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Publicação Mensal Ano XIX - Nº 215 Fevereiro de 2016
Confiança invencível
Sailko (CC3.0)
Tríptico
dos Sete
Fundadores -
Igreja dos Sete
Fundadores,
Florença, Itália
2
Senso da hierarquia e da Contra-Revolução
AOrdem dos Servitas é uma das mais antigas entre as especialmente fundadas para propagar a devoção à Mãe
de Deus. O título de Servos ou Escravos de Maria, que os sete fundadores quiseram dar a esta Ordem, prenuncia
a devoção de São Luís Grignion de Montfort, que é a da escravidão a Nossa Senhora. Quer dizer, um
despojamento completo de todos os bens materiais e espirituais, e até dos méritos de nossas boas obras, presentes,
passados e futuros para serem postos nas mãos da Santíssima Virgem.
Com a canonização dos sete fundadores e a aprovação desta Ordem, a Igreja indica que, em relação a Nossa Senhora,
devemos ser servos.
Peçamos aos Santos Fundadores dos Servitas que intervenham na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção
a Maria Santíssima entre os homens, e com ela o senso da hierarquia e da Contra-Revolução.
(Extraído de conferência de 11/2/1965)
Sumário
Publicação Mensal Ano XIX - Nº 215 Fevereiro de 2016
Ano XIX - Nº 215 Fevereiro de 2016
Confiança invencível
Na capa, Dr. Plinio
durante uma conferência
em fevereiro de 1992.
Foto: Mário Shinoda
As matérias extraídas
de exposições verbais de Dr. Plinio
— designadas por “conferências” —
são adaptadas para a linguagem
escrita, sem revisão do autor
Dr. Plinio
Revista mensal de cultura católica, de
propriedade da Editora Retornarei Ltda.
CNPJ - 02.389.379/0001-07
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Gráfica Print Indústria e Editora Ltda.
Av. João Eugênio Gonçalves Pinheiro, 350
78010-308 - Cuiabá - MT
Tel: (65) 3617-7600
Editorial
4 Nossa Senhora da Luz e da Contra-Revolução
Piedade pliniana
5 Propósito de fidelidade à
luz da graça
Dona Lucilia
6 Alma feita de admiração
A sociedade analisada por Dr. Plinio
10 Mentalidade orgânica
De Maria nunquam satis
14 O rochedo saltará como um cabrito
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
19 Harmonia entre a conaturalidade e
a racionalidade - I
Hagiografia
24 A obediência e o espírito de epopeia
Preços da
assinatura anual
Comum .............. R$ 130,00
Colaborador .......... R$ 180,00
Propulsor ............. R$ 415,00
Grande Propulsor ...... R$ 655,00
Exemplar avulso ....... R$ 18,00
Serviço de Atendimento
ao Assinante
Tel./Fax: (11) 2236-1027
Calendário dos Santos
30 Santos de Fevereiro
Luzes da Civilização Cristã
32 Parece um conto de fadas
Última página
36 Sinal de contradição
3
Editorial
Nossa Senhora da Luz e
da Contra-Revolução
À
s vésperas da Festa de Nossa Senhora da Luz, em 1975, Dr. Plinio oferecia-se como vítima nas
mãos da Santíssima Virgem a fim de que sua Obra, toda dedicada à Contra-Revolução, tomasse
novo vigor sobrenatural. Cerca de trinta e seis horas depois, seu oferecimento era avidamente
aceito, sofrendo ele um grave acidente de automóvel.
Levado por uma moção interior da graça a oferecer-se em sacrifício pela causa contrarrevolucionária,
provavelmente Dr. Plinio não tenha relacionado este sublime ato com a data em que era realizado. Contudo,
como ele mesmo comentara em anos anteriores, 1 a invocação de Nossa Senhora da Luz está intimamente
ligada à Contra-Revolução:
Essa é uma invocação lindíssima! Porque Nossa Senhora foi quem gerou a Luz. A Luz do mundo
é Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele é a Luz que brilhou nas trevas e estas não O conseguiram envolver,
nem impedir que fosse visto pelo mundo.
Nossa Senhora da Luz é Nossa Senhora enquanto foco da Luz. Ela não é a Luz, mas é o meio pelo
qual a Luz chega até nós. Ela é a portadora da Luz.
Entretanto, Ela, de algum modo, é a luz. Em que sentido? Há luzes de Nosso Senhor que Ele só
dá a quem muito especialmente invoca Nossa Senhora; e Ela parece tão iluminada com a Luz que
vem d’Ele, que quase se diria ser Ela mesma a Luz. Por isso nós todos podemos cantar como a Igreja
canta: “Ave Virgo gloriosa, ex qua mundo lux est orta — Ave, ó Virgem gloriosa, da qual saiu a Luz
do mundo” 2 .
Devemos pedir a Nossa Senhora que encha a nossa alma desta luz, evitando as trevas da Revolução.
A Revolução é o negrume, o erro, o vazio, o crime, o mal. Nossa Senhora da Luz é Nossa Senhora
da Contra-Revolução. As trevas que procuram abarcar a luz e impedem que essa luz brilhe, essas
são as trevas da Revolução. A luz que racha a treva e que alegra os homens, essa luz é a Contra-Revolução.
Ela é a nossa luz. Ela toda refulge de luz.
Que Nossa Senhora da Luz, nossa Auxiliadora nas trevas interiores, faça raiar em nossas almas esta
luz de uma confiança invencível na realização da nossa vocação, no cumprimento da nossa missão,
que é a concretização da vitória da Causa Católica, por meio dos auxílios que Ela nos dá em todas as
circunstâncias.
1) Conferências de 8/9/1970 e 24/5/1971.
2) Da antífona mariana Ave Regina Cælorum – Ave Rainha dos Céus.
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.
4
Piedade pliniana
Propósito de fidelidade
à luz da graça
Óminha Mãe, Medianeira de todas as graças, na vossa
luz veremos a luz!
Mãe, antes ficar cego do que deixar de ver vossa luz,
porque vê-la é viver. Na sua claridade contemplaremos todas
as luzes; e sem ela, nenhuma luz refulge. Não considerarei vida
os momentos em que ela não brilhar; e eu, da vida, não quererei
ter mais nada do que a mente banhada por essa luz.
Ó luz, eu vos seguirei custe o que custar: pelos vales, montes,
desertos e ilhas; pelas torturas, pelos abandonos e olvidos; pelas
perseguições e tentações, pelos infortúnios, pelas alegrias e
triunfos. Eu vos seguirei de tal maneira que, mesmo no fastígio
da glória, não me incomodarei com ela, porque só me preocuparei
convosco. Eu vos vi, e até o Céu não desejarei outra coisa,
porque, uma vez, vos contemplei!
v
(Composto na década de 1970)
Timothy Ring
Arquivo Revista
5
Dona Lucilia
Alma feita de
admiração
Uma das características mais
salientes da alma de Dona Lucilia era
ver em todas as coisas o lado mais
elevado, mítico e maravilhoso.
Arquivo Revista
Opovo brasileiro — e talvez o
sul-americano — é propenso
a considerar a Europa
como um todo, muito mais do que
fragmentariamente.
Reminiscências da
viagem à Europa
Menciono, a título de exemplo,
uma reminiscência de Da. Lucilia na
Europa, recordação que eu não presenciei
diretamente, porque tinha
apenas quatro anos e não era de nenhum
modo um convidado bem-visto
para acompanhar minha família à
noite no teatro, numa soirée de gala,
pois não compreenderia nada do
que visse.
No entanto, ela contou-me como
era uma soirée de grande gala no
Opéra de Paris. Primeiramente, devemos
tomar em consideração que
se tratava da sociedade parisiense
da Belle époque 1 , portanto, antes das
catástrofes da I Guerra Mundial.
Na ocasião, todas as senhoras deveriam
comparecer em traje de baile
e os homens de casaca, com suas condecorações,
quando as possuíam.
Naquela época era difícil obter
um lugar no teatro, porque todas as
grandes famílias da aristocracia e da
plutocracia de Paris tinham suas frisas
e camarotes reservados com antecedência
— às vezes de seis meses
—, e algumas famílias já faziam re-
Arquivo Revista
6
Library of Congress (CC3.0)
Ópera de Paris em 1890
Pascalgonzalez (CC3.0)
vilhoso fosse menos real, mas ver de
muito perto prejudica essa visão. As
coisas humanas são como as árvores:
de longe são bonitas, mas quem está
a dois dedos do tronco, vê formigas,
buraquinhos e toda espécie de coisas.
Assim também os que estavam lá
e pertenciam àquele mundo, conheciam
os defeitos, as divisões existentes
entre cada família, e não só conheciam,
mas faziam parte das divisões,
eram de tal clã rival de tal outro
e, naturalmente, isto levava a
más vontades e torcidas, e o aspecto
de conjunto se perdia.
Então, se considerarmos a Europa
de antes da I Guerra Mundial como
um magnífico espetáculo de conjunto,
compreende-se que os brasileiros
— e presumivelmente como
eles os irmãos deles de outros países
da América do Sul — fossem muito
sensíveis à visão de conjunto daquela
Europa e as reversibilidades viessem
facilmente ao espírito.
Mamãe já foi à Europa com essa
visão de conjunto, porque todas as famílias
boas de São Paulo, certamente
também de outras cidades brasileiras,
tinham uma visão análoga.
Afinal, seja como for, ao tocar
piano, ao cantar óperas e composições
dos grandes músicos europeus,
ao ler os livros dos escritores da Europa,
enfim, comprar os produtos da
indústria europeia, ler todas as notíserva
para todos os espetáculos do
ano, de maneira que os sul-americanos
encontravam dificuldade, como
os outros turistas também, de conseguir
uma frisa ou um camarote.
Ela contava que havia o costume
de, junto com o folheto da ópera,
contendo os nomes dos atores e
as partituras executadas, venderem
também um panfleto com a indicação
de todas as pessoas e famílias
importantes presentes nas várias frisas
e camarotes. Minha mãe contava
que uma das distrações era exatamente
ler aquilo e, depois, com um
binóculo, conferir a frisa da família
de tal duquesa, a família e o príncipe
de tal outro lugar; vê-los com suas
joias, com suas condecorações,
quando as possuíam, pois os nobres
estavam rompidos com o Governo
francês, que não os condecorava
porque a França era uma República.
Isso despertava a máxima curiosidade
e o interesse dos sul-americanos.
Contemplando o unum
do continente europeu
Minha mãe e os membros de minha
família conservaram uma recordação
maravilhada daquilo que formava
para eles um unum: a sociedade
de Paris. Esse mesmo unum visto
por eles de fora; quem estava dentro
via menos. Não que esse lado maracias
que nos vinham do Velho Continente
pelos jornais, etc., formava-se
uma ideia da Europa em que ela representava
para o sul-americano, para
o brasileiro pelo menos, um papel
parecido com o que a Grécia e Roma
antigas representavam para os
homens da Renascença.
Quer dizer, um mundo olímpico,
mítico, maravilhoso, para onde se ia
quando se podia, onde se ficava tanto
quanto se conseguia. Porque lá a
vida naturalmente era muito mais
cara do que aqui.
Despertando o senso
do maravilhoso através
de pequenos fatos
Então, Dona Lucilia voltou da
Europa com muitas recordações e
ainda mais europeizada. Em São
Paulo, até começar o advento da influência
norte-americana, entre os
anos de 1920 e 1922, a Europa continuou
a ser o polo único do pensamento
paulista, porém debaixo do
ângulo dessa reversibilidade brasileira
que via todos os conjuntos.
Dona Lucilia despertava muito a
minha recordação, e de minha irmã
também, para tudo quanto tínhamos
visto na Europa pelo hábito que ela
tinha de contar, mais de uma vez, os
pequenos fatos do passado. Com receio
de que nós nos esquecêssemos,
7
Dona Lucilia
Arquivo Revista
ela os recontava maternalmente,
quando tinha oportunidade.
Ela descrevia os episódios de maneira
a pôr em realce o maravilhoso
neles contido e a estimular o nosso
sentimento de admiração, a nossa
nostalgia e a nossa vontade de voltar
para a Europa. Era uma educação
na qual estava presente um verdadeiro
“heliotropismo” europeu,
que eu creio sentir-se ainda hoje na
minha formação, aos borbotões.
Realçando o pulchrum de
uma escrivaninha francesa
Por exemplo, Dona Lucilia prezava
muito uma escrivaninha que hoje está
em nosso salão azul, debaixo do quadro
de uma das avós dela. Não é um
móvel de luxo, mas muito bonito. Ela
contava-nos como o havia comprado.
É um fato mínimo, de importância na
vida de uma dona de casa, mas no modo
pelo qual ela contava via-se o quanto
ela valorizava as coisas.
Mamãe comentava como a escrivaninha
era bem feita, como eram
bonitas as incrustações de bronze,
a harmonia do móvel, o mogno do
qual era constituído, como era bem
trabalhado, enfim, um verdadeiro
móvel francês.
O modo como ela descrevia a peça
equivalia a dizer que tinha sido comprada
na terra da perfeição. Ela dava
a entender que vinha da própria
matriz por excelência da civilização, a
França. Isso era apresentado implicitamente.
