíços e<br />

os “gendarmes” pontifícios apresentavam armas.<br />

Os salões cheios de diplomatas e de peregrinos.<br />

Afinal chegamos ao salão do Papa.<br />

A audiência fora pedida em nome [do prelado]<br />

e meu. [Ele] entrou primeiro, e teve uma conversa<br />

de uns 10 minutos, ou pouco menos. Em seguida<br />

entrei eu e o Cubano. O Papa foi muito<br />

amável comigo. Pedi bênção especial para a Senhora<br />

e Papai, e tinha intenção de pedir para a<br />

família toda, pelo que traduzindo mal disse “mes<br />

parents”, o que quer dizer propriamente só os pais.<br />

Pedi também bênção especial para meus com-<br />

12


panheiros de trabalho. O Papa concedeu tudo muito afetuosamente,<br />

e benzeu os objetos de piedade que lhe levei. [O<br />

prelado amigo] disse ao Papa que eu tenho uma mãe que<br />

me quer um bem louco, e pediu mais uma bênção para a<br />

Sra. Como ousa [ele] mentir ao Papa por esta forma? (...)<br />

Agora quanto ao regresso:<br />

1 - Não sei como podem ter achado que eu estaria de<br />

volta dia 10. Só poderei sair daqui por volta de 15 ou 16.<br />

Quero visitar Veneza, depois ir à Suíça, onde tenho gente<br />

com quem falar. Da Suíça, França, onde pretendo tomar<br />

avião para Lourdes, e se possível interrupção em Portugal<br />

para tentar falar com a Irmã Lúcia de Fátima.<br />

2 - Assim, correndo muito, estarei de volta em fins de<br />

junho, como disse no telegrama. “Cela vá de soi” que estarei<br />

presente para o casamento de Maria Alice.<br />

3 - Quando eu marcar o regresso, telegrafarei. (...)<br />

4 - Terei que ficar no Rio 24 horas. Assim, chegarei a São<br />

Paulo no dia seguinte ao de minha chegada ao Rio.<br />

5- Ficarei no Glória. Quero que uma hora depois de o<br />

avião ter chegado Mamãe me telefone.<br />

6 - Logo depois de ter falado com Mamãe e Papai,<br />

falarei também com Rosée e Maria Alice, se estas puderem<br />

estar perto. (...)<br />

7 - Logo depois de ter falado com Papai e Mamãe, (...)<br />

quero falar com o pessoal do 6º ao menos os que estiverem<br />

disponíveis a esta hora.<br />

8 - Daqui por diante, escrever-me ao Regina Hotel, Paris.<br />

Para Papai um longo e afetuoso abraço. Para Mamãe,<br />

milhões e milhões de beijos. A ambos peço a bênção,<br />

<strong>Plinio</strong>.<br />

. . . . . . . . . . . . . . . .<br />

Meus carissimos do 6º. andar<br />

Como vêem, esta carta é tanto para vocês quanto para<br />

Papai e Mamãe. Acrescento que por deferência especial de<br />

Mons. Montini¹, assisti ontem a canonização de São Vicente<br />

Strambi na tribuna dos diplomatas, ao lado do embaixador<br />

e secretário do embaixador do Egipto! Sei que gostariam<br />

de mais notícias sobre a audiência. Esperem jornal falado.<br />

Mil e mil abraços,<br />

<strong>Plinio</strong><br />

Saudades e ansiosa espera<br />

Esses pequenos e grandes fatos alimentaram, após a<br />

volta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, as abençoadas “prosinhas” noturnas<br />

de Dª Lucilia com ele. A cerimônia de canonização de<br />

São Vicente Strambi, por exemplo, terá sido, sem dúvida,<br />

tema de algumas delas.<br />

Com efeito, Dª Lucilia, que tanto amava o protocolo e<br />

o cerimonial, ter-se-á encantado ao ouvir, dos lábios de<br />

seu próprio filho, a descrição de uma das mais belas pompas<br />

da Cristandade.<br />

Bênção papal concedida por Pio XII<br />

a Da. Lucilia e <strong>Dr</strong>. João Paulo<br />

Quanto e com que brilho marcaram a História as gloriosas<br />

vitórias dos guerreiros romanos! Entretanto, as celebrações<br />

destas nada foram em comparação às preparadas<br />

pela Santa Igreja para elevar à honra dos altares e<br />

louvar seus heróis. Estes últimos terão seus feitos lembrados<br />

até o fim do mundo, em todos os recantos da Terra.<br />

Para o augusto ato da canonização de São Vicente<br />

Strambi, compareceram as mais insignes autoridades da<br />

Igreja presentes em Roma, todo o corpo diplomático<br />

acreditado no Vaticano, além de grande número de personalidades<br />

eminentes da nobreza romana, do mundo da<br />

cultura e da política. Por assim dizer, estava representado<br />

simbolicamente, na Basílica de São Pedro, o que de<br />

mais seleto há nas sociedades espiritual e temporal. Tudo<br />

para glorificar a heroicidade das virtudes de uma pessoa<br />

que talvez tenha levado uma vida obscura e apagada, entre<br />

as paredes de um mosteiro.<br />

Esses e outros pensamentos terão passado pela mente<br />

de Dª Lucilia, enquanto aguardava a volta de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

para se deliciar com os pormenores do evento.<br />

Embora não tivesse a certeza de que uma carta ainda<br />

o fosse encontrar em Paris — para onde ele seguiria de<br />

Roma —, e apesar de já estar se ocupando muito com os<br />

preparativos para o casamento de sua neta, não quis deixar<br />

de enviar-lhe um comentário a propósito da audiência<br />

dele com o Sumo Pontífice:<br />

13


DONA LUCILIA<br />

São Paulo 21-VI-950<br />

Filho querido de meu coração!<br />

Segue mais esta, “pour un en cas”², como dizem os<br />

franceses teus amigos, pois asseguram-me os do sexto andar<br />

e teu pai, que ao chegar esta a Paris, já estarás de volta,<br />

ou melhor, em casa. Será possível?<br />

Estou escrevendo com uma pena de bico torcido, e muito<br />

tarde, e já cansada, ainda vou começar as orações, por<br />

quem está tão longe! Não sei dizer-te quanto alegrou-me<br />

tua visita ao Papa! Pedi tanto a Deus para que te desse esta<br />

graça, pelo que vou mandar dizer uma missa em ação de<br />

graças, por isso, e pelo bom resultado de tua viagem.<br />

Até quando, querido? As saudades crescem, e são tantas,<br />

tantas,.... agora, na hora do nosso rosário, andando no<br />

salão!... Venha logo!<br />

Bênçãos, beijos e abraços de tua mãe extremosa,<br />

Lucilia<br />

Reze por tua sobrinha e por nós, em Lourdes e Fátima!<br />

De fato <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> rezaria em Fátima, no local onde<br />

Nossa Senhora aparecera aos três pastorinhos, Lúcia,<br />

Francisco e Jacinta. Da primitiva azinheira, do cimo da<br />

qual a Santíssima Virgem lhes falara, nada mais restava,<br />

pois a devoção do povo a fizera desaparecer em pouco<br />

tempo, levando cada um seu pedacinho de lembrança...<br />

Apenas uma singela capelinha, que a Mãe do Céu mandara<br />

construir, recordava o ponto exato das aparições na<br />

Cova da Iria.<br />

“Filhão, graças a Deus você é o<br />

mesmo!”<br />

Às dez horas da manhã do dia 29 de junho, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

embarcou em Paris com destino ao Brasil. Em suas cartas<br />

não definira a data de seu regresso, com o objetivo de<br />

poupar a Dª Lucilia “a angústia da travessia”. No entanto,<br />

logo ao chegar ao Rio, pediu que fosse avisada, a fim<br />

de com ela poder falar pelo telefone. Após dois longos<br />

meses de ausência, contados dia por dia, minuto a minuto,<br />

pôde ela ter uma longa prosinha com seu “queridão”.<br />

Na manhã seguinte, com o intuito de deixar tudo pronto<br />

para receber seu filho, Dª Lucilia não seguiu a reco-<br />

Aspecto da cerimônia de canonização de São Vicente Strambi, onde se pode ver<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na tribuna do Corpo Diplomático<br />

