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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>213</strong> Dezembro de 2015<br />
Natal: Fé e Inocência
Martírio de São Tomás<br />
Becket - Catedral de<br />
Lisieux, França<br />
Sergio Hollmann<br />
S<br />
Sentinela, mesmo após a morte<br />
ão Tomás Becket, assassinado por defender<br />
os direitos eclesiásticos contra os abusos<br />
do poder temporal na Idade Média, foi<br />
mártir da liberdade da Igreja.<br />
Homenageado pelos ingleses durante quatro<br />
séculos, teve seus restos mortais profanados e<br />
destruídos por ordem do Rei Henrique VIII<br />
que, ao proclamar-se chefe da igreja anglicana,<br />
deliberou injuriar as relíquias daquele<br />
que morrera para que tal usurpação não<br />
se desse.<br />
Nessa execução póstuma há uma verdadeira<br />
glória para São Tomás Becket: ser odiado<br />
pelos maus e sofrer perseguição por amor a<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Este Santo, até depois de morto, constituía<br />
uma barreira para os inimigos da Igreja.<br />
Foi preciso remover esse obstáculo para que<br />
a caudal da heresia pudesse continuar. Ora,<br />
um homem que, deitado inerte no seu jazigo,<br />
representa ainda uma sentinela pela qual só<br />
se passa eliminando-a, é uma verdadeira beleza!<br />
Santa Teresinha do Menino Jesus dizia que<br />
ela passaria seu Céu fazendo bem sobre a<br />
Terra. São Tomás Becket, à maneira dele,<br />
fez isto: quatrocentos anos após seu martírio,<br />
seu corpo era uma trincheira e um pavor<br />
para os adversários.<br />
(Extraído de conferência de 28/12/1968)<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVIII - Nº <strong>213</strong> Dezembro de 2015<br />
Ano XVIII - Nº <strong>213</strong> Dezembro de 2015<br />
Natal: Fé e Inocência<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
venera a imagem<br />
do Menino Jesus<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Comum .............. R$ 130,00<br />
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Exemplar avulso ....... R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
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Editorial<br />
4 Voltemo-nos para o Menino Jesus...<br />
Piedade pliniana<br />
5 “Filho, eis aí tua Mãe”<br />
Dona Lucilia<br />
6 Um dia de Natal com<br />
Dona Lucilia<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
10 O olhar de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo<br />
Reflexões teológicas<br />
14 Riquezas do conhecimento por<br />
conaturalidade - I<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
18 Organicidade e inocência<br />
Calendário dos Santos<br />
22 Santos de Dezembro<br />
Hagiografia<br />
24 Santo Annon: energia e astúcia<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 Estilo “condeano”: força e leveza<br />
Última página<br />
36 Felix Cæli Porta<br />
3
Editorial<br />
Voltemo-nos para o<br />
N<br />
Menino Jesus...<br />
a expectativa de mais um Natal, e na comemoração dos 107 anos do nascimento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />
meditemos uma mensagem natalina gravada por ele em 1992, cuja atualidade permanece e<br />
faz-se, hoje, muito mais clamorosa do que há duas décadas.<br />
Nós nos encontramos numa situação dominada completamente pelo caos. Não há um aspecto da<br />
vida política internacional contemporânea na qual não se note a confusão.<br />
Junto ao berço do Menino Jesus não é o momento de estarmos rememorando tantas atitudes mal<br />
feitas, mal pensadas, mal planejadas, porque não as presidiu o Espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
O segredo da organização adequada de todas as coisas da vida terrena se encontra na canção que<br />
os Anjos entoaram, na noite de Natal, para os pastores maravilhados: “Glória a Deus no mais alto<br />
dos Céus e paz na Terra aos homens de boa vontade.”<br />
Quando todos os homens reconhecem a majestade, a onipotência, a santidade, enfim, o acúmulo<br />
de todas as perfeições que há em Deus, no mais alto dos Céus, e O glorificam por isso, então nascem<br />
no coração dos homens aquelas boas disposições de espírito pelas quais eles se tornam homens<br />
de boa vontade.<br />
Se nos lembrarmos de que essa noite de Natal é uma noite de misericórdia e de bondade, de perdão<br />
e de esperança, que próxima ao berço do Menino Jesus está Nossa Senhora — cuja prece junto<br />
a seu Divino Filho é onipotente — e que Ela tem um coração de Mãe que ama mais cada um dos homens<br />
do que todas as mães do mundo amariam a seu filho único, e que, portanto, Ela está na disposição<br />
de nos obter do Divino Infante o perdão de nossas faltas, a emenda de nossos erros e defeitos, e<br />
o propósito firme de seguir em tudo a Lei de Deus, se tomarmos isso em consideração, compreenderemos<br />
que, por mais forte que seja o mal, todas as portas da esperança estão abertas para nós, desde<br />
que nos voltemos para o Menino Jesus nascido em Belém.<br />
É para essa esperança consoladora que eu quero atrair a atenção de todos.<br />
Desejo que, quando os sinos tocarem à meia-noite anunciando que o Natal chegou, os povos estiverem<br />
se dirigindo, tranquilamente, para assistir ao Santo Sacrifício da Missa, e as famílias forem, em<br />
grupos, rezar aos pés do Santo Presépio, todos se lembrem dessa grande esperança e, deixando de lado<br />
as aflições da hora presente, compreendam o que disse o Apóstolo: “Jesus Cristo é o mesmo ontem,<br />
hoje e sempre.”(Hb 13, 8). 1<br />
1) Excertos da mensagem de Natal de 18/11/1992.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
“Filho,<br />
eis aí tua Mãe”<br />
Repousais, Senhor,<br />
em vosso mísero<br />
e augustíssimo<br />
presépio, sob os olhos<br />
da Virgem, vossa Mãe,<br />
que vertem sobre Vós os<br />
tesouros inau feríveis de<br />
seu respeito e de seu carinho.<br />
Jamais uma criatura<br />
adorou com tão profunda<br />
e respeitosa humildade<br />
o seu Deus. Nunca<br />
um coração materno<br />
amou mais ternamente<br />
seu filho. Reciprocamente,<br />
jamais Deus<br />
amou tanto uma mera<br />
criatura. E nunca filho<br />
amou tão plena, inteira<br />
e superabundantemente<br />
sua mãe.<br />
Toda a realidade desse<br />
sublime diálogo de almas<br />
pode conter-se nestas<br />
palavras que indicam<br />
aqui todo um oceano de<br />
felicidade, e que em ocasião<br />
bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí o teu filho.<br />
Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26-27). E, considerando a perfeição deste recíproco<br />
amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta<br />
das profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz<br />
na Terra aos homens por Ele amados.” (Lc 2, 14).<br />
v<br />
(Extraído de “Catolicismo”, dezembro de 1963)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Um dia de Natal<br />
com Dona Lucilia<br />
Neolexx (CC 3.0)<br />
Num ambiente pleno de<br />
harmonia, serenidade e alegria,<br />
Dona Lucilia organizava em sua<br />
residência a festa de Natal para<br />
seus filhos e outros parentes<br />
em idade infantil. As crianças,<br />
de mãos dadas e cantando,<br />
dirigiam-se até o presépio diante<br />
do qual ela puxava as orações.<br />
Tudo era profundamente<br />
marcado pela Fé e inocência.<br />
C<br />
omo toda criança, passei muitos Natais com minha<br />
mãe. Ela era o centro da família no que diz<br />
respeito ao trato com os pequenos, porque ti-<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
6
nha um jeito extraordinário para isso, e um<br />
carinho imenso cujo transbordamento<br />
agradava enormemente aos filhos,<br />
antes de tudo, mas naturalmente<br />
também aos sobrinhos e demais<br />
crianças de uma família numerosa.<br />
Cores, sabores e o<br />
perfume do Natal<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
A festa de Natal fazia-se<br />
na casa de minha avó, mãe<br />
de Dona Lucilia, onde morávamos.<br />
Era uma casa antiga<br />
com porão alto, onde havia<br />
uma sala de estudos para<br />
minha irmã e eu. Nos dias<br />
de Natal essa sala era transformada<br />
completamente. Dona Lucilia<br />
comprava nos arredores de<br />
São Paulo um pinheiro e, auxiliada<br />
por nossa governanta alemã, a Fräulein<br />
1 Mathilde, decorava a árvore com figurinhas<br />
de anjos, de santos, velas acesas, bolas coloridas<br />
e — o que eu apreciava sobremaneira — balas,<br />
bombons, chocolates pendurados na própria árvore.<br />
Como o número de velazinhas era muito grande, pegava<br />
um pouco de fogo nas folhas do pinheiro, nas pontinhas,<br />
donde se desprendia um aroma muito agradável<br />
que, para mim, passou a representar o perfume do Natal.<br />
Além disso, nos quatro ângulos da sala eram dispostas<br />
mesas repletas de iguarias doces e salgadas.<br />
Durante a decoração, a entrada das crianças na sala<br />
estava proibida.<br />
Em certo momento, as crianças se reuniam todas<br />
numa sala superior do prédio, desciam pelo lado de<br />
fora, por uma escada de mármore que dava acesso<br />
ao jardim, e entravam na sala de estudos. Iam todas<br />
de mãos dadas e cantando canções de Natal,<br />
em geral alemãs, porque a nossa governanta e a<br />
dos meus primos eram germânicas e nos ensinavam<br />
essas músicas.<br />
Cânticos e preces diante do presépio<br />
Por exemplo, a famosa canção que na versão<br />
portuguesa se traduz por “Noite Feliz”:<br />
Stille Nacht! Heilige Nacht!<br />
Alles schläft, einsam wacht<br />
Nur das traute hoch heilige Paar...<br />
Stille Nacht quer dizer noite silenciosa;<br />
heilige Nacht, noite santa. Alles schläft,<br />
tudo dorme; einsam wacht, só está<br />
acordado; nur das taute hoch heilige<br />
Paar, o respeitável e altamente<br />
santo casal — eram Nossa Senhora<br />
e São José —; e depois a<br />
letra continua contando como<br />
foi a noite de Natal.<br />
Descíamos a escada, passávamos<br />
pelo jardim, entrávamos<br />
na sala e formávamos<br />
um círculo em torno da árvore<br />
de Natal, junto à qual<br />
continuávamos a cantar,<br />
dando voltas.<br />
Em certo momento, parávamos<br />
e mamãe se ajoelhava<br />
diante do presépio, cuidadosamente<br />
colocado ao pé da árvore.<br />
Este gesto era imitado por todas<br />
as crianças que repetiam, em coro,<br />
as orações rezadas por ela.<br />
Terminadas as preces, todos se levantavam<br />
e começava a outra parte da festa: a criançada<br />
avançava sobre os enfeites comestíveis da árvore e<br />
sobre as guloseimas dispostas nas mesas e, com o apetite<br />
“feroz” próprio à idade, comiam bastante! Eu era<br />
dos capitães da comilança. Naturalmente, saía muita<br />
conversa, brincadeira, bem ao sistema brasileiro...<br />
Dona Lucilia, em pé, muito afetuosamente mantinha<br />
as coisas em ordem, auxiliada pelas duas governantas.<br />
Quando todos estavam satisfeitos, subíamos novamente<br />
cantando para a sala de onde tínhamos saído e<br />
ali nos despedíamos, retirando-se cada qual para sua<br />
casa.<br />
Atração pela cor de um vidro<br />
de goma arábica<br />
Engana-se quem pensa que estava terminada a Noite<br />
de Natal. O melhor estava por começar...<br />
Na São Paulo daquele tempo, muito menor que a de<br />
hoje, havia apenas umas quatro ou cinco lojas grandes de<br />
brinquedos, mas essas tinham artigos esplêndidos, importados<br />
da Europa.<br />
Nas semanas que antecediam o Natal, Dona Lucilia<br />
acompanhava minha irmã e eu a essas lojas para nos ajudar<br />
um pouco na escolha dos presentes e evitar que escolhêssemos<br />
bobagem. Quando a criança é muito pequena,<br />
às vezes, escolhe umas verdadeiras bobagens.<br />
7
Dona Lucilia<br />
Reprodução<br />
Riccosta (CC 3.0)<br />
Serra de São Domingos e vista da cidade<br />
em 1870 - Poços de Caldas, Brasil<br />
Abro aqui um parêntese. Lembro-me de que numa<br />
ocasião, de passagem por Poços de Caldas, onde pousamos<br />
para seguir viagem no dia seguinte, Dona Lucilia estava<br />
muito cansada e deitou-se logo, enquanto meu pai,<br />
<strong>Dr</strong>. João Paulo, foi dar um giro pela praça pública da cidade,<br />
com a minha irmã e comigo.<br />
Passamos perto de uma loja com vitrines iluminadas<br />
onde havia uns vidros de goma arábica. Tratava-se de<br />
uma papelaria e, por coincidência, aquela luz batia muito<br />
forte na goma arábica, causando-me a impressão de<br />
uma cor linda.<br />
Disse, então, a meu pai:<br />
— Papai eu estava querendo um presente do senhor.<br />
— O que é?<br />
— Eu queria este vidro aqui.<br />
— Mas é uma extravagância, não tem bom senso! O<br />
que você vai fazer disso?<br />
— Pôr contra a luz para<br />
olhar a cor em casa, porque<br />
é muito bonita.<br />
— Não tem propósito! Se<br />
você me pedisse um brinquedo<br />
eu comprava, mas isso aí<br />
não! Não tem um brinquedo<br />
aqui que você queira?<br />
Não tinha, e a coisa ficou<br />
por isso mesmo.<br />
Soldadinhos de<br />
chumbo<br />
Eu gostava muito de soldadinhos<br />
de chumbo, pois<br />
era muito militarista. E nas<br />
casas de que falei, principalmente<br />
uma alemã chamada<br />
“Fuchs” — que significa raposa,<br />
em alemão —, havia<br />
peças muito boas: soldados de cavalaria,<br />
com couraça, elmo e espada na mão, ou<br />
tocando corneta; a última palavra do excelente!<br />
Soldados alemães, franceses, marinheiros<br />
ingleses, enfim, de toda espécie.<br />
Eu gostava enormemente!<br />
Havia também outros brinquedos formativos<br />
como, por exemplo, uns apetrechos<br />
para construir casas, barragens, etc.<br />
com uma massa colorida especial com a<br />
qual a criança modelava sua construção.<br />
Ou, ainda, outro brinquedo muito apreciado: trenzinho<br />
elétrico.<br />
