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Chicos 49

e-zine literária de Cataguases - MG - Brasil

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21 de dezembro 2016<br />

21 de junho 2017<br />

47<br />

<strong>49</strong><br />

Prosa e Verso<br />

em<br />

Cataguases


N. <strong>49</strong><br />

21 de junho de 2017<br />

Um dedo de prosa<br />

Esta é a nossa edição <strong>49</strong>.<br />

<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos<br />

meios digitais. Envie-nos teu e-mail e teremos<br />

prazer em enviar-te nossas edições.<br />

A linha editorial é fundamentalmente voltada para<br />

a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu<br />

entorno e ao mundo. Procura manter, em cada<br />

um dos seus números, uma diversidade temática.<br />

Queremos pedir desculpas aos nossos poucos leitores,<br />

ao Ronaldo Werneck e a Enrique de Resende.<br />

Publicamos na edição 48 um poema de Ronaldo<br />

como se de Enrique fosse. Um imperdoável<br />

erro dos editores.<br />

Joaquim Branco é o poeta da primeira página nesta<br />

edição. Um talentoso poeta e grande batalhador<br />

da literatura em Cataguases.<br />

Esta edição de início de inverno, é a segunda de<br />

2017. Uma agradável leitura para todos! E até o<br />

início da primavera de 2017.<br />

Divirtam-se!<br />

Capa: Foto Vicente Costa<br />

Dedicamos este número ao multiartista Paulo Fialho<br />

falecido recentemente em Cataguases MG<br />

Editores:<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

José Antonio Pereira<br />

Os <strong>Chicos</strong><br />

Colaboradores:<br />

Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />

Fotografia - Vicente Costa<br />

Ilustrações - Altamir Soares e Merson<br />

cataletras.chicos@gmail.com<br />

http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />

01


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Ao Paulo Fialho<br />

Perdemos Paulo Fialho. Cada vez que se esvai<br />

uma alma criadora, ficamos mais pobres. Aí<br />

de nós, humildes criaturas, se não existissem a<br />

arte e os artistas. Já teríamos nos imolado e<br />

seria outra a história. A música, a literatura, o<br />

cinema, a fotografia e tantas outras artes são as<br />

nossas reais salvaguardas nesse mundo violento,<br />

perigoso e cruel. Evito alcunhá-las de “anjos<br />

da Guarda” porque esses são do espectro religioso<br />

e a fé, mais do que a arte, acolhe as almas,<br />

produzindo eficácia em protege-la, salvá-las dos<br />

corriqueiros atos sórdidos da vida humana.<br />

Paulo Fialho sofreu, ao longo de sua trajetória,<br />

as consequências de caminhar solitário pelas<br />

estradas tortuosas do Fazer Artístico no Brasil.<br />

Ator e artista plástico, em determinado momento,<br />

talvez cético diante de uma realidade<br />

autoritária que vigia no país, picou a mula para<br />

a Argentina e por lá ficou um bom tempo. Mas<br />

voltou altivo, capacitado e cheio de amor pela<br />

vida. Até os seus momentos finais, ministrou<br />

cursos de produção de artesanato para os necessitados<br />

de criação e renda na cidade. Manteve<br />

também estreito relacionamento com os humildes<br />

carroceiros, trabalhadores estabelecidos<br />

nas imediações do Mercado do Produtor de Cataguases.<br />

Registro também: gostava do debate<br />

Político. Fazia a crítica da necessidade de conscientizar<br />

o povo das verdades que permeiam a<br />

atividade, mas que não são percebidas pelos<br />

mais frágeis socialmente e que fazem a diferença<br />

no ambiente de nossa relativa democracia.<br />

Trecho da crônica “Dias Nebulosos” de<br />

Vanderlei Pequeno<br />

02


Sumário<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Joaquim Branco<br />

Alguns poemas...................................................................................................... 04<br />

Fernando Abritta<br />

Sobre os corpos e outros poemas...........................................................................19<br />

Rita Marília<br />

Desfrute..................................................................................................................25<br />

Helen Massote<br />

Folhinha Mariana....................................................................................................28<br />

Charles Simic<br />

Poema e outros poemas..........................................................................................29<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

Poemas desta guerra...............................................................................................34<br />

Ronaldo Werneck<br />

O olhar de Wlademir Dias-Pino..............................................................................36<br />

Emerson Teixeira Cardoso<br />

Um minuto na eternidade, de Gleison V. Dornellas...............................................47<br />

José Antonio Pereira<br />

Aquela que é muito justa........................................................................................52<br />

José Vecchi<br />

E se Apolo falasse?.................................................................................................54<br />

Antônio Jaime Soares<br />

Aurora da minha vida.............................................................................................55<br />

Luiz Ruffato<br />

Lendo os Clássicos..................................................................................................56<br />

José Carlos de Vasconcelos<br />

O Prémio Camões e ‘um copo de cólera’... ...........................................................58<br />

José Antonio Pereira<br />

Paulicéia ou a Chicago desvairada..........................................................................60<br />

Krishnamurti Góes dos Anjos<br />

Uma colcha de retalhos da aventura humana... .....................................................62<br />

Ronaldo Cagiano<br />

Histórias testemunham metamorfoses de um país .................................................65<br />

Clips<br />

Notas, livros e afins................................................................................................68<br />

03


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Joaquim Branco<br />

Nascido em Cataguases (MG), em<br />

1940, o poeta Joaquim Branco herdou de<br />

seus conterrâneos da revista modernista Verde,<br />

do final dos anos 20, o gosto pela experimentação<br />

e pela literatura de vanguarda. É<br />

autor de livros de poesia, ensaios e ficção.<br />

Estudioso do grupo modernista cataguasense,<br />

Envolvido desde cedo com literatura, Joaquim<br />

Branco participou da organização da<br />

Exposição de Poesia Concreta de Cataguases,<br />

em 1968. No ano seguinte,<br />

publicou seu livro de estreia,<br />

Concreções da Fala, obviamente<br />

ligado à estética concretista.<br />

Em 1969, ele já estava ligado ao<br />

Poema Processo, uma radicalização<br />

da poesia concreta que dá<br />

mais peso a elementos gráficos<br />

não verbais.<br />

Joaquim Branco é sobretudo conhecido<br />

por sua participação em movimentos<br />

de poesia de vanguarda, nas década de<br />

80 do século passado.<br />

Bibliografia: Concreções da fala Poemas.<br />

Cataguases: Edição do autor, 1969; Consumito<br />

Poemas. Belo Horizonte: Edição da Impresa<br />

Oficial de Minas Gerais, 1975; Laser<br />

para lazer Poemas. Cataguases: Edições Totem,<br />

1984; Marginais do Pomba Contos<br />

(org.). Cataguases: Fundação Cultural Francisco<br />

Inácio Peixoto, 1985;<br />

500 anos do descobrimento da América Texto<br />

e pintura (erm parceria com D´Paula).<br />

Cataguases: Edição Hidroazul, 1993; O caçapalavras<br />

Poemas. Cataguases: Fundação Cultural<br />

Ormeo J. Botelho, 1997; Do pré ao pós<br />

-moderno Manual de literatura. Cataguases:<br />

Proler/Cataguases, 1998; Ascânio, o poeta<br />

da Verde (org.). Cataguases: Edições Totem,<br />

1998, além de livros de crítica, literatura infantil,<br />

etc.<br />

(...) No Poema/Processo, a partir de 1968,<br />

Joaquim Branco encontraria — a partir de<br />

pesquisas gráficas e visuais — um porto seguro<br />

para a fixação de sua poeticidade. /<br />

Uma poeticidade viva, explosiva, que, com o<br />

passar dos anos, seria marcada pela limpeza<br />

dos signos: a construção de um painel crítico<br />

relacionado com o nosso tempo e o nosso<br />

mundo". Moacy Cirne<br />

04


Tiger<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Corre a tarde em minh'alma e conjecturo<br />

que o tigre vocativo do meu verso<br />

é um tigre de símbolos e sombras (...)<br />

Jorge Luis Borges, "O outro tigre"<br />

(in O fazedor)<br />

Theda Bara me olha<br />

com olhos de quem<br />

mata, e diz:<br />

Desata-me.<br />

Decifrado, o olhar<br />

que espreitara antes<br />

agora fuzila firme<br />

e em cheio<br />

contra o vidro<br />

de um pesadelo.<br />

(Só Borges enfrentara<br />

o tigre antes.)<br />

Felina, garras e boca<br />

em perfeita dentição<br />

são arremessos para lá<br />

de ameaçadores<br />

mesmo sob uma irretocada<br />

e espessa vigília.<br />

05


Gregório de Matos<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Guerra & Poesia<br />

Gregório de mato guerra & poesia<br />

Gregório marco zero da poesia brasileira<br />

Grego rio abaixo mero gozador<br />

Gregor herança basca maior da colônia<br />

Gregório de baixo calão e alta escala<br />

Gregoriano barba e bigode, bode, espingarda<br />

Gregongório bravo que nem o diabo pode.<br />

06


Champoleônica<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

a esfinge é clara<br />

a esfinge escarra<br />

na cara do mundo<br />

se és finge ser<br />

es fin gida estátua de mar<br />

fim<br />

inócua matéria decifrada<br />

em pedra erguida<br />

sobre terra<br />

empedernida<br />

são cães canções tuas<br />

(sol solidões solidormidas)<br />

enigfácil mudimundo<br />

serenesfinge pedraberta<br />

dez anos a fio<br />

desafio<br />

o silêncio exausto de teus blocos<br />

mais hirtos que maciços<br />

07


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

A Equação da Insolvência<br />

Morre na Solvência da Inequação<br />

que morta não te decifrem<br />

que morta cifrei-te e te decifro<br />

pela fibra em cifra<br />

que vibra ainda víbora-virgem<br />

ser esfinge claresfinge esculpida<br />

consiste em fingir sercreta<br />

quando não há mais clara e rara coisa<br />

que a efígie que te deserta.<br />

08


09<br />

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10<br />

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<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Fernando Abritta<br />

Nasceu em Cataguases MG, em 1950. Reside em<br />

Juiz de Fora MG. Tem publicados os livros - umÁrvore<br />

e O Caso da Menina que Perdeu a Voz, e<br />

Uma Verde História em parceria com Joaquim<br />

Branco, um e-book - Relâmpago. E os inéditos MulaSemCabeça<br />

e A Árvore do Esquecimento.<br />

Participações: Grupo 13–RJ(1971); Expoética–RJ<br />

(1973); TOTEM(1975 a 1977); Jornal DE FATO<br />

(1977); Jornal TABU(1977); Expoética–Natal-RGN<br />

(1977); Arte de Rua-Brusque–SC(1978); jornal A<br />

República-Natal–RGN(1978); Expoética–80-<br />

Cataguases-MG(1980); Cataguases-Cartazes(2014)<br />

19


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<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Rita Marília<br />