14


lhos”, não se fazia ilusão alguma acerca da natureza humana.<br />

Ela jamais faria o seguinte raciocínio: “<strong>Plinio</strong> é muito<br />

bom filho, católico exemplar e, portanto, na Europa não<br />

corre risco algum! Posso ficar inteiramente tranqüila”.<br />

Seu modo de ver a realidade era bem diverso, e ela deve<br />

ter pensado o contrário: “É bem verdade que ele é um bom<br />

filho, mas, como todo homem, pode cair. A Europa é um<br />

continente de sedução e de prazeres. Ele vai com razoável<br />

quantia de dinheiro para gastar, levará uma vida bem diferente<br />

da que tem no Brasil. Irá a grandes restaurantes,<br />

estará em hotéis excelentes, de vida social intensa, freqüentará<br />

a sociedade. O que passará por seus olhos e por sua<br />

imaginação durante a viagem? Essa velha Europa, eu e ele<br />

a admiramos tanto, mas... devolver-me-á ela meu filho tal<br />

qual ele é, ou com o espírito desfavoravelmente marcado?”<br />

Duas vistas do hall do apartamento de Da. Lucilia<br />

mendação médica de repousar até mais tarde.<br />

Mandou preparar um farto lanche a ser servido<br />

quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> chegasse, pois certamente viria<br />

cansado da viagem e precisaria recompor as<br />

forças.<br />

Uma vez tudo pronto, foi para o hall do apartamento<br />

e sentou-se à espera dele. Imenso foi o júbilo<br />

que lhe inundou a alma ao vê-lo assomar à porta.<br />

Abraços, beijos e bênçãos foram as primeiras manifestações<br />

de gáudio. Dona Lucilia, sempre idêntica a si própria,<br />

não poderia deixar de aliar, aos extremos de alegria,<br />

uma infatigável vigilância. Após os afetuosíssimos cumprimentos,<br />

afastou-se um pouco de seu filho e o fitou atentamente,<br />

com seu tranqüilo, sereno e penetrante olhar. <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> não entendeu logo qual a intenção de sua mãe, mas,<br />

na expectativa, nada lhe disse. Ao cabo de alguns instantes<br />

de observação, concluiu ela, contente:<br />

— Filhão, graças a Deus você é sempre o mesmo!<br />

Em seguida, levou todos à sala de jantar, onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

contou as primeiras impressões de viagem, enquanto<br />

tomava o saboroso lanche.<br />

Essa tocante atitude de Dª Lucilia revela como a virtuosa<br />

preocupação pela perseverança de seu filho não só não<br />

esmorecia com o passar dos anos, mas crescia tanto quanto<br />

a estima que lhe devotava. Apesar de conhecê-lo bastante<br />

bem e ter plena certeza de ser ele “o melhor dos fi-<br />

Como vimos, essas apreensões, acumuladas nos dois<br />

meses de ausência, foram logo dissipadas após os primeiros<br />

instantes de análise, feita, aliás, muito mais com o coração<br />

do que com a vista.<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra<br />

“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />

1) Mons. João Batista Montini, futuro Papa Paulo VI, na época<br />

Substituto da Secretaria de Estado de S. S. Pio XII.<br />

2) “Por via das dúvidas”.<br />

15


DR. PLINIO COMENTA...<br />

“PASSIO CHRISTI,<br />

CONFORTA ME”


E<br />

m outubro de 1944, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou a comentar, em sua coluna<br />

do “Legionário”, o plano pastoral do novo Arcebispo de São Paulo,<br />

destacando como dos mais importantes o tópico sobre a caridade.<br />

“Atrair todos os elementos<br />

supracitados do Clero e da<br />

Ação Católica para a obra<br />

social e multifária da caridade cristã,<br />

em socorro de todas as necessidades<br />

físicas ou morais do nosso próximo,<br />

sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade<br />

ou de classes”. É este<br />

um dos itens mais importantes do<br />

plano de ação do novo Arcebispo de<br />

São Paulo.<br />

Humildade e altivez cristãs<br />

“Socorro das necessidades físicas<br />

ou espirituais”: é bem este o conceito<br />

das obras de misericórdia que Nosso<br />

Senhor ensinou ao mundo, e que<br />

a Santa Igreja vem realizando ininterruptamente<br />

através dos séculos. Todo<br />

o espírito da Igreja é feito de contrastes<br />

fecundos que se resolvem em<br />

uma divina harmonia. Durante a Idade<br />

Média, viajava pela Europa um potentado<br />

muçulmano, feito prisioneiro<br />

pelos guerreiros feudais, defensores<br />

da Fé. Encontraram-no um dia muito<br />

pensativo, e aos que lhe indagaram<br />

o motivo, respondeu: “Não posso<br />

compreender como constroem monumentos<br />

tão altivos, esses homens tão<br />

humildes”.<br />

Almas humildes, construtoras de<br />

obras divinamente altivas, eis bem<br />

genuinamente representadas nesse<br />

traço as almas resgatadas pelo Precioso<br />

Sangue de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo. Aparentemente, entre a humildade<br />

