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A chave da História
Francisco Lecaros<br />
Musicalidade das<br />
relações humanas<br />
Acortesia é a perfeita relação que passa por cima do abismo que há<br />
de homem para homem. Essa força que liga este abismo chama-se<br />
amor fraterno católico. A cortesia é o lado cheio de respeito, distinção<br />
e afeto que une as pessoas diferentes e as coloca numa relação como as<br />
notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma bela música estão em<br />
estado de cortesia entre si.<br />
Se uma pessoa irrefletida passa diante de um piano que está com a tampa<br />
aberta, escorrega e se apoia no teclado para não cair, sai um som horroroso<br />
parecido com uma descortesia. Porque não há harmonia. A cortesia é a musicalidade<br />
das relações humanas.<br />
(Extraído de conferência de 29/6/1974)<br />
2
Sumário<br />
Ano XIX - Nº <strong>224</strong> Novembro de 2016<br />
A chave da História<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
no ano de 1992.<br />
Foto: Mario Shinoda<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Gilberto de Oliveira<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Editorial<br />
4 A chave da História<br />
Piedade pliniana<br />
5 Confiança em Maria<br />
Dona Lucilia<br />
6 Reflexo da compaixão do Salvador<br />
Reflexões teológicas<br />
10 Jesus Cristo Rei, Profeta e Sacerdote<br />
Redação e Administração:<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Hagiografia<br />
16 Moldura para a figura de São Willehade<br />
Calendário dos Santos<br />
20 Santos de Novembro<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
22 O amor ao maravilhoso por meio da<br />
admiração aos arquétipos<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
30 Critérios para um bom relacionamento<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
33 Movimentos do mar...<br />
...e da alma humana<br />
Última página<br />
36 Mãe da Divina Providência<br />
3
Editorial<br />
A chave da História<br />
Odesejo do sobrenatural é inerente à alma humana, por isso todos os homens estão sempre à procura<br />
do maravilhoso e, no fundo, apetentes de Deus.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, com sua habitual clareza, comenta como essa apetência natural a algo que é superior<br />
só é realmente saciada dentro da Igreja Católica. De modo inédito demonstra como a sede do maravilhoso<br />
constitui a chave de toda a História da humanidade e o caminho para o Reino de Maria.<br />
Existe em todo ser humano inocente um impulso para o maravilhoso, um desejo de maravilhamento<br />
diante das coisas.<br />
Como nossa capacidade nativa de conceber coisas maravilhosas e de desejá-las é violenta e magnífica<br />
como uma espécie de tufão de ouro, temos um desejo do sobrenatural, do metafisicamente perfeito,<br />
do magnífico que o lado elevado de nosso ser deseja com toda a alma.<br />
A partir daí nasce a apetência de algo que a Religião Católica satisfaz completamente.<br />
A alma que tem esse élan ou senso originário bem posto voa para o maravilhoso. Então ela se torna<br />
católica fervorosa, quer essa maravilha para a ordem espiritual e para a ordem temporal e em tudo<br />
procura o maravilhoso.<br />
Nesse estado, as almas estão prontas para a recusa indignada, prévia e repulsiva de qualquer coisa<br />
que possa conduzir ao reino do demônio.<br />
Há no ser humano dois élans: um é para o “sonho” que, quando reto, é uma visão de fé e participa<br />
dos melhores aspectos de nossa alma. Outro para a realidade vista luminosamente, porém como ela<br />
é concretamente, e que se chama bom senso.<br />
Quando a alma tem esses dois aspectos bem ordenados, sabe resolver superiormente um problema<br />
concreto, porque está inspirada no maravilhoso. Mas, de outro lado, quando se põe a ela uma<br />
questão relativa ao maravilhoso, ela voa sem ter nostalgia da realidade mais baixa.<br />
O amor de Deus cogente, que pega, segura, agarra, um amor de Deus que invade a alma, não se<br />
consegue a não ser quando se realizam essas condições preliminares. E a Revolução pôs o seu punhal<br />
nesse ponto.<br />
O senso do maravilhoso é sempre criativo, original e voltado para o futuro. Quem tiver a harmonia<br />
desses dois aspectos terá o espírito voltado para a realização mais alta, sendo-lhe próprio querer<br />
sempre mais.<br />
Isso é o amor ao Ser, portanto, a Deus, projetado para o futuro. Mas o amor ao mesmo Ser, projetado<br />
para o presente, mostra que a sociedade ordenada segundo o Reino de Maria é digna de amor.<br />
Ela não é o fim, é uma etapa, que se deve amar como o último degrau da escada na qual queremos<br />
subir.<br />
Aqui está propriamente a chave da História. É uma chave essencialmente religiosa. Se esse conjunto<br />
está bem posto, a alma humana trabalha bem. Se alguma coisa aqui está errada, tudo vai para o<br />
mal. E, sabendo disso, o demônio trabalha para perturbar essa harmonia.<br />
A Igreja é o maravilhoso que nos satisfaz como se fosse o Céu na Terra 1 .<br />
1) Conferência de 13/5/1988.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Confiança<br />
em Maria<br />
Minha Mãe, Rainha do<br />
Céu e da Terra, dai-me<br />
a graça de nunca me<br />
sentir longe de Vós. Porque Vós,<br />
Senhora, estais sempre próxima,<br />
e quem a Vós reze afincadamente<br />
tudo obtém. Convencei-me, ó<br />
Mãe, de que Vós estais ao alcance<br />
não de mãos que se estiram, mas<br />
de mãos que se põem juntas para<br />
rezar, rezar, rezar seriamente.<br />
“Nunca se ouviu dizer<br />
que alguém que recorresse<br />
a vossa proteção ou reclamasse<br />
vosso socorro fosse<br />
por Vós desamparado”. Minha<br />
Mãe, fazei-me compreender que,<br />
se “nunca se ouviu dizer”, não serei<br />
eu o primeiro a não ser atendido.<br />
Assim, pois, régia Senhora,<br />
fazei que sempre me volte para<br />
Vós com confiança.<br />
Assim seja.<br />
Santíssima Virgem Maria<br />
Paray-Le-Monial, França<br />
5<br />
Hugo Grados kilteka
Dona Lucilia<br />
Reflexo da<br />
compaixão<br />
do Salvador<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
A compaixão de Dona Lucilia por aqueles a quem ela via<br />
sofrer era cheia de afeto e respeito, nunca esperando uma<br />
retribuição da parte de seus beneficiados, verdadeiro<br />
reflexo da misericórdia do Sagrado Coração.<br />
Guilherme Gaensly (CC3.0)<br />
Arespeito de mamãe, eu tenho<br />
dito várias vezes que<br />
ela não era senão uma dona<br />
de casa com uma cultura afrancesada,<br />
ligeiramente inglesada, das senhoras<br />
de boa família do tempo dela.<br />
Ela possuía essa cultura suficientemente,<br />
mas não se destacava pela<br />
inteligência.<br />
Finura de percepção<br />
Chamava-me a atenção que em<br />
um certo sentido ela se mostrava excepcionalmente<br />
inteligente, e era<br />
uma forma de inteligência ligada à<br />
compaixão e à ajuda. Quer dizer, ela<br />
tinha uma noção muito clara de tudo<br />
o que pudesse contundir ou fazer<br />
sofrer qualquer pessoa; ela percebia<br />
logo.<br />
Era uma pergunta primeira, ou<br />
um olhar primeiro — um olhar dedicado<br />
— que ela deitava sobre a pessoa.<br />
O ponto de partida era o que a<br />
pessoa sofria. Dado que toda criatura<br />
humana sofre, ela procurava ver<br />
qual era o ponto dolorido, o lado por<br />
onde a pessoa sofria, etc., e tomava<br />
um cuidado extraordinário em, nem<br />
de longe, ter uma distração, uma referência<br />
de conversa ou qualquer<br />
coisa que pudesse fazer sofrer essa<br />
pessoa de qualquer forma, sendo de<br />
uma penetração e de uma delicadeza<br />
para isso verdadeiramente notável.<br />
Mas ela entendia bem também, dada<br />
a pessoa e as circunstâncias — aqui<br />
é uma obra de psicologia —, o que ela<br />
deveria fazer para ajudar e qual era a<br />
forma de compaixão que ela deveria<br />
manifestar para atender àquela forma<br />
de sofrimento. Nisso ela era muito,<br />
muito fina de percepção e muito delicada<br />
no pôr a compaixão dela. Porque<br />
a compaixão se exprimia muito mais<br />
pelo olhar e pelas maneiras do que pelo<br />
que ela dizia.<br />
6
... ela entendia<br />
bem também, o que<br />
ela deveria fazer<br />
para ajudar e qual<br />
era a forma de<br />
compaixão que ela<br />
deveria manifestar<br />
para atender<br />
àquela forma de<br />
sofrimento.<br />
Discrição cheia de afeto<br />
Era quase impossível ela procurar<br />
desvendar o santuário do sofrimento<br />
de cada um com palavras indiscretas,<br />
que a introduzisse numa intimidade<br />
que a pessoa, às vezes legitimamente,<br />
não queria dar, às vezes por<br />
amor-próprio, por mil razões. Mas<br />
no modo de tratar e de agradar, ela<br />
de tal maneira tão discretamente realçava<br />
o que ela via de bom, de honroso<br />
na pessoa, que esta se sentia envolta<br />
pelo afeto dela, mas não se sentia<br />
nem um pouco solicitada ou penetrada,<br />
invadida, por uma comiseração<br />
importuna. Ela revelava nisso<br />
muito tato. Era um modo aristocrático<br />
de ter pena.<br />
Entretanto, deixava entender à<br />
pessoa, e a todo mundo com quem<br />
ela tratava, que se quisessem usar da<br />
bondade dela, ela era uma porta que<br />
se abriria, mas nunca se abriria e chamaria<br />
alguém para dentro. Isso não.<br />
Às vezes isso aparecia em termos<br />
explícitos quando se tratava de<br />
tomar a defesa de alguém que ela<br />
achava que era objeto de um ataque<br />
por demais carregado, ou que pelo<br />
menos não se tomava em consideração<br />
alguma atenuante que a pessoa<br />
tinha.<br />
Então, por exemplo, ela tinha um<br />
filho muito truculento, e esse filho<br />
não fazia cerimônia de sair de lança<br />
em riste. Ela, às vezes, ouvia e dizia:<br />
— Coitado!<br />
Mas um coitado que me fazia sentir<br />
no que aquele homem era um sofredor.<br />
“Coitado!... Também não<br />
tanto assim...” Quase como quem<br />
pedia compaixão para ela pessoalmente.<br />
— Filhão, você não notou que ele<br />
tem tal qualidade?<br />
— Mas, meu bem, mãezinha —<br />
conforme o momento —, a senhora<br />
não nota que se a gente for ver<br />
isso dá em liberalismo?<br />
Ela dizia:<br />
— Não, você pense o que quiser,<br />
o que for verdade, mas ponha<br />
a verdade inteira, ponha as qualidades<br />
também.<br />
Naturalmente, isso me impressionava<br />
de um modo muito<br />
favorável, nem preciso dizer. É<br />
absolutamente óbvio.<br />
E se acontecia de numa situação<br />
crítica ou outra, ela ter que<br />
se aproximar e falar com a pessoa,<br />
ela falava como quem entra<br />
nas pontas dos pés no santuário<br />
da desventura da pessoa.<br />
Ela tratava num crescendo<br />
gradual e sondando o terreno;<br />
de maneira que a pessoa,<br />
se quisesse, do modo mais fácil<br />
do mundo, faria entender<br />
que preferia que não entrasse.<br />
Ela também encerrava a<br />
coisa e estava acabado.<br />
Trato bondoso,<br />
sem ilusões<br />
Não pensem com isto que<br />
ela via apenas o lado positivo<br />
das pessoas. Não. As amarguras<br />
e as coisas duras que<br />
a vida tem, ela não só via bem, mas<br />
nos premunia para estarmos prontos<br />
para isso. Naturalmente, tudo era<br />
visto segundo a experiência da vida<br />
de uma senhora que vive no lar.<br />
Ela nunca foi o que no meu tempo<br />
de moço chamavam mulher-paraíba<br />
— mulher feminista que sai<br />
da casa, toma atitudes, conhece a vida<br />
dos homens, fecha negócios, coisas<br />
desse gênero. Ela era de um jeito<br />
que era preciso ter conhecido.<br />
Eu dou um exemplo que ela contou<br />
mais de uma vez.<br />
Cristo atado<br />
Igreja de São<br />
João dos<br />
Reis, Toledo,<br />
Espanha<br />
Francisco Lecaros<br />
7
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Meu avô tinha um escritório de<br />
advocacia e, entre outros clientes, tinha<br />
uma viúva rica e sem filhos. Ela<br />
tinha uma casa muito boa, grande,<br />
com jardins, criadas, etc., mas era<br />
uma pessoa muito cacete.<br />
Meu avô tinha pena dessa senhora<br />
porque ela possuía uma saúde<br />
boa, tinha tudo para fazer uma vida<br />
feliz, mas vivia numa espécie de<br />
isolamento por causa de seu mau gênio.<br />
Era uma senhora moralizada,<br />
sim, mas quanto ao mais de um trato<br />
muito recusável.<br />
Aconteceu que um dia ela de repente<br />
adoeceu gravemente e escreveu<br />
uma carta a meu avô, dizendo isso<br />
e pedindo se podia arranjar-lhe<br />
uma criada, qualquer coisa assim,<br />
um favor desses. Meu avô procurou<br />
minha mãe e disse:<br />
— Sua mãe não tem condições de<br />
dirigir nossa casa com tanto movimento<br />
e ainda cuidar dessa senhora.<br />
É nossa obrigação de caridade mandá-la<br />
vir e tratar dela. Tem aqui<br />
tal quarto — um quarto de hóspedes<br />
—; eu vou mandá-la vir<br />
e você vai tratá-la, e eu quero<br />
que esta senhora saia de nossa<br />
casa encantada com sua caridade.<br />
Mamãe, de pena dessa senhora,<br />
e para agradar meu<br />
avô, logo topou a parada.<br />
Meu avô ficou tranquilizado.<br />
Pouco depois chegou essa<br />
senhora, minha mãe a recebeu<br />
com mil afagos, acompanhou-a<br />
ao quarto, tratou-<br />
-a, mas como mais não se podia<br />
tratar.<br />
Uma irmã de mamãe, seis<br />
anos mais moça, mas já francamente<br />
em idade de ajudar,<br />
