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Revista Dr. Plinio 213

Dezembro de 2015

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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>213</strong> Dezembro de 2015<br />

Natal: Fé e Inocência


Martírio de São Tomás<br />

Becket - Catedral de<br />

Lisieux, França<br />

Sergio Hollmann<br />

S<br />

Sentinela, mesmo após a morte<br />

ão Tomás Becket, assassinado por defender<br />

os direitos eclesiásticos contra os abusos<br />

do poder temporal na Idade Média, foi<br />

mártir da liberdade da Igreja.<br />

Homenageado pelos ingleses durante quatro<br />

séculos, teve seus restos mortais profanados e<br />

destruídos por ordem do Rei Henrique VIII<br />

que, ao proclamar-se chefe da igreja anglicana,<br />

deliberou injuriar as relíquias daquele<br />

que morrera para que tal usurpação não<br />

se desse.<br />

Nessa execução póstuma há uma verdadeira<br />

glória para São Tomás Becket: ser odiado<br />

pelos maus e sofrer perseguição por amor a<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Este Santo, até depois de morto, constituía<br />

uma barreira para os inimigos da Igreja.<br />

Foi preciso remover esse obstáculo para que<br />

a caudal da heresia pudesse continuar. Ora,<br />

um homem que, deitado inerte no seu jazigo,<br />

representa ainda uma sentinela pela qual só<br />

se passa eliminando-a, é uma verdadeira beleza!<br />

Santa Teresinha do Menino Jesus dizia que<br />

ela passaria seu Céu fazendo bem sobre a<br />

Terra. São Tomás Becket, à maneira dele,<br />

fez isto: quatrocentos anos após seu martírio,<br />

seu corpo era uma trincheira e um pavor<br />

para os adversários.<br />

(Extraído de conferência de 28/12/1968)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>213</strong> Dezembro de 2015<br />

Ano XVIII - Nº <strong>213</strong> Dezembro de 2015<br />

Natal: Fé e Inocência<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

venera a imagem<br />

do Menino Jesus<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Gilberto de Oliveira<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />

02404-060 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Gráfica Print Indústria e Editora Ltda<br />

Av. João Eugênio Gonçalves Pinheiro, 350<br />

78010-308 - Cuiabá - MT<br />

Tel: (65) 3617-7600<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 130,00<br />

Colaborador .......... R$ 180,00<br />

Propulsor ............. R$ 415,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 655,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Editorial<br />

4 Voltemo-nos para o Menino Jesus...<br />

Piedade pliniana<br />

5 “Filho, eis aí tua Mãe”<br />

Dona Lucilia<br />

6 Um dia de Natal com<br />

Dona Lucilia<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

10 O olhar de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo<br />

Reflexões teológicas<br />

14 Riquezas do conhecimento por<br />

conaturalidade - I<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

18 Organicidade e inocência<br />

Calendário dos Santos<br />

22 Santos de Dezembro<br />

Hagiografia<br />

24 Santo Annon: energia e astúcia<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

30 Estilo “condeano”: força e leveza<br />

Última página<br />

36 Felix Cæli Porta<br />

3


Editorial<br />

Voltemo-nos para o<br />

N<br />

Menino Jesus...<br />

a expectativa de mais um Natal, e na comemoração dos 107 anos do nascimento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

meditemos uma mensagem natalina gravada por ele em 1992, cuja atualidade permanece e<br />

faz-se, hoje, muito mais clamorosa do que há duas décadas.<br />

Nós nos encontramos numa situação dominada completamente pelo caos. Não há um aspecto da<br />

vida política internacional contemporânea na qual não se note a confusão.<br />

Junto ao berço do Menino Jesus não é o momento de estarmos rememorando tantas atitudes mal<br />

feitas, mal pensadas, mal planejadas, porque não as presidiu o Espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O segredo da organização adequada de todas as coisas da vida terrena se encontra na canção que<br />

os Anjos entoaram, na noite de Natal, para os pastores maravilhados: “Glória a Deus no mais alto<br />

dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade.”<br />

Quando todos os homens reconhecem a majestade, a onipotência, a santidade, enfim, o acúmulo<br />

de todas as perfeições que há em Deus, no mais alto dos Céus, e O glorificam por isso, então nascem<br />

no coração dos homens aquelas boas disposições de espírito pelas quais eles se tornam homens<br />

de boa vontade.<br />

Se nos lembrarmos de que essa noite de Natal é uma noite de misericórdia e de bondade, de perdão<br />

e de esperança, que próxima ao berço do Menino Jesus está Nossa Senhora — cuja prece junto<br />

a seu Divino Filho é onipotente — e que Ela tem um coração de Mãe que ama mais cada um dos homens<br />

do que todas as mães do mundo amariam a seu filho único, e que, portanto, Ela está na disposição<br />

de nos obter do Divino Infante o perdão de nossas faltas, a emenda de nossos erros e defeitos, e<br />

o propósito firme de seguir em tudo a Lei de Deus, se tomarmos isso em consideração, compreenderemos<br />

que, por mais forte que seja o mal, todas as portas da esperança estão abertas para nós, desde<br />

que nos voltemos para o Menino Jesus nascido em Belém.<br />

É para essa esperança consoladora que eu quero atrair a atenção de todos.<br />

Desejo que, quando os sinos tocarem à meia-noite anunciando que o Natal chegou, os povos estiverem<br />

se dirigindo, tranquilamente, para assistir ao Santo Sacrifício da Missa, e as famílias forem, em<br />

grupos, rezar aos pés do Santo Presépio, todos se lembrem dessa grande esperança e, deixando de lado<br />

as aflições da hora presente, compreendam o que disse o Apóstolo: “Jesus Cristo é o mesmo ontem,<br />

hoje e sempre.”(Hb 13, 8). 1<br />

1) Excertos da mensagem de Natal de 18/11/1992.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

“Filho,<br />

eis aí tua Mãe”<br />

Repousais, Senhor,<br />

em vosso mísero<br />

e augustíssimo<br />

presépio, sob os olhos<br />

da Virgem, vossa Mãe,<br />

que vertem sobre Vós os<br />

tesouros inau feríveis de<br />

seu respeito e de seu carinho.<br />

Jamais uma criatura<br />

adorou com tão profunda<br />

e respeitosa humildade<br />

o seu Deus. Nunca<br />

um coração materno<br />

amou mais ternamente<br />

seu filho. Reciprocamente,<br />

jamais Deus<br />

amou tanto uma mera<br />

criatura. E nunca filho<br />

amou tão plena, inteira<br />

e superabundantemente<br />

sua mãe.<br />

Toda a realidade desse<br />

sublime diálogo de almas<br />

pode conter-se nestas<br />

palavras que indicam<br />

aqui todo um oceano de<br />

felicidade, e que em ocasião<br />

bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí o teu filho.<br />

Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26-27). E, considerando a perfeição deste recíproco<br />

amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta<br />

das profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz<br />

na Terra aos homens por Ele amados.” (Lc 2, 14).<br />

v<br />

(Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1963)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Um dia de Natal<br />

com Dona Lucilia<br />

Neolexx (CC 3.0)<br />

Num ambiente pleno de<br />

harmonia, serenidade e alegria,<br />

Dona Lucilia organizava em sua<br />

residência a festa de Natal para<br />

seus filhos e outros parentes<br />

em idade infantil. As crianças,<br />

de mãos dadas e cantando,<br />

dirigiam-se até o presépio diante<br />

do qual ela puxava as orações.<br />

Tudo era profundamente<br />

marcado pela Fé e inocência.<br />

C<br />

omo toda criança, passei muitos Natais com minha<br />

mãe. Ela era o centro da família no que diz<br />

respeito ao trato com os pequenos, porque ti-<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

6


nha um jeito extraordinário para isso, e um<br />

carinho imenso cujo transbordamento<br />

agradava enormemente aos filhos,<br />

antes de tudo, mas naturalmente<br />

também aos sobrinhos e demais<br />

crianças de uma família numerosa.<br />

Cores, sabores e o<br />

perfume do Natal<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

A festa de Natal fazia-se<br />

na casa de minha avó, mãe<br />

de Dona Lucilia, onde morávamos.<br />

Era uma casa antiga<br />

com porão alto, onde havia<br />

uma sala de estudos para<br />

minha irmã e eu. Nos dias<br />

de Natal essa sala era transformada<br />

completamente. Dona Lucilia<br />

comprava nos arredores de<br />

São Paulo um pinheiro e, auxiliada<br />

por nossa governanta alemã, a Fräulein<br />

1 Mathilde, decorava a árvore com figurinhas<br />

de anjos, de santos, velas acesas, bolas coloridas<br />

e — o que eu apreciava sobremaneira — balas,<br />

bombons, chocolates pendurados na própria árvore.<br />

Como o número de velazinhas era muito grande, pegava<br />

um pouco de fogo nas folhas do pinheiro, nas pontinhas,<br />

donde se desprendia um aroma muito agradável<br />

que, para mim, passou a representar o perfume do Natal.<br />

Além disso, nos quatro ângulos da sala eram dispostas<br />

mesas repletas de iguarias doces e salgadas.<br />

Durante a decoração, a entrada das crianças na sala<br />

estava proibida.<br />

Em certo momento, as crianças se reuniam todas<br />

numa sala superior do prédio, desciam pelo lado de<br />

fora, por uma escada de mármore que dava acesso<br />

ao jardim, e entravam na sala de estudos. Iam todas<br />

de mãos dadas e cantando canções de Natal,<br />

em geral alemãs, porque a nossa governanta e a<br />

dos meus primos eram germânicas e nos ensinavam<br />

essas músicas.<br />

Cânticos e preces diante do presépio<br />

Por exemplo, a famosa canção que na versão<br />

portuguesa se traduz por “Noite Feliz”:<br />

Stille Nacht! Heilige Nacht!<br />

Alles schläft, einsam wacht<br />

Nur das traute hoch heilige Paar...<br />

Stille Nacht quer dizer noite silenciosa;<br />

heilige Nacht, noite santa. Alles schläft,<br />

tudo dorme; einsam wacht, só está<br />

acordado; nur das taute hoch heilige<br />

Paar, o respeitável e altamente<br />

santo casal — eram Nossa Senhora<br />

e São José —; e depois a<br />

letra continua contando como<br />

foi a noite de Natal.<br />

Descíamos a escada, passávamos<br />

pelo jardim, entrávamos<br />

na sala e formávamos<br />

um círculo em torno da árvore<br />

de Natal, junto à qual<br />

continuávamos a cantar,<br />

dando voltas.<br />

Em certo momento, parávamos<br />

e mamãe se ajoelhava<br />

diante do presépio, cuidadosamente<br />

colocado ao pé da árvore.<br />

Este gesto era imitado por todas<br />

as crianças que repetiam, em coro,<br />

as orações rezadas por ela.<br />

Terminadas as preces, todos se levantavam<br />

e começava a outra parte da festa: a criançada<br />

avançava sobre os enfeites comestíveis da árvore e<br />

sobre as guloseimas dispostas nas mesas e, com o apetite<br />

“feroz” próprio à idade, comiam bastante! Eu era<br />

dos capitães da comilança. Naturalmente, saía muita<br />

conversa, brincadeira, bem ao sistema brasileiro...<br />

Dona Lucilia, em pé, muito afetuosamente mantinha<br />

as coisas em ordem, auxiliada pelas duas governantas.<br />

Quando todos estavam satisfeitos, subíamos novamente<br />

cantando para a sala de onde tínhamos saído e<br />

ali nos despedíamos, retirando-se cada qual para sua<br />

casa.<br />

Atração pela cor de um vidro<br />

de goma arábica<br />

Engana-se quem pensa que estava terminada a Noite<br />

de Natal. O melhor estava por começar...<br />

Na São Paulo daquele tempo, muito menor que a de<br />

hoje, havia apenas umas quatro ou cinco lojas grandes de<br />

brinquedos, mas essas tinham artigos esplêndidos, importados<br />

da Europa.<br />

Nas semanas que antecediam o Natal, Dona Lucilia<br />

acompanhava minha irmã e eu a essas lojas para nos ajudar<br />

um pouco na escolha dos presentes e evitar que escolhêssemos<br />

bobagem. Quando a criança é muito pequena,<br />

às vezes, escolhe umas verdadeiras bobagens.<br />

7


Dona Lucilia<br />

Reprodução<br />

Riccosta (CC 3.0)<br />

Serra de São Domingos e vista da cidade<br />

em 1870 - Poços de Caldas, Brasil<br />

Abro aqui um parêntese. Lembro-me de que numa<br />

ocasião, de passagem por Poços de Caldas, onde pousamos<br />

para seguir viagem no dia seguinte, Dona Lucilia estava<br />

muito cansada e deitou-se logo, enquanto meu pai,<br />

<strong>Dr</strong>. João Paulo, foi dar um giro pela praça pública da cidade,<br />