e a altivez, há uma contradição.<br />

O mundo pagão não compreendia<br />

essa contradição, e uma das acusações<br />

que os romanos faziam aos mártires<br />

era precisamente que sua Religião<br />

glorificava a baixeza. Eles não sabiam<br />

que admirável sementeira de almas<br />

altivas eram aquelas escuras e misteriosas<br />

catacumbas, em que patrícios<br />

e escravos, grandes e pequenos, se<br />

confundiam em torno dos altares,<br />

aprendendo de Jesus Cristo o segredo<br />

da humildade e da altivez de que<br />

Ele nos deu em sua vida terrena tão<br />

adoráveis exemplos.<br />

“Christianus alter Christus” (o cristão<br />

é um outro Cristo), e a humildade<br />

do cristão, ou a altivez do cristão,<br />

não é senão um reflexo da altivez e<br />

da humildade de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo.<br />

Doçura e combatividade<br />

Outro contraste que o mundo não<br />

compreende, e que entretanto é tão<br />

harmônico e fecundo quanto o da altivez<br />

e da humildade do verdadeiro<br />

cristão, é o da doçura e da combatividade.<br />

Se o árabe de que falamos<br />

observasse a vida dos Santos, esbarraria<br />

por certo neste mistério, e diria<br />

deles: “Não posso compreender como<br />

almas tão pacíficas são tão belicosas,<br />

como almas tão belicosas podem<br />

ser tão pacíficas”. É que no catolicismo<br />

tudo é amor, e mesmo quando,<br />

por necessidade, e imitando a Nosso<br />

Senhor, alguém empunha o látego<br />

que há de fustigar os erros do século,<br />

fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fálo<br />

com amor. A combatividade cristã<br />

tem o sentido exclusivo de legítima<br />

defesa. Não há para ela outra possibilidade<br />

de ser legítima. É sempre o<br />

amor de alguma coisa ofendida que<br />

move o cristão ao combate. Todo combate<br />

é tanto mais vigoroso quanto<br />

mais alto for o amor com que se combate.<br />

E, por isso mesmo, não há, no<br />

católico, combatividade maior do que<br />

aquela com que ele luta pela defesa<br />

da Igreja ultrajada, negada, calcada<br />

aos pés. Por que combate ele? Para<br />

defender os direitos das almas que se<br />

quer arrancar à Igreja. Para manter<br />

livres e desobstruídas as portas de<br />

acesso que devem permitir aos eleitos<br />

de Deus a aproximação de sua<br />

Igreja. Para abater a insolência da impiedade,<br />

e para exaltar a Santa Madre<br />

Igreja. Para essas coisas é que se deve<br />

bater o católico. E, quando esgotados<br />

um a um, pacientemente, irremediavelmente,<br />

todos os meios pacíficos,<br />

o católico se ergue com o valor<br />

de um novo Macabeu, incendido em<br />

zelo pela Esposa de Cristo, ele bem<br />

pode dizer que em toda a sua combatividade<br />

só há uma coisa: amor.<br />

Abandonemos esse quadro e, em<br />

vez de olharmos para o guerreiro cristão,<br />

olhemos para a irmã de caridade.<br />

Ela que docemente se aproxima<br />

do leito em que agoniza um doente<br />

repugnante. É para ela um desconhecido,<br />

em que ela vê, entretanto,<br />

um membro do Corpo Místico de<br />

Cristo, que é a Santa Igreja Católica.<br />

E, por isso, aproxima-se dele cheia<br />

de sobrenatural ternura, desata os panos<br />

que ocultam a hediondez de suas<br />

chagas e recebe em pleno rosto, mais<br />

forte do que nunca, o odor terrível das<br />

carnes em putrefação. No rosto da<br />

irmã de caridade a impassibilidade é<br />

completa. Ela olha para as chagas como<br />

se fossem pérolas, respira o odor<br />

da podridão como se fosse um perfume.<br />

Sabe Deus que terríveis repugnâncias<br />

ela está esmagando em seu<br />

interior, e que luta tenaz, violenta,<br />

titânica ela tem de desenvolver para<br />

não abandonar o lugar de sacrifício<br />

17


DR. PLINIO COMENTA...<br />

em que Nosso Senhor Jesus Cristo a<br />

quer! Quanto amor! dirão os que<br />

atentarem apenas para a placidez de<br />

seu semblante e de seus gestos. Quanta<br />

combatividade! dirão os que forem<br />

mais penetrantes e desvendarem o tumulto<br />

da luta interior diante da qual<br />

a Religião não cede. Quanto amor<br />

nessa combatividade! Quanta combatividade<br />

nesse amor!<br />

Combatividade e amor, se o mundo<br />

contemporâneo pudesse compre-<br />

É na meditação<br />

do que sofreu o<br />

“Homem das Dores”<br />

que nosso coração<br />

se dilata na<br />

comiseração para<br />

com o próximo,<br />

na prática da<br />

verdadeira caridade<br />

(“Cristo coroado de<br />

espinhos”, imagens de<br />

freira e paciente —<br />

Hôtel-Dieu, de<br />

Beaune, França)<br />

ender como se harmonizam essas<br />

virtudes, como é preciso amar até o<br />

que se combate... e combater com as<br />

duas mãos até o que, por vezes, se<br />

ama ternamente por mais de um título<br />

justo, como estaria diversa a face<br />

da terra!<br />

É para as santas pugnas da caridade<br />

cristã, pugnas interiores que aumentem<br />

em nós os mananciais de<br />

amor, pugnas exteriores, vitórias tanto<br />

mais jubilosas quanto mais pacíficas,<br />

porque Cristo é o Rei da Paz,<br />

mas em todo caso vitórias que não<br />

desdouram com a energia e não perdem<br />

seu lustre se a luta aberta tiver<br />

sido o único meio para as conseguir<br />

— é para as santas pugnas da caridade<br />

cristã que nosso Arcebispo nos<br />

conclama.<br />

Olhando de longe para seu rebanho<br />

espiritual, Dom Carlos Carmelo<br />

de Vasconcelos Mota tem palavras<br />

de ternura e compaixão que são um<br />

eco da exclamação divina: “Misereor<br />

super turbam” — tenho pena desta<br />

multidão. E com que razão! Pio XII,<br />

na alocução magistral que recentemente<br />

publicamos, diz que é preciso<br />

ter um heroísmo comparável ao dos<br />

mártires, para praticar com fidelidade<br />

e esmero a Religião em nossos<br />

dias. Assim, pois, as grandes cidades<br />

modernas são verdadeiros lugares de<br />

luta e tormenta para os “christifideles”<br />

(fiéis cristãos) de nossos dias.<br />

No luxo dos salões aristocráticos, no<br />

conforto dos ambientes burgueses,<br />

na calma das classes pequeno-burguesas,<br />

na simplicidade das camadas<br />

operárias, na crua indigência das classes<br />

pobres, em tudo isso se ocultam<br />

hoje terríveis tentações, cuja vitória<br />

custa e custa muito, custa sofrimento


espiritual que é o sangue de alma. É<br />

preciso correr, voar em auxílio dessas<br />

almas que sofrem para se manterem<br />

fiéis a Nosso Senhor ou para<br />

se aproximarem d’Ele. Toda demora<br />

é uma derrota, nesta tarefa, e toda<br />

negligência um crime. Por isso, Dom<br />

Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota<br />

conclama uma verdadeira cruzada<br />

para a salvação de tantas almas aflitas<br />

em nossos dias.<br />

Socorrer sobretudo os<br />

inocentes que sofrem<br />

Mas isso não basta. Não basta fazer<br />

aceitar às almas o jugo duro e<br />

suave da moral cristã. É preciso ainda<br />

consolar os que sofrem misérias<br />

físicas de toda a ordem. Para que<br />

relembrar o quadro doloroso que temos<br />

sempre diante dos olhos, os hospitais<br />

repletos que rejeitam doentes<br />

por falta de espaço, as pessoas doentes<br />

que definham por falta de dinheiro<br />

para a aquisição de remédios caríssimos,<br />

as pessoas sãs que vão imergindo<br />

lentamente no estado de doença<br />

por excesso de trabalho, necessário<br />

para a manutenção da família, ou<br />

por falta de alimentação? Por que<br />

relembrar com terror as inúmeras pessoas<br />

que, sem Fé nem horizontes espirituais,<br />

arrastam na sombra de suas<br />

casas ou premidas nas paredes dos<br />

hospitais uma vida de desespero e<br />

de revolta? Tudo isso corta por<br />

demais o coração, e tudo isso<br />

ainda não é tudo. Existe o<br />

problema da infância, da<br />

infância inocente, da infância<br />

promissora, da<br />

infância que o ambiente<br />

deletério das<br />

grandes cidades<br />

torna tão cedo miserável e pecadora.<br />

Como bem acentua nosso novo Arcebispo,<br />

muito já se tem feito entre<br />

nós nesse sentido. A Cidade dos Menores<br />

da Liga das Senhoras Católicas<br />

é simplesmente uma maravilha.<br />

Mas... quanto ainda há por fazer!<br />

E se de todos temos pena, que especialíssimo<br />

lugar ocupa em nosso<br />

coração a infância, que Jesus Cristo<br />

tão entranhadamente amou!<br />

É necessária a caridade<br />

cristã<br />

É preciso muita caridade. Mas as<br />

palavras de nosso Arcebispo são muito<br />

nítidas: do que precisamos é de<br />

caridade cristã, e não simplesmente<br />

de uma filantropia qualquer.<br />

Por quê? Simplesmente porque<br />

sem a Igreja de Jesus Cristo não há<br />

caridade verdadeira. Não negamos<br />

que possa haver almas que vivem fora<br />

da Igreja, em nossa civilização atual,<br />

e que fazem bem ao próximo. Elas<br />

possuíram a Fé, e essa Fé que perderam<br />

deixou nelas um vago perfume,<br />

como o que fica no vaso de que retiramos<br />

as rosas. São essas as palavras<br />

do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade<br />

ou é cristã ou não existe. [...]<br />

E, no catolicismo, qual o maior<br />

foco da caridade? A contemplação da<br />

Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

É na meditação minuciosa do que<br />

sofreu o “Homem das Dores”, é na<br />

rememoração afetuosa e constante<br />

daquele em quem “do alto da cabeça<br />

até a planta dos pés não havia um só<br />

lugar que fosse são”, é tendo diante<br />

dos nossos olhos dia e noite aquele<br />

que, sob a mão violenta de seus adversários,<br />

foi desfigurado a ponto de<br />

ser “um verme e não um homem, o<br />

opróbrio dos homens e o escárnio do<br />

povo”, que nosso coração se dilata para<br />

a comiseração para com os próximos.<br />

Revendo em todo o sofrimento<br />

um sofrimento do próprio Cristo, em<br />

toda a chaga, uma chaga de Cristo,<br />

remediando todo sofrimento, curando<br />

toda chaga como se debruçássemos<br />

nossa alma amorosa sobre tanta<br />

dor, como se aplicássemos com nossos<br />

próprios dedos à chaga de Cristo<br />

o bálsamo confortador, é com este<br />

meio que verdadeiramente teremos<br />

a virtude da caridade.<br />

Narra a História que antes de Cristo<br />

não havia hospitais nem instituições<br />

de caridade. Foi uma católica,<br />

Fabíola, quem fundou o primeiro hospital.<br />

De lá para cá, quantas obras de<br />

caridade se têm fundado! De onde<br />

nasceram? Das chagas santíssimas<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado<br />

na cruz. Foi da Paixão de Cristo<br />

que nasceu o reconforto de tantas<br />

criaturas sofredoras.<br />

Mas não é só. O melhor bálsamo<br />

para as dores humanas não é o remédio,<br />

é a compaixão. Compaixão, “com<br />

paixão”, é o sofrimento em união com<br />

o próximo, só porque o próximo sofre.<br />

É o reflexo dos sofrimentos alheios<br />

em nossa própria alma. Como fazer<br />

brotar do coração humano, tão frio,<br />

tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão?<br />

Pela meditação da Paixão de<br />

Cristo. As almas saturadas dessa meditação<br />

sabem verdadeiramente condoer-se<br />

do próximo. Só elas têm em<br />

seus gestos bastante ternura, em sua<br />

voz bastante sinceridade, em seu procedimento<br />

bastante discrição, para<br />

instilar na alma sofredora do próximo<br />

o remédio inigualável da compaixão.<br />

Se, da Paixão de Cristo, brota a<br />

misericórdia, brotam as obras de misericórdia,<br />

brota a consolação, que<br />

jaculatória mais adequada para todos<br />

os que se aprestam a atender à<br />

grande mobilização da misericórdia<br />

cristã que Dom Carlos Carmelo de<br />

Vasconcelos Mota promoverá, senão<br />

esta: “Passio Christi, conforta me”<br />

(Paixão de Cristo, confortai-me)?<br />

(Transcrito do “Legionário”,<br />

22/10/1944. Subtítulos nossos.)<br />

19


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Personalização dos cargos<br />

e a dignidade na Idade Média<br />

F<br />

azendo uma exposição sobre a personalização dos cargos públicos durante<br />

o período medieval, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não se contenta com a mera narração<br />

dos fatos, mas procura as razões mais profundas que moldaram as instituições<br />