Rita Marília T. Signorini nasceu em Rio<br />

Grande RS. Mora em Florianópolis SC Exbancária,<br />

é atualmente administradora e escritora.<br />

Ama poesia desde sempre e julga ter sido,<br />

quando muito pequena, contagiada pelo lirismo<br />

de seu pai que adorava recitar versos enquanto<br />

caminhavam juntos.<br />

“Escrevo porque a escrita sai de mim como<br />

uma lágrima, sai como uma transpiração: involuntariamente”<br />

Desfrute<br />

Senhor!<br />

Não olheis assim para mim<br />

Minhas rugas denunciam minha idade<br />

Mas, nem de longe, o meu desejo<br />

Pois que pode desnudar minha volúpia<br />

E buscar em vós o meu prazer.<br />

Senhor!<br />

Ficais assim a instigar-me?<br />

Não sabeis então<br />

Que navega em vossos olhos<br />

A pretensão de minha boca?<br />

25


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Ora, Senhor meu!<br />

Não fiqueis a bulir<br />

Quem quieta está<br />

Quem sob o disfarce da<br />

Indiferença<br />

Cobre com panos gélidos<br />

A volúpia<br />

Olhais, por certo, as mais moças<br />

Para mergulhardes no imaginário<br />

Onde o espelho do tempo vos mentirá<br />

Dizendo quem já não sois<br />

Eu, Senhor meu, miro vossa estampa<br />

Vejo vossas rugas<br />

Percebo vossos contornos<br />

E imagino<br />

Ainda possuírdes<br />

Em vossas mãos o meu desejo<br />

A descobrir que a vida,<br />

Em velhas curvas sem beleza,<br />

Também pode levar-me,<br />

Em queda livre, ao prazer<br />

26


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Por isso Senhor meu!<br />

Conservai o vosso olhar no meu decote<br />

E percebei<br />

Minha respiração ofegante<br />

Lentamente ofegante<br />

Misteriosamente ofegante<br />

E concedei-me<br />

Bulir vossa íris<br />

Massagear vossa pupila<br />

E ver-me, e sentir-me<br />

Penetrada<br />

Pelo vosso olhar<br />

Então, Senhor meu!<br />

Grávida de vossos desejos<br />

Irei embora<br />

Vaidosa e confiante.<br />

27


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Helen Massote<br />

Helen Massote nasceu em Belo Horizonte<br />

MG e mora atualmente no Rio de Janeiro<br />

RJ.<br />

É publicitária e trabalha no Portal Fiocruz.<br />

Redatora, escreve poemas e crônicas, que<br />

divide com os amigos.<br />

Publica pela primeira vez na <strong>Chicos</strong>.<br />

28


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Charles Simic<br />

Charles Simic nasceu em Belgrado em<br />

1938. Poeta, tradutor e ensaísta mudou-se para<br />

Paris aos 15 anos. Em 1954, com a mãe e um<br />

irmão, transferiu-se para os Estados Unidos a<br />

fim de se juntar ao pai, que já residia lá, hoje<br />

vive em Nem Hampshire. Já recebeu quase todos<br />

os prêmios importantes de poesia, entre<br />

eles o Pulitzer Prize e o MacArthur Grant. Foi<br />

também o Poeta Laureado dos Estados Unidos<br />

em 2007 e 2008.<br />

Poema<br />

Toda manhã esqueço como é.<br />

Vejo a fumaça avançar<br />

a passos largos sobre a cidade.<br />

Não pertenço a ninguém.<br />

Depois lembro dos meus sapatos,<br />

Que preciso calçá-los,<br />

Que ao agachar para amarrá-los<br />

Irei olhar para dentro da terra<br />

29


Invenção do nada<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Não percebi<br />

enquanto escrevia<br />

que não resta nada no mundo<br />

além dessa mesa e cadeira.<br />

E então disse:<br />

(só por dizer, para abusar da paciência)<br />

É essa a taverna<br />

sem taça, vinho, ou garçom<br />

onde sou o tão esperado bêbado?<br />

A cor de nada é azul.<br />

Eu a golpeio com a mão esquerda e a mão some.<br />

Porque, então, estou tão quieto<br />

e tão feliz?<br />

Subo na mesa<br />

(a cadeira já se foi)<br />

canto pela garganta<br />

da garrafa de cerveja vazia.<br />

30


Venus<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

No céu<br />

A bem iluminada<br />

Farmácia 24 horas<br />

Aberta,<br />

Alguma coisa, moça,<br />

Por favor,<br />

Para amenizar meu medo<br />

Do escuro.<br />

Ela, sem olhar para cima,<br />

Ocupada,<br />

Medindo<br />

Num frasco<br />

Gota após gota<br />

Daquela droga<br />

Transparente e sem cheiro<br />

Que chamam de infinito.<br />

31


Uma carta<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Caros filósofos, fico triste quando penso.<br />

É assim com vocês?<br />

Quando estou prestes a fincar os dentes no númeno<br />

alguma antiga namorada vem e me distrai.<br />

“Ela nem está viva!” grito aos céus.<br />

A luz invernosa me fez tomar aquele caminho.<br />

Vi camas cobertas por lençóis cinzas idênticos.<br />

Vi homens graves segurando uma mulher nua<br />

Enquanto jogavam água fria nela com uma mangueira.<br />

Era para acalmá-la ou era punição?<br />

Fui visitar meu amigo Bob, que disse:<br />

“Alcançamos o real quando superamos a sedução das imagens.”<br />

Fiquei radiante até perceber<br />

Que tamanha abstinência seria impossível para mim.<br />

Me peguei olhando pela janela.<br />

O pai de Bob passeava com seu cão.<br />

Ele se movia com dor; o cão esperava por ele.<br />

Não havia mais ninguém no parque,<br />

Só árvores nuas com uma infinidade de formas trágicas<br />

Para dificultar o pensamento<br />

32


O espantalho<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Deus é refutado mas o diabo não.<br />

