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sem remédio. É o caso da impossível ceia familiar em “A mesa” ou do filho que<br />
não nasceu em “Ser”, mas é sobretudo o caso <strong>de</strong>ssa terrível elegia amorosa e<br />
fúnebre que é “Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio”. Como pe<strong>de</strong> o gênero, o eixo verbal do poema<br />
são apóstrofes reiteradas — aqui dirigidas a uma “tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio” pretérita em<br />
que se produziu o fracasso, o <strong>de</strong>sencontro amoroso. Mas, na contramão do<br />
gênero, <strong>Drummond</strong> não se permite <strong>de</strong>linear os contornos do que se per<strong>de</strong>u —<br />
coisa, pessoa ou momento —, para então celebrá-lo e carpi-lo. Aqui, o ser<br />
amado é meramente o “rosto <strong>de</strong> alguém/ que, precisamente, volve o rosto, e<br />
passa…” e que não se evoca pelo nome próprio ou pelas feições peculiares, mas<br />
apenas indiretamente, por metonímia, por referência ao momento (a “tar<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
maio”) em que se ausenta e <strong>de</strong>ixa o vazio em seu lugar. É agora a essa tar<strong>de</strong><br />
perdida, a essa ausência “irreversível” que o poeta se dirige. 7 Quer carregá-la<br />
para sempre, como quem leva um amuleto (“Como esses primitivos que<br />
carregam por toda parte o maxilar inferior <strong>de</strong> seus mortos”), mas um amuleto às<br />
avessas, na medida em que <strong>de</strong>le não espera “portentos”:<br />
Eu nada te peço a ti, tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio,<br />
senão que continues, no tempo e fora <strong>de</strong>le, irreversível,<br />
sinal <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota que se vai consumindo a ponto <strong>de</strong><br />
converter-se em sinal <strong>de</strong> beleza no rosto <strong>de</strong> alguém<br />
que, precisamente, volve o rosto, e passa…<br />
Signo do vazio e, no limite, signo vazio, a tal “tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio” é mais um dos<br />
<strong>de</strong>spojos que o po<strong>de</strong>roso vetor da dissolução vai empilhando ao longo <strong>de</strong> <strong>Claro</strong><br />
enigma, juntando-se ao amor, à vonta<strong>de</strong>, à ação, à poesia e — como po<strong>de</strong>ria ser<br />
diferente? — a toda pretensão <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>.<br />
É o que se vê num poema <strong>de</strong>cisivo, o soneto “A ingaia ciência”, em que a<br />
“madureza” faz figura <strong>de</strong> “terrível prenda”, que tira o “sabor gratuito” <strong>de</strong> toda<br />
“oferenda”. Mais que irônica, a rima é cruel. Sabidamente filha do tempo, a<br />
maturida<strong>de</strong> afinal esvazia e <strong>de</strong>strói os mesmos objetos (“amores”, “ócios”,<br />
“quebrantos”) sobre os quais <strong>de</strong>via fazer sentir sua influência; triunfante, pois que<br />
sabedora do “preço exato” <strong>de</strong> tudo, ela porém “nada po<strong>de</strong> contra sua ciência/ e<br />
nem contra si mesma”; longe <strong>de</strong> educar e reorientar os <strong>de</strong>sejos, ela <strong>de</strong>ixa o<br />
sujeito submetido às premências <strong>de</strong> sempre, somadas agora à iminência do<br />
malogro final.<br />
Publicado quando o autor chegava à beira dos cinquenta anos e prodigalizava<br />
os gestos graves, estranhos à irreverência mo<strong>de</strong>rnista, <strong>Claro</strong> enigma termina por<br />
corroer esses mesmos gestos que presidiam a sua origem. Essa poesia da<br />
maturida<strong>de</strong> — com tudo que o termo supõe <strong>de</strong> experiência, sabedoria e, ao pé da<br />
letra, frutificação 8 — acaba por se ver exposta à suspeita <strong>de</strong> “insolvência” (“A<br />
tela contemplada”), como se as arquiteturas verbais que a custo erigiu não