tratava essa senhora com a<br />
“ponta dos dedos”. Entrava<br />
no quarto uma ou duas vezes<br />
por dia, já pronta para<br />
sair à rua:<br />
— Oh, eu não quis sair<br />
à rua sem saber como a<br />
senhora está. Já está melhor, não<br />
é? Mantenha o otimismo que vai<br />
tudo bem.<br />
O que equivale a dizer para<br />
o doente “não amole”, “não se<br />
queixe”. Isso uma vez ou duas<br />
por dia e acabou-se.<br />
E mamãe dizia para sua irmã:<br />
— Você não pode fazer isso.<br />
Você não vê que papai quer isso?<br />
Depois, coitada...<br />
Minha tia dizia:<br />
— Você vai ver, você está fazendo<br />
por ela absurdos de dedicação,<br />
não tem o menor propósito,<br />
e ela, quando sair daqui, se<br />
não sair num caixão, mas viva,<br />
ela vai agradecer a mim.<br />
Mamãe punha em dúvida<br />
que a coisa chegasse a esse<br />
ponto, porque a diferença<br />
de trato era fabulosa. Mas, dito<br />
e feito!<br />
A senhora sarou e se preparou<br />
para voltar para sua casa.<br />
Havia várias pessoas juntas para<br />
se despedir dela; entre outras, estava<br />
essa minha tia. Vendo-a, essa senhora<br />
disse:<br />
— Vem cá! Ah! Você que foi meu<br />
anjo durante esse período...<br />
A maldade humana é isto! Não<br />
adianta discutir, nem sondar. É repugnante<br />
até, hein!<br />
E deu-lhe um presente...<br />
A mamãe, falou apenas “obrigado”.<br />
Mamãe não dizia, mas enquanto<br />
ela nunca foi bonita, sua irmã era<br />
muito bonita, na linha em que vovó<br />
era bonita e fascinava. Portanto,<br />
qualquer agradinho de minha tia<br />
brilhava, e as dedicações sem nome<br />
de mamãe essa senhora tomava<br />
assim. Neste ponto também está a<br />
maldade humana.<br />
Mamãe contava isso para mim e<br />
uma vez contou-me na presença dessa<br />
minha tia, que acompanhou com<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
8
atenção, dando risada em alguns trechos<br />
e, no fim, disse que foi exatamente<br />
o que ela contava.<br />
Afeto que não esperava<br />
retribuição<br />
Longinus crava a lança em<br />
Jesus - Museu da Semana<br />
Santa, Zamora, Espanha<br />
A moral do caso é que se eu não<br />
tivesse sido formado assim, pela falta<br />
de retribuição que vem, me tornaria<br />
um homem ruim, e isso ela não<br />
queria. Ela queria que eu fosse bom,<br />
como ela era e como considerava<br />
que era o pai dela.<br />
De fato, meu avô tinha gestos como<br />
esses, de magnanimidade, de<br />
desconcertar. Ela contou vários.<br />
Nesse ponto a formação do pai sobre<br />
ela foi muito, muito eficaz. Daí<br />
esse afeto que, aliás, é preciso dizer<br />
que as três filhas tinham pelo pai,<br />
um afeto que eu não as vi terem a<br />
ninguém, e não vi que nenhuma filha<br />
tivesse para com um pai. Não vi.<br />
Uma coisa sem igual. Queriam bem<br />
à mãe, respeitavam-na, mas veneração<br />
era com o pai.<br />
Mamãe foi quem me formou nisso.<br />
Não estou analisando se eu correspondi<br />
ou não à graça dessa formação.<br />
Mas por esse modo caseiro,<br />
não deu uma filosofia. Ela não falava<br />
do pecado original, nem nada disso,<br />
mas contava esse caso e ficava entendido.<br />
Uma pessoa que de um “fatinho”<br />
como esse tira essa conclusão, vê<br />
muito mais do que o comum das senhoras<br />
vê a respeito disso e manifesta<br />
aí, para este efeito, uma lucidez de<br />
vista, uma penetração, um discernimento<br />
— não ouso falar de discernimento<br />
dos espíritos —, mas um<br />
discernimento das psicologias, das<br />
mentalidades muito grande. E que<br />
realmente é muito bonito.<br />
Se fosse necessário ela faria tudo<br />
de novo, mesmo sabendo que o resultado<br />
seria esse, mas aproveitando<br />
a experiência da última vez para<br />
arranjar jeitos de melhor servir. Não<br />
se arrependeria! Porque ela não fazia<br />
para receber retribuição, mas para<br />
ser boa. No fundo está Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, o Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
Aquela frase d’Ele a Santa Margarida<br />
Maria corresponde bem a isso:<br />
“Eis aqui o Coração que tanto amou<br />
os homens e por eles foi tão pouco<br />
amado.” Toda a atitude de Nosso Senhor<br />
durante a Paixão foi isso. Aliás,<br />
é um dos traços pelos quais se dobram<br />
os joelhos diante d’Ele, não é?<br />
Porque levou esta perfeição moral<br />
a um grau inimaginável. Por exemplo,<br />
Longinus, que furou com a lança<br />
o lado d’Ele e saiu uma água que<br />
curou esse soldado de uma espécie<br />
de semicegueira. Quer dizer, isso é<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo a conta<br />
inteira.<br />
Assim, haveria outros casos dela<br />
a contar, muitas coisas desse gênero!<br />
Mas muitas que ela sabia arranjar,<br />
mexer, acalmar; muitas, muitas,<br />
muitas!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
9/8/1986)<br />
Francisco Lecaros<br />
9
Reflexões teológicas<br />
Francisco Lecaros<br />
Jesus Cristo Rei,<br />
Profeta e Sacerdote<br />
Seria uma belíssima leitura do Evangelho considerar, nas<br />
várias atitudes do Divino Salvador, se Ele está agindo como Rei,<br />
Profeta ou Sacerdote. Maria Santíssima tem, como ninguém,<br />
uma correlação com cada um desses títulos. Também os<br />
acontecimentos da História, o mundo angélico e mesmo o<br />
mundo visível poderiam ser analisados sob esse prisma.<br />
A<br />
respeito da trilogia “Rei,<br />
Sacerdote e Profeta” aplicada<br />
a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo eu gostaria de expor algumas<br />
considerações, começando por tratar<br />
da ordenação interna desses três<br />
títulos, isto é, sobre como eles se relacionam.<br />
Rei da História<br />
A qual deles pertence o primado:<br />
é Ele como Rei, como Sacerdote ou<br />
como Profeta?<br />
Tenho a impressão de que, na ordem<br />
lógica, o primado fundamental<br />
é d’Ele como Rei; e o primado na ordem<br />
final é como Sacerdote. O Profeta<br />
quase faz uma ponte entre os<br />
outros dois.<br />
Ele é o Rei da História no seguinte<br />
sentido: Deus teve as suas intenções<br />
com a História, que são as do Homem-Deus.<br />
E suas intenções foram<br />
um plano que Ele concebeu, o qual<br />
a humanidade segue ou não, cumpre<br />
ou não cumpre. Esse plano é, prevalentemente,<br />
relacionado com a atitude<br />
do homem perante Deus, com a<br />
atitude religiosa do homem, no sentido<br />
mais lato da palavra.<br />
Em segundo lugar, é um plano da<br />
ordenação das coisas como corolário,<br />
como o homem deve ordenar, desde<br />
que ame Deus. De maneira tal que a<br />
ordenação dos homens traz uma ordenação<br />
dos acontecimentos, e uma ordenação<br />
destes acarreta uma ordenação<br />
das coisas materiais. Então as civilizações,<br />
as culturas, as obras de arte,<br />
os arranjos no mundo etc., também<br />
correspondem ao plano de Deus.<br />
10
Nosso Senhor intenciona fazer isso,<br />
mas dá liberdade ao homem de<br />
realizar uma coisa ou outra; entretanto,<br />
o plano d’Ele, de um modo ou<br />
de outro, acaba se cumprindo no que<br />
tem de essencial, e por uma imposição<br />
d’Ele. Porque Nosso Senhor, como<br />
Rei, faz realizar-se a glória que<br />
Ele queria. Ele manda e, portanto, é<br />
um Rei que governa de fato os acontecimentos,<br />
por mais que estes pareçam<br />
desgovernados.<br />
Um exemplo característico seria<br />
com a vida de Jesus. Dir-<br />
-se-ia que havia um plano<br />
que era de Ele vir à Terra e<br />
converter o gênero humano.<br />
E entrou um plano B<br />
em que — não é verdade,<br />
mas dir-se-ia — houve a<br />
morte e Ele resgatou o gênero<br />
humano. De fato, Ele<br />
resgatou e cumpriu mais a<br />
fundo o plano de levar a<br />
humanidade até o Céu. E<br />
Nosso Senhor é Rei fundamentalmente<br />
por essa<br />
condução forte dos acontecimentos.<br />
Ele tem o plano,<br />
o direito e o poder de<br />
mandar. Jesus Cristo tem<br />
o mando efetivo. E com<br />
esses ou aqueles desvios,<br />
as coisas se realizam como<br />
Ele quer.<br />
A própria liberdade que<br />
o homem possui e, portanto,<br />
pode usá-la contra Ele,<br />
é dada por Nosso Senhor.<br />
Porque, se Ele quisesse,<br />
não criava o homem. Ele<br />
quis e, no fundo, é a bondade<br />
d’Ele que está sendo<br />
feita. Ele é o Rei.<br />
Rei-Profeta que<br />
sabe tudo quanto<br />
irá acontecer<br />
No elemento terminal<br />
da trilogia, Jesus é Sacerdote<br />
no sentido de que<br />
Matheus Rambo<br />
aquilo que Ele fez e ordenou, Ele<br />
oferece ao Padre Eterno.<br />
Nosso Senhor é Profeta na acepção<br />
de que Ele, como Rei, sabe o<br />
que vai acontecer. Não é como os<br />
reis da Terra que conjecturam, mas<br />
pode não acontecer o que queriam,<br />
e suceder o que não previram. Mas<br />
Ele sabe tudo quanto vai acontecer e<br />
anuncia. E depois Ele leva à condução<br />
o que Ele disse.<br />
O dom profético em Nosso Senhor<br />
é o conhecimento que Ele tem<br />
Jesus apresentado ao povo por Pilatos:<br />
Ecce Homo (acervo particular)<br />
da própria vontade e do poder; de como<br />
e em que medida os fatos, dentro<br />
dos planos d’Ele, se ajustarão de maneira<br />
a realizar os seus desígnios. E<br />
enquanto revelador, porque o profeta<br />
revela. Assim eu concebo a trilogia.<br />
Impostação das almas<br />
face a Nosso Senhor<br />
Por comodidade de expressão eu<br />
disse Rei, Sacerdote, Profeta. Mas<br />
cada um desses títulos poderia ser<br />
tomado por outra ordem<br />
na qual um dos elementos<br />
da trilogia teria a dianteira<br />
sobre os outros.<br />
Poder-se-ia dizer, por<br />
exemplo, que Ele, como<br />
Profeta, é o Profeta-Rei:<br />
Ele previu, Ele fará, Ele<br />
oferecerá. Por qualquer<br />
das pontas pode-se ver o<br />
triedro todo.<br />
Caráter<br />
fundamentalmente<br />
moral do plano<br />
de Deus<br />
E o que faz dentro disso<br />
o plano moral?<br />
Não que o plano moral<br />
esteja numa posição secundária<br />
à vista disso, mas<br />
é uma outra coisa. Ele tem<br />
uma amplitude, um senso<br />
lato e até latíssimo que ultrapassa<br />
a mera interpretação<br />
mais estrita do exame<br />
de consciência individual,<br />
mesmo quando transposto<br />
para a clave dos povos,<br />
se esta equivale apenas<br />
a uma soma de mortificações<br />
que os homens têm<br />
que oferecer para alcançar<br />
a vida eterna.<br />
A realidade moral a<br />
que me refiro é a impostação<br />
total da alma humana,<br />
11
Reflexões teológicas<br />
atingindo, portanto, a disposição<br />
da vontade, da inteligência<br />
e da sensibilidade, o<br />
cumprimento do Primeiro<br />
Mandamento em toda<br />
a sua amplitude pelo<br />
homem. Mas numa<br />
amplitude tal que<br />
não fica apenas<br />
o preceito a ser<br />
cumprido, mas um<br />
voo da alma para<br />
Deus, que se realiza,<br />
por assim dizer,<br />
independente do preceito,<br />
por uma propriedade da<br />
alma que vai para o Criador.<br />
Fundamentalmente, é a<br />
impostação das almas em face<br />
d’Ele, não só para que todas vão<br />
para o Céu e sejam felizes, mas é para<br />
que possam ordenar para a glória<br />
de Deus esta Terra, teatro de batalha<br />
esplendoroso da glória d’Ele.<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo amará<br />
a Terra mesmo depois de destruída<br />
pelo incêndio, por ocasião do Juízo,<br />
como um general preza um campo<br />
de batalha no qual ganhou um grande<br />
embate. Se depois houve um homem<br />
que ateou fogo e liquidou com<br />
as gramas do campo de batalha; para<br />
o general isso é uma coisa muito<br />
secundária. O importante é que ele<br />
venceu a batalha naquele campo.<br />
Assim também a Terra. Os homens<br />
bons, os justos tornaram-na<br />
sagrada pela batalha que venceram<br />
com Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
É nessa amplitude que se pode<br />
falar do caráter fundamentalmente<br />
moral desse plano.<br />
Gustavo Kralj<br />
Um só todo na ordem moral<br />
Ao estudar certas correntes teológicas,<br />
vi que faziam uma distinção<br />
entre o plano moral e o ontológico.<br />
Entretanto, não me parecia adequado<br />
distinguir o plano moral do ontológico<br />
daquela maneira, porque a<br />
raiz da Moral está na Ontologia. A<br />
boa Ontologia das coisas é o funda-<br />
O Divino Mestre - Igreja de<br />
São João e São Paulo,<br />
Veneza, Itália<br />
mento, o ponto de partida da Moral,<br />
pois a ordem das coisas está na natureza<br />
das mesmas coisas, é um imperativo<br />
desta natureza.<br />
...devemos<br />
pensar em Nosso<br />
Senhor Jesus<br />
Cristo Sacerdote:<br />
oferecendo esse<br />
imenso bonum,<br />
verum, pulchrum<br />
que o precioso<br />
Sangue d’Ele<br />
tornou possível.<br />
Na época, eu li aquilo, percebi<br />
que estava errado e não sabia refutar.<br />
Com o curso dos anos, fui refletindo<br />
e conseguindo explicitar.<br />
Ademais, a ordem moral latu<br />
sensu é intimamente vinculada<br />
à ordem moral em seu<br />
sentido estrito. Elas se<br />
condicionam mutuamente.<br />
De maneira<br />
que não pode haver<br />
uma ordem moral<br />
sem verdadeiro<br />
pulchrum, sem um<br />
autêntico verum; e<br />
não pode haver um<br />
autêntico verum sem<br />
pulchrum; os três elementos<br />
do triângulo por<br />
sua vez se revertem uns nos<br />
outros e constituem um só<br />