Os tomates desse ano estão incríveis.<br />

Afunde os dentes, Martha,<br />

Como numa maçã madura.<br />

A cada mordida ponha um pouco de sal.<br />

Se os sucos escorrerem do queixo<br />

até seus seios nus,<br />

incline-se sobre a pia da cozinha.<br />

De lá você vê seu marido<br />

Parar de repente no campo aberto<br />

Diante de um pensamento muito sombrio,<br />

Abrindo os braços como um espantalho.<br />

Tradução de Sylvio Fraga Neto<br />

Poeta e compositor nasceu no Rio de Janeiro em 1986. É<br />

autor de um livro de poesia, Entre árvores (2011), um livro<br />

de tradução de poesia, O andar ao lado: três novos poetas<br />

norte-americanos (2013), e um disco, Rosto (2013).<br />

33


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />

(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />

Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />

retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />

ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />

Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />

do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />

Poemas desta guerra<br />

Henrique Silveira (1919 – 1943) foi um poeta<br />

que pouco produziu, mas o que produziu, bastou<br />

para situá-lo na plêiade dos poetas da melhor<br />

estirpe de seu tempo.<br />

Pouco se conhece de sua vida intelectual, posto<br />

que tímido, e o que se sabe de sua biografia encontra-se<br />

no livro Poemas desta guerra, pequeno<br />

volume editado aqui mesmo em Cataguases pelo<br />

professor e poeta Joaquim Branco, Edições Totem,<br />

de 1979.<br />

A capa é um excelente trabalho de Fernando<br />

Abritta que desde sempre vinha colaborando no<br />

Totem, jornal homônimo também editado por<br />

Joaquim. Fernando então estudante do Colégio<br />

Cataguases interessou-se por aqueles processos<br />

poéticos inspirado talvez pela leitura de Mario<br />

Faustino, o nome mais cotado na preferência dos<br />

alunos daquela escola, da qual também fui um<br />

deles. Que esta aproximação entre os dois resultasse<br />

na produção deste livro já que como se sabe<br />

Fernando também era desenhista.<br />

Henrique Silveira - Foto de Iannini<br />

Não fosse o trabalho desta dupla talvez não<br />

saberíamos da literatura de Henrique o que hoje<br />

sabemos nem de sua vida pessoal já que H F não<br />

conhecia a outros artistas com quem dividir suas<br />

inquietações e tornou-se muito cedo um ser solitário<br />

que exceto por publicações esporádicas no<br />

jornal Cataguases pouco divulgou seus poemas.<br />

34


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

A segunda 5 poemetos: “Concepção”,<br />

“Fantasia”, “sugestão”, “Lenda e Capricho”<br />

A terceira traz um único poema: “Renuncia”<br />

A quarta, ...à feição do Oriente: “O Bailado<br />

de Aisle”, “Continuidade do Bailado”,<br />

“Reflexão” “Contemplação” e “Canto sobre a<br />

Morte”.<br />

E por fim, “A sílide” ; “Bailado Pastoral”;<br />

“Ensaios”; “Noturno” e outros poemas e notas,<br />

alguns, sem data entre estes um que traz título<br />

bastante sugestivo: “Os anos não me envelhecem.”<br />

Acho que Henrique Silveira é poeta dotado<br />

de uma sensibilidade poética admirável e de<br />

uma forma bastante original.<br />

Em tempo: Onde se encontram os seus desenhos<br />

a crayon?<br />

Para a edição desta obra foram reunidos 75<br />

poemas e a tiragem foi de 500 exemplares. Alguns<br />

destes poemas vêm datados prevalecendo<br />

um registro cronológico que vai do ano de 1939<br />

a 1943 ano da morte do poeta quando contava<br />

apenas 23 anos.<br />

Na apresentação de Joaquim Branco para<br />

este livro, Recortes & Manuscritos, conhecemos<br />

que os primeiros poemas deste autor foram<br />

agrupados num volume com capa de couro quase<br />

todo manuscrito cujo título em letras vermelhas<br />

Diário e Poesia abria-se com a seguinte epígrafe:<br />

“Je renferme ici quelque partie de mon<br />

coeur. L’outre je te donnerai, moi--même...”<br />

Maria Simões da Silveira e<br />

José Ignacio da Silveira Trombos<br />

Pais de Henrique Silveira<br />

Sendo este dividido em cinco partes: a primeira,<br />

Diário e Poesia, tem os poemas “A Sombra”<br />

e “Pastoral”<br />

35


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

O olhar de Wlademir Dias-Pino<br />

ave<br />

ave ave<br />

ave ave ave<br />

ave voo<br />

voo<br />

voo ave<br />

voo ave ave<br />

voo ave ave ave<br />

ave vae<br />

vae<br />

36


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

A i m p o r t â ncia d e 1 9 5 6 p a r a a h i s t ó r i a d a l i t e -<br />

r a t u ra b rasileira p o d e s e r regi s t ra d a m e d i a n-<br />

t e t rê s e p i s ó d i o s c a p i t a i s : o l a nçamento d a<br />

p o e s i a c o ncre t a , a p u b l i c a ç ã o d e G rande s e r-<br />

t ã o : V e redas e o s u rg i m e n t o d e A a v e , d e<br />

W l a d e m i r D i a s - P i no, l i v ro q u e s e l i g a ( v a ) à s<br />

v i rt u a l i d a d e s g rá ficas e v e rbo - v i s u a i s d o c o n-<br />

c retismo, m a s q u e a p o n t a v a p a ra u m d e s d o -<br />

b ra r no v o nas a v e nt u r a s c o m p o s i c i o nais d a<br />

p rópria poesia conc reta.<br />

M o a c y Ci r ne in Revista Vo z e s , 1 9 7 2<br />

Entre os anos 1990 e 1995, fui<br />

Assessor de Imprensa e Editor de Textos do<br />

CCBB – e para mim não deixa de ser emocionante<br />

participar, depois de mais de 20 anos, de<br />

um evento neste belo prédio que eu tanto conheço.<br />

Principalmente por também se tratar de<br />

um projeto promovido pela FACHA, faculdade<br />

onde estudei jornalismo na década de 1970.<br />

Quando aqui trabalhei, havia um poeta barbudo<br />

e de longos cabelos à la hippie, um quase demiurgo,<br />

que resolveu montar ”seu escritório” ali<br />

nas escadas do Foyer, ao lado do Teatro I. De<br />

repente, para espanto da direção do CCBB, ele<br />

passou a ter vários seguidores, quase diria epígonos.<br />

Um dia sentei-me ao seu lado na escada e ele<br />

me disse chamar-se “Ex-Kosta K”. Não simplesmente<br />

Kosta K, mas “Ex-Kosta K”. Uma<br />

negação que se transforma e afirma. E firma e<br />

se reafirma formidável. Para surpresa minha, ele<br />

falava de Maiakóvski, Concretismo, Poema Processo.<br />

Ficamos amigos e quase-quase também<br />

virei um de seus epígonos. Nunca mais o vi,<br />

nunca mais o esqueci. Também, pudera, o “Ex-<br />

Kosta K” era primeiro e único. Agora e então,<br />

aqui e agora, sou eu quem percebo ter também<br />

me transformado em Ex. Ex-FACHA, Ex-CCBB,<br />

Ex-Roneck.<br />

Para esta mesa-redonda – com a presença do<br />

poeta Sady Bianchin, professor de artes da Facha-Faculdades<br />

Integradas Hélio Alonso, e criador<br />

de “Um Rio de Versos”, agora em sua nona<br />

edição; do poeta Tchello d´Barros, curador da<br />

mostra Imagética; e de Regina Pouchain, poeta<br />

e artista visual – fui designado a dizer algumas<br />

palavras sobre um dos pioneiros do poema visual<br />

e meu amigo de longa data, o poeta Wlademir<br />

Dias-Pino, que se encontra aqui ao meu lado,<br />

37


Wlademir In finito<br />

Ao s 90 a nos, W lademir é f ina lm ente<br />

r e conhe cido como o e norme po eta e<br />

artista p lá stico que é, o que vem<br />

a co ntecendo de sde s ua grande ex po -<br />

s i ção “O Poema I nfinito ”, que no ano<br />

p assado o cupo u to do um a n dar do<br />

MAR, o Mus e u d e A rte do R io, e pelo<br />

P rêmio Faz D i fer ença 2016, rece b ido<br />

d o jorna l O G lobo n a categoria artes<br />

p l ástica s.<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

A ex posição no MAR tomo u como e i-<br />

xo ce ntral qua tro p oemas: “ O d ia da<br />

cida d e”, “Ave”, “ So l ida ” e<br />

“ N umérico s”. V isando ampliar a exp<br />

er i ência senso ria l d os traba l hos, ess<br />

es l iv ros -po ema s f oram trans forma -<br />

d os e m grandes instala çõ es magnéticas,<br />

na s q uais os e le mento s e ram<br />

construídos e rearranjado s pe lo s v is i-<br />

ta n tes.<br />

Outro destaque foi a Enciclopédia Visual<br />

Brasileira, na qual o artista vem trabalhando nas<br />

últimas duas décadas. Composto por 1001 volumes,<br />

o trabalho pretende apresentar, por meio<br />

de pranchas resultantes da montagem alegórica<br />

de referências culturais diversas, a história da<br />

construção da imagem no mundo.<br />

Falar em mundo, Wlademir é um mundo<br />

habitado pelo pensador visual que traz dentro de<br />

si. Um artista multifário: vitrinista, tipógrafo,<br />

designer gráfico, poeta-professor, poetainventor,<br />

na classificação de Ezra Pound. Para<br />

Antonio Houaiss, “um dos mais perspicazes pesquisadores<br />

visuais no Brasil". Para o crítico Assis<br />

Brasil, “Wlademir Dias-Pino é o poeta mais<br />

independente na área da poesia experimental”.<br />

Então, dada a grandeza da tarefa, e se me<br />

permitis, permitir-me-ei ler (como já venho fazendo,<br />

e com as velhas mesóclises ora em voga)<br />

algumas palavras minhas, de outros, e até do<br />

próprio poeta e de seu pensar sobre os caminhos<br />

do poema.<br />

Mas antes vamos a uma pequena digressão, que<br />

tem a ver com o Poema Processo, movimento<br />

que ele fundou ao lado dos poetas Moacy Cirne,<br />

Álvaro e Neide Sá, seus maiores expoentes.<br />

38


L ibertar de<br />

M eu poema “L ibe rtarde ”, q u e está<br />

ex po sto a qui, n a mo stra Imagética,<br />

f o i r ea l izado neste p rédio há cerca de<br />

50 a nos. Eu traba l hava na Supla, a<br />

S u pe rintendência d e P la ne jamento do<br />

B B, no ter ceiro a ndar. Eram tempos<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

d a repr essão, embora m eno s sev era<br />

d o q ue a q ue v ir ia no a no seg u i nte,<br />

com o AI -5 . N um i n tervalo d o t rabal<br />

ho, co mece i a pensar na ba ndeira de<br />

M i nas, n aque l e “L i ber tas q ua e sera<br />

ta men” e nvolv e ndo o t riâ ng u lo verm<br />

e lho .<br />

Troquei o dito em Latim (que o poeta-menino<br />

Vinicius de Moraes lia como “Libertas que será<br />

também”, e nada entendia) por um círculo envolvendo<br />

um pequeno triângulo. Aos poucos, o<br />

triângulo crescia e já tangenciava o círculo e logo<br />

dava o que na minha desvairada cabeça seria<br />

um dialético salto qualitativo – até que cercasse<br />

o círculo, ultrapassasse totalmente a “prisão”<br />

por ele representada. O título “Libertarde” surgiu<br />

da junção do “Liberdade” com o “ainda que<br />

tardia”.<br />

Wlademir Dias-Pino com a palavra: “Programas<br />

que visem a tornar o computador cada vez mais<br />

capaz de produzir pinturas, desenhos, sinfonias<br />

e textos (aleatórios ou figurativos), reduzem as<br />

próprias possibilidades que a eletrônica oferece<br />

na pesquisa de vanguarda. É a tentativa de igualar<br />

(substituir de modo snob) o computador ao<br />

pincel, ao lápis, ao piano e ao dicionário. O uso<br />

contínuo de um instrumento torna-o extensão<br />

do homem: ´o lápis é a ponta grafitada de seu<br />

dedo´. Daí a individualidade do desenho”.<br />

Interessante registrar que “Libertarde” foi inicialmente<br />

produzido em minha mesa de trabalho,<br />

com o auxílio de uma moeda (de onde saiu o<br />

círculo), um lápis (olha o lápis do Wlademir aí!)<br />

e o livro de instruções circulares do BB, que me<br />

39<br />

ajudou a traçar o triângulo. Mais que uma época<br />

pré-digital, aquele foi um momento sem régua<br />

ou compasso. Aliás, se a Bahia deu a Gil régua<br />

e compasso, o Banco do Brasil pouco me ofereceu<br />

para a realização do poema, fora o livroesquadro.<br />

Bem, na verdade esta não é certamente<br />

função de bancos.<br />

Era realmente um tempo pioneiro, artesanal. O<br />

poema foi publicado pela primeira vez em livro,<br />

em 1972 na obra “Processo: Linguagem e Comunicação”,<br />

do próprio Wlademir. No ano seguinte,<br />

sairia no Jornal da Poesia, no Caderno B,<br />

editado por Affonso Romano de SantAnna, com<br />

direito a chamada de capa no então poderoso<br />

Jornal do Brasil. Logo, seguiria mundo, publicado<br />

em jornais, livros e revista, daqui e do exterior.<br />

Já neste século, a poeta e designer Regina<br />

Pouchain – que nos honra com sua presença<br />

nesta mesa – faria ótimas releituras cromáticas<br />

de “Libertarde” e de outros de meus poemas<br />

visuais, que podem ser vistas na seção<br />

“Trabalhos/Poemas Visuais” de meu site<br />

www.ronaldowerneck.com.br. Wlademir não<br />

diria “releituras”, mas “versões”. Isso porque,<br />

para ele, a versão é criativa: “Eu pego o poema<br />

inaugural de um cidadão e faço uma versão. O<br />

que eu fiz foi acrescer a minha experiência à<br />

conquista daquele poeta”.


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Um olhar p ra algo além<br />

