10.04.2017 Views

Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

sem remédio. É o caso da impossível ceia familiar em “A mesa” ou do filho que<br />

não nasceu em “Ser”, mas é sobretudo o caso <strong>de</strong>ssa terrível elegia amorosa e<br />

fúnebre que é “Tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio”. Como pe<strong>de</strong> o gênero, o eixo verbal do poema<br />

são apóstrofes reiteradas — aqui dirigidas a uma “tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio” pretérita em<br />

que se produziu o fracasso, o <strong>de</strong>sencontro amoroso. Mas, na contramão do<br />

gênero, <strong>Drummond</strong> não se permite <strong>de</strong>linear os contornos do que se per<strong>de</strong>u —<br />

coisa, pessoa ou momento —, para então celebrá-lo e carpi-lo. Aqui, o ser<br />

amado é meramente o “rosto <strong>de</strong> alguém/ que, precisamente, volve o rosto, e<br />

passa…” e que não se evoca pelo nome próprio ou pelas feições peculiares, mas<br />

apenas indiretamente, por metonímia, por referência ao momento (a “tar<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

maio”) em que se ausenta e <strong>de</strong>ixa o vazio em seu lugar. É agora a essa tar<strong>de</strong><br />

perdida, a essa ausência “irreversível” que o poeta se dirige. 7 Quer carregá-la<br />

para sempre, como quem leva um amuleto (“Como esses primitivos que<br />

carregam por toda parte o maxilar inferior <strong>de</strong> seus mortos”), mas um amuleto às<br />

avessas, na medida em que <strong>de</strong>le não espera “portentos”:<br />

Eu nada te peço a ti, tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio,<br />

senão que continues, no tempo e fora <strong>de</strong>le, irreversível,<br />

sinal <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota que se vai consumindo a ponto <strong>de</strong><br />

converter-se em sinal <strong>de</strong> beleza no rosto <strong>de</strong> alguém<br />

que, precisamente, volve o rosto, e passa…<br />

Signo do vazio e, no limite, signo vazio, a tal “tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> maio” é mais um dos<br />

<strong>de</strong>spojos que o po<strong>de</strong>roso vetor da dissolução vai empilhando ao longo <strong>de</strong> <strong>Claro</strong><br />

enigma, juntando-se ao amor, à vonta<strong>de</strong>, à ação, à poesia e — como po<strong>de</strong>ria ser<br />

diferente? — a toda pretensão <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>.<br />

É o que se vê num poema <strong>de</strong>cisivo, o soneto “A ingaia ciência”, em que a<br />

“madureza” faz figura <strong>de</strong> “terrível prenda”, que tira o “sabor gratuito” <strong>de</strong> toda<br />

“oferenda”. Mais que irônica, a rima é cruel. Sabidamente filha do tempo, a<br />

maturida<strong>de</strong> afinal esvazia e <strong>de</strong>strói os mesmos objetos (“amores”, “ócios”,<br />

“quebrantos”) sobre os quais <strong>de</strong>via fazer sentir sua influência; triunfante, pois que<br />

sabedora do “preço exato” <strong>de</strong> tudo, ela porém “nada po<strong>de</strong> contra sua ciência/ e<br />

nem contra si mesma”; longe <strong>de</strong> educar e reorientar os <strong>de</strong>sejos, ela <strong>de</strong>ixa o<br />

sujeito submetido às premências <strong>de</strong> sempre, somadas agora à iminência do<br />

malogro final.<br />

Publicado quando o autor chegava à beira dos cinquenta anos e prodigalizava<br />

os gestos graves, estranhos à irreverência mo<strong>de</strong>rnista, <strong>Claro</strong> enigma termina por<br />

corroer esses mesmos gestos que presidiam a sua origem. Essa poesia da<br />

maturida<strong>de</strong> — com tudo que o termo supõe <strong>de</strong> experiência, sabedoria e, ao pé da<br />

letra, frutificação 8 — acaba por se ver exposta à suspeita <strong>de</strong> “insolvência” (“A<br />

tela contemplada”), como se as arquiteturas verbais que a custo erigiu não

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!