Revista Elas por elas 2013
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
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SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS - FILIADO À FITEE, CONTEE E CTB - WWW.SINPROMINAS.ORG.BR - MARÇO 2013 - NÚMERO 6
anos
Noiva do Cordeiro
Uma história
de coragem e
superação
Sinpro Minas:
80 anos com muita
participação
feminina
Elas
Eu quero todas as espécies
no meu sangue
das dóceis às indomáveis
as que atravessam perigos
e sinais proibidos
e as que rezam ajoelhadas
sob o peso da missa de qualquer domingo
a que não tem berço nem beira
a que se debruça
denuncia e resiste
e a que se recolhe tremulante
sob o apelo irresistível
de mais uma canção
mas a que transita alheia
por entre ruas,
abismos e rotas acidentais
eu quero muito mais
que quando há tempo corre
e não cansa
vai no rastro da esperança
tentar alcançar a última estrela
na beira dos caos
do próximo quarteirão
e ser feliz para sempre
como se fosse só isso...
Cláudia Castanheira
Mulheres protagonistas
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Neste ano o Sinpro Minas comemora oito décadas de existência e presenteia
as mulheres e aqueles que gostam muito delas com esta edição especial
da revista Elas por Elas. Em seu sexto número, a revista conta
uma parte da história do sindicato relativa à participação feminina. Ao
longo desses oitenta anos, duas mulheres ocuparam a presidência da instituição
e não foram poucos os episódios protagonizados pelas professoras
e dirigentes sindicais. Da superação do machismo, passando pelas
aguerridas batalhas por uma educação de qualidade, ao envolvimento nas
grandes lutas do povo brasileiro, a verdade é que elas deixaram um
importante legado para as futuras gerações.
Se a luta de uma categoria como a dos professores exige muita
coragem e garra das mulheres, imaginem o desafio de trabalhadoras que
vivem no campo, como as da inusitada história retratada na reportagem
sobre a comunidade Noiva do Cordeiro, no município de Belo Vale, em
Minas Gerais. Em sua origem, a matriarca da comunidade foi excomungada
pela Igreja Católica e pela sociedade porque deixou o marido para viver
com o seu grande amor. Preconceito, fome, falta de instrução e isolamento
marcaram a vida dos descendentes desse casal, até que eles se organizaram,
sob a liderança das mulheres, e criaram alternativas de subsistência.Uma
história de superação de preconceitos e uma lição de igualdade de
gênero, que mereceu o destaque na capa dessa edição também comemorativa
dos 80 anos do Sinpro Minas.
Com tantas histórias para ilustrar as temáticas que nos propomos
abordar, a revista está mais robusta e com muito conteúdo para servir de
estudos, debates e inspiração para atitudes comprometidas com a ideia de
uma sociedade mais igualitária. Mais uma vez, destacamos que lugar de
mulher pode e deve ser na política, assim como os homens também
devem assumir mais responsabilidades com as tarefas domésticas. A
matéria Mudança de hábito mostra que a jornada média semanal das mulheres
nessas atividades é 2,5 vezes maior que a masculina.
O recorte de raça também sempre está presente em nossas pautas.
Nesse aspecto, essa edição traz uma matéria sobre a reserva de cotas
raciais na educação, abordando como as mulheres negras conquistam o
diploma universitário e começam a mudar o perfil do ensino superior no
Brasil.Também fomos investigar como as questões sobre educação e feminismo
se desenvolvem nas comunidades indígenas e encontramos uma
pérola, a índia Adana kambeba, estudante de medicina e atriz no filme
Xingu, que conta sua experiência em unir conhecimento e tradição para
ajudar seu povo.
A revista traz outras reportagens sobre parto humanizado, câncer de
mama, adolescentes negras, prostituição, entre outras, e um artigo sobre
aborto. Ao final da revista, os leitores poderão observar algo que perpassa
grande parte das matérias: a violência de gênero. Uma entre várias outras
questões importantes que necessita avançar.
Boa leitura!
Revista Elas por Elas - março 2013 3
HISTÓRIA SINDICAL
80 anos com muita
participação feminina
Pág 6
REALIDADE
Direito aos direitos
Prostitutas querem
regulamentar
profissão
Pág 20
VIOLÊNCIA
Lei Maria da Penha
traz mudanças positivas
Pág 26
POLÍTICA
Mulheres ainda são
minoria na política
Pág 8
MULHER E MÍDIA
Fora das capas
de revistas
Pág 40
ARTIGOS
O avanço das
mulheres nas
eleições de 2012
Pág 16
São dois pra lá,
dois pra cá?
Pág 36
MATERNIDADE
“O parto é
da mulher”
Pág 30
4
COMPORTAMENTO
Para além da
dona Benta
Pág 46
Mudança de hábito
Pág 50
CAPA
Noiva do Cordeiro
Uma história de
coragem e superação
Pág 47
ETNIA
Educação e feminismo
nas comunidades
indígenas
Pág 52
SAÚDE DA MULHER
Câncer
de mama
tem cura
Pág 60
EDUCAÇÃO
Democracia,
ainda que tardia
Pág 72
PERFIL
Uma vida dedicada
à arte da interpretação
Pág 82
POUCAS E BOAS
DICAS CULTURAIS
Pág 84
Revista Elas por Elas - março 2013 5
Arquivo
Professoras da Chapa 2 nas Eleições de 1985 do Sindicato dos Professores.
HISTÓRIA SINDICAL | por Denilson Cajazeiro
80 anos com muita
participação feminina
Mulheres assumem protagonismo nas lutas do Sinpro Minas
6
O Sinpro Minas completou, em fevereiro
de 2013, 80 anos de história.
Durante essa trajetória, centenas de
professores, entre eles muitas mulheres,
assumiram a difícil tarefa de dirigir uma
entidade sindical que esteve envolvida
nas grandes lutas do povo brasileiro.
Da campanha a favor da anistia aos
cassados pelo regime militar às greves
por uma educação de qualidade, com
melhores salários e condições de trabalho
dos professores, não foram poucas
as batalhas de que o sindicato participou.
Uma dessas lutas ficou conhecida
como o “lobby do batom”. Em meados
da década de 80, lideranças feministas
passaram a circular pelos corredores
do Congresso para pressionar os parlamentares
a incluírem, na Constituinte,
propostas de interesse das mulheres.
Em novembro de 1987, as diretoras
do Sinpro Minas Lavínia Rosa, Elizabeth
Mateus e Maria da Conceição Miranda
também participaram de um encontro,
em Brasília, que aprofundou o debate
acerca de uma Constituição mais igualitária.
Durante três dias, cerca de 470
mulheres, representando diversas categorias
profissionais, discutiram, no “I
Encontro Nacional A Mulher e as
Leis Trabalhistas”, temas como jornada
de trabalho, direitos da reprodução,
garantia de emprego, a situação das
trabalhadoras domésticas e rurais, entre
outros. Dali saíram diversas resoluções
que ajudaram na elaboração dos dispositivos
previstos na Constituição.
Ao longo dessas oito décadas
de história, duas mulheres presidiram
o Sinpro Minas. Uma delas é Inês Assunção
Teixeira, que esteve à frente da
entidade entre 1983 e 1986, anos em
que o sindicato e a sociedade civil participaram
das Diretas Já, uma das
maiores manifestações populares do
país que reivindicava a realização de
eleições presidenciais diretas no Brasil.
“Foram muitos desafios, alguns inesperados,
mas foi um tempo muito feliz,
bonito. O sindicato nos coloca a serviço
do coletivo”, afirma Inês Teixeira, ao
lembrar das greves e assembleias de
professores.
A ex-presidente conta que, na época
da eleição para a diretoria do sindicato,
chegou a esconder a gravidez, com
medo de perder votos. “Achei que poderiam
pensar que uma mulher grávida
não teria condições de se dedicar à luta
sindical”, revela Inês Teixeira, que hoje
é professora da Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e trabalha, entre outros temas,
com o cinema na sala de aula.
Segundo ela, as mulheres que participam
do mundo sindical enfrentam
desafios maiores, quando comparados
aos dos homens. “A luta sindical é desafiante,
mas para a mulher é dobrado.
Em geral, na vida da mulher, o tempo
é sempre menor para a formação profissional,
política”, aponta a professora.
Em sua avaliação, as mulheres sindicalistas
possuem muita representatividade,
mas enfrentam mais barreiras.
“Você tem desafios multiplicados. Temos
a mesma capacidade de negociação,
de defender uma proposta, mas enfrentamos
mais resistência. Quando um
homem fala, como diz Focault, ele já
está legitimado. A mulher tem de ir se
legitimando, construir uma respeitabilidade
pública”, afirma.
De acordo com ela, as entidades precisam
oferecer mais condições para que
as mulheres participem da luta sindical.
“Os sindicatos precisam pensar em formas
de facilitar a participação feminina, lembrar
que somos diferentes, mas somos iguais
no direito. Temos os mesmos direitos de
participar da esfera pública”.
A outra mulher que presidiu o Sinpro
Minas é Celina Alves Padilha Arêas.
Atual diretora do sindicato e secretária
de Formação e Cultura da Central dos
Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil
(CTB), Celina Areas foi presidenta entre
1995 e 2000, em duas gestões. Foram
anos difíceis para os trabalhadores brasileiros,
devido às políticas neoliberais
da década de 90, o que não inibiu a
luta do sindicato em defesa dos professores.
“Acho que, no Sinpro Minas,
com todas as dificuldades, fazemos uma
gestão compartilhada, onde nós, mulheres,
temos mais condições de dar
opinião”, afirma a diretora. Segundo
ela, a experiência de presidir o sindicato,
que representa uma categoria majoritariamente
feminina (cerca de 80% do
total), foi gratificante.
“Sempre tivemos o respeito da
categoria. A experiência valeu a pena.
É uma escola. Valeu, mas acho que
ainda temos de fazer uma política de
inclusão das mulheres no movimento
sindical e na política, pois as condições
não são iguais”, diz Celina Areas, e
lembra ainda que, das cinco centrais
sindicais hoje reconhecidas, nenhuma
delas tem uma mulher na presidência.
A diretora defende também que os
sindicatos ampliem as ações de gênero,
como a revista Elas por Elas. “O Sinpro
Minas vem numa luta crescente.
Desde a retomada [em 1980], o sindicato
vem crescendo. É a continuidade
de uma concepção sindical classista,
em que se tem consciência de que é
preciso lutar tanto na questão econômica,
quanto na política e ideológica.
Penso que estamos no caminho certo”,
afirma, otimista, a diretora do Sinpro
Minas, entidade na qual quase a metade
da atual direção é composta por
mulheres.ø
Revista Elas por Elas - março 2013 7
8
Internet
Mulheres ainda
são minoria
na política
Belo Horizonte e grande parte das cidades brasileiras
tiveram poucas mulheres eleitas em 2012
POLÍTICA | por Cecília Alvim
Mesmo com as recentes mudanças
na lei de cotas de gênero na política e
com a eleição em 2010 de Dilma como
a primeira presidenta do Brasil, as eleições
municipais de 2012 ainda não
trouxeram um significativo aumento do
número de mulheres eleitas no país.
A minirreforma eleitoral de 2009
determinou que os partidos deveriam
preencher a cota mínima de 30% de
candidatas nas listas eleitorais para as
eleições seguintes. Esperava-se que
assim mais mulheres recebessem apoio
para terem aumentadas suas chances
de candidatarem-se e elegerem-se.
No entanto, o que se viu foram as legendas
ocuparem essa cota com mulheres,
que, em sua maioria, não tinham
chances reais de eleição. “Boa parte
das candidatas entrou nas chapas quase
simbolicamente, e por isso o resultado
eleitoral foi pequeno”, destacou a deputada
estadual Luzia Ferreira (PPS-MG).
Para a cientista política Marlise
Matos, que é também coordenadora
do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
a Mulher da UFMG, os partidos brasileiros
têm descumprido a lei de cotas.
“Na maior parte dos casos, não preencheram
as cotas nem em 2010, nem
em 2012. E os tribunais não indeferiram
as listas preenchidas indevidamente”,
aponta.
No Brasil, 72.476 mulheres foram
candidatas às Câmaras Municipais em
2008, e 6.504 foram eleitas. Em 2012,
esse número passou para 133.868
candidatas, sendo que apenas 7.648
se tornaram vereadoras em todo o
país. Esse pequeno aumento demonstrou
que será preciso promover mudanças
mais rigorosas na estrutura de partidos
e do sistema político brasileiro para
que haja transformações maiores nesse
cenário. “Construímos no Brasil uma
cultura que inviabiliza o exercício feminino
de poder através da política. É
preciso incentivar e promover o empoderamento
das mulheres”, destaca Marlise
Matos.
Segundo a deputada Luzia, a exclusão
começa dentro dos partidos.
“Falta apoio financeiro, político e logístico
às candidaturas femininas. Os
partidos ainda são predominantemente
chefiados por homens. As mulheres
não têm poder de mando”, afirmou.
Luzia Ferreira acredita que propostas
Revista Elas por Elas - março 2013 9
discutidas no âmbito da reforma política
podem ajudar a ampliar a participação
feminina no poder. “O financiamento
público de campanha e o voto em lista
preordenada com alternância de gênero
podem favorecer as mulheres”, destacou.
Incentivar o protagonismo
Esse quadro de pouca representatividade
feminina também se constitui
por questões culturais arraigadas. A
política ainda não é um espaço favorável
para as mulheres. “A mulher foi para o
mercado de trabalho, ampliou anos de
estudo, mas continua acumulando funções
de gerenciamento do espaço privado”,
destacou a deputada Luzia Ferreira.
Para ela, além de conciliar uma
jornada tripla de atividades, a mulher
precisa vencer também a resistência
da própria família para se envolver politicamente.
“Quando ela se candidata,
é porque já rompeu com muita coisa,
já criou os filhos. Também por isso
elas começam mais tarde na política”.
Para a cientista política Marlise
Matos, há ainda outro viés sociocultural
que explica essa situação. A recente
ascensão social das camadas mais pobres
da sociedade brasileira não veio acompanhada
de ações que possibilitassem
um processo educativo e formador de
consciência política e cidadã. “As políticas
de distribuição de renda dos governos
Lula e Dilma devem ser valorizadas,
mas não podem parar por aí.
Precisam ser associadas a outras políticas
sociais, também no campo da educação.
É fundamental preparar as pessoas,
especialmente as mulheres, para assumir
um maior protagonismo social, que
gere transformações profundas na realidade
brasileira”, destacou.
Assim, segundo Marlise, muitas famílias,
compostas também por mulheres,
foram felizmente tiradas da pobreza,
mas levadas em direção à sociedade do
consumo. “A própria feminilidade está
a serviço do consumo. A mulher hoje
10
está muito voltada para satisfazer seus
desejos de consumo, para obter bens,
para consumir ideais de estética, roupas
e produtos de beleza. Além disso, muitas
estão consumidas no seu tempo, chefiando
lares. Precisamos descobrir,
então, o que vai mobilizar as mulheres
a agir politicamente”, analisa.
Câmara de BH tem apenas
uma vereadora
De acordo com o Tribunal Superior
Eleitoral, dos 1.287 candidatos a vereador
na capital mineira, 397 (30,85%)
eram mulheres. No entanto, somente
uma mulher foi eleita, Elaine Matozinhos
(PTB), para ocupar uma das 41 cadeiras
da Câmara Municipal de Belo Horizonte.
É a menor representação feminina no
legislativo municipal desde a redemocratização,
em 1988.
Em 2008, foram eleitas cinco vereadoras,
sendo que quatro delas não
conseguiram se reeleger em 2012:
Neusinha Santos (PT), Pricila Teixeira
(PTB), Sílvia Helena (PPS) e Maria
Lúcia Scarpelli (PCdoB). Essa redução
Mulheres
vereadoras em
BH
1988
1992
1996
2000
2004
2008
2012
quantidade de de mulheres
es
eleitas
de cinco para uma eleita, após apenas
quatro anos, assustou as mulheres e
merece atenção e análise.
A única vereadora da capital mineira
se disse surpresa com o resultado das
eleições e lamentou a redução do número
de vereadoras. “É um grande retrocesso,
mas não é um fato isolado
em BH. Aconteceu em todo o país”,
apontou Elaine Matozinhos.
Ela é formada em Direito, Delegada
de Polícia há mais de 30 anos, e uma
das fundadoras das Delegacias de Mulheres
e do Idoso em Belo Horizonte.
Em 2012, foi eleita para seu quarto
mandato eletivo, sendo três na Câmara
Municipal e um na Assembleia Legislativa
de Minas Gerais.
Ela considera que há um desencanto
das mulheres por se candidatarem. “As
mulheres que estão nesse meio sabem
como é difícil se eleger e continuar.
Em muitos casos, quando eleitas, são
pessoas que se destacam muito na sociedade
pelo trabalho que exercem ou
que recebem poder político por herança
de um homem, que é seu padrinho político”,
afirmou.
Na opinião de Elaine Matozinhos, a
falta de apoio dos partidos, uma cultura
extremamente conservadora com relação
às mulheres, e a reduzida participação
delas no cenário político municipal
influenciaram esse resultado. “Houve
também um desgaste da imagem da
Câmara no último mandato”, completou,
ao se referir aos escândalos recentes
que envolveram vereadores. Essa
imagem desgastada realmente afetou
os resultados, haja vista a grande renovação
da Câmara. Apenas 19 dos 41
vereadores foram reeleitos em 2012.
Encorajar as mulheres
Marlise Matos considera essa redução
um problema multideterminado, multifacetado.
“É uma queda drástica e histórica.
Se deve a inúmeros fatores,
como a cultura, as instituições, os va-
Elaine Matozinhos foi a única vereadora eleita em Belo Horizonte em 2012.
lores, as mentalidades”, analisa. Para
ela, Belo Horizonte perdeu um rico
processo de participação política, que
se dava através de alguns mecanismos,
hoje enfraquecidos, como os conselhos
e os processos de orçamento participativo.
“BH vive um contexto neoconservador
há alguns anos. Temos no
poder grupos políticos refratários a mudanças,
que não incentivam a participação
política e social e que não tem a
pretensão de resultados cívicos”, analisa.
Marlise enumera outros fatores que
influenciaram esse contexto de reduzida
representação feminina na Câmara de
Vereadores de Belo Horizonte. Para ela,
há um avanço das representações protestantes
a ocupar um significativo espaço
político. “Esse reencantamento religioso
coincide com um processo de desencantamento
com a política”, destaca.
Além disso, para ela, há outra
questão conjuntural, que também afeta
a população da cidade. A crise de instituições
como a escola e a família faz
com que o processo de socialização
Cecilia Alvim
aconteça de uma forma diferente, sem
gerar valores de cidadania. “Hoje,
grande parcela de ricos e pobres vivem
alienados no consumo, na internet, na
religião. Estão orientados por outros
sentidos e significados. Não pensam
em agir coletivamente através da política”,
pondera.
Para mudar esse cenário, o grande
desafio é incentivar a formação de novas
lideranças femininas, e isso passa por
encorajar as mulheres a participar. “Nós
precisamos levar para a sociedade a
confiança em mandatos femininos. Não
adianta ficar gritando de fora. Ninguém
vai te ouvir”, disse Elaine Matozinhos, a
convocar as mulheres da cidade.
Cidadania plena
Elaine entrou na Polícia com 23
anos, e aos 44, entrou para a política.
“Tanto a polícia como a política são
espaços majoritariamente masculinos
de poder”, destacou. Mas ainda assim,
ela se considera uma feminista. “Entendo
feminismo como a busca da garantia
da igualdade, da plena cidadania da
mulher”, afirmou.
Para a vereadora, violência contra
a mulher não é só a que chega à delegacia.
“Os salários desiguais, a atenção
precária à saúde da mulher, que passa
por problemas graves como gravidez
de risco, câncer de mama, entre outras
situações atuais, afrontam os direitos
das mulheres”, disse. No dia da entrevista,
ela analisava, para encaminhar
para tramitação, um projeto de lei que
institui o Programa Saúde Itinerante
da Mulher em BH.
Mulheres na liderança
A baixa representação das mulheres
não é um problema somente dos legislativos
municipais. Em 2012, dos 513
deputados federais, apenas 46 eram
mulheres, e dos 81 senadores, apenas
10 eram mulheres. Esse triste quadro
também se confirma em Minas Gerais.
A Assembleia Legislativa Estadual atualmente
conta apenas com cinco deputadas,
entre 77 vagas. Foram quatro
eleitas, e uma que assumiu como suplente
na vacância de um deputado.
Além de todos os esforços para
serem eleitas, as mulheres precisam
superar barreiras também dentro das
instituições.
A deputada Luzia Ferreira relata
que as mulheres, muitas vezes, não são
consideradas para ocupar espaços e
comissões importantes dentro da casa
legislativa. “Enquanto os homens ficam
sucessivos mandatos, elas têm dificuldade
de se eleger e de se manter na política”,
afirma.
Luzia Ferreira foi a primeira mulher
a exercer a presidência da Câmara de
Vereadores de Belo Horizonte, após
15 legislaturas. Ela foi eleita para o
biênio 2009/2010 com 40 votos de
um parlamento composto por 36 vereadores
e apenas cinco vereadoras.
Após dois mandatos de vereadora,
Luzia foi eleita deputada estadual.
Revista Elas por Elas - março 2013 11
Mulheres na política analisam
a participação feminina nas eleições
Jô Moraes
Paraibana, radicada em Minas desde
a época da militância contra a ditadura
militar, Jô Moraes é fundadora da União
Brasileira de Mulheres. Participou da
criação do Conselho Estadual da Mulher,
em 1982. Foi também a primeira presidente
do Movimento Popular da Mulher. Foi vereadora
de Belo Horizonte por dois mandatos,
deputada estadual, e, em 2006, foi
eleita deputada federal, sendo reeleita em
2010. Atualmente, é presidente do PCdoB
em Minas e membro da Comissão Executiva
Nacional do partido. É também
presidente da Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito (CPMI) que investiga a violência
contra as mulheres no Brasil.
“Como sempre, o principal desafio
para as mulheres é a falta de estrutura
para dar uma amplitude maior às suas
campanhas. É importante resgatar o fato
de que, em relação às eleições anteriores,
cresceu o número de eleitas tanto para as
Câmaras Municipais (13,3% ) como para
as Prefeituras (12,1%). Evidente que foi
um crescimento pequeno, o que é resultado
também do processo eleitoral que se torna
cada vez mais caro. Ao mesmo tempo, é
a demonstração de que as estruturas partidárias
continuam concentradas nas mãos
dos homens. As campanhas nas capitais,
particularmente onde a disputa foi mais
acirrada, exigiu uma grande estrutura de
divulgação das candidaturas. Alie-se a
isso o pequeno número de lideranças femininas
destacadas que pudessem contornar
a falta de recursos.
Enquanto o poder econômico for o
principal eleitor, dificilmente as mulheres
conquistarão mais espaços. Por isso, o financiamento
público de campanha é o
primeiro passo. É preciso também reforçar
a presença das mulheres nas estruturas
partidárias, sobretudo nos cargos de direção
executiva. Só assim as políticas afirmativas
terão maior força. Cursos de formação
para as filiadas, presença nos programas
de mídia, creches nas convenções, visibilidade
nos eventos, são algumas das medidas
que poderão ajudar a superar as
barreiras. Sem isso o caminho será longo.”
Neila Batista
Neila Batista foi vereadora por oito
anos em Belo Horizonte. Em 2012, embora
tenha sido a segunda mulher mais votada
na cidade, não conseguiu se eleger novamente
para a Câmara, Ela é assistente
social e filiada ao PT desde 1980. Além
de técnica em instituições públicas e privadas,
foi gestora pública na PBH e no
governo Lula (Ministério do Desenvolvimento
Social). Foi sindicalista e diretora
de associação comunitária. Atualmente,
assessora o deputado estadual Rogério
Correia.
“Hoje, sou a primeira suplente do PT e
fui a segunda mulher mais votada da cidade.
Os desafios enfrentados pelas mulheres?
Primeiro, a eleição tendeu à despolitização,
o que enfraquece o debate sobre a questão
de gênero, no contexto dos desafios municipais.
O debate do urbano e os direitos
das mulheres caminham juntos. Ou pelo
menos deveriam. E com uma eleição despolitizada
isso fica prejudicado. Em segundo,
a cultura machista milenar, que incide forte
na estruturação dos partidos. Na CMBH,
de 41 representantes, temos apenas uma
mulher!
Para superar esse quadro, as principais
medidas passam por uma mudança cultural
nos partidos e mudanças na legislação
eleitoral. A definição de paridade de representação
nas entidades sindicais, nas
direções partidárias e de movimentos sociais,
nos órgãos e nas empresas públicas
são algumas das medidas urgentes e estruturais
que mudariam esse cenário.”
12
Neusinha Santos
Neusinha Santos foi vereadora pelo PT
em Belo Horizonte por cinco mandatos,
porém não se elegeu em 2012. É professora
de História e psicóloga. Entre suas ações
específicas para as mulheres, foi presidente
da CPI que investigou a violência contra a
mulher na capital, em 1992, e foi presidente
por dois mandatos do Conselho Municipal
dos Direitos da Mulher. É de sua autoria o
projeto que deu origem à lei que instituiu o
Dia Municipal de Prevenção ao Câncer de
Mama e o que garantiu o direito às gestantes
atendidas pelo SUS de ter acompanhante
na hora do parto, o que tornou BH pioneira
nessa iniciativa, entre outros. Recentemente,
voltou a atuar como técnica no terceiro
setor, que é a sua origem.
“Na realidade, a legislação exige que
haja 30% de mulheres em relação ao número
de candidatos, o que não resolve,
porque as estruturas partidárias brasileiras
ainda são muito machistas, assim como a
sociedade de maneira geral. Então nós
mulheres temos mais dificuldades para
sustentar uma campanha financeiramente.
Se não temos um padrinho forte dentro
do partido, se não herdamos o poder ou
não representamos um setor essencialmente
masculino, fica muito difícil. Ao
contrário da academia, onde a mulher se
destaca por sua sapiência e o saber ninguém
tira, nem herda.
A lei deve ser modificada e estabelecer
a proporcionalidade no número de cargos,
mesmo que a quantidade de votos seja
menor. Precisamos de uma lei que estabeleça
cotas para as mulheres no Legislativo
Federal, Estadual e Municipal, semelhante
à lei de cotas para ingresso nas
universidades públicas.”
Margarida Salomão
Margarida Salomão foi candidata à
Prefeitura de Juiz de Fora em 2008 e
2012, mas não conseguiu se eleger. Participou
do movimento estudantil e das lutas
de resistência à Ditadura Militar. Na Prefeitura
de Juiz de Fora, foi secretária de
Administração e de Governo. É professora
universitária há mais de trinta anos. Entre
1998 e 2006, foi reitora da Universidade
Federal de Juiz de Fora. Eleita para a primeira
suplência em 2010, assumiu como
deputada federal (PT) em janeiro deste
ano. “Na Câmara, priorizo o desenvolvimento
regional e a educação, mas também
me dedico a ampliar os espaços da mulher
na política”.
“Os partidos ainda não priorizam as
mulheres em suas composições de chapa,
seja para o executivo ou para o legislativo.
Mesmo a regra que exige que 30% dos
candidatos a vereador sejam mulheres
tem se mostrado insuficiente. Felizmente,
o PT tem dado uma importante contribuição
a isso. Conseguimos eleger a primeira
mulher presidenta do Brasil e vamos
lançar, na próxima eleição municipal, uma
chapa para as Câmaras Municipais constituída
paritariamente entre homens e mulheres.
Em Juiz de Fora, a situação não é
muito diferente. Tivemos poucas mulheres
candidatas, ainda que tenha sido muito
bonita a acolhida à nossa candidatura.
É necessário que nossas instituições
sejam cada vez mais permeáveis à presença
das mulheres, não apenas quanto a
cargos eletivos. Há várias instâncias de
poder, como secretarias em prefeituras e
governos que podem ser ocupadas por lideranças
femininas. Para isso, temos que
investir em políticas públicas. Por outro
lado, é necessário também que os partidos,
sindicatos e movimentos sociais priorizem
essa causa, tanto como tema, como dentro
de suas próprias organizações. De todo
modo, podemos utilizar nosso mandato
nesse sentido, apresentando projetos e
dialogando com esses setores.”