com a minha irmã e comigo.<br />

Passamos perto de uma loja com vitrines iluminadas<br />

onde havia uns vidros de goma arábica. Tratava-se de<br />

uma papelaria e, por coincidência, aquela luz batia muito<br />

forte na goma arábica, causando-me a impressão de<br />

uma cor linda.<br />

Disse, então, a meu pai:<br />

— Papai eu estava querendo um presente do senhor.<br />

— O que é?<br />

— Eu queria este vidro aqui.<br />

— Mas é uma extravagância, não tem bom senso! O<br />

que você vai fazer disso?<br />

— Pôr contra a luz para<br />

olhar a cor em casa, porque<br />

é muito bonita.<br />

— Não tem propósito! Se<br />

você me pedisse um brinquedo<br />

eu comprava, mas isso aí<br />

não! Não tem um brinquedo<br />

aqui que você queira?<br />

Não tinha, e a coisa ficou<br />

por isso mesmo.<br />

Soldadinhos de<br />

chumbo<br />

Eu gostava muito de soldadinhos<br />

de chumbo, pois<br />

era muito militarista. E nas<br />

casas de que falei, principalmente<br />

uma alemã chamada<br />

“Fuchs” — que significa raposa,<br />

em alemão —, havia<br />

peças muito boas: soldados de cavalaria,<br />

com couraça, elmo e espada na mão, ou<br />

tocando corneta; a última palavra do excelente!<br />

Soldados alemães, franceses, marinheiros<br />

ingleses, enfim, de toda espécie.<br />

Eu gostava enormemente!<br />

Havia também outros brinquedos formativos<br />

como, por exemplo, uns apetrechos<br />

para construir casas, barragens, etc.<br />

com uma massa colorida especial com a<br />

qual a criança modelava sua construção.<br />

Ou, ainda, outro brinquedo muito apreciado: trenzinho<br />

elétrico.<br />

Indicávamos o brinquedo desejado a fim de ser feito<br />

o pedido a São Nicolau, que no-lo traria na Noite de<br />

Natal.<br />

São Nicolau, — para os que não sabem — foi um bispo<br />

da cidade de Mira, na Ásia Menor. Ele tinha muita<br />

pena de certas famílias que, por reveses na fortuna, empobreceram.<br />

Por vezes, eram famílias de elevada categoria<br />

social, cujos chefes sentiam-se constrangidos e envergonhados<br />

de pedir esmolas.<br />

Então, São Nicolau arranjava um jeito de pedir esmolas<br />

e entregá-las para essas famílias, sem que soubessem<br />

quem as estava ajudando, poupando-as, desta maneira,<br />

da vergonha de pedir esmola. E, na noite de Natal, o santo<br />

prelado passava pelas casas e jogava o presente pela<br />

janela aberta e saía correndo.<br />

Estabeleceu-se, assim, a tradição segundo a qual, em<br />

todas as residências católicas do mundo, São Nicolau<br />

passava e deixava presentes para as crianças.<br />

8


“Como<br />

São Nicolau acertou;<br />

que maravilha!”<br />

Era a alegria de<br />

um dia bonito, com<br />

o jardim florido, a<br />

grama verde, e as<br />

delícias do Natal que<br />

se prolongavam.<br />

Cenas da vida de<br />

São Nicolau<br />

(por Fra Angelico)<br />

Pinacoteca Vaticana<br />

Reprodução<br />

Mamãe me perguntava: “Então, o que você quer que<br />

São Nicolau lhe traga?” E eu enumerava alguns dos brinquedos<br />

dos quais mais havia gostado.<br />

O presente de São Nicolau<br />

Após a comemoração acima descrita, quando íamos<br />

nos deitar, Dona Lucilia nos dizia que durante a noite<br />

São Nicolau entraria em casa e deixaria presentes aos<br />

pés das nossas camas. Eu ficava assanhadíssimo, curioso,<br />

mas nunca tive a preocupação de encontrar São Nicolau,<br />

nem tentei surpreendê-lo colocando o presente junto à<br />

minha cama. Ademais, depois dessa noite de Natal assim<br />

tão cheia, eu ia dormir com tanto sono que não me passava<br />

pela mente a ideia de entrevistar São Nicolau, nem<br />

agradecê-lo, nem nada; eu caía na cama e dormia...<br />

Mas quando chegava certa hora da madrugada, eu ficava<br />

curioso em saber se São Nicolau já havia passado e<br />

deixado o presente. E sempre o pacote já se encontrava<br />

lá, porque Dona Lucilia, ao perceber que estávamos dormindo,<br />

entrava no meu quarto e no de minha irmã e punha<br />

os presentes.<br />

Às vezes, eu acordava durante a noite e sentia já o<br />

presente de São Nicolau pesando sobre meus pés. Mas<br />

eu fazia o seguinte raciocínio: “Se eu agora levantar, arrebentar<br />

os barbantes e abrir a caixa para ver o que São<br />

Nicolau trouxe dos vários presentes que escolhi, não vou<br />

ter a alegria de fazê-lo de manhã, à luz do dia, na qual tudo<br />

fica mais bonito e alegre.” E, além disso, era gostoso<br />

acordar de vez em quando durante a noite, sentir nos pés<br />

o peso do presente, conjecturar o que seria, rolar para o<br />

outro lado e dormir de novo.<br />

Mas chegava lá pelas sete, oito horas da manhã, eu<br />

acordava, e então era o momento de uma das alegrias<br />

máximas do Natal: arrebentar os barbantes, abrir o pacote<br />

e ver o que São Nicolau de fato tinha trazido. Em<br />

geral, era o brinquedo que eu mais queria, porque Dona<br />

Lucilia havia percebido qual era minha preferência e<br />

mandara comprar exatamente aquele.<br />

Eu brincava com aquilo até ela e meu pai acordarem.<br />

Então, eu levava o presente para a cama deles, e lhes<br />

mostrava a “grande novidade”: São Nicolau tinha entrado<br />

em casa e deixara o presente, e eu queria que eles<br />

vissem. Minha irmã fazia o mesmo. Eles se “surpreendiam”:<br />

“Como São Nicolau acertou; que maravilha!”<br />

Entretanto, logo se fazia ouvir uma voz imperativa<br />

que nos dizia: “Kinder, schnell!”— que quer dizer: Crianças,<br />

rápido!<br />

Era a Fräulein nos mandando andar depressa, nos<br />

aprontarmos, tomarmos nossa refeição matutina para, em<br />

seguida, brincar no jardim com o presente de São Nicolau.<br />

Era a alegria de um dia bonito, com o jardim florido, a<br />

grama verde, e as delícias do Natal que se prolongavam.<br />

Está contado como era um dia de Natal junto a Dona<br />

Lucilia.<br />

v<br />

1) Do alemão: Senhorita.<br />

(Extraído de conferência de 21/12/1991)<br />

9


Sagrado Coração de Jesus<br />

O olhar de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

Ruy Carvalho (CC 3.0)<br />

Se numa noite sem luar<br />

contemplarmos com espírito de<br />

Fé o céu estrelado, ele produzirá<br />

grande efeito sobre nós. E nos<br />

fará lembrar algo infinitamente<br />

superior: o olhar do Redentor, no<br />

qual há galáxias de santidade, de<br />

virtudes que pousam sobre nós<br />

como uma abóbada protetora.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Q<br />

uando a pessoa se porta ordenadamente face à<br />

ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso<br />

do ser procurar o maravilhoso nas coisas que<br />

constituem o universo que ela procura conhecer, tende<br />

ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais<br />

nas criaturas que a circundam.<br />

Sagrado Coração de Jesus<br />

Catedral de Assunção, Paraguai<br />

10


O sentido da vida terrena<br />

Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança<br />

que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha,<br />

azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo,<br />

se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando<br />

esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela<br />

percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia.<br />

Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres<br />

excelentes — um relacionado mais diretamente ao<br />

corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que<br />

é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso,<br />

a criança deseja o carinho da mãe.<br />

Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e<br />

que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material!<br />

Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação<br />

de cumpri-la.<br />

Mas ai também dos familiares que não criam em torno<br />

de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e<br />

benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no<br />

qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio<br />

de alma é o fundamental da ordem do universo!<br />

Este é um ponto muito importante, porque as criaturas<br />

de uma ordem mais elevada têm uma função normativa<br />

e orientadora em relação a todas as inferiores. E os<br />

espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhe-<br />

cendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor<br />

o que está abaixo.<br />

Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si<br />

uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso,<br />

nosso senso católico se sintam como o navio<br />

que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das<br />

tormentas, este é o sentido da vida terrena.<br />

O ambiente da Igreja<br />

do Sagrado Coração de Jesus<br />

A alma encontra este sentido superior da existência<br />

quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste<br />

propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos —<br />

sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria,<br />

de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica<br />

compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do<br />

qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado,<br />

e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja,<br />

mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e<br />

o Imaculado Coração de Maria.<br />

As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de<br />

Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente<br />

isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração,<br />

por um lado. Por outro lado, na sua superio-<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

11


Sagrado Coração de Jesus<br />

Stephen Nami<br />

Igreja Sagrado Coração de Jesus, São Paulo<br />

ridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao<br />

mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível<br />

por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem<br />

a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem<br />

cordas de nossas almas que não sabíamos existirem.<br />

Assim é Ele!<br />

Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco<br />

que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja<br />

do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa<br />

milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente<br />

maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer<br />

nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão<br />

de que os seus divinos olhos estão pousando sobre<br />

mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e<br />

envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria<br />

de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império<br />

d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e<br />

rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado<br />

por Ele.<br />

Mais alvos do que a neve<br />

Tudo isso junto, formando um panorama que paira<br />

por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes,<br />

quando se olha para o céu muito estrelado não é nada<br />

em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase<br />

claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e<br />

nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de<br />

força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente<br />

incomparáveis!<br />

Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na<br />

alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do<br />

Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar<br />

ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali<br />

que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para<br />

São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os<br />

mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao<br />

Imaculado Coração de Maria vêm à tona.<br />

Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente<br />

olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges<br />

me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem<br />

dealbabor” 1 ; o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente,<br />

e eu ficaria mais alvo do que a neve!<br />

Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi,<br />

sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal<br />

de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente<br />

reprobatório, enormemente amoroso, envolvente<br />

12


e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte<br />

sentido: não há barreiras, venha; elogio<br />

é isto!<br />

E tocando, não o grosso bordão<br />

dos sinos de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, mas o sino leve e alegre<br />

de Nossa Senhora, a alegria<br />

do perdão. Ela põe junto dessa<br />

seriedade infinita de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo uma<br />

nota qualquer de louçania<br />

que fala em perdão, em esperança,<br />

em alegria, que a<br />

completa admiravelmente.<br />

Tudo isso está e tem fundamento<br />

n’Ele, mas Nosso<br />

Senhor é grande demais<br />

para, num olhar só, podermos<br />

abarcá-Lo. Então,<br />

olha-se para Maria Santíssima,<br />

e Ela diz: “Meu filho!”<br />

Porque ao cabo de algum<br />

tempo aquela imensidade nos<br />

faz sentir tão pequenos, tão pequenos,<br />

tão pequenos, “petit vermisseau<br />

et misérable pécheur” 2 , que<br />

se tem vontade de dizer: “Senhor, não<br />

me esmagues de tanto me amar!” Mas entra<br />

Ela e dá um repouso, uma distensão, está<br />

feito tudo na perfeição.<br />

Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma<br />

coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita<br />

melhor.<br />

<strong>Plinio</strong> Veas<br />

Conhecimento por conaturalidade<br />

Esses estados de alma constituem o afeto que devemos<br />

procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada,<br />

porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.<br />

Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de<br />

tal quer muito bem a você porque foi educado com você<br />

desde pequeno...”, diz-me pouco, porque se nossas almas<br />

são diferentes nesse ponto, o que fazer?<br />

Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente<br />

de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse<br />

estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-<br />

-lo e dizer:<br />

“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há<br />

quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos<br />

pressentíamos!”<br />

Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito<br />

muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar<br />

esse céu estrelado, lembrar-me do olhar<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando<br />

sobre mim, é algo infinitamente superior<br />

ao céu estrelado, mas que<br />

tem certa analogia, cujo analogado<br />

primário é o Céu, a partir<br />

do qual, na imensidade de suas<br />

virtudes e qualidades, Ele<br />

olha para mim. Há n’Ele galáxias<br />

de santidade, de virtudes<br />

que pousam sobre<br />

minha cabeça como uma<br />

abóbada protetora!<br />

A partir daí vem o desejo<br />

da boa amizade segundo<br />

Deus, amar o próximo<br />

como a si mesmo<br />

por amor de Deus, podendo<br />

dar origem a um relacionamento<br />

humano que,<br />

com tal plenitude, creio eu,<br />

talvez não tenha sido tão frequente<br />

na própria Idade Média.<br />

Suponho que se a Idade Média<br />

tivesse continuado, o Sagrado<br />

Coração de Jesus teria revelado essa<br />

devoção de qualquer forma. A grande<br />

maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas<br />

da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa<br />

devoção.<br />

Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito<br />

rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente<br />

errada.<br />

Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente<br />

da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças,<br />

etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem<br />

tem um conhecimento por conaturalidade.<br />

Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em<br />

vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —,<br />

entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido<br />

pela sensibilidade para entender que nesse conjunto<br />

— razão e sensibilidade — encontra-se a cognição<br />

completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem<br />

assim, por conaturalidade.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 6/2/1986)<br />