todo no qual, entretanto,<br />
podem-se fazer distinções.<br />
Então, um mundo pulcro, acontecimentos<br />
pulcros, almas pulcras,<br />
uma História pulcra, tudo isso faz<br />
parte desse conjunto moral ao qual<br />
me refiro.<br />
É assim também que devemos<br />
pensar em Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
Sacerdote: oferecendo esse imenso<br />
bonum, verum, pulchrum que o<br />
precioso Sangue d’Ele tornou possível.<br />
Enquanto Rei, Ele tinha o plano de<br />
fazer com que a História apresentasse<br />
um verum, bonum, pulchrum resplandecente,<br />
e que a Terra fosse mais bela,<br />
depois de ter vencido a prova e as<br />
tentações do demônio, do que seria se<br />
ao demônio não fosse dada a oportunidade<br />
de tentar.<br />
Pensemos nas naus de Vasco da<br />
Gama procurando atravessar o cabo<br />
da Boa Esperança. Aquilo tem um<br />
pulchrum em si que é o pulchrum da<br />
tormenta e o do homem procurando<br />
enfrentá-la. Tem uma beleza própria<br />
da luta do homem contra os elementos.<br />
Maior ainda é a beleza da luta do<br />
homem contra o homem. E uma batalha<br />
— que é a luta de muitos contra<br />
muitos — tem uma beleza muito<br />
maior do que a luta de um contra<br />
outro.<br />
12
Reflexos da trilogia<br />
no mundo angélico<br />
Reportando ao mundo angélico,<br />
eu seria propenso a achar que os elementos<br />
dessas três manifestações de<br />
glória de Nosso Senhor — Rei, Sacerdote<br />
e Profeta — se encontram<br />
refletidos na ordem angélica, de maneira<br />
que há Anjos chamados, por<br />
sua natureza, a glorificá-Lo mais enquanto<br />
Rei, Anjos mais glorificativos<br />
do Sacerdote, e outros mais glorificativos<br />
do Profeta.<br />
Em torno dessa hipótese — que<br />
submeto inteiramente ao ensinamento<br />
da Igreja — haveria temas<br />
muito “suculentos” a abordar como,<br />
por exemplo: Qual é o coro<br />
mais alto?<br />
Absolutamente falando, o que é<br />
mais elevado: a realeza ou o sacerdócio?<br />
Ou será, em algum sentido,<br />
o profetismo? Uma vez que o profeta,<br />
enquanto recebendo uma comunicação<br />
de Deus, introduz nesta ordem<br />
algo superior a ela, não é mais<br />
do que o rei e do que o sacerdote?<br />
Seria muito bonito, à luz dessas<br />
considerações, classificar os coros<br />
angélicos existentes, e imaginá-los<br />
constituídos assim, reluzindo e cantando<br />
a Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
como Rei, como Profeta e como Sacerdote<br />
de maneiras diferentes.<br />
Reluzimentos no<br />
mundo visível<br />
Sergio Hollmann<br />
A consideração<br />
de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo como<br />
Guerreiro cabe<br />
evidentemente no<br />
rei. Cristo gladífero<br />
seria Ele enquanto<br />
Rei, que avança de<br />
gládio em punho<br />
para mandar, etc.<br />
Nasceria daí uma<br />
pergunta que me<br />
encanta, mas para<br />
a qual não tenho<br />
senão vislumbres<br />
de resposta:<br />
Poder-se-ia num<br />
mundo sensível, visível,<br />
como também<br />
no mundo das almas,<br />
imaginar almas mais voltadas<br />
a contemplar a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo como Rei, outras como<br />
Sacerdote e outras como Profeta?<br />
A consideração de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo como Guerreiro cabe<br />
evidentemente no rei. O generalato,<br />
a condição de guerreiro é própria<br />
ao rei. O rei, quando não é obedecido<br />
ou se lhe transgride a vontade<br />
em qualquer coisa, é o que luta,<br />
Cristo Gladífero<br />
Catedral de Amiens,<br />
França<br />
faz a guerra para impor a sua vontade.<br />
É conforme a ordem e o direito.<br />
De maneira que é essencial à função<br />
de rei. Cristo gladífero seria Ele<br />
enquanto Rei, que avança de gládio<br />
em punho para mandar, etc.<br />
Então nesta Terra nós não poderíamos<br />
considerar vislumbres disso,<br />
por exemplo, no pai de família?<br />
Ele não tem um pouco do sacerdote,<br />
do rei e do profeta? Reluzimentos<br />
ele possui.<br />
É conhecido o aforismo: “O pai<br />
é rei de seus filhos, o rei é pai dos<br />
pais.” Realmente, a presença do pai<br />
só é plena na casa quando ele é majestoso,<br />
o atrativo e a movimentação<br />
da residência. Ele enche a casa com<br />
o movimento forte e o pulsar de sua<br />
alma.<br />
De outro lado, o pai tem qualquer<br />
coisa de sacerdotal. A missão sacerdotal<br />
foi toda absorvida pelo sacerdócio<br />
sobrenatural e pertence a uma<br />
classe instituída por Nosso Senhor.<br />
Mas não deixa de ser verdade que o<br />
pai de família conserva residualmente<br />
uma representação da família junto<br />
a Deus. E por causa disso é ele<br />
que consagra a família ao Sagrado<br />
Coração de Jesus, não é necessariamente<br />
o sacerdote; ele pode rezar,<br />
dar bênção, tem certas funções de<br />
intermediário natural junto a Deus,<br />
que não desapareceram.<br />
Certa ocasião, um bispo me disse<br />
que a oração do pai e da mãe,<br />
Deus atende muito mais<br />
especialmente do que<br />
qualquer outra prece.<br />
Porque aquele<br />
é o pai, aquela é a<br />
mãe; embora uma<br />
pessoa possa rezar<br />
por um determinado<br />
filho de outrem<br />
com mais fervor,<br />
com mais virtude,<br />
se é o pai que está pedindo,<br />
Deus toma em consideração<br />
especial a oração do pai.<br />
Não quer dizer que Ele leve mais em<br />
13
Reflexões teológicas<br />
Francisco Lecaros<br />
Jesus expulsa os vendilhões do Templo - Catedral de Astorga, Espanha<br />
conta a oração do pai do que a de um<br />
Santo, mas que é um título especial<br />
próprio para ser atendido. De maneira<br />
que um mau pai que faça uma boa<br />
oração a favor de seu filho tem condições<br />
especiais de ser atendido. A fortiori<br />
se for bom pai. Há uma qualquer<br />
coisa de sacerdotal nisso, e a família<br />
vive suas horas augustas desse modo.<br />
Profeta. Não se pode negar que<br />
muito difusamente se encontra daqui,<br />
de lá e de acolá, além da função<br />
de guia, própria ao profetismo,<br />
uma certa capacidade de precognição<br />
do futuro em determinados pais<br />
e mães: “Olha, cuidado, vai acontecer<br />
assim...” Ou então quando dizem:<br />
“Bom filho, tu vais ser abençoado,<br />
Deus vai te dar tais graças...”; e,<br />
de um modo ou outro, Deus concede.<br />
É um complemento harmonioso<br />
da autoridade paterna.<br />
Nós não teremos uma obrigação<br />
de desenvolver esse tríplice aspecto<br />
de nossa personalidade? E no Reino<br />
de Maria esses três lados não vão reluzir<br />
muito mais nos homens, embora<br />
nas proporções da vocação de cada<br />
um? Eu acredito que sim.<br />
Por exemplo, Santo Inácio de<br />
Loyola era um verdadeiro rei, sacer-<br />
dote e profeta para os seus filhos espirituais.<br />
Distinguindo esta trilogia<br />
nos acontecimentos<br />
da História<br />
Poder-se-ia fazer uma História<br />
que procurasse distinguir os aspectos<br />
“régios”, “proféticos” e “sacerdotais”<br />
presentes em todo exercício<br />
de poder de alguém e na história<br />
de alguém ao longo da vida. Assim,<br />
todos os acontecimentos históricos<br />
dariam glória a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo enquanto Rei, Profeta e<br />
Sacerdote, na medida em que, nesses<br />
acontecimentos, esses aspectos<br />
fossem mais salientes.<br />
Então, por exemplo, a batalha de<br />
Lepanto não é uma glorificação da<br />
realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
no que ela tem de mais quintessenciado,<br />
que é a realeza de Nossa<br />
Senhora? A meu ver, pode-se e deve-se<br />
achar isso.<br />
Considerados sob este prisma, os<br />
acontecimentos da História, à medida<br />
que se desenrolassem, glorificariam<br />
a Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
à Santíssima Trindade por meio de<br />
Nossa Senhora, pois todas as graças<br />
e favores espargidos ao longo da História<br />
por Deus vieram porque Ela pediu.<br />
Compreende-se assim a onipotência<br />
suplicante d’Ela, conseguindo<br />
que a roda da História se movesse no<br />
sentido da glória de Deus.<br />
Tudo isso ponderado, no Juízo Final<br />
reluziriam sucessivamente essas<br />
três luzes com aclamações e esplendores<br />
em que, nunca deixando<br />
de brilhar, cintilassem ora mais,<br />
ora menos, considerando a História<br />
do conjunto da humanidade. Então,<br />
diante de tal acontecimento preponderantemente<br />
régio, sacerdotal ou<br />
profético, ora as almas régias, ora as<br />
sacerdotais, ora as proféticas clamariam<br />
de um modo especial e dariam<br />
à Santíssima Trindade, ao Verbo Encarnado,<br />
a Nossa Senhora uma glória<br />
especial àquele título.<br />
A instituição da<br />
Igreja foi um ato de<br />
realeza do Redentor<br />
Maria Santíssima teria, como<br />
ninguém, uma correlação com<br />
cada um desses três títulos, na<br />
devida proporção e de modo<br />
uniforme. Ela é Regina Prophetarum<br />
e a Co-Redentora do gênero<br />
humano.<br />
Rei, Sacerdote e<br />
Profeta no Evangelho<br />
Constituiria uma belíssima leitura<br />
do Evangelho considerar, nas várias<br />
atitudes de Nosso Senhor, se Ele está<br />
agindo como Rei, como Profeta ou<br />
como Sacerdote. E, tomando a figura<br />
do Santo Sudário, imaginá-la animada,<br />
falando e exprimindo-se conforme<br />
as diversas cenas evangélicas.<br />
Vemos, então, que o conceito de<br />
realeza, sendo a d’Ele, toma uma<br />
amplitude diversa da que nossa inteligência<br />
humana seria levada a conceber.<br />
Desde logo os limites se rasgam.<br />
Por exemplo, o poder que Ele<br />
14
tinha de fazer milagres, creio que<br />
Ele o exercia como Rei: mandar<br />
aplacar a tempestade, expulsar os<br />
vendilhões do Templo são caracteristicamente<br />
atos de realeza.<br />
Também quando Ele instituiu a<br />
Igreja foi um ato de realeza. Porque<br />
é próprio ao rei fazer uma instituição.<br />
De algum modo a realeza antecede<br />
ao reino, o rei funda o reino. Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, fundando a Igreja,<br />
num sentido mais especial, funda<br />
o Reino d’Ele. Então: “Tu és Pedro e<br />
sobre esta pedra… Eu te darei as chaves<br />
do Reino do Céu...” (cf. Mt 16, 18-<br />
19), tem uma majestade!<br />
Coroado de espinhos, Ele era Rei.<br />
O Rei que reina do fundo do infortúnio.<br />
Entretanto, notem que coisa bonita:<br />
durante toda a Paixão, Ele fez,<br />
ao mesmo tempo, o papel de Rei, de<br />
Sacerdote e de Profeta. Porque Nosso<br />
Senhor profetizou durante toda a<br />
Paixão a vitória d’Ele.<br />
A divina altivez, uma das notas da<br />
presença d’Ele durante toda a Paixão,<br />
é a profecia da vitória. Ele, como<br />
Rei, coroado de espinhos, entretanto<br />
sabia muito bem que haveria<br />
um momento em que o portador<br />
da mais alta coroa da Terra, em certo<br />
sentido, a da França, faria uma capela<br />
para conter um espinho da Coroa<br />
d’Ele. Apesar daqueles verdugos estarem<br />
caçoando, havia n’Ele a segurança<br />
do Profeta.<br />
Quando Ele disse “Destruí este<br />
templo e Eu o reconstruirei em três<br />
dias” (Jo 2, 19), falava de Si mesmo<br />
como templo, e que ressuscitaria ao<br />
cabo de três dias. Entra aí o Sacerdote,<br />
em termos magníficos, falando de<br />
Si mesmo como se fosse um templo:<br />
Pontífice e Vítima. Porque Ele como<br />
Vítima é Ele como Sacerdote. Quer<br />
dizer, as coisas se entrecruzaram.<br />
Nosso Senhor, com uma vara na<br />
mão, o cetro de irrisão da realeza, e<br />
a túnica de bobo, sabendo, entretanto,<br />
que todos os doutores iriam analisar<br />
ponto por ponto o que Ele tinha<br />
dito e encontrariam abismos de<br />
sabedoria onde aqueles boçais estavam<br />
fazendo o que estavam fazendo.<br />
É um profetismo de sabedoria.<br />
Nenhum rei ousaria empunhar essa<br />
cana! Vou dizer mais: nenhum Papa<br />
ousaria empunhá-la. No máximo<br />
consideraria uma glória imensa possuir<br />
um fragmentozinho dessa cana.<br />
No total, Ele é que foi Rei! E sabia<br />
que aquilo proclamava a grandeza<br />
d’Ele. Quer dizer, era Profeta, um<br />
Rei que profetizava, e que Se oferecia<br />
com Vítima. Ele era, pois, na Paixão,<br />
o Rei, o Profeta e o Sacerdote.<br />
É uma verdadeira beleza! <br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
26/11/1982)<br />
Jesus é condenado<br />
à morte - Museu<br />
da Semana Santa,<br />
Zamora, Espanha<br />
Paulo Mikio<br />
Francisco Lecaros<br />
15
Hagiografia<br />
Rami Tarawneh (CC3.0)<br />
Moldura para<br />
a figura de<br />
São Willehade<br />
Os saxões eram pagãos muito agressivos e frequentemente<br />
invadiam as terras dos francos, cometendo crimes e<br />
pilhagens. Carlos Magno, numa cruzada em defesa<br />
da Religião Católica, atacou-os e derrotou-os. Eles se<br />
revoltaram, mas novamente o Imperador venceu-os e lhes<br />
impôs um tributo em benefício da Santa Igreja.<br />
São Willehade, bispo e confessor.<br />
Foi o primeiro Bispo de Bremen,<br />
diocese criada pelo Imperador<br />
Carlos Magno, após suas conquistas.<br />
No ano de 788, 21º do seu reinado,<br />
Carlos Magno deu àquela igreja um<br />
diploma lavrado nos seguintes termos:<br />
“Em nome de Nosso Senhor e Salvador<br />
Jesus Cristo, Carlos, por vontade<br />