Indicávamos o brinquedo desejado a fim de ser feito<br />
o pedido a São Nicolau, que no-lo traria na Noite de<br />
Natal.<br />
São Nicolau, — para os que não sabem — foi um bispo<br />
da cidade de Mira, na Ásia Menor. Ele tinha muita<br />
pena de certas famílias que, por reveses na fortuna, empobreceram.<br />
Por vezes, eram famílias de elevada categoria<br />
social, cujos chefes sentiam-se constrangidos e envergonhados<br />
de pedir esmolas.<br />
Então, São Nicolau arranjava um jeito de pedir esmolas<br />
e entregá-las para essas famílias, sem que soubessem<br />
quem as estava ajudando, poupando-as, desta maneira,<br />
da vergonha de pedir esmola. E, na noite de Natal, o santo<br />
prelado passava pelas casas e jogava o presente pela<br />
janela aberta e saía correndo.<br />
Estabeleceu-se, assim, a tradição segundo a qual, em<br />
todas as residências católicas do mundo, São Nicolau<br />
passava e deixava presentes para as crianças.<br />
8
“Como<br />
São Nicolau acertou;<br />
que maravilha!”<br />
Era a alegria de<br />
um dia bonito, com<br />
o jardim florido, a<br />
grama verde, e as<br />
delícias do Natal que<br />
se prolongavam.<br />
Cenas da vida de<br />
São Nicolau<br />
(por Fra Angelico)<br />
Pinacoteca Vaticana<br />
Reprodução<br />
Mamãe me perguntava: “Então, o que você quer que<br />
São Nicolau lhe traga?” E eu enumerava alguns dos brinquedos<br />
dos quais mais havia gostado.<br />
O presente de São Nicolau<br />
Após a comemoração acima descrita, quando íamos<br />
nos deitar, Dona Lucilia nos dizia que durante a noite<br />
São Nicolau entraria em casa e deixaria presentes aos<br />
pés das nossas camas. Eu ficava assanhadíssimo, curioso,<br />
mas nunca tive a preocupação de encontrar São Nicolau,<br />
nem tentei surpreendê-lo colocando o presente junto à<br />
minha cama. Ademais, depois dessa noite de Natal assim<br />
tão cheia, eu ia dormir com tanto sono que não me passava<br />
pela mente a ideia de entrevistar São Nicolau, nem<br />
agradecê-lo, nem nada; eu caía na cama e dormia...<br />
Mas quando chegava certa hora da madrugada, eu ficava<br />
curioso em saber se São Nicolau já havia passado e<br />
deixado o presente. E sempre o pacote já se encontrava<br />
lá, porque Dona Lucilia, ao perceber que estávamos dormindo,<br />
entrava no meu quarto e no de minha irmã e punha<br />
os presentes.<br />
Às vezes, eu acordava durante a noite e sentia já o<br />
presente de São Nicolau pesando sobre meus pés. Mas<br />
eu fazia o seguinte raciocínio: “Se eu agora levantar, arrebentar<br />
os barbantes e abrir a caixa para ver o que São<br />
Nicolau trouxe dos vários presentes que escolhi, não vou<br />
ter a alegria de fazê-lo de manhã, à luz do dia, na qual tudo<br />
fica mais bonito e alegre.” E, além disso, era gostoso<br />
acordar de vez em quando durante a noite, sentir nos pés<br />
o peso do presente, conjecturar o que seria, rolar para o<br />
outro lado e dormir de novo.<br />
Mas chegava lá pelas sete, oito horas da manhã, eu<br />
acordava, e então era o momento de uma das alegrias<br />
máximas do Natal: arrebentar os barbantes, abrir o pacote<br />
e ver o que São Nicolau de fato tinha trazido. Em<br />
geral, era o brinquedo que eu mais queria, porque Dona<br />
Lucilia havia percebido qual era minha preferência e<br />
mandara comprar exatamente aquele.<br />
Eu brincava com aquilo até ela e meu pai acordarem.<br />
Então, eu levava o presente para a cama deles, e lhes<br />
mostrava a “grande novidade”: São Nicolau tinha entrado<br />
em casa e deixara o presente, e eu queria que eles<br />
vissem. Minha irmã fazia o mesmo. Eles se “surpreendiam”:<br />
“Como São Nicolau acertou; que maravilha!”<br />
Entretanto, logo se fazia ouvir uma voz imperativa<br />
que nos dizia: “Kinder, schnell!”— que quer dizer: Crianças,<br />
rápido!<br />
Era a Fräulein nos mandando andar depressa, nos<br />
aprontarmos, tomarmos nossa refeição matutina para, em<br />
seguida, brincar no jardim com o presente de São Nicolau.<br />
Era a alegria de um dia bonito, com o jardim florido, a<br />
grama verde, e as delícias do Natal que se prolongavam.<br />
Está contado como era um dia de Natal junto a Dona<br />
Lucilia.<br />
v<br />
1) Do alemão: Senhorita.<br />
(Extraído de conferência de 21/12/1991)<br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
O olhar de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
Ruy Carvalho (CC 3.0)<br />
Se numa noite sem luar<br />
contemplarmos com espírito de<br />
Fé o céu estrelado, ele produzirá<br />
grande efeito sobre nós. E nos<br />
fará lembrar algo infinitamente<br />
superior: o olhar do Redentor, no<br />
qual há galáxias de santidade, de<br />
virtudes que pousam sobre nós<br />
como uma abóbada protetora.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Q<br />
uando a pessoa se porta ordenadamente face à<br />
ordem do universo, pelo fato de seu próprio senso<br />
do ser procurar o maravilhoso nas coisas que<br />
constituem o universo que ela procura conhecer, tende<br />
ela a ver muito mais os aspectos espirituais do que os materiais<br />
nas criaturas que a circundam.<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
Catedral de Assunção, Paraguai<br />
10
O sentido da vida terrena<br />
Então, no exemplo tantas vezes utilizado da criança<br />
que busca o maravilhoso na teteia dourada, vermelha,<br />
azul, verde, etc., à medida que a criança vai se desenvolvendo,<br />
se ela tem, por exemplo, uma boa mãe, quando<br />
esta lhe oferece sorrindo a teteia, em certo momento, ela<br />
percebe estar querendo mais bem à mãe do que à teteia.<br />
Porque tomando contato, ao mesmo tempo, com dois seres<br />
excelentes — um relacionado mais diretamente ao<br />
corpo, como a teteia; outro dizendo respeito à alma, que<br />
é o carinho da mãe —, por aspirar ao mais maravilhoso,<br />
a criança deseja o carinho da mãe.<br />
Ai da mãe que não tem com a criança esse carinho, e<br />
que não a ajude a sobrepor esse valor moral ao material!<br />
Porque essa é a missão de uma mãe, e ela tem obrigação<br />
de cumpri-la.<br />
Mas ai também dos familiares que não criam em torno<br />
de seus pequenos um ambiente robusto, suculento e<br />
benfazejo de manifestação de qualidades do espírito, no<br />
qual a criança vá entendendo desde logo que esse convívio<br />
de alma é o fundamental da ordem do universo!<br />
Este é um ponto muito importante, porque as criaturas<br />
de uma ordem mais elevada têm uma função normativa<br />
e orientadora em relação a todas as inferiores. E os<br />
espíritos são o que há de mais alto no universo. Conhe-<br />
cendo-os e estando voltados para eles, conhecemos melhor<br />
o que está abaixo.<br />
Então, ser sensível às almas e querer encontrar para si<br />
uma ambientação, na qual o nosso senso do ser, do maravilhoso,<br />
nosso senso católico se sintam como o navio<br />
que atracou no cais e ali está na serenidade, longe das<br />
tormentas, este é o sentido da vida terrena.<br />
O ambiente da Igreja<br />
do Sagrado Coração de Jesus<br />
A alma encontra este sentido superior da existência<br />
quando é tocada pela graça a propósito de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, de Nossa Senhora e de toda a ordem celeste<br />
propriamente dita. Quer dizer, ela “vê” espíritos —<br />
sobretudo um valor de alma —, almas de uma categoria,<br />
de uma beleza, de uma maravilha tais que ela fica<br />
compreendendo ser este o verdadeiro ponto em torno do<br />
qual tudo gravita, longe ou fora do qual tudo gira errado,<br />
e que a vida está em compreender e desejar isto, ou seja,<br />
mais especificamente, o Sagrado Coração de Jesus e<br />
o Imaculado Coração de Maria.<br />
As descrições que tenho feito do Sagrado Coração de<br />
Jesus, como deve ser visto, amado, dão inteira e linearmente<br />
isto. Ele é divinamente superior a qualquer consideração,<br />
por um lado. Por outro lado, na sua superio-<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Stephen Nami<br />
Igreja Sagrado Coração de Jesus, São Paulo<br />
ridade, Ele habita em nós mais do que nós mesmos. Ao<br />
mesmo tempo em que está no alto de um Céu inatingível<br />
por nós, Ele habita no fundo de cada um de nós e tem<br />
a possibilidade de tomar contato conosco, fazendo estremecerem<br />
cordas de nossas almas que não sabíamos existirem.<br />
Assim é Ele!<br />
Para minha sensibilidade — não digo nem um pouco<br />
que seja uma coisa obrigatória —, o ambiente da Igreja<br />
do Sagrado Coração de Jesus traz isso. Existem na Europa<br />
milhares de igrejas de um valor artístico incomparavelmente<br />
maior do que o dela, mas há uma coisa qualquer<br />
nessa igreja por onde, estando lá, tenho a impressão<br />
de que os seus divinos olhos estão pousando sobre<br />
mim naquele momento, e me delicio em sentir-me visto e<br />
envolvido pela serenidade afetiva, doce e cheia de sabedoria<br />
de Nosso Senhor, mas ao mesmo tempo pelo império<br />
d’Ele, segundo o qual Jesus aceita quem for assim e<br />
rejeita quem não o for. E o pior que pode haver é ser rejeitado<br />
por Ele.<br />
Mais alvos do que a neve<br />
Tudo isso junto, formando um panorama que paira<br />
por cima. A sensação de grandeza que se tem, às vezes,<br />
quando se olha para o céu muito estrelado não é nada<br />
em comparação com essa impressão dos olhos de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo — que eu imagino castanhos quase<br />
claros — pousando sobre nós, olhando-nos a fundo, e<br />
nos fazendo entrar nessas imensidades de serenidade, de<br />
força e de tudo o mais que há n’Ele, e que são verdadeiramente<br />
incomparáveis!<br />
Para quem não tenha haurido isso tão fundamente na<br />
alma que, a bem dizer, quase nem precise ir à Igreja do<br />
Coração de Jesus, aconselho irem, e procurarem rezar<br />
ali, impregnar-se daquilo, porque há qualquer coisa ali<br />
que não é propriamente o olhar de Nosso Senhor para<br />
São Pedro, mas é um olhar d’Ele. Nessa igreja, todos os<br />
mistérios da devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao<br />
Imaculado Coração de Maria vêm à tona.<br />
Por exemplo, quanto nós gostaríamos de nos ver fisicamente<br />
olhados por Ele! Tenho a impressão de que “asperges<br />
me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem<br />
dealbabor” 1 ; o olhar de Nosso Senhor lavar-me-ia completamente,<br />
e eu ficaria mais alvo do que a neve!<br />
Ali, diante do olhar d’Ele, eu diria: “Anima Christi,<br />
sanctifica me!” Eu estaria tendo o que desejo, o ideal<br />
de minha vida! Aquele olhar meio interrogativo, ligeiramente<br />
reprobatório, enormemente amoroso, envolvente<br />
12
e, para dizer mais, encomiástico, no seguinte<br />
sentido: não há barreiras, venha; elogio<br />
é isto!<br />
E tocando, não o grosso bordão<br />
dos sinos de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo, mas o sino leve e alegre<br />
de Nossa Senhora, a alegria<br />
do perdão. Ela põe junto dessa<br />
seriedade infinita de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo uma<br />
nota qualquer de louçania<br />
que fala em perdão, em esperança,<br />
em alegria, que a<br />
completa admiravelmente.<br />
Tudo isso está e tem fundamento<br />
n’Ele, mas Nosso<br />
Senhor é grande demais<br />
para, num olhar só, podermos<br />
abarcá-Lo. Então,<br />
olha-se para Maria Santíssima,<br />
e Ela diz: “Meu filho!”<br />
Porque ao cabo de algum<br />
tempo aquela imensidade nos<br />
faz sentir tão pequenos, tão pequenos,<br />
tão pequenos, “petit vermisseau<br />
et misérable pécheur” 2 , que<br />
se tem vontade de dizer: “Senhor, não<br />
me esmagues de tanto me amar!” Mas entra<br />
Ela e dá um repouso, uma distensão, está<br />
feito tudo na perfeição.<br />
Portanto, não é que exista n’Ela e não n’Ele; mas é alguma<br />
coisa que existe n’Ele e, através d’Ela, se explicita<br />
melhor.<br />
<strong>Plinio</strong> Veas<br />
Conhecimento por conaturalidade<br />
Esses estados de alma constituem o afeto que devemos<br />
procurar na vida. Não tendo esse afeto, não adianta nada,<br />
porque nenhuma forma de afeto é autêntica sem isso.<br />
Por exemplo, se alguém me informar: “Fulano de<br />
tal quer muito bem a você porque foi educado com você<br />
desde pequeno...”, diz-me pouco, porque se nossas almas<br />
são diferentes nesse ponto, o que fazer?<br />
Entretanto, alguém que eu tenha conhecido, procedente<br />
de Chandernagor, em quem, olhando, percebo esse<br />
estado de alma no fundo, minha vontade é de abraçá-<br />
-lo e dizer:<br />
“Meu irmão ou — conforme a idade — meu filho, há<br />
quanto tempo nos esperávamos! Há quanto tempo nos<br />
pressentíamos!”<br />
Eu falava há pouco do céu estrelado. Ele produz efeito<br />
muito grande, não tem dúvida. Mas se eu, ao contemplar<br />
esse céu estrelado, lembrar-me do olhar<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo pousando<br />
sobre mim, é algo infinitamente superior<br />
ao céu estrelado, mas que<br />
tem certa analogia, cujo analogado<br />
primário é o Céu, a partir<br />
do qual, na imensidade de suas<br />
virtudes e qualidades, Ele<br />
olha para mim. Há n’Ele galáxias<br />
de santidade, de virtudes<br />
que pousam sobre<br />
minha cabeça como uma<br />
abóbada protetora!<br />
A partir daí vem o desejo<br />
da boa amizade segundo<br />
Deus, amar o próximo<br />
como a si mesmo<br />
por amor de Deus, podendo<br />
dar origem a um relacionamento<br />
humano que,<br />
com tal plenitude, creio eu,<br />
talvez não tenha sido tão frequente<br />
na própria Idade Média.<br />
Suponho que se a Idade Média<br />
tivesse continuado, o Sagrado<br />
Coração de Jesus teria revelado essa<br />
devoção de qualquer forma. A grande<br />
maravilha d’Ele foi perdoar as rupturas<br />