1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado,<br />

lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.<br />

2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.<br />

13


Reflexões teológicas<br />

Riquezas<br />

do conhecimento por<br />

conaturalidade - I<br />

Para julgar retamente das coisas, o homem deve utilizar ora o<br />

conhecimento por conaturalidade, ora o adquirido por meio<br />

do estudo. Um conhecimento não pode excluir o outro.<br />

Na Idade Média, tomada como um todo, isso reluz<br />

muito, porque a arte medieval apresenta, por conaturali-<br />

São Tomás de Aquino, num trecho da Suma Teológica,<br />

qualifica muito bem a relação da sabedoria<br />

com dois aspectos do conhecimento na alma humana:<br />

Dois conhecimentos que se complementam<br />

“Como já temos dito, a sabedoria importa certa retidão<br />

do juízo segundo razões divinas. A retidão do juízo<br />

pode acontecer de duas maneiras: ou segundo o uso perfeito<br />

da razão, ou por certa conaturalidade face às coisas<br />

que tem que julgar. Assim, vemos que por um discurso<br />

da razão, julga retamente das coisas pertencentes à castidade<br />

quem estudou a ciência moral, mas, por certa conaturalidade<br />

com ela, julga retamente da castidade quem a<br />

pratica habitualmente.” 1<br />

Portanto, um é o conhecimento teórico, adquirido pelo<br />

estudo da ciência; outro é o conhecimento por conaturalidade.<br />

A palavra “conaturalidade” já indica por si uma afinidade<br />

de natureza. Contudo, São Tomás aprofunda o conceito,<br />

explicando como a repercussão da virtude no homem<br />

que a pratica fá-lo conhecê-la operativamente, por<br />

um conhecimento interno.<br />

O Doutor Angélico não acrescenta, porque ele está<br />

estudando a sabedoria enquanto tendo sede no homem,<br />

mas creio que seria lógico acrescentar que fora do homem<br />

também se pode conhecer, por exemplo, a castidade<br />

de outro modo, analogamente experimental: estudando<br />

os costumes dos outros e, por conaturalidade, ven-<br />

do neles o que a castidade tem de bom e a impureza de<br />

ruim. Também esse é um modo que conduz ao conhecimento<br />

por conaturalidade.<br />

Tanto o homem casto como o não casto podem ver, nos<br />

outros, o esplendor da pureza e a hediondez da impureza.<br />

Fica, assim, bem claro que Deus deu ao homem as duas<br />

vias de conhecimento, e não é lícito optar por uma excluindo<br />

a outra, como se escolheria, por exemplo, viajar<br />

a uma determinada cidade de trem ou de automóvel.<br />

Neste caso, um meio de transporte excluiria inteiramente<br />

o outro, pois não se pode viajar, ao mesmo tempo, em<br />

estrada de ferro e de rodagem.<br />

Para julgar retamente das coisas, o homem deve utilizar<br />

ora um tipo de conhecimento, ora outro, complementarmente.<br />

Ninguém pode dizer: “Conheci por conaturalidade,<br />

portanto não preciso conhecer teoricamente.” Ou: “Conheci<br />

teoricamente, portanto não preciso conhecer por<br />

conaturalidade.” Esses métodos devem, com prevalência<br />

ora de um, ora de outro, acompanhar-se para proporcionar<br />

a cognição completa.<br />

Faz parte do dom de sabedoria dar ao homem a possibilidade<br />

tanto de sentir retamente, quanto de observar<br />

por conaturalidade.<br />

O equilíbrio de todo o sentir com as virtudes<br />

gera o senso católico perfeito<br />

14


<strong>Dr</strong>or Feitelson (CC 3.0)<br />

Imagem de Apóstolo no interior da Sainte-Chapelle - Paris, França<br />

dade, o que a Escolástica proporciona por raciocínio. Assim,<br />

tudo o que se compreende por uma via, sente-se pela<br />

outra.<br />

O homem medievo, mesmo quando analfabeto, olhava<br />

para a catedral e via um nicho onde tal carpinteiro fez<br />

determinado adorno, e é uma parábola. Mais adiante,<br />

num vitral, ele via representada toda a história do Profeta<br />

Jonas. E assimilava aquilo tudo.<br />

Em geral, quando se fala que as catedrais eram o livro<br />

do analfabeto, refere-se a esses fatos do ponto de vista da<br />

instrução, e é verdade. Mas estou me referindo a outro<br />

aspecto: é um equilíbrio de todo o sentir com as virtudes<br />

cardeais e teologais, que constitui propriamente uma afinidade,<br />

a qual é preciso saber sentir até o fim para tomar<br />

o senso católico completo.<br />

Em certas igrejas há, sobre pedestais, imagens dos<br />

Apóstolos ou outros Santos, cada qual encimada por um<br />

dossel.<br />

Lembro-me de que, ao notar pela primeira vez aquele<br />

dossel sobre cada Santo, tive uma espécie de frisson 2<br />

de alegria e admiração. Não atinei imediatamente com<br />

a razão de ser daquele sentimento, e pensei em<br />

perguntar a alguém, tão logo terminasse a Missa.<br />

Mas concluí ser inútil... Teria que elaborar sozinho<br />

a resposta.<br />

Surgiu, então, a objeção vinda ex potestatis tenebrarum<br />

3 : “Não é isso não! Essas coisas todas suas<br />

são fantasias sem sentido. Ninguém de bom senso<br />

se põe esses problemas. Todo mundo que está<br />

nessa igreja viu esse dossel e não pensou o que<br />

você está pensando. É só você para querer dividir<br />

um fio de cabelo, de comprido, em quatro... Esse<br />

é você! O resultado é que você não presta atenção<br />

nas coisas apetecíveis e concretas da vida. Você<br />

agora deveria voltar para casa, pensando em como<br />

subir na vida. Você não está subindo, mas está<br />

voando sem destino nessas névoas em que vive.”<br />

Minha réplica: Eu sinto que amarei menos a<br />

Nossa Senhora, à Igreja, a Nosso Senhor, se tomar<br />

a mentalidade que me está sendo oferecida.<br />

Portanto, não a tomo! Vou continuar nessa névoa.<br />

Um dia descobrirei a verdade.<br />

Uma pergunta guardada<br />

como um tesouro<br />

Não joguei fora aquela pergunta. Guardei-a<br />

como um tesouro que em certo momento deveria<br />

reluzir.<br />

Muito tempo depois me veio clara e normalmente<br />

a resposta, como um prolongamento da conaturalidade.<br />

Aquela alegria foi sentida por conaturalidade<br />

e a pergunta é a dessa conaturalidade que se<br />

debruça curiosa; não, porém, uma curiosidade de mico, e<br />

sim de quem olha para um lago profundo, não consegue<br />

ver o fundo e espera um dia de sol para ver melhor, só isso.<br />

Aparece o dia de sol, olha-se e fica-se vendo como é o<br />

fundo do lago. Tudo feito com calma, serenidade.<br />

Eu me agrado em ver um tetozinho em cima de cada<br />

Apóstolo pela ideia de que o Apóstolo, perdido na vastidão<br />

da igreja, fica meio diminuto e fora das proporções<br />

de um homem. Este não habita normalmente em coisas<br />

dessa vastidão, mas é feito para morar onde existe uma<br />

altura proporcionada a ele. Se eu tivesse que estar no alto<br />

dessa coluna, sentir-me-ia mais em casa e protegido<br />

pelo próprio Deus sob um tetozinho.<br />

Eis uma primeira razão do dossel, mas ela não explica<br />

tudo. Há sob aquele pequeno teto — imaginando-me<br />

ainda ali — uma atmosfera a qual posso impregnar com<br />

minha própria personalidade e ser eu mesmo ali dentro.<br />

E quando eu for um homem adulto, que governa a família,<br />

ter minha coisa ali governada por mim, impregnada<br />

por mim, formada por mim. Isso não é um desejo de<br />

15


Reflexões teológicas<br />

Enfo (CC 3.0)<br />

domínio feroz; é um modo de ser da sociabilidade. Foi<br />

aquilo a que dei algo de mim mesmo, que recebeu e me<br />

retribuiu. Essa permuta é a sociabilidade.<br />

Sociedade orgânica é isso. São essas várias realezas,<br />

a partir do pai de família e chegando até o rei; essas várias<br />

naçõezinhas — a família é uma micronação — encaixadas<br />

umas nas outras, formando, a partir da família patriarcal,<br />

um município e daí por diante.<br />

Os Santos não são autômatos<br />

Por fim, o dosselzinho ajuda a compreender melhor a<br />

própria intercessão dos Santos.<br />

Algumas pessoas têm a impressão de que um Santo<br />

funciona como uma espécie de autofalante ou telefone<br />

junto a Deus; que não se move por si mesmo em nada. O<br />

fiel que o invoca apenas fala através dele, e o Santo repete<br />

para o Altíssimo, que gosta de ouvir aquela voz a<br />

qual amplia a do devoto, cujos méritos não são suficientes.<br />

Nesta perspectiva, Santa Teresinha do Menino Jesus<br />

seria apenas o meu “telefone carmelita” junto a Deus,<br />

nada mais.<br />

Ora, isso assim não é verdade. O Criador deixa certo<br />

governo pessoal aos Santos nas graças que pedem e<br />

distribuem, porque é de acordo com sua divina vontade<br />

que, mesmo no Céu, eles não sejam como zumbis ou autômatos.<br />

Portanto, conforme eu saiba mover as cordas intelectivas<br />

e sensíveis do Santo, posso obter mais ou menos dele.<br />

Essa é uma regra de<br />

ouro da Idade Média:<br />

ponha as contrapartidas<br />

em harmonia e<br />

terá um edifício<br />

que, tanto quanto<br />

permite a fraqueza<br />

humana, não cairá.<br />

Porta dos Apóstolos - Catedral<br />

de Valência, Espanha<br />

Também isto é simbolizado pelo<br />

dosselzinho: uma espécie de<br />

pequeno reino que ele tem por<br />

vontade do Rei Celeste, onde<br />

ele fará sempre um uso reto dessa<br />

atribuição, dessa pequena realeza<br />

encaixada e, com sua originalidade, moverá a Deus<br />

de acordo com seus desígnios divinos. Isso porque Deus<br />

não quis ter autômatos, e sim seres vivos a seu serviço.<br />

O Santo tem uma espécie de arbítrio dentro dessa<br />

concessão de favores. Esse é o ponto que estou querendo<br />

ressaltar. Ele, por assim dizer, é um senhor, governa um<br />

aspecto da distribuição das graças, porque a intercessão<br />

é feita à maneira dele.<br />

Por exemplo, a Santo Elias e a Santa Teresinha pediríamos<br />

uma graça de modos diversos.<br />

Suponhamos que um de nós, após a morte, seja canonizado<br />

e veja, do Céu, a seguinte cena: Passa perto de<br />

uma imagem dele uma boa mãe de família, lavadeira,<br />

que lavou a roupa dos clientes num rio, mas deixou uma<br />

peça ser levada pela correnteza, e está muito aflita.<br />

Ela vê a imagem e pede: “São Fulano, fazei-me encontrar<br />

essa roupa!”<br />

Pode ser que, no Céu, um de nós sorria e diga a Nossa<br />

Senhora: “Minha Mãe, veja, ajude-a.”<br />

Imaginem, agora, uma Santa que também tenha sido<br />

lavadeira durante a vida — para quem esse problema<br />

da roupa que foi rio abaixo toma outra importância —, a<br />

quem a pobre mulher suplique: “Santa Fulana, patrona<br />

das lavadeiras, ajudai-me!”<br />

Não tem muito mais possibilidade de ser ouvida? Sim,<br />

pois a Santa tem uma conaturalidade com aquele gênero<br />

de problemas!<br />

Isso ilustra tanto da intercessão dos Santos, da distribuição<br />

das graças na Igreja, é tão bonito, tão adequado!<br />

16


A flecha da Catedral de Notre-Dame<br />

Surge, então, a pergunta: isso nós compreendemos pela<br />

razão ou pela conaturalidade? Pela conaturalidade, da<br />

qual parte uma avenida esplêndida para raciocínios. A<br />

meu ver, se eu não tiver sentido, não entenderei inteiramente<br />

o que minha razão me diz.<br />

Isso é cheio de razoabilidade que o raciocínio depois<br />

referenda. Mas ele não é indispensável para o indivíduo<br />

estar certo disso. Alguém pode ter percebido a razoabilidade<br />

de algo e não ser capaz de pôr em raciocínios desde<br />

logo, mas estar certo da verdade que captou. Mais tarde,<br />

um livro, uma leitura, uma conversa ou a maturação<br />

do seu próprio pensamento levá-lo-ão a completar essa<br />

certeza.<br />

Desculpem-me por falar de minhas observações interiores,<br />

mas são as que eu conheço.<br />

Admito de bom grado que possa haver<br />

outras imensamente mais interessantes,<br />

mas dou o que tenho; é o<br />

óbolo da viúva pobre.<br />

Por exemplo, quando eu me dei<br />

consciência da flecha da Catedral de<br />

Notre-Dame foi uma alegria enorme<br />

para mim e uma espécie de alívio.<br />

Sou grande admirador da massa<br />

daquelas torres e do que aquela fachada<br />

tem de imponente. Eu gosto<br />

tanto daquilo! Contudo, foi só com<br />

a flecha que tive certo alívio, pois ela<br />

suaviza aquele peso.<br />

Então, o que a flecha tem de delicado,<br />

de gracioso, de fantasioso, de<br />

quase irreal dá expressão e cidadania,<br />

em minha alma, a uma série de<br />

apetências que vibram em consonância<br />

com isso e precisam de um lugar<br />

ao Sol. Assim, a fidelidade à mensagem<br />

das torres é robustecida e aliviada<br />

pelo cântico grácil da flecha.<br />

Para minha sensibilidade — é o<br />

tal conhecimento por conaturalidade<br />

de que fala São Tomás de Aquino<br />

— as torres de Notre-Dame são<br />

imensamente planejadas, pensadas,<br />

bem colocadas, com muito bom gosto,<br />

mas se há uma coisa que elas não<br />

têm é o imprevisto.<br />

Ora, as ordenações grandiosas deixam<br />

uma fome do inopinado, em determinado<br />

momento fica-se com vontade<br />

do imprevisto. A flecha é imprevista.<br />

E tem toda a audácia, todo o<br />

panache, o topete que me faz aderir mais inteiramente à<br />

própria torre. Mas isso meu espírito não aprende adequadamente<br />

apenas num tratado. Ou sinto por conaturalidade<br />

ou não compreendo inteiramente.<br />

Essa é uma regra de ouro da Idade Média: ponha as<br />

contrapartidas em harmonia e terá um edifício que, tanto<br />

quanto permite a fraqueza humana, não cairá. v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 29/11/1985)<br />

1) II-II, q. 45, a. 2.<br />

2) Do francês: Comoção, estremecimento.<br />

3) Do latim: dos poderes das trevas.<br />

Catedral Notre-Dame, Paris, França<br />

Mickey Løgitmark (CC 3.0)<br />

17


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Organicidade e inocência<br />