da Providência Divina, Rei. Sob o auxílio<br />
do Deus dos exércitos, conseguimos<br />
uma vitória nas guerras. É só n’Ele que<br />
nos gloriamos. E é d’Ele que nós esperamos<br />
neste mundo a paz e a prosperidade,<br />
e no outro a recompensa eterna.<br />
Salvem-se, pois, todos os fiéis de<br />
Cristo, e os saxões rebeldes aos nossos<br />
ancestrais, pela obstinação da perfídia<br />
e por um tão longo tempo rebeldes<br />
a Deus e a nós, até que os tivésse-<br />
mos vencido pela Cruz do Senhor, não<br />
pela nossa. Por sua misericórdia, nós<br />
recebemos a graça do batismo, e os levamos<br />
à antiga liberdade, desobrigando-os<br />
de todos os antigos tributos que<br />
nos devem. Pelo amor d’Aquele que<br />
nos deu a vitória, de tributários os declaramos<br />
devotamente súditos.<br />
Como se recusaram a tal presente e<br />
o jugo de nosso poder, agora que foram<br />
vencidos pelas armas e pela Fé, ficam<br />
obrigados a pagar a Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo e seus sacerdotes o dízimo de todos<br />
os seus animais, frutos e culturas.” 1<br />
Zelo do poder civil para<br />
com o poder eclesiástico<br />
A ficha não se presta propriamente<br />
a um comentário a respeito<br />
de São Willehade, bispo e confessor,<br />
porque a propósito dele diz que foi<br />
Bispo de Bremen, e a respeito dessa<br />
cidade transcreve o decreto de criação<br />
da Diocese de Bremen, no ano<br />
de 788, por Carlos Magno.<br />
De maneira que, inevitavelmente,<br />
o comentário tem que ser sobre<br />
o decreto. Parece uma coisa extravagante<br />
fazer a respeito de um documento<br />
legal uma conferência que deveria<br />
versar sobre a vida de um Santo.<br />
Quem lesse os decretos promulgados<br />
hoje não encontraria tema para<br />
tal conferência. Por exemplo, um<br />
decreto sobre o trânsito ou, como no<br />
presente caso, a respeito de questões<br />
fiscais — porque Carlos Magno está<br />
lançando um imposto —: que matérias<br />
de vida espiritual podem caber?<br />
16
É interessante analisarmos este<br />
decreto para compreendermos a<br />
modificação completa do ambiente<br />
que vai da civilização cristã para a<br />
de nossos dias: o Imperador especifica<br />
o modo pelo qual esse tributo precisa<br />
ser pago, e torna obrigatório o<br />
cumprimento desse dever para com<br />
a Igreja.<br />
Vejam que relações íntimas entre<br />
o poder eclesiástico e o poder civil<br />
havia naquele tempo, o cuidado do<br />
poder civil pelo poder eclesiástico. E<br />
com que abundância estava provida<br />
a manutenção do clero e do culto na<br />
Catedral de Bremen, para a glória<br />
de Deus antes de tudo e, secundariamente,<br />
para a cristianização desses<br />
povos ainda semipagãos.<br />
Um ato ilícito que<br />
produziu bons frutos<br />
Observem uma outra coisa interessante:<br />
como o Imperador descreve<br />
o seu papel enquanto cobrando<br />
esse imposto. Carlos Magno mostra<br />
que se trata de um povo que era pagão,<br />
o qual ele reduziu pelas armas,<br />
quer dizer, tem sobre esse povo o direito<br />
de conquista. E um direito de<br />
conquista legítimo porque os saxões,<br />
muito agressivos, continuamente invadiam<br />
as terras dos francos, de<br />
quem Carlos Magno era o rei, fazendo<br />
provocações, crimes e pilhagens<br />
nas fronteiras, e queriam impor a religião<br />
pagã.<br />
Então, Carlos Magno, numa cruzada<br />
em defesa da Religião Católica,<br />
invadiu as terras deles e derrotou-os.<br />
Passando um pouco dos limites, ele<br />
estabeleceu o princípio: ou crê ou<br />
morre; quem não é batizado deve ser<br />
morto. E, naturalmente, o número<br />
de batismos foi enorme.<br />
Também a quantidade de execuções<br />
capitais foi muito grande. Correu<br />
água batismal e correu sangue às<br />
torrentes nessa ocasião. E ele até foi<br />
censurado pelo Papa, porque não se<br />
pode colocar ninguém diante da alternativa:<br />
ou crê ou morre.<br />
Eu estou de acordo com o Papa e<br />
não com Carlos Magno. E não é numa<br />
atitude contestatária — longe<br />
de mim isto — que vou, entretanto,<br />
fazer a seguinte observação: é que<br />
muitos batizados forçados deram resultado<br />
certo; e depois eles e os seus<br />
filhos ficaram na Fé Católica e nela<br />
perseveraram até hoje, ou até pouco<br />
tempo atrás.<br />
Quer dizer, talvez não tenha sido<br />
inteiramente lícito, ou não foi lícito<br />
e por isso não foi bom. Afirmar<br />
que não tenha sido útil já é uma outra<br />
questão.<br />
Produziu lá seus frutos...<br />
Da barbárie para o píncaro<br />
da cultura e da civilização<br />
Depois o Imperador mostra como<br />
os saxões se revoltaram de novo. E<br />
Carlos Magno teve que exercer, outra<br />
vez, uma ação de conquista sobre<br />
esse povo. E, então, os saxões viviam<br />
pela misericórdia do Imperador.<br />
Conforme as leis da guerra, ele<br />
poderia ter exterminado os saxões,<br />
porque junto a eles não era possível<br />
viver, ou ter reduzido muitos ao cativeiro.<br />
Carlos Magno não fez nada disso.<br />
Ele instituiu, fixou suas fortalezas,<br />
intensificou a cristianização, mas co-<br />
Carlos Magno recebe a submissão<br />
de um rei vencido - Palácio<br />
de Versailles, França<br />
heiligenlexikon.de (CC3.0)<br />
17
Hagiografia<br />
Rami Tarawneh (CC3.0)<br />
Jürgen Howaldt (CC3.0)<br />
Aspectos da cidade de<br />
Bremen, Alemanha<br />
brou um imposto particularmente<br />
grande, porque os saxões eram rebeldes<br />
vencidos. E o rebelde vencido<br />
é obrigado a um imposto maior.<br />
Vemos, assim, como ele sabia, nas<br />
suas apreciações, temperar a justiça<br />
com a misericórdia. Ele mostrou ser<br />
misericordioso com esse povo em várias<br />
circunstâncias, mas chegando a<br />
ocasião da justiça ele tinha o direito<br />
de exigir o imposto.<br />
Eu falei em extermínio. É claro<br />
que Carlos Magno não podia exterminar<br />
o povo inteiro, mas sim ordenar<br />
a matança de um certo número<br />
deles que fossem presos com armas<br />
nas mãos, para intimidar e nunca<br />
mais haver a possibilidade de atacarem.<br />
Vê-se que ele foi benigno, não<br />
levou as coisas tão longe; pelo contrário,<br />
soube amenizá-las de maneira<br />
que, dotando a catedral e o clero tão<br />
bem, obrigava o povo a pagar um imposto,<br />
do qual a principal vantagem<br />
era para Deus.<br />
Deus não precisa de nada, mas, enfim,<br />
era para o culto divino. E o povo<br />
tinha o maior dos benefícios, porque,<br />
bem implantada a Religião numa situação<br />
de prestígio, apoiada pelo poder<br />
temporal, pelo Imperador, dotada<br />
de meios para influenciar, podia<br />
deitar fundo as suas raízes no meio<br />
daquela gente. E isto para eles era o<br />
melhor, pois saíam do estado de barbárie<br />
e podiam chegar, como de fato<br />
chegaram, ao píncaro da cultura e da<br />
civilização. É a Alemanha.<br />
Compreendemos, portanto, como<br />
Carlos Magno era sábio e benfazejo<br />
no que estava dispondo e estabelecendo.<br />
E isto está mais ou menos dito<br />
no decreto, embora este não desça<br />
tanto a fundo nas coisas.<br />
Carlos Magno, servidor<br />
da Santa Igreja<br />
É bonito notarmos como o Imperador<br />
atribui todas essas vitórias<br />
a Deus. Ele diz: nós vencemos pelo<br />
auxílio divino. Como quem afirma:<br />
Eu sei que venci essas batalhas, mas<br />
não passei de instrumento de Deus;<br />
se não fosse a interferência d’Ele eu<br />
teria perdido essa guerra.<br />
Todas essas ideias a respeito da<br />
missão de Carlos Magno na História,<br />
do seu papel junto aos povos pagãos,<br />
como distribuidor da justiça e<br />
da misericórdia em nome de Deus,<br />
como braço direito da Igreja na ordem<br />
temporal, tudo isso cabe no título<br />
inicial, que é este: “Em nome de<br />
Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo,<br />
Carlos, por vontade da Providência<br />
Divina, Rei.” Tem uma beleza extraordinária!<br />
Observem a incisão das palavras.<br />
Quer dizer, aqui estou eu, mas isso<br />
desce do alto. Tem-se a impressão<br />
que a indicação desse título é acompanhada<br />
de revoadas de Anjos, de<br />
sinos de catedrais que tocam, de esplendor<br />
e de luz no céu: Carlos, por<br />
vontade do Onipotente, Rei, porque<br />
a Providência Divina queria que ele<br />
fosse rei. O representante de Deus<br />
na Terra para as coisas temporais,<br />
e o servidor da Santa Igreja Católica<br />
em tudo quanto ela possa querer<br />
dentro da ordem temporal.<br />
Tudo quanto a palavra tem de sacral,<br />
toda a plenitude de seu poder brilha<br />
por causa do que vem antes: é a<br />
vontade de Deus, o desígnio da Providência<br />
dando o fundamento, o sentido<br />
e a tônica a esse poder. Então compreendemos<br />
a beleza desse decreto.<br />
A verdadeira vida<br />
é a santidade<br />
A esses comentários será inteiramente<br />
estranho São Willehade?<br />
Eu creio que de nenhum modo.<br />
Tudo isso está para São Willehade<br />
mais ou menos como o vaso para a<br />
flor. Tomem um vaso magnífico feito<br />
para conter uma flor. Enquanto nele<br />
não entra a flor, ele está numa certa<br />
orfandade. O vaso só se explica,<br />
18
Oppaxd (CC3.0)<br />
mostra a sua beleza inteira quando<br />
nele se põe uma flor ainda mais<br />
bela do que o vaso; a beleza<br />
da natureza, da obra direta de<br />
Deus, supera, de algum modo,<br />
a pulcritude que o homem<br />
fez para conter aquela<br />
obra-prima da natureza.<br />
E São Willehade é a<br />
flor desse vaso. Quer<br />
dizer, do que adiantaria<br />
a grande catedral, o<br />
sólio episcopal, o grande<br />
Imperador, se para<br />
um lugar como esse nunca<br />
fosse designado um<br />
verdadeiro Santo, se<br />
o perfume e a fermentação<br />
da santidade<br />
não se espalhassem<br />
por lá? Todas essas coisas<br />
são belas, são nobres,<br />
estão no desígnio da Providência na<br />
medida em que servem à influência<br />
da santidade e como instrumentos<br />
d’Ela. Mas a verdadeira vida de tudo<br />
isto é a santidade.<br />
De tal maneira que podemos imaginar,<br />
então, Bremen com sua catedral<br />
nova, as fileiras de saxões convertidos<br />
que vão, em dias determinados,<br />
entregar os seus dízimos para<br />
que o templo e o culto divino sejam<br />
mantidos convenientemente, os<br />
Lucio C. R. Alves<br />
cânticos, o povo. Mas nada é tão belo<br />
quanto conjecturar o sólio episcopal<br />
no qual está o Santo, representando<br />
Deus, com uma plenitude<br />
e uma densidade de representação<br />
muito maior ainda que a de Carlos<br />
Magno. O poder espiritual vale<br />
mais que o poder temporal, porque<br />
é mais densamente sacral. Willehade<br />
está representando Deus enquanto<br />
bispo e enquanto Santo.<br />
Compreendemos, então, quem<br />
ele era na sua catedral e na Cristandade<br />
nascente; naquele ambiente<br />
todo preparado pelo zelo de Carlos<br />
Magno, ele era a flor. Dele é que<br />
vinha o perfume, o encanto da vida,<br />
da vida sobrenatural, da graça. Assim,<br />
nós temos a moldura na qual<br />
podemos imaginar a figura de<br />
São Willehade.<br />
Imaginar como? Para<br />
nós, a figura do tipo ideal do<br />
bispo, de um Santo que é<br />
o tipo ideal do católico.<br />
Nós lhe podemos atribuir<br />
um físico segundo<br />
a nossa fantasia. Mas a<br />
alma sabemos em linhas<br />
gerais como é,<br />
porque os Santos são<br />
todos tão diferentes<br />
uns dos outros, mas tão<br />
parecidos uns com os outros.<br />
Ali se encontrava um<br />
Santo, está tudo dito. De<br />
maneira que o “Santo do<br />
Dia” começa assim: Carlos,<br />
por vontade de Deus e por<br />
desígnio da Providência, Rei.<br />
E termina: São Willehade, Bispo<br />
por vontade de Deus e desígnio<br />
da Providência, Santo. Inicia com um<br />
Rei e termina num Santo.<br />
Aí está a Idade Média no seu esplendor.<br />
<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
8/11/1971)<br />
1) Não dispomos dos dados bibliográficos<br />
desta ficha.<br />
19
Francisco Lecaros<br />
C<br />
alendário<br />
1. São Nuno Álvares Pereira<br />
(†1431). Condestável do Reino, vencedor<br />
de muitas batalhas, abandonou<br />
o mundo e ingressou na Ordem Carmelita,<br />
sob o nome de Nuno de Santa<br />
Maria.<br />
2. Comemoração de Todos os Fiéis<br />
Defuntos.<br />
Santo Ambrósio, abade (†c. 520).<br />
Por sua exemplar conduta, foi enviado<br />
como abade ao mosteiro de Saint-<br />
-Maurice-en-Valais, Suíça, onde estabeleceu<br />
a prática do louvor perpétuo.<br />
3. São Martinho de Porres, religioso<br />
(†1639).<br />
Beata Alpaídes, virgem (†1211).<br />
Sendo muito jovem foi cruelmente espancada<br />
e abandonada pelos seus familiares.<br />
Viveu reclusa numa pequena<br />
cela até à velhice, em Cudot, França.<br />
4. São Carlos Borromeu, bispo<br />
(†1584).<br />
São Félix de Valois (†séc. XIII).<br />
Príncipe da casa real francesa, renunciou<br />
ao mundo e auxiliou São João da<br />
Mata na fundação da Ordem da San-<br />
Santa Gertrudes<br />
dos Santos – ––––––<br />
tíssima Trindade para a Libertação<br />
dos Cativos.<br />
5. São Geraldo, bispo (†1123). Homem<br />
de admirável simplicidade, brilhou<br />
por sua profunda humildade como<br />
cônego regular de Santo Agostinho<br />
e mais ainda como Bispo de<br />
Béziers, França.<br />