da Idade Média e, apesar disso, chamar para essa<br />
devoção.<br />
Infelizmente, essa devoção, de modo geral, foi muito<br />
rejeitada ou aceita de uma maneira sentimental, completamente<br />
errada.<br />
Quando me refiro à sensibilidade em relação ao ambiente<br />
da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, às graças,<br />
etc., entendo a sensibilidade reta, pela qual o homem<br />
tem um conhecimento por conaturalidade.<br />
Em geral, quando se fala de conhecimento, tem-se em<br />
vista somente o racional — tão nobre, elevado, digno —,<br />
entretanto, julgo necessário frisar o conhecimento adquirido<br />
pela sensibilidade para entender que nesse conjunto<br />
— razão e sensibilidade — encontra-se a cognição<br />
completa. O querer bem é, portanto, ver e entender outrem<br />
assim, por conaturalidade.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 6/2/1986)<br />
1) Do latim: Asperge-me com o hissopo e serei purificado,<br />
lava-me e ficarei mais alvo do que a neve.<br />
2) Do francês: vermezinho e miserável pecador.<br />
13
Reflexões teológicas<br />
Riquezas<br />
do conhecimento por<br />
conaturalidade - I<br />
Para julgar retamente das coisas, o homem deve utilizar ora o<br />
conhecimento por conaturalidade, ora o adquirido por meio<br />
do estudo. Um conhecimento não pode excluir o outro.<br />
Na Idade Média, tomada como um todo, isso reluz<br />
muito, porque a arte medieval apresenta, por conaturali-<br />
São Tomás de Aquino, num trecho da Suma Teológica,<br />
qualifica muito bem a relação da sabedoria<br />
com dois aspectos do conhecimento na alma humana:<br />
Dois conhecimentos que se complementam<br />
“Como já temos dito, a sabedoria importa certa retidão<br />
do juízo segundo razões divinas. A retidão do juízo<br />
pode acontecer de duas maneiras: ou segundo o uso perfeito<br />
da razão, ou por certa conaturalidade face às coisas<br />
que tem que julgar. Assim, vemos que por um discurso<br />
da razão, julga retamente das coisas pertencentes à castidade<br />
quem estudou a ciência moral, mas, por certa conaturalidade<br />
com ela, julga retamente da castidade quem a<br />
pratica habitualmente.” 1<br />
Portanto, um é o conhecimento teórico, adquirido pelo<br />
estudo da ciência; outro é o conhecimento por conaturalidade.<br />
A palavra “conaturalidade” já indica por si uma afinidade<br />
de natureza. Contudo, São Tomás aprofunda o conceito,<br />
explicando como a repercussão da virtude no homem<br />
que a pratica fá-lo conhecê-la operativamente, por<br />
um conhecimento interno.<br />
O Doutor Angélico não acrescenta, porque ele está<br />
estudando a sabedoria enquanto tendo sede no homem,<br />
mas creio que seria lógico acrescentar que fora do homem<br />
também se pode conhecer, por exemplo, a castidade<br />
de outro modo, analogamente experimental: estudando<br />
os costumes dos outros e, por conaturalidade, ven-<br />
do neles o que a castidade tem de bom e a impureza de<br />
ruim. Também esse é um modo que conduz ao conhecimento<br />
por conaturalidade.<br />
Tanto o homem casto como o não casto podem ver, nos<br />
outros, o esplendor da pureza e a hediondez da impureza.<br />
Fica, assim, bem claro que Deus deu ao homem as duas<br />
vias de conhecimento, e não é lícito optar por uma excluindo<br />
a outra, como se escolheria, por exemplo, viajar<br />
a uma determinada cidade de trem ou de automóvel.<br />
Neste caso, um meio de transporte excluiria inteiramente<br />
o outro, pois não se pode viajar, ao mesmo tempo, em<br />
estrada de ferro e de rodagem.<br />
Para julgar retamente das coisas, o homem deve utilizar<br />
ora um tipo de conhecimento, ora outro, complementarmente.<br />
Ninguém pode dizer: “Conheci por conaturalidade,<br />
portanto não preciso conhecer teoricamente.” Ou: “Conheci<br />
teoricamente, portanto não preciso conhecer por<br />
conaturalidade.” Esses métodos devem, com prevalência<br />
ora de um, ora de outro, acompanhar-se para proporcionar<br />
a cognição completa.<br />
Faz parte do dom de sabedoria dar ao homem a possibilidade<br />
tanto de sentir retamente, quanto de observar<br />
por conaturalidade.<br />
O equilíbrio de todo o sentir com as virtudes<br />
gera o senso católico perfeito<br />
14
<strong>Dr</strong>or Feitelson (CC 3.0)<br />
Imagem de Apóstolo no interior da Sainte-Chapelle - Paris, França<br />
dade, o que a Escolástica proporciona por raciocínio. Assim,<br />
tudo o que se compreende por uma via, sente-se pela<br />
outra.<br />
O homem medievo, mesmo quando analfabeto, olhava<br />
para a catedral e via um nicho onde tal carpinteiro fez<br />
determinado adorno, e é uma parábola. Mais adiante,<br />
num vitral, ele via representada toda a história do Profeta<br />
Jonas. E assimilava aquilo tudo.<br />
Em geral, quando se fala que as catedrais eram o livro<br />
do analfabeto, refere-se a esses fatos do ponto de vista da<br />
instrução, e é verdade. Mas estou me referindo a outro<br />
aspecto: é um equilíbrio de todo o sentir com as virtudes<br />
cardeais e teologais, que constitui propriamente uma afinidade,<br />
a qual é preciso saber sentir até o fim para tomar<br />
o senso católico completo.<br />
Em certas igrejas há, sobre pedestais, imagens dos<br />
Apóstolos ou outros Santos, cada qual encimada por um<br />
dossel.<br />
Lembro-me de que, ao notar pela primeira vez aquele<br />
dossel sobre cada Santo, tive uma espécie de frisson 2<br />
de alegria e admiração. Não atinei imediatamente com<br />
a razão de ser daquele sentimento, e pensei em<br />
perguntar a alguém, tão logo terminasse a Missa.<br />
Mas concluí ser inútil... Teria que elaborar sozinho<br />
a resposta.<br />
Surgiu, então, a objeção vinda ex potestatis tenebrarum<br />
3 : “Não é isso não! Essas coisas todas suas<br />
são fantasias sem sentido. Ninguém de bom senso<br />
se põe esses problemas. Todo mundo que está<br />
nessa igreja viu esse dossel e não pensou o que<br />
você está pensando. É só você para querer dividir<br />
um fio de cabelo, de comprido, em quatro... Esse<br />
é você! O resultado é que você não presta atenção<br />
nas coisas apetecíveis e concretas da vida. Você<br />
agora deveria voltar para casa, pensando em como<br />
subir na vida. Você não está subindo, mas está<br />
voando sem destino nessas névoas em que vive.”<br />
Minha réplica: Eu sinto que amarei menos a<br />
Nossa Senhora, à Igreja, a Nosso Senhor, se tomar<br />
a mentalidade que me está sendo oferecida.<br />
Portanto, não a tomo! Vou continuar nessa névoa.<br />
Um dia descobrirei a verdade.<br />
Uma pergunta guardada<br />
como um tesouro<br />
Não joguei fora aquela pergunta. Guardei-a<br />
como um tesouro que em certo momento deveria<br />
reluzir.<br />
Muito tempo depois me veio clara e normalmente<br />
a resposta, como um prolongamento da conaturalidade.<br />
Aquela alegria foi sentida por conaturalidade<br />
e a pergunta é a dessa conaturalidade que se<br />
debruça curiosa; não, porém, uma curiosidade de mico, e<br />
sim de quem olha para um lago profundo, não consegue<br />
ver o fundo e espera um dia de sol para ver melhor, só isso.<br />
Aparece o dia de sol, olha-se e fica-se vendo como é o<br />
fundo do lago. Tudo feito com calma, serenidade.<br />
Eu me agrado em ver um tetozinho em cima de cada<br />
Apóstolo pela ideia de que o Apóstolo, perdido na vastidão<br />
da igreja, fica meio diminuto e fora das proporções<br />
de um homem. Este não habita normalmente em coisas<br />
dessa vastidão, mas é feito para morar onde existe uma<br />
altura proporcionada a ele. Se eu tivesse que estar no alto<br />
dessa coluna, sentir-me-ia mais em casa e protegido<br />
pelo próprio Deus sob um tetozinho.<br />
Eis uma primeira razão do dossel, mas ela não explica<br />
tudo. Há sob aquele pequeno teto — imaginando-me<br />
ainda ali — uma atmosfera a qual posso impregnar com<br />
minha própria personalidade e ser eu mesmo ali dentro.<br />
E quando eu for um homem adulto, que governa a família,<br />
ter minha coisa ali governada por mim, impregnada<br />
por mim, formada por mim. Isso não é um desejo de<br />
15
Reflexões teológicas<br />
Enfo (CC 3.0)<br />
domínio feroz; é um modo de ser da sociabilidade. Foi<br />
aquilo a que dei algo de mim mesmo, que recebeu e me<br />
retribuiu. Essa permuta é a sociabilidade.<br />
Sociedade orgânica é isso. São essas várias realezas,<br />
a partir do pai de família e chegando até o rei; essas várias<br />
naçõezinhas — a família é uma micronação — encaixadas<br />
umas nas outras, formando, a partir da família patriarcal,<br />
um município e daí por diante.<br />
Os Santos não são autômatos<br />
Por fim, o dosselzinho ajuda a compreender melhor a<br />
própria intercessão dos Santos.<br />
Algumas pessoas têm a impressão de que um Santo<br />
funciona como uma espécie de autofalante ou telefone<br />
junto a Deus; que não se move por si mesmo em nada. O<br />
fiel que o invoca apenas fala através dele, e o Santo repete<br />
para o Altíssimo, que gosta de ouvir aquela voz a<br />
qual amplia a do devoto, cujos méritos não são suficientes.<br />
Nesta perspectiva, Santa Teresinha do Menino Jesus<br />
seria apenas o meu “telefone carmelita” junto a Deus,<br />
nada mais.<br />
Ora, isso assim não é verdade. O Criador deixa certo<br />
governo pessoal aos Santos nas graças que pedem e<br />
distribuem, porque é de acordo com sua divina vontade<br />
que, mesmo no Céu, eles não sejam como zumbis ou autômatos.<br />
Portanto, conforme eu saiba mover as cordas intelectivas<br />
e sensíveis do Santo, posso obter mais ou menos dele.<br />
Essa é uma regra de<br />
ouro da Idade Média:<br />
ponha as contrapartidas<br />
em harmonia e<br />
terá um edifício<br />
que, tanto quanto<br />
permite a fraqueza<br />
humana, não cairá.<br />
Porta dos Apóstolos - Catedral<br />
de Valência, Espanha<br />
Também isto é simbolizado pelo<br />
dosselzinho: uma espécie de<br />
pequeno reino que ele tem por<br />
vontade do Rei Celeste, onde<br />
ele fará sempre um uso reto dessa<br />
atribuição, dessa pequena realeza<br />
encaixada e, com sua originalidade, moverá a Deus<br />
de acordo com seus desígnios divinos. Isso porque Deus<br />
não quis ter autômatos, e sim seres vivos a seu serviço.<br />
O Santo tem uma espécie de arbítrio dentro dessa<br />
concessão de favores. Esse é o ponto que estou querendo<br />
ressaltar. Ele, por assim dizer, é um senhor, governa um<br />
aspecto da distribuição das graças, porque a intercessão<br />
é feita à maneira dele.<br />
Por exemplo, a Santo Elias e a Santa Teresinha pediríamos<br />
uma graça de modos diversos.<br />
Suponhamos que um de nós, após a morte, seja canonizado<br />
e veja, do Céu, a seguinte cena: Passa perto de<br />
uma imagem dele uma boa mãe de família, lavadeira,<br />
que lavou a roupa dos clientes num rio, mas deixou uma<br />
peça ser levada pela correnteza, e está muito aflita.<br />
Ela vê a imagem e pede: “São Fulano, fazei-me encontrar<br />
essa roupa!”<br />
Pode ser que, no Céu, um de nós sorria e diga a Nossa<br />
Senhora: “Minha Mãe, veja, ajude-a.”<br />
Imaginem, agora, uma Santa que também tenha sido<br />
lavadeira durante a vida — para quem esse problema<br />
da roupa que foi rio abaixo toma outra importância —, a<br />
quem a pobre mulher suplique: “Santa Fulana, patrona<br />
das lavadeiras, ajudai-me!”<br />
Não tem muito mais possibilidade de ser ouvida? Sim,<br />
pois a Santa tem uma conaturalidade com aquele gênero<br />
de problemas!<br />
Isso ilustra tanto da intercessão dos Santos, da distribuição<br />
das graças na Igreja, é tão bonito, tão adequado!<br />
16
A flecha da Catedral de Notre-Dame<br />
Surge, então, a pergunta: isso nós compreendemos pela<br />
razão ou pela conaturalidade? Pela conaturalidade, da<br />
qual parte uma avenida esplêndida para raciocínios. A<br />
meu ver, se eu não tiver sentido, não entenderei inteiramente<br />
o que minha razão me diz.<br />
Isso é cheio de razoabilidade que o raciocínio depois<br />
referenda. Mas ele não é indispensável para o indivíduo<br />
estar certo disso. Alguém pode ter percebido a razoabilidade<br />
de algo e não ser capaz de pôr em raciocínios desde<br />
logo, mas estar certo da verdade que captou. Mais tarde,<br />
um livro, uma leitura, uma conversa ou a maturação<br />
do seu próprio pensamento levá-lo-ão a completar essa<br />
certeza.<br />
Desculpem-me por falar de minhas observações interiores,<br />
mas são as que eu conheço.<br />
Admito de bom grado que possa haver<br />
outras imensamente mais interessantes,<br />
mas dou o que tenho; é o<br />
óbolo da viúva pobre.<br />
Por exemplo, quando eu me dei<br />
consciência da flecha da Catedral de<br />
Notre-Dame foi uma alegria enorme<br />
para mim e uma espécie de alívio.<br />
Sou grande admirador da massa<br />
daquelas torres e do que aquela fachada<br />
tem de imponente. Eu gosto<br />
tanto daquilo! Contudo, foi só com<br />
a flecha que tive certo alívio, pois ela<br />
suaviza aquele peso.<br />
Então, o que a flecha tem de delicado,<br />
de gracioso, de fantasioso, de<br />
quase irreal dá expressão e cidadania,<br />
em minha alma, a uma série de<br />
apetências que vibram em consonância<br />
com isso e precisam de um lugar<br />
ao Sol. Assim, a fidelidade à mensagem<br />
das torres é robustecida e aliviada<br />
pelo cântico grácil da flecha.<br />
Para minha sensibilidade — é o<br />
tal conhecimento por conaturalidade<br />
de que fala São Tomás de Aquino<br />
— as torres de Notre-Dame são<br />
imensamente planejadas, pensadas,<br />
bem colocadas, com muito bom gosto,<br />
mas se há uma coisa que elas não<br />
têm é o imprevisto.<br />
Ora, as ordenações grandiosas deixam<br />
uma fome do inopinado, em determinado<br />
momento fica-se com vontade<br />