Revista Elas por Elas - março 2013 13
Maria da Consolação
Maria da Consolação Rocha foi candidata
à Prefeitura de BH em 2012. É
professora e trabalha há 27 anos na Rede
Municipal de Belo Horizonte e há 13 anos
na Universidade Estadual de Minas Gerais.
Nesse tempo, dedicou-se ao trabalho, às
lutas sociais e ao mestrado e doutorado
em educação. Atuou na Pastoral da Juventude
e participou das lutas dos(as)
professores(as), ingressando nas diretorias
do SindUTE/MG e SindREDE-BH. Contribuiu
para a construção no Brasil da
Marcha Mundial das Mulheres e para a
fundação do PSOL. Em 2006, foi candidata
ao Senado.
“Um dos maiores desafios nas eleições
no país é o tempo desigual entre as candidaturas
e a ausência de financiamento
público de campanha. As condições são
completamente desiguais entre as candidaturas
majoritárias e as proporcionais.
Outro aspecto é o baixo investimento dos
partidos para garantir a ampliação do espaço
feminino no legislativo. Em BH, fizemos
uma boa campanha, focada nos
problemas da cidade e em ações capazes
de melhorar as condições de vida das
mulheres, como creches, lavanderias públicas,
emprego e contra a violência sexista
e doméstica. Lembro que nós, mulheres,
somos 52% da população da capital.
Os partidos de esquerda estão discutindo
a urgência de uma profunda Reforma
Política no Brasil, que crie mecanismos
para garantir cargos de representação das
mulheres no parlamento, e não apenas
nas candidaturas, o financiamento público
de campanha, e o tempo igual para a
apresentação das candidaturas. Afinal,
somos mais da metade da população e
estamos sub-representadas nas instâncias
de definição política no país. A Reforma
Política em debate contribuirá ainda para
a reapropriação da política como espaço
público de construção coletiva da resolução
dos problemas comuns, retirando-a do
espaço privado, da mercantilização a que
está subordinada atualmente em nosso
país”.
Vanessa Portugal
Vanessa Portugal foi candidata à Prefeitura
de Belo Horizonte em 2012. É professora
da Rede Municipal de Ensino de
BH e Betim. Atua na rede pública de
ensino há 22 anos. Foi diretora do Sind-
Rede e é presidente municipal do PSTU.
Tem 16 anos de atuação política e sua
primeira candidatura foi em 2002, como
vice-governadora. Desde então, se candidatou
em todas as eleições.
“Em nossa campanha, tivemos apenas
o espaço do programa eleitoral, não fomos
convidados para os debates e nem tínhamos
espaço dos demais veículos midiáticos.
Ainda assim, o resultado de 2012
foi bastante gratificante, pois apontou que
um conjunto significativo de trabalhadores
está de acordo com a política que apresentamos.
Já o que aconteceu na Câmara
é um retrocesso. Reflete duas questões
principais: a presença da ideologia machista
ainda predominante em nossa sociedade,
que dificulta a atuação política das mulheres,
e a atuação de parlamentares que
nunca se preocuparam em travar uma
luta em prol das principais reivindicações
das trabalhadoras.
As mulheres trabalhadoras, além de
serem mais exploradas, pois ocupam os
postos de trabalho mais precários, são
também vítimas de uma opressão extrema
que se expressa em taxas de violência
alarmantes e com a ausência de políticas
públicas que respondam a esse quadro.
Para mudar esse cenário, lutamos pela
implantação do Juizado Especial de Combate
à Violência Contra a Mulher, mais
delegacias, casas abrigos e centros de referência
para as mulheres vítimas de violência,
lavanderias e restaurantes públicos,
e pela universalização do atendimento
em tempo integral para as crianças de 0
a 6 anos na educação infantil”.ø
14
Internet
Há 80 anos, as mulheres comemoravam o direito de voto.
ARTIGO | José Eustáquio Diniz Alves 1
O avanço das mulheres nas eleições de
2012 e o déficit democrático de gênero
O ano de 2012 marca o aniversário
dos 80 anos do direito de voto feminino
no Brasil e as eleições de 07 de outubro
possibilitaram um pequeno aumento
do número de mulheres eleitas para as
Câmaras Municipais e um aumento um
pouco maior para as prefeituras. Mas,
no geral, o avanço tem sido pequeno e
o país ainda continua muito longe da
paridade (50% / 50%) entre homens e
mulheres na política. Os partidos precisam
criar mecanismos internos de inclusão
feminina para que se possa superar
o déficit democrático de gênero.
O aumento do número de
mulheres eleitas em 2012
Em 1992, foram eleitas menos de
4 mil vereadoras nos municípios brasileiros,
representando apenas 7,4% do
total de vagas nas representações municipais
de todo o país. Com a intro-
16
dução da primeira política de cotas,
em 1995, os resultados apareceram
nas eleições seguintes. O número de
mulheres eleitas passou para 6,5 mil
vereadoras, representando 11,1%, em
1996. Foi o maior salto ocorrido entre
duas eleições na história brasileira. Nas
eleições de 2012 o número de mulheres
eleitas chegou a 7.648 vereadoras, representando
13,3% do total de vagas.
Estes números, embora baixos, são recordes
na história brasileira.
Um dos fatores que explicam o aumento
do número de vereadoras eleitas
foi a mudança da política de cotas. A
Lei 12.034, de 29/09/2009, substituiu
a palavra reservar por preencher e a
nova redação da política de cotas ficou
assim redigida:
"Do número de vagas resultante das
regras previstas neste artigo, cada
partido ou coligação preencherá o mínimo
de 30% (trinta por cento) e o máximo
de 70% (setenta por cento) para
candidaturas de cada sexo".
A alteração pode parecer pequena,
mas a mudança do verbo "reservar" para
"preencher" significou uma mudança no
sentido de forçar os partidos a darem
maiores oportunidades para as mulheres.
O ideal é que fosse garantida a paridade
de gênero (50% para cada sexo) nas
listas de candidaturas. Mas diante do
baixo número de mulheres candidatas,
a mudança da Lei em vigor já representou
um avanço, mesmo que limitado. O primeiro
resultado foi visto nos números
de candidaturas femininas em 2012. O
número de mulheres candidatas passou
de 72,4 mil em 2008, representando
21,9% do total, para 133 mil em 2012
(considerando só as candidaturas aptas),
representando 31,5% do número de
candidatos.
O aumento do número de mulheres
candidatas deveria ser fundamental para
aumentar o percentual de mulheres
eleitas. Porém, a maioria dos partidos
lançou candidatas “laranjas”, ou seja,
candidatas apenas para compor a lista,
mas sem condições efetivas de ganhar
eleições. Faltou apoio e investimento
na formação política das mulheres.
Faltou também apoio financeiro para
sustentar as campanhas femininas.
O percentual de vereadoras cresceu
em todas as regiões, sendo que o Norte
e o Nordeste continuam sendo as duas
regiões com maior percentual de mulheres
eleitas. A menor percentagem
de vereadoras continua na região Sudeste,
com o Rio de Janeiro e Espírito
Santo ficando na lanterninha do ranking
de participação política.
O número de prefeitas eleitas em
2008 foi de 504 mulheres, representando
9,1% do total de prefeituras e
passou para 670 mulheres eleitas (no
primeiro turno) em 2012, representando
12,1% das prefeituras brasileiras.
O número absoluto de vereadoras
aumentou 17,4% e o número de prefeitas
aumentou 32,9% entre 2008 e
2012. Contudo, o percentual de mulheres
prefeitas passou de apenas 9,1%
para 12,1%, continuando abaixo do
percentual de mulheres vereadoras
(13,3%). Apesar do avanço, os percentuais
de mulheres nos espaços de
poder da política municipal é ainda
muito baixo e diferenciado.
As mulheres nas Câmaras de
Vereadores das capitais brasileiras
em 2008 e 2012
Houve um avanço do número de
mulheres eleitas também para as Câmaras
Muncipais nas eleições de 2012.
Mas foi um aumento pequeno que não
foi capaz de eliminar o déficit democrático
de gênero nas cidades mais
destacadas em cada estado.
Em termos absolutos, as capitais
que elegeram mais vereadoras em 2008
foram Rio de Janeiro (13), Maceió (7),
Manaus (6), Salvador (6) e Curitiba (6).
Nas eleições de 2012, os maiores números
absolutos foram alcançados pelas
Número e percentual de mulheres
candidatas nas Câmaras Municipais,
Brasil: 2008 e 2012
Ano
2008
2012
% de
aumento
Número e percentual de mulheres
eleitas para as Câmaras Municipais
Brasil: 1992-2012
Ano
1992
1996
2000
2004
2008
2012
Nº de
mulheres
candidatas
72.476
133.868
84,7
Nº de
vereadoras
eleitas
3.952
6.536
7.001
6.555
6.504
7.648
Total de
candidatas
330.630
419.633
26,9
%
21,9
31,9
%
7,4
11,1
11,6
12,7
12,5
13,3
FONTE: Tribunal Superior Eleitoral (visitado 08/10/2012)
Número e percentual de mulheres
eleitas nas eleições Municipais, Brasil:
2008 e 2012
Eleições
Vereadoras
eleitas
% de
mulheres
vereadoras
Prefeitas
eleitas
% de
mulheres
prefeitas
2008
6.512
12,5
504
9,1
2012
7.646
13.3
670
12.1
Variação
17,4
-
32,9
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - visitado em 11/10/2012
Nota: O número de prefeitas eleitas em 2012
se refere ao primeiro turno
-
Revista Elas por Elas - março 2012 2013 17
mulheres das cidades do Rio de Janeiro
(8), Fortaleza (7), Maceió (6), Recife
(6), Teresina (6) e São Paulo (6).
A cidade do Rio de Janeiro liderou
em número absoluto de vereadoras
eleitas nas duas eleições, mas o número
de mulheres vitoriosas na disputa caiu
de 13 em 2008 para 8 em 2012. Florianópolis
foi a única capital que não
conseguiu eleger nenhuma mulher para
a Câmara Municipal nas duas eleições.
Em 2012, teve a companhia de Palmas,
capital do Tocantins, com resultado zero.
Diversas capitais tiveram aumento do
número absoluto de vereadoras eleitas
entre 2008 e 2012: Goiânia (de 3 para
4), Campo Grande (de 4 para 5), Rio
Branco (de 1 para 4), Macapá (de 2 para
5), Belém (de 2 para 5), Boa Vista (de 1
para 4), Fortaleza (de 4 para 7), São Luis
(de 1 para 4), Teresina (de 2 para 6),
Natal (de 2 para 4), Porto Alegre (de 4
para 5) e São Paulo (de 5 para 6).
Dentre as capitais que apresentaram
o maior declínio absoluto nas duas eleições,
destacam-se: Rio de Janeiro (de
13 para 8), Belo Horizonte (de 5 para
1) e Aracaju (de 4 para 2).
Os dados mostram que as capitais
brasileiras não são os locais mais propícios
para o avanço da participação
feminina nas Câmaras Municipais e
nas Prefeituras. Somente Boa Vista
elegeu uma mulher para o Executivo
Municipal, representando 3,8% das 26
capitais do país.
No geral, as mulheres tiveram melhor
desempenho nas cidades pequenas,
onde o nível da competição política é
menor. Porém, se o Brasil quiser eliminar
o déficit democrático de gênero terá
que estabelecer um mapa para se chegar
na paridade entre homens e mulheres
nos espaços de poder local, começando
por promover o empoderamento das
mulheres das sedes estaduais de governo,
que é, em geral, onde se encontram
os maiores capitais econômico,
social, cultural e político do país.
Municípios com maioria de mulheres
nas Câmaras de Vereadores
em 2008 e 2012
Embora a exclusão feminina na política
seja grande na maioria dos municípios
brasileiros, existem exceções,
pois em um número pequeno de cidades
as mulheres são maioria dos vereadores
ou dividem paritariamente as cadeiras
da Câmara Municipal. Em 2008, as
mulheres conseguiram maioria em 17
municípios e conseguiram espaço paritário
em outras três cidades. No município
de Dias D’Ávila, na Bahia, as mulheres
conquistaram 70% das vagas da
vereança municipal, em 2008. Foi um
recorde na desigualdade reversa das
relações de gênero no espaço local,
pois o sexo feminino elegeu 7 representantes
para a Câmara de Vereadores,
em um total de 10 vagas. Evidentemente,
esta desigualdade reversa é
quase nada diante dos 1.668 municípios
com 100% de representação masculina.
Outro destaque nas eleições de 2008,
foi o município de Senador La Rocque,
no Maranhão, que elegeu 6 mulheres
num total de 9 vagas (66,7%).
Em 2008, quinze outros municípios,
entre eles São João do Manhuaçu (MG),
elegeram 5 vereadoras e 4 vereadores,
apresentando um percentual de 55,6%
de participação feminina. Por fim, os
municípios de São João Del Rei, em
Minas Gerais, Breves, no Pará e Campo
Limpo Paulista, em São Paulo, elegeram
o mesmo número de homens e mulheres
para o total de 10 vagas para as Câmaras
de Vereadores.
Já em 2012, as mulheres conquistaram
maioria na Câmara de Vereadores
em 23 municípios. Os destaques foram
para as cidades de Fronteiras e Barras,
ambas no Piauí, que elegeram mulheres
em um percentual de 66,7% e 61,5%,
respectivamente. Outras 17 cidades
elegeram 5 mulheres e 4 homens, perfazendo
um total de 55,6% de participação
feminina, entre elas estão quatro
cidades de Minas: Cajuri, Ilicínea, São
João do Manhuaçu e Silvianópolis.
Ainda outras 4 cidades ficaram com
maioria feminina variando de 53,8% a
54,5%, em 2012. As cidades de Ipau-
18
internet
mirim (CE), Senador La Rocque (MA),
Sítio Novo (RN) e São João do Manhuaçu
(MG) figuraram nas listas de cidades
com maioria feminina em 2008
e 2012.
À guisa de conclusão
Nas eleições de 2012 houve avanços
na representação política das mulheres
brasileiras. Mas, no geral, foram avanços
pequenos. Contudo, existem locais no
Brasil onde as mulheres são maioria
no espaço de poder local de representação
parlamentar. São poucos municípios
com hegemonia feminina, mas
o número destes municípios cresceu
entre 2008 e 2012. Por enquanto,
podem ser considerados exceções, mas
no futuro devem se tornar algo comum,
na medida em que as desigualdades
persistentes de gênero na representação
política forem deixando de ser uma
realidade da sociedade brasileira.
Já existe uma lei incentivando ações
afirmativas para se atingir um percentual
mais equitativo das candidaturas de
cada sexo. Falta agora os partidos incorporarem
os princípios da equidade
de gênero e abrirem espaço para uma
divisão paritária das estruturas internas
de poder tornando as práticas misóginas
coisa do passado. O eleitorado brasileiro
já deu demonstração que não discrimina
as mulheres. Falta as direções partidárias
demonstrarem o mesmo.
Os diversos institutos de pesquisa
do país já mostraram que o eleitorado
não só não discrimina as mulheres,
como tem uma visão positiva da participação
feminina na política. Mas a
prova mais cabal que o problema da
baixa participação feminina na política
não está no eleitorado é que nas eleições
de 2010 havia 9 candidatos à Presidência
(7 homens e 2 mulheres) e o resultado
do primeiro turno mostrou que
dois terços (67%) dos votos foram para
as duas mulheres (Dilma Rousseff e
Marina Silva). Se a população vota em
mulher para a Presidência da República,
por que não votaria em mulheres candidatas
a vereadoras e prefeitas?
Portanto, o problema não está no
eleitorado, mas sim nos partidos políticos,
pois são os homens que controlam
os principais cargos dentro dos partidos
e nos espaços públicos de poder. Controlam
também os recursos financeiros
e o processo de escolha de candidatos.
O funil está na máquina partidária.
Não existe nenhum partido no Brasil
presidido por mulher. Para aumentar
a participação feminina na política no
Brasil é preciso alterar a participação
das mulheres na estrutura de poder
dos partidos políticos.
Podemos concluir, portanto, no momento
em que se comemora os 80
anos do direito de voto feminino no
Brasil, as mulheres deram um passo à
frente na participação política em nível
municipal. Porém, de 1992 a 2012 o
avanço foi, em média, de 1% no percentual
de eleitas a cada eleição. Neste
ritmo, a paridade de gênero nos espaços
de poder municipais vai demorar 148
anos no Brasil.
A baixa participação feminina na
política não corresponde ao papel que
as mulheres desempenham em outros
campos de atividade. Elas são maioria
da população, maioria do eleitorado, já
ultrapassaram os homens em todos os
níveis de educação e possuem uma
esperança de vida mais elevada. As
mulheres compõem a maior parte da
População Economicamente Ativa
(PEA) com mais de 11 anos de estudo
e são maioria dos beneficiários da
Previdência Social. Nas duas últimas
Olimpíadas (Pequim e Londres) as
mulheres brasileiras conquistaram duas
das três medalhas de Ouro. Portanto, a
exclusão feminina da política é a última
fronteira a ser revertida, sendo que o
déficit político de gênero em nível
municipal não faz justiça à contribuição
que as mulheres dão à sociedade
brasileira.ø
1. Doutor em Demografia e Professor titular
da Escola Nacional de Ciências Estatísticas
- ENCE/IBGE
Revista Elas por Elas - março 2013 19
REALIDADE | por Denilson Cajazeiro
Direito aos
direitos
Prostitutas querem regulamentar
profissão e ter reconhecimento social
Assunto é polêmico
entre feministas, e projeto
de lei sobre o tema tramita
no Congresso Nacional
20
A reportagem chega para o segundo dia
de entrevistas no mesmo local da visita anterior:
uma sala de pequenas dimensões no
fundo de um dos estacionamentos da rua
Guaicurus, no Centro de Belo Horizonte,
onde funciona a sede da Associação das
Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig). Logo
na entrada, um cartaz exibe os princípios da
Rede Brasileira de Prostitutas, entidade à
qual a associação é filiada. Entre eles, o
de que a rede considera a prostituição
uma profissão, desde que exercida por
maiores de 18 anos, e é contra a exploração
sexual de crianças e adolescentes,
em consonância com a
legislação brasileira.
Num espaço anexo à saleta, semelhante
a um pequeno auditório, o
repórter conhece um pouco da história
de mulheres que se prostituem. Uma delas
é a de Pâmela (nome fictício), paulista de 31
anos. Mãe de uma menina de 9 anos, a
garota de programa conta que entrou na
profissão após perder o marido, num acidente
de carro, há três anos. “Comecei a trabalhar
por dificuldades financeiras, depois de ficar
viúva. Para minha filha não passar dificuldade,
resolvi eu mesma passar. Hoje consigo dar
uma vida boa pra ela e pra minha mãe”.
Há pouco mais de seis meses em Belo
Horizonte, Pâmela veio de Santo André,
cidade da região metropolitana de São
Paulo. Trabalha 22 dias por mês, de segunda
a segunda, e atende no máximo 30 clientes
por dia, sendo a maioria deles conhecidos
que retornam, conforme conta à reportagem.
“Você gosta do que faz?”, pergunta
o repórter. “É um dinheiro rápido. É difícil.
Quem fala que é fácil, não é. Mas não
tenho vergonha da minha profissão”, responde
Pâmela, que planeja abandonar o
ofício no próximo ano, quando pretende
voltar para São Paulo e montar um estúdio
de fotografia, área em que fez um curso.
Outra garota de programa que aceita
dar entrevista é Laura Maria, de 54 anos,
vice-presidente da Aprosmig. Nascida em
Paraopeba, no interior de Minas, Laura
começou a se prostituir há cerca de 20
anos. Em Belo Horizonte, trabalhou
durante 15 anos como costureira, numa
confecção no bairro Carlos Prates, mas
a empresa faliu e a deixou sem recurso
algum. “Não recebi nada, nem o FGTS”,
diz a prostituta.
Ela considera que a profissão que
exerce é a de costureira, cujo registro
consta em sua carteira de trabalho. “Não
tenho vergonha de ser prostituta, mas
minha profissão é costureira, eu trabalho
como prostituta”, declara Laura, que faz
questão de dizer que o que a envergonha
mesmo é morar num país em que pobres
não têm direitos. A prostituição, conta
Laura, garantiu-lhe recursos para criar a
filha, atualmente com 30 anos. “Valeu a
pena. Hoje ela é uma menina linda, vitoriosa,
e está na Europa fazendo intercâmbio.
Tenho caráter e dignidade que
não ficam na rua, andam comigo aonde
eu vou”, afirma.
No primeiro dia de imersão na
pauta, a reportagem conversa com a
presidenta da associação, Cida Vieira,
de 46 anos. A entrevista não rende
muito. A todo momento, é interrompida
por prostitutas, a maioria delas jovens,
que chegam em busca de preservativos
e saem com um pacote de 80 unidades.
O repórter quer saber das reivindicações
daquelas que trabalham na Guaicurus,
rua que já faz parte do imaginário
popular da capital. O local, descrito
por um blog na internet como um
“complexo de diversões” e o “maior
shopping popular de sexo do mundo”,
abriga hotéis que recebem milhares de
clientes diariamente à procura de sexo
pago ou apenas para observar o que
ali se passa. O programa, revelam as
prostitutas, dura em média 15 minutos
e varia entre R$10 e R$ 30, mas há
homens que pagam mais, dependendo
do tempo em que permanecem no
quarto e da garota que escolhem.
Cida Vieira, que trabalha com fantasias
sexuais, mas não transa com os
Revista Elas por Elas - março 2013 21
clientes, e diz adorar o que faz, explica
que quer pautar na sociedade o debate
sobre o preconceito e a violência contra
as prostitutas. “A delegacia de mulheres
só atende casos relativos à Lei Maria
da Penha. Ela tem de se especializar
para atender todas as mulheres”, reclama
a presidenta da associação, que
já chegou a cursar direito e a estagiar
no Banco Central, mas logo percebeu
que a área jurídica não a interessava.
Segundo ela, a Aprosmig possui
cerca de quatro mil associadas e foi
criada em 2009 para lutar por direitos
das garotas de programa e elevar a autoestima
delas. Com uma média de 50
visitas por dia, a associação oferece
orientações sobre a saúde da mulher e
o uso de preservativos e presta serviços
gratuitos nas áreas psicológica e jurídica.
“Orientamos as garotas a fazerem a
contribuição ao INSS, para garantir
aposentadoria e acesso aos direitos
previdenciários”, informa Cida Vieira.
Também por meio da associação,
centenas de garotas começaram em
março um curso de inglês para a Copa
do Mundo, e uma parceria foi feita
com a Prefeitura de Belo Horizonte,
para oferecer ensino regular às prostitutas,
na Educação de Jovens e Adultos
(EJA). “Queremos profissionalizar nosso
trabalho para expandir as oportunidades”,
comenta Cida Vieira, defensora
da regulamentação da prostituição, uma
das principais bandeiras da associação.
“Lutamos pelo direito aos direitos e
respeito. Se um taxista não recebe pela
corrida, pode recorrer à Justiça para
cobrá-la. Nós não temos esse direito, e
a legalização da prostituição vai dar visibilidade
a essa questão”, argumenta.
O assunto é uma das promessas
de polêmicas para este ano no Congresso
Nacional, onde tramita um projeto
de lei do deputado Jean Wyllys
com esse propósito. Outro projeto
nesse sentido já tramitou na Casa, mas
não chegou a ir ao plenário. Em função
da proximidade da Copa do Mundo, a
proposta atual tem mais potencial de
reacender o debate, e por isso mesmo
tem ganhado certa projeção midiática.
O parlamentar quer aprová-la até o
início dos jogos do próximo ano, mas
sabe que a missão é difícil, tendo em
vista as diversas manifestações contrárias
já feitas nos bastidores do Congresso.
Cida Vieira, presidente da Aprosmig
Mark Florest
Entre outras coisas, a proposta regulamenta
a atividade, assegura às profissionais
do sexo o direito ao trabalho
voluntário e remunerado e autoriza a
cobrança de valores devidos na Justiça,
em casos de clientes que não pagarem
o preço combinado. Ainda de acordo
com o projeto, a prostituta poderia trabalhar
como autônoma, coletivamente
em cooperativas ou em casas de prostituição,
que passariam a ser permitidas.
Além disso, seria considerada profissional
do sexo toda pessoa maior de
18 anos que, voluntariamente, preste
serviços sexuais mediante remuneração.
“O objetivo principal do projeto de
lei não é só desmarginalizar a profissão
e, com isso, permitir às profissionais
do sexo o acesso à saúde, ao direito do
trabalho, à segurança pública e, principalmente,
à dignidade humana. Mais
que isso, a regularização da profissão
constitui instrumento eficaz ao combate
à exploração sexual, pois possibilitará
a fiscalização em casas de prostituição
e o controle do Estado sobre o serviço”,
argumenta o parlamentar. Caso seja
aprovado, ele sugere que a lei receba o
nome de Gabriele Leite, uma homenagem
à militante dos direitos das prostitutas
desde o final da década de 70 e
fundadora da organização não governamental
Davida e da grife Daspu.
Para Letícia Barreto, pesquisadora
da Universidade Federal de Santa Catarina,
muitos dos problemas que essas
mulheres enfrentam estão ligados à criminalização
do entorno em que trabalham,
já que a prostituição é permitida
no país, mas o Código Penal tipifica
como crime manter casa de prostituição
ou locais destinados a encontros sexuais.
“Como esse universo é ilegal, elas
nunca vão poder exigir do poder público
melhorias, como a segurança. A aprovação
do projeto seria um primeiro
passo para elas se reconhecerem”, diz
Letícia Barreto.
A pesquisadora estudou o associati-
22
vismo das profissionais do sexo em
Belo Horizonte e entrevistou garotas
de programa que trabalham em hotéis,
boates e ruas da capital. “A ação coletiva
muitas vezes é dificultada por ideias de
que essas mulheres devem ser resgatadas
ou por noções de que não podem se
colocar publicamente, tanto para não
tornar pública sua ocupação quanto
por não se sentirem merecedoras de
tal direito”, aponta.
“O que mais grita é essa questão de
que a prostituição precisa ser reconhecida
como um trabalho e, principalmente,
de que elas precisam ser ouvidas.
Muitas querem sair da profissão, mas
muitas querem é melhorar as condições
e ter os direitos assegurados, não sofrer
nenhum tipo de violência e ter reconhecimento
social”, afirma a pesquisadora.
O psicólogo Gilmar Fideles também
entrevistou garotas de programa em
Belo Horizonte para uma pesquisa de
extensão da Universidade Federal de
Minas Gerais, feita na década de 90. A
intenção era levantar dados para incentivar
uma articulação entre poder
público e entidades não governamentais
a fim de criar um centro de apoio às
prostitutas.
Entre as conclusões do estudo, ele
destaca o fato de que essas mulheres
tinham, na época, uma consciência
precária de cidadania. “Elas não tinham
acesso à saúde e a informações de um
modo geral. Havia um sentimento de
não pertencimento à sociedade, uma
relação de marginalidade”.
Segundo o psicólogo, muitas dessas
mulheres são provedoras e enviam dinheiro
aos pais no interior ou sustentam
a família, mas não estão nesta atividade
somente por razões econômicas. “Algumas
prostitutas se iludem e dizem:
eu escolho com quem eu transo, mas
90% delas fariam outra opção ou não
teriam entrado na prostituição se pudessem”,
acredita.
Fora do Congresso, o projeto de lei
do parlamentar não foi bem recebido
entre feministas. A Marcha Mundial
das Mulheres, por exemplo, já manifestou
publicamente a discordância com
a questão. Em documentos, o movimento,
que reúne grupos de mulheres
de várias partes do mundo, é enfático
ao afirmar que a prostituição é uma
forma de opressão às mulheres, já que
mantém a lógica da submissão feminina
aos prazeres dos homens e ao sistema
patriarcal e capitalista. “A naturalização
da prostituição reforça um modelo em
que a sexualidade feminina se constrói
em função do desejo masculino. Pra
gente, a sexualidade é um processo
que você tem de ter o direito ao prazer,
ao desejo, e nessa relação mercantilizada
do corpo da mulher, isso não é possível”,
Léticia Barreto, pesquisadora que estuda o associativismo das prostitutas de BH.
“
O que mais grita é
essa questão de que a
prostituição precisa ser
reconhecida como
um trabalho
critica Tica Moreno, uma das coordenadoras
no Brasil da Marcha.