dessa era histórica.<br />

Em direito podem-se distinguir duas espécies de<br />

pessoas jurídicas: as associações e as fundações.<br />

Associação é, pelo menos na prática, um conjunto de<br />

pessoas que são ou podem vir a ser, coletivamente, proprietárias<br />

de um determinado patrimônio. Seu direito de<br />

propriedade sobre esse patrimônio é tal que podem, em<br />

determinados condições, dissolver a sociedade por mútuo<br />

acordo, dividindo os bens entre si. Se quiserem, podem<br />

também fazer doação do patrimônio para outra sociedade.<br />

E se lhes aprouvesse, poderiam até queimá-lo.<br />

Ou seja, elas exercem sobre o patrimônio social a plenitude<br />

da propriedade.<br />

A configuração jurídica da fundação é diferente. Trata-se<br />

de um conjunto de bens, doados ou legados por um<br />

instituidor, acrescido muitas vezes por doações sucessivas,<br />

e que constituem um só patrimônio. Este patrimônio<br />

não pertence a ninguém. Há os beneficiários do patrimônio,<br />

as pessoas em vantagem das quais ele existe, e há os<br />

que o administram, mas como empregados, sem retirarem<br />

para si nenhuma vantagem pessoal.<br />

Concepção medieval do governo do<br />

Estado<br />

Pelo direito moderno, quem governa situa-se, em relação<br />

ao Estado, como o gestor de uma fundação em relação<br />

aos bens desta. O governante não tem o direito de<br />

usar ou de reger os negócios sociais em proveito próprio,<br />

mas apenas em benefício do Estado. Recebe um ordenado,<br />

como empregado, presta determinados serviços e se<br />

retira. Nada há que o ligue a este patrimônio por alguma<br />

espécie de propriedade. Isto se dá de alto a baixo na escala<br />

social: desde um rei ou um presidente da República,<br />

até um contínuo de repartição, em face do Estado todos<br />

estão, segundo o pensamento moderno, mais ou menos<br />

como os gerentes ou os empregados de uma fundação<br />

em face desta.<br />

20


A característica do direito medieval era inteiramente<br />

outra. O governador de um Estado, o senhor feudal, o<br />

dirigente da cidade, colocavam-se em face do bem público<br />

não como um simples terceiro, mas de maneira tal que<br />

houvesse um certo direito de propriedade sobre a função<br />

pública de que eram detentores. Não se tinha, portanto,<br />

a concepção de um Estado gerido à maneira de uma fundação,<br />

em relação à qual todos são terceiros. Mas ele era<br />

entendido como uma sociedade, na qual todos têm um<br />

tal ou qual direito de propriedade.<br />

Isto se dava, ora graças a um direito histórico; ora a<br />

grandes feitos, grandes habilidades, grande dedicação na<br />

defesa dos bens públicos; ou a qualquer outra razão pela<br />

qual um homem se afirma e sobrepuja os demais. Eram<br />

os que constituíam as famílias e os homens mais importantes<br />

e graduados. Eles dirigiam o Estado à maneira de<br />

co-proprietários. O rei ou o senhor feudal não eram simples<br />

titulares do cargo que ocupavam, mas sim os eminentes,<br />

dentre os inúmeros proprietários do reino ou do<br />

feudo. Os demais tinham um direito de propriedade<br />

menor. A idéia de tudo se considerar como propriedade<br />

era tal que, na casa real, até as menores funções eram<br />

consideradas como propriedade. Assim é que se chegou<br />

a referir-se em alguns documentos a determinada pessoa<br />

que “tinha por feudo a cozinha real”.<br />

O cartório, revivescência da<br />

propriedade dos cargos<br />

No direito brasileiro, temos uma pálida revivescência<br />

disso: os cartórios de notas. O tabelião não é propriamente<br />

um funcionário público, mas o proprietário do cartório.<br />

Ele presta determinado serviço ao público, credenciado<br />

pelo Estado; mas, sendo proprietário de seu cartório,<br />

sua posição é profundamente diferente da de um funcionário<br />

público, que não é o proprietário da repartição<br />

onde trabalha. Um secretário da Repartição de Águas e<br />

Esgotos, por exemplo, é apenas um funcionário que dirige<br />

uma máquina anônima.<br />

Como é hoje o tabelião para seu cartório, assim era o<br />

funcionário na concepção medieval. O reino poderia ser<br />

considerado como um grande cartório onde o rei seria o<br />

tabelião-mor; os nobres, oficiais graduados e co-participantes<br />

dos lucros; e por fim a plebe que também participaria<br />

desses lucros.<br />

Na Idade Média, os senhores e<br />

governantes tinham um<br />

certo direito de propriedade sobre a<br />

função pública de que eram<br />

detentores, devido aos<br />

seus grandes feitos, grande<br />

dedicação, ou qualquer outra razão<br />

que os distinguia dos demais.<br />

(À esquerda, busto-relicário<br />

de Carlos Magno; na página anterior,<br />

um bastão de comando ducal)<br />

21


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

No Estado moderno, monárquico ou republicano, impera<br />

o anonimato, a pura repartição pública. Ele é completamente<br />

despersonalizado, impessoal.<br />

Na Idade Média, quando se fala de Estado, fala-se de<br />

dinastia. E quando se fala de dinastia, fala-se do rei que<br />

personifica a dinastia e o Estado. Em relação aos dias de<br />

hoje, não poderíamos dizer o mesmo. Tomemos ao vivo<br />

um exemplo. Ninguém poderia dizer que a rainha Elisabeth<br />

é a Inglaterra. Ela é uma inglesa bem situada, de<br />

muito prestígio social, simpática, esperta, como uma<br />

magnífica atriz num grande palco, vivendo como se fosse<br />

rainha, usando jóias dignas de uma antiga rainha. Mas,<br />

na ordem concreta dos fatos, a Inglaterra praticamente<br />

não tem rainha.<br />

Na Idade Média, pelo contrário, o Estado monárquico<br />

era personificado pelo rei e pelos que participavam do<br />

poder real, era uma instituição profundamente pessoal.<br />

Poder-se-ia dizer algo de análogo a respeito de vários dos<br />

Estados não-monárquicos da Idade Média.<br />

Participação na propriedade das<br />

funções públicas<br />

Como dissemos, o rei era a personificação do Estado<br />

feudal. Mas, quando comparamos o rei com um nobre —<br />

o rei da França, por exemplo, com o duque da Normandia<br />

ou o da Bretanha —, vemos nesse nobre uma miniatura<br />

do rei. Ele é, em âmbito menor, tudo aquilo que<br />

o rei o é num âmbito maior. E se considerarmos<br />

um nobre de categoria inferior,<br />

ele é uma miniatura do duque da<br />

Normandia. E por esse processo, de miniatura<br />

em miniatura, chegaríamos até<br />

ao último grau da hierarquia feudal.<br />

Contudo, pode-se simplesmente afirmar<br />

que o rei está para um senhor feudal<br />

como o original está, em ponto grande,<br />

para a sua miniatura, ou há nisto alguma<br />

realidade mais profunda? Podese<br />

dizer que um príncipe de Condé era<br />

uma simples miniatura de um rei da Fran-<br />

Pelos laços do feudalismo, o<br />

poder monárquico se<br />

desmembrava em<br />

“miniaturas” do rei, que<br />

eram os nobres nos seus<br />

respectivos feudos. Essa<br />

cadeia de dignidades se<br />

desdobrava até o mais<br />

simples dos camponeses,<br />

considerado o “rei” de seus<br />

próprios filhos<br />

(Ao lado, Luís XI de França<br />

cercado de nobres; na página<br />

seguinte, um feudo com seus<br />

senhores e camponeses)<br />

22


ça? O fato de se afirmar que é uma miniatura não mostra<br />

a existência, entre eles, de um laço feudal? No que consiste<br />

propriamente este laço feudal?<br />

Um rei de França desmembra o seu reino em feudos e<br />

dá, a cada senhor feudal, uma parcela do poder real de<br />

que ele é detentor. Desse modo o senhor feudal não é<br />

apenas uma miniatura do rei, mas participante do seu poder.<br />

Ele é, por assim dizer, uma extensão do rei. Sua ligação<br />

com o rei faz dele uma espécie de desdobramento<br />