do imprevisto. A flecha é imprevista.<br />
E tem toda a audácia, todo o<br />
panache, o topete que me faz aderir mais inteiramente à<br />
própria torre. Mas isso meu espírito não aprende adequadamente<br />
apenas num tratado. Ou sinto por conaturalidade<br />
ou não compreendo inteiramente.<br />
Essa é uma regra de ouro da Idade Média: ponha as<br />
contrapartidas em harmonia e terá um edifício que, tanto<br />
quanto permite a fraqueza humana, não cairá. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 29/11/1985)<br />
1) II-II, q. 45, a. 2.<br />
2) Do francês: Comoção, estremecimento.<br />
3) Do latim: dos poderes das trevas.<br />
Catedral Notre-Dame, Paris, França<br />
Mickey Løgitmark (CC 3.0)<br />
17
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Organicidade e inocência<br />
Sergio Hollmann<br />
A organicidade é inseparável da inocência,<br />
considerada como uma concepção da existência<br />
proveniente do élan puro da alma para o<br />
maravilhoso, para o metafisicamente perfeito.<br />
Nesta página e na<br />
seguinte, aspectos<br />
do Vale do Roncal<br />
H<br />
á um vale na Navarra chamado Vale do Roncal,<br />
antigamente constituído de uma miríade de pequenas<br />
repúblicas autônomas. Sua organização<br />
datava da Idade Média, e no Ancien Régime 1 ainda estava<br />
em vigor. Essas republiquetas eram teoricamente soberanas,<br />
embora reconhecendo no Rei da Espanha uma suserania.<br />
Na ordem política dos fatos, elas foram completamente<br />
arrastadas pelo movimento geral da unificação do Reino<br />
de Espanha, e nem seus habitantes tinham mais consciência<br />
dessa soberania a qual se conservava mais por formalidade.<br />
Se os poderes municipais quisessem fazê-la valer, não conseguiriam,<br />
porque o povo não tinha mais consciência disso.<br />
Calor de alma que conduz à<br />
perfeita consonância<br />
Um dado interessante para provar a vitalidade e a legitimidade<br />
disso é que o Rei da Espanha, quando declarava<br />
guerra a qualquer potência exterior, mandava uma<br />
embaixada percorrer as repúblicas do Roncal e comunicar<br />
que ele, Rei da Espanha, tinha resolvido ir à guerra,<br />
e pedia a aliança delas. Os representantes dessas repúblicas<br />
respondiam que sim, e os emissários voltavam para<br />
a capital do reino. Era um mero protocolo, mas que se<br />
conservou encantadoramente até o fim.<br />
Contudo, houve um momento em que isso teve vida,<br />
evidentemente. Em que consistia essa vida? Como era<br />
a relação das almas entre si em cada uma dessas republiquetas?<br />
Estas, por sua vez, deveriam encontrar muitas<br />
dificuldades para se comunicarem umas com as outras,<br />
devido ao temperamento espanhol muito altaneiro<br />
e desconfiado, uma não querendo obedecer à outra, afirmando<br />
sua soberania. Mas onde o espírito revolucionário<br />
não entrava em nada.<br />
Se tivesse entrado, essas republiquetas, nascidas de<br />
uma determinada inter-relação que fazia de cada uma<br />
delas um todo fechado, não existiriam, não se diferenciariam<br />
umas das outras, não teriam coesão, a política de<br />
uma interviria na da outra, sairia uma mixórdia, aquilo<br />
virava um cortiço no meio das montanhas, uma favela.<br />
Qual o relacionamento de alma que está na origem de<br />
tudo quanto é pequeno corpúsculo da sociedade medieval,<br />
quer quando este todo se formava muito uno e diferenciado,<br />
podendo dar facilmente em cidades livres da<br />
Alemanha, em organismos do mesmo gênero na Suíça,<br />
Itália do Norte, etc., como quando sua constituição se<br />
operava de um modo menos circunscrito, originando Estados<br />
um pouco maiores?<br />
Há na raiz um relacionamento de alma o qual se trata<br />
de descrever e que, a meu ver, dá a partida para tudo<br />
quanto é orgânico. A organicidade de toda sociedade<br />
vem de um calor de alma pelo qual todas as relações cabíveis<br />
se estabelecem entre determinadas almas, levando-as<br />
a consonar como se fossem uma só.<br />
18
Uma análise profundamente<br />
diferente do marxismo<br />
Daí nasce uma vida social onde essas diferenças que<br />
fedem a luta de classes não entram. As distinções que devem<br />
existir segundo o Direito Natural entre povo e governo,<br />
senhores e súditos, etc., tomam uma realidade<br />
completamente diferente da que se encontra em certo tipo<br />
de literatura.<br />
Como descrever essa união de almas? Para mim esta é<br />
uma questão muito importante, porque desconfio que no<br />
Reino de Maria deverá dar-se algo assim, levado muito<br />
mais longe: uma união sobrenatural de almas nesse plano,<br />
que é o ponto primeiro do Reino de Maria enquanto<br />
Cristandade, comunidade de povos e nações católicas.<br />
Aliás, a própria Cristandade enquanto família de nações<br />
cristãs é isto. É um modo de sentirem juntas a Cristandade,<br />
formando, no plano natural e temporal, uma família de almas<br />
que se diferencia do adversário por causa disso.<br />
Toda a vida de uma sociedade depende desse imbricamento<br />
de almas. Portanto, para compreendê-la trata-se<br />
de ver como é esse relacionamento. Atualmente, a noção<br />
de organicidade das instituições está falseada, a ponto de<br />
se ignorar este aspecto. Seria preciso restaurar essa noção<br />
a partir disto.<br />
Assim, ao invés de uma análise que comece por um<br />
dado econômico, inicia-se por um elemento psicológico<br />
e, neste ponto, é profundamente diferente do marxismo,<br />
porque a própria economia se desenvolve devidamente a<br />
partir de uma união de almas assim. Sobrepor a economia<br />
a todo o resto é uma aberração final da ignorância.<br />
Inocência: ponto de partida do<br />
perfeito relacionamento<br />
Como dentro de uma mesma família, também numa comunidade<br />
como essas, composta por uma mesma raça, com<br />
certa homogeneidade, as inocências consideram em uníssono<br />
alguns aspectos da sua própria realidade, da sua própria<br />
vida, têm o mesmo élan no mais fundo das almas: todos veem<br />
do mesmo modo o Natal, o castelão, o rio que passa ao<br />
pé do castelo, as ovelhas, os frutos das árvores, etc.<br />
Há um governo de Deus pelo qual, lentamente, as inocências<br />
vão mudando de tema. Em determinada época, o<br />
riacho marca o tema; mais tarde, a atenção se volta para<br />
outro ponto e fazem, no meio de um larguinho, uma fonte<br />
cujo prodígio hidráulico de trazer água de longe marca<br />
melhor ainda a atmosfera viva; depois o sininho da capela,<br />
e as coisas vão assim se acumulando sem se excluírem,<br />
com diferentes tônicas que vão sucessivamente, pelo<br />
continuar da História, imbricando as almas de um determinado<br />
modo.<br />
Isso produz uma consonância entre as almas por onde<br />
todas vivem de uma mesma vida no que elas têm de<br />
mais profundo.<br />
Almas desiguais que<br />
se imbricam inteiramente<br />
Então, a alteridade deixa de existir? Não, nem um pouco.<br />
De um lado, ela caracteriza inteiramente cada alma,<br />
mas, de outro, acantona-se num resíduo de pouca importância.<br />
Por exemplo, um é mais impetuoso e se zanga mais<br />
facilmente, outro é mais manso; esse sente mais aptidão<br />
para criar cabritos do que carneiros, aquele tem mais facilidade<br />
para construir casas do que plantar. Assim, divergências<br />
em pequenos afazeres. Mas, em tudo quanto<br />
Para estudarmos como se faz esse perfeito<br />
relacionamento, seria preciso partir<br />
da inocência, porque almas sem inocência<br />
não são capazes de se relacionarem adequadamente.<br />
Querer estabelecer um bom<br />
relacionamento com almas não inocentes<br />
é o mesmo que tentar fazer um tecido de<br />
linho com fio podre. Não sai tecido!<br />
Como se opera esse entrelaçamento de<br />
inocência?<br />
A meu ver, trata-se de pensar em comunidades<br />
formando, dentro de certo contexto,<br />
um todo capaz de se tornar uma unidade<br />
política, um pequeno Estado, cuja inocência<br />
das almas que o constituem considera esse<br />
grupo humano com aquele desejo de perfeição<br />
exímia, próprio ao senso do ser.<br />
Sergio Hollmann<br />
19
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
é profundo, as almas estão umas para<br />
as outras como as peças de um mesmo<br />
relógio. São diferentes, mas se imbricam<br />
inteiramente e só se explicam<br />
umas em função das outras. Constituem<br />
um verdadeiro todo.<br />
Vamos dizer, por exemplo, que<br />
na cidade haja um marceneiro, uma<br />
mulher que faz rendas, outro homem<br />
trabalha em couro, e outro fabrica<br />
pequenos utensílios em metal.<br />
Todos procuram fazer bonito e agradar<br />
o mercado interno. O pressuposto<br />
dessa produção artesanal é a harmonia.<br />
O móvel, a renda, o trabalho<br />
de couro e a faca são tão harmoniosos<br />
entre si que se fosse dado a uma<br />
faculdade de belas artes imaginar esses<br />
objetos, não os produziria igualmente<br />
harmônicos.<br />
Dentre os moradores da cidade, um preferirá uma faca<br />
a outra, uma senhora preferirá uma renda a outra,<br />
mas os pressupostos ninguém discute: renda é aquilo, faca<br />
é aquilo, móvel é aquilo, e tudo aquilo é lindo.<br />
Por que os pressupostos são assim? Por causa dessa<br />
unidade inicial das inocências, do modo de ver a simbologia<br />
toda da Religião e da natureza. Bem entendido,<br />
não é a religião natural, mas sim a Religião Católica, como<br />
também os aspectos religiosos da natureza. A sociedade<br />
que nasce daí é chamada orgânica e tem, no fundo,<br />
como que uma só alma.<br />
À medida que a inocência vai decaindo, a regionalidade<br />
cai, porque esses fenômenos assim só se dão em grupos<br />
pequenos ciosos de sua identidade, porque cada ser<br />
apetece o seu próprio ser, e não tendem a formar imensas<br />
aglomerações.<br />
Originalidade destas explicitações<br />
Já não se passa o mesmo com o Sacro Império ou o<br />
que se chamariam “as Espanhas”, etc, que estariam numa<br />
relação entre si e com esses subgrupos como o gênero<br />
está para as espécies, esta para as subespécies e as subespécies<br />
para as famílias e, depois, estas para os indivíduos.<br />
Assim também esses corpúsculos sociais tendem a se<br />
encaixar uns com os outros para formar subespécies que,<br />
por sua vez, encaixam-se em espécies, e assim por diante.<br />
Poderíamos imaginar, então, um Vale do Roncal, num<br />
Reino da Navarra, que é um conjunto de reinos autônomos<br />
dentro de todas “as Espanhas”, sobre as quais reina<br />
o monarca. Forma-se, assim, um harmonioso encaixe; e o<br />
Sacro Império é fundamentalmente isso.<br />
Em meu modo de ver, a originalidade destas explicitações<br />
está no caráter prevalentemente psicológico para<br />
a intelecção da sociedade orgânica; uma psicologia que<br />
se constitui em torno de algo profundamente metafísico<br />
e religioso, dado pela inocência. Por onde se deduz que<br />
organicidade e inocência são coisas inseparáveis. Pensar<br />
em sociedade devida e estavelmente estruturada sem<br />
inocência é inteiramente impossível.<br />
Poder-se-ia alegar que, por exemplo, segundo Fustel<br />
de Coulanges 2 , a Roma antiga teve traços dessa organicidade<br />
possante e, entretanto, era pagã. Porém, ela possuía<br />
uma inocência patriarcal que, a seu modo, era a vida<br />
dessa sociedade.<br />
O que nós chamamos inocência aqui? É uma concepção<br />
da existência proveniente desse élan puro da alma<br />
para o maravilhoso, para o metafisicamente perfeito, como<br />
prevalecendo sobre todo o resto.<br />
Bênção existente nas famílias<br />
com muitos filhos<br />
Manufatura de chapéus<br />
femininos - Museu<br />
de Viena, Áustria<br />
Infelizmente, o homem contemporâneo não vive do<br />
desejo e da esperança de ser assim, e considera o mundo<br />
inteiramente organizável sem isso. E faz do individualismo<br />
o teor de suas relações. Então, cada um medra<br />
no seu canto sem esses valores e sem inocência, ou com<br />
uma inocência raquítica, fanando noutro canto da alma,<br />
não ousando mostrar-se a ninguém, sem um pingo de relação<br />
que não seja determinada, ou pelo mero hábito ou<br />
por uma amizade fundada numa consonância sentimental<br />
de dois egoísmos, sem um ideal de que aquele relacionamento<br />
ande bem, para além da vantagem individual.<br />
Yelkrokoyade (CC 3.0)<br />
20
Resultado: as nações assim pagam o fardo disso, do modo<br />
mais pesado possível, porque caem no mimetismo. Como<br />
ninguém confia em ninguém, todo mundo tem medo<br />
de ser caçoado, e o escudo contra a caçoada é adotarem<br />
artificialmente um padrão que todos tomam como válido.<br />
Quem está de acordo com aquele padrão não pode ser caçoado.<br />
Outrora foi padrão francês, depois passou a ser padrão<br />
norte-americano, agora o padrão decorrente — mais<br />
próxima, mais remotamente — da Sorbonne de 1968.<br />
É o medo de ter uma mentalidade que não seja a “oficial”,<br />
porque cada um fica sozinho na selva, e quem não<br />
estiver segundo esse padrão artificial é perseguido.<br />
Conheci famílias, em geral com muitos filhos, em que<br />
o pai, a mãe e a penca dos filhos funcionavam entre si,<br />
sob vários pontos de vista, à maneira do Vale do Roncal.<br />
As famílias com poucos filhos não produziam isso; é uma<br />
bênção que a família pouco numerosa não tem. Essa história<br />
de dizer: “Vocês são só dois, vão ficar amicíssimos!”<br />
não é verdade. Formam interstícios entre os dois que dão<br />
amizades absolutas por um lado, e vazios imensos por<br />
outro. Pelo contrário, havia famílias numerosas nas quais<br />
— às vezes até para o mal — se constituía uma mentalidade<br />
coletiva que era uma coisa simplesmente fantástica.<br />