Segundo ela, o movimento não faz
um debate “abstrato” da prostituição,
sem considerar a situação em que as
mulheres vivem. “A realidade da prostituição
no Brasil está vinculada à pobreza
de muitas mulheres. No mundo
ideal, com condições de igualdade e liberdade
para todos, a prostituição não
deveria existir”, defende a feminista.
Em artigo no site da Marcha, Clarisse
Mark Florest
Revista Elas por Elas - março 2013 23
Goulart, militante do movimento em
Minas Gerais, também não poupa críticas
ao projeto do deputado Wyllys.
De acordo com ela, a proposta pouco
contribui para a vida das prostitutas
nem prevê nenhum tipo de política pública
específica, “que contribua para
que essas mulheres não tenham que
ser constantemente vítimas de insultos,
violência e marginalização”. “Ao contrário
de promover os direitos e a autonomia
econômica das prostitutas, o
projeto visa suprir uma necessidade da
indústria sexual, que juntamente com
as grandes corporações, buscam utilizar
o corpo das mulheres para faturar altos
montantes em grandes eventos como
a Copa do Mundo”.
Como exemplo de que a proposta
não funcionaria e ainda seria prejudicial
às mulheres, as militantes do movimento
Laura Maria, vice-presidente
da Aprosmig
Mark Florest
citam o caso da Holanda – que legalizou
o mercado há 12 anos –, cuja situação
foi relatada num artigo da revista inglesa
The Spectator, traduzido e republicado
no site da Marcha no Brasil. “Cafetões,
sob a legalização, foram reclassificados
como gestores e empresários. Os abusos
sofridos pelas mulheres são agora chamados
de ‘risco ocupacional’, da mesma
forma que uma pedra que cai no pé de
um pedreiro. O turismo sexual cresceu
mais rápido, em Amsterdã, do que o
turismo regular: como a cidade se
tornou o local de prostituição da Europa,
Profissão é reconhecida
pelo Ministério do Trabalho
Desde 2002, a profissional do sexo
passou a ser incluída na Classificação
Brasileira de Ocupação (CBO) do Ministério
do Trabalho e Emprego. O sistema
legal adotado no país define a
profissional do sexo como vítima e criminaliza
o agenciador ou dono de casa
de prostituição. Por isso, a legislação
pune o dono ou gerente de casa de
prostituição, e não a prostituta.
Além desse sistema, existem dois
outros tipos em vigor no mundo: o que
reconhece a profissão e a regulamenta,
estabelecendo algumas garantias legais,
sendo adotado no Uruguai, Equador,
Bolívia, além da Alemanha e Holanda,
entre outros países, e o sistema em
que a prostituição é proibida e tipificada
como crime, adotado, por exemplo,
nos Estados Unidos.
Também em 2002, o Ministério da
Saúde lançou a campanha “Sem vergonha,
garota. Você tem profissão”, a
fim de conscientizar as profissionais do
sexo sobre a importância de se prevenirem
contra doenças sexualmente transmissíveis,
sobretudo a Aids, e desde
então promove ações nesse sentido.
mulheres são importadas por traficantes
da África, Europa do Leste e Ásia, de
modo a suprir a demanda. Em outras
palavras, os cafetões permaneceram,
mas tornaram-se legítimos – a violência
ainda é prevalecente, mas se tornou
mera parte do trabalho e o tráfico aumentou.
Suporte para que as mulheres
deixem a prostituição é quase inexistente.
A obscuridade inata do trabalho
não foi desmanchada pela benção legal”,
afirma a autora Julie Bindel, no artigo.
Pelo visto, a polêmica em torno do assunto
está só começando.ø
24
Revista Elas por Elas - março 2013 25
Saulo Esllen Martins
VIOLÊNCIA | por Saulo Esllen Martins
Lei Maria da Penha traz
mudanças positivas
Cansada de sofrer ameaças e agressões
do marido, Maria do Socorro
(nome fictício) decidiu registrar a primeira
queixa contra o companheiro, em 2007.
Depois de 10 anos de convivência e
após passar por inúmeros momentos
de tensão e medo, entre discussões,
brigas violentas e muita pressão psicológica,
ela chegou à conclusão de que
não queria mais viver ao lado daquele
homem violento.
Amparada pela Justiça, Maria do
Socorro conseguiu o afastamento do
marido da casa onde moravam, além
disso, através de uma medida protetiva,
o juiz determinou que o agressor não
poderia mais manter nenhum contato
com ela. Socorro obteve ainda a guarda
definitiva dos filhos, e, hoje vive mais
tranquila.
As mudanças positivas no cotidiano
de Socorro só foram possíveis por
causa da Lei 11.340, de 2006, que
completa esse ano o seu sétimo aniversário.
São muitos os avanços que a
lei Maria da Penha trouxe para o combate
à violência contra as mulheres
brasileiras, mas alguns desafios ainda
precisam ser superados. A confiança
na efetividade da lei e a superação do
medo de denunciar é uma das maiores
lacunas apontadas por especialistas.
A criação de varas especializadas
nesse tipo de caso é um passo adiante
para demonstrar a relevância da luta
pela diminuição das agressões nos lares
do país. “Não foi só por causa do
volume de processos que o Tribunal de
Minas decidiu criar varas especializadas.
A Justiça mineira entende que tratar
especialmente uma matéria traz uma
resposta mais rápida e eficaz para a
sociedade”, comenta o juiz Relbert
Verly, responsável pela 13ª vara criminal
de Belo Horizonte – competente para
os crimes previstos na Lei Maria da
Penha.
De acordo com o magistrado, todo
tipo de violência é passível de punição
pela lei, seja física, psicológica, patrimonial
ou sexual. Nos últimos anos, o
número de casos aumentou, mas para
o judiciário esse crescimento é fruto da
maior credibilidade depositada na justiça
pelas mulheres, principalmente por causa
do rigor adotado na aplicação da lei.
“
Quanto mais as
mulheres acreditam
na eficiência da
Justiça, mais elas
denunciam
“Quanto mais as mulheres acreditam
na eficiência da Justiça, mais elas denunciam.
Hoje, elas não esperam a segunda
ou terceira ocorrência, na primeira
agressão já existe uma tendência
de procurar a polícia”, destaca o juiz.
Segundo o juiz, os casos são bem diversificados,
mas existem os mais recorrentes
como, por exemplo, as ameaças
e lesões corporais. A Justiça tem adotado
as medidas de proteção previstas na Lei
11.340, tais como as medidas protetivas
de afastamento do agressor; proibição
de aproximação e contato com a vítima,
seus familiares e testemunhas; impedimento
de circular em locais de trânsito
da vítima, como o ambiente profissional,
espaços de lazer e supermercado. Em
casos excepcionais, as varas especiais
também têm condição de atuar em relação
à guarda dos filhos e fixar, até
mesmo, valores de pensão alimentícia –
e isso não exclui a competência das
varas de família.
“O cumprimento das medidas é fiscalizado
pela Polícia Militar, pela Polícia
Civil e principalmente pela própria vítima,
que ao primeiro descumprimento
deve ir a uma delegacia e registrar a
ocorrência do fato. Depois disso, a
mulher precisa procurar o Ministério
Público, que por sua vez, vai pedir a
prisão preventiva do agressor”, completa
o juiz Relbert Verly .
As varas especializadas também
contam com um corpo de profissionais
Revista Elas por Elas - março 2013 27
que auxiliam ao juiz. São psicólogos e
assistentes sociais que compõem uma
equipe designada para acompanhar os
casos do começo ao fim. A psicóloga
judicial Maria Cristina Leão é uma
dessas profissionais. Lotada na 13ª
Vara Criminal de Belo Horizonte, já foi
chamada a opinar em inúmeros autos.
"Nós somos requisitados nos processos
que envolvem vínculos afetivos e familiares,
quando se trata de casais com filhos,
por exemplo, ou mesmo quando
o magistrado não se sente convencido
das declarações da vítima ou do agressor
e precisa de um olhar externo para
identificar elementos subjetivos”, enfatiza
a psicóloga.
Maria Cristina esclarece que quando
a mulher denuncia é iniciado um processo
composto por várias etapas. “A
delegacia é a porta de entrada. Depois
disso, as informações são encaminhadas
ao judiciário, inaugurando a etapa préprocessual
na qual já podem ser aplicadas
as medidas protetivas. Nesta fase
o juiz pode pedir o subsídio da equipe
multidisciplinar”, afirma.
De acordo com a psicóloga, é muito
importante que a sociedade compreenda
“
É muito importante
que a sociedade
compreenda as dinâmicas
do fenômeno social da
violência contra
a mulher
as dinâmicas e as particularidades do
fenômeno social da violência contra a
mulher. Maria Cristina ressalta que a
reincidência faz parte do ciclo. “A
mulher enfrenta conflitos culturais, pois
ela foi socializada para ser responsável
pelo êxito do casamento. Em tese,
quando o assunto é família, questões
afetivas, tolerância, dedicação, a mulher
é personagem principal e quando enfrenta
o fracasso ela sofre. Em muitos
casos, ela não quer o rompimento do
vínculo e sim o fim da violência”, analisa
a psicóloga.
Maria Cristina aponta que o ciclo
da violência é bem parecido em diversos
casos. O homem pede uma segunda
chance, muda a sua conduta durante
um tempo e daí a pouco começa a se
desestabilizar. No começo um grito,
depois xingamentos e não demora a
voltar a agredir fisicamente. Segundo
ela, é um caminho complexo para a
mulher. Ela tem que vencer essa dinâmica
psicológica que envolve questões
de gênero e socioeconômicas.
A psicóloga salienta que quando
uma pessoa sofre violência existem sequelas
e impactos que ela não consegue
perceber imediatamente. “A minha
orientação é que a mulher busque ajuda,
pois é muito difícil superar uma situação
de violência sozinha. É preciso acionar
os serviços públicos de apoio para que
eles sejam legitimados e recebam da
gestão pública a atenção devida”, complementa.
“Se queremos uma sociedade com
cidadãos mais responsáveis e mais maduros,
temos que tirar essa responsabilidade
das mulheres e parar de pensar
que elas devem enfrentar sozinhas essas
situações. Temos que entender que o
problema é de toda a sociedade”, salienta
Maria Cristina.
Monitoramento eletrônico
O caso de Joana Darc (nome fictício)
ainda não foi resolvido e ela convive
com a insegurança todos os dias, mesmo
diante de reiteradas medidas protetivas.
Depois de violentas agressões feitas
pelo ex-namorado, Joana resolveu
mudar de casa, sair do trabalho e não
se sente segura em nenhum lugar. O
agressor continua a fazer ligações e a
enviar mensagens ameaçadoras.
Pela lei, o agressor que descumprir
Fotos: Mark Florest
A psicóloga judicial Maria Cristina
Leão defende que o problema da
violência é de toda a sociedade
28
a medida protetiva e for denunciado
pode ter a prisão preventiva decretada,
mas Joana não tem coragem para fazer
isso, por medo de represálias. Mas
uma ação recente do judiciário pode
diminuir o medo de muitas mulheres.
O uso de tornozeleiras eletrônicas pode
evitar que casos como esse voltem a
acontecer.
De acordo com o juiz Relbert Verly,
os equipamentos já foram comprados e
serão utilizados em casos de reiterados
descumprimentos das medidas protetivas.
“Quando ocorrer o pedido da vítima à
polícia e ao Ministério Público e for deferida
a prisão preventiva, a Lei 12.403
prevê a aplicação de medidas cautelares
em substituição à prisão preventiva e
uma das medidas é esta: o monitoramento
do agressor com tornozeleiras eletrônicas”,
destaca o juiz. O magistrado ressalta
que as tornozeleiras só serão usadas
em substituição à prisão preventiva,
como forma de garantir o cumprimento
da medida protetiva.
“Trabalhamos com a Lei Maria da
Penha acreditando que, talvez, ela não
impeça o primeiro fato, mas se a aplicarmos
de maneira eficiente pode ser
que possamos encerrar o ciclo da violência
e esse é o principal objetivo da
lei”, enfatiza o juiz.
Outro ponto importante é marcado
pelo entendimento do Supremo Tribunal
Federal (STF) de que a lesão corporal é
um crime de ação pública incondicionada,
que não depende da representação
da vítima e que pode ser comunicado
por qualquer pessoa que testemunhe
a agressão. Na prática, o crime
de lesão corporal não depende mais da
representação da vítima para o prosseguimento
da ação penal. Com isso, a
mulher não pode mais retirar a queixa.
Contudo, nos crimes de ameaça, isso
ainda pode acontecer porque é condicionada
a representação da mulher.
“Não podemos ser tolerantes com
nenhuma forma de violência. Temos
que fazer valer a nossa condição de
seres humanos. As pessoas têm o diálogo
como alternativa para a solução
de conflitos. E os homens não podem
achar que a vontade deles deve prevalecer
pela força. Qualquer mulher está
sujeita a situações de violência, mas,
sem dúvida, as mulheres mais pobres
encontram outros desafios”, desabafa
a psicóloga judicial Maria Cristina.
O poder da Educação
Professores, juízes, psicólogos e, até
mesmo, as vítimas de violência concordam
em um ponto essencial: a educação
está na base da formação de
uma consciência cidadã e na construção
de valores que podem auxiliar na compreensão
das diferenças. Para a psicóloga
judicial Maria Cristina Leão, através
da educação, as pessoas aprendem noções
de igualdade e respeito ao diferente.
“Se as crianças forem educadas para
entender que existem diferenças entre
homens e mulheres, mas que seus
papéis sociais devem ser exercidos de
uma maneira igualitária, já será um
grande passo. Isso envolve os cuidados
com os filhos, responsabilidade com a
família, a casa, o trabalho. Além disso,
é necessário que uma coisa fique bem
clara: um homem não é proprietário
de uma mulher e ele não tem direito
de exigir que ela fique ao seu lado se
ela não quiser. Se as crianças entenderem
e se apropriarem desses valores,
poderemos prevenir muitas situações
de violência no futuro”, finaliza.ø
“
A lesão corporal é um
crime de ação pública
incondicionada, que não
depende da representação
da vítima
O juiz Relbert Verly explica que as
tornozeleiras serão usadas para
garantir o cumprimento das medidas
protetivas
Revista Elas por Elas - março 2013 29
Foto: Polly do Amaral
MATERNIDADE | por Cecília Alvim
“O parto é da mulher”
Movimentos denunciam a violência e propõem mudanças para
promover o parto ativo e humanizado
30
Mírian Siqueira, instantes
depois do nascimento na água
de seu filho de 4 quilos, Luiz
Guilherme, em julho de 2012
Lucimary Alves de Brito, 33 anos,
desejava que sua segunda filha chegasse
a esse mundo da forma que havia escolhido:
através do parto normal. Desde
o pré-natal manifestava ao médico essa
decisão. No sétimo mês soube que estava
com diabete gestacional, que foi
controlado com cuidados extras. Grávida
de sete meses, em uma consulta, foi
informada que teria que desembolsar
R$ 4.890,00 pelo parto, valor que poderia
ser pago com uma entrada e um
cheque. Estranhou, porque sabia que
seu plano de saúde tinha cobertura
para parto. Disse então ao médico que
iria checar essa informação e que se
fosse esse o caso, iria optar em ter a
assistência de um médico plantonista.
Na consulta seguinte, disse ao médico
que sabia do seu direito de não ter que
fazer o tal pagamento. O pré-natal
prosseguiu e na consulta da 36ª semana,
numa segunda-feira, foi pega de surpresa
pelo médico que determinou que o
parto teria que ser cesárea, por conta
do diabetes, e que iria marcar para a
sexta da mesma semana. Alegou que
isso era necessário para que o bebê
não corresse riscos. “Ele disse que eu
poderia perder o neném, e fez um
terror comigo e com meu marido. Assustados
e preocupados com a saúde
da nossa filha, acabamos consentindo”.
Ela se submeteu à cesariana, a contragosto,
em dezembro de 2013. Ficou
dois dias no hospital, onde soube que
o mesmo médico realizou mais 11 cesáreas
no mesmo dia, e que uma colega
de enfermaria, que tinha passado por
isso naquele dia, estava também com
37 semanas, antes do tempo habitual
do parto normal. “Infelizmente, eu percebi
que muitos profissionais não se
preocupam com o desejo e o bemestar
dos pais e da criança. Estão interessados
em resolver suas agendas e
ganhar dinheiro”, relatou.
Quando chegou em casa, Lucimary
se sentiu limitada para cuidar de sua
filha por conta das dores e da recuperação
da cesárea. Lembra que se recuperou
mais rápido e se sentiu mais feliz
com o primeiro parto, que foi normal,
incentivado por profissionais do SUS.
Disse ter ficado frustrada em não ter
tido o sonhado parto normal, e chateada
com o médico, que mudou de conduta
na última hora, fez pressão psicológica
pela cesárea agendada, não deu os esclarecimentos
necessários, e, principalmente,
porque não levou em conta seu
desejo e decisão. Dias depois, em uma
consulta, outra médica informou que o
caso dela não era para indicação expressa
de cesárea, ainda mais com 37
semanas. Ela chorou. Depois disso, ela
considera que todo esse processo deixou
marcas doloridas, justo num momento
tão sublime: a chegada de uma nova
vida…
Violência sutil
Ao longo da história, a mulher foi
vítima de inúmeras formas de exploração
e desrespeito por parte dos homens,
reflexo de uma cultura de submissão e
dominação patriarcal. Felizmente, essa
situação tem mudado com o protagonismo
crescente das mulheres no mundo
atual. As mulheres já ocupam espaços
iguais no mercado de trabalho, postos
de comando e poder, além de chefiarem
suas famílias, e cuidarem da casa e dos
filhos. Nesse contexto de superação,
no entanto, começa a se revelar uma
triste realidade, um novo tipo de violência
contra a mulher que se manifesta
na gravidez e no parto.
A mulher que gera um filho em seu
ventre, e dedica um tempo-espaço significativo
de sua vida para essa espera,
cria uma grande expectativa quanto ao
momento do nascimento. Acontece que
esse momento do parto está sendo cada
vez mais estigmatizado, pois tem sido
negado à mulher o direito à escolha
sobre o tipo de parto que deseja e,
ainda, o direito à assistência humanizada
Revista Elas por Elas - março 2013 31
por parte dos profissionais de saúde.
Isso tem resultado em um número crescente
de cesarianas desnecessárias,
partos sofridos, e relatos de tensão, sofrimento,
dor e indignação por parte de
mães, pais e familiares. Essa nova constatação
de uma violência sutil, muitas
vezes nem percebida como violência,
advém do movimento de mulheres pela
gestação e parto ativo. Mobilizadas, elas
denunciam que a “violência no parto
também é violência contra a mulher”.
Procedimentos frequentemente inadequados
como administração de ocitocina
de rotina (hormônio sintético
para induzir ou acelerar o trabalho de
parto), lavagem intestinal, episiotomia
de rotina (corte cirúrgico feito no períneo
para facilitar a passagem da cabeça do
bebê), exames de toque abusivo, direcionamento
de puxos (falas como “faça
força agora”), “força comprida”, manobra
de kristeller (em que se imprime
força sobre o fundo uterino no período
expulsivo), restrições de posições para
o trabalho de parto (momento anterior
ao parto) e parto (momento do nascimento),
restrição alimentar, são comumente
empregados em maternidades
de todo o país, e estão sendo considerados
atos de violência contra a mulher.
Um número crescente de mulheres
tem denunciado a ocorrência de situações
degradantes no momento do parto.
Elas relatam serem vítimas de abusos
físicos, comentários agressivos, discriminação,
humilhação, ameaças, restrições
de acompanhante, e serem submetidas
a cesarianas por conveniência
médica e a separação de seus bebês
logo após o parto. Condutas como
essas por parte das equipes de saúde
são apontadas como violentas, pois
afrontam o direito da mulher e do bebê
a uma experiência consciente e feliz de
parto e pós-parto.
Saulo Esllen Martins
Atenção respeitosa
A médica e doutora em Saúde Pública,
Sônia Lansky, diz que, muitas vezes, os
próprios profissionais de saúde não enxergam
o que fazem como violência. “É
um fenômeno médico masculino, muitas
vezes incorporado também pelas mulheres.
O que acontece é uma massificação
e despersonalização de condutas,
como se todas as mulheres fossem iguais”,
destaca. Ela afirma que essas condutas
já estão institucionalizadas, de tal forma
que as gestantes também não percebem
que estão sendo vítimas de violência. “É
um direito da mulher e da criança ter
acesso à atenção respeitosa no parto.
Essa dimensão, muitas vezes, não é respeitada”,
destaca.
Ao considerar a incidência de más
práticas no auxílio ao parto em inúmeros
países, a Organização Mundial
de Saúde elaborou e difunde recomendações
para a assistência obstétrica,
com base em evidências científicas
atuais. Segundo a OMS, há “condutas
claramente prejudiciais ou ineficazes e
que deveriam ser eliminadas na assistência
ao parto”, como o uso rotineiro
da posição supina (deitada com a face
para cima) ou de litotomia (posição ginecológica)
durante o trabalho de parto,
exame retal, uso de pelvimetria radiográfica
(radiografia da pelve), manobra
de Valsalva (orientar a “trincar os dentes
e fazer força”) durante o período expulsivo,
entre outras.
Lucimary queria ter sua filha, Bethany, por parto normal, mas teve uma cesárea agendada
Direito humano
Graves denúncias da ocorrência de
violência no parto em Minas Gerais
foram apresentadas por representantes
de entidades não-governamentais durante
audiência pública da Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa em
1º de agosto de 2012. Deputados, representantes
do poder público e de movimentos
de mulheres discutiram o tema,
a partir do documento Violência no
parto em Minas Gerais.
32
O relatório, elaborado pela rede de
mulheres pelo parto ativo, apresenta
informações relevantes sobre as condições
de atenção ao parto no estado e
no país. Está embasado em diversas
referências bibliográficas, legislações
nacionais e acordos internacionais que,
segundo a rede de mulheres, não estão
sendo cumpridos nas maternidades brasileiras.
O documento destaca ainda que,
em 2010, a Corte Europeia de Direitos
Humanos reconheceu a autoridade, a
autonomia e o apoio às escolhas feitas
pela parturiente como direitos humanos.
“Esses direitos já foram reconhecidos
pela OMS e têm sido sistematicamente
desrespeitados pela maioria das instituições
de saúde públicas e privadas do
Brasil e de Minas Gerais. Diariamente,
as parturientes e seus bebês sofrem
violações de seus direitos”.
Algumas pesquisas citadas pelo relatório
comprovam essas afirmativas.
Uma delas, feita em 2010 pela Fundação
Perseu Abramo, apontou que
uma em cada quatro brasileiras relatou
ter sofrido algum tipo de violência durante
a assistência ao parto. Outra pesquisa
realizada na internet por uma
rede de setenta blogs com cerca de
duas mil mulheres apresentou um resultado
parecido: 25% das brasileiras
sofreram algum tipo de violência durante
o trabalho de parto. “Práticas que
agridem a parturiente mostram que a
violência contra a mulher extrapola o
ambiente doméstico, escopo da lei
Maria da Penha”, destaca o documento.
Durante a audiência na Assembleia
Legislativa, Sônia Lansky, que é também
coordenadora da Comissão Perinatal e
do Comitê de Prevenção de Óbitos
Materno, Fetal e Infantil da Secretaria
Municipal de Saúde de Belo Horizonte,
afirmou que 78,6% das mortes durante
o parto no Brasil têm como causa
direta a qualidade da assistência. Segundo
ela, o número de óbitos de mães
em Belo Horizonte chega a 42,3 para
cada 100 mil, sendo que o aceitável
pela OMS é de 20.
Normal ou cesariana?
Durante os nove meses de espera, a
mulher se prepara e cria muitas expectativas
com relação à hora e ao tipo de
parto. No entanto, hoje em dia, muitas
vezes a mulher não participa ativamente
desse momento, pois é negado a ela o
direito à escolha informada do parto e à
assistência humanizada. Com isso,
ocorrem partos sofridos e cesarianas em
muitas situações desnecessárias e sem o
consentimento da mulher.
Segundo Pollyana do Amaral Ferreira,
integrante do Parto do Princípio
Mulheres em Rede pela Maternidade
Ativa, desde a geração anterior as mulheres
vivem momentos de sofrimento
relacionados a procedimentos inadequados
e à má assistência ao parto
normal. Isso fortaleceu mitos de que o
parto normal é sempre sofrido e doloroso,
o que não é verdade. “Muitas
vezes, quando (a grávida) diz querer a
cesárea, está dizendo: eu não quero
ser maltratada no parto normal”, afirma.
Embora a cesariana seja indicada em
determinados casos, evidências científicas
comprovam que o método natural continua
sendo a melhor forma de dar à
luz. Os benefícios do parto normal são
inúmeros para a mãe e para o bebê. A
mulher tem uma recuperação mais rápida
e corre menos riscos de complicações,
infecções, dor após o parto e problemas
em futuras gestações. Para a criança,
facilita a amamentação, diminui a chance
de nascer prematura e ter alterações
respiratórias e outras complicações.
Apesar da redução dos riscos associados
ao procedimento cirúrgico nas últimas
décadas, a incidência de morte materna
associada à cesariana é 3,5 vezes maior
A médica Sônia Lansky participou da audiência pública sobre "Violência no parto"
na Assembleia Legislativa de Minas Gerais em agosto de 2012
Marcelo Metzker/ALMG
Revista Elas por Elas - março 2013 33
Pollyana é doula e coordena grupo de mulheres pelo parto ativo
do que no método natural, segundo
dados do Ministério da Saúde.
Ritual de passagem
Ainda assim, o Brasil registra muito
mais cesáreas do que os 15% recomendados
pela OMS. A pesquisa do
Ministério da Saúde de 2008 confirma
o elevado número de cesarianas praticadas
no país. No total, 44% dos nascimentos
foram cirúrgicos, sendo esta
taxa maior nas regiões Sudeste (52%)
e Sul (51%), dentre as mulheres com
mais de 35 anos (61%) e entre as
brancas (49%). Além disso, os percentuais
de cesáreas em mulheres com 12
Cecilia Alvim
ou mais anos de estudo (83%) e no sistema
de saúde privado ou suplementar
(81%) foram extremamente elevados.
A médica Sônia Lansky percebe a
disseminação da cesariana como um
fenômeno latinoamericano relacionado
à violência de gênero, muitas vezes incorporada
pelas mulheres, em função
das relações de poder que se estabelecem.
“Há um domínio do poder médico.
É ele que decide, sabe, controla.
A mulher fica completamente exposta
e subjugada a esse poder”, alerta.
De acordo com ela, o parto é um
ritual de passagem da natureza humana,
ocorre fisiologicamente, sem intervenções
desnecessárias. “Substituíram tudo
por processos artificiais, tecnologizados.
Os hospitais aceleraram os processos,
padronizaram condutas, muitas vezes
obsoletas”, lamenta.
Protagonismo da mulher
Entender o parto como um acontecimento
fisiológico normal, e não como
doença, considerá-lo um ritual de geração
e transformação da vida, e incentivar
o protagonismo da mulher em
todo o processo da maternidade são
algumas das premissas que motivam
profissionais, especialistas e mulheres
ativistas pelo parto normal no país.
Um desses grupos que incentiva o
parto ativo é o Ishtar – Espaço para
gestantes. O nome faz referência à
deusa babilônica da fertilidade e o lema
do grupo é “pelo respeito ao tempo de
gestar, parir e amamentar”. Presente
em nove cidades do Brasil, o grupo,
desde 2007, acolhe mulheres em encontros
periódicos e gratuitos e fomenta
listas de discussão pela internet para
orientá-las e fortalecê-las em todo o
processo de gestação, parto, amamentação
e maternidade ativa.
Em Belo Horizonte, o grupo promoveu
o primeiro encontro de 2013 no
mês de janeiro, com o tema “12 passos
para um parto feliz”. Gestantes e seus
companheiros, mulheres que já passaram
por experiências de parto, doulas e pessoas
interessadas se reuniram numa
manhã de sábado no Parque Ecológico
da Pampulha para trocar experiências e
conhecimentos que favorecem o protagonismo
da mulher.
Amanda Santos, 27 anos, grávida,
começou a participar do Ishtar em janeiro,
em busca de apoio para o parto normal
que quer ter. “A gente acha que conhece
o próprio corpo, no entanto, não nos é
ensinado, desde o período escolar, a
lidar com as mudanças que vem com a
gravidez e com a maternidade. Por isso,
precisamos nos informar, senão conti-
34
nuamos sem saber”, afirmou. Para ela,
sem conhecimento e apoio, as mulheres
acabam por delegar decisões relativas à
gestação e parto aos profissionais de
saúde. “É muito comum as mulheres
hoje terem confiança total nos médicos
e não questionarem suas opiniões e recomendações”,
alertou.