do próprio rei.<br />

Os senhores feudais de categoria secundária têm um<br />

desdobramento do poder do primeiro senhor feudal. E<br />

assim, de participação em participação, chegamos às últimas<br />

escalas da hierarquia feudal. Partimos de uma grande<br />

fonte de poder, que é o rei, e encontramos participações<br />

sucessivas, semelhantes aos galhos de uma árvore.<br />

O rei seria o tronco e as várias categorias de nobreza seriam<br />

os galhos, sucessivamente mais delgados, até constituir<br />

o cimo da copa da árvore, toda alimentada por uma<br />

mesma seiva, que é o poder real, do qual tudo emana e<br />

para o qual tudo tende. Mas não é absorvente; deita seus<br />

inúmeros galhos em todas as direções.<br />

Dignidade pessoal: no rei, no nobre,<br />

no camponês<br />

Estudando essa idéia da participação do poder real na<br />

hierarquia feudal, chegamos a uma consideração de outra<br />

ordem, relacionando a distinção pessoal de cada homem<br />

com a dignidade conferida pela função ou o cargo<br />

que ocupa.<br />

Quando nos referimos ao rei, dizemos que ele tem<br />

uma tal grandeza que chamaríamos de majestade. Nesse<br />

conceito, a majestade é aquele tipo de grandeza que constitui<br />

propriamente o seu pináculo, e que corresponde ao<br />

poder real. Seria impróprio dizer que um duque, por<br />

exemplo, tem majestade. Diríamos que tem elevação, alteza,<br />

distinção, eminência, que são o próprio dom da majestade,<br />

mas num grau menor. Do mesmo modo, não<br />

podemos nos referir a um conde e a um marquês como<br />

23


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

nos referiríamos a um duque. Dizer que têm alteza ou<br />

eminência seria demasiado. Poderíamos dizer que têm saliência,<br />

relevo, destaque, projeção. É, portanto, mais uma<br />

redução. De um nobre menos elevado poderíamos dizer<br />

simplesmente que tem fidalguia, ou seja, é um homem um<br />

pouco mais saliente, distinto, elevado, mas que já toca na<br />

massa geral dos outros homens.<br />

Analisando mais profundamente essas idéias de dignidade,<br />

de majestade, de distinção, de elevação, vemos que<br />

podem também aplicar-se, embora com menos plenitude,<br />

às pessoas da plebe.<br />

Quando consideramos um chefe de família medieval,<br />

podemos dizer que ele, ao sentar-se em seu por assim<br />

dizer trono, para presidir as refeições de sua numerosa<br />

família, o faz com majestade. Entre os camponeses de<br />

certa região da Espanha, era costume o chefe da família,<br />

ao sentar-se para presidir a mesa — com até cinqüenta<br />

pessoas de sua casa — dizer: “Comeremos, pues”, e todos<br />

repetirem: “Comeremos, pues”. Recitava depois a<br />

oração, que dizia em Navarra: “Que o Menino Jesus, que<br />

nasceu em Belém, abençoe a pátria, o rei e a nós também”.<br />

E iniciava-se a refeição. Diante desse quadro,<br />

poderíamos dizer com toda propriedade que havia ali a<br />

majestade simples do patriarca, do homem rude do povo,<br />

do lavrador, na qual se sente uma grandeza da natureza,<br />

de seiva, de terra.<br />

Poder-se-ia falar em distinção no povo? Certamente.<br />

O camponês espanhol ao qual nos referimos, quanto não<br />

tem de distinção e de garbo? Assim, tudo quanto dissemos<br />

da nobreza, poder-se-ia dizer analogamente da plebe,<br />

embora com menos plenitude. Verificamos, portanto,<br />

que estes conceitos de nobreza e de majestade não repousam<br />

numa só classe social, mas podem aplicar-se até<br />

ao menor e ao mais simples dos camponeses. “O rei é o pai<br />

dos pais, e o pai é o rei dos filhos”, dizia-se na França antiga.<br />

Ensina-nos a Filosofia que todo ser, enquanto ser, é bom.<br />

E bom não apenas no sentido moral da palavra, mas no<br />

sentido ontológico.<br />

Quando o homem inteligente toma conhecimento<br />

dessa dignidade intrínseca do ser e se mostra, por seu<br />

livre arbítrio, à altura de sua bondade de ser inteligente,<br />

racional e livre, adquire uma elevação que não é comparativa<br />

de nada, mas deduzida de seu próprio ser. O mais<br />

ínfimo dos homens, consciente do que é ser homem, e<br />

mais ainda, do que é ser cristão, e bom cristão, pode elevar-se<br />

a uma autêntica majestade<br />

moral.<br />

Isto é tão verdadeiro que<br />

a Igreja canonizou uma<br />

Santa que nos serve<br />

de exemplo característico:<br />

Santa Ana<br />

Maria Taigi. Era cozinheira<br />

em Roma.<br />

A bondade intrínseca do ser e a<br />

majestade moral<br />

Quanto de majestade não havia em Jó, deitado no seu<br />

monturo, limpando sua lepra com um caco de telha, dizendo<br />

frases inspiradas e sublimes, carregando o seu infortúnio,<br />

falando com Deus, apostrofando seus adversários,<br />

impressionando toda a posteridade! Como podemos<br />

falar de majestade num homem que está reduzido<br />

ao último grau de humilhação? Esta majestade que há<br />

nele significa o quê: mando? poder? ou é algo diferente e<br />

superior a isto?<br />

Aquilo que chamamos de distinção, nobreza, majestade,<br />

elevação, com possibilidade de existir em todos os seres<br />

racionais, não é senão a bondade intrínseca do ser.<br />

24


Entretanto, andava pelas ruas com um porte tão majestoso<br />

que as pessoas instintivamente recuavam para lhe dar<br />

passagem. Não por ter servidores e arrogar-se em grande;<br />

a Igreja jamais canonizaria uma cozinheira que quisesse<br />

se fazer passar por duquesa. Isto lhe advinha da plenitude<br />

de dignidade humana, fruto da correspondência<br />

perfeita à graça.<br />

A propriedade do cargo aumenta a<br />

dignidade pessoal<br />

Essa grandeza pessoal, como afirmamos, provém da<br />

consciência da dignidade humana levada ao seu mais alto<br />

grau. Quando, porém, além de ter em si a dignidade<br />

comum a todos os homens e própria a todo católico, a<br />

pessoa acumula a isto outro título — senhora, por exemplo,<br />

de um reino, de um Estado, de uma instituição — algo<br />

se lhe acrescenta que a engrandece mais.<br />

O mesmo não acontece quando alguém é um mero<br />

funcionário de um reino ou de uma república, pois ao<br />

deixar o cargo fica apenas um ex-presidente, por exemplo,<br />

e nada mais. Na Idade Média, era preciso que a pessoa<br />

estivesse fundida em determinada coletividade humana<br />

e fosse a proprietária, por vinculação pessoal, da<br />

direção dessa coletividade, para que acrescesse realmente<br />

sua pessoa de uma dignidade, que era uma participação<br />

da dignidade daquela coletividade humana. Quanto<br />

maior e mais ilustre fosse essa coletividade, tanto mais<br />

se lhe acrescentava nova dignidade. Era a dignidade do<br />

poder público, fundida na sua pessoa, constituindo-se assim<br />

na nota própria da nobreza.<br />

Príncipes houve, contudo, que não estiveram à altura do<br />

cargo que exerceram nem da posição que ocuparam, e por<br />

isso ficaram muito abaixo da situação que deveriam ter.<br />

Realização plena da majestade e papel<br />

da Graça<br />

Qual a razão de dizermos que Carlos Magno encheu a<br />

história de seu tempo? Por haver tido uma personalidade<br />

tão inteiramente à altura do cargo que ocupava, que o<br />

próprio cargo foi uma decorrência de sua pessoa. Tornou-se<br />

necessária a criação do cargo de Imperador, pois<br />

ele não cabia na categoria de rei.<br />

A majestade se realiza plenamente num homem quando,<br />

além da dignidade da pessoa humana, ele eleva sua<br />

Porte firme, olhar profundo e simplicidade de maneiras:<br />

a distinção eclesiástica medieval expressa nas<br />

esculturas de bispos nos pórticos das catedrais<br />

personalidade à grandeza que compete à sua função. A<br />

majestade plena lhe advém quando ele encarna o poder<br />

supremo, o detém a título de propriedade pessoal e o exerce.<br />