Então, era o modo de fazer esporte, de realizar negócios,<br />
de entender as relações, formar as ambições, de tratar<br />
os temas, de brigar com os de fora, enfim, tudo era<br />
homogêneo até debaixo d’água. E, tomando naquele<br />
mundo de irmãos, quando um precisava da ajuda do outro,<br />
era aquela solidariedade até o fim. É um fundo de<br />
organicidade dentro dessa perspectiva.<br />
Nossa Senhora, inocência e<br />
Contra-Revolução<br />
Surge a questão: Como seria isso no Reino de Maria?<br />
Eu só posso imaginar o Reino de Maria com esse fenômeno<br />
enormemente mais vivaz.<br />
Não é verdade que a Revolução tenha suprimido pura<br />
e simplesmente esse fenômeno. Ela encontrou o jeito<br />
de manter uma existência de família de almas baseada no<br />
oposto. As almas hoje constituem, na negação, uma família<br />
monolítica e colossal, como outrora fizeram, na afirmação,<br />
famílias pequenas constituindo galáxias de unidades<br />
diferenciadas.<br />
Nessa família de almas revolucionária, os espíritos são<br />
trabalhados pela intersuscetibilidade, de maneira a sentirem<br />
qualquer coisa que, de longe, contradiga suas concepções.<br />
Daí o agudíssimo senso “anticontrarrevolucionário”<br />
que eles têm.<br />
Como essa família de almas se estabeleceu? É a ligação<br />
como que orgânica das almas em torno do caos, do<br />
nada, da massa, do isolamento, da tristeza, de tudo quanto<br />
é errado para o homem, mas que fazem um tecido<br />
monstruoso com os desenhos tortuosos.<br />
Eu só compreendo o Reino de Maria se vier uma graça<br />
de conhecer e amar com uma luz maior do que nunca<br />
as verdades opostas a esses erros, em torno dos quais essa<br />
família de almas se estruturou. Portanto, vida em torno<br />
da inocência, com todas essas suscetibilidades proporcionadas<br />
pela Revolução acesas na linha da Contra-Revolução,<br />
e de tal maneira que seja dificílimo a Revolução<br />
erguer a cabeça, desde que as almas continuem inocentes,<br />
porque sendo inocentes serão vigilantes.<br />
Sou levado a achar que, em dado momento, essa concepção<br />
da existência se imporá às almas refratárias à Revolução,<br />
com um fulgor tão grande como a luz que São Paulo<br />
viu no caminho de Damasco. Aí terá nascido esse imbricamento,<br />
essa inocência, essa sociedade de almas, esse mútuo<br />
apoio e essa perfeição da qual tratávamos há pouco.<br />
Creio que Nossa Senhora tem isso em grau superexcelente.<br />
A relação d’Ela com a inocência e com a Contra-Revolução<br />
ainda não foi devidamente estudada, e seria de<br />
uma importância transcendental. Todas essas coisas estão,<br />
por assim dizer, nos esplendores do Padre Eterno, ansiosas<br />
por vir até nós, mas esperando um determinado momento.<br />
Talvez, por ocasião dos castigos previstos por Nossa<br />
Senhora em Fátima, dê-se tal destruição e tal fim de um<br />
mundo, que ressurja um mundo sem as infâmias do anterior,<br />
e todos sentirão como tudo acabou, à maneira de<br />
um quadro-negro cheio de cálculos errados e de obscenidades,<br />
no qual alguém passa uma esponja e, depois, ainda<br />
lava com água, deixando a lousa limpa para escrever<br />
outra coisa. Então começarão a existir condições para as<br />
almas retomarem outra base de relacionamento.<br />
Quando se lê o “Tratado da Verdadeira Devoção”, fica-se<br />
com a impressão de que São Luís Grignion de Montfort<br />
abre a possibilidade de haver graus e formas de união<br />
com Nossa Senhora dos quais não temos ideia. E que, pelo<br />
menos incoativamente, a pessoa alcança esses graus e<br />
formas quando faz a consagração à Sabedoria eterna e encarnada<br />
pelas mãos de Maria; mas, ao longo da fidelidade<br />
à consagração, isto se desenvolve de algum modo.<br />
Suponho que isto continue assim até nossos dias. Aliás, o<br />
próprio São Luís dá a entender que em determinado momento<br />
isto se conhecerá. Uma vez revelado este segredo,<br />
nascerá o perfeito sistema de união entre os homens. v<br />
(Extraído de conferência de 24/2/1982)<br />
1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político<br />
aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e<br />
XVIII.<br />
2) A cidade antiga. São Paulo: Ediouro, 2004.<br />
21
Gustavo Kralj<br />
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. Santa Florência, virgem (†séc. IV). Convertida por<br />
Santo Hilário de Poitiers durante o seu desterro numa<br />
Província da Ásia, o seguiu de regresso à França e viveu<br />
como eremita em Comblé.<br />
2. Beato João Slezyuk, bispo e mártir (†1973). Exercendo<br />
seu ministério episcopal de forma clandestina entre os fiéis<br />
de Rito Bizantino, foi condenado e passou 15 anos em campos<br />
de concentração na Rússia e Ucrânia, onde morreu.<br />
3. São Francisco Xavier, presbítero (†1552).<br />
Beato Eduardo Coleman, mártir (†1678). Foi enforcado<br />
e esquartejado em Tyburn, Inglaterra por ter abraçado<br />
a Fé Católica, acusado de conspiração contra o<br />
Rei Carlos II.<br />
4. São João Damasceno, presbítero e Doutor da<br />
Igreja (†c. 749).<br />
Santo Annon, bispo (†1075). Ver página 24.<br />
P. A. Guglielmi (CC 3.0)<br />
5. Santa Crispina de Tagore, Foi mártir (†304). Mãe<br />
de família degolada em Tabessa, Argélia, por recusar-se<br />
a sacrificar aos ídolos no tempo de Diocleciano e Maximiano.<br />
6. II Domingo do Advento.<br />
São Nicolau, bispo (†séc. IV).<br />
Beato João Scheffler, bispo e mártir<br />
(†1952). Húngaro de nascimento, foi<br />
nomeado Bispo de Statu Mare, Romênia.<br />
Ajudou, durante a II Guerra<br />
Mundial, a muitos perseguidos e ao<br />
final da guerra foi preso e condenado<br />
a trabalhos forçados.<br />
7. Santo Ambrósio, bispo<br />
e Doutor da Igreja (†397).<br />
Santa Fara, (†657). Durante<br />
40 anos, foi abadessa<br />
do mosteiro em Faremoutiers,<br />
França, fundado por<br />
ela com a herança recebida<br />
do pai.<br />
8. Imaculada Conceição<br />
da Bem-Aventurada Virgem<br />
Maria.<br />
Santo Eutiquiano, Papa<br />
(†283). Governou a Igreja<br />
depois de São Félix. Foi o 27º sucessor<br />
de São Pedro.<br />
9. São João Diego Cuauhtlatoatzin<br />
(†1548).<br />
Beato Libório Wagner, presbítero<br />
e mártir (†1631). Homem caridoso,<br />
preso por tropas suecas na<br />
Guerra dos 30 anos, sendo<br />
torturado. Martirizado na<br />
Baviera, Alemanha.<br />
10. São Gregório III,<br />
Papa (†741). Incentivou<br />
a pregação do Evangelho<br />
aos Germanos e<br />
lutou contra os iconoclastas,<br />
socorreu<br />
os pobres e favoreceu<br />
a vida religiosa.<br />
São Dâmaso I<br />
11. São Dâmaso I, Papa (†384).<br />
Beato Franco Lippi, eremita (†1292). Jovem militar de<br />
péssimos costumes, foi castigado pela cegueira. Arrependido,<br />
foi em peregrinação a Santiago de Compostela, onde<br />
recuperou as vistas. Regressou à Itália tornando-se eremita<br />
carmelita.<br />
12. Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira da América<br />
Latina.<br />
São Finiano, abade (†549). Fundou vários mosteiros na Irlanda,<br />
entre os quais o de Clonard, onde foi abade e faleceu.<br />
13. III Domingo do Advento.<br />
Santa Luzia, virgem e mártir (†c. 304/305).<br />
Santa Otília, virgem (†séc. VII). Primeira abadessa do<br />
mosteiro de Hohenbourg, França, fundado pelo duque Aldarico,<br />
seu pai.<br />
14. São João da Cruz, presbítero e Doutor da Igreja<br />
(†1591).<br />
São Nimatulácio al-Hardini, presbítero (†1858). Sacerdote<br />
da Ordem Libanesa dos Maronitas, dedicou-se aos<br />
estudos teológicos, à formação dos jovens e ao trabalho<br />
pastoral, em Klifane, Líbano.<br />
15. Beato Merino, abade (†1170). Promoveu na abadia<br />
de Cava, Itália, o esplendor da Liturgia e foi admirável na<br />
fidelidade ao Papa.<br />
22<br />
Santo Ambrósio
–––––––––––––– * Dezembro * ––––<br />
16. Beato Sebastião Magi, presbítero (†1496). Religioso<br />
dominicano, pregou o Evangelho em Gênova, Itália e zelou<br />
pela observância regular nos conventos.<br />
17. São João da Mata, presbítero (†1<strong>213</strong>). De origem<br />
francesa, fundou a Ordem da Santíssima Trindade para a<br />
Redenção dos Cativos, em Roma.<br />
18. São Malaquias, Profeta. Após o desterro da Babilônia,<br />
anunciou o grande dia do Senhor e a sua vinda ao templo.<br />
19. Beato Guilherme de Fenolis, religioso (†c. 1200). Foi<br />
dos primeiros monges da Cartuxa de Casotto, Itália, onde<br />
viveu como irmão leigo.<br />
20. IV Domingo do Advento.<br />
Beato Vicente Romano, presbítero (†1831). Sendo<br />
pároco em Torre del Greco, dedicou-se à educação<br />
das crianças e às necessidades dos operários<br />
e pescadores.<br />
21. São Pedro Canísio, presbítero e<br />
Doutor da Igreja (†1597).<br />
Beato Domingos Spadafora, presbítero<br />
(†1521). Religioso dominicano,<br />
ativo pregador. Faleceu em<br />
Monte Cerignone, Itália.<br />
22. Santo Hungero, bispo<br />
(†866). Pastor zeloso da Diocese<br />
de Utrecht, Holanda, transtornada<br />
pela invasão dos normandos.<br />
23. São João Câncio, presbítero<br />
(†1473).<br />
Beato Nicolau Factor, presbítero<br />
(†1583). Sacerdote franciscano,<br />
que abrasado de amor<br />
a Deus, foi várias vezes arrebatado<br />
em êxtase. Faleceu em Valência,<br />
Espanha, aos 63 anos.<br />
24. Beato Bartolomeu Maria dal<br />
Monte, presbítero (†1778). Pregou<br />
ao povo cristão e ao clero a palavra<br />
de Deus em muitas regiões da<br />
Itália. Fundou a Pia Obra das Missões.<br />
Timothy Ring<br />
25. Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Beata Antônia Maria Verna, virgem (†1838). Fundadora<br />
da Congregação das Irmãs da Caridade do Imaculado<br />
Coração de Ivrea, em Turim, Itália.<br />
26. Santo Estêvão, diácono e protomártir.<br />
Santa Vicência Maria López Vicuña, virgem (†1890).<br />
Fundadora do Instituto das Filhas de Maria Imaculada,<br />
em Madri, Espanha.<br />
27. Domingo. Festa da Sagrada Família, Jesus, Maria<br />
e José.<br />
São João, Apóstolo e Evangelista.<br />
Beata Sara Salkahazi, virgem e mártir (†1944). Virgem<br />
da Congregação das Religiosas da Assistência, fuzilada<br />
junto ao Rio Danúbio, Hungria.<br />
28. Santos Inocentes, mártires.<br />
Santa Catarina Volpicelli,<br />
virgem (†1894). Fundadora<br />
em Nápoles, Itália, do<br />
Instituto das Escravas<br />
do Sagrado<br />
Coração.<br />
29. São Tomás Becket,<br />
bispo e mártir<br />
(†1170). Ver página<br />
2.<br />
30. Beato João Maria<br />
Boccardo, presbítero<br />
(†1913). Fundou<br />
a Congregação das<br />
Irmãs Pobres Filhas de<br />
São Caetano, em Pancalieri,<br />
Itália.<br />
31. São Silvestre I,<br />
Papa (†335).<br />
São João Francisco<br />
de Régis, presbítero<br />
(†1640). Jesuí ta, que<br />
pela pregação e celebração<br />
do Sacramento<br />
da penitência, renovou<br />
a Fé Católica<br />
aos fiéis de La<br />
Louvesc, França.<br />
Sagrada Família<br />
23
Hagiografia<br />
Santo Annon: energia e astúcia<br />
Reprodução<br />
Santo Annon<br />
confirma a eleição do<br />
Abade do mosteiro<br />
de São Miguel,<br />
em Siegburger<br />
Fundação Francke,<br />
Halle, Alemanha<br />
Utilizando sapiencialmente as qualidades que Deus lhe havia<br />
concedido, Santo Annon salvou a Reforma Gregoriana que estava<br />
passando por um gravíssimo período. Sua figura nos ajuda a<br />
compreender melhor a verdadeira fisionomia da Igreja.<br />
Santo Annon, bispo e confessor, é um dos grandes<br />
e pouco conhecidos Santos da Idade Média. A seu<br />
respeito, temos a seguinte ficha preparada por um<br />
dos membros de nosso Movimento.<br />
Pessoa de trato verdadeiramente agradável<br />
Santo Annon é um dos grandes santos dos primeiros<br />
anos do Sacro Império Romano Alemão. Seus altos feitos<br />
ficaram registrados não só na História, como na Literatura,<br />
pois sobre a sua vida foi escrito um poema em 876 versos,<br />
clássico da literatura medieval alemã.<br />
Professor da escola de Bamberg, Arcebispo de Colônia e<br />
Chanceler do Sacro Império, fundador de mosteiros, a ele<br />
se deve também, em grande parte, a introdução da reforma<br />
cluniacense na Alemanha.<br />
Era uma personalidade invulgar. De porte majestoso,<br />
bem proporcionado, seus contemporâneos o descreviam<br />
como um belo homem, grande orador, e não menor causeur<br />
1 , suas aulas e sua prosa prendiam a atenção de todos<br />
os que o ouviam, nele admirando não só a ciência, como a<br />
ortodoxia de seu pensamento. A amenidade de seu trato e a<br />
extraordinária, e mais tarde legendária, energia impunham<br />
a todos respeito e veneração.<br />
24
É uma bonita descrição de um desses homens completos,<br />
muito bem constituídos fisicamente e com essa dupla<br />
qualidade: um trato muito ameno, orador, causeur brilhante,<br />
e homem muito enérgico. Isto demonstra quanto<br />
é verdade aquilo que o liberalismo procura ignorar:<br />
a pessoa seriamente enérgica, quando não é ocasião de<br />
usar de energia, deve ser de um trato muito agradável. E<br />
a pessoa de um trato verdadeiramente agradável, nas horas<br />
de energia, sabe ser enérgica.<br />
O que vem a ser um trato verdadeiramente agradável?<br />
Não o de um palhaço qualquer que conta anedotas,<br />
mas é um relacionamento elevado, nobre que, ao mesmo<br />
tempo, distrai, agrada e deixa a pessoa dignificada, enobrecida.<br />
Esse era o trato de Santo Annon.<br />
Glorioso cooperador da Reforma Gregoriana<br />
Continua o texto:<br />
Em 1062, num período difícil da Reforma Gregoriana,<br />
ele a salvou de uma crise que poderia ter sido fatal.<br />
Com efeito, Estevão IX, o primeiro Papa eleito pelo povo<br />
romano sem consulta ao Imperador, enviou ao Sacro Império<br />