Sergio Hollmann<br />

A organicidade é inseparável da inocência,<br />

considerada como uma concepção da existência<br />

proveniente do élan puro da alma para o<br />

maravilhoso, para o metafisicamente perfeito.<br />

Nesta página e na<br />

seguinte, aspectos<br />

do Vale do Roncal<br />

H<br />

á um vale na Navarra chamado Vale do Roncal,<br />

antigamente constituído de uma miríade de pequenas<br />

repúblicas autônomas. Sua organização<br />

datava da Idade Média, e no Ancien Régime 1 ainda estava<br />

em vigor. Essas republiquetas eram teoricamente soberanas,<br />

embora reconhecendo no Rei da Espanha uma suserania.<br />

Na ordem política dos fatos, elas foram completamente<br />

arrastadas pelo movimento geral da unificação do Reino<br />

de Espanha, e nem seus habitantes tinham mais consciência<br />

dessa soberania a qual se conservava mais por formalidade.<br />

Se os poderes municipais quisessem fazê-la valer, não conseguiriam,<br />

porque o povo não tinha mais consciência disso.<br />

Calor de alma que conduz à<br />

perfeita consonância<br />

Um dado interessante para provar a vitalidade e a legitimidade<br />

disso é que o Rei da Espanha, quando declarava<br />

guerra a qualquer potência exterior, mandava uma<br />

embaixada percorrer as repúblicas do Roncal e comunicar<br />

que ele, Rei da Espanha, tinha resolvido ir à guerra,<br />

e pedia a aliança delas. Os representantes dessas repúblicas<br />

respondiam que sim, e os emissários voltavam para<br />

a capital do reino. Era um mero protocolo, mas que se<br />

conservou encantadoramente até o fim.<br />

Contudo, houve um momento em que isso teve vida,<br />

evidentemente. Em que consistia essa vida? Como era<br />

a relação das almas entre si em cada uma dessas republiquetas?<br />

Estas, por sua vez, deveriam encontrar muitas<br />

dificuldades para se comunicarem umas com as outras,<br />

devido ao temperamento espanhol muito altaneiro<br />

e desconfiado, uma não querendo obedecer à outra, afirmando<br />

sua soberania. Mas onde o espírito revolucionário<br />

não entrava em nada.<br />

Se tivesse entrado, essas republiquetas, nascidas de<br />

uma determinada inter-relação que fazia de cada uma<br />

delas um todo fechado, não existiriam, não se diferenciariam<br />

umas das outras, não teriam coesão, a política de<br />

uma interviria na da outra, sairia uma mixórdia, aquilo<br />

virava um cortiço no meio das montanhas, uma favela.<br />

Qual o relacionamento de alma que está na origem de<br />

tudo quanto é pequeno corpúsculo da sociedade medieval,<br />

quer quando este todo se formava muito uno e diferenciado,<br />

podendo dar facilmente em cidades livres da<br />

Alemanha, em organismos do mesmo gênero na Suíça,<br />

Itália do Norte, etc., como quando sua constituição se<br />

operava de um modo menos circunscrito, originando Estados<br />

um pouco maiores?<br />

Há na raiz um relacionamento de alma o qual se trata<br />

de descrever e que, a meu ver, dá a partida para tudo<br />

quanto é orgânico. A organicidade de toda sociedade<br />

vem de um calor de alma pelo qual todas as relações cabíveis<br />

se estabelecem entre determinadas almas, levando-as<br />

a consonar como se fossem uma só.<br />

18


Uma análise profundamente<br />

diferente do marxismo<br />

Daí nasce uma vida social onde essas diferenças que<br />

fedem a luta de classes não entram. As distinções que devem<br />

existir segundo o Direito Natural entre povo e governo,<br />

senhores e súditos, etc., tomam uma realidade<br />

completamente diferente da que se encontra em certo tipo<br />

de literatura.<br />

Como descrever essa união de almas? Para mim esta é<br />

uma questão muito importante, porque desconfio que no<br />

Reino de Maria deverá dar-se algo assim, levado muito<br />

mais longe: uma união sobrenatural de almas nesse plano,<br />

que é o ponto primeiro do Reino de Maria enquanto<br />

Cristandade, comunidade de povos e nações católicas.<br />

Aliás, a própria Cristandade enquanto família de nações<br />

cristãs é isto. É um modo de sentirem juntas a Cristandade,<br />

formando, no plano natural e temporal, uma família de almas<br />

que se diferencia do adversário por causa disso.<br />

Toda a vida de uma sociedade depende desse imbricamento<br />

de almas. Portanto, para compreendê-la trata-se<br />

de ver como é esse relacionamento. Atualmente, a noção<br />

de organicidade das instituições está falseada, a ponto de<br />

se ignorar este aspecto. Seria preciso restaurar essa noção<br />

a partir disto.<br />

Assim, ao invés de uma análise que comece por um<br />

dado econômico, inicia-se por um elemento psicológico<br />

e, neste ponto, é profundamente diferente do marxismo,<br />

porque a própria economia se desenvolve devidamente a<br />

partir de uma união de almas assim. Sobrepor a economia<br />

a todo o resto é uma aberração final da ignorância.<br />

Inocência: ponto de partida do<br />

perfeito relacionamento<br />

Como dentro de uma mesma família, também numa comunidade<br />

como essas, composta por uma mesma raça, com<br />

certa homogeneidade, as inocências consideram em uníssono<br />

alguns aspectos da sua própria realidade, da sua própria<br />

vida, têm o mesmo élan no mais fundo das almas: todos veem<br />

do mesmo modo o Natal, o castelão, o rio que passa ao<br />

pé do castelo, as ovelhas, os frutos das árvores, etc.<br />

Há um governo de Deus pelo qual, lentamente, as inocências<br />

vão mudando de tema. Em determinada época, o<br />

riacho marca o tema; mais tarde, a atenção se volta para<br />

outro ponto e fazem, no meio de um larguinho, uma fonte<br />

cujo prodígio hidráulico de trazer água de longe marca<br />

melhor ainda a atmosfera viva; depois o sininho da capela,<br />

e as coisas vão assim se acumulando sem se excluírem,<br />

com diferentes tônicas que vão sucessivamente, pelo<br />

continuar da História, imbricando as almas de um determinado<br />

modo.<br />

Isso produz uma consonância entre as almas por onde<br />

todas vivem de uma mesma vida no que elas têm de<br />

mais profundo.<br />

Almas desiguais que<br />

se imbricam inteiramente<br />

Então, a alteridade deixa de existir? Não, nem um pouco.<br />

De um lado, ela caracteriza inteiramente cada alma,<br />

mas, de outro, acantona-se num resíduo de pouca importância.<br />

Por exemplo, um é mais impetuoso e se zanga mais<br />

facilmente, outro é mais manso; esse sente mais aptidão<br />

para criar cabritos do que carneiros, aquele tem mais facilidade<br />

para construir casas do que plantar. Assim, divergências<br />

em pequenos afazeres. Mas, em tudo quanto<br />

Para estudarmos como se faz esse perfeito<br />

relacionamento, seria preciso partir<br />

da inocência, porque almas sem inocência<br />

não são capazes de se relacionarem adequadamente.<br />

Querer estabelecer um bom<br />

relacionamento com almas não inocentes<br />

é o mesmo que tentar fazer um tecido de<br />

linho com fio podre. Não sai tecido!<br />

Como se opera esse entrelaçamento de<br />

inocência?<br />

A meu ver, trata-se de pensar em comunidades<br />

formando, dentro de certo contexto,<br />

um todo capaz de se tornar uma unidade<br />

política, um pequeno Estado, cuja inocência<br />

das almas que o constituem considera esse<br />

grupo humano com aquele desejo de perfeição<br />

exímia, próprio ao senso do ser.<br />

Sergio Hollmann<br />

19


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

é profundo, as almas estão umas para<br />

as outras como as peças de um mesmo<br />

relógio. São diferentes, mas se imbricam<br />

inteiramente e só se explicam<br />

umas em função das outras. Constituem<br />

um verdadeiro todo.<br />

Vamos dizer, por exemplo, que<br />

na cidade haja um marceneiro, uma<br />

mulher que faz rendas, outro homem<br />

trabalha em couro, e outro fabrica<br />

pequenos utensílios em metal.<br />

Todos procuram fazer bonito e agradar<br />

o mercado interno. O pressuposto<br />

dessa produção artesanal é a harmonia.<br />

O móvel, a renda, o trabalho<br />

de couro e a faca são tão harmoniosos<br />

entre si que se fosse dado a uma<br />

faculdade de belas artes imaginar esses<br />

objetos, não os produziria igualmente<br />

harmônicos.<br />

Dentre os moradores da cidade, um preferirá uma faca<br />

a outra, uma senhora preferirá uma renda a outra,<br />

mas os pressupostos ninguém discute: renda é aquilo, faca<br />

é aquilo, móvel é aquilo, e tudo aquilo é lindo.<br />

Por que os pressupostos são assim? Por causa dessa<br />

unidade inicial das inocências, do modo de ver a simbologia<br />

toda da Religião e da natureza. Bem entendido,<br />

não é a religião natural, mas sim a Religião Católica, como<br />

também os aspectos religiosos da natureza. A sociedade<br />

que nasce daí é chamada orgânica e tem, no fundo,<br />

como que uma só alma.<br />

À medida que a inocência vai decaindo, a regionalidade<br />

cai, porque esses fenômenos assim só se dão em grupos<br />

pequenos ciosos de sua identidade, porque cada ser<br />

apetece o seu próprio ser, e não tendem a formar imensas<br />

aglomerações.<br />

Originalidade destas explicitações<br />

Já não se passa o mesmo com o Sacro Império ou o<br />

que se chamariam “as Espanhas”, etc, que estariam numa<br />

relação entre si e com esses subgrupos como o gênero<br />

está para as espécies, esta para as subespécies e as subespécies<br />

para as famílias e, depois, estas para os indivíduos.<br />

Assim também esses corpúsculos sociais tendem a se<br />

encaixar uns com os outros para formar subespécies que,<br />

por sua vez, encaixam-se em espécies, e assim por diante.<br />

Poderíamos imaginar, então, um Vale do Roncal, num<br />

Reino da Navarra, que é um conjunto de reinos autônomos<br />

dentro de todas “as Espanhas”, sobre as quais reina<br />

o monarca. Forma-se, assim, um harmonioso encaixe; e o<br />

Sacro Império é fundamentalmente isso.<br />

Em meu modo de ver, a originalidade destas explicitações<br />

está no caráter prevalentemente psicológico para<br />

a intelecção da sociedade orgânica; uma psicologia que<br />

se constitui em torno de algo profundamente metafísico<br />

e religioso, dado pela inocência. Por onde se deduz que<br />

organicidade e inocência são coisas inseparáveis. Pensar<br />

em sociedade devida e estavelmente estruturada sem<br />

inocência é inteiramente impossível.<br />

Poder-se-ia alegar que, por exemplo, segundo Fustel<br />

de Coulanges 2 , a Roma antiga teve traços dessa organicidade<br />

possante e, entretanto, era pagã. Porém, ela possuía<br />

uma inocência patriarcal que, a seu modo, era a vida<br />

dessa sociedade.<br />

O que nós chamamos inocência aqui? É uma concepção<br />

da existência proveniente desse élan puro da alma<br />

para o maravilhoso, para o metafisicamente perfeito, como<br />

prevalecendo sobre todo o resto.<br />

Bênção existente nas famílias<br />

com muitos filhos<br />

Manufatura de chapéus<br />

femininos - Museu<br />

de Viena, Áustria<br />

Infelizmente, o homem contemporâneo não vive do<br />

desejo e da esperança de ser assim, e considera o mundo<br />

inteiramente organizável sem isso. E faz do individualismo<br />

o teor de suas relações. Então, cada um medra<br />

no seu canto sem esses valores e sem inocência, ou com<br />

uma inocência raquítica, fanando noutro canto da alma,<br />

não ousando mostrar-se a ninguém, sem um pingo de relação<br />