Poder-se-ia perguntar se é possível ter majestade sem<br />

auxílio da graça. Esta grandeza pessoal, inerente à personificação<br />

de uma grande condição, é uma virtude. Para<br />

o homem praticar as virtudes duravelmente e na sua totalidade,<br />

precisa da colaboração da graça, mas não para<br />

a prática de uma ou outra virtude. Compreende-se, pois,<br />

que esta virtude possa ser praticada sem a colaboração<br />

da graça. Por isso encontramos a majestade realizada, a<br />

seu modo — e que não é artificial — em grandes personagens<br />

pagãos da antiguidade, como o faraó Ramsés II,<br />

considerado o Luiz XIV do Egito. Contudo, a nobreza, a<br />

dignidade, a majestade, alcançam sempre uma realização<br />

mais profunda quando resultam da colaboração da<br />

graça.<br />

Uma distinção própria a cada classe<br />

social<br />

Por fim, podemos examinar o problema da personalização<br />

dos cargos e a distinção que lhe é inerente nas<br />

várias categorias sociais.<br />

Na Idade Média havia uma forma de distinção própria<br />

a cada classe social e condicionada à função de cada qual<br />

na sociedade. Havia uma distinção eclesiástica, uma distinção<br />

aristocrática e uma burguesa. É necessário não confundir<br />

a distinção segundo a concepção medieval da dos<br />

tempos modernos. No “Ancien Régime”, por exemplo, a<br />

distinção eclesiástica era ter o cabelo empoado, usar lencinho<br />

e uma série de atitudes congêneres. Já o espelho<br />

da distinção eclesiástica medieval pode ser visto nas esculturas<br />

de bispos nos portais das catedrais: homens eretos,<br />

de porte firme, olhar profundo e simplicidade de maneiras,<br />

mas, ao mesmo tempo, com uma racionalidade e<br />

uma nobreza extraordinárias; verdadeiros pastores de almas,<br />

guias, príncipes na ordem do espírito, sem preocupação<br />

de caráter mundano. O nobre tinha uma distinção<br />

guerreira, porque a classe aristocrática era a classe militar.<br />

Devia ser um batalhador corajoso, de peito aberto,<br />

olhar inflamado, atitude decidida. A distinção plebéia,<br />

no fim da Idade Média, era a do burguês: sério, calmo,<br />

bonachão, pensativo, de aspecto grave, colocado atrás de<br />

uma verdadeira tribuna que era seu balcão.<br />

São três estilos de vida, três funções diferentes na sociedade,<br />

dando origem a três tipos distintos. Eram pessoas<br />

profundamente enriquecidas em sua dignidade pessoal,<br />

que encarnavam e personificavam suas posições. É<br />

uma das mais profundas razões da força e solidez das instituições<br />

medievais.<br />

❖<br />

25


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

O “LEGIONÁRIO”,<br />

arma de batalha pela Igreja<br />

D<br />

urante duas décadas, o “Legionário” foi para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> excelente tribuna de defesa<br />

dos princípios católicos e valioso instrumento de ação apostólica. Numa conferência<br />

para jovens alunos, abaixo transcrita, ele descreve como idealizou as modificações<br />

necessárias para o jornal atingir esse objetivo.<br />

Ia dar um balanço [da situação]<br />

em que então me encontrava,<br />

com referência às possibilidades<br />

de desenvolver um apostolado<br />

frutuoso. Quais eram [os fa-<br />

tores] positivos e quais os negativos.<br />

Como estava o projeto de Ordem de<br />

Cavalaria, que era o centro de tudo.<br />

Era o centro de tudo, não como um<br />

fim em si, mas como instrumento mais<br />

idôneo e eficaz para conseguir o que<br />

eu queria: a Contra-Revolução¹.<br />

O primeiro desses meios era o<br />

“Legionário”. Podia ser considerado<br />

debaixo de dois pontos de vista. Em<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, à esquerda de Dom Duarte Lepoldo e Silva, e o primeiro grupo de redatores do “Legionário”<br />

26


primeiro lugar, como publicação. Em<br />

segundo lugar, como meio de recrutamento<br />

de elementos para o nosso<br />

grupo.<br />

Mudança no “Legionário”,<br />

inspirada em jornal<br />

francês<br />

Vamos tratar do “Legionário”, que<br />

era o que publicávamos naquele tempo,<br />

e que portanto tem mais relação<br />

com a história desse tempo. Era um<br />

jornal a respeito de cuja influência<br />

ou maneira de ação eu tive muitos<br />

esclarecimentos analisando um jornal<br />

chamado “Sept”, quinzenário francês<br />

mais ou menos com tantas páginas<br />

quanto o “Legionário”.<br />

Era organizado de um modo muito<br />

vivo, com uma paginação muito<br />

atraente, tratando de temas muito<br />

atuais. Por causa disso, apesar de ser<br />

um simples jornalzinho, com poucas<br />

páginas — não era revista, circulava<br />

na França e na Bélgica daquele tempo,<br />

e nem me lembro bem se o jornal<br />

era francês ou belga — mas com garra!<br />

Intervinha nos acontecimentos,<br />

influenciando. Numa palavra, tratava<br />

de tudo quanto havia de mais candente<br />

e delicado.<br />

Até então, o “Legionário” tinha<br />

uma certa tendência para se dirigir<br />

ao grande público, no interesse de<br />

conquistá-lo. Era escrito, em parte,<br />

para converter para a religião católica<br />

aqueles que não eram católicos,<br />

em parte para afervorar e orientar os<br />

que já eram católicos. Lendo o jornal<br />

“Sept”, compreendi que isso estava<br />

errado, pois um jornal de pequeno<br />

formato ou de pequeno tamanho,<br />

ou devia dirigir-se para um público<br />

especial, influente e não pequeno,<br />

e através desse público influenciar<br />

todo o conjunto, ou não adiantaria<br />

para nada.<br />

O “Legionário”, então, deixou de<br />

ser um jornal feito para converter os<br />

não-católicos, e passou a um jornal<br />

Inspirando-se no<br />

jornal francês “Sept”,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> resolveu<br />

dar ao “Legionário”<br />

um feitio novo,<br />

visando formar a<br />

mentalidade dos que<br />

atuavam no<br />

Movimento Católico<br />

destinado a orientar<br />

os católicos. E não<br />

quaisquer católicos<br />

em geral, mas os do<br />

Movimento Católico.<br />

O Movimento<br />

Católico<br />

O Movimento Católico<br />

era constituído naquele tempo<br />

pelos católicos mais fervorosos,<br />

que iam sempre à Missa aos domingos,<br />

e que em geral pertenciam a associações<br />

religiosas. Chamava-se movimento,<br />

porque era um conjunto de<br />

pessoas que dedicava uma parte de<br />

seu tempo, ou todo o seu tempo, a<br />

favorecer por sua atuação a Igreja<br />

Católica, a expansão da Fé. Tinha<br />

um número muito grande de pessoas.<br />

O resultado de minha eleição, em<br />

1934, exprimia bem isso. Fui eleito<br />

por essa gente. Eram muitas pessoas,<br />

muito unidas, dirigidas por um<br />

clero ortodoxo e muito coeso, um<br />

episcopado evidentemente muito católico<br />

e firme, e um Arcebispo que<br />

dirigia com energia, em cujo brasão<br />

estava este lema: “Ipse firmitas et autoritas<br />

mea” (Minha firmeza e minha<br />

autoridade é o próprio Cristo). E<br />

mandava!... Dom Duarte mantinha<br />

tudo isso coeso.<br />

E eu entendi bem que, agindo sobre<br />

esse público, e orientando-o, teríamos<br />

uma possibilidade de influenciar<br />

o conjunto dos acontecimentos<br />

no Brasil. Transformei, então, o “Legionário”<br />

num órgão especializado<br />

para o Movimento Católico. Não tinha<br />

por fim ajudar os católicos a<br />

converter não-católicos, mas formar<br />

sua mentalidade.<br />

Objetivo: formar a<br />

mentalidade dos católicos<br />

Quem tomasse outras revistas católicas<br />

e as folheasse, veria que tratavam<br />

mais ou menos de tudo: uma<br />

notazinha sobre missões no Tocan-<br />

27


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Deputado mais votado na<br />