Pois é, já lá se vão 50 anos. A primeira vez<br />

em que vi Wlademir Dias-Pino, foi aí por volta<br />

de 1967, não sei bem se em Cataguases, na Mata<br />

Mineira, em casa do poeta Joaquim Branco<br />

(onde ele concederia em 1977 longa entrevista<br />

sobre os rumos da poesia visual para o Totem,<br />

jornal que então editávamos em conjunto). Ou,<br />

quem sabe, no Rio, em Santa Teresa, numa reunião<br />

na casa dos poetas Neide e Álvaro de Sá, já<br />

no início dos anos 1970. Ali, onde sempre ao<br />

lado de outros companheiros, como o poetaprofessor<br />

Moacy Cirne, tentávamos estruturar os<br />

rumos do Poema Processo. Não sei bem se lá ou<br />

cá, mas o importante é que nunca me esqueci<br />

do olhar de Wlademir.<br />

Ele nunca nos olhava diretamente, mas sempre<br />

enviesado, como se buscasse o infinito. “Quem<br />

olha é responsável pelo que vê”, ele nos dizia<br />

na entrevista para o Totem, Um olhar pra além,<br />

pra algo além. Futuro ou coisa que fosse. Esse<br />

olhar assim desencontrado de Wlademir Dias -<br />

Pino é tudo o que eu captaria mais tarde como<br />

definição do que fosse, seja ou é o que entendemos,<br />

ou não, sobre poesia visual. Que eu prefiro<br />

chamar de “poema visual”, já que poema é uma<br />

coisa, poesia outra. Poema é veículo, poesia reta<br />

de chegada.<br />

40


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

A vida n o meio gráfico<br />

Um rápido flashback sobre a trajetória e o próprio<br />

nascimento de Wlademir Dias Pino já nos<br />

deixa dúvidas logo de início. É certo que o poeta<br />

nasceu em 1927 no Rio (Rua Pareto, na Tijuca).<br />

Mas em que mês? Fala-se em fevereiro,<br />

mas há registros de abril, outros de maio. Ainda<br />

bem que ele está aqui e pode nos dizer a data<br />

certa: afinal, já foi comemorado ou ainda vamos<br />

comemorar os seus 90 anos?<br />

No Rio dos anos 1930, Luciano Pino, o pai de<br />

Wlademir, é militante comunista, jornalista e<br />

trabalha como tipógrafo na Imprensa Nacional.<br />

Figura marcante em sua formação, sua mãe,<br />

Laura, é quem ensina o filho a ler e a escrever.<br />

O método didático da mãe é recortar com tesoura<br />

palavras dos jornais editados pelo próprio<br />

marido. Esse sistema de recorte de palavras e<br />

formas é mantido durante toda a vida do poeta,<br />

sendo a tesoura o instrumento de realização de<br />

várias de suas obras.<br />

Na primeira infância, Wlademir brinca com<br />

os tipos gráficos de chumbo: “Vivi no meio gráfico,<br />

comecei a lidar com o tipo desde muito<br />

cedo e ficou aquele amor pela forma das letras.<br />

Convivendo com o alfabeto desde a tenra infância,<br />

um dia conclui que a maior arbitrariedade<br />

existente na cultura humana é a imposição do<br />

código alfabético”.<br />

Em 1937, por razões políticas, Luciano, é forçado<br />

a transferir-se com a família para Mato Grosso.<br />

Wlademir chega a Cuiabá com 10 anos e lá<br />

permanecerá até os 24. Nesse período, costumava<br />

ler vorazmente os clássicos na biblioteca pública<br />

da cidade. Seu pai foi responsável pela renovação<br />

gráfica da imprensa de Mato Grosso e,<br />

como jornalista e comentarista, também produzia<br />

crítica de cinema e ensaios sobre a vida social.<br />

Nessa época, Luciano conhece o poeta Manoel<br />

de Barros que vai até sua casa para entregar<br />

um exemplar de seu primeiro livro. A visita<br />

do jovem poeta mato-grossense marca o pequeno<br />

Wlademir que, anos mais tarde, seria um dos<br />

responsáveis pelo início da divulgação de sua<br />

obra.<br />

41


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

“Os Corcu ndas” : Augusto e Philadelp ho<br />

Em 1938, com apenas 11 anos, já escrevia livros<br />

de poemas. Sem seu consentimento e em<br />

segredo, um dia seu pai, que administrava uma<br />

gráfica, publica um livro seu, que retira de um<br />

conjunto de manuscritos. Extremamente tímido,<br />

quando vê a edição Wlademir revolta-se e coloca<br />

fogo nos livros. Alguns exemplares são salvos.<br />

Coincidência ou não, em 1967, para grande espanto<br />

dos transeuntes e de tutti quanti, os poetas<br />

do movimento do Poema Processo, Wlademir,<br />

Álvaro, Neide e Moacyr Cirne à frente,<br />

queimam livros de poetas consagrados na Cinelândia.<br />

“Espantar pela radicalidade” era seu slogan,<br />

a palavra de ordem.<br />

Em 1939, “Os corcundas”, seu primeiro livro<br />

conhecido, é impresso por seu pai, agora com<br />

sua concordância, como atesta o cólofon na<br />

contracapa do único exemplar existente desta<br />

edição. Wlademir ainda não completara 12 anos<br />

de idade. O universo grotesco dos personagens<br />

do poema foi inspirado, segundo ele, na commedia<br />

dell'arte, que sua avó apresentava aos<br />

netos, além de “forçá-los” a ouvir ópera e ler<br />

peças de teatro.<br />

“Os corcundas e suas deformações linguísticas./<br />

O avesso do muro por toda a parte, o inverso./<br />

Nuvens beliscando o perfil das coisas/ Trapézio<br />

com seus dentes catando // arreiam seus olhos e<br />

como doadores de sangue/ se nivelam e dormem/<br />

aos pés dos cogumelos/ (ficando suas<br />

sombras)/ em ângulos retos borrados/ sobre seus<br />

travesseiros de lilases/ macios como o tato/<br />

(cabelos invisíveis)// e a nuvem que desce forma<br />

uma jaula/ de manequins tombados”.<br />

“Os corcundas” foi reimpresso em 1954, passando<br />

essa data a aparecer equivocadamente<br />

como a data em que foi escrito. Nas décadas de<br />

1950 e 1960, a obra é objeto de análises críticas<br />

em jornais e publicações nacionais. Em nenhuma<br />

delas é apontado o fato absolutamente extraordinário,<br />

então desconhecido, de Wlademir<br />

tê-la escrito enquanto ainda era criança, e o trabalho<br />

é tratado por toda a crítica como obra<br />

adulta e plena, precursora formal de sua surpreendente<br />

originalidade e capacidade inventiva.<br />

Em 1956, escrevia o poeta Augusto de Campos<br />

no Suplemento do Estadão: “A rebeldia de Wlademir<br />

se manifesta ainda, ao nível semântico,<br />

pela dessacralização do “poético”, através de<br />

um sistemático “culto do feio” ou do “mau gosto”<br />

em ‘Os Corcundas’, onde ocorre a intromissão<br />

de um vocabulário rejeitado em poesia e<br />

que pela constante reiteração chega a ser, mais<br />

do que prosaico, propositadamente incômodo e<br />

perturbador. Nesse monturo de dejetos verbais<br />

Wlademir trata de revolver e perseguir uma espécie<br />

de fenomenologia do indizível poético,<br />

para chegar ao fim das calvas coisas. Ao mesmo<br />

tempo sente-se nele a consciência existencial da<br />

solidão e da alienação do poeta no mundo moderno".<br />

E também o crítico e poeta Philadelpho Menezes,<br />

em seu livro Roteiro de literatura: poesia<br />

concreta e visual: "Entre o muito que foi soterrado<br />

na história da poesia concreta, há que se<br />

dar um destaque especial para o poeta Wlademir<br />

Dias-Pino. Em livros como ‘Os corcundas’,<br />

do final da década de 1940, (sic) Dias-Pino<br />

mostra uma poesia incomum para os padrões<br />

brasileiros. Com imagens estranhas, associações<br />

imprevisíveis, um vocabulário rebuscado colocado<br />

numa sintaxe toda desconjuntada, sua poesia<br />

em verso é surpreendente e pede uma reedição<br />

cuidadosa. Em ‘Os corcundas’, o tema é a deformação<br />

física. Mas a deformação não fica só<br />

no tema. Ela invade a própria linguagem, entorta<br />

a sintaxe das frases, põe vocábulos antipoéticos<br />

nos versos, deforma as palavras".<br />

42


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

“ A fome d o s lados” & “ In te nsivismo”<br />

Em “A fome dos lados”, de 1940, Wlademir,<br />

com apenas 13 anos, descreve o impacto<br />

de ver o corpo de um amigo do pai torturado e<br />

assassinado pela polícia de Filinto Müller na ditadura<br />

Vargas:” Aqui está a mancha do assassinado/<br />

livre agora era bom e é livre/ sua mancha<br />

horizontal e leve/ como são leves as coisas horizontais//<br />

Eis o morto livre/ raso e vazio/ em seu<br />

ninho de sangue calvo/ (calvo como a bala de<br />

fuzil)/ sangue que é escudo/ assim tombado//<br />

Esse mesmo sangue cheirando/ ao sopro exausto<br />

de seu hálito calvo/ como sombra duma parede<br />

lisa/ onde foi fuzilado outro rebelde”.<br />

Em 1948, em Cuiabá, ao lado de outros poetas,<br />

como Silva Freire, ele funda o movimento literário<br />

de vanguarda “Intensivismo”, trazendo em<br />

seu ideário fortes inovações formais que antecipam<br />

as tendências mais radicais da poesia visual<br />

e das artes plásticas dos anos 50 e 60. Wlademir<br />

volta para o Rio de Janeiro em 1952. Nessa década,<br />

edita e programa visualmente a Revista da<br />

União da Nacional dos Estudantes e participa<br />

dos movimentos de vanguarda política e cultural<br />

da época. Mas, mesmo distante, está sempre<br />

com um pé em Cuiabá, como ainda hoje.<br />

De lá pra cá, é história já bem sabida, ou não:<br />

em 1958, o “vitrinista” Wlademir transforma<br />

com sua arte o Carnaval do Rio numa grande<br />

vitrine. Em 1962, escreve Antônio Olinto em<br />

sua coluna Porta de Livraria, no Globo:<br />

“Há quatro anos, fez o poeta Wlademir Dias-<br />

Pino, para a então Prefeitura do Distrito Federal,<br />

uma série de desenhos concretos para a decoração<br />

de rua do Carnaval do Rio. Pela primeira<br />

vez em nossa história, entrou esse tipo de desenho<br />

em contato com o grande público. Os panos<br />

pintados por Wlademir acabaram sendo a<br />

inspiração dos carnavais seguintes, e a verdade<br />

é esta: não pode mais o carnaval do Rio voltar a<br />

ser figurativo, porque o povo se acostumou com<br />

os triângulos, os círculos, o tipo geral de desenho,<br />

enfim, de Wlademir Dias-Pino”.<br />

43


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

C on creti smo & S DJB<br />

Um dos seis poetas-pioneiros do movimento da<br />

poesia concreta no Brasil (junto a Décio Pignatari,<br />

Augusto e Haroldo de Campos, Ferreira<br />

Gullar e Ronaldo Azeredo), ele participa em<br />

1956 da I Exposição Nacional de Arte Concreta<br />

em São Paulo, que chega ao Rio no ano seguinte.<br />

Publica poemas e textos no SDJB-<br />

Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o<br />

grande veículo que acolheu o concretismo em<br />

suas páginas. Em 1967, Wlademir é um dos<br />

fundadores do Poema Processo, ao lado de Moacy<br />

Cirne, Álvaro e Neide Sá, entre outros.<br />

Em 17.02.1957, uma versão gráfico-visual do<br />

poema “A Ave” ocupa toda a terceira página do<br />

SDJB. Em 23.02.1958 publica no mesmo SDJB<br />

artigo intitulado “Da negação e positivação do<br />

espaço”, ilustrado por um fragmento em letras<br />

garrafais do poema “A Ave”.<br />

Destaco alguns, vamos dizer, “aforismos” de<br />

seu texto:<br />

“A arquitetura antes de ser parede é o buraco<br />

onde o homem mora. É a arte de organizar vazios”.<br />

“O músculo da máquina é a exatidão, daí o ar<br />

abstrato das artes modernas. É como num poema<br />

concreto: é tal a sua movimentação interior<br />

(em si) que ele passa a ser um poema sem contorno”.<br />

“Um poema escrito é antes de tudo visual e não<br />

sonoro – ele não é um instrumento musical.<br />

Não se há de confundir lira nem bandolim com<br />

um poema. A poesia é silenciosa”.<br />

“A visão completa do poema faz com que ele<br />

perca a lógica linear, o tal contorno que é o máximo<br />

de continuidade de uma linha”.<br />

“Poesia concreta é o aparecimento máximo dos<br />

recursos naturais da palavra, porém não é a palavra<br />

flexível e sim os seus movimentos de ligação.<br />

Por isso, a poesia concreta não ser confundida<br />

com trocadilho”.<br />

44


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

a ve vae<br />

Na entrevista que concedeu em 1977 ao Totem,<br />

realizada por Joaquim Branco, dizia Wlademir:<br />

“Dentro da poesia concreta a poesia está ligada<br />

ao sentido de conteúdo. É importante: não pode<br />

existir o poético sem o conteúdo. O conteúdo é<br />

o mais importante no sentido de poesia, natural<br />

do poético. Agora, quando é o poema independe<br />

do conteúdo, quer dizer, o grafismo ou a forma<br />

de registro é mais importante do que o conteúdo”.<br />

“O poema pode ser poético ou não, como um<br />

quadro pode ser bonito ou não. O poema independe<br />

do poético: a inscrição é mais importante<br />

que o conteúdo. Então ele está muito mais próximo<br />

do sentido de linguagem do que a poesia”.<br />

“O que é importante dentro do poema passa a<br />

ser então o processo do poema. Na poesia, o<br />

que se lê é a estrutura, como foi estruturada a<br />

poesia”.<br />

“O que importa no poema é o processo que ele<br />

encerra. Você vê o processo. Daí a possibilidade<br />

da versão. Na poesia se faz tradução do poético.<br />

No poema, não. Não se permite uma tradução<br />

do poema, mas uma versão”.<br />

Num de seus poemas nascidos ainda Cuiabá,<br />

Wlademir registra: “muro gradeado de fuzilaria/<br />

encostado ao limite/ – represa social.// O muro é<br />

a tela para todo o poema”. Pound tinha razão:<br />

os poetas são as antenas da raça. Esse velho<br />

muro de Wlademir, num olhar de hoje, antecipador<br />

de uma cena pseudo-paulista, é mais que<br />

up-to-date: é o grafite que esplende na integridade<br />

de sua arte.<br />

Perdão Wlad, mesmo sabendo ser o poema visual<br />

e não sonoro, não resiste a falar trechos de<br />

“A Ave”, como na na abertura dessas minhas<br />

palavras. Menos ainda a dizer o poema que cometo<br />

a seguir, versão e fecho apressado de meu<br />

texto e de seu próprio poema.<br />

45


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

ave<br />

vae<br />

ave<br />

ave voa<br />

voar<br />

é preciso<br />

vae<br />

é preciso<br />

ir<br />

vae vae<br />

mirar<br />

ir<br />

ave wlad<br />

vae<br />

ave ave<br />

ave wlademir<br />

Ronaldo Werneck – Cataguases, março 2017<br />

Wlademir Dias-Pino e Emerson Teixeira Cardoso<br />

46


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Emerson Teixeira<br />

Cardoso<br />

Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />

(2001) poesia, coautor de A casa da Rua<br />

Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O<br />

retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre<br />

ativo em publicações literárias. Iniciou-se em<br />

Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador<br />

do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />

Um minuto na eternidade, de Gleison<br />

Dornellas<br />

Busco em ti<br />

o que não encontro no mundo [...]<br />

Com sua poesia amorosa Gleison exprime, como<br />

não poderia deixar de ser a ternura de um apaixonado.<br />

Um minuto na eternidade é livro de poesia<br />

que se lê com este espírito (“não vá pensar<br />

que se trata de um livro espiritualista” brinca o<br />

autor) do que é inatingível. Do fugidio, do inalcançável,<br />

enfim, do amor que o poeta tenta, se<br />

não definir, evocá-lo.<br />

Desta forma o leitor de sua poesia pode imaginá-la<br />

como inspiração de uma musa que também<br />

pode ter as tranças de uma moreninha ao<br />

estilo de Manoel Antonio de Almeida ou de uma<br />

outra com “os mais finos cabelos louros e os<br />

mais pensativos olhos azuis, que o nosso clima<br />

tão avaro delas, já produziu, de Machado.<br />

Afinal seus belos versos podem nos fazer<br />

pensar assim; pois que eles no comovem bem.<br />

Ah, isso comovem!<br />

Então vamos deixá-los aqui assim na integra,<br />

com todo esse sabor que eles nos dão. Como<br />

quem os diz baixinho como uma confissão, um<br />

desabafo, do artista que é, com sua alma lírica e<br />

terna e que assim nos fala de uma paixão eterna.<br />

Mas vamos ao poema inteiro e a outros deste<br />

Um minuto na Eternidade, de Gleison Dornellas<br />

47


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Encontro<br />

Busco em ti,<br />

o que não encontro no mundo...<br />

pois meu mundo se encontra no teu universo.<br />

Encontro em ti,<br />

o que por mais que eu negue,<br />

presença de mim;<br />

pois pra me sentir tão bem assim,<br />

somente tão certo da certeza do seu existir.<br />

Busco nessa busca incessante, me achar,<br />

encontrando pedaços meus no teu andar...<br />

pois pouco posso passar a você<br />

o desejo de muito te amar.<br />

Encontro em ti,<br />

palavras que perco ao tentar dizer...<br />

pois, por muito te amar,<br />

muito temo perder.<br />

Embora tudo isso,<br />

parto ao encontro onde nunca te encontro.<br />

Na verdade, muito te busco,<br />

pois, por me sentir tão fora de mi,<br />

creio estar onde sempre me encontro...<br />

dentro de ti.<br />

48


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Encontro<br />

Busco em ti,<br />

o que não encontro no mundo...<br />

pois meu mundo se encontra no teu universo.<br />

Encontro em ti,<br />

o que por mais que eu negue,<br />

presença de mim;<br />

pois pra me sentir tão bem assim,<br />

somente tão certo da certeza do seu existir.<br />

Busco nessa busca incessante, me achar,<br />

encontrando pedaços meus no teu andar...<br />

pois pouco posso passar a você<br />

o desejo de muito te amar.<br />

Encontro em ti,<br />

palavras que perco ao tentar dizer...<br />

pois, por muito te amar,<br />

muito temo perder.<br />

Embora tudo isso,<br />

parto ao encontro onde nunca te encontro.<br />

Na verdade, muito te busco,<br />

pois, por me sentir tão fora de mi,<br />

creio estar onde sempre me encontro...<br />

dentro de ti.<br />

<strong>49</strong>


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Elegia à minha infância<br />