Para Pollyana Ferreira, que é coordenadora
do Ishtar em BH, a crença no
modelo médico muitas vezes está contrária
às evidências científicas. “A mulher
é que vai ter que mudar isso. Ela é que é
a protagonista do parto. O papel dos
profissionais é acompanhar o processo
e apoiar a mulher”, confirmou.
Identidade feminina
Pollyana é doula há cinco anos. A
palavra "doula" vem do grego "mulher
que serve". Nos dias de hoje, aplica-se
às mulheres que dão suporte físico, informacional
e emocional a outras mulheres
antes, durante e após o parto.
“A doula é uma agente de humanização
do parto, que incentiva e acredita na
mulher, para que ela tenha condições
de tomar as melhores decisões relacionadas
à gestação e ao parto. A mulher
só precisa descobrir o poder que tem
dentro de si mesma”, disse.
Segundo Pollyana, hoje, com a ampliação
da consciência e do protagonismo
da mulher e com a melhoria da
assistência, cada vez mais as mulheres
estão se despertando e conseguindo
ter experiências boas de parto. “No íntimo,
toda mulher quer um parto feliz,
quer se sentir feminina e protagonista
de seu próprio parto”, destaca.
Sônia Lansky afirma que é preciso
ressignificar o parto no Brasil, com a
visão do respeito e do direito, e como
uma experiência fortalecedora da identidade
feminina. “É preciso resgatar o
valor do bom parto, praticar, oferecer,
disseminar boas práticas. O parto é da
mulher. Elas são outras após o parto”,
incentiva.ø
Acatando ação civil pública ajuizada
pelo Conselho Regional de
Enfermagem (Coren-RJ), a 2ª Vara
Federal do Rio de Janeiro suspendeu
no dia 30 de julho de 2012, as resoluções
do Conselho Regional de
Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj),
publicadas no dia 19 de julho
no Diário Oficial do Estado do Rio
de Janeiro. As resoluções 265 e
266 proibiam médicos de atuarem
nas equipes de parto domiciliar ou
de integrar quadros hospitalares de
suporte e sobreaviso. O Cremerj
também havia vetado obstetrizes,
doulas e parteiras de acompanhar
as grávidas antes, durante e após o
parto hospitalar.
De acordo com a decisão da
Justiça do Rio, as resoluções ofendiam
diversos dispositivos constitucionais
e legais "que garantem à
mulher o direito ao parto domiciliar,
assim como ao acompanhamento,
em ambiente hospitalar, de pessoa
Direito da mulher
Justiça suspendeu resoluções
sobre partos em casa
livre de sua escolha". Segundo a liminar,
proibir a participação de médicos
nos partos em casa pode
trazer "consideráveis repercussões
ao direito fundamental à saúde",
que é um dever do estado, uma vez
que "a falta de hospitais fora dos
grandes centros urbanos é muitas
vezes suprida por procedimentos
domiciliares, nos quais é indispensável
a possibilidade de participação
do profissional da medicina, sem
que sobre ele recaia a pecha de infrator
da ética médica".
A médica Sônia Lansky considera
como violação e cerceamento
da liberdade as tentativas de restrição
ao parto domiciliar no Brasil. Segundo
ela, essas ações estão na
contramão de países como Inglaterra
e Canadá, que recomendam o parto
domiciliar ou em centros de parto
normal, com referenciamento para
serviços de saúde complementar,
em casos de complicações.
Por um novo modo de nascer
Filmes:
- O Renascimento do Parto: www.youtube.com
- Liberdade para Nascer/Freedom for Birth: www.youtube.com
Sites:
- Ishtar: www.ishtarbh.blogspot.com.br
- Gama: www.maternidadeativa.com.br
- Parto do Princípio: www.partodoprincipio.com.br
- Amigas do Parto: www.amigasdoparto.com.br
- ReHuna: www.rehuna.org.br
Revista Elas por Elas - março 2013 35
São dois pra lá,
dois pra cá?
ARTIGO | por Rachel Moreno *
feminismo.org.br
36
É possível uma reivindicação polêmica
estacionar num determinado ponto
de sua trajetória, congelando a realidade
do momento? Ao que tudo indica, não.
Assim ocorre com a questão do aborto
no Brasil, que aparentemente parou
depois da inclusão da anencefalia (má
formação do cérebro do feto na gestação)
entre as três situações em que o
aborto é considerado legal no Brasil –
em caso de risco de vida da mãe, em
caso de estupro e no caso de anencefalia.
Com toda a polêmica e atuação de
segmentos da igreja, no segundo turno
da última eleição presidencial, a presidenta
Dilma Rousseff se comprometeu
a não mexer na lei. Algum tempo depois,
Eleonora Menicucci, designada
Ministra da Secretaria de Políticas para
Mulheres, uma das formuladoras da
Política de Atenção Integral à Saúde
da Mulher, disse que a questão do
aborto será tratada pelo governo estritamente
no sentido de garantir o que
já está previsto na legislação.
Enquanto isso, nossos vizinhos
avançam, liberalizando a lei na Argentina
(em Buenos Aires), e no Uruguai, que
recentemente determinou que todas as
instituições de saúde públicas e privadas
façam o aborto em mulheres que solicitem
o procedimento nas primeiras
12 semanas de gestação. “Estamos
convencidos que este tipo de lei, somado
às políticas públicas de contracepção e
planejamento familiar, além de educação
sexual e reprodutiva têm como objetivos
melhorar a saúde e a qualidade de vida
das mulheres e diminuir a mortalidade
materna e o número de abortos”, cita
Leonel Briozzo, vice-ministro de Saúde
Pública do Uruguai, no site do Ministério.
Aqui também a questão se move...
Num primeiro momento, a comissão
que redigiu a revisão do Código Penal,
propõe a descriminalização do aborto
em situação de incapacitação da mãe,
com laudo médico ou psicológico. Os
psicólogos posicionaram-se contra a
proposta, enfatizando o direito da
mulher à decisão e reafirmando a sua
função de suporte psicológico em qualquer
momento do processo. Mas esta
discussão terminou adiada.
Algum tempo depois, ressurge o
Estatuto do Nascituro, de autoria dos
ex-deputados Luiz Bassuma (ex-PT e
ex-PV) e Miguel Martini (PHS-MG),
que volta à pauta do Congresso, à
espera da designação de um relator
na Comissão de Finanças e Tributação
(CFT). Apenso a ele, emendas que lhe
permitem continuar em tramitação,
apesar de seus autores terem findado
seus mandatos. O PL dispõe sobre a
proteção integral ao nascituro. E, entende
por nascituro, o ser humano
concebido, mas ainda não nascido. É
preciso lembrar que legalmente, o nascituro
adquire personalidade jurídica ao
nascer com vida. Mas o projeto pretende
lhe garantir a expectativa do direito à
vida, à integridade física, à honra, à
imagem e de todos os demais direitos
da personalidade.
Acompanham-no o PL do deputado
Odair Cunha, que dispõe sobre a proteção
integral – e prioritária – do nascituro,
e o PL dos deputados Henrique
Afonso e Jusmari Oliveira, que dispõe
sobre a assistência às mãe e ao filho
gerado em decorrência de estupro, garantindo
entre outros, a concessão do
benefício mensal de um salário mínimo
para reverter em assistência à criança
até que complete dezoito anos – que
as feministas apelidaram de “bolsa-estupro”.
Na avaliação da ONG Cfemea
(Centro Feminista de Estudos e Assessoria),
o Estatuto reúne todas as propostas
de legislação contra o direito
das mulheres ao aborto para impor um
dogma religioso em forma de lei. “É o
tipo de projeto para vigorar em países
teocráticos, ou abertamente dominados
por uma determinada religião. Poderia
valer para o Vaticano, por exemplo,
não numa República, laica”, opinam.
Seria, portanto, uma artimanha para
retirar direitos femininos nas três possibilidades
de aborto que foram viabilizadas
por permissão legal até hoje.
“Isso é uma nova versão do ódio às
mulheres. A função delas é parir, se
morrerem nessa função não tem importância,
estavam cumprindo seu papel;
se foram estupradas ou se tiverem uma
gravidez com uma anomalia grave no
feto, levando a um grande sofrimento
para a mulher, não é problema - um
dos Ministros do STF até disse que o
sofrimento é uma condição que melhora
o ser humano e é aceitável”, diz Dulce
Xavier.
Há também um movimento dos
Bispos Católicos em São Paulo, visando
colher assinaturas para mudar a Constituição
Estadual para proteger a vida
desde a concepção – o que parece um
contra-senso, na medida em que a
Constituição Estadual não pode contradizer
a Nacional.
Artigo do Le Monde Diplomatique
Brasil, com a colaboração de Juliano
Alessander, advogado e consultor do
Cfemea e Kauara Rodrigues, cientista
política e assessora técnica do Cfemea,
refere-se ainda a um requerimento que
solicita a criação de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) para
“investigar a existência de interesses e
financiamentos internacionais para
promover a legalização do aborto no
Brasil”. Segundo esse requerimento, a
presença dessas “organizações” financiadas
pelo capital estrangeiro para legalizar
o aborto no Brasil seria uma
“afronta à soberania nacional”, além
de crime. Estranha argumentação,
considerando que não há lei brasileira
que considere crime o financiamento
de projetos para alterar a legislação
que criminaliza o aborto no Brasil. Estranho
também pelo fato de nenhum
Revista Elas por Elas - março 2013 37
parlamentar anti-direitos das mulheres
ter levantado a “bandeira nacional”
quando se impôs o acordo Brasil-Vaticano,
que legitimou os privilégios da
Igreja Católica no país – especialmente
no tocante aos direitos de propriedade
e ao ensino religioso nas escolas públicas
– violando o princípio da laicidade
do Estado, e aprovado em tempo recorde,
sem debate com a sociedade e
sem chance de ser emendado; Apelaram
para a Lei de Acesso à Informação,
com o objetivo de investigar com
poder de polícia que tipo de apoio organizações
feministas estão recebendo
para lutar contra a criminalização do
aborto.
E, como se não bastasse, em fevereiro
de 2013, um encontro realizado
na sede do Conselho Regional de Medicina
(CRM-PA) reuniu representantes
do Movimento Nacional da Cidadania
pela Vida (Brasil sem aborto), Movimento
Pró-Vida do Pará, representantes de
igrejas católicas, da associação espírita
do Pará e cidadãos que são contra a
prática do aborto para sensibilizar e
buscar medidas para alertar a população.
Ou seja, se o movimento social não
avançar, na outra ponta, em termos de
direitos, aparentemente abre-se tempo
e espaço para o avanço do retrocesso
com relação aos direitos conquistados
nesta questão.
Questão de saúde pública
Ser a favor da legalização do aborto
não é o mesmo que ser a favor do
aborto em si, afirmam as militantes da
causa. Trata-se na verdade de levantar
uma bandeira de saúde pública, diante
da constatação da mortalidade materna
e das despesas maiores do SUS (Sistema
Único de Saúde), para tratar das consequências
dos abortos mal feitos. Legalizar
o aborto, muito além de nossa
escolha pessoal, é uma questão de
saúde pública e de direito das mulheres
em geral.
Os números
A proibição no Brasil não faz com
que as mulheres não abortem. De
acordo com pesquisas feitas pela UnB
e UERJ, pelo menos 3,7 milhões de
mulheres entre 15 e 49 anos realizaram
aborto. Ou seja, 7,2% das mulheres
em idade reprodutiva. Desse total,
menos da metade chega ao Sistema
Único de Saúde (SUS). Estudos referentes
a 2005 estimam em 1,5 milhão
a ocorrência, na rede pública, de curetagens,
o procedimento cirúrgico adotado
para diagnosticar ou tratar sangramentos
uterinos anormais. “Podese
questionar que nem todas essas mulheres
fizeram aborto, mas existe uma
sub-notificação nesses dados, que não
incluem população rural e mulheres
usuárias da medicina privada”, afirma
a antropóloga Debora Diniz, uma das
autoras da pesquisa Aborto e saúde
pública: 20 anos de pesquisas no
Brasil, realizada pela UnB.
O aborto é a quarta maior causa da
mortalidade das mulheres. E particularmente
de mulheres pobres, sem a
possibilidade de pagar por um procedimento
fora do país, em um local onde
o aborto é legalizado, ou por uma
clínica clandestina de boa qualidade.
Essas mulheres, na sua maioria, não
têm acesso à informação de contraceptivos,
não têm dinheiro para pagar
um ginecologista, um preservativo ou
uma pílula anticoncepcional.
Nos países em que o aborto foi legalizado,
o índice de morte materna e
a taxa de interrupção da gravidez são
menores do que naqueles em que não
é aprovado o procedimento. A informação
é do professor da Faculdade de
Ciências Médicas (FCM) da Unicamp,
Aníbal Faúndes, que participou do
“Aulas Magistrais” (28/06/2012), projeto
desenvolvido pela Pró-Reitoria de
Graduação (PRG). “Nos países em que
a medida foi adotada, as taxas caíram
com o passar do tempo. O mesmo
ocorreu com os índices de mortalidade
materna, visto que as mulheres passaram
a ter acesso a atendimento de qualidade”,
disse ele.
Aborto legal
Mesmo nos casos previstos por lei,
convém ainda sensibilizar os profissionais
da área de saúde, de modo a garantir o
direito adquirido, sem delongas, questionamentos
não-cabíveis ou interferência
da opinião pessoal do profissional
– resguardada apenas a cláusula de
consciência.
“O Brasil não consegue oferecer
um atendimento adequado nem mesmo
às mulheres que querem interromper a
gravidez nos casos previstos em lei. É
o caso daquelas que foram estupradas.
38
credito
Aqui, se a mulher disser que foi violentada
pelo noivo, por exemplo, a tendência
é que as pessoas, inclusive os
profissionais de saúde, considerem que
isso não constitui estupro, apenas porque
ela mantém um relacionamento afetivo
com o agressor”, afirma o dr. Aníbal
Faúndes. As maiores vítimas dessa situação,
lembra o médico, são as mulheres
pobres, que não têm voz para
cobrar uma mudança na legislação.
“Falta poder político a elas. É por
isso que temos que usar as nossas vozes
para defender os direitos delas”. Conforme
o médico, a questão que se
coloca não é ser a favor ou contra o
aborto. “Ninguém gosta do aborto,
nem mesmo a mulher que opta por
ele. Trata-se de uma solução extrema”,
lembra ele, destacando que a discussão
em torno do tema tem que envolver
também o direito da sociedade em geral
a uma educação sexual responsável e
ao acesso à informação e serviços de
saúde de qualidade.
Opinião pública
Finalmente, pesquisa realizada pelo
Ibope em novembro de 2010 mostra
que a grande maioria (quase 70%) da população
brasileira está de acordo com
que uma mulher possa interromper a
gravidez quando está em risco sua própria
vida ou quando o feto não tem nenhuma
chance de sobreviver após o nascimento.
Quando a gravidez é decorrente de um
estupro, 52% dos(as) entrevistados(as)
afirmam concordar com o direito da mulher
decidir interromper a gravidez. Finalmente,
para 96% da população não é
papel do governo prender as mulheres
que realizam um aborto nessas condições
mas, sim, oferecer atendimento nos hospitais
públicos.
Questionados sobre quem deve decidir
sobre a interrupção de uma gravidez
não planejada, a maioria (61%) dos(as)
entrevistados(as) afirma que deve ser a
própria mulher. Apenas 5% da população
pesquisada, em média, entendem
que instituições sociais como: Igreja, o
Congresso Nacional, o Poder judiciário
e o(a) Presidente da República têm
direito de decidir sobre o direito de a
mulher interromper uma gravidez.
A população entrevistada que se declarou
católica também mostrou ter posição
favorável ao direito de decidir das
mulheres sobre a maternidade, mostrando
divergência de pensamento em relação
ao da instituição religiosa a que esta população
pertence, que reiteradamente
tem se posicionado de forma contrária
ao direito de decidir das mulheres. Nos
últimos tempos, o movimento social pouco
se tem manifestado publicamente a respeito
do tema, priorizando outras pautas,
mais na ordem do dia, como a questão
da violência de gênero. A mobilização
em torno da questão do aborto, entretanto,
se faz necessária – se não para avançar,
ao menos para ao permitir o retrocesso
nas poucas conquistas já estabelecidas.
Referências:
Católicas pelo Direito de Decidir
www.catolicasonline.org.br
Cfemea - www.cfemea.org.br
Congresso Nacional
www.camara.gov.br
1 - Rachel Moreno é formada em Psicologia
pela Universidade de São Paulo (USP). Tem
especialização em Sexualidade Humana e
pós-graduação em Meio Ambiente e Sociedade.
Trabalha com pesquisa e atua no movimento
feminista.
Revista Elas por Elas - março 2013 39
Arquivo pessoal
Amanda Teixeira
MULHER E MÍDIA | por Débora Junqueira
Fora das
capas
de revistas
Adolescentes negras
não se reconhecem nas
publicações femininas
“Quem tem os lábios grossos e quer
disfarçá-los deve optar pelos tons-deboca.
Evite as cores fortes, como o
vermelho e o rosa-claro, que fazem
com que pareçam maiores”. Essa dica
de maquiagem foi publicada na revista
Atrevida, destinada ao público adolescente,
mas pode ser facilmente encontrada
em outras publicações do gênero.
Mas como essa informação é processada
por uma adolescente negra, cujos lábios
são naturalmente volumosos?
Uma breve navegação nos sites de
revistas teens como Capricho e Atrevida
é possível perceber que a maioria das
moças que figura nas capas dessas publicações
são modelos de pele branca.
A maior parte das dicas de moda,
cabelo e maquiagem também privilegia
as mulheres brancas, sendo significativa
a ausência de mulheres negras e de
pautas que despertem algum tipo de
consciência racial.
Enquanto as jovens de pele clara
aparecem em diversas situações, as adolescentes
negras surgem dentro de um
contexto exótico. Alguém diferente que
de vez em quando é lembrado. A constatação
é da professora Carolina Santos
de Oliveira, historiadora e mestre em
educação, que publicou um livro a partir
de sua dissertação de mestrado, de 2009,
Adolescentes negras no discurso da
Revista Atrevida. A obra discute a ausência
e a qualidade da presença da mulher
negra nas revistas femininas.
Para Carolina, as revistas apresentam
cuidados que descaracterizam a negritude,
além de apresentar o que consideram
ser o ideal de beleza e como
modificar-se para ficar mais bonita. “O
cabelo crespo pode sim ter balanço e a
solução para isso é apresentada por
um especialista. É importante frisar que
a manipulação do cabelo e do corpo
sempre existiu, o que ocorre nas revistas
femininas é que as dicas aparentemente
inofensivas acabam reproduzindo as relações
de preconceito racial existentes”,
avalia. Segundo ela, a mensagem final
Revista Elas por Elas - março 2013 41
é que esse ideal de beleza nunca vai ser
atingido, gerando sentimento de culpa
e frustração nas meninas.
A pesquisadora entende que as constantes
dicas de afinação dos lábios e
nariz podem ser vistas como uma representação
do racismo. “As concepções
biológicas emergem no discurso do periódico.
Insinua-se que as características
inscritas num corpo negro são consideradas
inadequadas, revelando uma ideia
de hierarquia racial”, descreve. Ela trabalha
com o conceito de “Branquitude
normativa”, ou seja, a ideia do homem
branco como representação da espécie.
“Nem é a mulher, é o homem branco
como norma”, enfatiza Carolina.
Na dissertação, Carolina cita a professora
da UFMG e sua orientadora,
Nilma Lino Gomes, que entende a formação
da identidade negra como uma
construção social, histórica, cultural e
plural e acredita que construir uma
identidade negra positiva na sociedade
brasileira, que ensina os negros que
para ser aceito é preciso negar-se, é
um desafio para todos os brasileiros.
O estudo conclui que o “padrão hegemônico
da adolescente branca de
classe média e moradora de espaços
urbanos é socializado, divulgado e reforçado
entre as leitoras, pois a mídia
cria um sistema de conhecimento que
as pessoas passam a almejar em sua
casa e em seu convívio”. Em um dos
trechos, a autora questiona: “ora, se
sabemos que o discurso também produz
subjetividades, podemos indagar qual é
a repercussão da Atrevida no campo
de percepção das leitoras e que imagens
da diversidade étnico-racial ela tem ajudado
a veicular. São ideologias que reforçam
não somente aspectos econômicos,
geográficos e culturais, mas
também raciais, de gênero e juvenis.
Dessa forma, a revista exerce papel
pedagógico e ideológico, já que tem
como intenção formar opinião e, por
conseguinte, sujeitos-leitores”.
Mark Florest
Carolina Santos discute em sua dissertação de mestrado o preconceito contra as
mulheres negras
O ideal de beleza
nunca vai ser atingido,
gerando sentimento
de culpa e frustração
nas meninas
Sem identidade
O fato é que as adolescentes negras
não se reconhecem na mídia, seja pela
ausência de modelos com as mesmas
características físicas delas ou pela ausência
de pautas que abordem as suas
diferenças sem desqualificá-las perante
o ideal de beleza construído pela sociedade.
Amanda Teixeira, uma garota
negra paulista, de 16 anos, tem o hábito
de visitar sites de revistas femininas,
entre elas a Capricho. De vez em quando,
deixa o seu comentário ou crítica sobre
a falta de matérias específicas sobre
beleza negra. “Não me identifico com a
revista e não sigo suas dicas e sugestões.
Procurei por diversas vezes alguma matéria
que tratasse da beleza negra, porém,
não encontrei”, afirma.
Segundo ela, a maioria das sugestões
está voltada para a moda “europeia” e
passam a imagem e influência de que
o ideal de beleza da mulher está relacionado
ao padrão imposto pela sociedade,
ou seja, todas precisam ser magras,
brancas e terem cabelo liso, assim
como as modelos das revistas. “Conheço
crianças e adolescentes que desejam
seguir os estereótipos que a mídia
impõe, penso que isso é errado, pois
muitas meninas tentam tornar-se o que
não são. Elas negam a sua própria na-
42
tureza, deixando explícito que vivemos
em uma sociedade em que as pessoas
importam-se excessivamente com a
aparência, esquecendo-se da ética e do
caráter”, critica. Amanda conta que
aos 8 anos de idade pediu à mãe que
alisasse seu cabelo. “Fiz isso influenciada
por outras crianças, pois não gostavam
do meu cabelo e achavam-me feia por
ter o cabelo diferente”, afirma.
A estudante mineira, Núbia Katheryne
Soares da Silva, 14 anos, negra, diz que
também não se reconhece na maioria
das revistas que costuma ler. “Às vezes,
leio uma frase ou história de alguém que
me remete a algo que me aconteceu,
mas é muito raro. Geralmente compro
aquela que tenha uma matéria sobre o
meu ídolo (Neymar) ou de outros famosos
que gosto na capa”, conta .
Núbia diz que nunca utilizou dicas
das revistas. “Percebo que, geralmente,
não há dicas específicas de cuidados
com a pele negra. Às vezes, falam
sobre "como domar os cachos" ou um
"corte para cabelo afro", explica. A
jovem tem a percepção de que as pessoas
se vêem obrigadas a atingir padrões
impostos pela mídia: “cabelo liso, pele
hidratada e cheirosa por 24 horas e
corpo escultural sempre”. “Qualquer
um sabe que é difícil, ou até mesmo
impossível alcançar esse ideal, porém
as pessoas parecem estar condenadas
a cederem a esse padrão e vivem uma
busca interminável por ele. Eu mesma
já alisei os cabelos umas três vezes
porque acho difícil cuidar dos cabelos
cacheados como os da minha mãe,
que são bonitos. Ela já não abre mão
dos mesmos de jeito nenhum", opina.
A professora e pedagoga, Beatriz
Coelho Soares da Silva, mãe da adolescente,
confessa que nunca havia
atentado para o fato dos conteúdos
das revistas não fazerem referência aos
negros. “Ao menos nunca li as revistas
com esse olhar, porém sempre orientei
minha filha a não se deixar levar por
esta ilusão estampada nas revistas de
que o sucesso vem com facilidade.
Sempre exponho pra ela nossa realidade,
nossa história, falo dos preconceitos que
já sofri na infância e digo que temos
sempre que batalhar para conquistarmos
nosso espaço, não deixando ninguém
nos desrespeitar ou nos julgar pela cor
da pele ou por ter cabelo crespo ou liso
ou alisado. Sonho para que chegue o
dia em que o negro não apareça na
mídia apenas para cumprir a "cota racial",
ensina.
Discriminação racial e de gênero
Esse tipo de discriminação que afeta
as meninas negras foi abordado na
pesquisa de conclusão do Curso de Especialização
Relações Raciais e Educação
na Sociedade Brasileira, ofertado pelo
Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Relações
Raciais e Educação – NEPRE,
da Universidade Federal de Mato Grosso,
financiado pela SECAD/MEC - Programa
UNIAFRO, sobre a evolução do
papel da mulher negra na sociedade
brasileira, a discriminação racial e de
gênero e análise de entrevistas feitas
com jovens adolescentes negras vítimas
de discriminação racial e de gênero no
espaço da escola.
A pesquisa Discriminação racial e
de gênero: desafios de jovens adolescentes
negras no espaço escolar, de
Nilvaci Leite de Magalhães Moreira,
disponível na internet (www.ie.ufmt.br),
foi realizada em 2011. O trabalho teve
por objetivo analisar como as relações
interpessoais de jovens adolescentes
negras são influenciadas pelo imaginário
social e saber se a discriminação racial
e de gênero existentes no espaço escolar
marcam negativamente suas vidas. Constatou-se
neste estudo que as jovens
adolescentes negras já trazem consigo
as marcas do sofrimento baseadas na
discriminação racial e de gênero. A
partir dessa pesquisa foi possível en-
A pedagoga Beatriz orienta a filha Núbia a valorizar sua beleza, para além do
padrão imposto pelas revistas
Cecilia Alvim
Revista Elas por Elas - março 2013 43
xergar o efeito das experiências dessas
jovens quando atingidas por atitudes
negativas e que estão fortemente presentes
no ambiente escolar, onde o fenótipo
negro, principalmente o tipo de
cabelo e cor de pele são vistos como
fora dos padrões de beleza instituída
pela sociedade, sendo internalizada
pelas jovens como referência de feiúra,
levando-as à rejeição e à autorrejeição.
“Durante o período da minha pesquisa,
ficou nítido que muitas vezes as
pessoas tidas como ‘melhores’ se encarregam
de excluir e de categorizar outras
pessoas consideradas ‘piores’ em razão
de não atender aos seus padrões culturais
historicamente estabelecidos, como a
beleza estética tendo como referência
o padrão europeu, atribuindo assim
tratamentos diferenciados. Essa situação
nos dá uma noção de o
quanto jovens adolescentes negras
ainda possuem suas imagens fortemente
atreladas ao período da escravidão”,
afirma a autora, na conclusão
da pesquisa.
para o qual os produtos e os serviços
oferecidos pelo mercado, de maneira
geral, foram criados”. Segundo ela, a
discussão da quase inexistência de produtos
específicos para negros e negras
no mercado, entendida como resultado
de relações de poder socioeconômico
e étnico-racial na sociedade, poderia
ser uma pauta a ser sugerida para essas
revistas femininas. “Existe e é crescente
uma classe média negra com poder de
consumo, assim como há publicações
a exemplo da revista Raça Brasil, que
está no mercado há algum tempo e
prova que o problema não é mercadológico”,
acredita.ø
O problema não é mercadológico
Procurada para falar sobre o tema,
a editora da revista Atrevida não se
pronunciou até o fechamento desta
edição, assim como não respondeu os
questionamentos da professora Carolina
na época de apuração da sua pesquisa.
É sabido que os veículos de comunicação
de massa como as revistas Atrevida,
Capricho e outras sobrevivem da publicidade,
normalmente de produtos
de beleza e moda produzidos por
uma indústria que mantém o seu
foco num determinado público com
poder aquisitivo para consumir essas
revistas e adquirir seus produtos.