6. Solenidade de Todos os Santos<br />
(no Brasil, transferida do dia 1º).<br />
Beata Cristina de Stommeln, virgem<br />
(†1312). Ingressou aos 12 anos<br />
no convento das beguinas de Colônia,<br />
Alemanha, e aos 15 recebeu os estigmas<br />
da Paixão.<br />
7. Santo Atenodoro, bispo (†séc.<br />
III). De nobre família pagã, converteu-se<br />
junto com seu irmão, São<br />
Gregório Taumaturgo. Foi Bispo de<br />
Nova Cesareia, na Capadócia.<br />
8. São Willehade, bispo (†789). Ver<br />
página XX.<br />
9. Dedicação da Basílica do Latrão.<br />
Beato Luís Morbioli (†1485). Filho<br />
de uma antiga família de Bolonha,<br />
Itália, aos 29 anos deixou o caminho<br />
dos vícios e levou vida de penitente.<br />
Com sua palavra e seu exemplo converteu<br />
muitos para a vida de piedade.<br />
10. São Leão Magno, Papa e Doutor<br />
da Igreja (†461).<br />
São Justo, bispo (†627). Enviado<br />
pelo Papa São Gregório Magno para<br />
ajudar Santo Agostinho na evangelização<br />
da Inglaterra, foi eleito Bispo<br />
de Rochester e depois de Cantuária.<br />
11. São Martinho de Tours, bispo<br />
(†397).<br />
Santa Marina de Omura, virgem<br />
e mártir (†1634). Terciária dominicana<br />
que foi encarcerada em Nagasaki,<br />
Japão, levada a uma casa pública para<br />
Francisco Lecaros<br />
escárnio da sua castidade, e finalmente<br />
queimada viva.<br />
12. São Josafá, bispo e mártir<br />
(†1623).<br />
Santo Emiliano, presbítero (†574).<br />
Depois de muitos anos de vida eremítica<br />
nas redondezas de Berceo, Espanha,<br />
abraçou a vida monástica, tornando-se<br />
exemplo de generosidade<br />
para com os pobres.<br />
Santo Edmundo<br />
13. XXXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Homobono (†1197). Comerciante<br />
de Cremona, Itália, que se destacou<br />
pela sua caridade para com os<br />
pobres e as crianças abandonadas.<br />
14. Santos Nicolau Tavelic, Deodato<br />
Aribert, Estêvão de Cuneo e Pedro<br />
de Narbona, presbítero e mártir<br />
(†1391). Religiosos franciscanos queimados<br />
vivos pelos sarracenos em Jerusalém,<br />
por pregarem de público a Religião<br />
cristã.<br />
15. Santo Alberto Magno, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†1280).<br />
20
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
Memmingen (CC3.0)<br />
Santo Odon<br />
São Rafael de São José, presbítero<br />
(†1907). Engenheiro militar, participou<br />
da insurreição lituano-polonesa<br />
contra a Rússia, sendo condenado<br />
a trabalhos forçados. Posto em liberdade,<br />
tornou-se carmelita.<br />
16. Santa Margarida da Escócia,<br />
rainha (†1093).<br />
Santa Gertrudes, virgem (†1302).<br />
Religiosa do convento cisterciense de<br />
Helfta, Alemanha, recebeu revelações<br />
a respeito do Sagrado Coração<br />
de Jesus.<br />
17. Santa Isabel da Hungria, religiosa<br />
(†1231).<br />
Beato Lopo Sebastião Hunot,<br />
presbítero (†1794). Por ser sacerdote,<br />
foi encerrado num barco-prisão ancorado<br />
em Rochefort, França, onde<br />
morreu consumido pelas febres.<br />
20. Solenidade de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, Rei do Universo. Ver página<br />
2.<br />
Santo Edmundo, mártir (†869).<br />
Rei dos anglos orientais, foi capturado<br />
por invasores pagãos e mereceu<br />
ser coroado com o martírio.<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />
Santo Agápio, mártir (†306). Depois<br />
de ser submetido a diversos suplícios<br />
na cidade de Cesareia da Palestina,<br />
foi atirado ao mar com pedras<br />
atadas nos pés.<br />
22. Santa Cecília, virgem e mártir<br />
(†séc. inc.).<br />
São Benigno, bispo (†c. 470). Durante<br />
a grande perturbação causada<br />
pelas invasões em Milão, Itália, administrou<br />
sua diocese com grande zelo e<br />
piedade.<br />
23. São Clemente I, Papa e mártir<br />
(†séc. I).<br />
São Columbano, abade (†615).<br />
24. Santos André Dung-Lac, presbítero,<br />
e companheiros, mártires<br />
(†1625-1886).<br />
São Porciano, abade (†d. 532).<br />
Sendo jovem escravo, procurou refúgio<br />
num mosteiro da região de Auvergne,<br />
França, do qual chegou a ser<br />
abade.<br />
Francisco Lecaros<br />
27. I Domingo do Advento.<br />
Nossa Senhora das Graças ou da<br />
Medalha Milagrosa.<br />
São Gulstano, monge (†c. 1040).<br />
Ainda muito jovem, escapou das<br />
mãos dos piratas e foi acolhido por<br />
São Félix no mosteiro de Rhuys,<br />
França. Embora analfabeto, recitava<br />
de cor o Saltério e prestava assistência<br />
aos navegantes.<br />
28. São Tiago da Marca, presbítero<br />
(†1476). Religioso da Ordem dos Menores<br />
em Nápoles, Itália, brilhou pela<br />
sua pregação e austeridade de vida.<br />
29. Beatos Dionísio da Natividade,<br />
presbítero, e Redento da Cruz<br />
(†1638). Carmelitas descalços martirizados<br />
na ilha de Sumatra, Indonésia.<br />
30. Santo André, Apóstolo.<br />
São Tudual, abade e bispo (†séc.<br />
VI). Foi o primeiro Bispo de Tréguier,<br />
na Bretanha Menor, França. Construiu<br />
ali diversos mosteiros.<br />
18. Dedicação das Basílicas de São<br />
Pedro e São Paulo, Apóstolos.<br />
Santo Odon, abade (†942). Segundo<br />
abade de Cluny, reformou a observância<br />
monástica segundo a Regra de<br />
São Bento.<br />
19. Santos Roque González, Afonso<br />
Rodríguez e João del Castillo, presbíteros<br />
e mártires (†1628).<br />
Santa Matilde, virgem (†c. 1298).<br />
Mestra de Santa Gertrudes no Mosteiro<br />
de Helfta, Alemanha.<br />
25. Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem e mártir (†séc. inc.).<br />
São Márculo, bispo e mártir<br />
(†347). Segundo a tradição, foi despenhado<br />
de um rochedo, na Argélia, no<br />
tempo do imperador Constante.<br />
26. Beata Delfina (†1358-1360). Esposa<br />
de Santo Eleázar de Sabran, Conde<br />
de Ariano (no Reino de Nápoles),<br />
com o qual fez voto de guardar castidade.<br />
Depois da morte do seu esposo,<br />
viveu em pobreza e dedicada à oração.<br />
São Félix de Valois<br />
21
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
David Ayusso<br />
O amor ao maravilhoso<br />
por meio da admiração<br />
aos arquétipos<br />
Um dos melhores modos<br />
de preparar-se para a visão<br />
beatífica é, já nesta Terra,<br />
amar o maravilhoso por meio<br />
da admiração aos arquétipos.<br />
Que relação tem esse amor<br />
com a prática do primeiro<br />
Mandamento?<br />
Para saber o que é um arquétipo,<br />
é preciso saber o que é<br />
um tipo: a palavra arquétipo<br />
vem de “arqui”e “tipo”.<br />
Definindo o que é um<br />
tipo e um arquétipo<br />
Arquibancada é uma bancada por<br />
cima de outra. Tal coisa é arqui-conhecida,<br />
quer dizer, há uma porção<br />
de outras coisas que são conhecidas,<br />
esta é mais do que todas as outras;<br />
mais do que muitas outras.<br />
Então, cada conhecimento, vamos<br />
dizer, cada degrau de uma escada<br />
é análogo ao outro, mas o mais<br />
alto degrau da escada pode ser mais<br />
ornado, com um tapete que deita suas<br />
franjas. É o mais importante, porque<br />
é o fim da escada. Ele é, de algum<br />
modo, o “arquétipo” dos outros<br />
degraus.<br />
Na linguagem de nossa comissão<br />
de estudos chamamos de arquetipia<br />
o fato de que Deus pôs nas criaturas<br />
uma ordem, uma relação, pela<br />
qual umas são “tipo” das outras e a<br />
que está mais no alto é a arquetípica.<br />
Quer dizer, é o tipo dos tipos.<br />
Uma rosa, por exemplo: é bonita,<br />
agradável de ver. É possível que<br />
alguém goste de olhá-la, embora<br />
não a ache “tipo”. Mas se ela tem<br />
todas as formas de beleza próprias<br />
a essa flor, dizemos: “Rosa é isto!”<br />
Ou seja, é uma rosa que caracteriza,<br />
que resume em si, que apanha<br />
as qualidades de todas as rosas. É<br />
um tipo!<br />
Fulano é um brasileiro típico.<br />
O que quer dizer isto? Que se tra-<br />
22
Gustavo Kralj<br />
ta de um brasileiro que reúne em si<br />
as qualidades comuns da nação —<br />
qualidades e defeitos! —, mas de<br />
um modo especial aquilo por onde o<br />
brasileiro, nas suas qualidades e nos<br />
seus defeitos, é diferente das outras<br />
nações. Então olha-se para ele e diz-<br />
-se: “Aquele é típico”.<br />
Dentro do Brasil há tipos. Pode<br />
ser um gaúcho típico, um catarinense,<br />
um paranaense, um paulista, um<br />
carioca. Percorreríamos toda a lista<br />
dos Estados, cada um tem seu tipo.<br />
Quer dizer, ele tem os traços que<br />
todos têm, mas aquilo por onde, naquele<br />
Estado as pessoas são diferentes<br />
das outras, ele tem muito marcado.<br />
Então, ele é um tipo aquele Estado.<br />
O arquétipo é o tipo multiplicado<br />
pelo tipo.<br />
Outro exemplo: “Fulano é um siamês<br />
típico”. Quer dizer que ele tem<br />
tudo quanto é próprio a alguém que<br />
nasceu na Indochina onde havia o<br />
antigo Reino do Sião. Ou seja, ele<br />
tem tudo quanto é próprio a quem<br />
nasceu ali, mas tem de um modo característico<br />
que o diferencia dos outros.<br />
Quando esse “tudo” que ele reúne<br />
é “tudíssimo”, e o que o diferencia,<br />
diferencia muito, então ele é um<br />
arquétipo. Ele tem aquilo levado ao<br />
mais alto grau.<br />
Tipos e arquétipos<br />
na Criação<br />
Então, a tese é esta: Deus nosso<br />
Senhor criou as coisas de tal maneira<br />
que, por exemplo, toda espécie<br />
de pedras acaba tendo uma que é<br />
arquétipo das outras. Há pedras comuns,<br />
pedras “tipos” e pedras “arquétipos”.<br />
Podemos imaginar um rubi<br />
que um joalheiro pega com uma<br />
pinça. Perguntam a ele:<br />
— Que pedra é essa?<br />
Ele analisa, pensa um pouco e diz:<br />
— Será um berilo? Será uma turmalina<br />
vermelha? Será uma granada?<br />
Ele pensa mais um pouco e diz:<br />
— Isto aqui é um rubi!<br />
Se lhe dão uma outra pedra, ele<br />
olha um pouco e diz:<br />
— Isto é um rubi!<br />
Este é um “tipo”.<br />
O primeiro é um rubi meio apagado,<br />
meio que se confunde com outras<br />
coisas. O segundo, não. É um rubi típico!<br />
Mas se lhe mostram um rubi da<br />
coleção dos antigos xás da Pérsia, um<br />
rubi multiplicado pelo rubi, ele diz:<br />
— Oh, que rubi!!!<br />
Tomemos outra coisa: um esquilo.<br />
É um bichinho tão engraçadinho, e<br />
faz coisas que têm muito de engraçadinho.<br />
Stephen Nami<br />
Entendemos, e há certos fundamentos<br />
disso em São Tomás, que todos<br />
os esquilos que Deus criou desde<br />
o começo do mundo até ao fim do<br />
mundo, não são criados a esmo, mas<br />
formam uma coleção. De maneira<br />
que todo os modos de ser principais,<br />
possíveis no gênero esquilo acaba<br />
até o fim do mundo existindo. E formam<br />
uma coleção de esquilos que<br />
morrem. Mas Deus criou essa coleção<br />
de esquilos.<br />
Coleção de coleções<br />
Assim tudo está coleções no universo.<br />
Mais perfeitas, mais graduadas,<br />
menos graduadas, mas tudo forma<br />
coleções.<br />
Eu me lembro ter lido uma vez que<br />
num lugar do Polo Sul, por debaixo<br />
da neve — o Polo Norte é todo feito<br />
de água consolidada, já no Polo Sul<br />
há terra; terra é um modo de dizer,<br />
há corpos sólidos — há cardumes de<br />
camarões tão numerosos que através<br />
do gelo meio transparente se percebe<br />
o róseo passear. Não é bem o róseo, é<br />
a cor típica daquele camarão.<br />
23
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Éric F. S. Varela<br />
“La Virgen Blanca” - Catedral de Toledo, Espanha<br />
Todos os camarões desde o começo<br />
do mundo até o fim, todos os camarões,<br />
no fim, esgotam uma coleção.<br />
De maneira que quem os visse<br />
— se fosse possível ver todos os camarões<br />
que houve e haverá até o fim<br />
do mundo — compreenderia que é<br />
uma verdadeira beleza.<br />
Alguém poderá dizer:<br />
“Por que Deus faz isso? Se esses<br />
bichos desaparecem e Ele, no entanto,<br />
é eterno e tem em Si todas as perfeições,<br />
que lucro tem em ver esses<br />
bichinhos?<br />
Para dar uma resposta: basta que os<br />
Anjos vejam para se justificar. Os Anjos<br />
assistem a tudo isso. Eles estão colocados,<br />
de algum modo, fora do tempo.<br />
Para eles tudo é de algum modo simultâneo;<br />
de algum modo, eu estou<br />
simplificando. Então, eles têm essa<br />
noção, eles cantam glórias a Deus.<br />
Alguém dirá: “Mas quando acabar<br />
o mundo acabou isso também”.<br />
Não, porque na recordação deles<br />
fica. Fica na nossa admiração, porque<br />
nós não vemos como eles e não podemos<br />
imaginar como é. Então, é uma<br />
bonita coisa, por exemplo, olharmos<br />
para o esquilinho e perguntarmo-nos:<br />
“Quantas modalidades de esquilo<br />
houve e haverá até o fim do mundo?<br />
Em cada gênero, quantas espécies?<br />
Em cada espécie, quantas famílias?<br />
Em cada família, quantos indivíduos?<br />
Que riqueza da obra de Deus!<br />
Que maravilha há dentro disso!” Dá<br />
para uma meditação muito bonita.<br />
Seria interessante um dia, com<br />
calma, tomarmos alguns exemplos e<br />
analisar. Seria uma coisa muito adequada,<br />
muito boa!<br />
Imaginem todas as criaturas, já<br />
não apenas cada gênero formando<br />
uma coleção, mas todas as criaturas<br />
que há ou houve na Terra, formando<br />
uma coleção de coleções — notem<br />
que os Anjos veem isso assim! — podemos<br />
imaginar a variedade.<br />
Depois, em cada pináculo de uma<br />
coleção, um arquétipo, que é como o<br />