O dia amanhecia...<br />

acordava que mal dormiu.<br />

Os olhos abriam e se enchiam<br />

da certeza de um raio que<br />

anunciava mais um grande dia!<br />

E nem o mundo sideral<br />

continha a natureza dominante.<br />

Um dia que se prolongava<br />

e que nascia prematuro.<br />

Não houve cárcere<br />

nem crime hediondo;<br />

nada era capaz de nos<br />

furtar o afago do sol!<br />

E os meus consortes,<br />

não permitiam dissipar<br />

esse ia que é único,<br />

formidável, subnutrido.<br />

Vai elegia...<br />

alcance o senhor do tempo!<br />

Digas a ele que se tornas<br />

impossível tolerar;<br />

e o enegrecer do dia<br />

tem tornado nossas almas<br />

cada dia mais sórdidas<br />

50


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

O dia amanhece crispado...<br />

feito mesmo o crepúsculo.<br />

Não há nada opaco em<br />

miragens não obstantes,<br />

que, trazem sempre<br />

toda nossa putrefação.<br />

Há o medo do tédio.<br />

Ninguém esquece o hábito<br />

enfadonho de escovar os<br />

dentes minuciosamente:<br />

os caninos e os molares.<br />

E enfim, despertamos um<br />

calor de cores estranhas<br />

que nos incitam um desejo.<br />

E o tempo, é claro,<br />

é cada dia mais sombrio...<br />

e há tempos eu não durmo.<br />

51


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa<br />

da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de<br />

Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Aquela que é muito justa<br />

Pegava no batente lá na fábrica<br />

velha todo dia às seis horas da manhã. Ajudante<br />

geral na antiga indústria têxtil, interrompia<br />

a conversa alegre com Mirtes e batia<br />

o cartão, enquanto cordialmente cumprimentava<br />

o porteiro do outro lado da entrada.<br />

Bastaria um aceno; já que pouco se ouvia<br />

com todo o ruído de ferros se esfregando<br />

dos antigos teares que brotava do interior da<br />

tecelagem. Vinha com Mirtes, tecelã, amiga<br />

e sua vizinha lá da Vila Minalda. Moravam<br />

num correio de casas, quase já na estrada<br />

que ia dar na Colônia Major Vieira. Atravessavam<br />

a ponte velha, persignavam-se por<br />

Santa Rita na praça da padroeira. Esta caminhada,<br />

recheada de fofocas, futricas e boas<br />

risadas, só ocorria quando Mirtes estava na<br />

semana do turno das seis horas.<br />

Alguns minutos após a entrada, já estava no<br />

pátio interno recebendo as ordens do chefe<br />

em meio a barafunda de entulho acumulada<br />

por uma obra na expedição. Ôcrides, chefe<br />

autoritário e grosseiro, disparava; – Neguinha<br />

você vai limpar aquele canto onde os<br />

mecânicos estão concertando dois teares que<br />

quebraram. É rápido, ligeiro e rasteiro, ouviu?<br />

Entre dentes, responde, – Sim senhor!<br />

– Depois, quero você de volta aqui para ajudar<br />

dar um jeito neste entulho. Incomodava<br />

aquele Neguinha carregado de preconceitos,<br />

apesar de afável tinha que engolir em<br />

seco, precisava do emprego como todos naquela<br />

fábrica. – Cidade pequena cheia de<br />

desempregados sem o que fazer é foda! Resmungava<br />

entre dentes. E ainda tinha que escutar<br />

a constante ameaça dos contramestres.<br />

– Lá fora, a fila é grande! Mas tinha orgulho<br />

de sua cor, já se metera em muitas brigas<br />

por reagir a atitudes racistas pelas ruas da<br />

cidade. Atravessa o pátio entra na tecelagem,<br />

por onde passa escuta ruidosos e provocativos<br />

fiufius. Ergue a cabeça altiva, sorri;<br />

até gosta e segue seu rumo. Enquanto limpa<br />

o piso e retira toda a sujeira acumulada pela<br />

manutenção dos teares. Os mecânicos vão<br />

chegando, entre provocações piadas e ironias<br />

vão se encostando nas paredes e azucrinando<br />

sua cabeça. – Olha a Miss Brasil da Vila Minalda.<br />

Encontra-se com um jovem tecelão e<br />

combina... – Amanhã é sábado. Tô de folga.<br />

Te espero logo lá em casa, com um maço de<br />

Continental e uma garrafa de Orientina. Segue<br />

andando sorridente rumo ao pátio. .<br />

52


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

E de lá vem Ôcrides. – Depois que você terminar<br />

com o entulho, volta aqui e termina de<br />

limpar esta sujeirada de graxa feita por aqueles<br />

mecânicos porcos. Cambada de gente ordinária!<br />

Trovejava pelo interior da tecelagem<br />

o truculento chefe.<br />

Atrás do cemitério existia um campinho, era<br />

ali que se soltava e dava vazão à sua grande<br />

paixão, o futebol. A garotada sem muito o<br />

que fazer, numa cidade pobre em lazer, via<br />

nos campos de peladas as únicas oportunidades<br />

de diversão. Naquele campinho, surgiu<br />

muito moleque bom de bola que foi se firmar<br />

no Manu, Flamenguinho e Operário os<br />

times mais populares da cidade. Seduzia os<br />

miudinhos com balas e os maiores com cigarros<br />

e uns trocados. Muitos se iniciaram<br />

nos prazeres da carne por ali também.<br />

Numa manhã de domingo ensolarada, dos<br />

barrancos daquele campinho, Patachoca fazia<br />

a primeira transmissão com microfone<br />

sem fio que se tem notícia, mestre das gambiarras,<br />

soltou no ar trechos da partida que<br />

ali ocorria. E o time local tomou um vareio<br />

de bola do América lá da Granjaria. Uma goleada<br />

homérica.<br />

A amiga Mirtes, que para esquecer as agruras<br />

da tecelagem e os assédios do Ôcrides,<br />

viera prestigiar. Não entendia muito de futebol,<br />

mas não se continha de tanto rir ao ouvir<br />

aquela voz suave e contida do dia a dia,<br />

correndo e gritando na beira do campo. –<br />

Vai Lorim! Vai Lorim! E entre dentes, –<br />

Ruim de bola e bão de pistola. E soltando o<br />

grito. – Vai filadaputa!<br />

Termina o jogo, sorridente aproxima-se da<br />

amiga Mirtes. – Justo. Muito justo, não jogamos<br />

nada. Meu craque virou a noite na<br />

esbórnia.<br />

53


José Vecchi<br />

<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Nasceu em Cataguases (MG), mora atualmente<br />