Conforme descreve a pesquisadora
Carolina dos Santos, “as características
étnico-raciais do segmento
negro da população são
mais difíceis de enquadrar no modelo
pretendido esteticamente pela revista
44
Carmelita e sua neta
Para além da
dona Benta
Avós assumem cada vez mais papel de
cuidadoras e provedoras dos netos
COMPORTAMENTO
por Débora Junqueira
foto Mark Florest
Dona Benta, personagem do Sítio
do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato,
estigmatizou um tipo de avó cada
vez mais raro nos tempos de hoje.
Aquela senhora de cabelos brancos,
que recebe os netos de férias, mimando-os
com quitutes e contando fábulas,
cede espaço para um novo perfil
de avós. Para além da dona Benta,
mulheres com mais de 60 anos, diante
de uma nova realidade social, assumem
o total cuidado dos netos no dia a dia,
ou até mesmo são provedoras de lares
onde os filhos saem cada vez mais
tarde de casa.
Uma pesquisa da UnB (Universidade
de Brasília), que reuniu avós e netos
numa escola do Distrito federal, concluiu
que os idosos têm participação ativa
na educação das crianças. Também
que os avós exercem um novo papel,
em função das transformações ocorridas
no mercado de trabalho e pelo fato de
que as mulheres deixam cada vez mais
de assumir funções exclusivamente domésticas
e, por isso, necessitam deixar
os filhos com outros cuidadores. Outra
constatação é de que a instabilidade
profissional e a pobreza fazem com
que o dinheiro da aposentadoria, em
muitas famílias, seja o principal sustento.
O Censo do IBGE mostra que 20%
das famílias brasileiras declararam que
os responsáveis pelo lar são pessoas
com mais de 60 anos.
No artigo Avós, filhos e netos, uma
análise do papel dos avós na família
contemporânea, disponível na internet,
a autora, Larissa Cavalcanti de Albuquerque,
da Universidade Federal da
Paraíba, cita também que nos lares
cujos idosos chefiam encontra-se uma
proporção significativa de filhos que
moram junto, em função das dificuldades
na inserção e continuidade dos jovens
no mercado de trabalho. “Além disso,
gravidez precoce, prostituição, violência,
drogas são fenômenos que têm aumentado
entre o segmento populacional
mais jovem e repercutem nos idosos”,
observa.
“Vemos que os papéis dos avós já
não são mais os mesmos, estes agora
participam mais ativamente da vida dos
seus netos e suas responsabilidades vão
desde a simples contribuição com o orçamento
familiar até chefiar a família
ou mesmo possuir o poder familiar do
seu neto. A dinâmica familiar propicia
aos avós novas experiências, por mais
Revista Elas por Elas - março 2013 47
que em alguns casos a ajuda aos netos
seja a única saída para o desenvolvimento
das crianças e/ou adolescentes. Os avós,
sem dúvida alguma, ganham um novo
status na família, seu papel foi expandido,
ampliado e inclusive mudado”, conclui.
Carmelita da Silva Maia aposentouse
há três anos como auxiliar de serviços
gerais. Para que a filha possa sair para
trabalhar, desde que a neta de um ano
e três meses nasceu, ela é quem cuida
do bebê. “No início fiquei com a criança
em tempo integral, pois as creches só
aceitam depois de um ano. Agora,
também, a minha filha está trabalhando
menos e fico só meio horário. Ela tem
mais três filhos maiores que já ficam
na creche, mas essa é a primeira neta
que cuido”, conta Carmelita.
Segundo ela, a criança chama mais
a avó do que a mãe, mas quando a
mãe da criança chega do trabalho, ela
faz questão de entregar a neta para
que a própria mãe assuma a responsabilidade.
“A minha filha tem uma condição
melhor que a minha e não preciso
ajudá-la financeiramente, mas acho importante
cuidar da criança e saber que
ela pode trabalhar tranquila”.
Essa tranquilidade Carmelita não
teve no passado, quando precisou de
alguém para cuidar das suas filhas gêmeas.
Ela conta que pagava vizinhos
para olhar os bebês, pois era muito
difícil arrumar uma creche antes dos
três anos de idade. Quando as meninas
já estavam numa creche perto de sua
casa, ela presenciou um fato que a
deixou estarrecida e a fez tirar as
crianças da escolinha sem nenhuma
estrutura para cuidar de crianças. “Cheguei
de surpresa e ouvi uma ajudante
perguntando para a outra se já estava
na hora de colocar o remédio no chá
das crianças para que elas se acalmassem.
Passei por muitas dificuldades,
minhas filhas passaram fome, tomando
somente o leite em pó vitaminado
doado pelo governo, na época. Passava
Elza Fiuza/ABR
roupa, fazia faxina, criei minhas filhas
sozinhas. O pai só foi registrá-las quando
elas já estavam com 21 anos”, relembra
com tristeza.
Mas esse papel de cuidadora das
mulheres na terceira idade não é uma
característica somente das avós de
classes menos favorecidas. Maria do
Carmo Senna, 78 anos, moradora de
um bairro nobre de Belo Horizonte,
também assumiu a função de levar o
seu neto de carro para a escola todos
dias. “Fico com pena, porque os pais
trabalham muito e ele fica o dia todo
com a babá. Como a minha nora me
pediu para levar a criança à escola,
faço com carinho e a minha apreensão
é só não perder a hora”, conta.
A obra Livro dos Avós: na casa
dos avós é sempre domingo?, da psicoterapeuta
Lidia R. Aratangy e do pediatra
Leonardo Posternak, aborda
questões que também constatam as
transformações no papel desempenhado
pelos avós. Para a autora, a ajuda da
avó à nora ou filha, que concilia a maternidade
com a vida profissional, representa
apoio e uma nova solidariedade
feminina transgeracional. "As avós de
hoje, que tanto lutaram por mudanças
na condição da mulher, esforçam-se
agora em dar uma contribuição para o
sucesso profissional das jovens da nova
geração, apoiando assim a caminhada
em direção à simetria entre os sexos".
Essa postura revela uma mudança concreta
na educação das meninas e uma
cumplicidade nova entre mães e filhas",
afirma.
Já a advogada Maria Berenice Dias
(foto), vice-presidente do Instituto Brasileiro
de Direito de Família - IBDFAM,
possui uma visão bem mais crítica sobre
esse papel desempenhado pelas avós,
o que considera uma subjugação da
mulher “eternizada como cuidadora”.
Segundo ela, tudo muda no mercado
de trabalho, mas as mulheres são sempre
oneradas. “Na condição de mãe, trabalhadora
e como avó, a mulher acaba
assumindo o encargo, fruto da omissão
do Estado, que deixa de fazer políticas
para atender as crianças como a criação
de mais creches e horário flexível nas
escolas. O auxílio creche nunca sai do
papel”, exemplifica.
Ela indaga o porquê de só as mulheres
exercerem o papel de cuidadoras, e enfatiza
que os homens não entendem
esse papel como deles e contribuem
muito pouco nos cuidados com os filhos
e netos. Segundo ela, os homens costumam
ser identificados no papel de
provedores. Na Justiça, por exemplo,
estão mais comuns a decisões em que
os avôs são convocados a pagar a pensão
alimentícia dos netos. “Há o conceito
de família extensa e a guarda está também
privilegiando os avós”, afirma.
“O fato das avós estarem assumindo
mais o papel de cuidar dos netos tem a
ver também com a longevidade e aumento
da expectativa de vida. Mas
acaba sendo um pouco perverso, pois
há todo um apelo da sociedade para
que os idosos tenham melhor qualidade
de vida e, eles acabam colocados na
função de cuidadores e provedores”,
sentencia.ø
48
Denilson Cajazeiro
COMPORTAMENTO | por Débora Junqueira e Saulo Esllen Martins
Mudança de hábito
Mesmo sendo minoria, alguns homens já dividem as
tarefas domésticas com as mulheres
50
A sobrecarga de trabalho dentro e
fora de casa afeta diretamente as mulheres,
que continuam como as principais
responsáveis pelos afazeres domésticos
e cuidados com os filhos. De
acordo com dados de pesquisa divulgada
em 2012, pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), a jornada
média semanal das mulheres nessas
atividades é 2,5 vezes maior que a
masculina. Em 2011, as mulheres destinavam,
em média, 27,7 horas semanais
a afazeres domésticos, enquanto
os homens, 11,2 horas. Na população
ocupada, de 16 anos ou mais de idade,
as jornadas são de 22,3 horas e 10,2
horas, para mulheres e homens, respectivamente.
A constatação da pesquisa é a de
que, apesar da participação conjunta
de homens e mulheres no mercado de
trabalho, não há uma divisão equânime
das tarefas domésticas. Outro aspecto
observado foi o aumento da jornada
com afazeres domésticos em relação a
2006, com maior expansão para as
mulheres (1,3 hora), o que pode ser
atribuído à menor oferta de trabalhadores
domésticos.
Apesar desse quadro, em que lavar,
passar, cozinhar, cuidar dos filhos e da
casa são tarefas que ainda estão reservadas
às mulheres na maioria dos lares
brasileiros, a divisão de tarefas domésticas
já é realidade em algumas famílias,
onde os homens conseguem mudar o
hábito cultural de deixar todas as atividades
do lar sob a responsabilidade
das companheiras.
É o caso do músico e professor Jorge
Bonfá (foto). Pai de uma menina de oito
anos e de um garotinho recém-nascido,
ele divide as tarefas domésticas com a
esposa. “Sempre fui um homem que
contribuiu nas atividades do lar, talvez
pelo fato de ser músico, pois optei por
fazer minhas composições e dar aulas
de música, em casa. A minha mulher
trabalha oito horas por dia, com isso,
decidimos que eu cuidaria da nossa filha
e da casa, durante o tempo que ela fica
fora. Com o nascimento do nosso segundo
filho, eles passaram a precisar
ainda mais da minha contribuição”.
O casal divide o trabalho de maneira
organizada. Pela manhã, enquanto a
mulher toma conta do filho mais novo,
Jorge arruma a casa, lava roupa, ensina
as tarefas educacionais para a filha e
se prepara para levá-la à escola. “Depois
que ela entra na escola, eu começo as
minhas atividades. Dou aulas e busco
me dedicar à criação musical. No entanto,
o diálogo é muito importante e
deve ser feito para que as coisas funcionem
bem”, reforça Jorge.
Superação do machismo
“Generalizando, a minha geração
não está preparada para essa mudança.
Até mesmo algumas mulheres são machistas.
Isso está começando a mudar.
Hoje, os pais são mais participativos.
Ainda existem conflitos, as formas de
viver da mulher e do homem são diferentes,
mas acredito que as mudanças
de hábito vieram para ficar”, comenta
Bonfá.
Apesar de ser um entusiasta do aumento
da participação masculina na
vida dos filhos e nos afazeres domésticos,
o professor de música comenta que
existe toda uma estrutura legal e social
que impede o homem de participar
mais. Ele cita como exemplo a diferença
no tempo entre a licenças para homens
e mulheres. “Os homens podem ser
participativos, no entanto, as questões
culturais são determinantes nessa divisão
do trabalho. A minha mulher é muito
consciente, ela me ajuda nos meus projetos
e reconhece meu trabalho, mas a
sociedade ainda está em processo de
transformação. Sei que somos um bom
exemplo para muitos casais”.
Ao contrário de Jorge, que trabalha
em casa, o corretor de imóveis Paulo
Leite de Carvalho sai cedo de casa todos
os dias para o escritório, mas isso não o
impede de ajudar nas tarefas domésticas.
Em sua casa é ele quem prepara o café
da manhã, lava os banheiros e passa
roupas, entre outras coisas. “Trabalho
todos os dias com roupa social e tenho
a preocupação de verificar se há camisa
passada para eu usar no dia seguinte, se
não houver, eu mesmo passo”, diz. Atualmente,
a sua esposa não está trabalhando
fora de casa e o casal está sem empregada,
mas, mesmo assim, as tarefas
continuam sendo divididas. “Nunca quis
ter uma serviçal do lar como companheira.
Entendo que a responsabilidade
da casa é nossa. Sempre ajudei a fazer a
comida, lavar e passar e gosto de lavar
o banheiro e arrumar a roupa de cama”,
afirma. Segundo ele, o casal divide na
hora o que será feito. “Já me senti cansado
ao chegar em casa e ter que fazer
alguma tarefa, mas pensava no dia seguinte
e acabava fazendo, pois não gosto
das coisas desorganizadas”, confessa.
Quando jovem, Paulo entrava na
cozinha escondido da mãe e da empregada
para preparar algum prato. Sua
mãe não gostava que ele cozinhasse e
argumentava que ele não saberia fazer
com os cuidados necessários. Dentro e
fora de casa, ele vivenciou de perto várias
atitudes machistas. “Meu pai falava
que lugar de homem não era na cozinha.
Mas eu sempre gostei de cozinhar e
nunca tive problema em fazer qualquer
tarefa doméstica. Vários colegas brincavam
comigo e faziam chacota, dizendo
que isso não era coisa para homens fazerem.
Com o tempo, as piadinhas
foram diminuindo porque as pessoas
perceberam que eu faço por gosto e
fico feliz por ficarem bem feitas”, relata.
Paulo diz que a grande maioria dos
seus colegas gosta de tomar uma cerveja
depois do trabalho, sem se preocupar
se a esposa está sobrecarregada com
os serviços domésticos. “Os homens
ainda acham que a obrigação é das
mulheres”.ø
Revista Elas por Elas - março 2013 51
Arquivo pessoal
Adana Kambeba
Mulheres
ampliam papéis de
liderança e estão à
frente da educação,
luta pela posse da
terra e manutenção
das tradições de seus
povos
ETNIA | por Saulo Esllen Martins
Educação e feminismo
nas comunidades indígenas
“Aqui na nossa aldeia o cacique
ainda é um homem, mas as mulheres
exercem muitos papéis de liderança,
principalmente em relação às questões
que precisam de iniciativa. A força da
nossa ação é que nos levou a ocupar
cada vez mais espaço. Conquistamos
um lugar de destaque que jamais imaginávamos.
Mas cada povo tem a sua
maneira, eu conheço comunidades onde
a mulher não tem voz”, relata Marta
Kaxixó, liderança da aldeia Capão do
Zeinho, Martinho Campos/MG. Segundo
ela, se vai acontecer uma reunião,
uma viagem, ou se é preciso fazer um
projeto, uma mulher sempre está à
frente. “Nós estamos na escola, no
posto de saúde, na luta pelo reconhecimento
da terra e no trabalho pelo
resgate das tradições”, afirma.
O depoimento de Marta Kaxixó representa
a realidade de muitas mulheres
indígenas. Ao longo desses mais de
quinhentos anos, elas assumiram uma
postura de combate ao preconceito
contra as mulheres dentro e fora das
aldeias. E a educação com base no respeito
às tradições dessas comunidades
tem sido fundamental para alterar a
realidade das mulheres indígenas.
A atriz e bonequeira Zina Vieira,
que participou de uma oficina de teatro
de bonecos junto ao povo Kaxió, promovida
pela Associação de Teatro de
Bonecos de Minas Gerais (Atebemg),
constata que as mulheres Kaxikó possuem
grande poder de liderança na comunidade.
“São mulheres fortes que
estão à frente da organização social do
povo. Muitas são mães de família, separadas
e sustentam os filhos, sozinhas.
Realmente lideram a maioria dos processos
de luta pela garantia dos direitos
do povo. Grande parte delas está envolvida
na assistência direta aos quase
cem moradores da comunidade, seja
nas questões educacionais ou de saúde
pública”, relata a artista.
Marta Kaxixó coloca a educação
como uma das principais ferramentas
para a emancipação das mulheres indígenas.
Ela explica que o ensino abre um
leque de possibilidades. “Estimulamos
as crianças e jovens a prosseguirem os
estudos e alguns já conseguiram concluir
cursos superiores. Eles estão tentando
seguir nesse propósito de trazer mais informação
para a comunidade. Nesse
sentido, as mulheres também demonstram
mais interesse em resgatar os costumes,
a língua, enfim, elementos da tradição
do povo Kaxixó. Os homens estão
ficando no mesmo lugar e a mulher lá
vai embora. Somos muito resolvidas,
você tem que ver. Quando se fala em
povo Kaxixó, as mulheres devem ser
lembradas, isso é histórico”, enfatiza
Marta, cheia de orgulho.
As índias Mardem e Rosa, mãe e
filha da etnia Aranã, também associam
a educação ao crescente protagonismo
das mulheres nas comunidades indígenas.
Apesar de serem de gerações
distintas, elas apontam as mesmas dificuldades
para a formação e organização
do seu povo. “Consideramos a educação
como forma de fortalecer a comunidade
e, principalmente, aumentar o poder
das nossas companheiras. Mas é preciso
dizer que o ensino deve ser adequado à
realidade da comunidade, utilizando o
terreiro, o sol, a lua como espaços e
tempos educativos, relacionando o nosso
cotidiano com a terra, a natureza, a
tradição cultural e religiosa. Um aspecto
importante que a escola para indígenas
deve ter é o de trabalhar com as experiências
e aprendizados dos mais velhos,
suas lutas e as formas de resistência,
valorizando os saberes”, apontam.
De acordo com os Aranã, uma
escola nas aldeias, possibilita a participação
de todos e a utilização de materiais
que possam contribuir para a construção
da educação escolar indígena. “Precisamos
educar a partir das histórias do
passado e do presente, tendo como
base a força de nossa tradição”.
Rosa ainda mora na aldeia Aranã,
no município de Araçuaí/MG, no entanto,
Mardem decidiu se mudar para
Sete Lagoas/MG, onde vislumbrou mais
oportunidades para ela e seus filhos.
“A escola tradicional não nos atende
completamente, pois acreditamos e lutamos
por uma educação voltada para
a comunidade, dentro da aldeia, enriquecendo
muito, não só as crianças,
mas também adultos que não tiveram
oportunidade de estudar e que estão
buscando fazer isso agora, mas na
Revista Elas por Elas - março 2013 53
cidade grande isso fica inviável. As mulheres
são as mais interessadas nessa
busca por uma educação indígena, que
respeite os nossos valores”, completa,
com o desejo de que um dia o povo
ainda viverá em um território reconhecido
e emancipado culturalmente.
O sonho das mulheres Aranã já se
tornou realidade entre o povo Pankará.
A educação para eles é baseada na própria
cultura, geografia e história local.
Hoje, são 1.300 estudantes e 106 professores
e professoras em todo o território.
Uma iniciativa da professora
Edilene Pankará transformou a realidade
na aldeia Brejinho, território dos
Pankará, no município de Carnaubeira
da Penha, no sertão pernambucano,
onde a educadora desenvolveu seu projeto
de conclusão de curso sobre “A
mulher no Brasil”. A Escola Especiosa
Benigna de Barros foi o palco do projeto.
E as disciplinas escolhidas foram
filosofia e sociologia, aplicadas do sexto
ao nono ano.
“Comecei levando algumas músicas
Saulo Esllen Martins
A atriz Zina Vieira impressionou-se com o poder de liderança das mulheres da tribo Kaxixó
que exaltam as mulheres e também
aquelas que rebaixam, como as que
nos comparam a cachorras. Também
trabalhei com biografias de mulheres
importantes e suas contribuições para
o mundo como a presidente Dilma
Rousseff, Anita Garibaldi, Cora Coralina,
Maria da Penha, Chica da Silva, entre
outras, destacando o papel delas na
história, na poesia, na legislação, no
comando, enfim, em tudo. Fizemos
também paralelos de funções que as
mulheres não desenvolviam e hoje desenvolvem.
Nos dias atuais existem mulheres
policiais, juízas. Também não
votávamos e agora somos até eleitas.
Chegamos ao patamar de ter uma vereadora
de Carnaubeira da Penha, mulher
e indígena (Dorinha Pankará), ela
é nossa cacique e assumiu esse ano o
mandato na câmara”.
Conforme a professora destacou na
revista Guerreiras, uma publicação do
Centro de Cultura Luiz Freire, de dezembro
de 2012, a proposta se tornou
muito maior do que foi previsto. “Cada
biografia que levava, dava o maior debate”.
Edilene Pankará ressalta que os
temas se tornaram interdisciplinares
com tudo que acontecia na aldeia. “Depois
de cada apresentação continuávamos
com o debate e todo mundo se
informou, pesquisou e participou”.
Resgate histórico
Alternativas como essa servem como
exemplo e estímulo para as novas gerações
de indígenas. Analisar o passado
para entender o presente também deve
merecer a atenção de todos os envolvidos
nesse debate. De acordo com
Alda Maria Oliveira, assistente social
que trabalha no Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), na Bahia, a discussão
sobre direitos das mulheres entre as
populações indígenas no Brasil é recente.
As duas primeiras organizações
de mulheres indígenas surgiram na década
de 1980. As pioneiras foram a
Associação de mulheres Indígenas do
alto Rio Negro e a do Distrito de Taracuá,
Rio Uaupés e Tigué. As demais
foram constituídas a partir da década
de 1990.
“Na região onde atuamos, Norte de
Minas, Espírito Santo e Sul da Bahia,
as entidades de mulheres indígenas começaram
a tomar força a partir de
1995. Nesse sentido, as Pataxó Hãhãhãe
e Pataxó, presentes aqui no Sul
da Bahia, tiveram papel fundamental.
Em seguida as Tupinambá e
Tupinikin/Guarani do Espírito Santo e
Xacriabá, Krenak e Maxacali, em Minas
Gerais”, esclarece Alda.
Segundo a assistente social, depois
de vários encontros nas aldeias, intercâmbios
e reuniões, surgiu em 1998 a
COMIL (Comissão de Organização das
Mulheres Indígenas do Leste), que tem
como objetivo manter a referência e
articulação da luta das mulheres na região,
tratar sempre de temáticas relevantes
e reivindicar políticas públicas
para o “empoderamento” feminino,
54
sobretudo na luta pela posse das terras.
Depois de muito esforço, as mulheres
indígenas tiveram uma grande vitória,
em 1995, com a criação do CONAMI
- Conselho Nacional de Mulheres Indígenas
– responsável por um grande
salto na articulação, promoção, apoio
e defesa das pautas das indígenas. É
uma entidade da sociedade civil, que
atua com equipes itinerantes e luta pelo
reconhecimento do protagonismo, autonomia
e pela equidade de gênero.
Através do CONAMI muitas demandas
que antes não eram mostradas pelos
veículos de comunicação agora ganham
visibilidade na internet e por meio das
redes sociais.
Com o objetivo de realizar um verdadeiro
“enfrentamento da violência,
do racismo, discriminação e preconceito,
para que as mulheres sejam respeitadas
e valorizadas na sua forma de vida tradicional
e cultural, para que atuem em
espaços de diálogo junto aos gestores
públicos, buscando uma melhoria na
qualidade de vida”, o CONAMI ajuda a
mudar o quadro de invisibilidade das
mulheres indígenas, que agora podem
começar a assumir o merecido papel
de “mães do Brasil”.
Manifesto pelos direitos da
mulheres indígenas brasileiras
Nós, Mulheres Indígenas, lutamos
pela efetivação de políticas públicas
voltadas às mulheres indígenas, na demarcação
das terras, na educação diferenciada,
na saúde de qualidade para a
mulher e a criança indígena. Entendemos
que devemos ser incluídas nos
espaços públicos dos quais estamos excluídas
há muitos séculos. Acreditamos
ser as verdadeiras agentes de transformação,
contribuindo assim para a construção
de um mundo mais justo e fraterno.
Pela valorização das mulheres
indígenas, elencamos 13 diretrizes para
contribuir com o governo para a realização
das ações afirmativas.
Diretrizes da Mulher Indígena
(Empoderamento, Autonomia, Protagonismo, Equidade de Gênero)
1 – Criação da Subsecretaria da Mulher Indígena
no Governo Federal e nomeação de
uma mulher indígena para essa função, com
autonomia financeira, para desenvolver projetos
sociais para os povos indígenas.
2 – Assegurar maior representação da mulher
indígena no Governo, com a inclusão efetiva
da mulher em instâncias de poder, como
nos Conselhos Consultivos, Ministérios e
Secretarias.
3 – Assegurar a participação da mulher indígena
nos processos de decisões que afetem
seus interesses e demandas.
4 – Garantir 30% de vagas à mulher indígena
nas funções e concursos públicos.
5 – Criar o Programa de Alimentação Saudável
da Mulher e da Criança Indígena.
6 – Garantir saúde de qualidade com a
criação do Programa de Atenção Integral à
Saúde da Mulher e da Criança Indígena.
7 – Demarcação e apoio à gestão territorial,
política e econômica das terras indígenas.
8 – Planejamento, Desenvolvimento e implementação
de projetos específicos e autossustentáveis
para a mulher indígena.
9 – Erradicação do analfabetismo e inclusão
de programas educacionais, bem como
acesso efetivo à Educação superior e culturais
para as mulheres indígenas.
10 – Políticas públicas efetivas voltadas para
as mulheres indígenas, como a qualificação
profissional, cursos de informática nas escolas
indígenas. Amplo acesso às universidades.
11 – Criação de programas de valorização
e capacitação profissional para a inserção
no mercado de trabalho como profissionais,
geração de renda e emprego para as mulheres
indígenas.
12 - Criação de projetos de esporte e lazer
nas comunidades indígenas para o combate
a todo tipo de violência contra a mulher e
criança indígena.
13 – Fortalecimento e estimulo à palavra
da Mulher Indígena como fator relevante
sobre as questões familiares, comunitárias e
culturais da sociedade nacional. “a palavra
da mulher é sagrada como a terra” (palavras
de um sábio líder indígena).
Assine o Manifesto!
http://www.ipetitions.com/petition/mulheresindigenasbrasilieras/
Marta Kaxixó, da aldeia onde as mulheres têm lugar de destaque
Arquivo pessoal
Revista Elas por Elas - março 2013 55
ENTREVISTA | Adana Kambeba
por Cecília Alvim
“Uma ponte
entre dois
mundos”
Arquivo pessoal
Estudante de medicina na UFMG,
atriz indígena do filme "Xingu" quer
unir conhecimento e tradição
para ajudar seu povo
Ela é bela, inteligente, corajosa, liderança
de seu povo, cantora, compositora
e pesquisadora da cultura Kambeba. É
uma mulher indígena que atravessou a
fronteira territorial e cultural de sua comunidade,
em Manaus, para atuar na
música, no cinema e na ciência, e assim
ajudar na superação de preconceitos e
estereótipos que existem sobre os povos
indígenas brasileiros, em grande parte
ainda vitimados pelo abandono do Estado
e pela ganância de corporações e grupos
interessados em explorar as riquezas de
seus territórios. Em sua entrevista à
revista Elas por Elas, Adana mostrou
todo o domínio da língua portuguesa
que fala, além do Tupi Amazônico, e
uma visão rica sobre a vida e sobre a
realidade brasileira. Com sua trajetória,
ela mostra que é possível construir pontes
entre culturas e pensamentos, e acreditar
em um mundo mais plural, diverso e humano.
O povo Kambeba habita a região
amazônica entre o Brasil e o Perú, nas
imediações dos rios Solimões e Negro.
Adana é uma liderança de seu povo
junto aos movimentos sociais. “Acredito
ter vocação para as causas sociais pela
minha trajetória de vida até hoje. Busco
levar a eles informação e deixá-los a par
dos seus direitos e possibilidades de melhorias
em suas próprias vidas”, afirma.
Adana é compositora e cantora de
músicas indígenas. Em seus shows aproveita
para falar sobre questões indígenas.
Ela considera que assim contribui para
esclarecer a sociedade de muitos estereótipos
que foram criados acerca dos
56
povos indígenas, e possibilita às pessoas
ouvir e entender os cantos, para que
possam conhecer a visão indígena
acerca da vida. “Essa é uma forma de
ser ponte entre dois mundos, entre
pessoas de culturas diferentes, mas ao
mesmo tempo tão próximas. Iluminar
a escuridão da desinformação com a
luz da informação e colaborar para
diluir o preconceito é minha forma de
contribuir”, diz.
Adana é também pesquisadora dos
elementos identitários culturais do povo
Kambeba/Omágua. Coordena um trabalho
de resgate e revitalização dos
cantos, costumes e tradições da cultura
por meio do registro audiovisual. O material
será editado e distribuído entre o
povo.
É a primeira vez que mora longe de
sua “terra Amazônica”, onde foi professora
bilíngue. Mudou-se de Manaus
para Belo Horizonte, em 2012, após
ser aprovada no vestibular da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Adana diz ter sonhos coletivos. “Desejo
ver os povos indígenas com seus
direitos garantidos não somente na lei,
mas na prática, no cotidiano de suas
vidas. E ver as florestas sendo respeitadas,
preservadas. Se é para usar os
recursos das florestas a favor da nação
brasileira ou da humanidade, que seja
de maneira racional e inteligente para
que ela esteja sempre bela e saudável
para todos”, diz.