Também comentava o modo
de tratar dos franceses como sendo
o mais afável que havia na Terra, ao
mesmo tempo o mais distinto, e a língua
francesa como uma música, usada
por ela inclusive para as pequenas
coisas de todos os dias.
Dona Lucilia, então, contava que
ela estava fazendo compras na Galeries
Lafayette. Para aquele tempo era
uma loja monumental, vendia artigos
comuns, de boa qualidade, a preços
acessíveis. E toda dona de casa
quando ia para a Europa comprava,
se podia, alguns ou muitos objetos
de luxo.
Ela foi fazer compras na Galeries
Lafayette quando viu, encostada de um
lado, numa das seções, a escrivaninha.
Ela então perguntou para a vendedora
o que fazia ali aquele móvel. Naturalmente
era uma boa vendeuse e sabia
atrair o cliente, e disse a mamãe:
— A senhora tem uma atenção
não comum, porque os nossos clientes
vêm aqui, passam de um lado para
outro e não prestam atenção nesse
objeto, entretanto, ele é digno de
atenção. Nosso ramo comercial não
é esse, pois nós não temos um setor
que venda móveis usados antigos.
Porém, uma senhora, freguesa nossa
há muito tempo, perdeu a fortuna e
está precisando vender seus pertences.
Ela perguntou se nós podíamos
expor aqui este móvel. O diretor da
casa, por uma exceção, autorizou.
Mamãe se interessou pelo móvel,
perguntou o preço, depois contou à
minha avó, e as duas foram no dia seguinte
examiná-lo. Gostaram muito,
compraram-no. A escrivaninha foi
então primorosamente — porque feito
na França só podia ser primoroso
—, engradada e remetida por navio.
Chegando a São Paulo, em Santos,
foi desembarcada sem dano nenhum.
É o característico de uma historieta
contada por ela: uma imersão na
vida de todos os dias, de um mundo
mítico, no qual até as pequenas
coisas são carregadas de certo pulchrum,
que a criança aprende a ver
pela narração que realçava isso. A
França era a terra da imaginação na
qual tudo era assim, onde todo mundo
se tratava deste modo.
Afabilidade de uma
família de hoteleiros
Sala de visitas da casa de Dr. Plinio. À esquerda,
escrivaninha comprada na Europa por Dona Lucilia
Dou outro exemplo:
O hotel onde Dona Lucilia se
hospedou não era dos grandes de
Paris; era bom, mas comum. Seu
proprietário era um homem de estirpe
nobre — isso já entrava um
pouco na mitologia... — e ocupava
com sua família todo o andar superior
do edifício. Eram os Messieurs
de Vedrines — não me parece um
nome inteiramente francês —, um
simples monsieur respeitável, mas
grau inicial de uma escada que subia
muito mais alta.
8
Ele, querendo distinguir minha
avó e toda a nossa família, mandou
convidar a criançada para uma festa
de aniversário de um dos filhos
dele. Éramos uma horda grande,
porque, além de minha irmã e
eu, tínhamos primos em quantidade,
e todos efervescentes. Era
uma criançada tropical.
Isso era apresentado por ela
assim: que o Monsieur e a Madame
de Vedrines não faziam isso
habitualmente com os outros hospedes
— aí entravam mais uma vez
as mitologias —, mas pela grande estima
para com vovó, eles se sentiram
honrados de tê-la como hóspede e,
querendo de algum modo manifestar
sua consideração para com ela,
mandaram convidar todos os seus
netos para essas festas, além de julgarem
que estávamos em condições
de ser boa companhia para os filhos.
Aí se fazia presente mais uma vez
uma concepção maravilhada da Europa,
apresentada não só como sendo
um mundo maravilhoso, mas
compreensível e receptível para com
o Brasil. Portanto, certa afabilidade
hospitaleira, própria a receber bem,
o que aumentava a vontade de ir para
lá, evidentemente.
Visão mítica a respeito
de outros povos
Arquivo Revista
Fräulein Mathilde Heldmann
Até que ponto essa visão se estendia
ao resto do continente? Em seu
espírito, mamãe distinguia, sobretudo,
três nações na Europa, duas das
quais ela conheceu, outra não. Uma
era a França, outra era a Itália, que
ela também conheceu, e a terceira
era a Áustria, onde ela não esteve.
A Itália, a Áustria e a França
eram para ela as três nações paradigmáticas
da Europa. Quanto à Espanha,
ela compreendia bem todos
os valores que há nesse país, mas os
governos, e até certo ponto a sociedade
de Madri naquele tempo, encontravam-se
num período de recesso,
e a Espanha não estava vivendo
os seus grandes dias, enquanto a
França e a Áustria sim. A Itália, todos
os dias são grandes dias para ela,
pois ela apanha, ela vence, daí a pouco
está sentada na mesa do vencedor
dizendo bonitas palavras e convidando
para ser visitada. De maneira que
a Itália era posta por Dona Lucilia
na ciranda das reversibilidades.
A Alemanha na concepção
de Dona Lucilia
Ela não era inteiramente justa
com Deutschland. Havia momentos
em que isso se distendia um pouco
e ela fazia uma exceção para a Baviera,
na concepção dela, a parte doce
da Alemanha. Mas não abria exceção
para a Prússia, a parte dura e
amarga do mundo germânico, e na
qual ela via, em parte, uma cidadela
do protestantismo.
Isso era verdade, mas também os
católicos prussianos, um décimo da
população prussiana daquele tempo,
constituíam a cidadela da contrarrevolução
católica dentro da Alemanha,
e isto ela não sabia.
Um dos maiores benefícios que
Dona Lucilia nos fez foi contratar —
com pesado sacrifício financeiro para
ela — a Fräulein Mathilde, uma
das melhores governantas que havia
em São Paulo.
Mamãe tinha uma grande preocupação
com o futuro de minha
irmã e o meu. Por isso tomou a
seguinte resolução: “O que vocês
têm e que eu posso aprimorar é
a inteligência. Portanto, o que tenho
a fazer é contratar uma preceptora
de primeira, porque irão
lucrar com ela o que não lucrarão
em nenhuma universidade.”
Ela tinha razão. Porém, a Fräulein
nos germanizou muito e Dona Lucilia
gostava de contar o sacrifício que
ela fez mantendo esta governanta.
Quer dizer, ela sabia ter feito bem,
mas depois dizia que havia sido um
erro, pois Rosée e eu tínhamos saído
muito germanizados.
Ideia vaga sobre os
povos eslavos e reserva
quanto a Portugal
Ficava também fora da reversibilidade
dela o mundo eslavo, porque
não entrava muito na vista dos brasileiros
naquele tempo. Era tão longe,
e uma história tão diferente, que
Dona Lucilia tinha ideia vaga daqueles
povos e, portanto, eles entravam
pouco no horizonte mental dela.
Alguém poderia me perguntar: E
Portugal?
Por incrível que pareça, na infância
dela os ressentimentos do período
da independência ainda pesavam
um pouco. Apesar disso, ela gostava
de Portugal, mas creio que eu valorizo
muito mais Portugal do que ela
valorizava.
v
(Extraído de conferência de
11/6/1982)
1) Do francês: Bela Época. Período entre
1871 e 1914, durante o qual a Europa
experimentou profundas transformações
culturais, dentro de um
clima de alegria e brilho social. Ver
Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.
9
A sociedade analisada por Dr. Plinio
Mentalidade orgânica
Sergio Hollmann
O homem deve procurar custodiar a organicidade,
mais do que dirigi-la, criando condições favoráveis ao
seu desenvolvimento e evitando introduzir elementos
inorgânicos como, por exemplo, os produtos da
revolução industrial com suas altas velocidades.
P
assemos à leitura do livro de
Rafael Gambra, “El Valle
de Roncal”.
Entidade autônoma
Assim isolado e formando uma
fechada comunidade política, o Vale
do Roncal manteve através dos séculos
uma personalidade forte e característica,
com uma história própria
e até certo ponto independente.
Por exemplo, lemos em uma de suas
“ejecutorias”: “Ainda que o Vale
do Roncal seja membro do corpo
do Reino de Navarra, quando este
se entregou à majestade do senhor
Rei Dom Fernando, Católico, e se
outorgou a capitulação geral do vale
com os deputados de todo o reino,
não obstante considerando o Vale
do Roncal braço poderoso e forte
por si para a defesa de seu rei e senhor
natural, se lhe determinou que
se outorgassem seus poderes para
capitular separadamente sua fidelidade
à majestade católica, como assim
o fez com o Duque de Alba, general
das tropas naquele ano.
Assim também, na guerra de 1793
contra a Revolução Francesa, o Vale
do Roncal defendeu suas fronteiras
às ordens de seu alcaide maior, o capitão
de guerra, operando entre o corpo
de exército de Navarra, comandado
pelo General Caro, e o de Aragão,
comandado por Castellfranco. Apesar
do tempo e das vicissitudes políticas,
tão pouco propícias às diferenças
locais, esta personalidade coletiva
foi mantida por Roncal até os nossos
dias. […] A junta geral do vale integrada
pelas sete vilas ou “pueblos”, à
qual pertence a maior parte dos imensos
bosques de seu solo, administra-se
por si mesma sem ter que dar contas a
nenhum poder superior, nem mesmo à
deputação de Navarra.
Vemos que dentro do Roncal existe
uma entidade que não dá satisfações
nem mesmo aos chefes do Roncal;
é uma entidade autônoma que
leva a autonomia quase até a exacerbação,
mas saudavelmente, não num
espírito revolucionário.
Havia o antigo Reino de Navarra,
e o Roncal fazia parte autônoma,
10
Sergio Hollmann
Sergio Hollmann
era uma república dentro desse reino.
Mas o Reino de Navarra devia
mandar uma deputação para ver como
estavam as coisas no Roncal.
Goza-se no vale uma independência
dentro do próprio foro de Navarra,
o que faz dele um vale pirenaico mais
autônomo depois do de Andorra. Esta
autonomia, que ocorreu sempre paralela
a seu espírito público e a sua
vontade em defender a pátria comum,
faz deste vale o melhor exemplo vivo
do que seriam, no século do ouro, os
povos espanhóis. Tão marcadamente
diferentes entre si, tão zelosos do seu
próprio foro, mas tão unidos na mesma
fé e sobre a mesma coroa.
Tipo humano, paisagem
e produção
Paisagem: O viajante que por primeira
vez penetra no vale, transitando
águas acima desde a sua desembocadura,
tem a impressão em cada
curva do caminho de que sua viagem
vai terminar ali mesmo, de que aquela
estrada morrerá bruscamente frente
a uma maciça e impenetrável muralha
de pedra. A noite se adianta várias
horas no fundo daquelas gargantas
e a estrada, entre o penhasco e o
abismo do rio, se dobra à sinuosidade
do vale, sempre ameaçada pelos
tremendos blocos de pedra que, meio
desgastados, parecem dispostos a desabar
sobre a estrada.
E abaixo, no meio do rio que ferve
claríssimo no seu leito de pedra, enormes
rochas soltas confirmam a ameaça.
O panorama vai mudando sensivelmente
à medida que se remonta o
vale. A seca fragosidade dos primeiros
desfiladeiros se vai iluminando em
perspectivas mais amplas, que são remarcadas
pelos agudos picos do Pireneu,
cujos cumes se perdem tantas vezes
entre as espessas nuvens de inverno.
A vegetação é mais substanciosa
e densa. As primeiras massas escuras
de pinheiros e abetos alternam com
verdes prados salpicados de cerradas
matas. De todas as partes descem frequentemente,
em brancas cataratas,
arroios de claríssimas águas, cujo leito
de pedra nua alberga as mais finas
e saborosas trutas do Pireneu navarro.
O povoado do Roncal situa-se no centro
do vale com o seu conjunto de casas
brasonadas de pedra negra superpostas
em inclinada encosta que coroa
a igreja, a qual bem poderia servir
de fortaleza.
Coroando esta última parte, abre-se
diante de nós a visão da outra vertente.
Poucos espetáculos mais impressionantes,
creio eu, pode oferecer a natureza ao
espectador, porque talvez em nenhuma
parte se tenha mais vivamente a estra-
Ziegler175 (CC 3.0)
11
A sociedade analisada por Dr. Plinio
Sergio Hollmann
nha sensação de se encontrar a cavalo
entre dois mundos.
Muito bonito! Esta correlação —
tipo humano, pessoa, paisagem e produção
— dá o unum e está no cerne
da noção de sociedade orgânica pela
seguinte razão: há alguma coisa em
cada ser existente ali que tende a formar
esse unum com todo o resto. Por
exemplo, as cabras ou as ovelhas do
lugar certamente se diferenciam das
de outros lugares, por umas tantas características
físicas, mas que têm relação
com a forma da mata, do monte,
com o feitio do nariz do sujeito que
cria a cabra, e com os desenhos da
manta que sua esposa tece para ele
nas noites de inverno.
Região, uma
criatura de Deus
Tudo isso é orgânico no sentido de
que, por uma misteriosa harmonia ou
convergência, faz ressaltar um unum
existente ali, jorrado do fundo de cada
ser. Isso não vem de nenhum plano
pré-concebido; vem de tudo. É alguma
coisa que, suponho eu, esteja
no desígnio de Deus e não tem nada
de criado pelo ser humano. O homem
...uma
organicidade
da qual seja
tirada a luta é
uma organicidade
que amoleceu
e se perdeu.
conhece, percebe e se adapta, e adaptando-se,
acentua ainda mais.