em Viçosa (MG)<br />

Coautor de A casa da Rua Alferes e outras crônicas<br />

(2006). Participou da coletânea de contos premiados<br />

pela UFV em Um pouco de conto (2015)<br />

E se Apolo falasse?<br />

Saio de casa às sete e volto às cinco.<br />

De segunda a sexta. Carteira assinada, salário<br />

mensal, ar-condicionado e chefe. Marco o ponto<br />

e trabalho sem queixas nem entusiasmo. Não<br />

ambiciono o salário do meu colega e menos<br />

ainda o lugar do meu superior. Ganho pouco,<br />

mas isso não me preocupa, porque a outra atividade,<br />

a informal, é bastante lucrativa. Esse outro<br />

negócio é que me trouxe dinheiro e admiração<br />

de muitos, e me levou Lara, o menino e alguns<br />

amigos. Lara não queria ver nosso filho<br />

crescer tão perto da promiscuidade, é o que dizia.<br />

Ficamos eu e Apolo, o meu border collie,<br />

ocupando a casa da frente e o quintal. A casa<br />

dos fundos, pequena, mas limpa e bem arrumadinha,<br />

é parte do negócio e está sempre pronta<br />

para uso. É tudo muito simples: o cliente fala o<br />

seu gosto e como quer o serviço; eu ligo para<br />

uma que confere com o pedido, marco horário e<br />

aguardo o término e o pagamento. Tem cliente<br />

de todo tipo, os comuns e os com carimbo de<br />

distinção. Gerente de banco, contador, gente do<br />

comércio, policial, advogado, tem até um pastor<br />

que vem sempre tarde da noite, uma vez por<br />

semana, sem falta, é sagrado!<br />

Minhas meninas variam de cor, peso, altura<br />

e idade. Só coisa fina. E são profissionais,<br />

não tem erro. Basta a gente combinar o horário,<br />

o tempo e o preço.<br />

Um dia um cliente ligou e tive um mau<br />

pressentimento. Essas coisas que dão na gente,<br />

uns arrepios na espinha, parece que tem um nó<br />

aqui dentro. Mas é tudo cisma, isso me acontece<br />

de vez em quando. Não dou confiança, deixo<br />

pra lá. Chegou a menina, beirando os quinze,<br />

um pitéu. Chegou e foi para a casa dos fundos.<br />

Em seguida chegou o cliente. Apolo rosnou o<br />

tempo todo. Chegou a avançar no sujeito, quase<br />

estragando o negócio, mas o repreendi a tempo<br />

e o coloquei no canil, de onde continuou rosnando,<br />

com os pelos do dorso eriçados, pronto<br />

pra uma briga. Estranhei, ele não era disso.<br />

Cinco minutos depois, um grande susto: o<br />

cara me chama e pede pra falar comigo. Sentou,<br />

elogiou a casa, a menina e se apresentou. Policial.<br />

Começou falando baixo e bem devagar, foi<br />

falando de leis, de uso irregular da casa, de<br />

multas e até de prisão. Foi aumentando a voz,<br />

falando mais depressa, quase gaguejando. E pra<br />

piorar, falou da menina. Era menor. Me colocou<br />

na parede, o desgraçado. Eu olhava aquela cara<br />

gorda e suarenta sem saber o que fazer. Lá do<br />

canil vinha o uivo triste do Apolo, às vezes,<br />

uma sequência de rosnados. O homem gordo<br />

estava impaciente, começou a repetir os delitos,<br />

tropeçando nas palavras. A minha cabeça tava<br />

uma confusão, e ele repetindo, repetindo, até<br />

que de repente abrandou a voz e falou bem baixinho<br />

“vamos resolver isso numa boa; bom pra<br />

mim e pra você”, e, enfim, voltou a falar sem<br />

pressa, até parar e respirar fundo e aliviado. Eu<br />

também respirei fundo e aliviado. Acertamos os<br />

detalhes: valor, data e forma de pagamento em<br />

cash. Ele se levantou, se despediu com um<br />

aperto de mão, passou o lenço pelo rosto encharcado<br />

e saiu a passos largos. Ao chegar no<br />

portão, parou, colocou um boné na cabeça,<br />

olhou atentamente para a rua, enfiou as mãos<br />

nos bolsos do casaco e sumiu sob a sombra da<br />

alameda.<br />

54


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Antônio Jaime Soares<br />

Aurora da minha vida<br />

Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />

Participou de um dos movimentos culturais mais<br />

ativo dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />

Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />

onde entre outras foi redator de publicidade.<br />

Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />

Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />

(crônicas - 2011)<br />

área de extração de bauxita<br />

Mais de trinta anos depois, voltei à Chave,<br />

lugar em que nasci e, mais de cin­quenta, a<br />

Santa Maria, onde moravam meus avós maternos.<br />

Como previa, nenhuma casa do meu tempo, exceto<br />

igrejas, ex-estações de trem, as fazendas do<br />

Rochedo, da Glória e do Humaitá. E poucas casas<br />

novas, propriedades de gente endinheirada, os<br />

camponeses vivendo cada vez mais em cidades,<br />

em busca de trabalho. No plano geral, tudo verde<br />

e vazio, as lavouras ficaram no passado.<br />

E fui além, até a serra da Neblina, onde Roberto,<br />

o sobrinho que me levou, tem uma fazendinha<br />

que comprou pra criar gado e também plantou<br />

café, além de pinho, eucalipto e seringueira.<br />

Desistiu, por dar mais prejuízo e amolação do que<br />

resultados satis­fatórios. Como não precisa daquilo,<br />

deixa lá, a natureza agradece. A casa, não vi,<br />

coberta pelo arvoredo. Casa boa, segundo ele,<br />

com serpentina no fogão a lenha, pra aquecer a<br />

água do banho, e gerador de eletricidade.<br />

Na verdade, um rancho fundo, bem pra lá<br />

do fim do mundo. Ali também brota o ribeirão<br />

Meia-Pataca, um reguinho que já foi bem caudaloso.<br />

Roberto deu uma prova: o local onde havia<br />

mina d’água, primeira afluente, bebedouro da boiada,<br />

secou. No terreno ao lado, extração de bauxita,<br />

pela Mineradora Rio Pemba Cagagases, como<br />

disse o Casseta e Planeta, em boa hora interditada<br />

pela prefeitura.<br />

Clima ameno em dezembro, lá em riba, mil<br />

metros acima do mar. Lugar de onças (só de ouvir<br />

falar eu me arrepiava de medo, ao mesmo tempo,<br />

tinha curiosidade de ver as bichas) que, ultimamente,<br />

voltaram a ser vistas. Agora, só um lagarto<br />

atravessando a estrada. Gostei do dito, assim<br />

como de uma cascata jorrando do alto de uma<br />

pedreira, feito na serra de Petrópolis. Estrada esburacada<br />

e perigosa, serpenteando por uma piram<br />

­beira, deu grilo. Na volta, quando pegamos o<br />

asfalto, falei que estava me sentindo num avião,<br />

em céu de brigadeiro.<br />

Na estrada Glória-Santa Maria, que trilhei muitas<br />

vezes, quedas d’água e gente se refrescando (até<br />

um batizado da Assembleia de Deus, que nos antigamentes<br />

rolava no ainda pouco poluído rio<br />

Pomba), deu inveja. Seria minha praia, fosse mais<br />

perto. Cachoeira é uma delícia e, no ‘poço dos<br />

caranguejos’, meu irmão Plínio (morto antes de<br />

mim, que merda!) mergulhou e perdeu um canivete<br />

que lhe escapou da algibeira, pelo qual verteu<br />

um rio de lágrimas. Sofrimento infantil é passageiro,<br />

no caso, durou o intervalo entre um mergulho<br />

e outro.<br />

Adoro mato, desde que não tenha que viver nele,<br />

idem, montanhas, estas, o mais longe possível:<br />

essa morraiada daqui me inco­moda, oprime.<br />

“Imensa e mansa planície”, cantou Sérgio Ricardo.<br />

Num lugar assim, sim, pôr do sol interminável,<br />

que só vi em Brasília, Pantanal, sul do Brasil<br />

e da Bahia, Castela e Paris. Lembro que Zélia Sereno,<br />

quando foi ao Paraná antes de ir de vez,<br />

falou que da casa em que estava, no interior do<br />

estado, à noite dava pra ver luzes de sete cidades.<br />

Eta eu lá, sô!<br />

Publicado originalmente na Sapeca<br />

https://www.yumpu.com/pt/document/view/58632144/sapeca-11<br />

55


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Luiz Ruffato<br />

Nasceu em Cataguases MG, reside em<br />

São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria<br />

destacam-se: Eles eram muitos cavalos,<br />

de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido<br />

pela Associação Paulista de Críticos de Arte e<br />

o Prêmio Machado de Assis da Fundação<br />

Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou<br />

um escritor reconhecido no país. Em 2011<br />

concluiu o projeto Inferno Provisório, com a<br />

publicação do romance Domingos Sem Deus,<br />

iniciado com Mamma, son tanto Felice em<br />

2005, composto por cinco livros sobre o operariado<br />

brasileiro.<br />

Lendo os Clássicos<br />

28 Contos (1946-1978)<br />

John Cheever (1912-1982) - Estados Unidos<br />

Tradução: Jorio Dauster, Daniel Galera<br />

São Paulo: Cia das Letras,2010, 359 páginas<br />

56


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Os 28 contos que formam essa coletânea<br />

