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Revista Curinga Edição 15

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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<strong>Revista</strong> Laboratório | Jornalismo | UFOP Julho de 20<strong>15</strong> | Ano V<br />

<strong>15</strong>


Expediente<br />

<strong>Curinga</strong> é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II.<br />

<strong>Revista</strong> produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da Ufop.<br />

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA). Departamento de<br />

Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO).<br />

Universidade Federal de Ouro Preto.<br />

Professores Responsáveis<br />

Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem)<br />

Lucília Borges (Planejamento Visual)<br />

André Luiz Carvalho (Fotografia)<br />

Editor geral<br />

Ana Clara Oliveira<br />

Subeditora<br />

Marília Ferreira<br />

Editor de Arte<br />

Renatta de Castro<br />

Subeditora de Arte<br />

Daiane Bento<br />

Editor de Fotografia<br />

Ariadne Selene<br />

Subeditor de Fotografia<br />

Inaê Costa<br />

Editora de Multimídia<br />

Amanda Sereno<br />

Redatores<br />

Diagramadores<br />

Adrean Larisse, Cíntia Adriana,<br />

Danielle Campez, Doulgas Gomes,<br />

Katiusca Demetino, Letícia<br />

Afonso, Luiza Mascari, Matheus<br />

Maritan, Pamela Moraes, Pedro<br />

Ewers, Raquel Satto, Samuel<br />

Perpétuo.<br />

Charles Santos, Débora Simões,<br />

Edmar Borges, Elis Regina, Fran<br />

Vilas Boas, Isânia Silva, Júlia, Laís<br />

Diniz, Natane Generoso, Núbia<br />

Azevedo, Paloma Ávila.<br />

Fotógrafos<br />

Alessandra Alves, Aprigio Vilanova,<br />

Bruno Arita, Edione Abreu,<br />

Eduardo Moreira, Hugo Coelho,<br />

Kaio Barreto, Lucimara Leandro,<br />

Pedro Magalhães, Raquel Lima.<br />

Monitor: Túlio dos Anjos<br />

Agradecimentos especiais à Loja Bela<br />

Noiva, Thiago Sabino e Fredd Amorim.<br />

Endereço:<br />

Rua do Catete, 166 - Centro<br />

35420-000, Mariana - MG<br />

Julho/20<strong>15</strong><br />

IMPRESSÃO: MJR EDITORA GRÁFICA<br />

Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138 - Ressaca<br />

CEP: 32.113-460 - Contagem - MG<br />

tel: (31) 3357-5777


<strong>Revista</strong> <strong>Curinga</strong><br />

Convida você para a comemoração de sua <strong>15</strong>ª edição<br />

Atrações<br />

06<br />

16<br />

22<br />

30<br />

33<br />

38<br />

Amor (entre) Divas<br />

Ensaio: Ouro Preta<br />

Corpos Ditos e Sentidos<br />

Ocupe-se, pois Ocupa-se<br />

Cidade em Palavras<br />

Um Novo Quadro Negro


Editorial<br />

“O mundo não é. O mundo está sendo. (...) meu<br />

papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também<br />

o de quem intervém como sujeito de ocorrências.” (Paulo Freire)<br />

Dar voz ao outro. Uma das principais funções do jornalismo.<br />

Dar voz e visibilidade para aqueles que, marginalizados, lutam<br />

por um espaço na sociedade. Lutam por maior participação política,<br />

por educação, por moradia, por respeito, pela liberdade de<br />

ser quem se é... Lutam por voz! Resistem!<br />

Resistir é preciso porque vivemos em uma sociedade ainda<br />

desigual. Resistir é preciso porque o mundo ainda oprime. Resistir<br />

é preciso porque vozes ainda são caladas. Resistir é preciso<br />

porque a mídia ainda é dominada por interesses econômicos e<br />

políticos. Resistir é preciso porque a intolerância existe.<br />

E foi isso que - em sua <strong>15</strong>ª edição - a debutante <strong>Curinga</strong> quis<br />