Alguém dirá: “Isso aí é o vento tal
que bate em tal lugar e faz com que a
lã de tal carneiro seja não sei o quê;
e depois a água tem tais sais e por isso
dá uma cor ferruginosa ao focinho
dos animais.”
Essas explicações podem até ser
verdadeiras e à primeira vista nos desapontam
porque, se tudo se explica
assim, o que isso tem de orgânico?
Orgânico porque essas causas
profundas, científicas — que, por
vezes, não passam de meras hipóteses
—, se reuniram ali para produzir
aquilo por um desígnio de Deus.
Logo, chegar-se-ia à conclusão de
que a região é uma criatura de Deus,
num sentido especial da palavra. Assim
como Deus criou o universo, Ele
criou os microuniversos que o compõem.
E cada um deles tem uma espécie
de natureza própria distinta do
conjunto do país, como a espécie se
distingue do gênero, dando o sabor
orgânico da regionalidade.
As velocidades excessivas
são antiorgânicas
Tudo isso, as comunicações vertiginosamente
rápidas vão destruindo.
Por exemplo, uma pessoa que viaja
em seu veículo numa grande autoestrada
tem de percorrê-la numa velocidade
rápida que não lhe dá tempo
sequer de perceber essas diferenças.
Assim, fica-lhe na mente não aquilo
que Deus criou, mas uma confusão
de impressões diversas.
Acho que isto é muito importante
para a definição de organicidade, na
12
JuergenG (CC 3.0)
medida em que esta seja um sistema
de distribuição das forças, energias e
predicados do universo. O problema
não é correr, passar logo, mas fazer
com que essa organicidade tenha as
condições ideais para produzir seus
efeitos.
Então, a intervenção do homem
não se dá de maneira a que ele dirija
a organicidade, mas é esta que o dirige.
Ele deve procurar ver para onde
a organicidade se move e facilitar-
-lhe a própria expansão, porém sem
suprimir as lutas contra o que ela
precisa derrubar no caminho. Porque
uma organicidade da qual seja
tirada a luta é uma organicidade que
amoleceu e se perdeu.
É preciso ter um sumo respeito
com isso. Seria como se um decorador
recebesse um palácio para decorar.
Ele deveria ser sumamente respeitoso
da arquitetura do palácio,
até para colocar ali um vasinho, uma
bonbonnière. Porque tudo tem que
se adaptar e estar em jogo com a ambientação.
Assim deve agir o indivíduo com
uma mentalidade orgânica.
Eu acho que se deveria sustentar
que as velocidades excessivas, quando
tornadas habituais, geram doenças,
desequilíbrios mentais, etc. É
antiorgânico. Na correlação entre as
coisas há algo por onde essa antiorganicidade
é malfazeja.
Exemplo de um funesto
efeito da revolução industrial
Recordo-me de que, certa vez, o
trem no qual eu viajava pelo interior
do Brasil parou no meio de uma planície
com um tipo de vegetação chamada
capim gordura. Gosto muito
dessa vegetação que tem um cheiro
agradável. Percebi que a locomotiva
começou a resfolegar aquela como
que respiração de inferno, e soltar
aquela fumaça quente por cima
do capim gordura. E este ia amolecendo,
vilipendiado, enxotado e —
desculpem-me a palavra — escarrado
pela locomotiva.
Em certo momento, depois de ter
escangalhado aquilo tudo, o trem
emite um barulho de ferragem que
começa a se mexer, soa um apito que
dilacera a paz dos ares, e a locomotiva
se põe vitoriosamente a caminho.
Quem fica do lado do capim gordura
amaldiçoa a locomotiva, vê que
o atingido está perdido e tem a impressão
de ser inútil qualquer reação
contra a revolução industrial.
Atualmente a locomotiva é elétrica,
silenciosa, e parece não destruir
nada disso. Entretanto, esses deslocamentos
rapidíssimos de massas colossais,
tornando-se frequentes, perturbam
alguma coisa no equilíbrio
energético da natureza. Mas será
verdade? Seria preciso fazer estudos
científicos para comprová-lo.
Se eu tivesse que imaginar nas estradas
do Vale do Roncal passar um
automóvel Ford bigode, dos anos
vinte, todo escangalhado e velhote,
eu ainda ficaria menos insultado do
que ver passar uma Mercedes Benz
fantástica, a duzentos por hora, e
dentro pessoas discutindo negócios,
sem sequer olhar para o panorama.
Quando se informava com entusiasmo
a Dona Lucilia a respeito de descobertas
modernas, ela, muito séria, afável,
bondosa, dizia: “Ah é, é?”. Mas esse
“ah é, é?”, embora não polêmico, era
tão amortecedor que ficava entendido
que a questão tinha também algum outro
lado a ser considerado...
Essa atitude de mamãe, por exemplo,
foi um fator que contribuiu muito
para me pôr de sobreaviso contra
a revolução industrial, quando eu
era menino. Eu pensava: “A ordem
comporta que se seja como ela, e há
em toda essa história um erro que eu
ainda vou descobrir qual seja.” v
(Extraído de conferência de
29/4/1993)
Eduardo P (CC 3.0)
13
De Maria nunquam satis
O rochedo saltará
como um cabrito
Estamos aos pés do maior rochedo da História,
que é a Revolução gnóstica e igualitária.
Assim como em Lourdes Maria Santíssima
realizou e realiza inúmeros milagres, Ela fará
com que esse rochedo se esboroe.
Sergio Hollmann
Santa Bernadete Soubirous -
Santuário de Lourdes, França
Arespeito de Nossa Senhora
de Lourdes, na biografia
de Santa Bernadete Soubirous,
a vidente de Lourdes, escrita
pelo Pe. Trochu 1 , encontramos alguns
dados que nos falam a respeito
da devoção dessa Santa a Nossa Senhora.
O Rosário era sua
devoção preferida
A devoção à Santíssima Virgem tinha
que ser particularmente terna e
particularmente filial. “Maria, seu ideal
vivo, ocupava em seu coração um
lugar muito próximo a Nosso Senhor
— declarou sua vizinha de enfermaria,
Sóror Marta du Rais. Tinha que
ouvi-la quando recitava a Ave-Maria.
Que acento de piedade, especialmente
quando pronunciava as palavras “pobres
pecadores”. Quando dizia “Minha
Mãe celestial”, não podia dizer mais.
Alguém se atreveu a perguntar-lhe se
a lembrança da aparição se tinha apa-
gado em sua memória. “Esquecer-me?
— exclamou com tom de censura —
Oh, não, jamais!” E levando sua mão
direita sobre a fronte, dizia: “Está aqui.”
“Teria que nos fazer — sugeriu-lhe
uma companheira — uma descrição
de como era a Virgem, posto que a senhora
sabe como era Ela.” “Não poderia
nem saberia fazê-lo — foi a única
resposta que deu. Eu para mim não
necessito; levo-A no coração.”
A devoção mariana encheu de certo
modo toda a sua vida. Tinha necessidade
de meditar sobre a Virgem. Via
Maria em tudo e por tudo com seu coração
e seu entendimento. Nunca, para
uma alma religiosa, a oração de
quietude podia ter sido mais desejada.
Quando rezava à Santíssima Virgem
— atesta Sóror Gonzaga Champy —,
parecia ainda que estava vendo. Quando
alguém lhe pedia que alcançasse alguma
graça, imediatamente respondia
que pediria à Santíssima Virgem.
Arrebatada pelo Cântico dos Cânticos
— informa um grande servi-
Victor Domingues
dor de Maria — Sóror Maria Bernadete
se comprazia em louvá-La, fazê-
-La conhecer, amá-La e servi-La. Esforçava-se
por imitar suas virtudes, especialmente
sua humildade e sua renúncia.
Dedicou-se, para sua devoção, a
compor acrósticos. A primeira dessas
modestas composições se refere à
Santíssima Virgem, e era:
Mortificação
Amor
Regularidade
Inocência
Abandono
No dia da Assunção, na capela, a
Madre Henri Fabre, que estava situada
um pouco distante de Sóror Maria
Bernadete, de modo que lhe era fácil
poder observá-la, “às palavras do canto
‘é minha Mãe, eu vejo’, eu a vi —
conta — como se ela tivesse um
arrebatamento e uma comoção
de alegria”. [...]
Toda sua vida desfiou o Rosário
como tinha feito em
Lourdes. “O Rosário era sua
devoção preferida”, disse uma
Superiora Geral. Mais de
uma vez, na enfermaria, a Irmã
Gonzaga Champy alternou
as Ave-Marias com ela.
“Então — recorda essa religiosa
— os olhos escuros, profundos
e brilhantes de Bernadete pareciam
como se estivessem vendo
Nossa Senhora.” Pela noite, quando
ia dormir, recomendava a uma companheira:
“Toma o Rosário e durma
rezando. Farás o mesmo que fazem
as crianças pequenas que adormecem
dizendo ‘mamãe, mamãe’.”
Vocação muito parecida
com a de Lúcia de Fátima
Esses dados sobre Santa Maria
Bernadete atestam bem a ardente devoção
que ela teve a Nossa Senhora.
Mas há uma coisa curiosa na vida
dessa Santa: ficou provado que ela tinha
essa grande devoção a Nossa Senhora,
mas ela não deixou transparecer
senão muito pouca coisa. Quer dizer,
algum dado novo, alguma reflexão
nova, algum enriquecimento da
Mariologia, algum sistema de devoção
novo, algo que pudesse, enfim,
Eric Salas
Santa Bernadete Soubirous
representar um impulso para a devoção
a Nossa Senhora, ela não deu.
Isso porque Santa Bernadete teve
uma vocação muito parecida com a
de Lúcia de Fátima. Quer dizer, ela
teve a vocação de revelar ao mundo
as aparições de Lourdes. Uma
vez que ela revelou essas aparições,
ela as prestigiou tornando-se freira e
sendo canonizada pela Igreja.
Embora a Igreja não mande crer
nas aparições de Lourdes, porque
são de caráter privado — e em matéria
de fatos sobrenaturais nós só somos
obrigados a acreditar nos fatos
oficiais, não nos privados —, roça pela
heresia quem conteste as aparições
de Lourdes. Porque seria preciso admitir
que uma Santa canonizada pela
Igreja tivesse tido essas ilusões.
Ora, isso é uma coisa que não se
pode admitir. De maneira que a
vida e a santidade de Santa Bernadete
de algum modo atestam
a autenticidade das aparições
de Lourdes.
A santidade de
Bernadete atesta
a autenticidade
das aparições
Aliás, também exuberantemente
atestadas pelo fato dos
milagres que se operaram depois,
e que são uma prova de que
em Lourdes realmente é a graça que
atua. Santa Bernadete Soubirous,
durante uma das visões — o povo
não via Nossa Senhora, mas percebia
que ela falava com uma pessoa
15
De Maria nunquam satis
Eric Salas
mado, e cada pessoa se dedica inteiramente
à missão para a qual foi escolhida.
Temos, então, Santa Bernadete
Soubirous como uma espécie de testemunho
vivo do milagre de Lourdes.
Em Lourdes Maria Santíssima
quis ser conhecida enquanto sumamente
benfazeja. Por isso, nas nossas
orações devemos ser ousados, fazer
pedidos arrojados — não insensatos;
é uma coisa profundamente diferente
—, difíceis de alcançar, e precisamos,
ao mesmo tempo, pedir com
muita insistência.
Por exemplo, pedir uma graça que
diga respeito à nossa santificação. Isso
nos leva a refletir um pouco em
nossa vida espiritual. E, por essa forma,
a ter uma visão de nós mesmos
e de nossas atividades, de nossos rumos,
mais precisa. E leva-nos a fazer
uma oração grata a Nossa Senhora.
Gruta de Massabielle - Lourdes, França
que ninguém via —, a certa altura
essa pessoa disse a ela: “Passe a mão
na terra, revolva-a, que daí vai nascer
uma fonte.” E, num lugar onde
ninguém supunha que existisse água,
viu-se ela meter diretamente a mão
na terra — era uma camponesa — e
a água brotar. Daí veio exatamente a
fonte de Lourdes e ela disse que nessa
fonte se operariam muitas curas.
Ela fez uma profecia: nessa fonte
maravilhosamente aparecida haveria
curas, e depois houve as curas. De
maneira que cada uma dessas coisas
é milagrosa por si.
Além disso, a vida de santidade
dela atestava o seu equilíbrio mental
e, portanto, a autenticidade das
visões e dos fatos milagrosos que em
Lourdes se deram.
Depois que esses fatos se deram,
ela não teve uma missão pública,
mas privada. E por causa disso ela se
calou.
Isso é muito bonito para nós vermos
a diferença de vocações dentro
da Igreja, e como a Providência suscita
cada pessoa para ordenadamente
seguir uma determinada vocação.
Um tem uma tarefa, um segundo outra
tarefa, um terceiro tem outra.