eleição de 1934, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

compreendeu que uma<br />

importante atuação sobre o<br />

público católico que o elegeu<br />

seria o modo ideal de<br />

influenciar o conjunto dos<br />

acontecimentos no Brasil<br />

tins; outra informando que morreu<br />

um Bispo em Estocolmo; mais adiante,<br />

uma notícia de que foi lançada<br />

uma missão nova entre os esquimós<br />

e que os primeiros foram batizados,<br />

etc. Coisas apreciáveis... mas com isso<br />

não se formava a mentalidade de<br />

uma pessoa.<br />

A formação da mentalidade comportava,<br />

na nossa concepção, algumas<br />

características. Aqui no Brasil,<br />

em geral, dá-se um fato que eu costumo<br />

explicar da seguinte maneira:<br />

os outros povos crêem na verdade da<br />

Religião Católica, quando são tais; o<br />

brasileiro não crê, ele sabe que a Religião<br />

Católica é verdadeira. Ele crê,<br />

porque pesca no ar. Intui. É muito<br />

raro ver-se um brasileiro dar uma argumentação<br />

contra a Igreja Católica.<br />

Se a vida dele não é compatível<br />

com a Fé, e não quer emendá-la,<br />

abandona a Religião Católica. Quando<br />

pensa em converter-se, não vai<br />

refletir para escolher qual a religião<br />

verdadeira, pois já sabe que é a católica.<br />

De maneira que, quando ele<br />

volta, regressa ao Catolicismo. Fé,<br />

graças a Nossa Senhora, naquele tempo<br />

ainda era muito estável, entre os<br />

católicos que pertenciam ao Movimento<br />

Católico.<br />

Nós não tratávamos de afervorar<br />

um indivíduo sob esse ponto de vista,<br />

mas tínhamos a idéia de que o modo<br />

pelo qual um indivíduo podia ser extraviado<br />

da doutrina católica era no<br />

que dizia respeito à apreciação da<br />

sociedade temporal, das finalidades,<br />

da razão de ser desta. E, neste ponto,<br />

mesmo os católicos mais fervorosos<br />

tinham idéias esquisitas.<br />

Era preciso fazer lentamente uma<br />

apreciação dos acontecimentos que<br />

fosse mudando as mentalidades numa<br />

determinada direção. Mas, que<br />

acontecimentos? E em que direção?<br />

A política brasileira, considerada<br />

de um modo geral, tinha muito pouco<br />

conteúdo ideológico. Mesmo as<br />

correntes representantes de algo que<br />

era possível defender ideologicamente,<br />

não tinham vontade de fazer uma<br />

defesa ideológica. O brasileiro tem<br />

preguiça de raciocínios de caráter<br />

ideológico.<br />

Por outro lado, nosso povo, que é<br />

tão cordato e tão amigo de ser amigo,<br />

é muito sensível. Qualquer ataque ao<br />

interesse político de alguém, deixálo-ia<br />

num ressentimento único. Isso,<br />

para o “Legionário”, seria muito incômodo,<br />

muito desagradável.<br />

28


O jeito era preocuparmo-nos preponderantemente<br />

com a política exterior.<br />

E com o motivo de cuidar da<br />

política dos outros países, formar as<br />

mentalidades dos leitores sobre as<br />

grandes idéias que havia fora do Brasil.<br />

Através dos fatos, criar<br />

interesse pela doutrina<br />

Uma nota muito acentuada do<br />

“Legionário” passou a ser, então, a tomada<br />

de posição a respeito de questões<br />

internacionais. Não estavam incluídas<br />

as relações do Brasil com outros<br />

países — que eram muito tranqüilas<br />

e sem interesse —, mas os<br />

problemas internos das outras nações,<br />

sobretudo na Europa.<br />

Por que Europa? Porque pela sua<br />

cultura multissecular, pela inteligência<br />

e pela instrução de seus filhos,<br />

mesmo de partidos que execrávamos,<br />

davam um tom à vida política que<br />

era de pensamento e de ideologia.<br />

Esse tom ideológico, nos interessava<br />

comentar.<br />

No centro da perspectiva do mundo<br />

contemporâneo estava a Revolução<br />

Francesa, exatamente o fato que<br />

divide a História, dando fim aos Tempos<br />

Modernos e começo aos Contemporâneos.<br />

Quem prestar atenção, perceberá<br />

que muito disso ainda existe entre nós.<br />

Por exemplo, vêem bem a importância<br />

da Reunião de Recortes² na nossa<br />

vida. Se ela fosse extinta, ficaríamos<br />

reduzidos a um terço ou à metade<br />

de nossa vitalidade.<br />

Um modo de ensinar poderia ser:<br />

fazer artigos abstratos ou teóricos.<br />

Um outro modo seria noticiar os fatos<br />

e analisá-los e, a propósito destes,<br />

dar doutrina. Interessar na doutrina<br />

através dos fatos. Foi o sistema<br />

adotado pelo “Legionário”, e que<br />

até hoje é o nosso sistema de raciocinar.<br />

É um dos fatores que<br />

torna a Reunião de<br />

Recortes tão importante,<br />

e tão<br />

característica.<br />

Coerência na idéias<br />

Uma outra característica do “Legionário”,<br />

sob esse ponto de vista, era<br />

a seguinte:<br />

As idéias do tempo faziam com<br />

que a disputa ideológica fosse compreendida<br />

apenas no que diz respeito<br />

a assuntos políticos, sociais e econômicos.<br />

O “Legionário” abriu muito<br />

mais o leque. Demonstrou que esses<br />

assuntos e essas preferências religioso-filosóficos,<br />

sócio-político-econômicos<br />

podem manifestar-se em tudo:<br />

na forma de um lustre, na cor de um<br />

vaso, no modo de ser de um tecido,<br />

nos desenhos ou ornatos de um prato<br />

ou de um copo, no sabor de uma<br />

comida ou de uma bebida... Tudo é<br />

portador de uma preferência nesses<br />

assuntos.<br />

A par de sua incansável atuação pessoal<br />

como líder do Movimento Católico, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> procurava atingir pelas páginas do<br />

“Legionário” o melhor do seu público,<br />

promovendo o que ele chamava de uma<br />

“contra-revolução cultural”<br />

Acima, ele (o segundo da esquerda para<br />

a direita) durante a Semana da<br />

Adoração Perpétua, no Rio; ao lado (no<br />

centro da foto), numa homenagem do<br />

“Legionário” aos congregados marianos<br />

29


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Portanto, o que cumpre fazer, mais<br />

do que tudo, é saber mostrar que não<br />

tem uma opção inteiramente correta<br />

quem é, digamos, pró-medievalista<br />

(no sentido amplo em que tomo a<br />

palavra) em matéria sócio-políticoeconômica,<br />

e, ao mesmo tempo, detesta<br />

o gótico e gosta da arte moderna.<br />

Não pode ser. Este está em contradição<br />

consigo. O homem não tem<br />

o direito de ser contraditório, mas<br />

deve ser coerente.<br />

De maneira que o “Legionário”<br />

fazia aquilo que, hoje, se chamaria<br />

uma contra-revolução cultural. Por<br />

revolução cultural se entende exatamente<br />

isto: uma revolução que não é<br />

apenas política, mas que envolve uma<br />

total transformação em toda a mentalidade,<br />

modos de ser e ambiente<br />

que cerca o homem.<br />

A contra-revolução cultural é a<br />

contra-revolução sofística mais a contra-revolução<br />

tendencial; somadas,<br />

elas constituem um todo. Então, nesta<br />

amplitude temos a noção, a idéia<br />

de que a Revolução e a Contra-Revolução<br />

abrangem todo o pensamento<br />

humano. E que, ou um homem é totalmente<br />

uma coisa, ou ele não é nada.<br />

Tudo quanto há de bom na<br />

sociedade humana vem da<br />

Igreja Católica<br />

Outra coisa que era muito marcada<br />

na orientação do “Legionário” era<br />

a seguinte: tudo quanto há de bom<br />

na sociedade humana vem da Igreja<br />

Católica.<br />

É um erro condenado pela Igreja<br />

a afirmação de que, sem apoio da religião,<br />

o homem nada faz de bom. O<br />

pecado original atingiu, vulnerou a<br />

fundo a natureza humana, mas não<br />

tão fundo que um homem com as<br />

suas simples forças naturais não possa<br />

praticar várias ações boas, independente<br />

da religião. Mas, sem auxílio<br />

da graça, o homem não pode se<br />

manter, estável e duravelmente, na<br />

prática dos dez Mandamentos.<br />

Segundo ponto: se, numa determinada<br />

sociedade se torna habitual<br />

que a população viole um ou mais<br />

Mandamentos, esta sociedade está<br />

caminhando para o seu declínio. Não<br />

há remédio. A ordem humana perfeita<br />

decorre do cumprimento dos<br />

Mandamentos. E se estes não foram<br />

cumpridos, esta vai água abaixo. É<br />

uma questão de mais ou menos tempo...<br />

Terceiro: pelo contrário, se a sociedade<br />

humana toda — salvo as exceções<br />

baixas, que sempre há —<br />

cumprir estavelmente os dez Mandamentos,<br />

a sociedade sobe a um<br />

píncaro maravilhoso. Ainda que seja<br />

um pequeno país sem recursos econômicos<br />

e pobre, se o seu povo tiver<br />

muita Fé, sobe, na ordem temporal,<br />

ao mais alto grau que lhe é possível.<br />

Mais ainda: quanto mais uma sociedade<br />

subir na ordem temporal —<br />

pela cultura, pela riqueza ou por qualquer<br />

outro fator — tanto mais lhe será<br />

necessário cumprir bem os Mandamentos<br />

e amar a Deus. Porque essas<br />

qualidades naturais, se não forem<br />

encaminhadas pela virtude e pela prática<br />

habitual dos dez Mandamentos<br />

— prática, tanto melhor quanto mais<br />

fervorosa — os próprios fatores de<br />

grandeza precipitarão sua queda.<br />

Quer dizer, a podridão intelectual dos<br />

países muito intelectualizados, quando<br />

deixam a Fé, é tão alucinante e<br />

tremenda, que tende com todo o seu<br />

peso para levá-los a desatinos.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> (de pé, no centro) e Da. Lucilia (sentada à direita de Dom Duarte), por<br />

ocasião da inauguração das novas máquinas do "Legionário"<br />

1) Este termo deve ser entendido no<br />

sentido empregado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />

“Revolução e Contra-Revolução”.<br />

2) Reunião semanal, baseada em notícias<br />

recortadas de jornais, na qual <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> analisava os acontecimentos<br />

mundiais à luz dos ensinamentos do<br />

Magistério da Igreja.<br />

30


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Maravilha, sonho, realidade!<br />