o monge Hildebrando para convencer a Imperatriz Inês,<br />
que governava na menoridade do filho, futuro Henrique IV,<br />
a reconhecer a eleição. A Imperatriz Inês, que era Condessa<br />
de Poitiers e foi educada num ambiente cluniacense, não<br />
opôs dificuldades em aceitar. Mas Estevão IX morrera antes<br />
da volta de Hildebrando. Na hora da morte, o Papa fizera o<br />
clero e a nobreza jurarem que não elegeriam um novo soberano<br />
pontífice antes de Hildebrando chegar. Não respeitando<br />
o juramento, o clero e a nobreza se reuniram logo depois<br />
dos funerais, e elegeram o Santo Padre.<br />
São Pedro Damião, Cardeal-Arcebispo de Óstia, protestou<br />
e fugiu de Roma, indo ao encontro de Hildebrando, que<br />
estava em Florença, e logo reuniram um Sínodo. Foi eleito<br />
Nicolau II, que a Imperatriz também reconheceu. As dificuldades<br />
começaram quando Nicolau II decretou que a<br />
eleição dos Papas seria feita pelo Colégio dos Cardeais.<br />
A nobreza romana revoltou-se. E os adversários da Reforma<br />
Gregoriana conseguiram convencer a Imperatriz de<br />
que não devia aceitar o decreto. Pouco depois morreu Nicolau<br />
II, e Hildebrando fez o Sacro Colégio elevar ao sólio<br />
pontifício Alexandre II. O episcopado da Lombardia e alguns<br />
bispos alemães, com a anuência da Imperatriz, reuniram-se<br />
e elegeram o antipapa Cádalo, Bispo de Parma, que<br />
tomou o nome de Honório II.<br />
Olhemos para figuras<br />
como a de Santo Annon<br />
e compreenderemos<br />
melhor a verdadeira<br />
fisionomia da Igreja.<br />
Antes de São Gregório VII, a Igreja passou por vacilações<br />
enormes, por crises, por depressões morais tremendas.<br />
E essas crises morais foram todas elas contrariadas<br />
pelo movimento de Reforma Gregoriana, que São Gregório<br />
VII, então cardeal, impôs através de vários Papas que<br />
eram discípulos dele, e depois ele mesmo, elevado ao Pontificado,<br />
com uma energia não excedida e talvez não igualada,<br />
levou à sua perfeição. A esse movimento restaurador,<br />
um dos maiores que tenham havido dentro da Igreja,<br />
costuma-se chamar de Reforma Gregoriana. E foi uma<br />
glória de Santo Annon ter cooperado para essa reforma.<br />
Dificuldades em época de sucessivos papas<br />
Santo Annon recebe doação da cidade de Siegburger<br />
Museu de Arte Chazen, Madison, EUA<br />
Daderot (CC 3.0)<br />
25
Hagiografia<br />
Encantando por esta sua<br />
atitude humilde, a alma deste<br />
santo Cardeal louvava a<br />
grandeza da graça que<br />
opera tais transformações<br />
nas almas humanas.<br />
São Pedro Damião<br />
Biblioteca Classence, Ravena, Itália<br />
Andrea Barbiani (CC 3.0)<br />
Quem deve eleger o Papa? Questão decisiva<br />
para o êxito da Reforma Gregoriana<br />
Aqui estava em jogo uma questão muito importante.<br />
A eleição do Santo Padre foi, em todos os tempos, um<br />
dos elementos decisivos da política mundial, tanto mais<br />
na Idade Média, quando o mundo era muito mais católico<br />
do que hoje e, portanto, muito mais sensível a qualquer<br />
pensamento, vontade, pronunciamento ou ato do<br />
Sumo Pontífice.<br />
Porém, se tinha importância a eleição de um Papa,<br />
outra pergunta também era muito importante: quem o<br />
elegeria? Vemos definirem-se duas tendências diversas:<br />
uma que considerava estarem os nobres e o clero de Roma<br />
habilitados a eleger o Pontífice; outra julgava que este<br />
deveria ser escolhido pelo Sacro Colégio.<br />
Em rigor, não era contra a instituição divina que o Papa<br />
fosse eleito pelos nobres e clero de Roma. O Direito<br />
Canônico pode atribuir-lhes tal faculdade como poderia<br />
concedê-la também ao povo romano. Mas do ponto de<br />
vista da conveniência, quer dizer, para assegurar melhor<br />
a eleição de um Papa digno do cargo, era muito preferível<br />
naquele tempo — e o é em tempos normais — que a<br />
escolha fosse feita pelo Sacro Colégio, pois este representa<br />
uma aristocracia, uma elite dentro da Igreja, sendo<br />
um conjunto de clérigos considerados mais eminentes,<br />
preclaros e seguros pelos Pontífices anteriores.<br />
A palavra “cardeal” vem de cardo, em latim, que significa<br />
o gonzo da porta. Os cardeais estão para a Igreja<br />
como os gonzos para uma porta: sustentam-na, permitindo<br />
e facilitando-lhe o movimento. Era, pois, natural que<br />
esse escol de colaboradores dos vários Papas, participando<br />
em grau subordinado do governo e conhecendo melhor<br />
do que ninguém o ambiente eclesiástico e as necessidades<br />
da Igreja, elegessem o Santo Padre.<br />
Isso seria certamente mais adequado do que se a eleição<br />
ficasse a cargo de clérigos de uma ordem inferior,<br />
incumbidos da direção ou do exercício de atividades na<br />
diocese mais importante do mundo, é verdade, mas voltados<br />
para problemas locais, circunscritos à Diocese de<br />
Roma; enquanto os cardeais são uma elite internacional.<br />
Ora, a missão do Papa não é apenas local, mas principalmente<br />
mundial.<br />
Por outro lado, os nobres romanos eram os senhores<br />
de pequenos feudos nos arredores de Roma, e que muitas<br />
vezes guerreavam por seus interesses. Havia o risco<br />
de escolherem um Papa de acordo com suas conveniências<br />
pessoais ou familiares.<br />
Portanto, era natural que os partidários da Reforma<br />
Gregoriana quisessem transferir essa atribuição para os<br />
cardeais.<br />
Vemos que se pronuncia um incidente no qual o monge<br />
Hildebrando, cardeal e futuro Papa São Gregório VII,<br />
convenceu o Pontífice novo de transferir os poderes de<br />
eleição para o Sacro Colégio.<br />
Naturalmente, o clero e a nobreza de Roma ficariam<br />
indignados com isso, pois perdiam um poderoso elemento<br />
de influência política. Então, foram logo ao encontro<br />
da Imperatriz do Sacro Império Romano Alemão para<br />
obter que ela se solidarizasse com eles.<br />
26
Debaixo de certo ponto de vista, a Imperatriz tinha<br />
interesse nisso porque, no sistema anterior, o imperador<br />
— ou a imperatriz, quando o imperador era menor de<br />
idade — interferia na eleição. Entretanto, feita a eleição<br />
pelo Sacro Colégio, as possibilidades de interferência do<br />
poder imperial se tornavam muito menores.<br />
Esse choque de interesses comprometia a Reforma<br />
Gregoriana que, sendo um movimento de reestruturação<br />
e reorganização da Igreja, estava maximamente<br />
empenhada em que o órgão adequado elegesse o Sumo<br />
Pontífice.<br />
Num momento crucial, Santo Annon<br />
intervém com astúcia<br />
Alexandre II e Cádalo foram para Roma e disputaram a<br />
cidade. O Papa tinha contra ele o Sacro Império, boa parte<br />
da nobreza, e não podia contar com o auxílio do chefe normando<br />
Roberto Giscard, que não estava em bons termos<br />
com a Santa Sé. Havia até indícios de que ele simpatizava<br />
com a causa de Cádalo, por interesses pessoais.<br />
Foi nesse momento crucial que Santo Annon resolveu intervir.<br />
Combinou com alguns nobres alemães um golpe de<br />
Estado.<br />
Sabia que a Imperatriz Inês gostava de parar em determinada<br />
ilha quando viajava pelo reino.<br />
Era uma ilha aprazível e lá costumava ela<br />
repousar das fadigas da viagem.<br />
Acoma (CC 3.0)<br />
Santo Annon mandou construir uma barca esplêndida,<br />
riquíssima, adornada com toda espécie de obras de arte:<br />
finíssimos tapetes cobriam o chão e as paredes; cortinas<br />
dos mais preciosos tecidos vedavam as janelas. Toda<br />
a barca estava revestida de boa madeira, com incrustações<br />
de ouro e pedras preciosas.<br />
Quando a barca ficou pronta, Santo Annon permaneceu<br />
à espera de uma ocasião propícia para utilizá-la.<br />
Notem a atmosfera bonita em que essas coisas se passavam:<br />
uma ilha aprazível, uma barca linda, com cortinas<br />
e incrustações de pedras preciosas, à espera da Imperatriz.<br />
Que lindo teatro para uma cena histórica! Como<br />
isso é mais bonito do que um avião para se passar<br />
qualquer episódio da História humana!<br />
Essa ocasião se apresentou pouco depois, quando<br />
a Imperatriz anunciou uma viagem a Nimegue. Santo<br />
Annon, com outros conjurados, viajou diretamente para<br />
a referida ilha, chegando lá antes da corte. Quando<br />
esta lá aportou, na hora do almoço, Santo Annon, como<br />
Chanceler do Império, sentou-se ao lado de Henrique<br />
IV, que tinha então seis anos. Fez a conversa cair<br />
sobre a barca, e a descreveu com toda a minúcia, maravilhando<br />
o menino. Logo depois do almoço, Henrique<br />
IV manifestou o desejo de visitar a<br />
barca. Recebido com todas as honras,<br />
assim que o rei subiu a bordo, os re-<br />
Bede 735c (CC 3.0)<br />
Bede 735c (CC 3.0)<br />
27
Hagiografia<br />
Faço um comentário colateral a respeito da mentalidade<br />
dos meninos naquele tempo. Às vezes, aos 14 ou 15 anos,<br />
meninos começavam a comandar exércitos, ou dirigir impérios;<br />
e, muitas vezes, dava certo. Vemos aqui Santo<br />
Annon tratando seriamente com um menino de seis<br />
anos sobre política e convencendo-o.<br />
Alguém poderá objetar: “Mas o menino não tinha<br />
nenhuma resistência possível a oferecer a um<br />
homem da qualidade de Santo Annon.”<br />
É possível. Em todo caso, Santo Annon julgou<br />
que não podia resolver o caso só com brinquedinhos<br />
e fazendo coceguinhas no queixo do rei; mas<br />
precisava dar uma argumentação política. Deu, e o<br />
monarca aceitou. Quer dizer, trata-se de um nível<br />
de menino que não é comum.<br />
Para se compreender bem essa atitude de Santo<br />
Annon é preciso esclarecer que, em caso de regência,<br />
a posse do rei pelo chanceler já era um bom título para<br />
que ele se tornasse regente.<br />
Jdsteakley (CC 3.0)<br />
Portanto, quando o rei era menor, o regente do<br />
reino era a mãe, mas também podia ser o chanceler,<br />
se este estivesse na posse do rei-menino. E<br />
o golpe dele foi roubar o rei-menino dentro dessa<br />
“ratoeira” de madeiras preciosas, seda e pedrarias.<br />
Uma coisa que nos deixa um pouco interditados<br />
quanto à liceidade, se não fosse o fato de que<br />
é Santo Annon quem fez, e, portanto, isso deve ter<br />
suas razões históricas que provavelmente não aparecem<br />
na ficha.<br />
Sínodo em Colônia<br />
O menino Henrique IV lança-se ao rio para fugir de<br />
Santo Annon - Academia de Berlim, Alemanha<br />
madores, já avisados, puseram a embarcação em movimento,<br />
afastando-a da ilha.<br />
A Imperatriz e os nobres, que tinham ficado na ilha, promoveram<br />
um grande tumulto, e o menino-rei, amedrontado,<br />
atirou-se ao rio.<br />
O menino-rei era uma víbora; foi o grande inimigo de<br />
São Gregório VII, mais tarde.<br />
O Conde Egbert de Brunswick se jogou na água e o trouxe<br />
de volta para a barca. Santo Annon levou Henrique IV<br />
para uma das salas e teve com ele uma longa conversa,<br />
convencendo-o de ir para Colônia, onde seria convocada<br />
uma assembleia de nobres para discutirem a situação.<br />
Em Colônia, os grandes da Alemanha se reuniram<br />
e, depois de se informarem dos acontecimentos,<br />
decidiram que a regência caberia ao arcebispo, em<br />
cuja diocese estivesse o rei. Como Henrique IV estava em<br />
Colônia, o regente seria Santo Annon.<br />
Que era Arcebispo de Colônia...<br />
A 27 de outubro de 1062, reunia-se um sínodo presidido<br />
por Santo Annon, que aceitou o decreto de Nicolau II e reconheceu<br />
a eleição de Alexandre II; o Duque Godofredo de<br />
Lorena foi designado para levar o Papa a Roma, e dar-lhe<br />
posse da cidade. A Reforma Gregoriana estava salva.<br />
Esse é um dos inúmeros atos que mostram não só o papel<br />
decisivo de Santo Annon numa crise gravíssima, mas<br />
também sua astúcia diplomática que repetiu em muitas outras<br />
ocasiões.<br />
É lamentável ver como a notícia dessas grandes figuras<br />
se apaga. Como ela faria bem num livro de piedade!<br />
Como seria interessante ensinar alguém a dizer: “Meu<br />
28
Deus, dai-me a energia e a astúcia de Santo Annon! Santo<br />
Annon, rogai a Nossa Senhora por mim, para que eu<br />
me pareça convosco!” E rezar essa jaculatória diante de<br />
uma imagem de Santo Annon bon parleur 2 , de espada na<br />
mão, olho de raposa e alma de bem-aventurado, organizando<br />
as coisas. Como isso faria bem!<br />
Diferença entre o pecador medieval<br />
e o pecador filho da Revolução<br />
Alguns anos depois, a Imperatriz Inês, que se tinha recolhido<br />
a um mosteiro, arrependeu-se do que fizera. Um<br />
dia a cidade de Roma surpreendeu-se, assistindo a um espetáculo<br />
só possível na Idade Média: a Imperatriz apresentou-se<br />
às portas da cidade, vestida como penitente, descalça<br />
e com uma corda ao pescoço, rogando permissão para<br />
entrar e pedir perdão ao Santo Padre por tudo quanto<br />
tinha feito. Recebida por São Pedro Damião, este a absolveu<br />
de todos os pecados e daí em diante, até a morte do<br />
Cardeal, foi seu confessor.<br />
Ela, que tinha sido a grande inimiga de São Pedro Damião,<br />
reconheceu ter andado mal criando entraves ao<br />
movimento salvador da Reforma Gregoriana. Mas assim<br />
era a penitência na Idade Média, época que se poderia<br />
caracterizar pela radicalidade: O indivíduo cometia, às<br />
vezes, pecados de arrepiar; mas, quando se arrependia,<br />
praticava também penitências de arrepiar.<br />
Esta Imperatriz deixa todas as pompas terrenas, recolhe-se<br />
a um convento para cuidar de sua vida espiritual<br />
e, meditando, reconhece ter procedido mal. Em rigor,<br />
ela não seria obrigada a esse ato público de penitência.<br />
Que ela devesse procurar São Gregório VII ou São Pedro<br />
Damião para pedir perdão, era inteiramente cabível.<br />