Sonha concluir o projeto de revitalização
da músicas tradicionais de seu
povo, se formar como médica e voltar
para sua casa, a Amazônia, para trabalhar
em prol da saúde indígena. “Eu
me vejo, no futuro, trabalhando, pesquisando
e lutando pelo meu povo e
por outros povos indígenas que compartilham
do mesmo ideal. Quando me
formar, vou voltar. Quero viver e morrer
no Amazonas. É lá que quero que meu
espírito habite, junto com os meus ancestrais”,
afirma.
Elas por elas - Onde nasceu?
O seu nome - Adana - tem algum
significado especial?
Adana - Nasci em Manaus, Amazonas.
Pertenço aos dois mundos, tanto
o mundo da floresta quanto o mundo
urbano. Sei chegar na cidade e conversar
com as pessoas os mais diversos assuntos,
sei comer num restaurante
usando talheres como garfo e faca,
assim como sei andar na floresta, conversar
com os meus antigos que falam
o Tupi Amazônico, sei chegar com
meu povo e sentar no chão e comer
com as mãos.
Adana é o nome de uma lenda indígena
que conta sobre ter existido uma
bela indígena, a mais bela do povo
Tupi filha de um tuxaua. Ela estava
prometida para se casar com um forte
guerreiro de seu povo chamado Kurukuí,
mas se apaixonou e acabou fugindo
em uma canoa com outro guerreiro de
nome Buburi. Kurukuí foi atrás dos
dois e depois de lutarem, as canoas se
encheram de água e todos se alagaram
no meio do rio. Cada um dos guerreiros
nadou para um lado e deu origem às
duas cachoeiras, Kurukuí e Buburi.
Adana se alagou no meio dos dois se
transformando em uma ilha que hoje é
chamada de Adana. Dizem que até
hoje os três continuam vivendo naquele
lugar. Os dois indígenas são os guardas
da bela Adana. De fato, existem as
duas cachoeiras e a ilha Adana na
região do Alto Rio Negro no estado do
Amazonas.
O que te motivou a estudar
medicina? E como pretende exer -
cer a profissão de médica?
Entre as razões que me motivaram
a estudar medicina, considero a mais
importante o fato de poder adquirir conhecimentos
na área da saúde, que me
possibilitem futuramente expandir o
compromisso que já venho exercendo
junto aos povos indígenas, especialmente
na área da cultura e da educação. Pretendo
exercer futuramente a profissão
médica na área da saúde dos povos indígenas
e não indígenas, aliando os conhecimentos
da medicina ocidental, os
quais estou aprendendo na UFMG,
com os conhecimentos da medicina
tradicional indígena, os quais terei que
aprender com os pajés/xamãs. Assim,
quero colaborar com a saúde e a vida
dos povos indígenas, com todo respeito
à cultura e às práticas médicas antigas
dos povos.
E como foi a experiência de
participar do filme Xingu?
Participar do filme Xingu foi de extrema
importância, pois tive a oportunidade
de vivenciar a sétima arte durante
três meses junto à produtora de filmes
O2 FILMES, do conceituado diretor
Fernando Meirelles, sob a direção do
diretor do filme Xingu, Cao Hamburguer,
e de toda a sua equipe de filmagem.
Também tive a oportunidade
de conhecer irmãos e irmãs indígenas
de outros povos, trabalhei com eles
para contar a sua própria história de
autonomia territorial, ou seja, a criação
da maior reserva indígena (Parque
Xingu) que é a casa (território) deles! E
também tive oportunidade de interpretar
um personagem que simboliza a mulher
indígena guerreira, de força, coragem
e determinação. Ela se dá o direito de
viver novamente, mesmo após ter vivenciado
uma grande tragédia em sua
vida junto com seu povo, acompanhando
os irmãos Villas Boas nesse
processo demarcatório. Ela existe na
vida real e hoje é uma senhora.
Esse trabalho artístico no cinema
me possibilitou ter sido chamada pela
mídia para falar não somente sobre o
filme e a mensagem que ele transmitiu,
mas também sobre as questões indígenas,
sobre o estudante indígena na
universidade, estereótipos criados ao
longo do tempo, Direitos indígenas e
Revista Elas por Elas - março 2013 57
tantos outros assuntos. É preciso aproveitar
esses momentos para representar
os povos indígenas, pois não é sempre
que a mídia dá vez e voz para um indígena
falar.
Fale-nos um pouco de seu povo
e de sua cultura.
O meu povo pertence ao tronco
Tupi e fala duas línguas: Kambeba e
Tupi Amazônico. Eu falo o Tupi Amazônico.
Nós fomos um dos primeiros
povos que teve contato com o europeu
na região amazônica (Peru/Brasil).
Éramos conhecidos somente por
Omágua, que quer dizer "Povo das
águas". Posteriormente, passamos a
ser conhecidos como Kambeba, devido
ao hábito de nossos antepassados, que
habitavam a região do Estado do Amazonas,
de comprimirem a cabeça das
crianças com tala de junco e algodão
para que as mesmas, quando crescessem,
tivessem seus crânios chatos.
Kambeba vem do Tupi (Akanga: Cabeça;
Pewa: Chata). O nosso povo foi forçado
a se espalhar como maneira de sobrevivência
e resistência. Hoje, podemos
ser encontrados na Amazônia Peruana
e na Amazônia Brasileira, nos municípios
de São Paulo de Olivença, Amaturá,
Fonte Boa, Tefé e também em outros
municípios das regiões do Rio Alto,
Médio e Baixo Solimões e em localidades
fora do Rio Solimões como no
próprio Rio Negro, por exemplo, Manacapuru,
Novo Airão e Manaus, que
é a terra onde nasci. Vale salientar
que, segundo informações obtidas pela
FUNAI, há presença do meu povo no
estado do Ceará.
Quais as principais lutas dos
Kambeba hoje? Sobre as condições
de vida, como funciona a educação
e a saúde lá?
As nossas principais lutas são pelo
reconhecimento de nossa identidade
indígena, pela demarcação de nossas
terras tradicionais, melhorias na área
da saúde e na área da educação. Como
meu povo está espalhado pelo estado
do Amazonas, ao mesmo tempo que
há uma similaridade quanto às problemáticas,
condições de vida, funcionamento
da educação e saúde, há diferenças
em alguns aspectos de acordo
com a localidade que meu povo se encontra.
Por exemplo, existem áreas
onde há escola bilíngue (Português/Kambeba)
e existem áreas onde meu povo
está reivindicando a escola bilíngue.
Outros conseguiram demarcar o território
onde estão, mas boa parte está
brigando pela demarcação da terra.
Quem são os professores nas
escolas indígenas? A maioria é de
mulheres?
A presença de professores indígenas
nas aldeias/comunidades é uma exigência
dos povos indígenas. Na maioria
das vezes, são escolhidos pelo próprio
povo ao qual pertencem, para se submeter
a uma capacitação ligada a projetos
educacionais de universidades públicas,
órgãos governamentais e organizações
não-governamentais. Também
é possível encontrar pessoas não indígenas
contribuindo na educação dentro
das aldeias/comunidades, pessoas sérias,
compromissadas e pré-dispostas a somar
com os povos indígenas em áreas da
educação em que há carência. Quanto
à predominância por gênero, dependerá
muito do povo de cada região, mas é
fato que há um crescente aumento da
presença de mulheres na educação indígena,
como também na liderança de
movimentos indígenas em todo país.
Como se dá a liderança das
mulheres indígenas no Brasil? E
você se sente uma liderança indígena
feminina?
No meu povo, como também em
muitos outros povos indígenas, está
ocorrendo um crescimento da presença
da mulher como liderança tanto nas aldeias,
como na área da educação, saúde
e nos movimentos sociais. A mulher
indígena, além de assumir e ser o esteio
da família no que diz respeito à educação,
nas obrigações da casa, inclusive
no sentido cultural, também contribui
no sustento da família e existem aldeias
onde a mulher é cacique/tuxaua ou
pajé/xamã de seu povo. Esse fato não
é taxativo e nem tão pouco geral, pois
é necessário levar em consideração que
cada povo tem sua cultura e que por
isso encontramos povos indígenas onde
a organização é patriarcal, mas é fato
que a mulher indígena está conquistando
aos poucos os espaços. Existem mulheres
indígenas representando os interesses
dos povos indígenas no meio
da política e participando da denúncia
de irregularidades contra os direitos
dos povos indígenas seja na justiça, na
própria mídia, nas passeatas ou em
58
Arquivo pessoal
palestras país afora. Outras mulheres
indígenas por meio da defesa de suas
teses de mestrado e/ou doutorado levantam
e defendem as questões mais
diversas dentro das causas indígenas
como uma forma de auto-afirmar valores
indígenas e de ter ferramentas a serem
utilizadas frente a órgãos federais para
reforçar o espaço dos povos indígenas
na sociedade.
Bem, eu sou tida como liderança
do meu povo porque sou reconhecida
por eles, especialmente pelos anciãos
Omágua. Tem muito peso receber o
reconhecimento, o respeito e a confiança
deles. Pelo contrário, jamais
seria, pois aprendemos desde cedo que
nós não nos escolhemos para o povo a
qual pertencemos, é o povo que nos
escolhe para representá-los. Quando
me apresento frente à mídia, às palestras
e ao público em geral, simplesmente
digo que sou uma representante do
meu povo Omágua/Kambeba, apenas
isso... Pois sinto que tenho muito que
aprender com os antigos ancestrais
vivos do meu povo...
Você acha que os governos têm
olhado com atenção para os povos
indígenas do Brasil?
Uma das principais lutas de nós,
povos indígenas, frente aos governos é
conseguir ter nossas terras demarcadas
e o direito de exercer nossa autonomia
sobre nossos territórios. Os governos
tiveram e continuam tendo atitudes de
altos e baixos, ora progressistas, ora
regressistas, quanto a nós, povos indígenas
que somos. Como exemplo “progressista”
cito a aprovação da criação
do Parque Nacional do Xingu, lembrando,
porém que para isso precisou
da luta e da articulação dos irmãos
Villas Boas com o apoio dos próprios
indígenas. Se não fosse isso, será que
o governo teria olhado para os indígenas?
Teria se preocupado em demarcar
um território? Pergunto porque
naquela época o governo tinha uma
mentalidade integracionista e de aculturação
para conosco. Muito dessa
mentalidade caiu por terra através, principalmente,
da Constituição de 1988,
que deu abertura para os povos indígenas
se organizarem e se auto-afirmarem
frente à sociedade.
Como exemplo “regressista” cito o
que está ocorrendo hoje através do
novo código florestal (que é mais da
agricultura do que florestal), onde é
dado muito espaço para a agricultura e
limitação para a floresta, interferindo
também nos direitos dos povos indígenas
quanto à sua autonomia sobre os seus
territórios já demarcados, fora os possíveis
entraves no processo de demarcação
de novos territórios. Percebe-se
pouca preocupação com a floresta e
com o bem-estar dos povos indígenas.
Tal violação é realizada através da promoção
de uma política neodesenvolvimentista
aliada aos interesses do agronegócio
e de outros setores que demonstram
interesse na exploração dos
recursos naturais das terras indígenas.
A hidrelétrica de Belo Monte é um
exemplo desse contexto. Os próprios
indígenas da região onde será construída
Belo Monte alegam que não foram sequer
consultados a respeito da construção
da hidrelétrica. É por esse e
outros motivos que vemos indígenas
das mais diversas etnias, comuni da -
des/aldeias em todo o país, junto com
simpatizantes da causa indígena e de
outras causas sociais, realizarem manifestações
com o intuito de denunciar e
sensibilizar a opinião pública e a comunidade
internacional acerca do que é
tido para nós, indígenas, como desrespeito,
descaso e omissão, que vem
acontecendo frente aos nossos direitos
assegurados inclusive na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.ø
Fonte: Pesquisa Fund. Perseu Abramo
Revista Elas por Elas - março 2012 59
Câncer
de mama
tem cura
SAÚDE DA MULHER | por Débora Junqueira
As mamas são para as mulheres um símbolo
da feminilidade, relacionadas também à sexualidade.
O diagnóstico de câncer nesta região
tem um peso para a autoestima das mulheres,
pois, em alguns casos, há a necessidade de retirada
das mamas. Campanhas de prevenção
e políticas públicas de saúde têm incentivado
as mulheres a fazerem exames preventivos,
assim como, colaborado para desfazer
alguns mitos sobre a doença.
O câncer de mama é o mais incidente
em mulheres, representando
23% do total de casos
de câncer no mundo em
2008. A taxa de mortalidade
por câncer de mama
ajustada pela população
mundial apresenta uma
curva ascendente e representa
a primeira causa de morte
por câncer na população feminina
brasileira, com 11,3 óbitos/100.000 mulheres
em 2009, segundo dados do Instituto
Nacional do Câncer (INCA).
Informações ajudam
a desmitificar doença
que afeta um dos
símbolos da
feminilidade
Apesar da alta incidência, 20% dos
casos novos a cada ano, e dos riscos
inerentes à doença, o câncer de mama
tem cura. Principalmente se for diagnosticado
precocemente e tratado de
forma adequada. O mastologista Henrique
Salvador Silva, diretor do Hospital Mater
Dei de Belo Horizonte, explica que existe
a prevenção primária, para tentar impedir
o aparecimento da doença e a secundária,
com o objetivo de detectar o câncer
mais cedo possível, para evitar a morte.
“Evitar a obesidade, fazer atividade física,
ter uma dieta equilibrada, eliminar o estresse,
além de fazer regularmente mamografia
e autoexame, vão permitir pelo
menos chegar ao diagnóstico precoce”,
recomenda.
As estatísticas mostram que 30%
dos casos de câncer podem ser prevenidos,
mas, segundo o mastologista, as
medidas de prevenção não são suficientes
para impedir que a doença apareça,
pois há outros fatores como a
predisposição hereditária, por exemplo.
“O fator hereditário é importante se
um ou mais parentes de primeiro grau
(mãe, irmã ou filha) teve a doença e se
aconteceu antes da menopausa ou se
o câncer atingiu as duas mamas. Nesse
caso, a mulher tem que ter mais cuidado”,
explica. Somente 12% dos casos
diagnosticados são hereditários.
Fatores de risco
Para o dr. Henrique, o aumento de
casos de câncer também está relacionado
à utilização de forma indiscriminada da
terapia de reposição hormonal. Ele
também destaca o fato das tomografias
terem ficado mais eficientes para detectar
as doenças. “Alguns fatores como ter o
primeiro filho após os 30 anos, uso de
pílula anticoncepcional por um tempo
muito prolongado e uma dieta muito
rica em gordura também podem explicar
o aumento da incidência de câncer de
mama, principalmente entre as mulheres
mais jovens”, afirma.
A professora Eni de Faria Sena, sensibilizada
por campanhas educativas,
sempre procurou fazer o autoexame nas
mamas, assim como as visitas ao ginecologista
e mamografias anuais. Mesmo
assim, aos 51 anos, durante o autoexame,
ela descobriu um nódulo no seio e, após
uma biopsia, foi diagnosticada com
câncer de mama. No caso dela, foi necessário
fazer uma mastectomia radical
e a colocação de uma prótese mamária.
“No início me assustei e fiquei bastante
triste. Pesquisei tudo sobre a doença na
internet e tive o apoio de bons médicos
e da minha família. Quatro meses após
o diagnóstico fiz a cirurgia. Não tive
preocupação com a retirada da mama,
pois sei que há mulheres que relutam
em fazer esse procedimento por preocupação
estética e acabam perdendo a
vida”, relata. Dez anos se passaram e
ela está totalmente curada, sem, contudo,
deixar de fazer o acompanhamento médico
necessário.
O dr. Henrique explica que a preocupação
estética das mulheres é grande,
mas que nem sempre é necessário
retirar as mamas e, quando é necessário,
há técnicas que utilizam o músculo da
barriga e a expansão para a posterior
colocação de prótese, assim como a
reconstrução dos mamilos com tatuagem.
“Cada mulher tem uma história
e uma escala de valores, o que afeta a
forma como encaram a doença. Elas
costumam manifestar o medo da mutilação
e a preocupação com a reação
do companheiro. Algumas pacientes
demandam piscoterapia, portanto temos
uma psicóloga na nossa equipe”.
Segundo ele, houve uma desmitificação
muito grande em relação à
doença. “As mulheres quase não escondem
que tiveram câncer de mama.
Afinal, o diagnóstico de câncer não é
de morte. Às vezes é até uma bela
oportunidade de reflexão sobre a vida
e deve ser encarado de forma natural”,
avalia.
Revista Elas por Elas - março 2013 61
Diagnóstico
Conforme informações disponíveis
no site do INCA (www.inca.gov.br), os
sintomas do câncer de mama podem
surgir com alterações na pele que recobre
a mama, como abaulamentos ou retrações,
inclusive no mamilo, ou aspecto
semelhante à casca de laranja. Secreção
no mamilo também é um sinal de alerta.
O sintoma do câncer palpável é o nódulo
(caroço) no seio, acompanhado ou não
de dor mamária. Podem também surgir
nódulos palpáveis na axila.
O diagnóstico cada vez mais está
focado nos exames de imagem que
permitem a detecção precoce do câncer,
ao mostrar lesões em fase inicial, muito
pequenas (medindo milímetros), antes
mesmo dos sintomas. A mamografia
deve ser realizada a cada dois anos por
mulheres entre 50 e 69 anos, ou segundo
recomendação médica. A Lei
11.664, de 2008, que entrou em vigor
em 29 de abril de 2009, estabelece
que todas as mulheres têm direito à
mamografia a partir dos 40 anos pelo
Sistema Único de Saúde (SUS).
Para o dr. Henrique Salvador, o
SUS caminhou muito no atendimento
ao câncer de mama. “O problema é a
velocidade com que o tratamento ocorre,
às vezes demora, mas de uma forma
geral há um atendimento adequado”,
acredita. Segundo ele, há novidades
no tratamento como a radioterapia intraoperatória,
assim como algumas
drogas, que não estão disponíveis para
pacientes do SUS.
Segundo o INCA, a implantação do
SISMAMA - Sistema de Informação do
Câncer de Mama, em junho de 2009, o
aumento da oferta de mamografias pelo
Ministério da Saúde (Mais Saúde 2008-
2011) e a publicação de documentos,
dentre os quais os Parâmetros técnicos
para o rastreamento do câncer de
mama e Recomendações para a redução
da mortalidade do câncer de
mama no Brasil (INCA 2010), vêm dinamizando
a organização das ações de
controle da doença. A priorização do
controle do câncer de mama foi reafirmada
em março de 2011, com o lançamento
do plano nacional de fortalecimento
da rede de prevenção, diagnóstico
e tratamento do câncer pela presidente
da República Dilma Rousseff. O plano
prevê investimentos técnico e financeiro
para a intensificação das ações de controle
nos estados e municípios.
A professora Eni de Faria foi vítima do câncer de mama, mas leva uma vida normal.
Mark Florest
Outubro Rosa
ilumina
monumentos
históricos
Campanha mundial
estimula mulheres a
fazerem mamografia
no combate ao
câncer de mama
O movimento popular internacionalmente
conhecido como Outubro
Rosa é comemorado em todo
o mundo. O nome remete à cor
do laço rosa que simboliza, mundialmente,
a luta contra o câncer
de mama e estimula a participação
da população, empresas e entidades.
Este movimento começou
nos Estados Unidos, onde vários
Estados tinham ações isoladas referente
ao câncer de mama e ou
mamografia no mês de outubro,
posteriormente com a aprovação
do Congresso Americano, o mês
de Outubro se tornou o mês nacional
(americano) de prevenção
do câncer de mama.
A história do Outubro Rosa
remonta à última década do século
20, quando o laço cor-de-rosa, foi
lançado pela Fundação Susan G.
Komen for the Cure e distribuído
aos participantes da primeira Corrida
pela Cura, realizada em Nova
York, em 1990 e, desde então,
promovida anualmente na cidade
(www.komen.org).
Em 1997, entidades das cidades
de Yuba e Lodi nos Estados Unidos,
começaram efetivamente a come-
62
morar e fomentar ações voltadas à prevenção
do câncer de mama, denominandas
como Outubro Rosa. Todas
ações eram e são até hoje direcionadas
à conscientização da prevenção pelo
diagnóstico precoce. Para sensibilizar
a população, inicialmente as cidades
se enfeitavam com os laços rosas, principalmente
nos locais públicos, depois
surgiram outras ações como corridas,
desfile de modas com sobreviventes (de
câncer de mama), partidas de boliche,
Marcelo Prates
etc. (www.pink-october.org).
A ação de iluminar de rosa monumentos,
prédios públicos, pontes, teatros
e etc. surgiu posteriormente, e não há
uma informação oficial, de como,
quando e onde foi efetuada a primeira
iluminação. O importante é que foi
uma forma prática para que o Outubro
Rosa tivesse uma expansão cada vez
mais abrangente para a população e
que, principalmente, pudesse ser replicada
em qualquer lugar, bastando apenas
adequar a iluminação já existente.
A popularidade do Outubro Rosa
alcançou o mundo de forma bonita,
elegante e feminina, motivando e unindo
diversos povos em torno de tão nobre
causa. Isso faz com que a iluminação
em rosa assuma importante papel, pois
tornou-se uma leitura visual, compreendida
em qualquer lugar no mundo.
A primeira iniciativa vista no Brasil
em relação ao Outubro Rosa, foi a iluminação
em rosa do monumento Mausoléu
do Soldado Constitucionalista
(mais conhecido como o Obelisco do
Ibirapuera), situado em São Paulo-SP,
em 2002. Essa iniciativa foi de um
grupo de mulheres simpatizantes com
a causa do câncer de mama, que com
o apoio de uma conceituada empresa
européia de cosméticos iluminaram de
rosa o Obelisco do Ibirapuera em alusão
ao Outubro Rosa.
Em outubro de 2008, diversas entidades
relacionadas ao câncer de mama
iluminaram de rosa monumentos e prédios
em suas respectivas cidades. O
Brasil é mundialmente conhecido pelo
seu maior símbolo, a estátua do Cristo
Redentor no Rio de Janeiro-RJ. E, pela
primeira vez, o Cristo Redentor ficou
iluminado de rosa no Outubro Rosa.
Em outubro de 2009, se multiplicam
as ações relativas ao Outubro Rosa em
todas as partes do Brasil. Novamente
as entidades relacionadas ao câncer de
mama e empresas se unem para expandir
a campanha.
O tema de 2012 foi “Câncer de
Mama. Cuidar da Saúde é um gesto
de amor à vida”. Em Belo Horizonte,
os prédios históricos da Praça da Liberdade
ganharam um colorido especial
com a iluminação e chamaram a
atenção para o problema que atinge
mais de 4.000 mulheres por ano no
Estado de Minas Gerais. A iniciativa
no Brasil integra a campanha nacional
de combate ao câncer de mama do
Ministério da Saúde.ø
Revista Elas por Elas - março 2013 63
Noiva do Cordeiro
Uma história
de coragem e
superação
ESPECIAL | por Saulo Esllen Martins
fotos: Mark Florest
É intrigante pensar que em
pleno século XXI muitas pessoas
ainda vivam com modos de sobrevivência
de séculos ancestrais.
Mais difícil ainda é acreditar em
uma filosofia de vida baseada
em harmonia, respeito mútuo e
amor. Parece até enredo de filme
romântico ou prefácio de livros
de contos de fadas, contudo, nesse
caso é pura realidade e nem tão
distante assim.
Para um jornalista, acostumado
com a celeridade que as informações
chegam às redações, pode
soar estranho que uma comunidade
tão peculiar, situada a pouco
mais de 100 km de Belo Horizonte,
tenha passado despercebida das
manchetes de jornais durante
quase cem anos. Só no fim da
década de 1990 surgiram as primeiras
notícias sobre a trajetória
desse povoado.
É entre as veredas e montanhas
do extenso município de
Belo Vale que está escondida a
comunidade Noiva do Cordeiro.
São trezentas pessoas que vivem
da agricultura de subsistência e
partilham tudo que é produzido.
Moram, alimentam-se e trabalham
juntos. Um exemplo de iniciativa
comunitária e sustentável.
Revista Elas por Elas - março 2013 65
O nome veio por causa de uma
igreja evangélica criada por um dos
moradores do local. A instituição religiosa
foi extinta diante da rigidez e
opressão exercida sobre seus fiéis, mas
o nome ficou gravado na memória do
povo e na história do lugar.
Delina Fernandes Pereira, a matriarca,
relembra que o marido, já falecido,
era pastor e começou um processo
de criação de igrejas em cinco cidades
distintas. “Quando me casei eu tinha
16 anos e ele 43. O meu esposo era
pregador da palavra de Deus. Ele queria
fazer uma revolução por meio da religião.
A coisa era muito severa, em último
grau. Quando os meus filhos foram
crescendo começaram a questionar –
mãe, precisa de tudo isso para ir para
o céu? Eles foram difundindo essa ideia
para os outros e aí a Noiva do Cordeiro
(igreja) acabou, mas a nossa fé continuou.
A minha relação com Deus é
muito boa. Tudo que eu peço ele me
atende. Parece maluquice, mas quando
‘dá fé’ acontece. Até nos conselhos
que me pedem, eu sou iluminada”.
Outra moradora da comunidade,
Maria Doraci de Almeida explica que
as mulheres sofriam ainda mais por
causa das regras da igreja. “Era muito
difícil porque era diferente de todas as
igrejas que você já viu. Tínhamos muitas
normas: jejuar duas ou três vezes por
semana, reunir todos os dias, não tinha
controle de natalidade, vestido, só podia
lá no pé. E mesmo assim a vida era
muito complicada, principalmente pela
pobreza e o excesso de filhos”.
Origem
A primeira casa da Comunidade
Noiva do Cordeiro teve a construção
finalizada ainda na primeira década de
1900. Seus primeiros moradores, Maria
Senhorinha e Francisco Fernandes eram
naturais de distritos da região, no entanto,
pelas circunstâncias da vida foram
obrigados a se refugiarem naquela localidade,
à época totalmente desabitada.
Delina esclarece o caso, que virou
praticamente uma lenda da região.
“Minha avó se casou com o primeiro
marido. Eles não ficaram juntos por
muito tempo. Logo, ela se apaixonou
pelo Vô Chico e ficou gravida dele. Ninguém
aceitou a situação. Foram excomungados,
amaldiçoados pela igreja católica
e pela sociedade. Com isso, fugiram
e vieram se esconder aqui. Isso aconteceu
há mais de cem anos e ainda hoje sofremos
preconceito por causa da atitude
deles. Era um mato só e não tinha nenhum
morador. Eles foram condenados,
não podiam frequentar lugares públicos.
Alguns diziam que o padre amaldiçoou
até a quarta geração da família. Chamavam
minha avó de cachorra”.
Maria Doraci destaca a coragem da
primeira mulher da comunidade. Maria
Senhorinha foi a pioneira. “Somos
todos descendentes dela. O primeiro
matrimônio foi daqueles arranjados e
naquela época ninguém aceitava esse
negócio de separação. A comunidade
nasceu de um amor proibido. Da primeira
geração foram doze filhos, construíram
outras casas e foram ficando
por aqui. A maioria do povoado é da
família mesmo, mas alguns de fora
vieram viver conosco”.
Protagonismo feminino
Até chegar ao ponto em que estão
hoje, enfrentaram muitos desafios. O
preconceito, a fome, a falta de instrução
e o isolamento foram alguns fatores
que marcaram a vida dessas pessoas.
Hoje têm fartura de comida e bebida,
moram em boas casas, plantam, colhem,
possuem tratores e animais para ajudar
no trabalho. Elegeram até uma vereadora
para a Câmara de Vereadores de
Belo Vale, Rosalee Fernandes Pereira
é a única mulher no legislativo municipal,
pelo segundo mandato consecutivo.
Rosa, apelido pelo qual é chamada
por todos, enaltece o papel das mulheres
para a manutenção e desenvolvimento
de Noiva do Cordeiro. “Somos mais
atingidas em todos os sentidos. Quando
é a pobreza, a mulher sofre mais em
ver o filho passar fome. É também
mais solidária, pois também chora pelos
filhos das outras. Nossa história é de
superação e as mulheres assumiram a
liderança em muitas situações”.