que não seja determinada, ou pelo mero hábito ou<br />

por uma amizade fundada numa consonância sentimental<br />

de dois egoísmos, sem um ideal de que aquele relacionamento<br />

ande bem, para além da vantagem individual.<br />

Yelkrokoyade (CC 3.0)<br />

20


Resultado: as nações assim pagam o fardo disso, do modo<br />

mais pesado possível, porque caem no mimetismo. Como<br />

ninguém confia em ninguém, todo mundo tem medo<br />

de ser caçoado, e o escudo contra a caçoada é adotarem<br />

artificialmente um padrão que todos tomam como válido.<br />

Quem está de acordo com aquele padrão não pode ser caçoado.<br />

Outrora foi padrão francês, depois passou a ser padrão<br />

norte-americano, agora o padrão decorrente — mais<br />

próxima, mais remotamente — da Sorbonne de 1968.<br />

É o medo de ter uma mentalidade que não seja a “oficial”,<br />

porque cada um fica sozinho na selva, e quem não<br />

estiver segundo esse padrão artificial é perseguido.<br />

Conheci famílias, em geral com muitos filhos, em que<br />

o pai, a mãe e a penca dos filhos funcionavam entre si,<br />

sob vários pontos de vista, à maneira do Vale do Roncal.<br />

As famílias com poucos filhos não produziam isso; é uma<br />

bênção que a família pouco numerosa não tem. Essa história<br />

de dizer: “Vocês são só dois, vão ficar amicíssimos!”<br />

não é verdade. Formam interstícios entre os dois que dão<br />

amizades absolutas por um lado, e vazios imensos por<br />

outro. Pelo contrário, havia famílias numerosas nas quais<br />

— às vezes até para o mal — se constituía uma mentalidade<br />

coletiva que era uma coisa simplesmente fantástica.<br />

Então, era o modo de fazer esporte, de realizar negócios,<br />

de entender as relações, formar as ambições, de tratar<br />

os temas, de brigar com os de fora, enfim, tudo era<br />

homogêneo até debaixo d’água. E, tomando naquele<br />

mundo de irmãos, quando um precisava da ajuda do outro,<br />

era aquela solidariedade até o fim. É um fundo de<br />

organicidade dentro dessa perspectiva.<br />

Nossa Senhora, inocência e<br />

Contra-Revolução<br />

Surge a questão: Como seria isso no Reino de Maria?<br />

Eu só posso imaginar o Reino de Maria com esse fenômeno<br />

enormemente mais vivaz.<br />

Não é verdade que a Revolução tenha suprimido pura<br />

e simplesmente esse fenômeno. Ela encontrou o jeito<br />

de manter uma existência de família de almas baseada no<br />

oposto. As almas hoje constituem, na negação, uma família<br />

monolítica e colossal, como outrora fizeram, na afirmação,<br />

famílias pequenas constituindo galáxias de unidades<br />

diferenciadas.<br />

Nessa família de almas revolucionária, os espíritos são<br />

trabalhados pela intersuscetibilidade, de maneira a sentirem<br />

qualquer coisa que, de longe, contradiga suas concepções.<br />

Daí o agudíssimo senso “anticontrarrevolucionário”<br />

que eles têm.<br />

Como essa família de almas se estabeleceu? É a ligação<br />

como que orgânica das almas em torno do caos, do<br />

nada, da massa, do isolamento, da tristeza, de tudo quanto<br />

é errado para o homem, mas que fazem um tecido<br />

monstruoso com os desenhos tortuosos.<br />

Eu só compreendo o Reino de Maria se vier uma graça<br />

de conhecer e amar com uma luz maior do que nunca<br />

as verdades opostas a esses erros, em torno dos quais essa<br />

família de almas se estruturou. Portanto, vida em torno<br />

da inocência, com todas essas suscetibilidades proporcionadas<br />

pela Revolução acesas na linha da Contra-Revolução,<br />

e de tal maneira que seja dificílimo a Revolução<br />

erguer a cabeça, desde que as almas continuem inocentes,<br />

porque sendo inocentes serão vigilantes.<br />

Sou levado a achar que, em dado momento, essa concepção<br />

da existência se imporá às almas refratárias à Revolução,<br />

com um fulgor tão grande como a luz que São Paulo<br />

viu no caminho de Damasco. Aí terá nascido esse imbricamento,<br />

essa inocência, essa sociedade de almas, esse mútuo<br />

apoio e essa perfeição da qual tratávamos há pouco.<br />

Creio que Nossa Senhora tem isso em grau superexcelente.<br />

A relação d’Ela com a inocência e com a Contra-Revolução<br />

ainda não foi devidamente estudada, e seria de<br />

uma importância transcendental. Todas essas coisas estão,<br />

por assim dizer, nos esplendores do Padre Eterno, ansiosas<br />

por vir até nós, mas esperando um determinado momento.<br />

Talvez, por ocasião dos castigos previstos por Nossa<br />

Senhora em Fátima, dê-se tal destruição e tal fim de um<br />

mundo, que ressurja um mundo sem as infâmias do anterior,<br />

e todos sentirão como tudo acabou, à maneira de<br />

um quadro-negro cheio de cálculos errados e de obscenidades,<br />

no qual alguém passa uma esponja e, depois, ainda<br />

lava com água, deixando a lousa limpa para escrever<br />

outra coisa. Então começarão a existir condições para as<br />

almas retomarem outra base de relacionamento.<br />

Quando se lê o “Tratado da Verdadeira Devoção”, fica-se<br />

com a impressão de que São Luís Grignion de Montfort<br />

abre a possibilidade de haver graus e formas de união<br />

com Nossa Senhora dos quais não temos ideia. E que, pelo<br />

menos incoativamente, a pessoa alcança esses graus e<br />

formas quando faz a consagração à Sabedoria eterna e encarnada<br />

pelas mãos de Maria; mas, ao longo da fidelidade<br />

à consagração, isto se desenvolve de algum modo.<br />

Suponho que isto continue assim até nossos dias. Aliás, o<br />

próprio São Luís dá a entender que em determinado momento<br />

isto se conhecerá. Uma vez revelado este segredo,<br />

nascerá o perfeito sistema de união entre os homens. v<br />

(Extraído de conferência de 24/2/1982)<br />

1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político<br />

aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e<br />

XVIII.<br />

2) A cidade antiga. São Paulo: Ediouro, 2004.<br />

21


Gustavo Kralj<br />

C<br />

alendário<br />

dos Santos – ––––––<br />

1. Santa Florência, virgem (†séc. IV). Convertida por<br />

Santo Hilário de Poitiers durante o seu desterro numa<br />

Província da Ásia, o seguiu de regresso à França e viveu<br />

como eremita em Comblé.<br />

2. Beato João Slezyuk, bispo e mártir (†1973). Exercendo<br />

seu ministério episcopal de forma clandestina entre os fiéis<br />

de Rito Bizantino, foi condenado e passou 15 anos em campos<br />

de concentração na Rússia e Ucrânia, onde morreu.<br />

3. São Francisco Xavier, presbítero (†1552).<br />

Beato Eduardo Coleman, mártir (†1678). Foi enforcado<br />

e esquartejado em Tyburn, Inglaterra por ter abraçado<br />

a Fé Católica, acusado de conspiração contra o<br />

Rei Carlos II.<br />

4. São João Damasceno, presbítero e Doutor da<br />

Igreja (†c. 749).<br />

Santo Annon, bispo (†1075). Ver página 24.<br />

P. A. Guglielmi (CC 3.0)<br />

5. Santa Crispina de Tagore, Foi mártir (†304). Mãe<br />

de família degolada em Tabessa, Argélia, por recusar-se<br />

a sacrificar aos ídolos no tempo de Diocleciano e Maximiano.<br />

6. II Domingo do Advento.<br />

São Nicolau, bispo (†séc. IV).<br />

Beato João Scheffler, bispo e mártir<br />

(†1952). Húngaro de nascimento, foi<br />

nomeado Bispo de Statu Mare, Romênia.<br />

Ajudou, durante a II Guerra<br />

Mundial, a muitos perseguidos e ao<br />

final da guerra foi preso e condenado<br />

a trabalhos forçados.<br />

7. Santo Ambrósio, bispo<br />

e Doutor da Igreja (†397).<br />

Santa Fara, (†657). Durante<br />

40 anos, foi abadessa<br />

do mosteiro em Faremoutiers,<br />

França, fundado por<br />

ela com a herança recebida<br />

do pai.<br />

8. Imaculada Conceição<br />

da Bem-Aventurada Virgem<br />

Maria.<br />

Santo Eutiquiano, Papa<br />

(†283). Governou a Igreja<br />

depois de São Félix. Foi o 27º sucessor<br />

de São Pedro.<br />

9. São João Diego Cuauhtlatoatzin<br />

(†1548).<br />

Beato Libório Wagner, presbítero<br />

e mártir (†1631). Homem caridoso,<br />

preso por tropas suecas na<br />

Guerra dos 30 anos, sendo<br />

torturado. Martirizado na<br />

Baviera, Alemanha.<br />

10. São Gregório III,<br />

Papa (†741). Incentivou<br />

a pregação do Evangelho<br />

aos Germanos e<br />

lutou contra os iconoclastas,<br />

socorreu<br />

os pobres e favoreceu<br />

a vida religiosa.<br />

São Dâmaso I<br />

11. São Dâmaso I, Papa (†384).<br />

Beato Franco Lippi, eremita (†1292). Jovem militar de<br />

péssimos costumes, foi castigado pela cegueira. Arrependido,<br />

foi em peregrinação a Santiago de Compostela, onde<br />

recuperou as vistas. Regressou à Itália tornando-se eremita<br />

carmelita.<br />

12. Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira da América<br />

Latina.<br />

São Finiano, abade (†549). Fundou vários mosteiros na Irlanda,<br />

entre os quais o de Clonard, onde foi abade e faleceu.<br />

13. III Domingo do Advento.<br />

Santa Luzia, virgem e mártir (†c. 304/305).<br />

Santa Otília, virgem (†séc. VII). Primeira abadessa do<br />

mosteiro de Hohenbourg, França, fundado pelo duque Aldarico,<br />

seu pai.<br />

14. São João da Cruz, presbítero e Doutor da Igreja<br />

(†1591).<br />

São Nimatulácio al-Hardini, presbítero (†1858). Sacerdote<br />

da Ordem Libanesa dos Maronitas, dedicou-se aos<br />

estudos teológicos, à formação dos jovens e ao trabalho<br />

pastoral, em Klifane, Líbano.<br />

15. Beato Merino, abade (†1170). Promoveu na abadia<br />

de Cava, Itália, o esplendor da Liturgia e foi admirável na<br />

fidelidade ao Papa.<br />

22<br />

Santo Ambrósio


–––––––––––––– * Dezembro * ––––<br />

16. Beato Sebastião Magi, presbítero (†1496). Religioso<br />

dominicano, pregou o Evangelho em Gênova, Itália e zelou<br />

pela observância regular nos conventos.<br />

17. São João da Mata, presbítero (†1<strong>213</strong>). De origem<br />

francesa, fundou a Ordem da Santíssima Trindade para a<br />

Redenção dos Cativos, em Roma.<br />

18. São Malaquias, Profeta. Após o desterro da Babilônia,<br />

anunciou o grande dia do Senhor e a sua vinda ao templo.<br />

19. Beato Guilherme de Fenolis, religioso (†c. 1200). Foi<br />

dos primeiros monges da Cartuxa de Casotto, Itália, onde<br />

viveu como irmão leigo.<br />

20. IV Domingo do Advento.<br />

Beato Vicente Romano, presbítero (†1831). Sendo<br />

pároco em Torre del Greco, dedicou-se à educação<br />

das crianças e às necessidades dos operários<br />

e pescadores.<br />

21. São Pedro Canísio, presbítero e<br />

Doutor da Igreja (†1597).<br />

Beato Domingos Spadafora, presbítero<br />

(†1521). Religioso dominicano,<br />

ativo pregador. Faleceu em<br />

Monte Cerignone, Itália.<br />

22. Santo Hungero, bispo<br />

(†866). Pastor zeloso da Diocese<br />

de Utrecht, Holanda, transtornada<br />

pela invasão dos normandos.<br />

23. São João Câncio, presbítero<br />

(†1473).<br />

Beato Nicolau Factor, presbítero<br />

(†1583). Sacerdote franciscano,<br />

que abrasado de amor<br />

a Deus, foi várias vezes arrebatado<br />

em êxtase. Faleceu em Valência,<br />

Espanha, aos 63 anos.<br />

24. Beato Bartolomeu Maria dal<br />

Monte, presbítero (†1778). Pregou<br />

ao povo cristão e ao clero a palavra<br />

de Deus em muitas regiões da<br />

Itália. Fundou a Pia Obra das Missões.<br />

Timothy Ring<br />

25. Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Beata Antônia Maria Verna, virgem (†1838). Fundadora<br />