Mas podia fazer isso reservadamente. Não, ela quis praticar<br />
um ato público de reparação, porque público tinha<br />
sido o seu pecado. Apresenta-se, então, às portas de Roma,<br />
vestida de saco, com uma corda ao pescoço, e se dirige<br />
a uma igreja para pedir perdão.<br />
Depois de ter sido perdoada, torna-se amiga e penitente<br />
daquele a quem ela ofendera, confiando sua alma à<br />
direção dele. Que beleza há nessa reconciliação!<br />
São Pedro Damião — vendo aquela Imperatriz vestida<br />
pobremente, ajoelhada perto dele, e recordando-se<br />
do tempo em que ela lhe dava dor de cabeça, introduzida<br />
ali como um cordeiro, e encantando, por esta sua atitude<br />
humilde, a alma deste santo Cardeal — louvava a grandeza<br />
da graça que opera tais transformações nas almas<br />
humanas. Isto é Idade Média!<br />
Talvez nunca se tenha falado tanto a respeito do perdão<br />
quanto em nossos dias. Fala-se, por vezes, até o abuso. A<br />
propósito de qualquer coisa se repete: “Ah, Deus perdoa!”<br />
Mas esse perdão que todo mundo está certo de receber,<br />
poucos pedem; e, quando pedem, fazem-no mais ou menos<br />
às ocultas. O senso da gravidade do pecado desapareceu.<br />
As pessoas perderam este senso, não são lógicas, falta-lhes<br />
coerência, não têm Fé viva. Elas só se lembram do<br />
pecado para dizer que vai ser perdoado; e só se recordam<br />
do perdão para poderem pecar mais tranquilamente. Essa<br />
é a mentalidade do homem contemporâneo.<br />
Comparem o pecador medieval com o pecador filho<br />
da Revolução, e verão a enorme diferença: um é suscetível<br />
de grandes arrependimentos à maneira de Davi;<br />
grandes regenerações e, eventualmente, até grande santificação.<br />
O outro, se é que tem um arrependimento sério,<br />
pede um perdãozinho superficial.<br />
Qual a causa desta diferença de atitude? Em última<br />
análise, este é o efeito da Revolução. É ela que exacerba<br />
no homem o orgulho, a vontade de não reconhecer a gravidade<br />
dos pecados e de não fazer penitência, criando-se<br />
o estado de dureza que vemos tão generalizado nos dias<br />
de hoje.<br />
Quantos pecados cometidos<br />
em nossos dias<br />
mereceriam uma penitência<br />
pública! Nesses<br />
casos, um padre, antes<br />
de conceder a absolvição,<br />
agiria muito bem<br />
se exigisse uma reparação<br />
pública. Entretanto,<br />
a debilidade, o<br />
liberalismo, tantas vezes<br />
até no próprio confessor,<br />
criam esse clima<br />
crepuscular no qual estamos...<br />
Olhemos para figuras<br />
como a de Santo<br />
Annon e compreenderemos<br />
melhor a verdadeira<br />
fisionomia da<br />
Igreja. v<br />
(Extraído de<br />
conferência de<br />
29/3/1974)<br />
1) Do francês: pessoa que<br />
desenvolve conversa<br />
brilhante e atraente.<br />
2) Do francês: bom conversador.<br />
São Pedro Damião - Pinacoteca<br />
de Brera, Milão, Itália<br />
Reprodução<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Estilo “condeano”:<br />
força e leveza<br />
Condé e Turenne foram brilhantes generais franceses<br />
do século XVII, que se caracterizaram por modos de ser<br />
bastante diferentes. O primeiro era intuitivo e fazia reflexões<br />
rapidíssimas e fulgurantes. Turenne, um homem que<br />
meditava e planejava. O feitio de inteligência do brasileiro é<br />
dado muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />
H<br />
ouve um Rei da França, Luís XIII, que passou<br />
à História com o bonito nome de Luís, o Casto,<br />
por sua enorme pureza de costumes. Era<br />
casado, aliás, com uma das mais nobres e belas princesas<br />
da Europa do seu tempo, Ana d’Áustria, Infanta da Espanha,<br />
Arquiduquesa d’Áustria e Rainha da França —<br />
não se pode possuir mais altos títulos!<br />
— e dela teve dois filhos:<br />
Luís XIV e Gaston d’Orléans.<br />
Versailles e Chantilly<br />
Além disso, era um bom general<br />
e homem valente na guerra.<br />
Não só capaz na direção das tropas,<br />
mas desses homens que se expõem,<br />
lutam e sabem ser os primeiros<br />
na hora do perigo, dando<br />
com isso exemplo aos seus soldados.<br />
É muito bela a conjunção dessas<br />
duas virtudes: a castidade e o<br />
heroísmo. A maior beleza dessa<br />
união de virtudes nós a temos em<br />
Santa Joana d’Arc, a virgem guerreira<br />
heroica, nascida na Lorena.<br />
A castidade é uma virtude cheia<br />
de delicadeza e de fragilidade. A<br />
coragem é uma virtude plena de<br />
fortaleza e de intrepidez. A jun-<br />
Siren Com (CC 3.0)<br />
Casamento de Luís XIII com<br />
Ana de Habsburg - Museu dos<br />
Agostinianos, Toulouse, França<br />
ção desses opostos forma uma verdadeira maravilha! São<br />
como duas partes de uma ogiva que se unem para constituir<br />
um todo harmônico muito bonito.<br />
No dia 13 de maio de 1643, esse rei, ainda relativamente<br />
jovem, estava prestes a falecer, vítima da tuberculose,<br />
quando viu, perto de sua cama, em pé, um parente<br />
muito próximo: o Príncipe de<br />
Condé.<br />
Os Condé constituíam um ramo<br />
colateral da Casa Real francesa.<br />
Um ramo que se caracterizou,<br />
até sua extinção no século<br />
XIX, pelo esplendor da vida e<br />
pela coragem. Para termos ideia<br />
do esplendor da vida consideremos<br />
o seguinte: Os reis da França,<br />
pertencentes ao ramo primogênito<br />
da Casa Real francesa, tinham<br />
muitos castelos magníficos, cada<br />
um melhor do que o outro. Basta<br />
pensar em Versailles para compreender<br />
a magnificência em que<br />
vivia o ramo primogênito da Casa<br />
Real francesa.<br />
Naturalmente, o ramo dos<br />
Condé, que era um ramo de príncipes,<br />
mas colateral, tinha como<br />
castelo de grande importância<br />
apenas um: o castelo de Chantilly.<br />
No tempo de Luís XIV, o Prínci-<br />
30
pe de Condé estava construindo<br />
este edifício, o qual estava ficando<br />
tão bonito que Luís XIV mandou<br />
dizer a ele que recomendava<br />
não embelezá-lo ainda mais, porque<br />
poderia fazer sombra ao ramo<br />
principal da Casa Real. Com<br />
um castelo só, eles sabiam elevar-<br />
-se e dignificar-se tanto que o ramo<br />
primogênito da Casa Real sentiu-se<br />
como que em xeque, para<br />
não dizer xeque-mate, se a beleza<br />
de Chantilly continuasse a se aprimorar.<br />
Quando conheci Chantilly, a<br />
primeira coisa que me veio ao espírito<br />
foi esse temor de Luís XIV.<br />
Eu já tinha visitado Versailles, conhecia<br />
o Louvre, Fontainebleau, os<br />
principais castelos reais da França.<br />
Sem dúvida nenhuma, se aprimorassem<br />
ainda mais Chantilly, era<br />
um xeque-mate para a Casa Real.<br />
Batalha do ”Rochedo do Rei”<br />
Reprodução<br />
Compreendemos, então, o valor desse ramo colateral<br />
que com menos recursos sabia se valorizar até se elevar<br />
a esse ponto. Mas sem uma rivalidade baixa com o<br />
ramo primogênito. Pelo contrário, servindo-o sempre<br />
muito bem, a tal ponto que, quando em fins do século<br />
XVIII arrebentou a Revolução Francesa, o Príncipe<br />
de Condé, seu filho, o Duque de Bourbon, e seu neto,<br />
o Duque d’Enghien, lutaram como leões a favor do ramo<br />
primogênito. E extinguiu-se essa Casa porque o Duque<br />
d’Enghien, o mais moço da linha, foi morto por Napoleão.<br />
Como dizíamos, durante sua agonia Luís XIII notou,<br />
junto à sua cama, o Príncipe de Condé que assistia<br />
à morte do Rei. O monarca voltou-se, então, para o primo<br />
e disse:<br />
— Monseigneur, eu sei que o inimigo penetrou em<br />
nosso território com um grande e poderoso exército.<br />
Mas vosso filho rechaçará o ataque e acalmará a nossa<br />
ansiedade.<br />
Realmente, a França acabava de ser invadida e era<br />
um problema saber como conter o adversário que tinha<br />
transposto as fronteiras do país, mas ninguém prestou<br />
atenção ao delírio de um moribundo.<br />
No dia seguinte, portanto em 14 de maio, Luís XIII<br />
morreu e sua profecia tornou-se realidade. Cinco dias<br />
depois, o Duque d’Enghien, filho primogênito do Príncipe<br />
de Condé — todos os primogênitos<br />
dos Príncipes de Condé tomavam<br />
o título de Duque d’Enghien<br />
—, com 22 anos de idade, derrotava<br />
as forças espanholas, sob o comando<br />
de Francisco de Melo.<br />
A batalha teve lugar em Rocroi,<br />
uma comuna das Ardenas, em território<br />
francês, a duas milhas de<br />
distância do que é hoje o litoral belga,<br />
e cujo nome significa “Rochedo<br />
do Rei”. As tropas espanholas entraram<br />
pela Bélgica para invadir a<br />
França.<br />
Turenne: um monumento<br />
de reflexão<br />
A França teve, no século XVII,<br />
dois grandes generais: um era o<br />
Visconde de Turenne<br />
Príncipe de Condé 1 e o outro, o<br />
Visconde de Turenne. Este não era<br />
da Casa Real francesa, mas de uma<br />
família de nobres de categoria um pouco menor.<br />
Os memorialistas do tempo e os analistas da História<br />
francesa descrevem o modo dos dois combaterem, caracteristicamente.<br />
Turenne era um homem que meditava e<br />
planejava os cercos dele, até o último ponto. Quer se tratasse<br />
de estar cercado pelo adversário, ou de cercá-lo, ele<br />
era um espírito frio, lúcido, calmo, meticuloso, que preparava<br />
com muita antecedência todos os pormenores,<br />
para não acontecer nada na batalha que ele não tivesse<br />
previsto, à maneira de um jogo de xadrez impecável. Ele<br />
era um verdadeiro monumento de reflexão calma, madura,<br />
forte, mas inteiramente militar, técnica e científica.<br />
Turenne morreu já velho. Era protestante e converteu-se<br />
à Religião Católica, e dele disse Bossuet esta frase<br />
famosa: “Na juventude, ele tinha a maturidade de espírito<br />
de um adulto; maduro, ele conservava a força e o verdor<br />
da juventude.” É a teoria da soma das idades. Até o<br />
fim da vida, ele foi assim.<br />
A conversão dele foi difícil, porque sua família era<br />
convictamente protestante. Eles faziam parte dos chefes<br />
do grupo protestante na França. A mulher e a mãe dele<br />
fizeram tudo para ele não se converter. Mas a partir do<br />
momento em que ele se convenceu de que a Religião Católica<br />
era verdadeira, não houve quem o segurasse. Ele<br />
se converteu mesmo e disse para a mulher: “Querendo,<br />
vá embora. Eu agora sou católico.” A mulher cedeu, mas<br />
morreu sem se ter convertido.<br />
Vemos nisso o feitio do espírito deste general. Ele, para<br />
se converter, analisou a Religião, fez, por assim dizer,<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
o cerco da Religião como faria o cerco de uma fortaleza;<br />
percebendo que era verdadeira, entrou nela e se submeteu<br />
filialmente.<br />
Condé poderia ser comparado a uma águia<br />
Condé tinha um feitio de alma completamente diferente.<br />
Era muito vivo e podia ser comparado a uma<br />
águia. Muito esguio, esbelto, com um grande nariz curvo,<br />
adunco, característico da Casa de Condé. Até no momento<br />
da batalha, ele parecia um homem que pensava<br />
em outra coisa.<br />
Quando chegava na hora da luta, ele se apresentava,<br />
tomava conhecimento, tinha um olhar de relance da situação,<br />
e jogava-se como uma águia no ponto principal<br />
com um ímpeto tal que ele desbaratava. Em pouco tempo<br />
ele obtinha suas vitórias.<br />
O Príncipe de Condé era um homem muito refletido,<br />
mas com reflexões rapidíssimas. Pela forma de talento<br />
dele, a reflexão fazia-se no momento, e não lentamente.<br />
Cada um desses dois modos de ser tem seu mérito. É<br />
brilhante acertar de maneira fulgurante. Mas é brilhante<br />
também ver o espírito montar, peça por peça, o aspecto<br />
geral da verdade, e demonstrar. São duas modalidades,<br />
ambas criadas por Deus, para refletir a suprema e inatingível<br />
perfeição d’Ele, que é, ao mesmo tempo, o modelo<br />
de toda reflexão e de toda subtaneidade na facilidade<br />
divina e completa com que Ele cogita. Aí é a perfeição<br />
absoluta.<br />
A intuição corresponde a uma reflexão rapidíssima,<br />
fulgurante. O feitio de inteligência do brasileiro é dado<br />
muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />
Temos, então, a explicação sobre como, aos 22 anos<br />
de idade, Condé — nessa ocasião Duque d’Enghien — já<br />
pudesse ser um tão grande general. Ele pertencia a uma<br />
família onde todo mundo tinha sido grande batalhador,<br />
grande guerreiro e, alguns, generais. Essa atmosfera militar<br />
impregnava o ambiente em que ele viveu, no qual se<br />
conversava sobre batalhas, planos estratégicos, como em<br />
famílias de hoje se conversa sobre automóvel, programas<br />
de rádio e televisão. O resultado é que ele já era todo<br />
modelado por isso.<br />
As famílias, naquele tempo, eram escolas de fazer o<br />
que tinham realizado os antepassados. Havia dinastias,<br />
famílias inteiras de profissões também plebeias. Família<br />
de sapateiro, de carpinteiro, de relojoeiro, de pintor. A<br />
família subia, porque cada nova geração acrescentava alguma<br />
coisa ao savoir faire, ao know how da geração anterior.<br />
A pessoa era modelada pelo ambiente.<br />
Por essa forma de reflexão fulgurante, aos 22 anos ele<br />
já era um grande general. E a tal ponto que as batalhas<br />
dele se estudam nas escolas militares do mundo inteiro,<br />
como se estudam, por exemplo, as de Turenne e as de<br />
Napoleão, de Hindenburg, de Ludendorff, etc. Ficaram<br />
no curso da História. De tal maneira eram batalhas fulgurantemente<br />
pensadas e executadas.<br />
Gesto de elegância militar<br />
Siren Com (CC 3.0)<br />
Feita a descrição do personagem, consideremo-lo<br />
nesse quadro que representa o final<br />
da mais célebre de suas batalhas: a de Rocroi.<br />
Vemos um panorama campestre. Ao<br />