Além das dificuldades financeiras, a
comunidade passou muito tempo sem
acesso aos direitos básicos dos cidadãos.
“Faltava informação, educação, serviços
essenciais de saúde, uma carência total.
A gente só plantava para comer e ia vivendo”,
completa Rosa.
“Vendo que nossos filhos estavam
definhando de fome e que a situação
estava se agravando, tivemos a iniciativa
de procurar ajuda e buscamos o apoio
de alguns órgãos do Estado. Nos orientaram
a criar uma associação. Fundamos
em abril de 1999 a Associação Comunitária
Rural Noiva do Cordeiro. Foi
quando as coisas começaram a mudar”,
ressalta Rosalee.
Revista Elas por Elas - março 2013 67
No entanto, a vereadora destaca
que a ideia inicial era criar uma organização
só com mulheres, mas desconfiadas
de que poderiam aumentar as
dificuldades, devido à discriminação dos
moradores da cidade com a comunidade”,
decidiram convencer alguns homens
a participar, escolhendo um deles
para o cargo de presidente.
Coletividade
Depois de pelejar contra as burocracias
e a discriminação, a associação
foi fundada e funciona a todo vapor. A
mão de obra local foi qualificada através
de um projeto de informática e de
cursos de capacitação em corte, costura,
culinária, gestão de pequenos negócios,
produção de artesanatos, lingerie,
roupas, produtos de limpeza e guloseimas,
todos comercializados em feiras
nas redondezas.
O trabalho na comunidade é organizado
em mutirões. As atividades de
agricultura são o pilar de sustentação
com qualidade de vida do lugarejo. As
mulheres assumiram o comando e ditam
as regras de quase todas as tarefas na
comunidade. Quando alguma está cansada
de trabalhar na lavoura é transferida
para as funções domésticas, cuida das
crianças, da fábrica de artesanato e da
culinária.
As mulheres com idade entre 18 e
40 anos cuidam da roça, dos idosos,
dos enfermos e organizam eventos sociais
e culturais. Quando a associação
foi inaugurada contava com apenas
47% de mulheres associadas e a administração
era dividida com os homens
de forma equiparada. Atualmente, esse
número mudou expressivamente, 70%
do quadro é composto por mulheres,
sendo que 78% dos cargos são ocupados
por elas, incluindo a presidência. De
fato, em todas as ações comunitárias,
as iniciativas das mulheres se destacam.
Lição de amor para
superar as diferenças
Dona Delina Fernandes ensina que
na comunidade todos recebem o mesmo
tratamento, tanto homens quanto mulheres.
“A única coisa que eu quero
deixar é a lição do amor a cada dia.
Este sentimento supera qualquer diferença.
A quem pensa que as mulheres
são inferiores eu digo que somos seres
iguais. A nossa presidenta Dilma abriu
espaço para o voo das mulheres. O
fato de a Rosa ter sido eleita vereadora
abriu as portas para um mundo melhor
para nós. Eu me sinto muito orgulhosa
das minhas filhas, filhos e de todos que
moram aqui. O que eu falo é lei, eles
não me desobedecem. Isso acontece
pelo amor e não pela força. Mas uma
coisa precisa ficar clara: sem as mulheres
não existiria a comunidade Noiva do
Cordeiro”.
“Da mesma forma que nós ajudamos
na roça, com os trabalhos que são
ditos de homens, eles, quando estão
na comunidade, também ajudam a arrumar
a casa, lavar roupa. Aqui não
tem essa diferença de gênero: mulher
tem que fazer isso e homem tem que
fazer aquilo, nós fazemos tudo em conjunto.
O que nós temos de mais importante
aqui são as pessoas que eu tenho
à minha volta, porque eu sei que sou
amada por elas da mesma forma que
eu as amo”, reflete Élida Deise Leite
Fernandes, com os olhos cheios d’água.
Para Flávia Emediato, uma das
poucas moradoras que vive em trânsito
constante entre Belo Horizonte e a comunidade,
existe uma responsabilidade
em passar o exemplo para outras mulheres
e famílias. “Sei das diferenças e
dificuldades que podemos encontrar lá
fora. Ainda não somos totalmente compreendidas,
as pessoas têm dificuldade
de perceber como funciona realmente”.
O sonho delas é mostrar que é possível
viver bem, com igualdade, respeito,
tolerância. “Se nós conseguimos, outros
também podem. Queremos ser fonte
de inspiração. É possível viver de uma
forma livre e com muito respeito ao
próximo, sem diferenças de gênero,
idade, porque o respeito é a base de
tudo”, afirma Flávia.
68
Dos 300 moradores da comunidade, 200 são mulheres que ditam as regras de quase todas as tarefas
Transformação pela arte
e educação
No dia em que a equipe de reportagem
da revista Elas por Elas chegou
ao vilarejo, era o primeiro dia de aula
de algumas crianças. Encontramos mães
emocionadas com aquele fato. Mas não
era simples emoção de mãe. Durante
anos, os membros da comunidade não
puderam frequentar o ensino formal.
Vítimas do preconceito e discriminação
por causa da história de dona Maria
Senhorinha, muitos saíram da escola e
alguns nem chegaram a começar.
Flávia Emediato é uma das mulheres
que abandonaram os estudos. “Tivemos
que parar de frequentar a escola, mas
não paramos de estudar. Eu e todas as
meninas sempre fomos muito interessadas
em aprender. Continuamos a ler
livros, fizemos grupos de estudo. Sempre
soubemos que isso é muito importante.
A Educação é capaz de libertar e transformar,
pois ela dá os instrumentos
para colocarmos as ideias em prática,
pois do contrário os pensamentos ficam
paralisados. O ensino, nesse sentido,
exerce um papel fundamental”.
Um dos sonhos coletivos da comunidade
é a construção de uma escola
no local. Em muitos depoimentos foi
destacada a vontade de ver os filhos
formados. A formação de professores
capacitados para lidar com as diferenças
socioculturais também é uma preocupação
dos moradores de Noiva do Cordeiro.
“Nós tivemos um grande choque
quando iniciamos na escola. Encontramos
professores que não estavam
preparados para receber crianças com
uma cultura diferente”, alerta Flávia
Emediato.
Segundo ela, a arte foi uma das maneiras
que a comunidade encontrou para
continuar desvendando novos horizontes.
De acordo com ela, as manifestações
artísticas sempre foram presentes no dia
a dia, seja nas festas de aniversário ou
em festivais promovidos, isso sempre
foi intuitivo. Além disso, conta que a
associação sempre buscou recursos para
aumentar a sensibilidade artística das
pessoas. E através dos cursos descobriram
muitos talentos. Hoje têm uma dupla
sertaneja (Márcia e Maciel) e diversos
artistas como a Lady Gaga cover, que
ressaltou - um dia ainda vamos largar as
enxadas. “A arte nos serve como um
veículo de comunicação com o mundo
externo. Como a linguagem da arte é
universal, torna-se fácil a compreensão.
A nossa música é, por exemplo, uma
forma de levar um pedacinho de Noiva
do Cordeiro para as outras pessoas”,
define Flávia.
Flávia está antenada na cultura do
mundo, mas não se esquece dos exemplos
de casa. “Hoje, eu tenho um sentimento
de muita gratidão por essas
mulheres. Aqui não existe imposição
masculina, não nos sentimos pressionadas
pelas coisas que ouvimos falar,
pois a voz da mulher tem muita influência
na comunidade. E esse legado
veio delas. Dona Delina é peça chave
dessa história. Esse espírito de liderança
feminina que existe foi construído por
ela”, enfatiza Flávia.ø
Revista Elas por Elas - março 2013 69
EDUCAÇÃO | por Denilson Cajazeiro
foto: Mark Florest
Democracia,
ainda que tardia
Mulheres negras
conquistam o diploma
universitário e começam a
mudar o perfil do ensino
superior no Brasil
Luciléia da Silva Vieira (foto) sempre
quis ser professora. Pensava em fazer
História, mas decidiu-se pela Pedagogia
e hoje está prestes a se formar. “Foi
uma boa escolha”, garante a futura
educadora, de 28 anos, cujo ingresso
na Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), em 2009, se deu por meio
do então recém-criado sistema de bônus,
que concedia um acréscimo de 15%
na pontuação de alunos negros e
oriundos de escola pública. “A gente
vê numa ação afirmativa como essa a
oportunidade de reparação social, de
ingressar num espaço elitizado”, afirma
Liza, apelido pelo qual também é conhecida
entre colegas.
Atualmente, a jovem tem se debruçado
sobre livros que tratam da violência
e da juventude negra. Os estudos são
para a monografia de conclusão de
curso, em que pretende conhecer melhor
e examinar as práticas sociais e pedagógicas
de um centro socioeducativo
em Ribeirão das Neves, cidade onde
mora, na região metropolitana de Belo
Horizonte. Um assunto, aliás, que planeja
levar para o mestrado, assim que
concluir a graduação. Quando pegar o
diploma, em meados deste ano, Liza
passa a fazer parte das primeiras gerações
de estudantes negros que começam
a redesenhar o perfil do ensino superior
no país, cujo quadro passa por uma rápida
transformação, com contornos
mais democráticos e femininos, e as
mudanças são visíveis.
De acordo com o Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais
(Inep), órgão do Ministério da Educação,
em quase uma década e meia, o número
de jovens negros nas universidades
cresceu em ritmo acelerado. Entre 1997
e 2011, o percentual de estudantes negros
entre 18 e 24 anos que frequentavam
ou haviam concluído o ensino superior
saltou de 4% para 19,8%, uma
expansão de cinco vezes. No mesmo
período, o aumento entre os mais pobres
– os 20% de menor renda, segundo o
Inep – foi de 0,5% para 4,2%.
O censo demográfico do IBGE
também registrou um crescimento da
população negra com diploma universitário.
Em 2000, do total de pessoas
com ensino superior completo, 14,3%
eram negras. Dez anos depois, a quantidade
de negros que havia concluído
essa etapa cresceu quase quatro vezes,
e o percentual alcançou 24,5% do uni-
Revista Elas por Elas - março 2013 71
verso de pessoas com graduação. Dados
do IBGE e do Inep também demonstram
que, entre a população negra, as mulheres
têm estudado mais e são maioria
nas salas de aula das universidades brasileiras.
Os números, apontam especialistas,
foram impulsionados por esses primeiros
anos das políticas de cotas. Apesar de
o acesso permanecer bem desigual, a
tendência, a julgar pela força que as
ações afirmativas ganham no país, é
de que o Brasil acelere os passos em
direção a uma maior igualdade nessa
área, ampliando as oportunidades dos
jovens negros.
“Começamos um processo de mais
justiça no campo da educação superior.
Além de criarem motivação para os
jovens pobres, as ações afirmativas são
o começo de um processo civilizatório,
em que o Brasil começa a aceitar que
não tem uma cara europeia. As cotas
estão começando a criar um ambiente
com a nossa cara”, afirma André Lázaro,
pesquisador e professor do Laboratório
de Políticas Públicas da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a
primeira instituição de ensino superior
pública a adotar cotas no país, em 2002.
O balanço desses primeiros anos,
avalia Lázaro, derrubou a tese daqueles
que acreditavam que as cotas poderiam
acirrar o racismo. “Conviver com outras
pessoas que têm histórias de vida muito
diferentes é bastante educativo. Na Uerj
é superlegal. Temos vivido uma segregação
grande nas cidades, de uma elite
que desumaniza o outro, que vê o outro
como ameaçador e tipifica a violência
e a miséria no negro. E aí quando você
traz para a universidade essa diversidade,
consegue formar um novo olhar, um
cotidiano universitário mais rico e diverso,
que humaniza as diferenças”,
pondera o professor, que coordenou
um encontro nacional, em novembro
do ano passado, no Rio de Janeiro,
onde pesquisadores, gestores públicos
Sessão em que os ministros do STF consideraram as cotas constitucionais
e ativistas analisaram os dez anos de
ações afirmativas no país.
Ataques à reserva de cotas
Ao longo da década, a proposta de
reservar cotas raciais e sociais nas universidades
ou conceder bônus a estudantes
negros, adotada país afora, sofreu inúmeros
ataques públicos. Entre eles dois
manifestos, dezenas de artigos e editoriais
da imprensa nacional, além de um livro,
intitulado Não somos racistas, cujo autor,
Ali Kamel, é o influente diretor de jornalismo
do maior conglomerado de mídia
do país. Segundo ele, as instituições brasileiras
são “completamente abertas a
pessoas de todas as cores”.
Os críticos, além de defenderem a
tese de que as cotas raciais seriam ineficazes
como forma de promover justiça
72
José Cruz/ABr
social, reiteravam a ideia de que tais
medidas eram inconstitucionais, pois
feririam alguns princípios, como o da
igualdade entre os cidadãos. Com base
nesses argumentos, o partido Democratas
(DEM) recorreu ao Supremo Tribunal
Federal (STF) para questioná-las.
Mas os manifestos, o ruído midiático
e a posição do DEM não foram suficientes
para convencer os ministros da Suprema
Corte. Por unanimidade, eles consideraram
as ações afirmativas constitucionais,
em abril do ano passado, numa decisão
histórica para o movimento negro no
país. “Há graves e conhecidas barreiras
institucionais do acesso dos negros às
fontes da educação. É preciso desfazer
a injustiça histórica de que os negros
são vítimas no Brasil”, sentenciou o
então ministro Cesar Peluso.
Mas mesmo depois da decisão, as
reações não cessaram, fato que se explica,
na opinião de André Lázaro,
pela dificuldade da elite brasileira de
abandonar a imagem eurocêntrica que
tem de si mesma, insistindo na tese da
democracia racial no país, a despeito
dos indicadores contrários. “Na escola,
quase nunca estudamos a América Latina.
O Brasil é quase uma Europa”,
critica o pesquisador, ao afirmar que a
mídia não contribuiu com o debate.
“Defensores do status quo e parte da
mídia se comportaram muito agressivamente
e de forma pouco civilizada.
Por isso, além de terem o mérito de
fazer uma justiça social, as cotas também
desmascararam a visão preconceituosa
de parte expressiva da mídia brasileira”.
Ações afirmativas
Do conjunto de ações afirmativas
na educação, a medida de alcance nacional
mais recente foi a aprovação,
em agosto passado, da lei que destina
progressivamente, até 2016, metade
das vagas em universidades federais
para alunos que fizeram todo o ensino
médio em escola pública. A legislação
prevê também critérios racial e de renda
para distribuí-las e permite que as universidades
mantenham outras ações
afirmativas. Será válida por dez anos
e, ao final do prazo, uma comissão vai
analisar o resultado da medida.
Antes de ser aprovado, o projeto
ficou por mais de uma década em tramitação
no Congresso e foi alvo da artilharia
de inúmeros parlamentares, boa parte
deles ligada ao lobby do setor privado
de ensino. “O fato de o Congresso brasileiro
ter poucos negros já reflete uma
dificuldade adicional. Menos de 5% dos
parlamentares são negros. Arregimentar
posições favoráveis num cenário como
esse é difícil”, comenta o deputado
federal Luiz Alberto Silva, presidente da
Frente Parlamentar Mista de Promoção
da Igualdade Racial, ao lembrar as críticas
que o projeto recebeu.
Defensor de um recorte de gênero na
lei para diminuir a enorme distância entre
as mulheres negras e brancas no ensino
superior, o parlamentar afirma que a proposta
da Frente era de que as cotas
fossem reservadas de acordo com o percentual
da população negra registrado
pelo IBGE em cada estado, mas as “forças
conservadoras” trabalharam para impedir
que fosse aprovada dessa forma. “Embora
não tenha saído desse jeito, a lei federal
foi um avanço, porque transforma uma
ação afirmativa em política de Estado. É
algo muito significativo. Foi um passo
fundamental. Agora é aplicá-la e fazer os
ajustes necessários para sua efetivação”,
opina o parlamentar.
Entre os ajustes para que funcione,
pesquisadores elencam uma série de medidas,
que vão desde a assistência estudantil,
com apoio financeiro e pedagógico
para garantir a conclusão dos estudos,
ao monitoramento das ações afirmativas
a fim de avaliar os impactos. O ministro
da Educação, Aloizio Mercadante, garantiu
que os alunos cotistas terão aula de
reforço, e aqueles com renda familiar
per capita igual ou inferior a 1,5 salário
mínimo que optarem por cursos com
mais de cinco horas de jornada terão direito
a uma bolsa de R$ 400 por mês.
Ainda segundo o ministério, a previsão
para este ano é de que R$ 603 milhões
sejam destinados ao Programa Nacional
de Assistência Estudantil (Pnaes), mas as
cifras são consideradas insuficientes pelos
gestores das universidades, que cobram
do governo a ampliação dos recursos.
Revista Elas por Elas - março 2013 73
Preocupação
Outra preocupação de estudantes e
educadores é com uma dimensão mais
subjetiva e sutil da vida acadêmica. Na
prática, eles cobram das universidades
uma maior abertura às experiências
dos cotistas, para que elas sejam incorporadas
às iniciativas de pesquisa, ensino
e extensão. “Como há quase absoluta
ausência de professores negros e de
origem popular, a visão e expectativas
projetadas pelos profissionais universitários
sobre os estudantes expressam
frequentemente absoluto desconhecimento
da realidade desses jovens, ignorando
o que trazem de experiências
e conhecimentos que podem ter grande
valor para a vida universitária, se forem
reconhecidos e valorizados”, salienta a
doutoranda em Sociologia na Uerj Verônica
Daflon, no relatório técnico por
ela elaborado sobre o seminário 10
anos de cotas: conquistas e desafios,
no Rio de Janeiro.
Na avaliação do professor Rodrigo
de Jesus, da Faculdade de Educação da
UFMG, o desafio é fazer com que a
academia se repense cientificamente
para atender as experiências desses estudantes.
“Ela terá de se adequar não
só no sentido financeiro, para possibilitar
a permanência bem sucedida, mas a
própria produção de saberes e conhecimento
precisa passar por um momento
de reflexão”, argumenta o professor.
E a mudança já começa a ser percebida
no meio acadêmico. Embora
até o momento nenhum levantamento
estatístico tenha sido feito, pesquisadores
e professores da área apontam que
mais linhas de pesquisas e estudos
sobre a temática racial começam a
surgir nos cursos, o que facilita a vida
dos interessados no assunto, que por
vezes se viam obrigados a fazer malabarismos
teóricos para abordá-lo. “Há
uma democratização das perspectivas,
com mais teses, disciplinas e pesquisas
[sobre a temática racial]. Esse é mais
um dos benefícios recorrentemente
apontados. É uma hipótese que tenho,
com bons indícios”, diz Tatiana Dias,
da coordenação de Igualdade de Gênero
e Raça do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea).
A professora Zélia Amador, da Universidade
Federal do Pará, também
compartilha dessa opinião e, segundo
aponta, a chegada dos cotistas tem levado
as instituições de ensino a se readequarem.
Um exemplo disso está na
própria universidade em que leciona,
no programa de pós-graduação em
Ciências Sociais, onde foi criada recentemente
uma linha de pesquisa sobre
a questão racial – uma temática que,
conforme avalia Zélia Amador, a academia
tradicionalmente teve dificuldades
de abordar. “Um negro, quando chega
à universidade, não chega sozinho. Ele
traz todo um histórico da raça, da ancestralidade.
Isso vai estar presente em
seus anseios e levar a universidade a
pensar novos caminhos epistemológicos.
Kassandra Muniz
Janaina Damaceno pesquisou a trajetória de estudantes negras na Unicamp
Isso é salutar também para as universidades,
porque elas vão começar a tratar
assuntos antes nunca pensados”, assegura
Zélia Amador, que presidiu, na última
gestão, a Associação Brasileira de
Pesquisadores Negros (ABPN).
Para Wilma Coelho, vice-coordenadora
do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros
(Neab), rede que congrega pesquisadores
de universidades de todo o
país, a ampliação das perspectivas teóricas
é visível, embora ainda exista
muito espaço para ocupar. “Os estudos
têm aumentado, mas ainda não cresceram
na medida da necessidade que o
contexto nos pede. Essa é uma discussão
que está na ordem do dia, pois as pesquisas
vão nos ajudar a compreender
esse quadro que se avizinha”, afirma a
professora.
Estudos sobre a temática racial
O aumento dos estudos sobre a temática
racial vai evitar dificuldades como
a que vivenciou Janaína Damaceno,
74
doutoranda em Antropologia Social
pela Universidade de São Paulo (USP).
Ela pesquisou, no mestrado, a trajetória
de estudantes negras na Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e
quase não encontrou dados históricos
sobre a presença do negro no ensino
superior. Entre suas conclusões, ela
destaca o fato de que a mulher negra
não está livre de alguns estereótipos
sociais, dentro ou fora do ambiente
universitário.
“Há um caso de uma estudante de
medicina, a Elaine. Um dia, ela foi a primeira
a entrar na sala de aula e estava
arrumando o material dela. Aí o professor
entrou e disse: ‘olha, minha filha,
você tem de terminar logo essa limpeza
porque minha aula já está começando’.
Então, mesmo dentro da academia, os
estereótipos são fortes. Não tem pro-
blema ser confundida com doméstica. O
problema é como no Brasil as pessoas
tratam aquelas que elas acham que estão
num patamar inferior ao seu”.
Para o doutorado, previsto para ser
defendido em agosto deste ano, Damaceno
estudou a vida e obra da socióloga
e psicanalista Virgínia Bicudo, a
primeira mulher negra a se tornar professora
universitária no país e a pesquisar
as relações raciais, em 1945. “Há
uma coisa ótima no trabalho dela. Ela
refuta toda a corrente intelectual dos
anos 40 e diz que havia preconceito racial
no Brasil. Os grandes sociólogos
diziam que não existia”, afirma Damaceno,
que revela também que a psicanalista
passou por um processo social
de embranquecimento. “Fiquei paranoica,
porque achei que estava inventando
um monte de coisa, como o fato
de que ela era negra. Porque você consegue
encontrar documentos em que
ela escrevia que era negra, que sofreu
preconceito na escola, a família dizendo
que ela era negra, mas em todas
as associações pelas quais ela passou,
na universidade, na sociedade brasileira
de psicanálise, ninguém diz que
essa mulher era negra”.
O que se percebe é que, apesar das
dificuldades, e mesmo que bem mais
tarde do que o desejado, o país começa
a redefinir o mapa do acesso ao
ensino superior, realidade que tem deixado
as mulheres negras otimistas,
como Liza, a jovem do início da reportagem.
“Estou otimista. O cenário
mudou muito e continua mudando e,
daqui pra frente, teremos mais mulheres
negras ocupando esses espaços”,
comemora a futura pedagoga.
Negros com diploma universitário
2000
25.713
cursando mestrado
2.011.051 50,7%
=
8.150
1.298.988
14,3% * 24,5% *
2010
Mulheres
Homens
cursando doutorado
da população
brasileira
se autodeclara
negra, o que
equivale a
96,7 milhões de
pessoas
62%
dos brasileiros
são a favor de
cotas em
universidades
públicas
Fonte: IBOPE
Fonte: Censo IBGE.
* O percentual é referente ao total de pessoas com ensino superior completo
Revista Elas por Elas - março 2013 75
Acesso
ampliado
Lei federal de cotas promete
trazer impactos também
para o ensino médio
Sancionada em agosto do ano passado,
a lei federal de cotas reacendeu
o debate sobre políticas afirmativas no
país e ações para ampliar o acesso dos
jovens negros ao ensino superior. O
professor e coordenador em Minas do
Movimento dos Sem Universidade
(MSU), Luiz Eduardo Souza, comemorou
a medida e disse que a aprovação da
lei representou uma “nova abolição”.
“É uma conquista histórica para os estudantes
de escolas públicas, que em
sua maioria são pretos, pardos e indígenas
e foram, na história do Brasil,
excluídos de direitos, como o da educação”,
diz o educador.
Para Rodrigo de Jesus, professor
da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG),
a aprovação da lei traz pelo menos outros
três significados. Um deles é o reconhecimento
de uma situação de desigualdade
em relação ao direito à educação.
Representa ainda, conforme
aponta, a efetivação do diálogo entre o
Estado e os movimentos sociais e a
afirmação da diversidade existente na
sociedade. “Reservar determinados espaços
é dizer o seguinte: ‘essa diversidade
que temos nas ruas precisa ter o
direito de ocupar outros espaços’. Portanto,
acredito que é uma vitória não
de um segmento, mas de outra nação
brasileira”, reflete o professor.
Na avaliação do coordenador-geral
da Campanha pelo Direito à Educação,
o cientista político Daniel Cara, a nova
lei vai provocar mudanças na composição
social brasileira, e esse é um dos principais
méritos da legislação. “A universidade
brasileira é elitista. Então, [a lei] vai dar
oportunidade a pessoas que não têm.
Representa um grande salto em termos
de acesso ao ensino superior. O Brasil
será um país com pessoas não brancas
ocupando, em pouco tempo, posições
chaves na sociedade”, ressalta.
Tatiana Dias, pesquisadora do Ipea, acredita que a lei de cotas foi um avanço
Ipea
Desempenho dos cotistas
O cientista político rebate as críticas
de que a qualidade da educação tende
a diminuir e aposta em um efeito inverso,
numa qualificação do ensino superior.
Ele cita estudos de centros acadêmicos,
segundo os quais os alunos
cotistas apresentam desempenho igual
ou melhor que os não cotistas. “Acredito
que, além de democratizar a universidade
e de torná-la mais heterogênea, teremos
uma forte qualificação. A tendência é
que as universidades federais ganhem
em termos científicos também”, afirma
Daniel Cara.
Além disso, segundo ele, a nova lei
traz impactos positivos para o ensino
público. “Daqui a dez anos, o ensino
médio será altamente qualificado. Como
mais segmentos da classe média vão
optar por colocar seus filhos na educação
pública, vai aumentar o controle social,
em função da pressão por melhorias.
Vai criar um estímulo positivo, disso
não tenho dúvida”.
Apesar dos avanços, o cientista político
acredita que o prazo de dez anos
definido pela lei é tímido. Em sua avaliação,
o ideal seria o dobro do tempo,
o que não foi possível em decorrência
do conservadorismo do Congresso. “O
ideal dessa lei seria um prazo de 20
anos, pelos cálculos que consideramos
necessários para acelerar a equidade
racial no Brasil. Essa lei está disputando
o futuro do país. Espero que a gente
consiga aumentar o tempo de vigência
por mais uma década, para que não tenhamos
de esperar tanto tempo para
alcançar a equidade racial”, afirma Daniel
Cara.
Tatiana Dias, da coordenação de
Igualdade de Gênero e Raça do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
também acredita que a lei federal representou
um passo importante rumo
à democratização do ensino superior.
“Estamos passando para uma nova geração.
As próximas gerações de pais
76
que já tiveram acesso a esses espaços
terão filhos com mais oportunidades.
Além de beneficiar o núcleo familiar,
há uma questão simbólica, de projeção
da imagem de que é possível fazer um
curso superior”, pontua a pesquisadora.
Menos otimista com a nova legislação
está o frei David Santos, diretor do
projeto Educação e Cidadania de Afrodescentendes
(Educafro), que a recebeu
com reservas. Segundo ele, a lei é
“fruto do possível”. “A comunidade
negra queria algo que combatesse de
forma real as desigualdades. Foi o razoável,
dentro de um esquema de negociação
sempre difícil. O DEM e o
PSDB atrapalharam muito a tramitação
e se articularam para prejudicar a proposta”,
critica o frei, para quem a lei
só vai selecionar os melhores alunos
da rede pública. “Os estudantes das
poucas escolas públicas de qualidade
existentes hoje no país é que vão pegar
essas vagas, especialmente nos dez
cursos mais concorridos. No mundo
inteiro, ação afirmativa não é dar oportunidade
aos tops. É dar oportunidade
aos violentados pelo sistema”.
Uma das discordâncias dele é com
o prazo de quatro anos para a reserva
das vagas. A lei, segundo o frei, deveria
destinar imediatamente 50% das vagas
para estudantes oriundos de escolas
públicas. A outra crítica refere-se ao
percentual, que deveria ser, em sua
opinião, igual ao de formandos no ensino
médio público, para que o país
seja “minimamente justo”. “Hoje, de
cada 100 pessoas que terminam o ensino
médio, 88% o fazem na rede pública.