da Congregação das Irmãs da Caridade do Imaculado<br />

Coração de Ivrea, em Turim, Itália.<br />

26. Santo Estêvão, diácono e protomártir.<br />

Santa Vicência Maria López Vicuña, virgem (†1890).<br />

Fundadora do Instituto das Filhas de Maria Imaculada,<br />

em Madri, Espanha.<br />

27. Domingo. Festa da Sagrada Família, Jesus, Maria<br />

e José.<br />

São João, Apóstolo e Evangelista.<br />

Beata Sara Salkahazi, virgem e mártir (†1944). Virgem<br />

da Congregação das Religiosas da Assistência, fuzilada<br />

junto ao Rio Danúbio, Hungria.<br />

28. Santos Inocentes, mártires.<br />

Santa Catarina Volpicelli,<br />

virgem (†1894). Fundadora<br />

em Nápoles, Itália, do<br />

Instituto das Escravas<br />

do Sagrado<br />

Coração.<br />

29. São Tomás Becket,<br />

bispo e mártir<br />

(†1170). Ver página<br />

2.<br />

30. Beato João Maria<br />

Boccardo, presbítero<br />

(†1913). Fundou<br />

a Congregação das<br />

Irmãs Pobres Filhas de<br />

São Caetano, em Pancalieri,<br />

Itália.<br />

31. São Silvestre I,<br />

Papa (†335).<br />

São João Francisco<br />

de Régis, presbítero<br />

(†1640). Jesuí ta, que<br />

pela pregação e celebração<br />

do Sacramento<br />

da penitência, renovou<br />

a Fé Católica<br />

aos fiéis de La<br />

Louvesc, França.<br />

Sagrada Família<br />

23


Hagiografia<br />

Santo Annon: energia e astúcia<br />

Reprodução<br />

Santo Annon<br />

confirma a eleição do<br />

Abade do mosteiro<br />

de São Miguel,<br />

em Siegburger<br />

Fundação Francke,<br />

Halle, Alemanha<br />

Utilizando sapiencialmente as qualidades que Deus lhe havia<br />

concedido, Santo Annon salvou a Reforma Gregoriana que estava<br />

passando por um gravíssimo período. Sua figura nos ajuda a<br />

compreender melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.<br />

Santo Annon, bispo e confessor, é um dos grandes<br />

e pouco conhecidos Santos da Idade Média. A seu<br />

respeito, temos a seguinte ficha preparada por um<br />

dos membros de nosso Movimento.<br />

Pessoa de trato verdadeiramente agradável<br />

Santo Annon é um dos grandes santos dos primeiros<br />

anos do Sacro Império Romano Alemão. Seus altos feitos<br />

ficaram registrados não só na História, como na Literatura,<br />

pois sobre a sua vida foi escrito um poema em 876 versos,<br />

clássico da literatura medieval alemã.<br />

Professor da escola de Bamberg, Arcebispo de Colônia e<br />

Chanceler do Sacro Império, fundador de mosteiros, a ele<br />

se deve também, em grande parte, a introdução da reforma<br />

cluniacense na Alemanha.<br />

Era uma personalidade invulgar. De porte majestoso,<br />

bem proporcionado, seus contemporâneos o descreviam<br />

como um belo homem, grande orador, e não menor causeur<br />

1 , suas aulas e sua prosa prendiam a atenção de todos<br />

os que o ouviam, nele admirando não só a ciência, como a<br />

ortodoxia de seu pensamento. A amenidade de seu trato e a<br />

extraordinária, e mais tarde legendária, energia impunham<br />

a todos respeito e veneração.<br />

24


É uma bonita descrição de um desses homens completos,<br />

muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla<br />

qualidade: um trato muito ameno, orador, causeur brilhante,<br />

e homem muito enérgico. Isto demonstra quanto<br />

é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar:<br />

a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de<br />

usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E<br />

a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas horas<br />

de energia, sabe ser enérgica.<br />

O que vem a ser um trato verdadeiramente agradável?<br />

Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas,<br />

mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo<br />

tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, enobrecida.<br />

Esse era o trato de Santo Annon.<br />

Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana<br />

Continua o texto:<br />

Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana,<br />

ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.<br />

Com efeito, Estevão IX, o primeiro Papa eleito pelo povo<br />

romano sem consulta ao Imperador, enviou ao Sacro Império<br />

o monge Hildebrando para convencer a Imperatriz Inês,<br />

que governava na menoridade do filho, futuro Henrique IV,<br />

a reconhecer a eleição. A Imperatriz Inês, que era Condessa<br />

de Poitiers e foi educada num ambiente cluniacense, não<br />

opôs dificuldades em aceitar. Mas Estevão IX morrera antes<br />

da volta de Hildebrando. Na hora da morte, o Papa fizera o<br />

clero e a nobreza jurarem que não elegeriam um novo soberano<br />

pontífice antes de Hildebrando chegar. Não respeitando<br />

o juramento, o clero e a nobreza se reuniram logo depois<br />

dos funerais, e elegeram o Santo Padre.<br />

São Pedro Damião, Cardeal-Arcebispo de Óstia, protestou<br />

e fugiu de Roma, indo ao encontro de Hildebrando, que<br />

estava em Florença, e logo reuniram um Sínodo. Foi eleito<br />

Nicolau II, que a Imperatriz também reconheceu. As dificuldades<br />

começaram quando Nicolau II decretou que a<br />

eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.<br />

A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Reforma<br />

Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de<br />

que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Nicolau<br />

II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio<br />

pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e alguns<br />

bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuniram-se<br />

e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que<br />

tomou o nome de Honório II.<br />

Olhemos para figuras<br />

como a de Santo Annon<br />

e compreenderemos<br />

melhor a verdadeira<br />

fisionomia da Igreja.<br />

Antes de São Gregório VII, a Igreja passou por vacilações<br />

enormes, por crises, por depressões morais tremendas.<br />

E essas crises morais foram todas elas contrariadas<br />

pelo movimento de Reforma Gregoriana, que São Gregório<br />

VII, então cardeal, impôs através de vários Papas que<br />

eram discípulos dele, e depois ele mesmo, elevado ao Pontificado,<br />

com uma energia não excedida e talvez não igualada,<br />

levou à sua perfeição. A esse movimento restaurador,<br />

um dos maiores que tenham havido dentro da Igreja,<br />

costuma-se chamar de Reforma Gregoriana. E foi uma<br />

glória de Santo Annon ter cooperado para essa reforma.<br />

Dificuldades em época de sucessivos papas<br />

Santo Annon recebe doação da cidade de Siegburger<br />

Museu de Arte Chazen, Madison, EUA<br />

Daderot (CC 3.0)<br />

25


Hagiografia<br />

Encantando por esta sua<br />

atitude humilde, a alma deste<br />

santo Cardeal louvava a<br />

grandeza da graça que<br />

opera tais transformações<br />

nas almas humanas.<br />

São Pedro Damião<br />

Biblioteca Classence, Ravena, Itália<br />

Andrea Barbiani (CC 3.0)<br />

Quem deve eleger o Papa? Questão decisiva<br />

para o êxito da Reforma Gregoriana<br />

Aqui estava em jogo uma questão muito importante.<br />

A eleição do Santo Padre foi, em todos os tempos, um<br />

dos elementos decisivos da política mundial, tanto mais<br />

na Idade Média, quando o mundo era muito mais católico<br />

do que hoje e, portanto, muito mais sensível a qualquer<br />

pensamento, vontade, pronunciamento ou ato do<br />

Sumo Pontífice.<br />

Porém, se tinha importância a eleição de um Papa,<br />

outra pergunta também era muito importante: quem o<br />

elegeria? Vemos definirem-se duas tendências diversas:<br />

uma que considerava estarem os nobres e o clero de Roma<br />

habilitados a eleger o Pontífice; outra julgava que este<br />

deveria ser escolhido pelo Sacro Colégio.<br />

Em rigor, não era contra a instituição divina que o Papa<br />

fosse eleito pelos nobres e clero de Roma. O Direito<br />

Canônico pode atribuir-lhes tal faculdade como poderia<br />

concedê-la também ao povo romano. Mas do ponto de<br />

vista da conveniência, quer dizer, para assegurar melhor<br />

a eleição de um Papa digno do cargo, era muito preferível<br />

naquele tempo — e o é em tempos normais — que a<br />

escolha fosse feita pelo Sacro Colégio, pois este representa<br />

uma aristocracia, uma elite dentro da Igreja, sendo<br />

um conjunto de clérigos considerados mais eminentes,<br />

preclaros e seguros pelos Pontífices anteriores.<br />

A palavra “cardeal” vem de cardo, em latim, que significa<br />

o gonzo da porta. Os cardeais estão para a Igreja<br />

como os gonzos para uma porta: sustentam-na, permitindo<br />

e facilitando-lhe o movimento. Era, pois, natural que<br />

esse escol de colaboradores dos vários Papas, participando<br />

em grau subordinado do governo e conhecendo melhor<br />

do que ninguém o ambiente eclesiástico e as necessidades<br />

da Igreja, elegessem o Santo Padre.<br />

Isso seria certamente mais adequado do que se a eleição<br />

ficasse a cargo de clérigos de uma ordem inferior,<br />

incumbidos da direção ou do exercício de atividades na<br />

diocese mais importante do mundo, é verdade, mas voltados<br />

para problemas locais, circunscritos à Diocese de<br />

Roma; enquanto os cardeais são uma elite internacional.<br />

Ora, a missão do Papa não é apenas local, mas principalmente<br />

mundial.<br />

Por outro lado, os nobres romanos eram os senhores<br />

de pequenos feudos nos arredores de Roma, e que muitas<br />

vezes guerreavam por seus interesses. Havia o risco<br />

de escolherem um Papa de acordo com suas conveniências<br />

pessoais ou familiares.<br />

Portanto, era natural que os partidários da Reforma<br />

Gregoriana quisessem transferir essa atribuição para os<br />

cardeais.<br />

Vemos que se pronuncia um incidente no qual o monge<br />

Hildebrando, cardeal e futuro Papa São Gregório VII,<br />

convenceu o Pontífice novo de transferir os poderes de<br />

eleição para o Sacro Colégio.<br />

Naturalmente, o clero e a nobreza de Roma ficariam<br />

indignados com isso, pois perdiam um poderoso elemento<br />

de influência política. Então, foram logo ao encontro<br />

da Imperatriz do Sacro Império Romano Alemão para<br />

obter que ela se solidarizasse com eles.<br />

26


Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha<br />

interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador<br />

— ou a imperatriz, quando o imperador era menor de<br />

idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição<br />

pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do<br />

poder imperial se tornavam muito menores.<br />

Esse choque de interesses comprometia a Reforma<br />

Gregoriana que, sendo um movimento de reestruturação<br />

e reorganização da Igreja, estava maximamente<br />

empenhada em que o órgão adequado elegesse o Sumo<br />

Pontífice.<br />

Num momento crucial, Santo Annon<br />

intervém com astúcia<br />

Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a<br />

cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte<br />

da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe normando<br />

Roberto Giscard, que não estava em bons termos<br />

com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava<br />

com a causa de Cádalo, por interesses pessoais.<br />

Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu intervir.<br />

Combinou com alguns nobres alemães um golpe de<br />

Estado.<br />

Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em determinada<br />

ilha quando viajava pelo reino.<br />

Era uma ilha aprazível e lá costumava ela<br />

repousar das fadigas da viagem.<br />

Acoma (CC 3.0)<br />

Santo Annon mandou construir uma barca esplêndida,<br />

riquíssima, adornada com toda espécie de obras de arte:<br />

finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; cortinas<br />

dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda<br />

a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações<br />

de ouro e pedras preciosas.<br />

Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu<br />

à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.<br />

Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se passavam:<br />

uma ilha aprazível, uma barca linda, com cortinas<br />

e incrustações de pedras preciosas, à espera da Imperatriz.<br />

Que lindo teatro para uma cena histórica! Como<br />

isso é mais bonito do que um avião para se passar<br />

qualquer episódio da História humana!<br />

Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando<br />

a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo<br />

Annon, com outros conjurados, viajou diretamente para<br />

a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando<br />

esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, como<br />

Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henrique<br />

IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair<br />

sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, maravilhando<br />

o menino. Logo depois do almoço, Henrique<br />

IV manifestou o desejo de visitar a<br />

barca. Recebido com todas as honras,<br />

assim que o rei subiu a bordo, os re-<br />

Bede 735c (CC 3.0)<br />

Bede 735c (CC 3.0)<br />

27


Hagiografia<br />

Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade<br />

dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos,<br />

meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir impérios;<br />

e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo<br />

Annon tratando seriamente com um menino de seis<br />

anos sobre política e convencendo-o.<br />

Alguém poderá objetar: “Mas o menino não tinha<br />

nenhuma resistência possível a oferecer a um<br />

homem da qualidade de Santo Annon.”<br />

É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou<br />

que não podia resolver o caso só com brinquedinhos<br />

e fazendo coceguinhas no queixo do rei; mas<br />

precisava dar uma argumentação política. Deu, e o<br />

monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível<br />

de menino que não é comum.<br />

Para se compreender bem essa atitude de Santo<br />

Annon é preciso esclarecer que, em caso de regência,<br />

a posse do rei pelo chanceler já era um bom título para<br />

que ele se tornasse regente.<br />

Jdsteakley (CC 3.0)<br />

Portanto, quando o rei era menor, o regente do<br />

reino era a mãe, mas também podia ser o chanceler,<br />

se este estivesse na posse do rei-menino. E<br />

o golpe dele foi roubar o rei-menino dentro dessa<br />

“ratoeira” de madeiras preciosas, seda e pedrarias.<br />

Uma coisa que nos deixa um pouco interditados<br />