rei e o monarca daquela coleção! Várias<br />
modalidades de arquétipo, porque<br />
a natureza, vamos dizer, dos esquilos é<br />
tão rica que não basta ver um para dar<br />
uma ideia do “tipo” de esquilo. Oito,<br />
cinco, cinquenta, cinquenta mil arquétipos<br />
de esquilos. No fim pode-se imaginar<br />
o rei dos esquilos!<br />
Mensagens de Deus<br />
Isto que estou falando é acessível,<br />
é fácil de entender. E distrai o espírito.<br />
Por exemplo, não dá certo repouso<br />
tratar disso? Ora, a matéria é filosófica…<br />
Acredito que sendo apresentada<br />
a coisa de um modo humano,<br />
vivo e não apenas esquelético, as<br />
coisas da Filosofia podem atrair, e<br />
aqui está um exemplo concreto.<br />
Agora, por que que Deus criou tudo<br />
isso? É para os Anjos verem. Está<br />
bem. Só para isso? Haverá uma outra<br />
razão? Há. É que todas essas coisas<br />
exprimem de algum modo a perfeição<br />
infinita d’Ele. Cada ser que<br />
existe é como que uma mensagem de<br />
Deus que nos diz:<br />
“Meu filho, note, Eu também sou<br />
isto! O esplendor de todas as auroras,<br />
a majestade de todos os meios-<br />
-dias e a dignidade vitoriosa de todos<br />
os ocasos, tudo isto reflete-Me a<br />
Mim. E se Eu devesse ser conhecido<br />
apenas nesse filme fantasmagórico<br />
que representasse todas as auroras,<br />
todos os meios-dias e todos os ocasos<br />
de todos os lugares do mundo,<br />
em toda a História, ainda Eu, nem<br />
de longe, estava esgotado para tu teres<br />
uma ideia do que Eu sou. Mas<br />
enfim, aqui está uma coleção que<br />
pode dar uma ideia genérica, global<br />
do que sou Eu, debaixo desse ponto<br />
de vista.<br />
“Olhe agora para o esquilo! Na<br />
sua agilidade, naquilo em que ele faz<br />
sorrir, compreenda que há algo por<br />
onde Eu sou infinitamente aprazível,<br />
atraente, distensivo. Infinitamente…<br />
Sendo infinito, Eu tenho também<br />
em Mim a matriz infinita daquilo<br />
por onde o esquilo é engraçadi-<br />
24
nho. Poder-se-ia dizer: ‘Eu sou o mino,<br />
Eu sou a graça! Eu sou a majestade,<br />
Eu sou a bondade. Veja, meu<br />
filho, são mensagens que Eu dou!’”<br />
O mais alto cume<br />
Outro exemplo. Há uma imagem<br />
muito bonita — aliás, são duas imagens<br />
meio parecidas —; uma é a de<br />
Notre-Dame, está na fachada da Catedral<br />
de Notre-Dame de Paris, é<br />
Nossa Senhora com o Menino Jesus<br />
nos braços. Ela está complacente,<br />
muito materna com Ele que repousa<br />
posto nos braços d’Ela com intimidade!<br />
Mãe e o Filhinho criança. Ela<br />
é régia. O Menino Jesus, Homem-<br />
-Deus, não terá feito algumas coisas<br />
à maneira de criança e com graça de<br />
criança para Ela olhar?<br />
Outra imagem parecida é a de La<br />
Virgen Blanca.. São Luís, rei de França,<br />
primo-irmão do rei São Fernando<br />
de Espanha, mandou essa Virgen<br />
Blanca para a Catedral de Toledo,<br />
onde é conservada para veneração.<br />
É uma obra-prima. Ela tem<br />
uma expressão ligeiramente entretenida<br />
da reação infantil de Deus em<br />
face d’Ela! E Ela que é Filha do Padre<br />
Eterno, Mãe do Verbo Encarnado<br />
e Esposa do Espírito Santo, que<br />
conhece Deus como jamais criatura<br />
humana conheceu e que tem a ideia<br />
de todas as majestades, todas as<br />
grandezas de Deus como nenhuma<br />
criatura humana teve, Ela sabe que<br />
Deus, da excelsitude de suas perfeições,<br />
a está fazendo sorrir.<br />
Sente-se o envolvimento do carinho,<br />
da bondade e um incitamento à<br />
confiança na misericórdia; tudo isto<br />
dá mil ideias sobre Ele, que é o ápice<br />
de tudo. É a ponta, o mais alto cume<br />
de tudo.<br />
Coluna símbolo de<br />
certas almas<br />
Uma vez vi, numa ruína de um lugar<br />
de civilização greco-romana da<br />
Ásia Menor, no meio do cacareco,<br />
uma só coluna de pé! Havia acontecido<br />
tudo, mas aquela coluna tinha ficado<br />
de pé, sozinha! Eu senti um arrepio<br />
vendo-a. Era uma coluna de<br />
ordem coríntia, muito ornada, com as<br />
folhas de acanto. Pensei: “Por que razão<br />
eu estou tendo essa impressão?<br />
Por que chegou a me arrepiar? É porque<br />
essa coluna lembra certo tipo de<br />
resistências que o homem pode opor,<br />
quando tudo em torno dele cai, mas<br />
ele continua de pé”.<br />
Havia uma altiva família de príncipes,<br />
em Roma, que se chamava<br />
Colonna — Colonna quer dizer coluna<br />
— e o brasão deles era uma coluna<br />
com os dizeres: Mole sua stat —<br />
por seu próprio peso, por sua própria<br />
figura, está de pé.<br />
Aí eu percebi qual era a razão pela<br />
qual aquela coluna me tinha arrepiado.<br />
Começo por dizer que não me<br />
arrepio com arte grega nem romana,<br />
não tenho grande interesse. Tem coisas<br />
muito bonitas, mas não é para o<br />
meu gosto especial. Cada um é lá de<br />
um jeito. O meu é este!<br />
Aquela coluna me impressionou,<br />
não por ser de estilo grego, mas por<br />
estar de pé daquela maneira. Entendi<br />
que a coluna lembrava uma ordem<br />
de seres, uma categoria de seres<br />
muito superior a ela, que é o homem.<br />
O fato de lembrar o homem,<br />
de indicar que ele transcende a coluna<br />
por sua natureza — ele é muito<br />
mais! A coluna tem, em pedra ou em<br />
tijolo, o que o homem tem na alma.<br />
Firmeza de alma. Essa firmeza o homem-coluna<br />
tem!<br />
Por exemplo, Santo Atanásio chegou<br />
a ser muito perseguido porque<br />
combatia os arianos com muito vigor.<br />
No tempo do Império Romano do<br />
Ocidente e do Oriente, já cristianizado,<br />
católico, o mundo inteiro, de repente,<br />
ficou ariano e ele quase ficou<br />
sozinho na luta. Foi tão perseguido<br />
que em certo momento ele não teve<br />
outro remédio, para evitar ser morto,<br />
do que entrar na sepultura dos pais e<br />
morar ali, escondido. Mas ele lutou<br />
contra tudo e contra todos e o Concílio<br />
de Nicéia, com gáudio enorme,<br />
acabou definindo algo sobre a relação<br />
da natureza humana e da natureza<br />
divina em Jesus Cristo, de acordo<br />
com a verdadeira doutrina e contra<br />
o que Ario queria. Daí decorria que<br />
Nossa Senhora era Mãe de Deus.<br />
Santo Atanásio pode ser chamado<br />
a coluna da Igreja. Pobre coluna<br />
que eu vi de pé no meio das ruínas…<br />
Otto Bitschnau (CC3.0)<br />
Mais: Ele não é só o mais alto<br />
cume. É mais do que isso.<br />
Perseguição de Santo Atanásio<br />
25
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Um terremoto a derruba! Nada derrubou<br />
Santo Atanásio!<br />
Ele tinha a graça de Deus que o<br />
ajudou. Mas ele correspondeu! A<br />
muitos Deus oferece a graça e não<br />
correspondem. A ele não, Deus ofereceu<br />
e ele correspondeu largamente,<br />
generosamente! O nome dele ficou<br />
com uma espécie de glória de fogo<br />
na História da Igreja.<br />
Santo Atanásio transcende as colunas.<br />
Quer dizer, ele é de uma natureza<br />
superior. Aquilo que a coluna<br />
tem por analogia ele tem com muito<br />
mais propriedade, pois está na natureza<br />
humana.<br />
Deus é transcendente. O que tem<br />
o esquilo, o rubi, a coluna, Santo<br />
Atanásio, Deus é tão superior, mas<br />
tão superior que Ele transcende a<br />
isso. É de uma superioridade que é<br />
um abismo entre Ele e nós. Para lá<br />
desse abismo está a perfeição d’Ele.<br />
Pelo seguinte: podemos<br />
dizer que Santo Atanásio<br />
era fiel, era forte. Deus<br />
não é nem fiel nem forte,<br />
Ele é a Fidelidade, a Força.<br />
Todo mundo que é fiel<br />
o é por uma participação<br />
d’Ele. Ele é o Motor Imóvel.<br />
Tudo subsiste porque<br />
Ele sustenta. Por cima de<br />
tudo está Ele!<br />
Em busca do<br />
mais excelente<br />
Para compreendermos<br />
essa relação e para se ter<br />
uma certa noção da infinitude<br />
de Deus, consideremos<br />
que Ele criou uma<br />
coleção enorme de coleções,<br />
de tipos e de arquétipos.<br />
O homem não é o<br />
arquétipo da coluna; Santo<br />
Atanásio está para a coluna<br />
numa relação, não<br />
igual, mas um tanto parecida<br />
com a relação entre<br />
Deus e o homem. Deus,<br />
Gustavo Kralj<br />
não tem ninguém acima de Si, Ele é<br />
supremo, perfeito, infinito.<br />
Então o que acontece com a natureza<br />
humana? Quando ela é reta, instintivamente<br />
procura os arquétipos.<br />
Uma criança deitada no berço,<br />
que apenas sabe dizer “maaaaa”, se<br />
amarrarem num fio de linha uma bolinha<br />
de pingue-pongue, branca e comum,<br />
o seu instinto lhe diz que algo<br />
existe. E ela procurará desajeitadamente<br />
com os braços, pegar a coisa.<br />
Quando pega, ela tem o instinto<br />
de propriedade. Tenta-se tirar e ela<br />
não deixa… Mas há algo que não falha:<br />
há bolas bonitas que se põem<br />
em árvores de Natal. Eram bonitas,<br />
com cores reluzentes, dourado, verde,<br />
vermelho, azul, cores lindas! Se<br />
suspenderem ao mesmo tempo diante<br />
da criança a bolinha de Natal e a<br />
de pingue-pongue. Ela tem um movimento<br />
para o maravilhoso: ela vai<br />
para aquilo que tem mais luz! É uma<br />
coisa instintiva!<br />
Ponham para uma criança um instrumento<br />
de música que bata: pam!<br />
pam! pam! — um só som. A criança<br />
se habitua e não nota. Imaginem<br />
que se ponha um pouquinho de música.<br />
A criança, estando um pouco<br />
mais desenvolvida, presta mais atenção.<br />
Por quê?<br />
Porque a sua natureza é apetente<br />
de maravilhoso, no fundo apetente<br />
de Deus! Se de algum modo, nos<br />
seus sentidos, ela fosse tocada por<br />
Deus, ela inteira se voltaria para Ele.<br />
A criança apetente do maravilhoso<br />
e no fundo, por isto mesmo, apetente<br />
de Deus, ela, quando se coloca<br />
diante de algo mais excelente, ela<br />
tende para aquilo que é mais excelente.<br />
Isso é reto. Pode ser que depois<br />
a criança abuse, tenha a mania<br />
de ter uma coisa, desordens próprias<br />
da natureza humana.<br />
Mas, em si, este primeiro<br />
movimento é um<br />
movimento reto. É um<br />
movimento pelo qual<br />
o homem quer aquilo<br />
que é mais excelente,<br />
que lhe convém mais!<br />
“Enorme”, um<br />
cavalinho de pano<br />
Por causa disso, a<br />
criança tem uma imaginação<br />
muito fértil. Ela<br />
facilmente atribui aos<br />
brinquedos que tem<br />
uma qualidade que eles<br />
não têm.<br />
Uma vez passei por<br />
uma cruel decepção.<br />
Eu tinha talvez três ou<br />
quatro anos e possuía<br />
um brinquedo comum:<br />
um cavalinho de pano<br />
posto sobre umas rodinhas<br />
com eixo de metal<br />
e havia um laçozinho<br />
pelo qual eu podia pu-<br />
26
xar o cavalo. Ele, para meus braços,<br />
era um cavalo muito grande, tinha<br />
até uma certa dificuldade de segurá-<br />
-lo, então, chamava-o de “Enorme”.<br />
Quando ia brincar, pedia para me<br />
darem o meu “Enorme”.<br />
Quando minha mãe adoeceu, fui<br />
com ela para a Europa, para ela ser<br />
operada, e guardaram num armário<br />
o “Enorme” para eu brincar quando<br />
voltasse.<br />
Ddurante a viagem à Europa, de<br />
vez em quando eu falava do “Enorme”<br />
e quando voltei, eu tinha talvez<br />
um ano a mais e nesse período um<br />
ano faz uma boa diferença, pedi:<br />
— Quero o meu “Enorme”!<br />
Levaram-me, lembro-me como se<br />
fosse hoje, para o quarto do andar térreo<br />
da casa, onde havia um armário<br />
onde se guardavam os brinquedos de<br />
minha irmã, de minha prima e meus.<br />
Estava tudo trancado, porque todo<br />
mundo esteve fora nesse período. Então,<br />
tiraram e me deram o “Enorme”.<br />
A minha primeira reação foi:<br />
— Esse não é o “Enorme”!<br />
Risadas de duas ou três pessoas<br />
em torno de mim. Era terrivelmente<br />
parecido com o “Enorme”, mas<br />
terrivelmente mais “poca” do que o<br />
“Enorme”. Qual era a razão?<br />
Em parte eu tinha crescido, o<br />
“Enorme” tinha deixado de ser enorme.<br />
Em parte, eu via o “Enorme” e<br />
notava muito que ele era de pano;<br />
quando fiquei mais velho, vi que era<br />
um boneco. Quando eu fui viajar imaginava-o<br />
quase como se fosse um ente<br />
vivo. Eu atribuía ao “Enorme” algumas<br />
qualidades que um cavalo deveria<br />
ter e que um boneco não podia ter. Estava,<br />
no fundo, à procura da arquetipia<br />
do cavalo, de alguma coisa que o<br />
transcendesse: era o cavalo vivo!<br />
Desejo de coisas mais altas<br />
Coisas dessas são movimentos que<br />
existem na alma de todas as crianças.<br />
E uma das coisas que faz a maravilha<br />
da criança é exatamente isto.<br />
Por exemplo, a árvore de Natal.<br />
Não há quem, em criança, não se tenha<br />
extasiado diante de uma árvore<br />
de Natal. Mas o que é a árvore de<br />
Natal?<br />
Podemos imaginar que ela seja a<br />
figura de uma árvore como poderia<br />
existir no Paraíso terrestre.<br />
O homem como está na terra de<br />
exílio, não tem as coisas como as do<br />
Paraíso. Nele as coisas são muito mais<br />
bonitas. O que no Paraíso é mero tipo,<br />
para a terra é um arquétipo não<br />
alcançável. Então, o homem imagina<br />
a árvore de Natal e a criança se encanta,<br />
porque sua alma é desejosa de<br />
uma perfeição não existente nas coisas<br />
que existem. E ela quereria uma<br />
ordem de coisas, quereria uma natureza,<br />
quereria outras pessoas, quereria<br />