Ohomem de hoje sofre uma verdadeira caçada<br />

das novidades. Estas o perseguem, a bem dizer,<br />

o dia inteiro. Não há lugar onde ele entre e não<br />

esteja exposto a ouvir o rádio ou a televisão relatando os<br />

últimos acontecimentos. Em geral, neste mundo caótico<br />

em que vivemos, sucederam calamidades e misérias,<br />

tristezas e provações, e sobrevêm sustos.<br />

Porém, se o homem é tão perseguido pelo noticiário,<br />

cumpre notar que a recíproca é igualmente verdadeira:<br />

ele vai atrás das novidades, das quais tem uma fome inextinguível.<br />

E ainda que essas novidades o apedrejem, está<br />

disposto a receber as pedras, se estas lhe proporcionam<br />

as sensações mais recentes de seu cotidiano.<br />

O homem se torna, assim, inadequado para conhecer<br />

as verdadeiras novidades, aquelas que não são os fatos a<br />

espoucarem daqui, de lá e de acolá, não são nada da humanidade<br />

que passa, mas os sentidos, as correlações e<br />

os reflexos novos que partem dos grandes valores — es-<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

pirituais e materiais — que o passado nos legou e que tocam<br />

nossas almas.<br />

Exemplifico.<br />

Tive em mãos um lindo álbum de vitrais e, folheandoo,<br />

veio-me ao espírito uma consideração nova para mim.<br />

Olhando esses vitrais, por certo mais velhos do que eu,<br />

analisando-os com admiração, surgiu-me a pergunta:<br />

Esses vitrais são tão, tão belos. É bem certo que o<br />

Paraíso terreno tinha coisas mais belas do que eles?<br />

Uma pessoa que se imagina num lugar amplo, aos pés<br />

de um extraordinário vitral no momento em que torrencialmente<br />

atravessam por ele todos os raios de sol; em<br />

que o olhar dela é inundado por esses raios, mas a pessoa<br />

percebe no corpo inteiro que aquelas refulgências do<br />

sol estão vindo, estão ferindo os vitrais e a enchem de luz<br />

e de colorido, como se ela entrasse num mar luminoso e<br />

policromado — nesse momento, é bem certo que a pessoa<br />

não veja algo de tão belo quanto havia no Paraíso<br />

terrestre?<br />

Costuma-se entender que o Paraíso terrestre continha<br />

tudo quanto há de mais bonito e excelso na criação temporal.<br />

E, grosso modo falando, é verdade. Em confronto<br />

com a realidade deste nosso chão de exílio, a superioridade<br />

do Paraíso é incomparável. Mas, se formos conhecer<br />

alguns pormenores, determinados aspectos desta<br />

Terra, será que não existe aqui beleza ainda maior do<br />

que há no Paraíso?<br />

E não será que, por esta forma, nós conhecemos melhor<br />

um verdadeiro paraíso de nossas almas que existe<br />

neste vale de lágrimas, e que é a Santa Igreja de Deus?<br />

Se nós a sabemos ver, se nós a sabemos amar, se nós a<br />

sabemos sentir, se sabemos admirar tudo quanto ela engendrou<br />

de magnificências e riquezas ao longo de sua<br />

História , como os vitrais por exemplo, não é ela o nosso<br />

paraíso neste mundo?<br />

Imerso nessas reflexões, continuando a folhear o álbum,<br />

lembrei-me de dois personagens que a tradição nos<br />

autoriza a supor que ainda vivem em algum lugar misterioso<br />

da Terra, provavelmente no próprio Paraíso terrestre:<br />

Santo Elias e Santo Enoc.<br />

E então pensei: No ambiente onde eles passam os milênios,<br />

se for mesmo um lugar paradisíaco, haverá incontáveis<br />

maravilhas. Mas, na linha de minhas anteriores<br />

considerações, por um dom que lhes terá concedido<br />

a Providência, eles podem apreciar esses aspectos da<br />

Terra que sejam ainda mais belos do que aqueles do<br />

Éden criado por Deus para o homem inocente.<br />

Portanto, eles podem se encantar com os vitrais espalhados<br />

pelas igrejas de todo o orbe, conhecendo-os melhor<br />

que qualquer homem. Nas horas em que as igrejas<br />

estão vazias, nos momentos em que não há ninguém pa-<br />

32


a admirar os seus vitrais, Santo Elias e Santo Enoc os<br />

estarão contemplando.<br />

Mais ainda. Eles sabem de todos os vitrais que foram<br />

destruídos, como eram e como seriam se ainda hoje resplandecessem.<br />

Eles sabem de todos os vitrais que foram<br />

planejados, mas que por miséria humana ou por qualquer<br />

vicissitude não puderam ser elaborados.<br />

Eles têm conhecimento de quando e como nasceu o intenso<br />

desejo do maravilhoso na alma humana, um anseio<br />

que a preencheu de tal forma que ela teve a necessidade<br />

de extravasá-lo, de expressá-lo, e, à força de excogitar<br />

o meio de fazê-lo, tateando, de repente empreendeu a<br />

magnífica epopéia dos vitrais.<br />

Eles conhecem a história do senso artístico de que resultou<br />

o aparecimento das inexcedíveis policromias que<br />

guarnecem as aberturas em ogivas, em arcos, em rosáceas,<br />

das catedrais, igrejas, abadias, mosteiros e capelas<br />

semeados pela Terra.<br />

Eles se enlevaram diante da alma de um vitraleiro humilde<br />

e despretensioso que, na sua modesta oficina de<br />

artífice, desejou a cor perfeita para sua obra, pôs-se a<br />

fabricá-la e quando finalmente a elaborou, pensou: “A<br />

minha vida está explicada. Eu trouxe ao conhecimento<br />

dos homens, eu trouxe à piedade da Igreja, eu trouxe à<br />

glória de Santo tal, ou de tal mistério da vida de Nosso<br />

Senhor, de Maria Santíssima, essa nova cor. Ó, sol! tu<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Vitrais da Catedral de Léon (Espanha) e Reims (França).<br />

Acima: Santo Elias<br />

que me antecedeste na Criação, tu também<br />

foste feito para que um dos teus<br />

raios passasse sempre por este vitral. E<br />

enquanto tu fores sol e o mundo for mundo,<br />

um dos teus raios atravessará o azul<br />

com que eu sonhei, vai iluminar o chão<br />

de granito e arrebatará alguma alma<br />

fiel que o veja. Minha vida está justificada”.<br />

Santo Elias e Santo Enoc, ao verem e<br />

admirarem esses vitrais, compreendem<br />

que eles de algum modo resplandecem,<br />

à maneira dos inefáveis esplendores do<br />

Padre Eterno, matrizes de todas as cintilações,<br />

luminosidades e coloridos postos<br />

na Criação. Não será temeridade supor<br />

que os Anjos desçam do Céu para<br />

acompanhar e instruir a esses grandes<br />

personagens bíblicos na sua peregrinação<br />

pelo universo dos vitrais, colocando<br />

diante dos olhos deles a fabulosa<br />

coleção dos que existiram, existem e<br />

poderiam ter existido.<br />

E os dois, reconhecidos, entoam a<br />

Nossa Senhora um cântico de louvor,<br />

uma homenagem de todos os vitrais, de<br />

cada fragmento de vitral, de cada cor,<br />

de cada figura, de cada rosácea... Eles,<br />

pelo seu espírito, são o sol que atravessa<br />

esses vitrais. E Nossa Senhora os fita<br />

comprazida, e pensa: “Meus filhos e<br />

meus vitrais!”.<br />

Nestas condições, também é de se supor<br />

que eles concebam para si a idéia de<br />

que, no fim dos tempos, quando Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo vier em sua pompa<br />

e majestade, seguido de Maria Santíssima,<br />

de todos os Anjos e Santos do Céu,<br />

para julgar os vivos e os mortos, esse espetáculo<br />

de conjunto nos dê uma impressão<br />

à maneira de um fabuloso vitral<br />

que preenche, de ponta a ponta, o horizonte.<br />

Quando, no dizer da Escritura, o céu<br />

estiver enrolado como um pergaminho,<br />

tudo tiver acabado e a magnitude de<br />

Deus aparecer, será talvez este o<br />

“supremo” vitral que marca para sempre<br />

o começo de uma era onde não há<br />

mais história, mas apenas eternidade.<br />

Os vitrais, que maravilha! Os vitrais,<br />

que sonho! Os vitrais, que realidade! ❖<br />

34


35


SOBERANA INTERCESSORA<br />

No alto do Calvário, Maria teve presente a vida de todos os homens que passaram e<br />

passariam sobre a Terra, até o fim dos tempos. Ela conheceu as virtudes de cada<br />

um, assim como seus lamentáveis pecados. E a cada um amou, por todos rezou, e<br />

para todos alcançou o perdão de seu Divino Filho, que acabara de ser imolado na Cruz.<br />

Mais do que nunca, com o Redentor exânime em seus braços, Ela era a nossa soberana intercessora,<br />

a incansável medianeira que jamais abandonou e jamais abandonará qualquer<br />

homem.<br />

Santíssimo Cristo da Misericórdia, Sevilha

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