quanto à liceidade, se não fosse o fato de que<br />

é Santo Annon quem fez, e, portanto, isso deve ter<br />

suas razões históricas que provavelmente não aparecem<br />

na ficha.<br />

Sínodo em Colônia<br />

O menino Henrique IV lança-se ao rio para fugir de<br />

Santo Annon - Academia de Berlim, Alemanha<br />

madores, já avisados, puseram a embarcação em movimento,<br />

afastando-a da ilha.<br />

A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, promoveram<br />

um grande tumulto, e o menino-rei, amedrontado,<br />

atirou-se ao rio.<br />

O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de<br />

São Gregório VII, mais tarde.<br />

O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trouxe<br />

de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV<br />

para uma das salas e teve com ele uma longa conversa,<br />

convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada<br />

uma assembleia de nobres para discutirem a situação.<br />

Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuniram<br />

e, depois de se informarem dos acontecimentos,<br />

decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em<br />

cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em<br />

Colônia, o regente seria Santo Annon.<br />

Que era Arcebispo de Colônia...<br />

A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido<br />

por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e reconheceu<br />

a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de<br />

Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe<br />

posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.<br />

Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o papel<br />

decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas<br />

também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas outras<br />

ocasiões.<br />

É lamentável ver como a notícia dessas grandes figuras<br />

se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade!<br />

Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu<br />

28


Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! Santo<br />

Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu<br />

me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de<br />

uma imagem de Santo Annon bon parleur 2 , de espada na<br />

mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organizando<br />

as coisas. Como isso faria bem!<br />

Diferença entre o pecador medieval<br />

e o pecador filho da Revolução<br />

Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha recolhido<br />

a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um<br />

dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um espetáculo<br />

só possível na Idade Média: a Imperatriz apresentou-se<br />

às portas da cidade, vestida como penitente, descalça<br />

e com uma corda ao pescoço, rogando permissão para<br />

entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quanto<br />

tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a absolveu<br />

de todos os pecados e daí em diante, até a morte do<br />

Cardeal, foi seu confessor.<br />

Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Damião,<br />

reconheceu ter andado mal criando entraves ao<br />

movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim<br />

era a penitência na Idade Média, época que se poderia<br />

caracterizar pela radicalidade: O indivíduo cometia, às<br />

vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia,<br />

praticava também penitências de arrepiar.<br />

Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, recolhe-se<br />

a um convento para cuidar de sua vida espiritual<br />

e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor,<br />

ela não seria obrigada a esse ato público de penitência.<br />

Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pedro<br />

Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível.<br />

Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis praticar<br />

um ato público de reparação, porque público tinha<br />

sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Roma,<br />

vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se dirige<br />

a uma igreja para pedir perdão.<br />

Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e penitente<br />

daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à<br />

direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!<br />

São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vestida<br />

pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se<br />

do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida<br />

ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude<br />

humilde, a alma deste santo Cardeal — louvava a grandeza<br />

da graça que opera tais transformações nas almas<br />

humanas. Isto é Idade Média!<br />

Talvez nunca se tenha falado tanto a respeito do perdão<br />

quanto em nossos dias. Fala-se, por vezes, até o abuso. A<br />

propósito de qualquer coisa se repete: “Ah, Deus perdoa!”<br />

Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber,<br />

poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou menos<br />

às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapareceu.<br />

As pessoas perderam este senso, não são lógicas, falta-lhes<br />

coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do<br />

pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam<br />

do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa<br />

é a mentalidade do homem contemporâneo.<br />

Comparem o pecador medieval com o pecador filho<br />

da Revolução, e verão a enorme diferença: um é suscetível<br />

de grandes arrependimentos à maneira de Davi;<br />

grandes regenerações e, eventualmente, até grande santificação.<br />

O outro, se é que tem um arrependimento sério,<br />

pede um perdãozinho superficial.<br />

Qual a causa desta diferença de atitude? Em última<br />

análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba<br />

no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gravidade<br />

dos pecados e de não fazer penitência, criando-se<br />

o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias<br />

de hoje.<br />

Quantos pecados cometidos<br />

em nossos dias<br />

mereceriam uma penitência<br />

pública! Nesses<br />

casos, um padre, antes<br />

de conceder a absolvição,<br />

agiria muito bem<br />

se exigisse uma reparação<br />

pública. Entretanto,<br />

a debilidade, o<br />

liberalismo, tantas vezes<br />

até no próprio confessor,<br />

criam esse clima<br />

crepuscular no qual estamos...<br />

Olhemos para figuras<br />

como a de Santo<br />

Annon e compreenderemos<br />

melhor a verdadeira<br />

fisionomia da<br />

Igreja. v<br />

(Extraído de<br />

conferência de<br />

29/3/1974)<br />

1) Do francês: pessoa que<br />

desenvolve conversa<br />

brilhante e atraente.<br />

2) Do francês: bom conversador.<br />

São Pedro Damião - Pinacoteca<br />

de Brera, Milão, Itália<br />

Reprodução<br />

29


Luzes da Civilização Cristã<br />

Estilo “condeano”:<br />

força e leveza<br />

Condé e Turenne foram brilhantes generais franceses<br />

do século XVII, que se caracterizaram por modos de ser<br />

bastante diferentes. O primeiro era intuitivo e fazia reflexões<br />

rapidíssimas e fulgurantes. Turenne, um homem que<br />

meditava e planejava. O feitio de inteligência do brasileiro é<br />

dado muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />

H<br />

ouve um Rei da França, Luís XIII, que passou<br />

à História com o bonito nome de Luís, o Casto,<br />

por sua enorme pureza de costumes. Era<br />

casado, aliás, com uma das mais nobres e belas princesas<br />

da Europa do seu tempo, Ana d’Áustria, Infanta da Espanha,<br />

Arquiduquesa d’Áustria e Rainha da França —<br />

não se pode possuir mais altos títulos!<br />

— e dela teve dois filhos:<br />

Luís XIV e Gaston d’Orléans.<br />

Versailles e Chantilly<br />

Além disso, era um bom general<br />

e homem valente na guerra.<br />

Não só capaz na direção das tropas,<br />

mas desses homens que se expõem,<br />

lutam e sabem ser os primeiros<br />

na hora do perigo, dando<br />

com isso exemplo aos seus soldados.<br />

É muito bela a conjunção dessas<br />

duas virtudes: a castidade e o<br />

heroísmo. A maior beleza dessa<br />

união de virtudes nós a temos em<br />

Santa Joana d’Arc, a virgem guerreira<br />

heroica, nascida na Lorena.<br />

A castidade é uma virtude cheia<br />

de delicadeza e de fragilidade. A<br />

coragem é uma virtude plena de<br />

fortaleza e de intrepidez. A jun-<br />

Siren Com (CC 3.0)<br />

Casamento de Luís XIII com<br />

Ana de Habsburg - Museu dos<br />

Agostinianos, Toulouse, França<br />

ção desses opostos forma uma verdadeira maravilha! São<br />

como duas partes de uma ogiva que se unem para constituir<br />

um todo harmônico muito bonito.<br />

No dia 13 de maio de 1643, esse rei, ainda relativamente<br />

jovem, estava prestes a falecer, vítima da tuberculose,<br />

quando viu, perto de sua cama, em pé, um parente<br />

muito próximo: o Príncipe de<br />

Condé.<br />

Os Condé constituíam um ramo<br />

colateral da Casa Real francesa.<br />

Um ramo que se caracterizou,<br />

até sua extinção no século<br />

XIX, pelo esplendor da vida e<br />

pela coragem. Para termos ideia<br />

do esplendor da vida consideremos<br />

o seguinte: Os reis da França,<br />

pertencentes ao ramo primogênito<br />

da Casa Real francesa, tinham<br />

muitos castelos magníficos, cada<br />

um melhor do que o outro. Basta<br />

pensar em Versailles para compreender<br />

a magnificência em que<br />

vivia o ramo primogênito da Casa<br />

Real francesa.<br />

Naturalmente, o ramo dos<br />

Condé, que era um ramo de príncipes,<br />

mas colateral, tinha como<br />

castelo de grande importância<br />

apenas um: o castelo de Chantilly.<br />

No tempo de Luís XIV, o Prínci-<br />

30


pe de Condé estava construindo<br />

este edifício, o qual estava ficando<br />

tão bonito que Luís XIV mandou<br />

dizer a ele que recomendava<br />

não embelezá-lo ainda mais, porque<br />

poderia fazer sombra ao ramo<br />

principal da Casa Real. Com<br />

um castelo só, eles sabiam elevar-<br />

-se e dignificar-se tanto que o ramo<br />

primogênito da Casa Real sentiu-se<br />

como que em xeque, para<br />

não dizer xeque-mate, se a beleza<br />

de Chantilly continuasse a se aprimorar.<br />

Quando conheci Chantilly, a<br />

primeira coisa que me veio ao espírito<br />

foi esse temor de Luís XIV.<br />

Eu já tinha visitado Versailles, conhecia<br />

o Louvre, Fontainebleau, os<br />

principais castelos reais da França.<br />

Sem dúvida nenhuma, se aprimorassem<br />

ainda mais Chantilly, era<br />

um xeque-mate para a Casa Real.<br />

Batalha do ”Rochedo do Rei”<br />

Reprodução<br />

Compreendemos, então, o valor desse ramo colateral<br />

que com menos recursos sabia se valorizar até se elevar<br />

a esse ponto. Mas sem uma rivalidade baixa com o<br />

ramo primogênito. Pelo contrário, servindo-o sempre<br />

muito bem, a tal ponto que, quando em fins do século<br />

XVIII arrebentou a Revolução Francesa, o Príncipe<br />

de Condé, seu filho, o Duque de Bourbon, e seu neto,<br />

o Duque d’Enghien, lutaram como leões a favor do ramo<br />

primogênito. E extinguiu-se essa Casa porque o Duque<br />

d’Enghien, o mais moço da linha, foi morto por Napoleão.<br />

Como dizíamos, durante sua agonia Luís XIII notou,<br />

junto à sua cama, o Príncipe de Condé que assistia<br />

à morte do Rei. O monarca voltou-se, então, para o primo<br />

e disse:<br />

— Monseigneur, eu sei que o inimigo penetrou em<br />

nosso território com um grande e poderoso exército.<br />

Mas vosso filho rechaçará o ataque e acalmará a nossa<br />

ansiedade.<br />

Realmente, a França acabava de ser invadida e era<br />

um problema saber como conter o adversário que tinha<br />

transposto as fronteiras do país, mas ninguém prestou<br />

atenção ao delírio de um moribundo.<br />

No dia seguinte, portanto em 14 de maio, Luís XIII<br />

morreu e sua profecia tornou-se realidade. Cinco dias<br />

depois, o Duque d’Enghien, filho primogênito do Príncipe<br />

de Condé — todos os primogênitos<br />

dos Príncipes de Condé tomavam<br />

o título de Duque d’Enghien<br />

—, com 22 anos de idade, derrotava<br />

as forças espanholas, sob o comando<br />

de Francisco de Melo.<br />

A batalha teve lugar em Rocroi,<br />

uma comuna das Ardenas, em território<br />

francês, a duas milhas de<br />

distância do que é hoje o litoral belga,<br />

e cujo nome significa “Rochedo<br />

do Rei”. As tropas espanholas entraram<br />

pela Bélgica para invadir a<br />

França.<br />

Turenne: um monumento<br />

de reflexão<br />

A França teve, no século XVII,<br />

dois grandes generais: um era o<br />

Visconde de Turenne<br />

Príncipe de Condé 1 e o outro, o<br />

Visconde de Turenne. Este não era<br />

da Casa Real francesa, mas de uma<br />

família de nobres de categoria um pouco menor.<br />

Os memorialistas do tempo e os analistas da História<br />

francesa descrevem o modo dos dois combaterem, caracteristicamente.<br />

Turenne era um homem que meditava e<br />

planejava os cercos dele, até o último ponto. Quer se tratasse<br />

de estar cercado pelo adversário, ou de cercá-lo, ele<br />

era um espírito frio, lúcido, calmo, meticuloso, que preparava<br />

com muita antecedência todos os pormenores,<br />

para não acontecer nada na batalha que ele não tivesse<br />

previsto, à maneira de um jogo de xadrez impecável. Ele<br />

era um verdadeiro monumento de reflexão calma, madura,<br />

forte, mas inteiramente militar, técnica e científica.<br />

Turenne morreu já velho. Era protestante e converteu-se<br />

à Religião Católica, e dele disse Bossuet esta frase<br />

famosa: “Na juventude, ele tinha a maturidade de espírito<br />

de um adulto; maduro, ele conservava a força e o verdor<br />

da juventude.” É a teoria da soma das idades. Até o<br />

fim da vida, ele foi assim.<br />

A conversão dele foi difícil, porque sua família era<br />

convictamente protestante. Eles faziam parte dos chefes<br />

do grupo protestante na França. A mulher e a mãe dele<br />

fizeram tudo para ele não se converter. Mas a partir do<br />

momento em que ele se convenceu de que a Religião Católica<br />

era verdadeira, não houve quem o segurasse. Ele<br />

se converteu mesmo e disse para a mulher: “Querendo,<br />

vá embora. Eu agora sou católico.” A mulher cedeu, mas<br />

morreu sem se ter convertido.<br />

Vemos nisso o feitio do espírito deste general. Ele, para<br />

se converter, analisou a Religião, fez, por assim dizer,<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