O que queremos é que todos
esses 88% tenham vagas. Depois dos
quatro anos de implementação, vamos
lutar para incluir uma emenda nesse
sentido”, afirma frei David Santos, que
estima que 95% das 284 instituições
públicas de ensino superior do país estejam
adotando algum tipo de ação
afirmativa.
Ampliação das oportunidades
Divergências à parte, o que se espera
é que as ações afirmativas ampliem as
oportunidades e sonhos de jovens como
Mirian Grasiele da Silva e Rosiléia
Vieira. Mãe de uma menina de três
anos, e à espera do segundo filho, Mirian,
de 29 anos, abandonou a sala de
aula na sétima série, por falta de interesse
e motivação. No momento, não
está nem na educação formal nem no
mercado de trabalho. Pertence à chamada
geração “nem nem” – jovens
que não estudam nem trabalham.
Ela dedica o dia aos afazeres domésticos
e às duas meninas – uma
é a filha de sete anos do companheiro
com quem vive
atualmente –, mas mantém
o desejo de voltar a estudar
e tem vontade
de trabalhar, futuramente,
na área estética
ou com
dança. Hoje, o
que Mirian quer
mesmo é arranjar
um emprego
para dar
melhores condições
de vida
aos filhos.
“Sempre quis
ter dois filhos,
mas não nessa
situação que me
encontro agora”.
Rosiléia, de 27
anos, também não
tem um emprego
fixo, mas se desdobra
em trabalhos informais,
temporários, e ministra oficinas
de dança afro-brasileira.
Formada há dez anos no ensino
médio, ela já tentou sete vestibulares,
o último deles para o curso de Dança,
na UFMG. “A universidade está sendo
um dos maiores desafios pra mim. Está
complicado, porque a nota de corte
está alta”, reclama a jovem, que não
desiste do sonho de se tornar pesquisadora
universitária e percorrer o país
para estudar a dança afro-brasileira.
“Se não conseguir na UFMG, vou tentar
o Prouni. Eu decidi traçar esse caminho
pra mim. Ainda tenho muito caminho
para trilhar. O país necessita de gente
que se empenhe em pesquisar a cultura
que tem, de valorizar a cultura negra
que possui”, destaca a jovem.
Revista Elas por Elas - março 2013 77
“É uma
oportunidade
para outros jovens
quilombolas”
Márcia Batista, 24 anos,
estudante de Filosofia
Arquivo pessoal
A estudante Márcia Batista passou
por uma rotina bem apertada há cerca
de três anos, depois que decidiu abandonar
o trabalho de doméstica para estudar.
Às quatro da manhã, ela deixava
a comunidade quilombola onde mora,
em Piripá, cidade do interior da Bahia
com pouco mais de 13 mil habitantes,
e 125 quilômetros depois, desembarcava
em Vitória da Conquista. O trajeto era
percorrido três vezes por semana, para
fazer o cursinho pré-vestibular comunitário.
“Era bem puxado, muito cansativo,
pois acordava bem cedo”, conta a
jovem, de 24 anos, que retornava para
casa às quatro da tarde.
Mas o esforço valeu a pena e lhe
rendeu uma vaga na primeira turma de
filosofia da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (Uesb). O ingresso,
no segundo semestre de 2009, se deu
por meio da cota étnico-racial adotada
pela instituição de ensino. “Se não
fosse pela cota, minha entrada seria
mais difícil. É uma oportunidade
para outros jovens quilombolas que
veem a possibilidade de fazer um
curso superior”, afirma a estudante,
hoje no sétimo período do curso.
De uma família de três irmãos,
ela será a primeira a ter diploma
universitário. “Estou animada com
a possibilidade de trabalhar em sala
de aula”, diz Márcia, que planeja
seguir em frente com os estudos.
“Pretendo fazer mestrado e doutorado.
Quero estudar, que é uma
coisa que sempre gostei de fazer”,
afirma a estudante. Sobre as ações
afirmativas, Márcia acredita que o
país está no caminho certo, mas
reclama melhorias. “As cotas representam
um avanço. Mas não é
só o acesso, tem de melhorar a
permanência dos alunos nas universidades,
tem de abrir mais vagas.
Precisamos de melhorias, mas com
certeza estamos avançando”.
“A diferença dessas
ações afirmativas é
a perspectiva”
Mariana Andrade Ferreira,
28 anos, advogada
Arquivo pessoal
Formada em Direito, na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Mariana
Ferreira concluiu os estudos no
final de 2009, depois de ingressar na
instituição de ensino pelo sistema de
cota racial, cinco anos antes. “A experiência
foi muito boa pra mim, até porque
dentro da universidade você tem de
transpor outras barreiras quando ingressa
por qualquer forma de cotas. É como se
você tivesse de fazer uma força bem
maior, para provar que você está ali
porque tem condições, pois há uma cobrança
por você ser cotista”, afirma.
A advogada se recorda das dificuldades
financeiras de cotistas para permanecerem
na universidade. “Verifiquei
que algumas pessoas eram tão pobres
e humildes que não conseguiam dar
continuidade ao curso, mesmo recebendo
bolsa”, relata Mariana. Atualmente,
ela dedica-se a cuidar do filho,
o pequeno Rafael, de cinco meses,
e aos estudos para prosseguir na
carreira jurídica. Quer se tornar
juíza do Trabalho. Nascida e criada
no Rio de Janeiro, Mariana está
otimista com o futuro das ações
afirmativas. Segundo avalia, as medidas
vão ampliar as perspectivas
de ascensão econômica e social da
população negra no país.
“A diferença dessas ações afirmativas
é a perspectiva. Você tem
uma perspectiva imensa de crescimento
profissional, de ter uma vida
melhor. São mudanças muito positivas
que geram em nós uma esperança
muito grande de que as igualdades
irão diminuir e, daqui alguns
anos, teremos gratas surpresas no
que diz respeito a mais mulheres
negras contribuindo para a sociedade
de um modo geral”.
78
Nunca
antes na
história
ENTREVISTA
Luiza Bairros
Ministra demonstra
otimismo com as ações
afirmativas na educação
e acredita que as
mulheres negras são as
que mais têm se
beneficiado dessas
medidas
Elza Fiuza/ABr
Militante do movimento negro desde
o final dos anos 70, a ministra-chefe da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir),
Luiza Helena de Bairros, assumiu a pasta
em janeiro de 2011 com um discurso
em que declarou o compromisso dela
com a luta das mulheres. “Mais do que
isso, quero afirmar o compromisso da
Seppir com as mulheres negras, sem as
quais não teríamos chegado até aqui,
com a dignidade que nos caracteriza
apesar de tantos nãos”, disse a ministrachefe,
durante a cerimônia de posse.
Passados dois anos de trabalhos à
frente da Secretaria, Luiza Bairros demonstra
otimismo com as ações afirmativas
na educação brasileira, embora
reconheça que é preciso ampliar as
políticas, e acredita que as jovens negras
são as que mais têm se beneficiado
dessas medidas. “Existem hoje oportunidades
abertas como nunca tinham
existido antes na sociedade”, declara,
em entrevista à revista Elas por Elas.
Mestre em Ciências Sociais pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
e doutora em Sociologia pela Michigan
State University, nos Estados Unidos,
Luiza Bairros prevê que o número de
estudantes negros que ingressam anualmente
nas universidades federais públicas
vai crescer de quase 9 mil para 56 mil,
em decorrência da lei federal de cotas,
sancionada em agosto de 2012. “Recentemente,
li um artigo publicado em
um periódico bastante considerado nos
Estados Unidos que colocava de maneira
inequívoca que a lei de cotas aprovada
no Brasil é a mais profunda e abrangente
na área de ação afirmativa de todo o
continente”, afirma a ministra-chefe,
para quem a aprovação da lei foi um
dos acontecimentos mais importantes
do ano passado.
Qual balanço a sra. faz destes
pouco mais de 10 anos de ações
afirmativas no campo da educação?
Acho que caminhamos bastante bem
nesse aspecto, tendo em vista toda a
controvérsia gerada pelas cotas, quando
essa discussão teve início, cerca de dez
anos atrás. Porque hoje sem dúvida a
adoção de algum tipo de ação afirmativa
pelas universidades brasileiras, tanto
públicas quanto particulares, já se tornou
praticamente uma obrigatoriedade. Politicamente,
digamos assim, a sociedade
foi absorvendo a necessidade desse tipo
de medida e consequentemente fazendo
com que as instituições passassem a
dar resposta no sentido da democratização
do acesso ao ensino superior.
A julgar pelos números, a sra.
diria então que estamos vivendo
um processo de maior democracia
no ensino superior, apesar de
tardio?
Sim, um processo tardio, que inclusive
tem demonstrado que precisamos
aprofundar as medidas, porque o que
nós temos hoje de percentual de negros
nas universidades ainda é muito abaixo
da representação negra na população
brasileira como um todo. Inclusive por
conta desses dados do Ibope, em que
você tem na sociedade brasileira 62%
de aprovação de cotas para negros.
Isso é um indicador muito importante
de que a tendência é que essas cotas se
disseminem cada vez mais. Acho que o
processo de universalização das ações
afirmativas é irreversível.
A sra. considera que a ação
afirmativa no campo da educação
seria uma das principais?
Olha, ela é muito importante, porque
sempre convivemos no Brasil com desigualdades
raciais na educação muito
fortes. Então ela teria de começar efetivamente
por aí, também considerando
o fato de que no Brasil a aquisição da
escolaridade tem um reflexo muito alto
nas oportunidades de inserção no mercado
de trabalho. É muito forte entre
Revista Elas por Elas - março 2013 79
os negros a percepção de que, pela via
da educação, tanto se produz o racismo
como se pode produzir as ferramentas
para uma inserção mais digna na sociedade.
Agora, temos visto nesse processo
que é preciso que cada vez mais
a gente pense em como adotar também
ações afirmativas na questão do emprego.
Porque, no Brasil, por conta do
racismo, as pessoas negras, mesmo
quando elas têm uma escolaridade alta,
a tendência é que elas ganhem salários
mais baixos, comparativamente aos
brancos.
Passados dez anos e após
muitos debates, a sra. diria que
as críticas feitas, como a de que a
universidade perderia qualidade
com a entrada dos cotistas, foram
respondidas?
Elas têm sido, na verdade, desautorizadas
pela realidade constantemente.
Não existe nenhum tipo de evidência
empírica de que a entrada dos estudantes
cotistas rebaixou a qualidade
das universidades. No entanto, esses
argumentos não desapareceram. Os
que são absolutamente contra as cotas
raciais repetem esses argumentos, desconsiderando
a realidade. O que dá
bem a dimensão de que esse debate
foi completamente ideologizado, vamos
dizer assim, que tem servido efetivamente
para respaldar aqueles setores
mais conservadores da sociedade que,
eu acredito, pensam que os negros
são efetivamente inferiores. São argumentos
que só se sustentam por conta
da persistência do próprio racismo,
porque o racismo é exatamente isto:
criar entre determinado grupo de pessoas
a ideia de que existe uma hierarquia
entre os diferentes grupos raciais, sendo
que, no caso brasileiro, os negros estariam
no patamar mais baixo dessa
hierarquia.
Qual avaliação a sra. faz da lei
federal de cotas, sancionada em
agosto do ano passado?
Acho que a aprovação da lei de
cotas foi um dos acontecimentos mais
importantes de 2012. Junto com a decisão
unânime do STF [Supremo Tribunal
Federal] pela constitucionalidade
das ações afirmativas, a lei de cotas
aparece como um feito que considero
tão importante para a sociedade brasileira.
Recentemente, li um artigo publicado
em um periódico bastante considerado
nos Estados Unidos que colocava
de maneira inequívoca que a lei de
cotas aprovada no Brasil é a mais profunda
e abrangente na área de ação
afirmativa de todo o continente.
E o que precisa ser feito para
garantir a efetivação dessa lei?
Acho que o grande desafio que está
sendo colocado agora, e o governo federal,
através do Ministério da Educação,
já está enfrentando isso, é como garantir
a permanência desses estudantes na
universidade. Já existem algumas propostas
que estão sendo analisadas pelo
MEC, prevendo o aumento dos recursos
para a assistência estudantil, de maneira
que as universidades possam assegurar
uma bolsa permanência para o estudante
Renato Araújo/ABr
cotista. Então tem sido pensado algo
em torno de 400 reais por mês.
Como nossa revista é uma publicação
de gênero, gostaria de saber
se a sra. acredita que as ações afirmativas
podem contribuir para que
mais mulheres ocupem espaços privilegiados
e de poder na sociedade.
Olha, não tenho um dado específico
sobre essa questão de gênero em termos
do benefício nas ações afirmativas. Mas
existem outras informações que me
fazem acreditar que as mulheres negras,
as jovens negras, são quem mais diretamente
têm se beneficiado dessas medidas.
Em todas as informações que
temos relativas a esse fenômeno da
nova classe média no Brasil, as mulheres
negras é que comandam esse processo.
Inclusive também tendo em
vista que as mulheres estão estudando
mais que os homens...
Exatamente. Porque você sempre
teve isso. Apesar de o nível de escolaridade
no Brasil sempre ter sido muito
baixo, as mulheres sempre tiveram mais
anos de estudo do que os homens.
Então esse fenômeno também acontece
na população negra.
Qual recado a sra. deixaria para
as mulheres negras, diante do que
acabamos de conversar e das perspectivas
que se apontam no país?
Não sei se seria um recado, mas
algo que temos de ficar muito atento
neste momento que vivemos no Brasil
é que existem hoje oportunidades abertas
como nunca tinha existido antes na sociedade.
É preciso que a gente acredite
que essas oportunidades estão postas
também para nós. Isso é fundamental,
acreditar que a sociedade foi capaz, ao
longo do tempo, através da ação do
movimento negro, de modificar nossas
possibilidades de participação digna na
sociedade.
80
Os
professores
na TV
domingo
8h25
TV Band Minas
O programa de TV do Sindicato dos
Professores do Estado de Minas Gerais.
Temas relacionados à educação e
assuntos em debate na sociedade.
Fotos: Grupo Galpão
PERFIL | por Denilson Cajazeiro
Uma vida dedicada
à arte da interpretação
Inês Peixoto, consagrada atriz do Grupo Galpão de teatro, comemora mais de três décadas
de carreira nos palcos, cinema e televisão
82
Belo Horizonte ainda vivia sob o
poder dos generais quando Inês Peixoto
começou a ensaiar os primeiros passos
em direção ao teatro, à vida de atriz. Na
época, no início dos anos 70, a jovem
estudante não se contentava em ter de
apresentar os trabalhos escolares na sala
de aula. Era preciso encená-los. “Desde
a infância, eu transformava os meus trabalhos
de história em encenação. Tinha
esse desejo desde infância. Eu encenava.
Lembro que fiz uma encenação sobre a
abolição da escravatura, ficou um trabalho
superbacana”, recorda-se a consagrada
atriz do Grupo Galpão, uma das mais
aclamadas e importantes companhias
de teatro do país.
Nascida na capital mineira, em 1960,
Inês Peixoto conta que foi criada numa
família com ideais humanistas, cujos pais
colocavam a liberdade acima de tudo, e
que, no começo da carreira artística, no
início da década de 80, vivenciou os
“malditos” ensaios para a censura. “Todo
espetáculo tinha que fazer um ensaio
geral para a censura. Era uma situação
muito estranha, onde as palavras escritas
muitas vezes não podiam ser ditas, e
cenas consideradas subversivas tinham
de ser cortadas”, relata Inês Peixoto.
Formada pelo Cefar, o curso de formação
de atores da Fundação Clóvis
Salgado, do Palácio das Artes, em Belo
Horizonte, a primeira vez que Inês pisou
em um palco como atriz profissional foi
em 1982, com A lenda do vale da lua,
um espetáculo infantil de João das Neves.
Já a estreia em uma produção adulta foi
com a peça Brasil, mame-o ou deixe-o,
no mesmo ano.
Em meados de 1987, após ter feito
outros três espetáculos – Quando fui
morto em Cuba, de Roberto Drumond,
Foi bom, meu bem?, de Alberto Abreu,
e O abajour lilás, de Plínio Marcos –,
Inês integrou o elenco da comédia musical
No cais do corpo. O trabalho resultou
na criação, naquele mesmo ano, da
banda Veludo Cotelê, a “maior de rock
brega do mundo”, que fez sucesso em
Belo Horizonte e percorreu o país.
“Era um espetáculo muito dinâmico,
que tinha uma interação muito grande
com a plateia, eram três casais e uma
banda. As coisas iam acontecendo, um
casal discutindo a relação, os outros dois
representando a história desse casal principal.
Era com música ao vivo. Então a
banda nasceu dessa coisa do teatro e da
música juntos. Eram dez integrantes,
cinco músicos, três cantoras e duas veludetes,
que éramos eu e a Amaziles [Almeida].
A gente fazia back vocal, quase
que um clipe ao vivo desses hits da
música brega”, conta a atriz.
Em 1992, depois de fazer uma oficina
promovida pelo Grupo Galpão, a atriz
recebeu um inesperado convite do grupo
para participar de Romeu e Julieta, tragédia
shakespeariana dirigida por Gabriel
Villela que estreou naquele mesmo ano
e representou um marco na carreira da
companhia. “Fiz para reciclagem, sem
saber que havia o desejo do grupo de
que alguém daquela oficina entrasse no
espetáculo”, comenta Inês, que a partir
de então passou a fazer parte do grupo
mineiro, atuando em todas as montagens
seguintes.
Sobre os diretores com quem trabalhou,
Inês conta que gostou de todos
e diz que, com cada um deles, há um
processo de troca que resulta num
aprendizado. A atriz, que em 2013 co-
memora 31 anos de carreira, acumula
a experiência de inúmeros papéis
também fora dos palcos.
No cinema, ela já atuou em longas
como Vinho de Rosas e 5 frações de
uma quase história, e, na TV, participou,
entre outros trabalhos, de dois seriados:
A cura e Hoje é dia de Maria, este
último uma fábula infantil com uma estética
mais poética. “Eu adoro o Till
(foto na página ao lado), a Maria, de Pequenos
Milagres, e a Dona Boneca e a
Rosa, de Hoje é dia de Maria. São personagens
que me tocaram muito. Gosto
de todos, cada um trouxe uma coisa pra
mim, mas tem uns que te tocam em camadas
mais profundas do seu ser, da
sua criação”, diz Inês, sobre os personagens
que mais a marcaram, e revela que
ainda tem vontade de encarar outros
personagens shakespearianos, além de
algum papel feminino de Nelson Rodrigues.
“Tenho muita vontade de fazer
um Nelson Rodrigues profissionalmente.
Eu acho as personagens femininas dele
muito fortes, multifacetadas, ambíguas”.
Atualmente, Inês participa das gravações
de uma nova minissérie e dos
ensaios de Os gigantes da montanha,
de Luigi Pirandello, novo espetáculo do
Grupo Galpão, previsto para estrear em
junho deste ano. Na peça, ela fará Ilce
Paulsen, a atriz de uma companhia mambembe
que chega a um vilarejo com a
intenção de encenar o texto de um poeta
morto. “Será um grande desafio levar
Pirandello para a rua”, afirma a atriz,
que se diz realizada e quer manter o
desejo de seguir a caminhada, sem abandonar
o olhar poético sobre o mundo.
“Acho que o desejo é esse, de continuar
trabalhando, tendo sensibilidade, criatividade,
conseguindo olhar para vida com
poesia, mesmo que vá falar sobre coisas
terríveis. Ter inspiração, intuição, saúde
para trabalhar, criar meus filhos e estar
junto com minha família, fazendo teatro,
cinema, televisão”, afirma Inês Peixoto.
Revista Elas por Elas - março 2013 83
POUCAS E BOAS
Gravidez concebida durante aviso
prévio garante estabilidade
A trabalhadora que engravidar durante
o aviso prévio, ainda que indenizado,
agora tem estabilidade provisória
no emprego. Com isso, se a rescisão
do contrato de trabalho ocorrer por
desconhecimento da gravidez por parte
do empregador ou até mesmo da própria
trabalhadora, o direito ao recebimento
da indenização está garantido.
O Tribunal Superior do Trabalho
(TST) julgou procedente o pedido de
uma trabalhadora que, com isso, conseguiu
o direito de receber o pagamento
dos salários e demais direitos correspondentes
ao período da garantia provisória
de emprego assegurada à gestante.
Sendo assim, o TST reformou
as decisões das instâncias anteriores.
A empregada recorreu à Justiça do
Trabalho pedindo reintegração ao emprego.
Entretanto, o juízo de origem decidiu
pelo não reconhecimento da estabilidade
por gravidez, uma vez que a concepção
ocorreu em data posterior à rescisão
contratual, conforme argumentou
a empresa em sua defesa. A decisão foi
confirmada pelo Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª Região (SP).
Ao apelar ao TST, a trabalhadora
sustentou que o pré-aviso não significa o
fim da relação empregatícia, "mas apenas
a manifestação formal de uma vontade
que se pretende concretizar adiante, razão
por que o contrato de trabalho continua
a emanar seus efeitos legais".
O relator do processo na Terceira
Turma, ministro Maurício Godinho Delgado,
destacou, no entanto, que o próprio
Tribunal Regional admitiu que a gravidez
ocorreu no período de aviso prévio indenizado.
Ao observar que a data de saída
a ser anotada na CTPS deve corresponder
à do término do prazo do aviso prévio,
ainda que indenizado.
Mulheres avançam na conquista de direitos
A Secretaria de Políticas para as
Mulheres da Presidência da República
comemorou o resultado do Relatório
Mundial de Gênero (The Global Gender
Gap Report 2012), que mostra a ascensão
do Brasil de 82ª para a 62ª posição
no ranking das desigualdades
entre homens e mulheres. A eleição da
presidenta Dilma e o aumento no número
de mulheres ministras, fatos aliados
às políticas de acesso à educação, participação
econômica e melhorias na
saúde, contribuíram para a ascensão
do país no ranking internacional.
O documento do Fórum de Davos,
criado há sete anos, mede a magnitude
e o alcance das disparidades baseadas
de gênero e acompanha seu progresso.
O Fórum é formado pelas principais lideranças
empresariais e políticas, assim
como intelectuais da área econômica e
empresarial.
De acordo com a Secretaria de Políticas
para as Mulheres da Presidência
da República (SPM), a ascensão do
Brasil é decorrente da ação efetiva do
governo brasileiro no enfrentamento
das desigualdades. A Secretaria aponta
que esses índices já eram perceptíveis
no Censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) de 2010
e também na Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) de
2011.
Justiça concede
‘licença-maternidade’
para homens
Um mineiro conseguiu a primeira
licença-maternidade para um homem,
em Minas Gerais. Alexandre Marques,
metalúrgico de 31 anos, perdeu a
mulher no mês de julho do ano passado,
doze dias após o parto. Ele adquiriu
o direito ao benefício depois de
acionar a justiça. Alexandre conseguiu
o afastamento do trabalho por 120
dias para cuidar dos dois filhos em
tempo integral, por não ter ninguém
para ajudá-lo e ainda passar por dificuldades
financeiras.
Em agosto de 2012, a Justiça Federal
concedeu, pela primeira vez no
Brasil, licença remunerada de 120
dias ao professor de enfermagem
Marcos Melo, de 36 anos, de Campinas
(SP). A mãe da criança se recusou a
cuidar do bebê então com um mês de
idade. Melo alegou na ação que, depois
do término de um breve relacionamento
com a mulher, foi surpreendido
com a gravidez e com a recusa dela
de cuidar do bebê porque isso prejudicaria
a sua carreira profissional. O
professor ofereceu abrigo e acompanhamento
médico à gestante na casa
dos pais dele, em Presidente Venceslau
(SP), até o nascimento da criança. De
acordo com a ação elaborada pela
Defensoria Pública da União, depois
do parto, em 9 de julho, a mãe não
quis ver o bebê nem amamentá-lo. O
professor conseguiu, então, a guarda
da criança e, para poder assumir os
cuidados com o recém-nascido, entrou
com pedido no Juizado Especial Federal
alegando que precisava de tempo livre
para desempenhar essa tarefa.
84
DICAS CULTURAIS
Livros:
Filmes:
A breve história do feminismo
Autora: Carla Cristina Garcia
Editora: Claridade
O feminismo pode ser definido como a tomada de consciência
das mulheres como coletivo humano da opres são e exploração
por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob
suas diferentes fases históricas. Dessa forma, se articula como
filosofia política e, ao mesmo tempo, como movimento social.
É, ainda, uma consciência crítica sobre as tensões e contradições
que encerram todos esses discursos que intencionalmente
confundem o masculino como universal.
A Fonte das Mulheres
Direção: Radu Mihaileanu
Gênero: Comédia Dramática (2011)
Centrada na guerra dos sexos, esta comédia dramática
é uma fábula moderna de uma pequena vila onde
mulheres ameaçam fazer greve de sexo se os homens
não buscarem água em um lugar longínquo. A rebelião
é liderada pela jovem liberal Leila (Leïla Bekhti).
Telenovela, consumo e gênero: "Muitas mais coisas"
Autora: Heloísa Buarque de Almeida
Editora: Edusc, 2003
O interesse sobre os meios de comunicação de massa no
Brasil passou, nos últimos anos, a extrapolar os campos tradicionais
da investigação acadêmica, suscitando estudos e
reflexões de profissionais das mais diversas áreas do conhecimento.
Por outro lado, estudos de gênero já construíram uma
tradição, ainda que recente, na antropologia e na sociologia
brasileiras. Este livro une os dois campos de investigação, ao
analisar a relação entre telenovela e formação de hábitos de
consumo, em suas interfaces com as construções de gênero.
O Afeganistão depois do Talibã com os Lobos
Autora: Adriana Carranca
Editora: Civilização brasileira
O livro traz onze histórias afegãs, onze perfis – um talibã, um
senhor da guerra, a primeira mulher candidata à presidência,
um brasileiro que prega o Evangelho em Cabul, um médico da
Cruz Vermelha, uma lutadora de boxe feminino etc. – que
retratam a década desde o 11 de Setembro até a morte do
saudita Osama bin Laden, no Paquistão.
A Informante
Direção: Larysa Kondracki
Gênero: Drama (2010)
A Informante, com Rachel Weisz, aborda o lado cruel,
real, dolorido e invisível da prostituição e do tráfico
de pessoas. Conta a história, baseada em fatos reais,
da policial estadunidense, de ascendência croata,
Kathryn Bolkovac. Após um divórcio conturbado, ela
aceita um contrato com uma empresa de segurança
privada militar, que presta serviços para as Forças de
Paz da ONU, na Bósnia pós-tratado de paz.
Mulheres de olhos grandes
Autora: Ángeles Mastretta
Editora: Objetiva
São mulheres e suas histórias – de sonhos, desejos, busca. Mulheres
que não se deixam aprisionar pela densa teia do cotidiano.
Mulheres que arriscam um novo caminho. Mulheres que amam
e odeiam. Partindo do universo conservador que cerca as mulheres
de Puebla, pequena cidade mexicana, a autora constrói
um fascinante painel da alma feminina. O livro reúne histórias
divertidas, delicadas e sensuais.
Internet
Blogueiras feministas
http://blogueirasfeministas.com
Instituto de estudos de gênero
http://www.ieg.ufsc.br
Observatório Brasil da igualdade de gênero
http://www.observatoriodegenero.gov.br
Revista Elas por Elas - março 2013 85
Internet
RETRATO
Malala Yousafzai – Paquistanesa de 14 anos tornou-se um ícone do direito à educação feminina. Em outubro de
2012, a jovem levou um tiro na cabeça, quando estava dentro do ônibus escolar, num atentado promovido pelo Taleban
(movimento fundamentalista islâmico), que queria castigá-la por sua atuação pelo direito das meninas frequentarem a escola.
Entre 2003 e 2009, o Taleban forçou o fechamento de escolas particulares e proibiu a educação de meninas. Malala denunciava
a situação em blog. Ela é candidata ao prêmio Nobel da Paz.
Esquizofrenia
Hoje estou feia e trivial
hiperativa hipertrófica líder estudantil
com o sono das noites mimeógrafas
sem o banho dos dias panfletários.
50% certeza inabalável
50% dúvida abissal.
Hoje estou Helena e Rubisnstein
todas as marcas cosméticas
meus desvios burgueses satisfeitos
meus instintos etílicos saciados.
50% princesa inatingível
50% duquesa em suicídio.
Rita Espeschit
anos
SINDICATO DOS PROFESSORES
DO ESTADO DE MINAS GERAIS