reúnem uma ótima amostra desse excelente<br />

escritor. Representando basicamente o universo<br />

de classe média dos subúrbios de Nova York,<br />

o autor desvenda, com profunda compreensão,<br />

as agruras das famílias formadas por jovens e<br />

empreendedores casais correndo atrás de dinheiro<br />

e vivendo de aparências. Por trás das paredes<br />

das casas confortáveis, do rosto das crianças<br />

saudáveis, dos olhares da vizinhança acolhedora,<br />

esconde-se a pressão dos que perseguem a realização<br />

do sonho norte-americano. Infelizes, solitários,<br />

comuns - para não dizer vulgares -, os<br />

personagens afundam em vidas vazias regadas a<br />

álcool e compromissos sociais. Em geral, os escritores<br />

vão perdendo o ímpeto ao longo de sua<br />

trajetória - mas não no caso de Cheever.<br />

A excepcional qualidade alcançada, por exemplo,<br />

com as narrativas do início da carreira, como<br />

"O enorme rádio", de 1947, ou "Adeus,<br />

meu irmão", de 1951, continuará a ser encontrada<br />

em "O nadador", de 1964, ou "O mundo as<br />

maçãs", de 1973. Essa é a tônica de todo o livro,<br />

por isso, difícil destacar um ou outro título,<br />

todos os textos são realmente muito bons.<br />

Avaliação: MUITO BOM<br />

(Março, 2016)<br />

57


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

José Carlos de<br />

Vasconcelos<br />

Nasceu em Freamunde, Paços de Ferreira Portugal.<br />

É advogado, jornalista e escritor.<br />

Licenciado em Direito, pela Faculdade de Direito<br />

da Universidade de Coimbra, pertence a<br />

uma geração de estudantes dessa universidade<br />

onde se inserem figuras como Manuel Alegre,<br />

Fernando Assis Pacheco ou Silva Marques.<br />

Foi também colaborador da revista<br />

Vértice. Pertence à direção editorial da revista<br />

Visão e é diretor do Jornal de Letras.<br />

O Prémio Camões e ‘um copo de cólera’...<br />

A entrega do Prêmio Camões, de 2016, a<br />

Raduan Nassar, em 17 de fevereiro, em São Paulo,<br />

foi a mais falada de sempre. E não ocorreu,<br />

como muitas vezes antes, com a presença dos<br />

Presidentes do Brasil e de Portugal, mas num ato<br />

relativamente discreto, estando o Brasil representado<br />

pelo ministro da Cultura e Portugal pelo<br />

nosso embaixador em Brasília. O que aconteceu<br />

foi que o autor de Lavoura arcaica e Um copo de<br />

cólera, as suas duas obras fundamentais, na sua<br />

curta fala começou por lembrar que esteve entre<br />

nós em 1976, “fascinado pelo país, resplandecente<br />

desde a Revolução dos Cravos”, e por<br />

acentuar que sempre foi “carinhosamente acolhido”<br />

em Portugal, agradecendo ao embaixador.<br />

Logo acrescentando que “infelizmente nada é<br />

tão azul no nosso Brasil”.<br />

A partir daí Raduan fez um ataque cerrado<br />

aos “tempos sombrios, muito sombrios” que se<br />

vivem no país, citando casos, pessoas. Instituições,<br />

incluindo um novo juiz agora indicado para<br />

o Supremo Tribunal Federal e o próprio STF.<br />

Porque, segundo ele, o STF “propiciou a reversão<br />

da democracia”, ao não impedir o impeachment<br />

da Presidente Dilma Rousseff, “íntegra e<br />

eleita pelo voto popular”. E concluiu: “O golpe<br />

estava consumado! Não há como ficar calado.”<br />

O escritor foi muito aplaudido e o ministro<br />

respondeu, defendendo a legitimidade do Governo<br />

e atacando Raduan pelo que dissera:<br />

“desrespeitou a todos”. Segundo Roberto Freire,<br />

o Prêmio ter sido entregue a um “opositor” mostrava<br />

“o momento democrático” vivido no País –<br />

e se o escritor considerava o Governo<br />

“ilegítimo” devia ter recusado o Prémio que ele,<br />

Governo, lhe atribuíra. Houve sururu, vaias, gritos<br />

de “fora Temer”, com a consequente repercussão<br />

nos media.<br />

Não vou, nem seria possível, entrar aqui na<br />

análise do “caso”. Assim sublinho apenas duas<br />

coisas:<br />

58


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

1 - O ministro da Cultura do Brasil omitiu/<br />

alterou factos e usou ‘argumentos’ inadmissíveis<br />

em alguém com suas responsabilidades. Porque:<br />

a) O Prémio Camões é de Estados e não de governos;<br />

b) É atribuído por júris independentes,<br />

durante anos nem escolhidos pelos governos (no<br />

caso do Brasil foram-no pela Academia Brasileira<br />

de Letras e pela Fundação da Biblioteca Nacional);<br />

c) Não é um prémio só do Brasil, mas<br />

também de Portugal, nas últimas edições tendo<br />

dois africanos no júri de seis elementos; d) E,<br />

embora pelo atrás exposto isto seja despiciendo,<br />

quando foi dado a Raduan o governo brasileiro<br />

ainda era o de Dilma, e não o atual. Em suma<br />

Roberto Freire não acertou uma...<br />

O que se passou mostra a situação muito difícil e<br />

de grande confronto que hoje se vive no Brasil.<br />

Pela enorme, terrível, corrupção generalizada<br />

entre a classe política, que a operação Lava Jato<br />

está a investigar e combater. E pelo facto de<br />

muitos brasileiros, incluindo uma substancial<br />

parte de setores intelectuais, literários e artísticos,<br />

considerar o impeachment da Presidente<br />

Dilma, e sua substituição por Michel Temer, foi<br />

uma espécie de “golpe de estado constitucional”.<br />

Sem me pronunciar agora a tal respeito,<br />

sublinho que a atitude de Raduan Nassar, 81<br />

anos, foi tanto mais significativa quanto é certo<br />

que sempre teve uma vida e foi uma figura discreta,<br />

fora dos meios políticos e até literários,<br />

desde há muito se dedicando à produção rural. E<br />

noto que na sua excelente intervenção nas Correntes<br />

d’Escritas, na Póvoa de Varzim, a semana<br />

passada, Ignácio de Loyola Brandão, embora<br />

sem referências a nomes, e numa formulação<br />

mais literária, também deu eloquente testemunho<br />

sobre tal situação e confronto.<br />

Publicado na edição 1211 do JL<br />

Jornal de Letras, Artes e Ideias<br />

Portugal<br />

59


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

José Antonio Pereira<br />

Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa<br />

da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e autor de<br />

Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />

Paulicéia ou a Chicago desvairada<br />

Devo muita coisa a muita gente em São Paulo.<br />

Aportei na cidade em 1978 e por lá vivi muitos<br />

anos de minha vida. Tive, como todos, momentos<br />

bons e momentos ruins. Conheci e convivi<br />

com pessoas de vários quadrantes, fiz belas<br />

amizades que perduram até hoje. Aprendi, desaprendi;<br />

ri, chorei; namorei, casei. Com amigos<br />

fiquei “sitiado” na Catedral da Sé em movimentos<br />

populares contra a ditadura, corri da cavalaria<br />

em campanhas pela Anistia, para paradoxalmente<br />

ouvir hoje que quem matou Vlado Herzog<br />

se acha anistiado. Conheci o cantor Zé Geraldo,<br />

cantando na carroceria de um caminhão, na<br />

campanha das diretas-já lá no Alto do Mandaqui.<br />

Gostava de “viajar” por suas ilhas. Sim, ilhas.<br />

Ilhas formadas por inúmeras comunidades. Gente<br />

de todas as partes com visões, pensamentos,<br />

culturas e sabores fantásticos em sua diversidade.<br />

Mergulhar em bairros onde predominavam<br />

italianos, japoneses, espanhóis, árabes, com seus<br />

falares, suas músicas e suas comidas; gaúchos,<br />

potiguares... com os sotaques de todos os cantos<br />

deste país imenso. Ouvir tarantelas em festas no<br />

Bixiga, forró em Santo Amaro, cantos gregorianos<br />

no São Bento, se sentir zen num templo budista<br />

na Liberdade. Comer um churro de madrugada<br />

na Mooca tomar uma sopa de cebola no<br />

Ceasa, saborear uma bureca no Bom Retiro.<br />

60


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Na rua Major Diogo no Bixiga, entrar no bar do<br />

Espanhol, com o Sô Neves para uma feijoada e<br />

dar de cara com o Adoniran Barbosa numa das<br />

mesas. Foi uma das muitas surpresas daquela<br />

rua. Rir do companheiro de trabalho ao achar<br />

uma coxa de frango no meio da feijoada e com<br />

o bom humor que lhe era peculiar. – Também, a<br />

gente vai se meter a comer feijoada feita por<br />

espanhol! Encarar uma Tripas do Porto no Cunha,<br />

português falastrão de outro bar, que nos<br />

passava a perna em qualquer vacilo. Na mesma<br />

rua, enquanto esperava a hora do TBC abrir, matar<br />

a fome no libanês Kalil, que como poucos<br />

sabia fazer uma bela e farta omelete.<br />

Sempre acreditei que este “arquipélago” irmanados<br />

por estas ilhas - porções alegres, humanistas<br />

que se espraiavam por toda cidade - tornaria sua<br />

cara e sua marca. Mas não aconteceu.<br />

Hoje, de longe, olhando fotos do prefeito andando<br />

pela Cracolândia, no lugar da atitude de vários<br />

velhos cristão-democratas paulistas que em<br />

seus discursos pregavam a política do bem estar<br />

comum, vejo um arrogante pisando sobre frágeis<br />

e degradados seres humanos. Na prática de uma<br />

doutrina que não acolhe nem aos seus. Com<br />

uma troupe de acólitos, todos de negro, percorrem<br />

suas arrogâncias pelo caos de objetos espalhados<br />

pelas ruas. Como autênticos higienistas,<br />

parecem Globocnik implementando uma versão<br />

bandeirante do plano de eliminação dos que vivem<br />

por ali, uma versão cabocla da Operação<br />

Reinhard.<br />

E nesta espiral desumanizadora da cidade, vai<br />

predominando na cidade uma visão desagregadora,<br />

impregnada de preconceitos, relações humanas<br />

partidas pela violência e a intolerância,<br />

onde o individualismo preconizado pela meritocracia,<br />

transforma o outro num animal a ser abatido.<br />

Isto me entristece, aprendi a gostar daquela<br />

cidade. O paulistano e sua cidade não merecem<br />

isto.<br />

Dizem que Faulkner, numa manhã de garoa fria<br />

em São Paulo, curtindo uma ressaca no saguão<br />

de um hotel perguntou: O que estou fazendo em<br />

Chicago?<br />

Pois é Faulkner a cidade está é gótica, taciturna<br />

e violenta. Está mais é para Gotham City. Cenário<br />

perfeito para este Robin de barranca do Tamanduateí<br />

produzir seus factoides.<br />

61


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Krishnamurti<br />

Góes dos Anjos<br />

Escritor, pesquisador e crítico literário, possui<br />

textos publicados em revistas literárias na Argentina,<br />

Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México<br />

e Espanha. É autor, dentre outros, de Gato<br />

de telhado, Doze contos e meio poema e<br />

Um novo século. Reside em Salvador (BA).<br />

Uma colcha de retalhos da aventura humana...<br />

“Diolindas”, romance escrito a quatro mãos por<br />

Eltânia André e Ronaldo Cagiano traz, grosso<br />

modo e resumidamente, a história de uma simples<br />

costureira do interior do Brasil, que após sua<br />

morte tem a vida revisitada por uma de suas filhas.<br />

Os autores mostram-se exímios na arte de<br />

entrelaçar pontas, de desenvolver ficcionalmente<br />

o que no princípio fica insinuado. Propõem o<br />

mistério de uma situação invulgar e, ao mesmo<br />

tempo, e com o desenrolar do enredo vão expondo<br />

os mistérios das personalidades envolvidas. Aí<br />

o pólo irradiador da trama.<br />

Eltânia André e Ronaldo Cagiano<br />

“Quando os primeiros sinais de uma cegueira intermitente<br />

me trouxeram pavor e incerteza, criando<br />

instabilidade e insegurança, comprometendo a<br />

minha liberdade, comecei a me preparar para algo<br />

tenebroso. A sensação de encruzilhada era<br />

real e tormentosa. Era chegada a hora de um<br />

acerto de contas, voltar-me à vida que havia deixado<br />

para trás há alguns anos.” P. 19.<br />

Este o conflito latente de Bel a protagonista (filha<br />

da costureira Diolinda), que refletirá ou interpretará<br />

a matéria-prima, que é a personagem Diolinda.<br />

A filha uma mulher que se emancipou, fez<br />

carreira como estilista em Paris. A mãe uma costureira<br />

simples, que viveu enclausurada na estrutura<br />

patriarcal brasileira dos anos cinqüenta do<br />

século vinte, quando solteira, engravida. Doces<br />

ternuras violentadas pelo meio hostil.<br />

62


<strong>Chicos</strong> 48<br />

Histórias que se entrelaçam com outras tantas e<br />

que vão constituir uma imensa colcha de retalhos<br />

da aventura humana. Melhora e amplia ainda<br />

mais as perspectivas de compreensão de um tal<br />

entranhamento de histórias, o cenário sóciopolítico<br />

brasileiro e mundial do período em que a<br />

história se desenvolve.<br />

Mais ou menos de 1935 a 2008. Salientamos pela<br />

percuciência da análise política, dois capítulos:<br />

“Fibra de vidro” a comentar o governo de Fernando<br />

Collor e a trajetória do PT e Lula no capítulo<br />

“Lã de escória”. Dois momentos grotescos<br />

da história brasileira recente. Vale muito a pena<br />

ler, refletir, e não esquecer, antes de sairmos matando-nos<br />

uns aos outros, como estamos prestes<br />

a fazer...<br />

Da morte para a vida, voltemos ao livro. Até<br />

porque o que o que verdadeiramente importa<br />

não é a morte dos homens mais sim, como viveram.<br />

Lembramos o óbvio. Deolinda está morta.<br />

Dentro do que acreditamos ou fingimos acreditar,<br />

pela maneira como vivemos, Deolinda pôsse<br />

afinal a salvo de tudo. Sacudiu o fardo de<br />

seus ombros.<br />

A obra flagra também o confronto de gerações<br />

num mundo que começa a erigir novos valores<br />

em detrimento de outro mundo que o julga com<br />

preconceito, sobretudo o de natureza sexual.<br />

Mas aí está: permanece para a humanidade a<br />

insuficiência de significados alicerçados em convicções<br />

consoladoras. Perdura no caso específico<br />

da protagonista Bel (sintomático portanto), o<br />

sentimento da inutilidade da existência. Substituímos<br />

o que era ruim, pelo nada absoluto,<br />

quem sabe?<br />

“Uma sensação desconfortável diante do escuro<br />

que atormentava minha alma – a abundância de<br />

pensamentos, eles fervilhavam como bolhas no<br />

pântano. Sobre mim a noite difusa, imagens sortunas<br />

que me aniquilavam, enquanto eu encarava<br />

o imenso e fúnebre pesadelo da perda. Não<br />

conseguia entender o ciclo da vida. Era essa insegurança,<br />

esse desatino, esse medo instaurado<br />

compulsoriamente em meus sentidos. Conjeturo<br />

sobre o mistério da existência e não encontro<br />

respostas. A verdade fragiliza a esperança. Ela<br />

vem de uma única vez e não tenho forças para<br />

enfrentá-la. Há uma coleção de culpas, e na<br />

guerra contra a finitude todos os argumentos<br />

quedam impotentes, enquanto só podia contemplar<br />

de dentro a liberdade que plasmava do outro<br />

lado. E depois, o imenso vazio de tudo, a<br />

fulminante certeza de não pertencer a lugar nenhum”<br />

p. 37.<br />

63


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Ponto alto do livro é o trecho que, dentro de uma<br />