fundo, corre um rio, mais adiante um campanário<br />
e uma aldeiazinha. O rio plácido e<br />
tranquilo, onde não se combateu, contrasta<br />
com o número de pessoas que se acotovelam<br />
nessa cena. Há dois grupos bem diversos:<br />
os franceses e os espanhóis. Estes<br />
últimos estão a pé.<br />
Notam-se, na primeira fila, alguns mortos,<br />
um tambor furado. Do outro lado,<br />
os franceses. O futuro Príncipe de Condé,<br />
no centro; mais para trás a figura de<br />
um guerreiro, homem perto dos 60 anos,<br />
mas de uma maturidade extraordinária,<br />
guerreando, combatendo, olhando para<br />
o Condé com muita atenção; o séquito<br />
francês que vem vindo atrás. No meio de<br />
uma poeira cheia de luz, uma mão que<br />
levanta uma espada. Na primeira fileira,<br />
32
Reprodução<br />
dois cavaleiros que se dirigem a Condé, e aos quais Condé<br />
faz um gesto com a mão.<br />
A batalha havia sido ganha pelos franceses, e os espanhóis<br />
tinham estabelecido um entendimento, uma espécie<br />
de armistício, quando se produziu nas hostes espanholas<br />
uma agitação, que alguns franceses interpretaram<br />
como sendo espanhóis que queriam romper o acordo e<br />
recomeçar o ataque. Então, os franceses se dispuseram<br />
a atacar. Condé recebeu a informação de se tratar de um<br />
engano, não passando de um movimento interno das tropas<br />
espanholas. Levado pelo respeito devido aos derrotados<br />
cavalheirescos e de boa-fé, e em particular ao exército<br />
espanhol, que na época era um dos primeiros da Europa,<br />
ele fez cessar imediatamente o ataque que os franceses<br />
iam perpetrar contra os vencidos, por um equívoco.<br />
Razão pela qual Condé faz um sinal tranquilizador. O<br />
gesto de mão é muito significativo nesse sentido. Nota-se<br />
também que, enquanto as tropas francesas vêm avançando,<br />
ele está freando o cavalo dele. Toda a sua atitude é de<br />
quem para o cavalo e contém o ataque da cavalaria francesa,<br />
e pacifica uma situação que poderia dar numa chacina.<br />
Esse é o bonito gesto de elegância militar que o pintor<br />
quis guardar.<br />
Por causa das tradições de Cavalaria, enigmaticamente<br />
representadas nesse quadro, os antigos tinham a preocupação<br />
de tratar sempre o vencido digno, com muita honra.<br />
Era uma vergonha para um vencedor esmagar o derrotado<br />
de um modo inumano e humilhá-lo. Batiam-se rudemente<br />
enquanto durava o combate. Cessado este, era a hora<br />
da cortesia, da reverência, da distinção de parte a parte.<br />
Aqui vemos, então, Condé cumprir esse dever de cavalheiro.<br />
Ele, vitorioso, contém os franceses e, com isso, salva<br />
os vencidos. É a velha Cavalaria que ainda se encontra aí.<br />
A manifestação enigmática da velha Cavalaria, para<br />
a qual eu não encontrei uma explicação, é uma figura<br />
medieval, completamente anacrônica, toda revestida de<br />
couraça medieval e de plumas, e que está meio fora do<br />
ambiente. Ninguém mais usava, nesse tempo, esse armamento.<br />
O personagem parece estar posto numa luz onde<br />
se tem um pouco a impressão de não se tratar de um ser<br />
vivo, mas de um fantasma. O que significará esse fantasma?<br />
Será a velha Cavalaria, símbolo que paira sobre essa<br />
cena cavalheiresca? Também não sei.<br />
Importância dos matizes<br />
Descrevi o quadro com todos os seus detalhes para<br />
ajudá-los a tomar o gosto pelo pormenor. O sabor de todas<br />
as coisas está no pormenor. Talleyrand dizia que a<br />
verdade está nos matizes. Todas as verdades são cheias<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
de matizes. Saber matizar é saber pensar; e saber pensar<br />
é saber viver.<br />
Notem quantos matizes aparecem nessa cena! Vemos<br />
aflição nesses dois cavaleiros e, ao mesmo tempo, a inteira<br />
calma desse espanhol de pé, com um grande chapéu,<br />
camisa e ampla gola branca. Ele percebeu a distinção<br />
e a nobreza da atitude do Condé, fazendo sinal para<br />
seus compatriotas não atacarem, por se tratar de um mero<br />
equívoco. Outro atrás, vencido, aclama o gesto de fidelidade<br />
de Condé. Notamos aí a glória de Condé, a confiança<br />
e a admiração do vencido. Isso não está escrito,<br />
mas está expresso. É um quadro com um pensamento.<br />
Atrás de Condé vemos aquele velho cavaleiro francês.<br />
Notem o jeito dele. Sem dúvida nenhuma, é um nobre. É<br />
também um homem muito varonil, corpulento, e se percebe<br />
que passou a vida inteira batalhando. Ele tem no<br />
chapéu uma pluma branca que parece um pouco de névoa<br />
a flutuar nas dobras de seu chapéu, como se fosse<br />
um resto de glória da batalha da qual ele acaba de tomar<br />
parte. Ele usa uma capa azul-claro, com uma espécie<br />
de bordado dourado. Dir-se-ia até que um azul tão claro<br />
não fica bem para o traje militar de um homem. Entretanto,<br />
para esse homem não fica perfeitamente bem?<br />
Tão varonil é ele, que pode usar isso, e até o que ele poderia<br />
ter de um pouco rude demais é atenuado agradavelmente<br />
pelo azul-claro da capa por ele usada.<br />
Eis uma das características do senso de matiz do francês:<br />
veste o herói de azul bem claro. Um bobo diria:<br />
“Efeminado!” Mas dizer que esse homem é efeminado<br />
é ridículo. Ele é um patriarca, um senhor feudal de grande<br />
porte, presente na batalha. E assim como, no momento,<br />
encontra-se sereno, daqui a dois ou três minutos pode<br />
estar matando ou morrendo, porque está inteiramente<br />
disposto a tudo. É um leão!<br />
Fórmula francesa do heroísmo<br />
Essa é a fórmula francesa do heroísmo e da coragem.<br />
Há várias formas. Não é esta a única modalidade bonita.<br />
Há a fórmula alemã — lindíssima! —, a fórmula espanhola<br />
e tantas outras. A francesa é a do leão com rendas,<br />
enfeitado com cores claras. Alguém poderia estranhar.<br />
Se estranhar é porque não entendeu. E se não entendeu,<br />
é uma pena para ele. Porque é uma lástima alguém não<br />
entender isso.<br />
Vejam os contrastes finos apontados pelos matizes. Para<br />
dar uma ideia de até que ponto esse guerreiro é um homem<br />
varonil, concorre a espada que ele não está brandindo.<br />
Percebe-se que, quando ele a brande, é assim. Esse<br />
pormenor compõe o aspecto guerreiro do homem.<br />
Notem para onde ele está olhando. Não é para a batalha,<br />
mas para o Condé. Imagem da disciplina militar, ele<br />
olha para o chefe. O que este mandar, ele fará. Se o comandante<br />
disser: “Mate cinco mil, ou morra”, ele vai<br />
para a frente e morre, na tentativa de matar os cinco<br />
mil. Se, pelo contrário, o chefe disser: “Embainha tua<br />
espada”, ele a embainha. É a fidelidade feudal não apenas<br />
na vida civil, mas transposta para o terreno militar,<br />
e na sua perfeição. Ele olha para o Condé, porque o<br />
próprio do grande senhor é olhar para o príncipe, como<br />
o príncipe olha para o rei, como o rei olha para Deus. É<br />
a hierarquia das coisas.<br />
Chegou o momento de analisarmos o Condé. Notem,<br />
antes de tudo, suas feições. O enorme nariz, que<br />
se projeta decididamente para a frente, tem a forma<br />
e o gráfico da coragem. Ele é ainda muito moço, com<br />
as características de certo tipo de francês do Norte,<br />
mais chegado ao alemão: pele clara, corada,<br />
cabelos louros, longos e cacheados. Características<br />
da raça. É um tipo de herói<br />
que exprime a coragem e a força<br />
francesas.<br />
O soldado alemão, por exemplo,<br />
faz sentir a sua força pela sua<br />
corpulência atlética, pelo seu desassombro<br />
e pelo impulso físico<br />
e moral. O francês é muito mais<br />
esguio, fino. A sua capacidade<br />
de força não é dada tanto pela<br />
quantidade quanto pela qualidade<br />
dos músculos. São músculos<br />
que não precisam ser bolas<br />
para dobrar e quebrar o adversário.<br />
A etimologia da palavra<br />
“músculo” vem do latim, mus,<br />
que significa rato. Músculo é o diminutivo<br />
latino de rato, e quer dizer<br />
ratinho. Quando o músculo se<br />
contrai, forma à maneira de um ratinho<br />
debaixo da pele.<br />
O guerreiro francês não tem “ratinhos”<br />
por debaixo da pele, como teriam, por exemplo,<br />
certos atletas da escultura renascentista italiana. O Moisés<br />
de Michelangelo, por exemplo, é uma coleção de “ratos”.<br />
O francês não precisa disso. Possui nervos de aço<br />
que não formam bola, pois tudo nele é harmônico.<br />
O cavaleiro medieval exprime o grau<br />
de perfeição a que chegou a Cristandade<br />
No Condé percebemos uma característica muito bonita:<br />
na fragilidade dele, a intensidade de alma. Quando<br />
ele ataca, ninguém resiste.<br />
34
Chamo a atenção para o olhar: é um olhar dominador.<br />
Muito mais do que o nariz é o olhar, o qual se percebe<br />
pela atitude da cabeça. O que comanda o olhar é a posição<br />
da cabeça. Vejam a posição do pescoço e da cabeça<br />
dele. O pescoço está completamente ereto, mas não<br />
de um modo provocativo. É natural nele ser superior. A<br />
cabeça está posta de tal maneira que ele, naturalmente,<br />
fica de cima em relação a qualquer pessoa que ele olhe.<br />
De onde o gesto protetor é de uma bondade que deflui<br />
do alto. Ele está inteiramente seguro. Notem a mão dele<br />
com um dedo afastado do outro, com naturalidade, como<br />
quem diz: “Tranquilizem-se! Eu vou manter o pacto.<br />
Não há nada.” Mas com a bondade de um vencedor.<br />
Aqui está o cavaleiro perfeito.<br />
Um comentário sobre seu traje. É o gosto dos franceses<br />
de adornar a coragem com cores claras, ligeiras. Ele usa<br />
um paletó de um dourado muito claro e delicado, quase<br />
creme, que deixa transparecer perfeitamente o corpo dele<br />
bem delineado, com os ombros muito mais largos do que<br />
a bacia. Ele tem uma faixa azul da qual pende a insígnia<br />
da Ordem do Espírito Santo, e uma grande gola de renda.<br />
Sobre seu chapéu ele traz plumas muito mais magníficas<br />
do que as daquele personagem atrás dele. São plumas<br />
ligeiras, branquíssimas, formando uma espécie de rastro,<br />
como a dizer: “Ele passa, mas a glória deixa um sulco<br />
atrás dele. Ele meneia a cabeça e a glória esvoaça em torno<br />
dele.” Essas plumas brancas para um general são quase<br />
o que é uma auréola para um santo.<br />
O cavalo do Condé é uma perfeição, porque é no reino<br />
dos cavalos o que o Condé é no reino dos homens. É<br />
um cavalo de guerra francês. Quer dizer, raça apurada<br />
Augusto Ferrer (CC 3.0)<br />
pelos franceses. Não é desses cavalões. Não<br />
sei se conhecem um tipo de cavalo chamado<br />
percheron, para arrastar carga. Enormes patas,<br />
uma coisa fenomenal. Não deixa de ter<br />
sua graça. Mas não é isso. Esse é um cavalo<br />
ligeiro, feito para pular por cima dos adversários,<br />
muito mais do que para achatá-los; que<br />
mais vence voando do que esmagando. Mas<br />
cuja pata é certeira e cujos músculos são como<br />
os do Condé. Não há “ratinhos” ali, como<br />
terá talvez o percheron. A musculatura do<br />
cavalo do Condé é enxuta, simples, vigorosa.<br />
Vejam a vivacidade dele; é como a vivacidade<br />
do Condé!<br />
Compreendemos, assim, o estilo “condeano”<br />
de combater. A intuição está nele. O homem<br />
entra no campo de batalha, olha, intui<br />
e avança.<br />
Se eu tivesse que dar um título a este quadro,<br />
diria: Garbo é igual a força mais leveza.<br />
Força e leveza dão o “condeano”.<br />
O quadro tem espírito medieval no sentido de que<br />
afirma muito o esplendor da condição militar e seu caráter<br />
aristocrático e nobre. De maneira que até os plebeus<br />
presentes na cena têm algo de nobilitado pela condição<br />
militar. Essa glorificação da condição militar é uma característica<br />
medieval.<br />
Contudo, não possui o espírito medieval pelo fato de<br />
os principais personagens do quadro fazerem a guerra<br />
como se partissem daí para uma dança; eles estariam<br />
prontos para uma festa. Ora, para a morte a pessoa não<br />
se prepara assim. Há o Juízo, a grandeza do destino eterno<br />
do homem, a majestade infinita de Deus, a majestade<br />
da morte que roça por cada um na batalha, que suporia<br />
mais gravidade e, consequentemente, maior audácia e<br />
maior beleza também. Por isso, aquele personagem meio<br />
mítico colocado ali é, neste sentido, superior ao Condé,<br />
pois é mais religioso.<br />
O cavaleiro medieval, a meu ver, exprime o grau de<br />
perfeição a que foi dado à Cristandade chegar, até o momento.<br />
No Reino de Maria atingirá incomparavelmente<br />
mais alto, porque São Luís Grignion de Montfort diz que<br />
os Santos do Reino de Maria vão ser para os anteriores como<br />
os carvalhos em relação às graminhas. Então, as belezas<br />
da Cristandade serão como graminhas em comparação<br />
com as da Civilização Cristã do Reino de Maria. v<br />
(Extraído de conferência de 5/3/1977)<br />
1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 - †1686), conhecido<br />
como “O Grande Condé”, que venceu a Batalha de Rocroi.<br />
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“Virgen de la Antigua”<br />
Catedral de Sevilha,<br />
Espanha<br />
Felix Cæli Porta<br />
N<br />
a hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus,<br />
a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre<br />
Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente,<br />
Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá<br />
ao mundo o Filho que Ela gerou.<br />
Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como<br />
uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura<br />
o Verbo de Deus encarnado!<br />
(Extraído de conferência de 2/7/1995)<br />
Francisco Lecaros