Nossa Senhora distribui essas missões
de maneira tal que ninguém se
mete na tarefa na qual não foi cha-
Mais do que os corpos
mortais, Nossa Senhora quer
curar as almas imortais
Não devemos nos esquecer de que
as doenças do corpo, no Evangelho,
costumam ser consideradas, pelos comentaristas
e exegetas, como sendo
símbolos das doenças da alma. E que
assim como alguns sofrem de paralisia
do corpo, outros sofrem de paralisia
da alma; sofrem de cegueira do
corpo, outros, da alma; e assim surdez,
mudez e outras enfermidades.
O que é mais difícil: curar o corpo
ou curar a alma? Evidentemente,
para a Rainha do Céu e da Terra
não é difícil nem uma coisa nem outra.
Aquilo que Nossa Senhora pedir,
Ela obtém. Se Ela cura tanto os
Nosso Senhor cura um leproso - Mosteiro de San
Millan de la Cogolla, La Rioja, Espanha
Francisco Lecaros
16
Sergio Hollmann
Rio Gave e Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, França
corpos, vamos pedir-Lhe para curar
as nossas almas também.
Se tivermos defeitos da alma que
gostaríamos de corrigir, seria o momento
adequado para levarmos aos
pés d’Ela esses nossos defeitos e rogar-Lhe
que nos cure. Esse pedido
tem muita razão de ser, porque se a
Santíssima Virgem quer tanto curar
os corpos perecíveis, mortais, quanto
mais Ela quererá curar almas imperecíveis
e imortais.
Nosso Senhor Jesus Cristo não
veio à Terra para salvar corpos, e
sim para salvar almas, e por isso nossos
pedidos não podem deixar de ser
muitos gratos a Ele.
Podemos rogar por nós ou a favor
de alguém por quem nos interessamos,
com quem façamos apostolado,
por uma alma cujas dificuldades
nos amedrontam, por um amigo
cujas aflições ou tentações pelas
quais passa constituem para nós uma
fonte de preocupação.
A Festa de Nossa Senhora de
Lourdes nos inspira, contudo, outra
consideração e nos traz à memória,
naturalmente, a gruta bem conhecida
de Massabielle na qual se encontra
o nicho com a imagem da Imaculada
Conceição, onde há os dizeres dirigidos
por Nossa Senhora a Santa Bernadete
Soubirous: “Eu sou a Imaculada
Conceição.” Embaixo, o Rio Gave
que espuma e, pouco adiante, as
piscinas nas quais se fazem os banhos
dos doentes, e onde ocorrem os milagres.
Bem acima, numa posição bonita,
encontra-se a Basílica.
Confirmando o dogma da
Imaculada Conceição
Nesse quadro clássico, temos uma
nota que diz tudo. A Santíssima Virgem
quis aparecer e manifestar-se
em Lourdes para dar especial força
à Fé dos fiéis quanto ao dogma da
Imaculada Conceição. Para isso, a
Igreja tinha quase dois mil anos de
ensino e, definindo o dogma por sua
autoridade infalível, este foi aceito
por quase toda a Cristandade. Foi
recusado apenas por alguns que saíram
ingloriamente, torpemente da
Igreja nessa ocasião, a tal seita dos
Velhos Católicos.
Nesta situação, entretanto, Nossa
Senhora quis que um milagre, a
aparição d’Ela a uma pastorinha,
Santa Bernadete Soubirous, ainda
realçasse isso, para que a crença dos
fiéis na Imaculada Conceição fosse
bem firme.
Para ainda tornar este milagre
mais evidente, Maria Santíssima
prolongou-o numa espécie de rosário
de milagres através dos séculos.
Será que realmente Nossa Senhora
apareceu a essa pastorinha? Será
que ela não foi sugestionada pelo
clero? Será que não foi paga, não
foi ensinada?
Qual a prova do contrário? É o milagre.
É uma cura, duas, dez, incontestáveis,
indiscutíveis, perfeitas, que provam
ao longo dos tempos, como um sino
que toca longamente, e de vez em
quando soa de novo e não se contenta
com seu próprio eco, mas se prolonga
a si próprio na sua atividade, pela noite
adentro... Assim também, na noite
da impiedade que ia avançando pelo
mundo, os sinos dos milagres de Lourdes
continuaram a tocar.
As curas operadas
em Lourdes
A esta importância do milagre se
contrapõe, entretanto, também outra
situação. Não é só mais a Imaculada
17
De Maria nunquam satis
Conceição cuja confirmação é a finalidade
essencial dos milagres, mas há
também outro aspecto a considerar:
os doentes com todas as misérias que
podem afligir o pobre corpo humano,
e que ali vão para serem curados.
Algumas curas são claramente
milagrosas. Outras, de cujo caráter
milagroso não há prova científica,
mas que são curas autênticas. Apenas
a Igreja não declara oficialmente
que são milagres porque são doenças,
em última análise, curáveis também
por outro agente. E a Igreja se
dá ao justo e sábio luxo de só reconhecer
aquelas curas de doenças realmente
incuráveis.
Mas, quantas curas de doenças
curáveis! Quantas pessoas que palpitam
ali aos pés da imagem da Imaculada
Conceição em Lourdes e cantam,
rezam, choram e suplicam porque
trazem fardos no corpo, os fardos
das doenças; trazem sofrimentos,
provações terríveis e pedem a
Nossa Senhora que as cure.
A respeito dessas curas, qual é o
ensinamento da Igreja?
Descartadas outras circunstâncias
a considerar, esta pesa fundamentalmente:
é preciso que o doente tenha
Fé católica apostólica romana viva,
acesa. E que ele creia no milagre que
vai acontecer.
Desmentindo o que estou dizendo,
há casos de ateus que se curaram.
Analisando os fatos, verifica-se
que eles eram acompanhados muitas
vezes por gente que tinha Fé, a velha
mãe, a irmã piedosa, o irmão católico
ardoroso que rezavam, em atenção
a cujos rogos os milagres foram
dados aos ateus.
Se alguma vez a cura foi concedida
a um homem desacompanhado
de pessoas e que não tinha Fé, havia
em algum lugar do mundo uma
alma reta, uma alma justa que, sem
rezar por aquele homem individualmente
cuja existência ignorava até,
entretanto orou para que a glória de
Nossa Senhora se manifestasse. Esta
é a realidade. Quer dizer, o que determina,
o último elo para que o milagre
toque no miraculado e a luz do
Céu penetre, assim, aos olhos dos incrédulos
para provar a Imaculada
Conceição, é a Fé daquele que pediu;
a Fé que move as montanhas.
Estamos diante do
maior rochedo da
História: a Revolução
Ora, nós estamos aos pés do maior
rochedo da História, que é a Revolução,
e devemos crer que a nossa força
de alma aplicada, cotidianamente,
contra esse rochedo o moverá. O sinal
de nossa Fé é o ímpeto da força.
Para usar a metáfora do aríete, é
preciso que no impulso desse aríete
cada um coloque toda a sua força.
E, não adianta dizer que qualitativamente
a força de um de nós pode valer
mais do que a do outro, porque é um
argumento errado. Assim como Nosso
Senhor quer que uma gota d’água
esteja misturada ao vinho para operar-
-se a transubstanciação na Santa Missa,
assim também, por este exemplo
augusto, quer Ele nos provar que o esforço
do menor tem que estar somado,
por inteiro, ao esforço do maior.
O que é a força no caso? É aquela
violência que move os Céus. Está dito:
“O reino dos Céus é dos violentos”
(Mt 11,12). E é essa a violência
que nós devemos ter. Violência com
que Jacó lutou contra o Anjo e obrigou-o
a dar a bênção. Assim nós temos
que lutar contra as circunstâncias
e obter da Santíssima Virgem
que o Anjo d’Ela desça do Céu e nos
dê a sua bênção.
Então a Providência exigiria de todos
nós que aplicássemos, cada um,
toda a força sobre o rochedo dizendo:
“Salve Rainha, Mãe de misericórdia...”
Um dia, quando menos esperássemos,
o rochedo saltaria como
um cabrito. Nossa Senhora terá, nesse
momento, premiado dias, meses e
anos em que, sem cessar, a alma foi
aplicada com toda a intensidade. Dia
virá em que o Coração Sapiencial e
Imaculado de Maria ordenará ao rochedo:
“Salte!” E ele saltará. v
(Extraído de conferências de
10/2/1965, 11/2/1967 e 12/2/1982)
1) TROCHU, Francis. Bernadeta Soubirous:
La vidente de Lourdes. Barcelona:
Editorial Herder, 1957. p. 472-
474.
Corpo incorrupto de Santa Bernadete Soubirous - Nevers, França
Antonio Lutiane
18
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
Harmonia entre a conaturalidade
e a racionalidade - I
Somente na sadia e equilibrada reversibilidade entre
o conhecimento conatural e o racional a alma elabora
adequadamente um panorama intelectual. Uma reta
educação deveria orientar-se neste sentido, servindo-se
dos elementos fornecidos pela inocência.
OPositivismo parte da ideia
de que só é real aquilo que
os sentidos captam. Aquilo
que não captaram não é real. E
então, o positivo — daí o Positivismo
—, aquilo que certamente é verdadeiro,
é o sensível. Por causa disso
também, o que com certeza é verdadeiro
é o ponderável. O que não é
sensível ou que venha pelos sentidos,
mas não é ponderável, pela criteriologia
do Positivismo, fica excluído.
Um processo de educação
que deveria ser seguido
Auguste Comte
E nesse pedido do positivo, entra
um tanto misturado algo meio
positivista, da apresentação da coisa
nos seus aspectos sensíveis e explícitos.
E nisso o pedido solicita o impossível,
o contraditório, porque pede
a coisa em termos de mera razão,
e não em termos de conaturalidade.
Esse pedido do positivo tem lados
criteriológicos evidentemente
bons, nem vale a pena perder tempo
com eles, são óbvios. Na escola de
Auguste Comte 1 , o positivo é aquilo
que passa pelos sentidos, e por causa
disso também, criteriologicamente, é
aquilo que se pode definir tirando da
ponta do raciocínio. Se é assim, o desejo
do positivo, a respeito de mil coisas
que penso, acaba fazendo um pedido,
subconscientemente, um tanto
positivista, querendo uma definição e
que a coisa fique ao alcance dos sentidos.
E isto não pode ser, por causa do
que vou passar a expor agora.
Há uma série de conhecimentos
que estão na inocência e que são
uma harmonia misteriosa, que não
sei se é explicitável inteiramente,
mas harmonia entre o racional e o
conatural, entre o conhecimento por
racionalidade e o conhecimento por
conaturalidade.
De maneira tal que na alma de
uma criança as duas coisas se misturam;
a criança às vezes raciocina e às
vezes tem a intuição de uma coisa, e
ela compõe, com a verdade conhecida
por raciocínio e a conhecida por
conaturalidade, um só todo misturando
uma coisa com a outra, sem a menor
preocupação e sem nenhum problema
criteriológico. E isto é sadio.
Porque se ambas as coisas são meios
de conhecer a verdade, é saudável
que se tome umas e outras verdades e
se componha com elas elementos para
chegar a outras verdades.
É preciso, na disciplina do espírito
formado por nós, que a pessoa tenha
a propensão, o programa de levar
o racional tão longe quanto possível
e, mesmo quando por conaturalidade
alguma coisa parecesse muito
clara, ter verdadeiro gáudio, verdadeiro
desejo de, tanto quanto possível,
pôr a coisa em termos silogísticos.
Isto é, a meu ver, um sinal da
saúde do espírito.
Por quê? Porque o conhecimento
maior, num certo sentido da palavra, é
o racional; é o mais forte, o mais controlável,
o mais seguro e, portanto, se
deve ter por ele grande apreço e levá-
-lo, tanto quanto possível, longe.
19
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
Mas, ciente de que não é
o único conhecimento que
o homem tem; este possui
também o conhecimento
por conaturalidade, de que
fala São Tomás 2 , que não
é substituível e que se trata
de afinar, de tornar mais
sensível, mais perspicaz por
todo um processo próprio
de educação que deveria
ser dado, como é feito com
o lado racional do homem,
ainda no tempo em que se
é menino.
É da junção harmoniosa
dessas coisas que a pessoa
monta o seu panorama.
Modos de comunicar
o inefável
Herbert James Gunn (CC3.0)
Então, a apresentação
do lado positivo sem indicações,
sem ressaibos positivistas,
daria a apresentação
de um conjunto no
qual muitas coisas podem
ser ditas de um modo “fável”,
e outras coisas devem
ser comunicadas de um modo mais
ou menos inefável — sempre levando
o modo “fável” tão longe quanto
possível —, por imponderáveis, que
a linguagem humana não consegue
transmitir.
Então, como se comunica de um
para outro?
Rainha Elizabeth II em traje de coroação
O normal é que o próprio modo
de ser do indivíduo comunique os
inefáveis que ele vê e que ele tem.
E que o próprio da civilização, da
educação dada pelo país, pela região,
pela família, é um adelgaçamento,
uma finura, um requinte de
todos esses meios imponderáveis de
comunicar que, com a clareza
da sua linguagem própria,
transmite uma porção
de coisas.
A Rainha Elizabeth, por
exemplo, dá uma verdadeira
aula do que é a instituição
monárquica pelo seu
modo de ser. Um professor
de Oxford poderia dar aulas
magníficas, magistrais sobre
a função monárquica,
mas ele nunca diria o que
ela diz.