o cerco da Religião como faria o cerco de uma fortaleza;<br />

percebendo que era verdadeira, entrou nela e se submeteu<br />

filialmente.<br />

Condé poderia ser comparado a uma águia<br />

Condé tinha um feitio de alma completamente diferente.<br />

Era muito vivo e podia ser comparado a uma<br />

águia. Muito esguio, esbelto, com um grande nariz curvo,<br />

adunco, característico da Casa de Condé. Até no momento<br />

da batalha, ele parecia um homem que pensava<br />

em outra coisa.<br />

Quando chegava na hora da luta, ele se apresentava,<br />

tomava conhecimento, tinha um olhar de relance da situação,<br />

e jogava-se como uma águia no ponto principal<br />

com um ímpeto tal que ele desbaratava. Em pouco tempo<br />

ele obtinha suas vitórias.<br />

O Príncipe de Condé era um homem muito refletido,<br />

mas com reflexões rapidíssimas. Pela forma de talento<br />

dele, a reflexão fazia-se no momento, e não lentamente.<br />

Cada um desses dois modos de ser tem seu mérito. É<br />

brilhante acertar de maneira fulgurante. Mas é brilhante<br />

também ver o espírito montar, peça por peça, o aspecto<br />

geral da verdade, e demonstrar. São duas modalidades,<br />

ambas criadas por Deus, para refletir a suprema e inatingível<br />

perfeição d’Ele, que é, ao mesmo tempo, o modelo<br />

de toda reflexão e de toda subtaneidade na facilidade<br />

divina e completa com que Ele cogita. Aí é a perfeição<br />

absoluta.<br />

A intuição corresponde a uma reflexão rapidíssima,<br />

fulgurante. O feitio de inteligência do brasileiro é dado<br />

muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />

Temos, então, a explicação sobre como, aos 22 anos<br />

de idade, Condé — nessa ocasião Duque d’Enghien — já<br />

pudesse ser um tão grande general. Ele pertencia a uma<br />

família onde todo mundo tinha sido grande batalhador,<br />

grande guerreiro e, alguns, generais. Essa atmosfera militar<br />

impregnava o ambiente em que ele viveu, no qual se<br />

conversava sobre batalhas, planos estratégicos, como em<br />

famílias de hoje se conversa sobre automóvel, programas<br />

de rádio e televisão. O resultado é que ele já era todo<br />

modelado por isso.<br />

As famílias, naquele tempo, eram escolas de fazer o<br />

que tinham realizado os antepassados. Havia dinastias,<br />

famílias inteiras de profissões também plebeias. Família<br />

de sapateiro, de carpinteiro, de relojoeiro, de pintor. A<br />

família subia, porque cada nova geração acrescentava alguma<br />

coisa ao savoir faire, ao know how da geração anterior.<br />

A pessoa era modelada pelo ambiente.<br />

Por essa forma de reflexão fulgurante, aos 22 anos ele<br />

já era um grande general. E a tal ponto que as batalhas<br />

dele se estudam nas escolas militares do mundo inteiro,<br />

como se estudam, por exemplo, as de Turenne e as de<br />

Napoleão, de Hindenburg, de Ludendorff, etc. Ficaram<br />

no curso da História. De tal maneira eram batalhas fulgurantemente<br />

pensadas e executadas.<br />

Gesto de elegância militar<br />

Siren Com (CC 3.0)<br />

Feita a descrição do personagem, consideremo-lo<br />

nesse quadro que representa o final<br />

da mais célebre de suas batalhas: a de Rocroi.<br />

Vemos um panorama campestre. Ao<br />

fundo, corre um rio, mais adiante um campanário<br />

e uma aldeiazinha. O rio plácido e<br />

tranquilo, onde não se combateu, contrasta<br />

com o número de pessoas que se acotovelam<br />

nessa cena. Há dois grupos bem diversos:<br />

os franceses e os espanhóis. Estes<br />

últimos estão a pé.<br />

Notam-se, na primeira fila, alguns mortos,<br />

um tambor furado. Do outro lado,<br />

os franceses. O futuro Príncipe de Condé,<br />

no centro; mais para trás a figura de<br />

um guerreiro, homem perto dos 60 anos,<br />

mas de uma maturidade extraordinária,<br />

guerreando, combatendo, olhando para<br />

o Condé com muita atenção; o séquito<br />

francês que vem vindo atrás. No meio de<br />

uma poeira cheia de luz, uma mão que<br />

levanta uma espada. Na primeira fileira,<br />

32


Reprodução<br />

dois cavaleiros que se dirigem a Condé, e aos quais Condé<br />

faz um gesto com a mão.<br />

A batalha havia sido ganha pelos franceses, e os espanhóis<br />

tinham estabelecido um entendimento, uma espécie<br />

de armistício, quando se produziu nas hostes espanholas<br />

uma agitação, que alguns franceses interpretaram<br />

como sendo espanhóis que queriam romper o acordo e<br />

recomeçar o ataque. Então, os franceses se dispuseram<br />

a atacar. Condé recebeu a informação de se tratar de um<br />

engano, não passando de um movimento interno das tropas<br />

espanholas. Levado pelo respeito devido aos derrotados<br />

cavalheirescos e de boa-fé, e em particular ao exército<br />

espanhol, que na época era um dos primeiros da Europa,<br />

ele fez cessar imediatamente o ataque que os franceses<br />

iam perpetrar contra os vencidos, por um equívoco.<br />

Razão pela qual Condé faz um sinal tranquilizador. O<br />

gesto de mão é muito significativo nesse sentido. Nota-se<br />

também que, enquanto as tropas francesas vêm avançando,<br />

ele está freando o cavalo dele. Toda a sua atitude é de<br />

quem para o cavalo e contém o ataque da cavalaria francesa,<br />

e pacifica uma situação que poderia dar numa chacina.<br />

Esse é o bonito gesto de elegância militar que o pintor<br />

quis guardar.<br />

Por causa das tradições de Cavalaria, enigmaticamente<br />

representadas nesse quadro, os antigos tinham a preocupação<br />

de tratar sempre o vencido digno, com muita honra.<br />

Era uma vergonha para um vencedor esmagar o derrotado<br />

de um modo inumano e humilhá-lo. Batiam-se rudemente<br />

enquanto durava o combate. Cessado este, era a hora<br />

da cortesia, da reverência, da distinção de parte a parte.<br />

Aqui vemos, então, Condé cumprir esse dever de cavalheiro.<br />

Ele, vitorioso, contém os franceses e, com isso, salva<br />

os vencidos. É a velha Cavalaria que ainda se encontra aí.<br />

A manifestação enigmática da velha Cavalaria, para<br />

a qual eu não encontrei uma explicação, é uma figura<br />

medieval, completamente anacrônica, toda revestida de<br />

couraça medieval e de plumas, e que está meio fora do<br />

ambiente. Ninguém mais usava, nesse tempo, esse armamento.<br />

O personagem parece estar posto numa luz onde<br />

se tem um pouco a impressão de não se tratar de um ser<br />

vivo, mas de um fantasma. O que significará esse fantasma?<br />

Será a velha Cavalaria, símbolo que paira sobre essa<br />

cena cavalheiresca? Também não sei.<br />

Importância dos matizes<br />

Descrevi o quadro com todos os seus detalhes para<br />

ajudá-los a tomar o gosto pelo pormenor. O sabor de todas<br />

as coisas está no pormenor. Talleyrand dizia que a<br />

verdade está nos matizes. Todas as verdades são cheias<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

de matizes. Saber matizar é saber pensar; e saber pensar<br />

é saber viver.<br />

Notem quantos matizes aparecem nessa cena! Vemos<br />

aflição nesses dois cavaleiros e, ao mesmo tempo, a inteira<br />

calma desse espanhol de pé, com um grande chapéu,<br />

camisa e ampla gola branca. Ele percebeu a distinção<br />

e a nobreza da atitude do Condé, fazendo sinal para<br />

seus compatriotas não atacarem, por se tratar de um mero<br />

equívoco. Outro atrás, vencido, aclama o gesto de fidelidade<br />

de Condé. Notamos aí a glória de Condé, a confiança<br />

e a admiração do vencido. Isso não está escrito,<br />

mas está expresso. É um quadro com um pensamento.<br />

Atrás de Condé vemos aquele velho cavaleiro francês.<br />

Notem o jeito dele. Sem dúvida nenhuma, é um nobre. É<br />

também um homem muito varonil, corpulento, e se percebe<br />

que passou a vida inteira batalhando. Ele tem no<br />

chapéu uma pluma branca que parece um pouco de névoa<br />

a flutuar nas dobras de seu chapéu, como se fosse<br />

um resto de glória da batalha da qual ele acaba de tomar<br />

parte. Ele usa uma capa azul-claro, com uma espécie<br />

de bordado dourado. Dir-se-ia até que um azul tão claro<br />

não fica bem para o traje militar de um homem. Entretanto,<br />

para esse homem não fica perfeitamente bem?<br />

Tão varonil é ele, que pode usar isso, e até o que ele poderia<br />

ter de um pouco rude demais é atenuado agradavelmente<br />

pelo azul-claro da capa por ele usada.<br />

Eis uma das características do senso de matiz do francês:<br />

veste o herói de azul bem claro. Um bobo diria:<br />

“Efeminado!” Mas dizer que esse homem é efeminado<br />

é ridículo. Ele é um patriarca, um senhor feudal de grande<br />

porte, presente na batalha. E assim como, no momento,<br />

encontra-se sereno, daqui a dois ou três minutos pode<br />

estar matando ou morrendo, porque está inteiramente<br />

disposto a tudo. É um leão!<br />

Fórmula francesa do heroísmo<br />

Essa é a fórmula francesa do heroísmo e da coragem.<br />

Há várias formas. Não é esta a única modalidade bonita.<br />

Há a fórmula alemã — lindíssima! —, a fórmula espanhola<br />

e tantas outras. A francesa é a do leão com rendas,<br />

enfeitado com cores claras. Alguém poderia estranhar.<br />

Se estranhar é porque não entendeu. E se não entendeu,<br />

é uma pena para ele. Porque é uma lástima alguém não<br />

entender isso.<br />

Vejam os contrastes finos apontados pelos matizes. Para<br />

dar uma ideia de até que ponto esse guerreiro é um homem<br />

varonil, concorre a espada que ele não está brandindo.<br />

Percebe-se que, quando ele a brande, é assim. Esse<br />

pormenor compõe o aspecto guerreiro do homem.<br />

Notem para onde ele está olhando. Não é para a batalha,<br />

mas para o Condé. Imagem da disciplina militar, ele<br />

olha para o chefe. O que este mandar, ele fará. Se o comandante<br />

disser: “Mate cinco mil, ou morra”, ele vai<br />

para a frente e morre, na tentativa de matar os cinco<br />

mil. Se, pelo contrário, o chefe disser: “Embainha tua<br />

espada”, ele a embainha. É a fidelidade feudal não apenas<br />

na vida civil, mas transposta para o terreno militar,<br />

e na sua perfeição. Ele olha para o Condé, porque o<br />

próprio do grande senhor é olhar para o príncipe, como<br />

o príncipe olha para o rei, como o rei olha para Deus. É<br />

a hierarquia das coisas.<br />

Chegou o momento de analisarmos o Condé. Notem,<br />

antes de tudo, suas feições. O enorme nariz, que<br />

se projeta decididamente para a frente, tem a forma<br />

e o gráfico da coragem. Ele é ainda muito moço, com<br />

as características de certo tipo de francês do Norte,<br />

mais chegado ao alemão: pele clara, corada,<br />

cabelos louros, longos e cacheados. Características<br />

da raça. É um tipo de herói<br />

que exprime a coragem e a força<br />

francesas.<br />

O soldado alemão, por exemplo,<br />

faz sentir a sua força pela sua<br />

corpulência atlética, pelo seu desassombro<br />

e pelo impulso físico<br />

e moral. O francês é muito mais<br />

esguio, fino. A sua capacidade<br />

de força não é dada tanto pela<br />

quantidade quanto pela qualidade<br />

dos músculos. São músculos<br />

que não precisam ser bolas<br />

para dobrar e quebrar o adversário.<br />

A etimologia da palavra<br />

“músculo” vem do latim, mus,<br />

que significa rato. Músculo é o diminutivo<br />

latino de rato, e quer dizer<br />

ratinho. Quando o músculo se<br />

contrai, forma à maneira de um ratinho<br />

debaixo da pele.<br />

O guerreiro francês não tem “ratinhos”<br />

por debaixo da pele, como teriam, por exemplo,<br />

certos atletas da escultura renascentista italiana. O Moisés<br />

de Michelangelo, por exemplo, é uma coleção de “ratos”.<br />

O francês não precisa disso. Possui nervos de aço<br />

que não formam bola, pois tudo nele é harmônico.<br />

O cavaleiro medieval exprime o grau<br />

de perfeição a que chegou a Cristandade<br />

No Condé percebemos uma característica muito bonita:<br />

na fragilidade dele, a intensidade de alma. Quando<br />

ele ataca, ninguém resiste.<br />

34


Chamo a atenção para o olhar: é um olhar dominador.<br />

Muito mais do que o nariz é o olhar, o qual se percebe<br />

pela atitude da cabeça. O que comanda o olhar é a posição<br />

da cabeça. Vejam a posição do pescoço e da cabeça<br />

dele. O pescoço está completamente ereto, mas não<br />

de um modo provocativo. É natural nele ser superior. A<br />

cabeça está posta de tal maneira que ele, naturalmente,<br />

fica de cima em relação a qualquer pessoa que ele olhe.<br />

De onde o gesto protetor é de uma bondade que deflui<br />

do alto. Ele está inteiramente seguro. Notem a mão dele<br />

com um dedo afastado do outro, com naturalidade, como<br />

quem diz: “Tranquilizem-se! Eu vou manter o pacto.<br />

Não há nada.” Mas com a bondade de um vencedor.<br />

Aqui está o cavaleiro perfeito.<br />

Um comentário sobre seu traje. É o gosto dos franceses<br />

de adornar a coragem com cores claras, ligeiras. Ele usa<br />

um paletó de um dourado muito claro e delicado, quase<br />

creme, que deixa transparecer perfeitamente o corpo dele<br />

bem delineado, com os ombros muito mais largos do que<br />

a bacia. Ele tem uma faixa azul da qual pende a insígnia<br />

da Ordem do Espírito Santo, e uma grande gola de renda.<br />

Sobre seu chapéu ele traz plumas muito mais magníficas<br />

do que as daquele personagem atrás dele. São plumas<br />

ligeiras, branquíssimas, formando uma espécie de rastro,<br />

como a dizer: “Ele passa, mas a glória deixa um sulco<br />

atrás dele. Ele meneia a cabeça e a glória esvoaça em torno<br />

dele.” Essas plumas brancas para um general são quase<br />

o que é uma auréola para um santo.<br />

O cavalo do Condé é uma perfeição, porque é no reino<br />

dos cavalos o que o Condé é no reino dos homens. É<br />

um cavalo de guerra francês. Quer dizer, raça apurada<br />

Augusto Ferrer (CC 3.0)<br />

pelos franceses. Não é desses cavalões. Não<br />

sei se conhecem um tipo de cavalo chamado<br />

percheron, para arrastar carga. Enormes patas,<br />

uma coisa fenomenal. Não deixa de ter<br />

sua graça. Mas não é isso. Esse é um cavalo<br />

ligeiro, feito para pular por cima dos adversários,<br />

muito mais do que para achatá-los; que<br />

mais vence voando do que esmagando. Mas<br />

cuja pata é certeira e cujos músculos são como<br />

os do Condé. Não há “ratinhos” ali, como<br />

terá talvez o percheron. A musculatura do<br />

cavalo do Condé é enxuta, simples, vigorosa.<br />

Vejam a vivacidade dele; é como a vivacidade<br />

do Condé!<br />

Compreendemos, assim, o estilo “condeano”<br />

de combater. A intuição está nele. O homem<br />

entra no campo de batalha, olha, intui<br />

e avança.<br />

Se eu tivesse que dar um título a este quadro,<br />

diria: Garbo é igual a força mais leveza.<br />

Força e leveza dão o “condeano”.<br />

O quadro tem espírito medieval no sentido de que<br />

afirma muito o esplendor da condição militar e seu caráter<br />

aristocrático e nobre. De maneira que até os plebeus<br />

presentes na cena têm algo de nobilitado pela condição<br />

militar. Essa glorificação da condição militar é uma característica<br />

medieval.<br />

Contudo, não possui o espírito medieval pelo fato de<br />

os principais personagens do quadro fazerem a guerra<br />

como se partissem daí para uma dança; eles estariam<br />

prontos para uma festa. Ora, para a morte a pessoa não<br />

se prepara assim. Há o Juízo, a grandeza do destino eterno<br />

do homem, a majestade infinita de Deus, a majestade<br />

da morte que roça por cada um na batalha, que suporia<br />

mais gravidade e, consequentemente, maior audácia e<br />

maior beleza também. Por isso, aquele personagem meio<br />

mítico colocado ali é, neste sentido, superior ao Condé,<br />

pois é mais religioso.<br />

O cavaleiro medieval, a meu ver, exprime o grau de<br />

perfeição a que foi dado à Cristandade chegar, até o momento.<br />

No Reino de Maria atingirá incomparavelmente<br />

mais alto, porque São Luís Grignion de Montfort diz que<br />

os Santos do Reino de Maria vão ser para os anteriores como<br />

os carvalhos em relação às graminhas. Então, as belezas<br />

da Cristandade serão como graminhas em comparação<br />

com as da Civilização Cristã do Reino de Maria. v<br />

(Extraído de conferência de 5/3/1977)<br />

1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 - †1686), conhecido<br />

como “O Grande Condé”, que venceu a Batalha de Rocroi.<br />

35


“Virgen de la Antigua”<br />

Catedral de Sevilha,<br />

Espanha<br />

Felix Cæli Porta<br />

N<br />

a hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus,<br />

a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre<br />

Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente,<br />

Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá<br />

ao mundo o Filho que Ela gerou.<br />

Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como<br />

uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura<br />

o Verbo de Deus encarnado!<br />

(Extraído de conferência de 2/7/1995)<br />

Francisco Lecaros

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