tudo como não existe, porque a<br />
sua alma foi feita para coisas maiores<br />
e deseja essas coisas maiores.<br />
Agora, porque ela deseja essas<br />
coisas maiores acontece que ela tem<br />
uma forma de talento por onde ela<br />
como que adivinha a perfeição que<br />
tudo deve ter. E por causa disso também,<br />
a criança tem uma imaginação<br />
muito criativa e tem o senso do maravilhoso<br />
levado a um alto grau.<br />
Educar catolicamente<br />
Numa educação verdadeiramente<br />
católica, os pais deveriam fazer o<br />
quê? Lecionar, ensinar às crianças a<br />
realidade inteira. Quer dizer, o que<br />
tem aqui é isto. É assim porque estamos<br />
na terra de exílio, foi cometido o<br />
pecado original, depois nós também<br />
pecamos, o que merecemos é isto. Isso<br />
é muito bonito. Então, o esquilo é<br />
muito bonito! Mas se quiser imaginar<br />
que haja esquilos se movimentando<br />
no Paraíso, como seriam?!<br />
E quando passa, às vezes, um bicho<br />
muito extraordinário: uma borboleta<br />
azul e prata, um beija-flor, alguma<br />
coisa assim, temos a impressão<br />
de que se extraviou do Paraíso e foi<br />
parar na Terra!<br />
Por isso, quando uma criança que<br />
tem uma rede dessas para pegar borboleta,<br />
vê passar — diante de si, num<br />
parque ou na mata brasileira, ou sul-<br />
-americano em geral, suponho —,<br />
uma borboleta azul e prata voando,<br />
a criança fica louca e quer pegar<br />
de todo jeito. É algo de maravilhoso<br />
que ela quer pegar.<br />
A essa tendência, o pai ou a mãe<br />
deveria dizer:<br />
“Olha, está vendo, Deus fez assim o<br />
Paraíso. Isso aqui era o ponto de partida.<br />
Isto aqui está aqui para você ter<br />
ideia de como as coisas poderiam ser e<br />
não são. Procure imaginar, olhe para o<br />
que Deus fez de maravilhoso, procure<br />
prestar atenção, procure imaginar como<br />
seria o Paraíso. Procure fazer com<br />
que tudo quanto você mexa, você modele,<br />
tenha alguma coisa que exprima<br />
essa sua tendência para o Paraíso. Rume<br />
para a perfeição!<br />
“Mas, pobre Paraíso terrestre em<br />
comparação com o Paraíso celeste!<br />
No Paraíso celeste não há flores,<br />
há Anjos! E os Anjos estão dispostos<br />
desta maneira, daquela outra. E<br />
por cima de tudo está Nossa Senhora,<br />
mais sua Mãe do que é sua própria<br />
mãe. Porque Ela te ama mais do<br />
que todas as mães juntas amariam<br />
o filho único que tivessem. A você!<br />
E se você se sente um ratinho para<br />
ser amado assim por Nossa Senhora,<br />
acredite porque é de Fé, a cada ‘ratinho<br />
humano’ Ela ama assim! Creia<br />
e confie! Alegre-se e reze! Cuide de<br />
servi-la, de batalhar por Ela!<br />
“Mas olhe para os olhos de Nossa<br />
Senhora, você verá que no fundo<br />
há um lumen que vai muito além<br />
do d’Ela. Ela está olhando para você,<br />
mas Ela, ao mesmo tempo, está<br />
olhando para alguém, [esse] alguém<br />
é o Divino Filho d’Ela! Há um lumen<br />
Christi, uma luz de Cristo n’Ela que já<br />
vai além do humano. É humano, mas<br />
é divino. Mais ainda, Ela está vendo<br />
Deus face a face! Olhe para os olhos<br />
d’Ela e é como se você olhasse num<br />
espelho para ver o Sol: o maravilho-<br />
27
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Cmleseux (CC3.0)<br />
é possível. Uma coisa não se perde,<br />
não se recupera: é o tempo perdido!<br />
Estado de amor ao<br />
maravilhoso<br />
so do maravilhoso do maravilhoso, a<br />
perfeição de todas as perfeições!”<br />
Se todos os homens tivessem isso<br />
diante de si, o mundo não seria outro?<br />
Por exemplo, um sermão sobre<br />
isso numa igreja, realçado por algo<br />
que tem a palavra do padre que a do<br />
leigo não tem: é a graça do sacerdócio.<br />
Realçado pelo púlpito, pela dignidade<br />
do edifício sagrado e pelas<br />
bênçãos especiais que Deus põe nele.<br />
Tudo ali reunido e um padre dizendo<br />
isso. Não seria de comover?<br />
As pessoas não chegariam meia hora,<br />
uma hora antes para reservar o<br />
lugar para ouvir o sermão?<br />
Assim deveriam ser os homens.<br />
O contrário da<br />
formação católica<br />
Quanta gente eu vi em torno de<br />
mim, já naquela remota época em<br />
que eu era pequeno, em que a formação<br />
não era dita assim, mas era isto:<br />
“Essas coisas são bobagens de infância,<br />
não pense nisso! Tudo quanto<br />
é maravilha é sonho. Você perde<br />
a partida da vida se você pensar<br />
em coisas dessas. Seja prático! E, para<br />
ser prático, você precisa das duas<br />
coisas: ter saúde e ganhar dinheiro!<br />
“Preocupe-se em saber responder<br />
a esta pergunta: ‘Como ter saúde?’<br />
Saiba o que é que lhe fez bem, o que<br />
é que lhe faz mal. Faça os seus exercícios.<br />
Mova-se de maneira a ter saúde,<br />
porque a doença é um horror. Outra<br />
coisa que é precis: ganhar dinheiro.<br />
Seja rico! Porque a pobreza é a mais<br />
triste das condições. Aprenda como<br />
ganhar dinheiro. Saiba sorrir, agradar,<br />
bajular, dar rasteiras, dar golpes, avançar,<br />
recuar; saiba fazer tudo, contanto<br />
que te caia nas mãos esta coisa incomparável:<br />
o ouro! Corra atrás do ouro!<br />
Não sonhe com as coisas nesta ordem.<br />
Que dinheiro te dão? Que saúde<br />
te dão? Feche seu horizonte e fique só<br />
nisso. Toque para frente na vida! Você<br />
terá o prazer, você terá a riqueza!”<br />
Isso é o contrário da formação católica!<br />
A resposta pode vir assim:<br />
Alguém — com A maiúsculo e letras<br />
de ouro, que é o próprio Homem-Deus<br />
— disse: “Não vos preocupeis,<br />
nolite esse solliciti, olhai os lírios<br />
do campo, não tecem nem fiam,<br />
entretanto, nem Salomão em toda a<br />
sua glória se vestiu como eles… (Mt<br />
6, 28)”... Tecer e fiar eram profissões<br />
lucrativas no tempo d’Ele, não tinha<br />
máquina, então o trabalhador manual<br />
muitas vezes era tecelão, fiava<br />
e tecia. Quer dizer: confiai! Confiai,<br />
porque isso se arranja. A saúde pode<br />
ser recuperada e também a fortuna<br />
que se perdeu. Pode ser ganha a fortuna<br />
que não se teve. Pode ser obtida<br />
a saúde que não se perdeu. É possível<br />
— não digo que é certo — mas<br />
É preciso uma graça muito grande<br />
para que uma alma que se tenha deixado<br />
trancar nesses horizontes mais<br />
baixos volte a compreender e a querer<br />
o maravilhoso. É uma verdadeira<br />
conversão. Para essa conversão é<br />
preciso ter graças muito grandes e<br />
muito especiais. Uma graça assim se<br />
chama o “thau”!<br />
Então, saibamos compreender o<br />
nosso “thau”: esse estado de amor ao<br />
maravilhoso, de amor desinteressado<br />
ao maravilhoso que é um dos aspectos<br />
por onde se vê o amor a Deus<br />
— amar a Deus sobre todas as coisas,<br />
primeiro Mandamento — esse aspecto,<br />
esse amor ao maravilhoso, que é<br />
um modo de focalizar o amor a Deus,<br />
eu não falei o que é porque o meu tema<br />
se tornaria inesgotável. O ver, por<br />
exemplo, as grandes figuras históricas<br />
canonizadas que refletiram a Deus de<br />
um modo, de outro modo, como foi<br />
etc. Por exemplo, na Basílica de São<br />
João de Latrão, onde mostram, no<br />
chão, a laje de pedra sobre a qual estava<br />
ajoelhado Carlos Magno na noite<br />
de Natal quando o Papa entrou e o<br />
coroou imperador, sem ele saber.<br />
Se qualquer um de nós fosse dono<br />
dessa pedra, dava até a sua vida<br />
para defendê-la. É maravilhoso muito<br />
mais do que rubi, do que flor, do<br />
que não sei o quê. São duas almas.<br />
Carlos Magno, que em alguns lugares<br />
é venerado como Santo — a Igreja<br />
não se pronunciou — e que deixou<br />
um aroma de santidade na Igreja<br />
inteira até hoje, e Leão III, Papa,<br />
Vigário de Cristo, representante de<br />
Cristo na Terra, com o poder de ligar<br />
e desligar — “O que ligares na Terra<br />
estará ligado no Céu, o que desligares<br />
na Terra estará desligado no<br />
Céu” (Mt 16, 19) — coroando o Imperador<br />
do Sacro Império.<br />
28
Pobre rubi, pedregulho engraçadinho<br />
diante da majestade dessa cena.<br />
Os sinos da Cidade Eterna bimbalhando,<br />
o Papa que entra: Carlos Magno<br />
majestosamente humilde, ajoelhado<br />
naquela laje de pedra para rezar e<br />
o Papa que manda trazer uma coroa<br />
com a qual ele não contava e o coroa<br />
ali imperador do Sacro Império. Funda<br />
o Sacro Império! Que beleza!<br />
Wolfgang Sauber (CC3.0)<br />
Que esse Sol volte a<br />
iluminar o mundo<br />
Quando uma alma conserva a inocência,<br />
ela encontra o “thau”. Mais<br />
ou menos como uma flor que está<br />
para se abrir encontra, de manhã, o<br />
primeiro raio de sol que bate.<br />
Às vezes, chegamos a certa idade<br />
com a inocência reduzida a cacos.<br />
Mas, oh cacos preciosos! Eles são<br />
como aqueles peixes e pães da multiplicação.<br />
Bondosamente, Nossa Senhora<br />
os toma e os apresenta a Nosso<br />
Senhor: “Vede que cacos, Meu Filho”<br />
e Ele os recompõe.<br />
Aí temos o ideal católico: Forte,<br />
puro, unido e se regozijando com<br />
coisas tão espirituais.<br />
Isto tudo nos leva a muito altas<br />
considerações, nos leva à ideia de<br />
que devemos pedir a Nossa Senhora<br />
essa inocência. Devemos pedir para<br />
nós, devemos pedir para os nossos irmãos<br />
de vocação. Devemos pedir para<br />
todas as criaturas de Deus, porque<br />
Deus é infinito no seu desejo de bem<br />
e quer abarcar com sua grandeza e<br />
com sua bondade a criação inteira.<br />
E então compreendemos o seguinte:<br />
há uma coisa em nossa época que<br />
tem uma beleza comparável à beleza<br />
de Carlos Magno sendo coroado por<br />
Leão III: É lutar para que esse Sol<br />
volte a iluminar o mundo.<br />
Esse Sol é Deus, é Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo! O vitral por onde entra<br />
esse Sol é Nossa Senhora! v<br />
(Extraído de conferência de<br />
12/10/1985)<br />
Coroação de Carlos Magno - Paróquia de São<br />
Pedro e São Paulo, Thaya, Áustria<br />
29
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Amauri Moreira Cezar<br />
Critérios para um<br />
bom relacionamento<br />
Depois de analisar alguns dos critérios segundo os quais<br />
costumamos avaliar as pessoas com quem desejamos<br />
estabelecer relações, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> indica os verdadeiros<br />
princípios que devem orientar o relacionamento humano.<br />
Como devemos analisar-nos<br />
uns aos outros? De que modo<br />
precisamos olhar, interpretar,<br />
considerar o valor de cada um?<br />
Como devemos entender e julgar as<br />
pessoas?<br />
Duas categorias de pessoas<br />
Eis uma boa qualificação: algumas<br />
pessoas têm alma para compreender<br />
que não existe só e nem principalmente<br />
esta vida. Há uma outra<br />
ordem de grandezas e um Ser espiritual,<br />
superior, infinito, perfeito. Em<br />
última análise, Deus Nosso Senhor e<br />
todos aqueles que O cercam na hie-<br />
rarquia divina. E tudo isso se espelha<br />
de algum modo na Criação.<br />
Essas pessoas, quando olham um<br />
pé de ipê, uma esmeralda ou uma orquídea,<br />
por exemplo, são admirativas<br />
porque sabem ver o que é mais do<br />
que elas, sem inveja e por desinteresse.<br />
Essa é uma categoria de pessoas.<br />
Outra categoria é das que só<br />
olham para cima a fim de ter inveja,<br />
e preferem não olhar para o alto. Dirigem<br />
os olhos para o lado com indiferença<br />
e para baixo com desprezo.<br />
De que gênero de pessoas é cada<br />
um de nós? Se essas são as duas categorias,<br />
temos que caber numa delas.<br />
Como somos nós?<br />
Devemos tomar em consideração<br />
que Deus ama mais os que são<br />
mais voltados para Ele. Nossa Senhora<br />
ama mais os que são mais voltados<br />
para Ela. E nós, portanto, devemos<br />
desejar o que é mais elevado,<br />
mais nobre, mais belo, mais reto,<br />
mais santo. Mas desejar admirando!<br />
E admirando desinteressadamente!<br />
O verdadeiro entusiasmo<br />
se exprime pela dedicação<br />
A partir do momento em que admiremos<br />
isto desinteressadamente,<br />
tornamo-nos entusiastas e combativos.<br />
Porque o verdadeiro entusiasmo<br />
30
Francisco Lecaros<br />
se exprime pela dedicação. Ter entusiasmo<br />
por algo ou alguém a quem<br />
não sou dedicado não significa nada.<br />
Se tenho entusiasmo sincero, eu me<br />
dedico.<br />
Então, quando notamos alguém<br />
lutar, devemos procurar na atitude<br />
dele o seguinte: pelo que ele combate?<br />
Até que ponto ele vê e entende a<br />
grandeza daquilo pelo que luta? Até<br />
que ponto sua alma está cheia disso?<br />
Até que ponto ele se dedica? Até<br />
que ponto ele é combativo?<br />
Através dessas perguntas nós podemos<br />
aquilatar uma pessoa.<br />
A partir disso compreende-se a<br />
inanidade, o zero de muitos elogios<br />
feitos às vezes a mim, que tenho a<br />
Se tenho<br />
entusiasmo<br />
sincero, eu me<br />
dedico. Então,<br />
quando notamos<br />
alguém lutar,<br />
devemos procurar<br />
na atitude dele o<br />
seguinte: pelo que<br />
ele combate?<br />
impressão de dizerem respeito a um<br />
outro, porque de tal maneira o que<br />
tem de essencial em mim não figura<br />
naquele elogio, que estão elogiando<br />
um outro.<br />
Então, elogia-se alguém porque<br />