Como, numa outra linha,
a concepção da monarquia
católica que está expressa
no Escorial, Versailles não
proporciona. E a concepção
da aventura meio guerreira
e sacral a Torre de Belém
dá, ao menos no meu modo
de sentir, como nenhuma
outra torre. Vou dizer uma
coisa que pode parecer uma
enormidade: nem as torres
de Notre-Dame, que não foram
feitas para isso.
E haveria toda uma formação
para dar neste sentido,
de curso secundário — porque é
onde isso se pega —, que depois duraria
o resto da vida, e que tenho a
impressão de ser um dos aspectos
que explicam a genialidade da Companhia
de Jesus, não se interessando
tanto pelas universidades quanto pelo
curso secundário.
SalomonSegundo (CC3.0)
Alain Patrick
Mosteiro de São Lourenço do Escorial, Madri, Espanha
20
Palácio de Versailles, França
Muito “vagabundo” que há por aí
em aula, é aluno que faz fronda contra
o curso meramente racional, que
é uma coisa simplesmente horrorosa!
Hoje me dou conta de que só fui bom
aluno porque instintivamente, intuitivamente,
completava por minha própria
conta o que as aulas racionais davam.
Porque, do contrário, não aguentaria.
Aquela coisa é horrível.
...os fotógrafos
tinham vontade de
apanhar a realidade
positivista como era.
Eles começaram
a fotografar
estados de espírito,
imponderáveis...
Aquilo faz uma seleção às avessas:
os mais dotados numa coisa e noutra
ficam à margem. E todos nós temos
uma espécie de prevenção contra o
primeiro aluno, porque é um homem
que se amputou mentalmente e tirou
toda a conaturalidade.
Progresso da arte fotográfica
Isso torna compreensível que eu
tivesse toda uma coleção de exemplos,
de objetos que abrisse o espírito
de uma pessoa para os vários aspectos
dos imponderáveis, dos ambientes,
costumes, etc.
O que seria, aliás, muito mais fácil
hoje em dia do que no meu tempo de
menino, porque a arte fotográfica é
uma das poucas coisas que progrediram,
apesar dessa derrocada toda. E
realmente há fotografias que são verdadeiras
obras-primas de observação.
Numa revista, por exemplo, vi
uma fotografia que uma pessoa sem
senso dos imponderáveis não saberia
avaliar: era uma mulher de uma
idade indefinida, de costas, de pequena
burguesia — a fotografia deixa
isso claro —, que teve uma educação
um tanto melhor do que o nível
que ela tinha naquele momento,
que está entrando de barco pelo estuário
daquele rio de Nova York, o
Hudson. Parece, por aquela fotografia,
que o Hudson penetra fundo pelo
meio dos arranha-céus. A mulher
está passando em frente à ilha, com
aqueles edifícios, com a mão na corda
do barco para se apoiar, olhando,
olhando, olhando.
Sem ver o rosto da mulher, perceber
o olhar dela e tudo quanto ela está
pensando, quer dizer, aquela riqueza
enorme, aquele
poder enorme,
e ela com
vontade de pegar
uma migalha
e, se for possível,
não apenas uma
migalha, mas
um bom pedaço
daquele “bolo”
para ela, sentindo
que isso é
ao mesmo tempo
atraente e difícil.
Sentindo-se
pequena, mas
com apetite
não pequeno, e
olhando aquilo
desfilar, a partir
do grau zero,
porque se
percebe que ela
não tem nada
a não ser uma
maleta com três
ou quatro objetos,
e roupa pa-
ra trocar de um dia para outro, e está
enfrentando tudo aquilo. Então
está olhando meio contemplando,
meio com medo da aventura em que
se atirou.
Para que se possa pegar isso de
costas numa mulher, acho uma arte;
eu quase recortei essa fotografia.
É que isso representa um verdadeiro
progresso, que a meu ver seria
imbecil se comparar com a pintura.
Porque pintura é outra coisa. Muitos
partiriam daí para comparar com a
pintura e concluiriam que a fotografia
é imensamente inferior à pintura.
É evidente que é, mas tem ambições
e possibilidades que a própria pintura
não possui. E modos de pegar imponderáveis
que a própria pintura
não tem. É outra arte.
A fotografia, como é hoje, diferencia-se
da dos anos trinta, muito
inferior. Na primeira fase da foto-
Plinio aos dez anos de idade
Arquivo Revista
21
Graeme Maclean (CC3.0)
O pensamento filosófico de Dr. Plinio
Palácio de Westminster e ponte sobre o Tâmisa, Londres, Inglaterra
grafia, os fotógrafos tinham vontade
de apanhar a realidade positivista
como era. Eles começaram a fotografar
estados de espírito, imponderáveis,
bem mais tarde, e vão alcançando
nisso possibilidades notáveis.
Então, com a arte fotográfica de
hoje — sei que vou chocar no que
vou dizer —, mas preferivelmente
branco e preto à colorida, pois aquela
tem mais imponderável, o sujeito
imagina a cor que ele quer naquilo.
Eu não excluo inteiramente o colorido,
já seria outra unilateralidade,
mas dou uma preponderância ao
branco e preto.
Então, com material assim seria
possível se fazer uma verdadeira maravilha,
pegando, por exemplo, um
adolescente, ou mesmo um homem
feito, e dizer: “Agora você vai ver o
olhar de uma pessoa fotografada de
costas. Mas como é possível? Olhe
aqui esta fotografia!” Mas é preciso
ensinar a pessoa a perceber isso.
Mais ainda, imagine como é o rosto
da mulher e o desenhe, se tiver talento
para tal. Aí já entra uma criação
dele, que o fotógrafo não insinuou.
Poderíamos fazer maravilhas
neste sentido, e talvez as façamos
no Reino de Maria. Nesse ponto sou
adictíssimo à fotografia. E não perco
a seção de fotografia de certas revistas.
Há coisas curiosíssimas neste
sentido.
Monumentos fotogênicos
Então, fazer as duas educações e
tomar qualquer coisa como exemplo.
Não sei se ainda se usa atualmente
uma palavra utilizada no meu tempo
de moço: fotogênico. Há monumentos
fotogênicos, mais uns do que
outros. Acho, por exemplo, algumas
coisas fotogenicíssimas: uma é a
ponte sobre o Tâmisa, o Palácio do
Gustavo Kralj
Catedral Notre-Dame, Paris, França
Diego R. Lizcano
22
Torre de Pisa, Itália
Francisco Lecaros
Parlamento, fotografado não de perto,
mas de longe, com certo recuo.
Outra é Notre-Dame. É um hino!
Uma coisa do outro mundo! Eu gostaria
de aprender a fotografar para tirar
fotografias de Notre-Dame, nos
vários ângulos; seria meu álbum, não
precisaria mostrar a ninguém. Ficaria
em casa colocado em cima de uma
mesa para eu ver quando quisesse.
Também, a velha Torre de Belém.
Ela é fotogênica!
Há uma torre enigmática, torta,
das torres mais fotogênicas que há: é
a torre do palácio velho de Florença,
Palácio da Senhoria. A torre não fica
bem no meio da fachada, mas um
pouco torta.
Acho artística a Torre de Pisa. Ela
não costuma ser elogiada enquanto artística,
mas só enquanto singular. Sem
embargo, tem um charme extraordinário.
Parece-me bonita, ela me agrada.
Poderíamos, por exemplo, fazer
uma coleção “Como as torres falam”.
E teríamos a possibilidade de
chegar a formar um consenso, através
de terceiras coisas, sobre os recônditos
de nossas almas, que é prova
do que estou dizendo. O que eu
disse a respeito da mulher encostada
no cordame e das torres, fez-nos conhecermo-nos
num ponto que a palavra
não exprime.
Quer dizer, todos sentimos, a respeito
de nós, o seguinte: fizemos
uma pequena descoberta que é um
buraco de fechadura, através do qual
se vê fundo. Quer dizer, todos nós
vemos do mesmo modo essas coisas.
Então, na apresentação do positivo
suporia uma parte de raciocínio,
na medida do possível. Quantum potes
tantum aude. Quanto possas, tanto
ouses navegar nessas águas. Mas,
complementado por isso que deveria
ser o nosso formar, o nosso fazer. v
(Continua no próximo número)
(Extraído de conferência de
28/5/1986)
1) Filósofo francês, fundador da Sociologia
e do Positivismo (*1798 -
†1857).
2) Suma Teológica II-II, q. 45, a. 2.
Victor M. Domingues
Torre de Belém,
Lisboa, Portugal
23
Hagiografia
A obediência e o
espírito de epopeia
A virtude da obediência faz com que o homem
vença a si mesmo. Quem pratica essa virtude
na perfeição adquire o espírito de epopeia,
pronto a enfrentar os maiores obstáculos.
Manuel Alende Maceira (CC3.0)
T
emos para comentar uma ficha
tirada do livro de Emanuel
Dalzon, “La Vie des
Saints”, a respeito de São Dositeu.
Conversão a partir de uma
terrível ameaça do Inferno
Este santo, cuja vida é pouco conhecida,
viveu nos primeiros séculos da
Idade Média, sendo um exemplo perfeito
de santidade conquistada pela renúncia
à própria vontade. Educado de
forma mundana, talvez tivesse se desviado
do reto caminho se um acontecimento
não o levasse à conversão.
Percorrendo um dia a Palestina,
viu em Getsêmani um quadro que representava
o Inferno. Contemplava-o
aterrorizado, quando uma Senhora de
surpreendente majestade e beleza lhe
apareceu, explicando-lhe o que via.
Impressionado com a terrível ameaça
do castigo eterno, Dositeu perguntou
à desconhecida o que ele deveria
fazer para nele não cair.
“É preciso — respondeu a Senhora
— fugir do pecado e rezar.” E desapareceu.
O jovem buscou o mosteiro dirigido
por São Sérido, um dos mais florescentes
da Palestina. O abade entregou
o neófito a um de seus melhores
religiosos, São Doroteu. Este percebeu
logo que o noviço não fora chamado
para acompanhar as austeridades
do convento, então decidiu inspirar-lhe
o sacrifício completo da vontade.
Começou por ensinar-lhe o jejum
gradativamente. Depois, encar regou-o
da enfermaria. Nesse trabalho, Dositeu
irritava-se às vezes com os enfermos.
Era então tomado de enormes
escrúpulos. Ia para a cela chorar, e aí
permanecia dias se São Doroteu não
aparecesse e o acalmasse. Imediatamente
o santo confiava na palavra do
diretor e reiniciava o trabalho, afastando
suas dúvidas.
São Doroteu nunca lhe impôs rudes
penitências corporais, mas o repreendeu
continuamente, humilhava-
-o sempre que podia, e o obrigava a renunciar
às menores coisas.
Aprendendo a renunciar
à própria vontade
Um dia em que Doroteu visitava a
enfermaria, o noviço perguntou-lhe:
“Estais contente, meu pai, com os leitos
dos doentes, em ordem e limpos?”
24
— É verdade — replicou o religioso
— que vós sois bom enfermeiro. Mas
não sei se sereis um dia bom religioso.
Quando nosso Santo precisava de
uma roupa, seu mestre dava-lhe o tecido
para fazê-la. Mas quando ele a terminava,
obrigava-o a dá-la para um de
seus irmãos, e fazer outra para si. Em
certa ocasião, um monge deu a São
Dositeu uma faca que ele achou muito
boa para seu trabalho na enfermaria.
Ao pedir permissão para usá-la, o diretor
respondeu: “É assim que colocais
vossa satisfação na posse dessas bagatelas?
Quereis ser senhor de uma faca
ou servidor de um Deus? Não vos envergonhais,
Dositeu, de fazer de um objeto
o senhor de vosso coração?”
E o obrigou a desfazer-se do presente.
São Dositeu gostava muito de ler as
Escrituras, e sua alma muito reta fazia
com que compreendesse trechos muito
obscuros. Mesmo assim, quando tinha
dúvidas, recorria a seu superior
que não perdia ocasião de repreendê-
-lo rudemente e não responder às suas
perguntas. Um dia, em vez de atendê-lo,
enviou-o a São Sérido. O abade,
já prevenido, olhou o discípulo severamente.
“Não vos compete — disse — ignorante
que sois, falar sobre coisas tão
elevadas. Refleti antes em vossos pecados
e na vida mundana que levastes.”
E o despediu com duas bofetadas. E
Dositeu, após essa humilhação, voltou
tranquilamente ao seu trabalho.
Após cinco anos de noviciado, o
Santo adoeceu gravemente dos pulmões.
Recebendo a visita de São Barnassufo,
um dos religiosos mais eminentes
do convento, como estivesse sofrendo
demais, implorou ao visitante:
“Meu pai, ordenai-me que morra, porque
não posso mais.”
“Tenha ainda paciência” — respondeu
o ancião.
Após alguns dias, pediu novamente
Dositeu: “Meu pai, não posso mais
viver.”
E o religioso respondeu: “Ide então
agora em paz, meu caro filho, apresentar-vos
ante o trono da Santíssima
Trindade.”
Então, diz a vida dos Padres do deserto,
esse bem-aventurado filho da obediência
adormeceu o sono dos justos,
no seio desta bela virtude que fora como
sua mãe no caminho da perfeição.