perspectiva que mescla a sofrida existência de<br />

Diolinda com a interpretação feita por Bel. Desse<br />

mesmo sofrimento, emerge uma visada sobre o<br />

efeito do tempo e da memória sobre o ser: “Cada<br />

lugar é a denúncia silenciosa envenenando o silêncio,<br />

e torna-se o espólio das perplexidades. O<br />

campo em torno é colônia de lágrimas, territórios<br />

do inexistente, em que o passado, sem modéstia,<br />

não sossega, ruína sem igual, consórcio com o<br />

inevitável, e ele nos rói como cupim: monte de<br />

tijolos, casas destelhadas, o gradil das janelas, o<br />

batente das portas, a madeira resistente das cumeeiras,<br />

os mourões das cercas. Tudo se resume<br />

em ausência e fracasso, provavelmente foram servir<br />

de combustível para os fogões a lenha que<br />

ainda havia nas casas, e sobrevivem ao canto<br />

avassalador da modernidade”. P.129<br />

Em meio ao sofrimento de tantas outras perdas<br />

somadas à da mãe, a protagonista vive um mundo<br />

que não é o seu, um mundo que não a satisfaz:<br />

“... porque a velocidade da era moderna,<br />

com fetiches, embalada pelo consumismo, nos<br />

converte em números e cifras. Prefiro a paz do<br />

interior, saber o nome das pessoas”. P.161.<br />

Até que surgem lampejos de reação. E afirmamos<br />

sem medo de errar; ela sempre virá para quem<br />

assim o deseje: “Bel fez-se à sombra do que imaginava<br />

querer Diolinda, mas sendo a outra, viu-se<br />

também esquartejada, aos pedaços espalhados<br />

por um caminho postiço, e agora que percebia a<br />

sua própria ausência, como seriam as manhãs?<br />

P.159, e: “Creio que a consciência de nossa finitude,<br />

por algum tempo despertou-me para a verdadeira<br />

dimensão de nosso estar-no-mundo, de<br />

modo a torná-lo menos vazio e mais produtivo”.<br />

P.152.<br />

Diolinda, Pedro, Ricardo, Tio Chico, Bel, Lurdinha,<br />

Vânia são as personagens/retalhos mais evidentes<br />

da colcha. A vida os costurou, inexoravelmente.<br />

Como sói acontecer com todos os que nos<br />

atravessam os caminhos da existência. Mas há<br />

também a identificação de outro fio que é tecido<br />

pela vida e que nos une num entrelaçamento supremo,<br />

magistralmente sugerido pelos autores<br />

(grande mérito do livro): os fios da existência nos<br />

entrelaçam a todos indistintamente num só tecido,<br />

esta a “súplica que vem de longe, de muito<br />

longe, do íntimo das coisas, do fundo das eras”...<br />

Nelson de Oliveira no Prefácio á obra salienta<br />

que os autores conseguiram o raro feito de, a<br />

quatro mãos, escrever uma obra “com sintonia e<br />

equilíbrio, harmonizando forma e conteúdo”. Na<br />

orelha da obra se afirma sobre o livro: “Vivências<br />

que dizem respeito à nossa própria condição, às<br />

vicissitudes do quotidiano e aquela ancestral luta<br />

em que cada ser, feito Sísifo redivivo em intimorata<br />

repetição, busca vencer a poeira do tempo,<br />

comunicar suas dores & delícias e enganar a morte”.<br />

E Albert Camus, em seu ensaio “O mito de Sisifo”<br />

introduz sua filosofia do absurdo: o do homem<br />

em busca de sentido, unidade e clareza no<br />

rosto de um mundo ininteligível desprovido de<br />

Deus e eternidade (?). Será que a realização do<br />

absurdo exige o suicídio? Camus responde: "Não.<br />

Exige revolta". Revolta entendida, acrescentamos<br />

nós, como luta. Por duas razões bem simples: A<br />

primeira é uma constatação, por mais que a neguem:<br />

“Há mais força na erva que cresce em cima<br />

de uma sepultura do que toda verdade”. E a<br />

segunda; uma exigência da própria vida. O<br />

“mundo está aí, um permanente desafio a exigir<br />

firmeza e esperança”.<br />

Livro: “Diolindas” – Romance. De Eltânia André<br />

e Ronaldo Cagiano. Editora Penalux, Guar<br />

a t i n g u e t á - SP- 2 0 1 7 , 1 9 0 p .<br />

ISBN 978-85-5833-144-9<br />

64


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Ronaldo Cagiano<br />

Escritor cataguasense, autor, dentre outros,<br />

de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />

de Produção Literária 2001), O sol nas<br />

feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal<br />

Telecom 2012) e Eles não moram mais aqui<br />

(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente<br />

em Portugal.<br />

Histórias testemunham metamorfoses de um país<br />

Dos quinze contos que compõem o volume<br />

Miss Tattoo – Uma quase novela (Ed. Jovens<br />

Escribas, RN, 148 pgs), de Luiz Roberto<br />

Guedes, poeta, ficcionista e letrista de músicas<br />

(as quais assina como Paulo Flexa), emergem<br />

várias leituras, que encampam miradas sociais,<br />

políticas e éticas sobre uma época. Porém todas<br />

culminam numa visão significativa, que diz respeito<br />

ao espelho ou testemunho dos fatos, diatribes<br />

e idiossincrasias de toda uma geração, justamente<br />

aquela que se formou durante os anos de<br />

efervescência dos movimentos de resistência e<br />

liberação (políticos, musicais e sexuais) e o período<br />

nefasto da ditadura militar, em que o chumbo<br />

e os coturnos levaram-nos à derrocada de<br />

uma descida anticivilizatória e o homem, sobretudo<br />

no caldeirão dos grandes centros urbanos,<br />

teve seu protagonismo em suas ações e re(l)<br />

ações, com suas histórias especulares de um atípico<br />

brazilian way of life.<br />

Os personagens de Luiz Roberto Guedes<br />

transitam por terrenos em que o desejo de<br />

enfrentamento e dissolução (ou escalonamento)<br />

de valores e costumes são transmutados em atmosferas<br />

e ambientes em que há sempre um tênue<br />

limite entre a utopia e a desilusão. São existências<br />

amiudadas pelas circunstâncias de ordem<br />

política ou moral, desmantelando esquemas nitidamente<br />

burgueses para chacoalhar com a ordem<br />

moral (pre)dominante e impor um ritmo em<br />

que a vida ordinária e sem cor é o que sobra<br />

nesse “mondo cane”, quando é necessário enfrentar,<br />

com unhas e dentes, o caos e a insolvência<br />

em que nos lançaram, para não ser tragado<br />

pela ferocidade do “status quo”. Esses personagens<br />

vivem na corda bamba, num beco-semsaídas;<br />

experimentando suas sinucas de bico ou<br />

na lâmina voraz das circunstâncias.<br />

O autor é um exímio estilista no que<br />

concerne ao aspecto formal, manuseando com<br />

destreza, e sem dourar a pílula os aspectos e peculiaridades<br />

dessa pátria escura e atormentada<br />

que já está tão difusa na memória de muitos,<br />

mas é parte da história pessoal dos que a viveram,<br />

como o autor. Com linguagem afi(n)ada,<br />

em que humor e crueldade às vezes se amparam<br />

simbioticamente, percorre esses universos para<br />

retratar situações tão adversas e apartadoras desse<br />

homem em movimento, que se digladia com<br />

seu destino e seus tormentos.<br />

65


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Guedes alcança uma projeção poética ao escrever<br />

sobre a realidade desértica de desses protagonistas<br />

que muito nos lembram tanto os habitantes<br />

solitários e insularizados na vida encontradiços<br />

nos contos de João Antonio, como aqueles<br />

desbaratados de Nelson Rodrigues, e, ainda, os<br />

inquietos metafísicos de Samuel Rawet. E é com<br />

extrema contenção formal que explicita a ausência<br />

de melodia ou harmonia nessas trajetórias<br />

humanas. Mas é na palavra que os retrata que<br />

carrega, com sua secura e realidade, uma carga<br />

semântica e uma força metafórica, mais pelo<br />

rigor com que o autor reconstrói esses mundos<br />

do que por um uso reiterado de adjetivações.<br />

Estamos diante de um escritor cuja construção<br />

literária, na poesia ou na prosa (juvenil e adulta)<br />

não se perde em malabarismos, firulas ou contorcionismos,<br />

pois sua habilidade é escreviver<br />

sobre o que é realmente essencial e profundo,<br />

sem necessidade de estripulias verbais ou vernizes<br />

de linguagem, no mesmo diapasão de Tchecov<br />

ou Graciliano Ramos, autores modelares para<br />

qualquer candidato a (bom) escritor, em cujas<br />

obras nada falta ou sobra e que usam meticulosamente<br />

a palavra na sua função de dizer e comunicar,<br />

jamais para enfeitar.<br />

Na prosa de L. R. Guedes o substantivo se impõe<br />

com toda sua plasticidade, cada frase, cada<br />

parágrafo, cada página é um retrato sem retoques<br />

do que o autor recolhe no dia a dia e irrompe<br />

de sua experiência de anos transitando<br />

pelos becos, vielas, ruas, avenidas, periferias –<br />

uma espécie de aguda aferição estética – em clave<br />

de alta literatura sobre o mundo e o submundo<br />

que nos cerca. Toda essa realidade se impõe<br />

como flagrantes crônicas cinematográficas (às<br />

vezes temos a sensação de que entramos não<br />

numa história, mas nos imbricamos num road<br />

movie, com essas passagens e paisagens refletidas<br />

no retrovisor da memória) com sua própria<br />

bagagem existencial, notando-se, claramente,<br />

que o autor recuperou (ou resgatou do inconsciente<br />

pessoal ou coletivo) os referenciais e totens,<br />

as mitologias e arquétipos de uma geração que<br />

sofreu suas transições e metamorfoses, nada<br />

passando despercebido ao seu olhar cirúrgico,<br />

da música ao cinema, da cultura de massas e<br />

dos ícones pop aos desbundes, desatinos e leitmotiv<br />

da rapaziada (sexo, álcool, droga & rock<br />

and rol).<br />

Na construção desses contos, o autor cria tipos<br />

paradigmáticos, como esse Josué Peregrino, funcionando<br />

como uma espécie de personagem-rio,<br />

caudatário de muitas histórias e sensações, de<br />

conflitos familiares a embates com a lei, de tensões<br />

com o tempo de obscurantismo político à<br />

busca do prazer e do erotismo. Migrando, ora de<br />

uma história para outra; ou, de um livro para<br />

outro, daí seu nome-metáfora, recurso que o<br />

aproxima de um alterego poderoso a reverberar<br />

a voz de um escritor que sabe contar sobre seu<br />

tempo sem engodo ou mistificação, porque sintonizado<br />

com todas as urgências, dilemas, tormentas<br />

e inquietações que tantos viveram.<br />

66


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Sem dúvida um autor que “ transforma num<br />

retrato em que nossa humanidade se reconhece”,<br />

como afirma Sérgio Fantini na apresentação<br />

da obra<br />

Por isso, Luiz Roberto Guedes está a merecer<br />

um lugar de destaque no cenário da literatura<br />

contemporânea brasileira, numa época em que<br />

mediocridades são incensadas sem pudor e autores<br />

de elevado nível estético hibernam nas gavetas<br />

ou são criminosamente negligenciados pela<br />

crítica rendida e a mídia vendida nesse mercado<br />

editorial massacrante e avassalador, com suas<br />

hegemonias e monopólios vergonhosos.<br />

Excertos:<br />

Deixou-se levara para fora da praia, e enveredaram<br />

juntos por um arvoredo cerrado, trotando<br />

na escuridão, em meio à cantoria de grilos, sapos<br />

e pererecas. Então ele ouviu música em<br />

crescendo, um tango estilizado de Piazzolla, e<br />

avistou com alívio a grande casa iluminada, com<br />

portas e janelas abertas. O lamento do bandoneón<br />

vinha do galpão nos fundos do terreno. O<br />

bicho largou o braço e latiu.<br />

(...)<br />

O professor conheceu a garota no quilômetro<br />

330 da via Anhanguera, quando voltava de um<br />

fim de semana chatíssimo no interior. A chuva<br />

de vento chacoalhava tanto seu carrinho popular,<br />

que ele resolveu parar num posto de gasolina.<br />

Tomando seu café espresso, observou-a pela<br />

vidraça. Imóvel, de camiseta e saia jeans, ela<br />

suportava o frio, os braços cruzados no peito,<br />

olhar fixo no céu fechado, a boca entreaberta. A<br />

estátua do estupor. Dezoito anos, no máximo.<br />

Leia um trecho do livro:<br />

Miss Tattoo estava em dia com os modelitos:<br />

um piercing na narina esquerda e um pino prateado<br />

trespassado no canto do supercílio direito –<br />

hum, aquilo devia ter doído paca. O vestido preto,<br />

justo e curto, dava pinta de uma falsa magra,<br />

com um belo par de peitos e pernocas de ginasta<br />

olímpica, apertadas numa meia arrastão. Enquanto<br />

ela arranhava o refrão de um rock da dupla,<br />

o tal Van Zyl tocava uma air guitar, rosnava<br />

um riff, sacudia o corpo e praticamente tilintava,<br />

de tanta argolinha pendurada na fuça. Mucho<br />

loco, bicho. Acho que senti, nesse primeiro<br />

contato, tanto repulsa quanto atração. Miss Tattoo<br />

& Mr. Monster pareciam ser o que havia de<br />

mais moderno na cena ‘rock horror show’.<br />

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<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Clips<br />

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<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

poesia /<br />

poema<br />

Rogério Camara<br />

e Priscilla Martins<br />

Um dos seis poetas revelados<br />

na 1ª Exposição Nacional de Arte<br />

Concreta de 1956, Wlademir Dias-<br />

Pino é responsável por uma das<br />

obras mais singulares da poesia<br />

Este é o novo livro de poemas Observatório do caos, de Ronaldo Cagiano,<br />

está disponível pelo site ou e-mail da editora abaixo.<br />

www.editorapatua.com.br<br />

editorapatua@gmail.com<br />

69


<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong><br />

Os amigos, conterrâneos e colaboradores da<br />

<strong>Chicos</strong>, Ronaldo Cagiano e Eltânia André, se<br />

mandaram para Portugal. Estabelecidos, diuturnamente<br />

Ronaldo nos contempla com impressões<br />

e imagens do país de nossos avós .<br />

Compartilhamos com vocês algumas imagens<br />

das andanças dos amigos.<br />

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<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong>


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<strong>Chicos</strong> <strong>49</strong>

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