é muito inteligente. Ora, a pessoa<br />
nasce inteligente. Já lhes passou pela<br />
mente elogiar um homem qualquer<br />
porque é narigudo, ou porque<br />
tem um nariz muito pequeno? Ninguém<br />
escolhe o nariz que tem. O sujeito<br />
nasceu com aquele nariz e precisa<br />
levá-lo até a sepultura. Goste ou<br />
não goste, seja um nariz lindo ou comum<br />
ou grotesco.<br />
Se determinada pessoa nasceu inteligente,<br />
é um dom que Deus lhe<br />
concedeu. Não é um dom sobrenatural,<br />
mas natural. Aprecia-se. O que<br />
se conclui daí?<br />
Alguém poderá dizer: “Mas ela<br />
aproveitou bem a própria inteligência.”<br />
Não se deduz muita coisa, pois<br />
há muitas pessoas que aproveitam<br />
a inteligência que possuem, e ficam<br />
muito instruídas, cultas, brilhantes.<br />
Entretanto, fazem um uso bom dessa<br />
inteligência ou são malfeitoras?<br />
Assim é com a boa educação e<br />
tantas outras qualidades…<br />
Antigamente, era raro encontrar<br />
chá no Brasil, e as pessoas que gostavam<br />
de tomá-lo mandavam vir da Inglaterra,<br />
da China, etc. E eram naturalmente<br />
as pessoas mais finas. Então<br />
se dizia “Fulano tomou chá em<br />
pequeno”, para indicar que ele teve<br />
uma educação muito seleta. O outro<br />
que só tomou café não teve uma<br />
educação muito fina, porque qualquer<br />
um tem café. Ninguém possui<br />
mérito por ter tomado chá em pequeno.<br />
Então, qual é o verdadeiro mérito?<br />
É a elevação de alma, e isso nós<br />
devemos procurar.<br />
Relacionamento com base<br />
na Fé, esperança e caridade<br />
Que relação tem isso com a Religião?<br />
Quem foi batizado e recebeu o<br />
dom da fé, tendo o espírito elevado<br />
possui muita fé. Porque quem tem<br />
espírito elevado ama, sobretudo, o<br />
que há de mais alto. E o que há de<br />
mais elevado são as verdades sobrenaturais<br />
reveladas, é a Igreja Católica<br />
que é Mestra dessas verdades.<br />
Possui muita esperança. Esperança<br />
de conseguir aquilo que sua fé lhe<br />
ensina: o Céu depois desta Terra, e<br />
dar glória a Deus, a Nossa Senhora,<br />
nesta Terra; e espera que Maria Santíssima<br />
o ajudará.<br />
Tem muita caridade, a qual não é<br />
principalmente o amor do próximo,<br />
mas é o amor de Deus, e do próximo<br />
por amor de Deus.<br />
Então possui muita fé, esperança<br />
e caridade. E depois as virtudes cardeais:<br />
justiça, fortaleza, temperança,<br />
prudência, e outras virtudes. Aí está<br />
o edifício de uma alma.<br />
Quando nos relacionamos com<br />
os outros, procuramos ver quais são<br />
os que têm o espírito mais elevado e<br />
31
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Gustavo Kralj<br />
buscamos mais a companhia, a prosa<br />
desses, ou procuramos saber quem<br />
diverte mais, conta mais chistes,<br />
brinca mais, é mais agradável de trato?<br />
Ou, então, o mais influente que<br />
comunica uma certa importância a<br />
quem é amigo dele?<br />
Essas não são razões para se dar<br />
com alguém. Motivo para se dar com<br />
alguém é fé, esperança e caridade, a<br />
elevação de alma.<br />
Uma pessoa pode passar por um<br />
oratório onde há uma imagem de<br />
Nossa Senhora, fazer o Nome do Padre,<br />
mas não tem grande fé. Um outro<br />
faz o Sinal da Cruz e possui muita<br />
fé. Um terceiro não tem fé, é emigrado<br />
do Afeganistão, mas ele olha<br />
com uma certa elevação para a imagem,<br />
e a fé começa a germinar no espírito<br />
dele.<br />
Procurem as companhias que lhes<br />
aproximam mais desse estado de espírito.<br />
Cuidado com os brincalhões!<br />
Alguém poderá objetar:<br />
— Mas a questão é que, estando<br />
com os outros, eu preciso me divertir.<br />
A esse eu responderia:<br />
— Cuidado com as pessoas brincalhonas<br />
ou que fazem muitos chistes!<br />
Em minha vida vi poucas pessoas ao<br />
mesmo tempo engraçadas e sérias. E,<br />
32<br />
Oratório em Sevilha, Espanha<br />
assim mesmo, a<br />
seriedade estava<br />
arriscada por serem<br />
engraçadas.<br />
Os Evangelhos<br />
apresentam Nosso<br />
Senhor Jesus<br />
Cristo nas mais<br />
variadas atitudes,<br />
desde Menino recém-nascido<br />
até<br />
a idade perfeita<br />
dos trinta e três<br />
anos com que Ele<br />
morreu. Nunca<br />
se vê, apesar dessa<br />
variedade de<br />
espírito, o Divino Mestre rindo.<br />
Tomem em consideração as bodas<br />
de Caná. Ele estava na festa e até concorreu<br />
para que esta tivesse alegria, fazendo<br />
um milagre estupendo: a transmutação<br />
da água em vinho. Entretanto,<br />
o Evangelho não conta que Ele tenha<br />
rido alguma vez. Eu nunca vi uma<br />
imagem, nas nossas igrejas, representado<br />
Nosso Senhor rindo. Nem sequer<br />
propriamente sorrindo.<br />
Numa atitude próxima do sorriso,<br />
às vezes. A imagem do Menino Jesus,<br />
por exemplo, é apresentada próxima<br />
do sorriso, porque se supõe que<br />
Ele está olhando para Nossa Senhora.<br />
Quem vê uma criança, imagina-<br />
-a olhando para a mãe, é normal. Então<br />
se supõe que Ele esteja sorrindo,<br />
ou melhor, olhando com sumo comprazimento<br />
para a Mãe. Rindo, nunca!<br />
Muitas imagens de Nosso Senhor<br />
O apresentam com suma afabilidade,<br />
sorrindo não. É um exemplo para nós.<br />
Alguém conhece uma aparição<br />
em que Nossa Senhora ou qualquer<br />
Anjo ou Santo diga uma coisa engraçada?<br />
Nunca!<br />
Por outro lado, tome cuidado<br />
também aquele que, por ser engraçado,<br />
atrai todos os que desejam se<br />
divertir e dar uma gargalhada, mas<br />
os desvia de Nossa Senhora.<br />
Às vezes foge-se de certas companhias<br />
que têm coisas sérias para<br />
comentar, vão ao fundo dos assuntos.<br />
Entretanto, tais pessoas, embora<br />
não digam coisas jocosas, poderiam<br />
nos aproximar da Santíssima Virgem<br />
Maria. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/1/1982)<br />
Jesus abençoando - Catedral<br />
de Barcelona, Espanha<br />
Sergio Hollmann
Luzes da Civilização Cristã<br />
Movimentos do mar...<br />
Teresita Morazzani A.<br />
...e da alma humana<br />
O movimento das águas do mar, ora tempestuoso,<br />
ora calmo, deixa transparecer uma série de gamas<br />
de beleza, todas elas extasiantes. Do mesmo modo,<br />
a arquitetura religiosa parece simbolizar os diversos<br />
aspectos da alma humana ao louvar seu Criador.<br />
V<br />
endo o mar — objeto perpétuo de meu enlevo, de<br />
meu encanto, de meu entusiasmo! — eu seria capaz<br />
de passar uma tarde inteira sozinho olhando-o,<br />
quieto, inteiramente entretido, contemplando-o...<br />
Beleza do mar e o pulchrum<br />
de sua movimentação<br />
No mar me chamava muito a atenção o seguinte: ele —<br />
na minha ótica; compreendo que outro sinta de um modo<br />
diferente, depende de cada um — apresentava para mim<br />
dois pontos extremos, com todas as gamas intermediárias.<br />
Ao contemplá-lo era-me agradável ver tantas formas<br />
de beleza que Deus tirava fazendo o mar passar de um extremo<br />
a outro através das gamas intermediárias. Ou, de<br />
repente, interromper a sequência em qualquer gama intermediária,<br />
dar um giro e passar para o outro lado.<br />
Quer dizer, o ordenado, bonito, quando avançam<br />
aquelas grandes ondas, em ofensiva para<br />
a terra, mas são ondas que não são descabeladas<br />
fazendo tumulto — o descabelado<br />
não me agrada —, mas são grandes ondas<br />
em ordem, um ataque em regra de uma<br />
cavalaria nobre. É a maré montante de<br />
certos dias, que vai cobrindo a praia. É<br />
uma coisa bonita. É a bataille rangée, em<br />
fileiras. É até bonita a variedade, por-<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
33
Rodrigo Aguiar<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
Antonio Lutiane<br />
Lucio C. R. Alves<br />
Francisco Lecaros<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Gustavo Kralj<br />
que às vezes as ondas não chegam a arrebentar, quase arrebentam,<br />
formam assim aquelas eminências e vão adiante.<br />
Outras não, pelo contrário: arrebentam e há um gáudio<br />
de gotas pelo ar que depois caem e seguem na sua<br />
ofensiva, parando um pouco antes de chegar à terra para<br />
saltitar pelo ar, antes de se entranhar nas profundidades<br />
das areias; e até aquilo virar água de novo é um<br />
processo enorme. Elas então bailam um pouco pelo ar,<br />
jubilosamente; são guerreiros que antes de dar o ataque<br />
definitivo dançam a dança da vitória. Uma coisa bonita,<br />
que me agrada ver.<br />
Mas também agrada ver quando o mar está inteiramente<br />
calmo, quase imóvel. Diríamos que está de tal maneira<br />
absorto na contemplação do céu, que nem pensa<br />
em si mesmo. Eu falo o céu, não o Céu celeste, mas a<br />
abóboda celeste, que se vê com os olhos.<br />
De repente, de um lugar qualquer, notamos que a surpresa<br />
vem, algo começa a se mover. É um vagalhão, é<br />
uma bagunça aquática, é um assalto contra a terra, porém<br />
os vários elementos do mar não vêm em bataille rangée,<br />
mas parecem se empurrar uns aos outros para tomar<br />
a dianteira e conquistar a terra mais depressa. É a<br />
beleza da variedade, do inesperado, do quase susto, do<br />
imprevisto, que tem, a meu ver, seu encanto próprio. E a<br />
sucessão das coisas torna o mar muitíssimo entretenido.<br />
Esses vários modos de ser do pulchrum... Esse é mais<br />
um pulchrum do movimento do que do mar. Quer dizer, se o<br />
mar fosse feio, o movimento dele não seria bonito. A dança<br />
é bela quando o que dança é belo. Um exército que avança é<br />
muito bonito quando é composto de homens fortes, robustos;<br />
pelo contrário, um exército de capengas que se arrasta<br />
em certa ordem não vale dois caracóis. Do mesmo modo, o<br />
mar é belo, mas a movimentação está à altura dele.<br />
Fracisco Lecaros<br />
34
Hector Mattos<br />
Depois, os mistérios que ele contém; é outro mundo<br />
que se move nas entranhas dele, que ele oculta, não se<br />
vê um polvo, é raro um peixe, é raro ver qualquer coisa,<br />
há um mundo que vive aí dentro, um mistério. Não sei se<br />
sentem como eu. Eu tenho, assim, entusiasmo pelo mar!<br />
Élans da alma expressos na arquitetura<br />
Agora, a arquitetura, e a arquitetura religiosa, diante<br />
dos movimentos da alma humana, tão parecidos com os<br />
do mar, parecem se assemelhar. Há homens cujo pensamento<br />
avança em bataille rangée, cuja oratória, cuja argumentação,<br />
cuja dialética aperta, estala. Mas há homens<br />
que não são do gênero do famoso general de Luís<br />
XIV, Turenne, mas são “condeanos” 1 : pulos de vitória<br />
em meio de raios de luz, aventura! Captam uma coisa e<br />
liquidam uma situação. Há feitios de inteligência assim,<br />
espíritos assim, há formas de beleza assim.<br />
Por exemplo, Notre-Dame. Ela é irrepreensível, ordenada,<br />
perfeita, lindíssima! Tudo lógico, mas de um lógi-<br />
co com poesia; são as lógicas não do filosofastro, mas as<br />
lógicas da mãe de família, do pai, da vida, é essa lógica<br />
verdadeira. É isso que às vezes a arquitetura apresenta.<br />
Às vezes a arquitetura borbulha e apresenta coisas<br />
meio inesperadas. E é o próprio movimento da alma religiosa,<br />
nos seus entusiasmos, nos seus êxtases, nos seus<br />
impulsos, na sua generosidade, nos lances à la Santa Teresa<br />
de Jesus, por exemplo, enormes, que deixam a alma<br />
desconcertada diante da grandeza daquilo.<br />
E isso se exprime mais na arquitetura religiosa da<br />
Igreja grega, do tempo que estava unida à Igreja Católica.<br />
Daí vem o jogo das várias cúpulas que borbulham,<br />
como o mar se move, e que se notam na Basílica de Santo<br />
Antônio na cidade de Pádua.<br />
Eu queria, então, mostrar um pouco a descrição daquilo<br />
que em Pádua me agradou... <br />
v<br />
Continua no próximo número.<br />
(Extraído de conferência de 25/11/1988)<br />
1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 - †1686).<br />
Sobre o estilo “condeano”, ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 213, p. 30.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, em 1993, contempla<br />
o mar pelas janelas de uma<br />
hospedagem em Ubatuba, Brasil<br />
Basílica de Santo Antônio, Pádua, Itália<br />
35<br />
Arquivo <strong>Revista</strong>
Leandro S. Souza<br />
Mãe da Divina<br />
Providência<br />
Oamor materno de Maria tem<br />
força regeneradora para elevar<br />
e santificar uma alma; Ela é a<br />
Medianeira das graças necessárias para<br />
a justificação daquele a quem Ela ama.<br />
Confiemos a todo instante em Nossa Senhora,<br />
lembrando-nos sempre de sua<br />
extrema meiguice para conosco, de sua<br />
compaixão para com as misérias de cada<br />
um de nós. Tenhamos presente que, na<br />
Salve Rainha, Nossa Senhora é chamada<br />
“Mãe de misericórdia”, e que o Lembrai-vos<br />
acentua a bondade d’Ela para<br />
com o pecador arrependido.<br />
Sem nos compenetrarmos da misericórdia<br />
de Maria Santíssima, nada de<br />
bom faremos. Cultivando-a, nossa alma<br />
se cumula de confiança, de alegria e<br />
de ânimo. Tendo a Mãe da Divina Providência<br />
como nossa própria Mãe, nada<br />
nos deve abater. Ela tudo resolverá se,<br />
confiantes, implorarmos seu maternal<br />
socorro.<br />
(Extraído de conferência de 16/11/1965)<br />
Rafael E. Rissi<br />
Nossa Senhora da Divina<br />
Providência - Mairiporã, Brasil