Modo errôneo de
escrever hagiografias
Creio que para a grande maioria
dos meus ouvintes essa vida deve ser
rica em conotações um pouco estranhas.
Com efeito, vemos aqui um jovem
que olha para um quadro representando
o Inferno, e temos a impressão
de um rapaz um pouco embasbacado,
tímido, que se assusta com
qualquer coisa. Vem uma linda Senhora
e aparece para ele. Extasiado
e perplexo, ele fala com a Senhora
que, em seguida, desaparece. Então,
o jovem, todo tímido e fugitivo,
vai correndo para um convento e se
mete ali dentro.
Não é um homem que enfrenta
a vida. No convento, ele se introduz
num casulozinho, numa coisinha, numa
vidinha que é a vidinha interna do
convento. E vai tratar de doentes.
Então há uma transposição da vida
que ele levava para uma vida muito
suave, muito tranquila… Toda
manhã ele entra na enfermaria, onde
os doentes esticados na cama o
olham com alegria.
Então vai dar papinha para um,
remedinho para outro; ele os agrada
e todos o agradam também, deixando-o
tão contente! Quando acaba o
serviço, ele fica esperando o almoço,
alegrinho, satisfeito até à tarde.
Depois trata de mais uns doentinhos
e acabou-se. Ele tem, é verdade,
uns superiores que assustam um
pouco. O episódio das bofetadas, por
exemplo, é um pouco desconcertante.
Mas também é verdade que aquilo
entra um pouco nas regras do jogo,
ele sabe que os superiores são muito
bons, que fazem aquilo para quebrar
sua vontade; ele então ficou com
a vontade quebradinha, um bobinho
que a gente leva pela ponta do nariz.
E depois, na hora de morrer, pediu licença
para expirar; deram a licença,
ele foi para o Céu e está acabado.
Orientarei meus comentários no
sentido de mostrar que essas conotações
são erradas, mas não em sua
globalidade. A questão é que o modo
pelo qual certas hagiografias são
redigidas, de fato suscita essas conotações.
Trata-se de uma biografia
que não tem nada de errado, exceto
o seguinte: o essencial, o essencialíssimo,
aquilo que explica todo o resto
e lhe confere sua beleza e sua verdadeira
grandeza, vem contado tão
de passagem, quase de contrabando,
que se o leitor não atinar bem para
isso, a perspectiva toda da vida do
Santo fica errada.
Todo verdadeiro católico
deve ser pessoa de
profunda reflexão
Como diz a ficha, embora fosse
um rapaz de poucos estudos, São
Dositeu se interessava muito pela
Sagrada Escritura e considerava
os seus mistérios, a ponto de, às vezes,
interpretar trechos muito obscuros
com uma sabedoria que espantava,
porque mesmo os melhores especialistas
na Bíblia não tinham alcançado
aquela interpretação.
Aqui está a chave dessa alma e
a explicação dessa vida religiosa. O
resto é muito bonito, mas o é por
causa disto, e encontra sua explicação
nisto. Isto ilumina todo o resto.
O que isto quer dizer?
Interpretar a Sagrada Escritura
retamente, penetrando nas suas profundidades,
encontrando um sentido
que não ocorre muitas vezes a exegetas,
cientistas experimentados, é um
carisma. Para que a pessoa tenha esse
carisma, é preciso um alto grau da
virtude da contemplação. Quer di-
25
Hagiografia
zer, que seja um espírito muito profundo,
sempre voltado para a cogitação
das coisas elevadas e profundas,
e cuja mente está, portanto, sempre
posta a considerar tudo quanto faz
do modo mais elevado, a não pensar
principalmente no que realiza, mas
nas grandes verdades eternas e ter o
seu espírito fixado nelas.
Quer dizer, devemos antes de tudo
ver nele uma pessoa que, depois
de ter fixado a sua atenção num quadro
representando o Inferno e ter
recebido uma visão de Nossa Senhora
que o confirmou na virtude do temor
de Deus — que São Bento considera
o começo de toda sabedoria
—, com um ato de reflexão lucidíssima,
compreendendo quanto as coisas
do mundo são traiçoeiras, quanto
elas podem levar o homem para o
Inferno, resolveu, por um chamado
especial, abster-se de todas as coisas
da Terra para levar uma vida de contemplação.
E entrou nesse mosteiro para ser
eminente e fundamentalmente um
homem de contemplação como, aliás
— é preciso que notem bem —,
deve ser todo religioso e, acrescento
mais, todo bom católico. A vida interior
de que D. Chautard 1 fala é uma
vida de contemplação, de reflexão
sobre as verdades eternas e sobre as
coisas desta Terra à luz das verdades
eternas. E todo religioso, todo sacerdote,
deveria ser, antes de tudo, um
homem deste tipo de reflexão, um
homem de contemplação neste sentido
da palavra. Todo verdadeiro católico
praticante, em qualquer função,
deve ser primeiro um homem
de profunda reflexão.
No nosso caso concreto, temos
uma vocação diferente da de São
Dositeu e, consideradas as circunstâncias,
os matizes individuais que
possa haver, devemos ter continuamente
diante dos olhos as verdades
eternas, o problema da Revolução e
da Contra-Revolução. Precisamos
saber ver a virtude e o pecado; quer
dizer, a Lei de Deus e a violação
dessa Lei, as vias de Deus e as vias
do demônio em todos os fatos que
nos cercam, desde uma nova forma
de microfone até uma chuva que cai
e o simbolismo que a chuva tem na
ordem do universo. Tudo isso devemos
considerar em meditações que
não são obsessiva e exclusivamente
sobre a Revolução e a Contra-Revolução,
mas que, quando se fixam
sobre as coisas terrenas, têm como
polo natural, espontâneo, harmônico
de atração a Revolução e a Contra-Revolução.
Uma vida de altíssima
contemplação
São Dositeu era um homem assim.
E por causa disto ele, no convento,
tratando dos doentes, levava
uma vida de altíssima contemplação.
E, com certeza, mil e mil vezes,
cuidando dos enfermos, ele teve ocasião
de refletir a respeito do simbolismo
moral das várias doenças, como
as enfermidades do corpo simbolizam
as da alma; como, de outro lado,
a saúde do corpo simboliza a da
alma, qual é o valor penitencial da
doença para a formação espiritual
do homem; como ela pode enobrecer,
formar os caracteres, e mil outras
coisas desse gênero; como as almas
dos doentes, ou dos monges, se
iam santificando; como eles eram
chamados, quer os doentes, quer
os monges, a irem se transformando
para cada vez mais ficarem semelhantes
a Deus, obedecendo ao preceito
dado por Nosso Senhor Jesus
Cristo: “Sede perfeitos como vosso
Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).
Tudo isso povoava o espírito de
São Dositeu. E enquanto ele desempenhava
a mais humilde das funções,
como dar um remédio, trocar
um travesseiro, aprontar uma cama
limpa, não devemos imaginá-lo monoliticamente
absorto nisto, mas fazendo
tais trabalhos na perfeição,
não desdenhando esta função, mas
achando-a muito bela porque era
uma obra de misericórdia. Contudo,
longe de ficar só nisto, elevava-
-se aos mais altos graus da cogitação
e da meditação, unindo-se com Deus
Nosso Senhor.
Então, o verdadeiro perfil moral
dele não é o de um bobinho que ao
ser agradado fica tão contentinho,
mas é o de um espírito recolhido,
interior, em cujo olhar se perceberia
todo um universo de pensamento,
e que, ao fazer as menores coisas,
tinha em vista a grandeza a que essas
coisas se dirigem, como elas de
algum modo estão ordenadas a algo
de mais nobre, de mais nobre, de
mais nobre, até a última perfeição
que é Deus Nosso Senhor.
E é assim que devemos imaginar,
na sala ou dormitório dos doentes
desse convento, nosso Santo passando
como uma espécie de turíbulo
queimando um incenso perfeitíssimo,
que elevasse todas as almas para
o Céu. Assim ele deixava um sulco
de recolhimento, de piedade, de
vontade de sofrer, de generosidade,
de conformidade com as intenções
de Deus, em todos os doentes.
É desse modo que precisamos considerar
este homem.
Assim também o devemos observar
na hora da obediência. Quando
se leem essas histórias, tem-se a impressão
de que são historietas. De fato
são coisas sublimes. Porque não se
trata de um ato isolado, de uma vez
na vida de um homem um superior
dizer-lhe que faça tal coisa, a qual ele
não tem vontade de fazer. Estas são
pequenas amostragens de uma vida
inteira vivida sob a obediência, e a
obediência de superiores sábios, que
sabem, por causa disso, ser necessário
contrariar a vontade do homem naquilo
que o afasta de Deus.
Creio ter sido São Nicolau de Flue,
um santo suíço, que rezava uma jaculatória
que outrora comentamos juntos:
“Ó meu Deus, dai-me tudo que
26
me une a Vós e tirai tudo que de Vós
me separa.” Esta é a obediência. O
superior verdadeiro, que tem a felicidade
de mandar no súdito verdadeiro
— porque não basta só o superior
verdadeiro —, deve a toda hora
afastar do súdito as coisas que o separam
de Deus, e aproximá-lo das coisas
que o unem a Ele.
Despojar-se completamente
do apego a si mesmo
Alguém dirá: “Mas, Dr. Plinio,
haverá uma bagatela maior do que
uma faca? Que importância tem tirar
uma faca de um homem?”
Tirar facas de um homem a vida
inteira, ou coisas à maneira de faca,
de modo que sempre que se percebe
que um homem tomou, ou pode
vir a tomar, capricho por uma coisa
dizer-lhe:
— Fulano, venha cá!
— Pois não, Padre Superior, o
que deseja?
— O que você iria fazer agora?
— Tal coisa.
— Está bom, então faça o contrário:
se ia subir, desça! Embaixo eu lhe
dou instruções sobre o que deve fazer.
O homem fica cinco horas embaixo
esperando, sem receber as instruções,
mas recolhido e sem resmungar.
Passa o Superior por lá e diz, para
prová-lo:
— Oh, é verdade, você está esperando
aqui! Não preciso mais de você,
faça agora outra coisa.
— Pois não, Padre Superior. E sobe
a escada…
Qual é o valor disso? O valor é
exatamente a pessoa praticar o seguinte
ato contínuo: subir ou descer,
esperar ou não esperar, ter a faca ou
não ter a faca, são coisas boas na medida
em que me unem a Deus. E se
a vontade de meu superior, que é a
voz de Deus para mim, me manda
fazer uma coisa, eu, que não tenho
vontade própria, fazendo a de meu
superior, me uno a Deus.
Quando um
homem destes se
levanta de manhã,
ele sabe que
o dia inteiro lhe
vão mandar executar
coisas que
ele não quer. Mas
ele sabe também
que é Deus
que está querendo.
Porque Deus
o chama para o
estado sublime
de não ter vontade
própria. E de,
por causa disso, a
toda hora conhecer
a vontade de
Deus.
Isso, evidentemente,
é uma
verdadeira maravilha,
porque
significa despojar-se
completamente
do apego
a si, e estar vivendo
apenas para a
vontade de Deus.
Mas, para aguentar
isso, é preciso
ter um espírito
elevadís simo.
Não ver nisso
as birras e manias
de um superior,
mas o desígnio
da Providência,
e obedecer
constantemente,
constantemente,
constantemente.
Encontramos um exemplo admirável
disso em Santa Teresinha do
Menino Jesus, com aquela obediência
contínua aos superiores, e uma
superiora como a Madre Maria de
Gonzaga... Para obter uma licença
dela, era preciso agradar o seu gato.
Santa Teresinha não agradava o
gato. Mas é para compreenderem
Porque Deus o chama para
o estado sublime de não ter
vontade própria. E de, por
causa disso, a toda hora
conhecer a vontade de Deus.
quanta injustiça de um superior é
preciso aguentar, de vez em quando.
Porque não é só o superior santo
para o discípulo santo, mas o bonito
às vezes é ver o superior não
santo ridicularizando o pobre discípulo
santo, e com isso crucificando
o discípulo santo e levando-o para
o Céu.
Robert Nyman (CC3.0)
27
Hagiografia
Há nisso uma trituração de si
mesmo e um exercício de energia e
de força de vontade, que tempera
os homens mais fortes.
Homens capazes de
derrotar a Revolução
Celine Martin (CC3.0)
Alguém me dirá: “Mas, Dr.
Plinio, isso tem alguma relação
com o espírito de epopeia
que o senhor tanto admira?
Não seria muito mais razoável
que esse homem fosse fazer
apostolado, saísse às ruas,
enfrentasse os adversários?”
A única coisa razoável seria que
ele fizesse o que Deus lhe mandou
fazer. E se Deus lhe deu uma atração
santa e verdadeira para a vida
contemplativa, é porque Ele queria
que aquele homem, na contemplação,
ensinasse aos outros, fizesse aos
outros o admirável apostolado que é
de alguém ver que alguns renunciam
a tudo. Não podemos ter ideia do
bem que faz a alguém, que é apegado,
ver que alguns renunciam palpável
e materialmente a tudo, e vivem
numa vida de renúncia contínua. Isso
é um verdadeiro guindaste que leva
as almas para o Céu!
Tenho notado este fato curioso:
vão pessoas conversando pela rua e
quando passam em frente a um convento,
muitas vezes não olham; e nem
dá muito para observar porque o muro
é alto; e, exceto na hora de passar
diante da porta, só se vê o alto do prédio.
Mas há uma influência qualquer
que parece obrigar todo mundo a falar
mais baixo, a andar mais devagar,
a se recolher até chegar ao outro lado.
Quer dizer, há uma irradiação,
uma graça que vai e volta daquilo
tudo, e que unge as cercanias. Todas
aquelas almas levam uma certa
quietude nas paixões agitadas, depois
de terem passado ali por perto.
E é apenas a carcaça, o vulto externo
de um prédio que abriga uma Ordem
religiosa que não se conhece,
Santa Teresinha do
Menino Jesus
mas que se têm razões para recear
que genericamente sofra dos males
de que tantas outras Ordens sofrem.
São Dositeu recebeu esta vocação;
portanto, era levado a cumpri-la. Mas
— e isto é o que acho capital notarem
—, sendo um Santo, é fora de dúvida
que se a vontade de Deus exigisse
a saída dele do convento para lutar
contra o respeito humano, contra
o mundo, contra a Revolução — que,
aliás, naquele contexto histórico ainda
não tinha aparecido — para lutar
contra o pecado, para batalhar de armas
na mão, como um cruzado contra
os maometanos, ele o faria como
os homens mais vigorosos o fazem.
Como tenho certeza de que, se
Nossa Senhora tivesse querido que
Santa Teresinha saísse do convento
para capitanear uma sublime Chouannerie
2 , ela não teria estado atrás
de Joana d’Arc nos êxitos militares.
Porque a alma capaz de, com profundidade
de espírito, com enlevo,
dominar-se a si própria, ela é capaz
de tudo. E são os homens capazes
de tudo que têm capacidade de derrotar
a Revolução.
O espírito de epopeia
nasce da vitória do
homem sobre si
Por que afirmo isto? Porque
quando um homem não consegue
fazer o que deve, não é porque
o obstáculo foi grande, mas
porque ele não conseguiu vencer
em si os obstáculos proporcionados
àquela obra. Tomem
um homem que não consegue
subir uma montanha: se é um
homem normalmente constituído,
ele não sobe a montanha porque
é alta, mas porque sua preguiça
é alta. Porque se ele tem pernas e
vontade de subir, sendo normalmente
constituído, ele chega ao alto.
Isto se dá também com as batalhas
e com as lutas de toda ordem. “Ah!
eu fiquei muito acabrunhado e não
pude lutar… Sabe como é… o ambiente
era muito contrário…” Então
me diga direito: você não lutou, não
contra o ambiente, mas contra o respeito
humano que estava dentro de
você, não lutou contra seu apego, sua
vaidade, seu egoísmo. O segredo de
sua luta era você, e como não quis lutar
contra si, você diz que o adversário
foi forte. Não seja hipócrita, e diga
pelo menos a verdade: o adversário
foi forte porque você foi fraco. A
sua fraqueza é a causa de sua derrota.
Se você soubesse vencer-se com o
auxílio do sobrenatural, se rezasse —
e não rezou por preguiça, por espírito
naturalista de que tem culpa —,
se confiasse como deveria confiar, se
você lutasse contra si seria tudo completamente
diferente.
O espírito de epopeia não se realiza
por meio de arrancos: o indivíduo
que, de repente, dá a louca e faz
uma coisa extraordinária. Isto é epopeia
decadente do século XV. O espírito
de epopeia nasce da vitória do
homem sobre si. E esta vitória o homem
alcança por esta via.
Deveríamos compreender bem o
que é não fazer a vontade própria des-
28
de a manhã até a noite, não ter ideias
esdrúxulas nem caprichos: “Agora,
vou deixar esse serviço para tal hora;
deram-me recado pelo telefone, mas
eu esqueci porque não anotei; tal serviço
deixarei para o dia seguinte…”
Por quê? Vem a resposta com a boca
mole, miolo mole, dedo mole: “Ah!
É porque eu achei que dava tempo…”
Precisamos estar adestrados à
ideia de que devemos fazer sempre e
imediatamente o dever inteiro, nunca
deixá-lo para depois porque pode
não dar tempo, porque pode haver
preguiça. Devemos saltar como um
leão em cima das obrigações desagradáveis,
e fazê-las logo, desde que elas
sejam inevitáveis, porque, do contrário,
podemos perder o ânimo e a coragem
de cumpri-las. Não se adia um
trabalho só porque não se teve vontade
de fazê-lo; isso é uma concessão
para a preguiça. Só se adia um trabalho
por causa de oração ou de saúde.
A vontade daquele que dirige os serviços
aos quais estamos sujeitos é para
nós a vontade de Deus. Ainda que
ele esteja errado, Deus quer que obedeçamos
a ele. Se compreendêssemos
isto, o nosso Instituto Secular
nasceria como um lírio magnífico pode
nascer de um terreno abençoado.
Mas, sem esse espírito de obediência,
que é um espírito de luta abrangendo
tudo — porque não fazer a vontade
própria é lutar em todos os campos
—, estar radicado em nós, não estamos
à altura do sublime ideal de um
Instituto Secular. Por quê? Porque para
isto não estamos ainda prontos.
Muitos me falam em preparação
para os castigos prenunciados em Fátima.
Se todos fôssemos homens de
estar sempre nos perguntando só isto:
“Qual é o sentido mais alto daquilo
que devemos fazer? No que serve à
causa da Revolução e da Contra-Revolução?”
E depois fizéssemos tudo
por amor à causa da Contra-Revolução,
e por ódio à Revolução. Se compreendêssemos
que todo ato de obediência
quebra o poder do demônio,
lhe arranca as garras, facilita a descida
dos Anjos e transforma o aspecto
da Terra, se fôssemos duros conosco
no cumprimento da vontade de nossos
superiores, estaríamos inteiramente
preparados para os acontecimentos
futuros. Porque o adversário
jamais poderá com um punhado
de homens inteiramente recolhidos e
obedientes, inteiramente sobrenaturais.
Esses são os homens invencíveis.
A vida de obediência faz
do homem um herói
Montalembert 3 , no prefácio da
“Vida de Santa Isabel da Hungria”,
conta um fato que já comentei várias
vezes: um daqueles maometanos,
preso durante as guerras de Cruzadas
e outras, viajando pela França,
começou a observar as catedrais com
aquelas torres magníficas e altivas e
perguntou quem construía esses edifícios.
Responderam que eram os irmãos
leigos de tal convento. Ele os
olhou… eram homens tão humildes...
E perguntou: “Mas como podem
construir monumentos tão altivos
homens de alma tão humilde?”
Esse maometano não tinha acertado
com a solução, mas tinha compreendido
o problema. A altivez
perfeita, a altaneria completa e sacral
como a torre de uma catedral ou
de um castelo gótico dos grandes estilos,
esta altaneria só as almas que
têm essa forma de humildade são capazes
dela. Esses são os verdadeiros
heróis das verdadeiras epopeias.
Aqui está um dado a mais para compreendermos
o espírito de epopeia.
Por detrás ou dentro do conceito
“tempo inteiro e alma inteira”, há
o seguinte elemento: vontade inteira,
sem divisão, que não hesita e não
vacila; que se entregou uma vez com
firmeza e que frutifica na direção em
que ela se deu. Esta é a raiz do espírito
de epopeia. Quando se tem vontade
assim não se recua diante de
nada. Aquela frase de Santa Teresinha:
“Para o amor nada é impossível”,
diz o seguinte: Para uma alma
que quer mesmo — porque amar é
querer; amor não é sentimento — e
a quem Deus ajuda, nada é impossível.
Isto é o suco da epopeia.
São Dositeu praticou a mais absoluta
e heroica obediência, o que
também é um modo de adquirir a
força de vontade própria aos verdadeiros
heróis das verdadeiras epopeias.
Fazer continuamente a vontade
de outros, ou seja, dos superiores
para obedecer a Deus, é desapegar-
-se continuamente de manias, fobias,
venetas e caprichos, o que supõe
uma força de vontade sobrenatural.
A vitória de um homem contra obstáculos
é, principalmente, uma vitória
contra si mesmo, ou seja, contra
todos esses defeitos. Quando um homem
não leva a cabo uma tarefa que
Deus quer dele, não é porque o obstáculo
foi grande, nem porque o inimigo
foi forte, ele é que foi pequeno.
Conclusão: a vida de obediência
faz do homem um herói porque, vencendo-se
a si próprio, com o auxílio de
Deus, não há o que ele não vença. No
dia em que tivermos essa plenitude de
orientação de espírito para a Revolução
e a Contra-Revolução, a escravidão
a Nossa Senhora, saberemos obedecer
como São Dositeu, e estaremos
preparados para todas as epopeias. v
(Extraído de conferência de
12/2/1972)
1) Dom Jean-Baptiste Chautard (*1858
- †1935), monge trapista e Abade do
Mosteiro de Sept-Fons. Autor do livro
A alma de todo apostolado, ao qual
Dr. Plinio se refere.
2) Nome derivado de Jean Chouan, um
dos principais chefes da insurreição
contrarrevolucionária em defesa da
Fé e da realeza, desenvolvida na Vendée
e em Mayenne, durante a Revolução
Francesa.
3) Charles Forbes René, Conde de Montalembert
(*1810 - †1870). Jornalista,
historiador e político francês.
29
C
alendário
1. Beato Reinaldo de Orleans,
presbítero (†1220). Passando por Roma
e animado pela pregação de São
Domingos, fez-se dominicano, fundou
o grande convento de Bolonha e
deu novo vigor ao de Paris.
2. Apresentação do Senhor.
Beato Luís Brisson, presbítero
(†1908). Sacerdote da diocese de
Troyes, fundou as congregações das
Irmãs Oblatas e dos Oblatos de São
Francisco de Sales.
3. São Brás, bispo e mártir (†c. 320).
Santo Oscar, bispo (†865).
Beata Maria Helena Stollenwerk,
virgem (†1900). Junto com Santo Arnaldo
Janssen, fundou a Congregação
das Servas Missionárias do Espírito
Santo, em Steyl, Holanda. Após deixar
a função de superiora, se entregou
à Adoração Perpétua.
4. São Nicolau Studita, monge
(†868). Abade do Mosteiro de Stu-
dos Santos – ––––––
dion, em Constantinopla, hoje Istambul,
Turquia. Foi exilado várias vezes
por defender o culto às imagens.
5. Santa Águeda, virgem e mártir
(†c. 251).
Santo Avito, bispo (†518). Converteu
ao Catolicismo São Segismundo,
rei da Borgonha. Defendeu as Gálias
da heresia ariana. Faleceu em Vienne,
França.
6. São Paulo Miki e companheiros,
mártires (†1597).
São Mateus Correa, presbítero e
mártir (†1927). Durante a perseguição
contra a Igreja, se recusou a revelar
um segredo de Confissão e por isso
foi fuzilado em Durango, México.
7. V Domingo do Tempo Comum.
São Ricardo, leigo (†c. 720). Pai
dos santos Vinebaldo e Valburges,
morreu quando ia com seus filhos
em peregrinação da Inglaterra para
Roma.
8. São Jerônimo Emiliani, presbítero
(†1537).
Santa Josefina Bakhita, virgem
(†1947).
Santo Estêvão, abade (†1124). Fundador
da Ordem de Grandmont, perto
de Limoges, França. Com sua vida
austera atraiu numerosos discípulos.
9. Beato Leopoldo de Alpandeire,
religioso (†1956). Irmão leigo capuchinho,
que exerceu o ofício de hortelão,
porteiro, sacristão e esmoler. Faleceu
em Granada, Espanha.
10. Quarta-feira de Cinzas.
Santa Escolástica, virgem (†c. 547).
Beata Eusébia Palomino Yenes,
virgem (†1935). Trabalhou em diversas
casas de família até se tornar religiosa
salesiana, onde deu testemunho
de humildade, em Valverde del Camino,
Espanha.
11. Nossa Senhora de Lourdes. Ver
página 14.
Vitor Toniolo
12. São Ludano, peregrino (†1202).
Natural da Escócia, filho do príncipe
Hildebold, dedicou-se ao serviço dos
doentes e construiu hospitais e orfanatos.
Morreu em Northeim, Alemanha,
quando ia em peregrinação às
basílicas dos Apóstolos.
13. São Paulo Lê-Văn-Lôc, presbítero
e mártir (†1859). No tempo do imperador
Tu Ðúc, foi decapitado às portas
da cidade vietnamita de Thi-Nghè.
Apresentação do Senhor
14. I Domingo da Quaresma.
São Cirilo, monge (†869) e São
Metódio, bispo (†885).
Beato Vicente Vilar David, mártir
(†1937). Durante a perseguição religiosa,
acolheu sacerdotes e religiosas
em sua casa e por recusar-se a renegar
a Fé, foi fuzilado em Valência, Espanha.
30
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––
Divulgação (CC 3.0)
Beata Maria Helena Stollenwerk
15. São Cláudio de La Colombière,
presbítero (†1682). Sacerdote jesuíta,
superior do Colégio de Paray-le-Monial,
França, que com seus retos conselhos,
conduziu muitas pessoas ao
amor de Deus.
16. São Maruta, bispo (†a. 420).
Presidiu o Concílio de Selêucia, restaurou
as Igrejas arruinadas na perseguição
do rei Sapor e recolheu as relíquias
dos mártires da Pérsia para serem
veneradas na cidade de sua sede
episcopal, a atual Silvan, Turquia, que
passou a chamar-se Martirópolis.
17. Sete Santos Fundadores dos
Servitas (†1310). Ver página 2.
18. Beato João de Fiesole, presbítero
(†1455). Religioso dominicano e
pintor de fama mundial, mais conhecido
como Fra Angélico, possuía uma
alma profundamente contemplativa.
Morreu no convento de Santa Maria
sopra Minerva, em Roma.
19. Beato José Zaplata, religioso e
mártir (†1945). Religioso da Congregação
do Sagrado Coração de Jesus,
deportado da Polônia para o campo de
concentração de Dachau, Alemanha,
onde morreu vítima dos maus tratos.
20. São Leão, bispo (†c. 787).Religioso
beneditino eleito Bispo de Catânia,
Itália. Dedicou-se com grande
diligência ao cuidado dos pobres e lutou
contra os iconoclastas.
21. II Domingo da Quaresma.
São Pedro Damião, bispo e Doutor
da Igreja (†1072).
São Germano, abade (†c. 667).
Procurando defender com diálogos
pacíficos os habitantes vizinhos do
mosteiro de Grandfelt, Suíça, foi atacado
por ladrões e morto atravessado
por uma lança.
Divulgação (CC 3.0)
Santa Josefina
Bakhita
22. Festa da Cátedra de São Pedro
Apóstolo.
São Papias, bispo (†séc. II). Bispo
de Hierápolis, Frígia (atual Turquia).
Foi companheiro de São Policarpo,
recolheu fatos narrados por testemunhas
dos Apóstolos e escreveu vários
comentários sobre os Evangelhos.
23. São Policarpo, bispo e mártir
(†c. 155).
Beata Rafaela Ybarra de Vilallonga,
fundadora (†1900). Mãe de sete
filhos, que com o assentimento do esposo,
emitiu os votos religiosos e fundou
o Instituto das irmãs dos Anjos
da Guarda, em Bilbao, Espanha.
24. Beata Josefa Naval Girbés, virgem
(†1510).Consagrada a Deus no
mundo, dedicou-se em Algemesí, Espanha,
à catequese das crianças.
25. Beato Ciríaco María Sancha y
Hervás, bispo (†1909). Bispo de Toledo
e Valência, Patriarca das Índias e
fundador da Congregação das Irmãs
da Caridade do Cardeal Sancha, em
Toledo, Espanha.
26. Santa Paula de São José Calasanz,
virgem (†1889). Fundadora do
Instituto das Filhas de Maria das Escolas
Pias, em Barcelona, Espanha.
Tinha como lema: Piedade e letras.
27. Beata Maria da Caridade do
Espírito Santo, virgem (†1943). Religiosa
franciscana enviada da Suíça
para Pasto, Colômbia, onde fundou a
Congregação das Irmãs Franciscanas
de Maria Imaculada.
28. III Domingo da Quaresma.
São Romão, abade (†463). Seguindo
o exemplo dos antigos anacoretas,
foi viver como eremita na região do
Jura, França, e depois se tornou pai
espiritual de muitos monges.
29. São Dositeu, eremita (†séc.
IV). Ver página 24.
Beato Luís Brisson
Fr Vincent Kowalewski, OSFS (CC 3.0)
31
Luzes da Civilização Cristã
Parece um
conto de fadas
Uma pequena igreja da Itália, em contraste
com o prosaísmo e a feiura de tantos
prédios atuais — construídos conforme o
espírito revolucionário —, é mimosa com
distinção e solenidade, remetendo-nos
a uma atmosfera irreal e maravilhosa.
Oponto de vista sob o qual analiso e comento os
monumentos europeus é o de despertar o amor
a um tipo de maravilhoso existente na Europa,
elaborado pela civilização cristã, e que é, portanto, um
fruto do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor
Jesus Cristo e das lágrimas de Nossa Senhora.
Maravilhoso sapiencial, de caráter religioso
Federfabbri (CC3.0)
Foi disto, do senso da cruz, da virtude, do sacrifício
que nasceu uma civilização que engendrou essas maravilhas,
as quais exprimem algo do espírito e da sabedoria
da Igreja. É esse maravilhoso sapiencial, de caráter religioso
que consideraremos agora.
Temos aqui fotografias da Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo,
na cidade de Lecce, na Itália, contendo vários elementos
ornamentais explorados a diversos títulos, constituindo
várias formas de beleza do panorama italiano.
O panorama italiano é peculiar, pois certas coisas que
são bonitas em qualquer parte do mundo, mas possuem
dessas belezas comuns e vulgares que vemos e passamos
adiante, na Itália existem de um modo especial, por onde
elas tomam uma beleza quase clássica, que forma um dos
maiores ornamentos desse país e um dos mais altos pontos
de atenção do gênero humano.
32
Toobaz (CC3.0)
Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo, Lecce, Itália
Por exemplo, quem já esteve na Itália compreende, mas
para quem nunca a visitou não é tão fácil compreender a
beleza dos muros velhos escalavrados, de pedras que duram
séculos, com cicatrizes de todas as molecagens que se
fizeram em cima delas, de todos os granizos que caíram
sobre elas, e que conservam a dignidade de uma face envelhecida,
rugosa, mas com ar de matrona régia.
Notem esse muro. Uma pessoa com espírito moderno
e pragmático teria mandado passar massa e depois pintar
a óleo, para ficar lisinho e bonitinho, porque esse tipo de
pessoas não entende senão o que seja lisinho e bonitinho.
Vejam quantas cicatrizes há nessas pedras! Todas cheias
de poros, de sujeiras, de calosidades. Entretanto, isso batido
pelo Sol da Itália dá uma ideia de eternidade, de uma
coisa que nada destrói. Essa trepadeira dá a impressão de
algo com uma forma de vida endêmica que não há Sol que
acabe com ela, e segura com força o prédio, como quem
diz: “Eu viverei”. As próprias pedras, batidas pelo Sol, têm
qualquer coisa da boa natureza que resiste a tudo. Disso
desprende-se uma noção de perenidade.
É preciso saber entender o pitoresco
Pode-se imaginar em uma dessas ruelas uma pizzaria
onde se vende a famosa pizza napolitana, outro estabe-
lecimento cheirando a polenta ou a mortadela, de dentro
do qual se ouve um berro do patrão para a filha dele:
“Angelina, eu já disse que me traga tal coisa para este
freguês!” — com ares de Nero proclamando a queda
de Roma, atrás do balcão como se fosse um trono, e com
aquela tendência declamatória pitoresca do italiano.
O filho do dono, por sua vez, é um homem que toca
guitarra e canta “O Sole mio...” De repente, atrás de um
arco desses ouve-se um gato miando...
Há dentro disso qualquer coisa de rústico, de elementar,
de simples, de uma plebe sadia, vigorosa, que canta o
Sol sem nenhuma espécie de artifício, e que constitui um
dos verdadeiros encantos da Itália.
É muito bonito esse contraste no velho urbanismo da
Itália: ruazinhas completamente emaranhadas, sem calçada
e dentro das quais entram motocicletas, vespas, lambretas e
automoveisinhos modernos. As pessoas se afastam, passa o
automóvel, elas protestam, berram... Uma viazinha estreita
que, de repente, dá num laguinho inesperado.
Segundo um urbanismo “hollywoodiano” o bonito seria
uma avenida muito larga, terminando num lago ainda
mais largo do que ela. E o transeunte, de longe, vai vendo
a avenida por onde vai. Quando chega ao final, não
tem nada de novo. Boceja ao chegar ao lago, pois já o estava
vendo à distância.
33
Aspectos da cidade de Lecce, Itália
Luzes da Civilização Cristã
Anna Bonanza (CC3.0)
Maria Grazia Schiapparelli (CC3.0)
Maria Grazia Schiapparelli (CC3.0)
urbanforaging.nl (CC 3.0)
Na Itália, não. Tudo isso é pitoresco, e é preciso saber
entendê-lo. Do contrário, não se viajou pela Itália, não
se viu a Itália.
Vamos, agora, analisar a igreja. Quem a construiu parece
ter tido a pretensão de edificá-la como se fosse uma
basílica. Ela é de proporções pequenas, mas toda sua fachada
é trabalhada com a distinção e com a solenidade
que caberiam a uma igreja grande. Poder-se-ia imaginar
uma imensa basílica construída com essa fachada; ficaria
linda! Mas o artista soube dar a isso o tamanho reduzido,
para ficar, ao mesmo tempo, digno e engraçadinho.
Temos, então, a beleza específica dessa fachada, na
qual distinguimos dois elementos: uma cúpula e depois
a fachada propriamente dita. Esta se compõe de uma linha
central, que é a linha grande, e de duas linhas colaterais
que são acólitas da linha central, existem para ela. Se
analisarmos a linha central, notaremos ser relativamente
simples. Ela tem um porte bonito, harmonioso, muito
bem feito, uma proporção entre a altura e a largura muito
bem tomada, a proporção de altura entre as colunas e
o arco é muito bem tirada também.
A porta é trabalhada, mas sem excesso. Acima dela
encontramos uma longa parede vazia, onde o único elemento
decorativo é a rosácea que existe, provavelmente,
para conduzir luz ao coro dentro da igreja. Quer dizer,
tem uma finalidade prática.
O ornamento só aparece bem no alto. São formas, figuras
com o seguinte objetivo: a largura dessa parte central,
quando chega a certa altura se estreita um pouco.
Esta sucessão de larguras diferentes culmina num ponto
terminal leve, por onde acaba quase se fundindo no céu.
Tango7174 (CC3.0)
Scarlins (CC3.0)
Scarlins (CC3.0)
Detalhes da Igreja dos Santos Nicolò
e Cataldo, Lecce, Itália
O sorriso da Arte
Ao lado desta parte central muito simples vemos duas
partes colaterais bastante ornadas. Tudo é muito bem
construído: as duas partes se repetem e têm colunas com
dois nichos nos quais se encontram imagens de Santos.
Essas são colunas jônicas, todas caneladas, como o fuste
em cima também, todo ele com as clássicas folhagens
de acanto, e depois, em cima, uma trave. Cada uma dessas
partes poderia constituir um edifício autônomo, tão
bonitas são. Entretanto, encaixam-se harmoniosamente
dentro do conjunto da igreja.
Se abstrairmos a parte superior, veremos como o restante
forma uma linha básica larga e sólida em relação ao
que vem acima, que é mais leve em função do princípio de
que o mais pesado carrega o mais leve e o mais forte sustenta
o mais fraco. É o contrário do princípio existente em
determinados prédios modernos, nos quais uma superfície
pequena parece esmagada por uma massa de cimento sobreposta.
Aqui não: o elemento com aparência de débil fica
em cima e o componente pesado embaixo.
Por fim, nota-se toda uma ornamentação abundante
terminando o edifício, porque a parte mais nobre, mais
leve, mais etérea, deve estar junto do céu. As figuras leves
ficam colocadas perto do teto para dar ideia de algo
que está subindo para o firmamento e ali se perde. Todas
as construções antigas observavam essa norma, que
se perdeu depois por artifícios da Revolução.
Considerando o conjunto do edifício temos um monumento
muito bem feito, mimoso, mas com ares de pequeno
rei. Mais ou menos como seria o Príncipe de Mônaco;
é um rei em miniatura. Ninguém dá risada dele; ele
é o “garnisé” no gênero dos reis. O garnisé é o sorriso de
Deus a propósito do galo, que o mesmo Deus criou.
Aqui é o sorriso da Arte a respeito de suas próprias
grandezas. Ao invés de construir uma obra linda e grande,
ela faz uma coisa pequena e igualmente linda, para
poder sorrir a respeito de si mesma. O monumento, considerado
deste ponto de vista e em contraste com o prosaico
de outros prédios, parece um pouco um conto de
fadas, uma coisa um tanto irreal, maravilhosa.
Temos, então, um dos ângulos bonitos da Europa sagrada.
v
(Extraído de conferência de 30/3/1967)
35
Sinal de contradição
Apresentação do Menino Jesus
no Templo (obra de Fra Angelico) -
Museu do Prado, Madri, Espanha
Sergio Hollmann
Ainvocação de Nossa Senhora da Luz refere-se ao episódio em que Ela apresentou o Menino Jesus
no Templo, onde Ele foi recebido por um profeta, Simeão, e por uma profetisa, Ana.
Simeão fez uma linda profecia na qual ele enaltece Nosso Senhor como Luz para iluminar
as nações e sinal de contradição para a queda e o soerguimento de muitos em Israel.
Assim como uma pedra posta no meio do rio separa as águas, estaria Ele no centro da História da
humanidade, dividindo os homens, sendo objeto da ira de uns e do amor de muitos outros, para que
se revelassem as cogitações dos corações.
Devemos ter o desígnio de representar Nosso Senhor nesta perfeição: sermos pedras a dividir as
águas. De maneira que onde o rio da impureza e da Revolução corre sem ninguém se contrapor, ali
esteja um escravo de Maria contestando: “Eu não estou de acordo!”
Que linda vocação!
(Extraído de conferência de 19/7/1985)