fazer: dar voz aos que precisam e querem ser ouvidos. Sejam<br />

eles sujeitos, movimentos, grupos sociais. Dar voz a essa luta<br />

diária que é resistir em meio ao preconceito, à marginalização,<br />

à intolerância.<br />

Nas próximas páginas, vamos além: servir à; servir como<br />

instrumento de intervenção e não fazer das histórias aqui presentes<br />

apenas relatos. Resistir. Como diz o dicionário: não ceder<br />

ao choque de outro corpo; opor força à força, defender-se.<br />

Essa edição é expressão. É saída do armário. É romper com<br />

os estereótipos e permanecer forte na luta por um mundo com<br />

mais igualdade e respeito. A <strong>Curinga</strong> é resistência!<br />

Ana Clara Oliveira e Marília Ferreira<br />

Cartas do Leitor<br />

Para comentar as matérias ou sugerir<br />

pautas para a nossa próxima edição, envie<br />

e-mail para: revistacuringa@icsa.ufop.br


EU<br />

NO<br />

MUNDO


Identidade<br />

Amor<br />

(entre)<br />

divas<br />

Texto: Douglas Gomes<br />

Foto: Débora Spanhol/Divulgação<br />

Arte: Júlia Pinheiro


Paetês.<br />

Brocados.<br />

Cristais.<br />

Saltos altíssimos.<br />

Brilho.<br />

Cor.<br />

Laquê.<br />

Glamour em sua expressão mais icônica.<br />

Poder de um arco-íris de luxo.<br />

Sempre impecáveis, seja na performance, seja na<br />

indumentária, divas são sempre divas! Esse substantivo<br />

feminino refere-se não apenas às divindades<br />

mitológicas; também fala de “deusas” dos palcos, telas,<br />

revistas e passarelas. E quando duas divas se encontram, o<br />

que acontece? Overdose de clicks e flashes? Sim. Mas, nesse<br />

caso, o resultado é um casal de drag queens.<br />

Isso mesmo: não apenas um par, mas um casal.<br />

Há 12 anos, se conheceram em Curitiba,<br />

capital do Paraná. Vinicius Lavezzo, make<br />

up artist e Thiago Vilas Boas, hair stylist. Há 11,<br />

formam a dupla de drag queens “As Deendjers”.<br />

Tiveram seu nome inspirado na atriz Ginger Rogers,<br />

que flutuava no sapateado ao lado do astro<br />

Fred Asteire em musicais clássicos de Hollywood.<br />

Vinicius, a “Deendjer V” é de Astorga, interior<br />

do Paraná. Thiago, a “Deendjer T” é de Piranguinho,<br />

interior de Minas Gerais. A noite gay curitibana<br />

era o ponto de encontro desde o início do<br />

namoro. Fizeram amizade com agentes desse meio<br />

e, influenciados por algumas drag queens famosas<br />

da cidade como Brigitte Beaulieu, estrearam suas<br />

próprias personagens exatamente um ano depois,<br />

na Parada do Orgulho LGBT’s da cidade.<br />

Além do amor que une o casal há mais de uma<br />

década, os dois rapazes têm em comum a paixão<br />

pelas artes e pelo mundo glamouroso das divas<br />

hollywoodianas da Era do Ouro. Neste período,<br />

entre as décadas de 1930 e 1940 o cinema norteamericano<br />

produziu clássicos de estilo, atrizes que<br />

representavam o que havia de mais feminino, luxuoso<br />

e digno de ser copiado na época.<br />

Nessa última década, Vinicius e Thiago têm-se<br />

dedicado a “se montar” e se apresentam por boates<br />

pelo país e paradas do orgulho LGBT’s. A primeira<br />

vez em que as Deendjers ganharam vida foi<br />

em uma parada da capital paranaense e, desde então,<br />

têm conquistado uma legião de fãs. Com mais<br />

de 21 mil seguidores em seu perfil no Instagram<br />

(@deendjers) e 17 mil na página do Facebook (facebook.com/as.deendjers),<br />

os fãs das Deendjers<br />

aclamam e acompanham a carreira de suas musas<br />

e verdadeiras rainhas. Viagens, shows, escolha e<br />

criação de figurinos, tudo registrado pelo casal que<br />

compartilha um pouco de sua intimidade e, além<br />

da admiração, serve de inspiração para seus fãs.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 7


NO PAIN, NO QUEEN<br />

Desde o início da trajetória, muitas companheiras de “montação”<br />

das Deendjers desapareceram da cena drag, atribuindo a<br />

dificuldade à renovação e lutas constantes. O trabalho envolvido<br />

na concepção de uma drag queen requer dedicação e reinvenção<br />

a cada aparição ao público. Artesãs de várias habilidades,<br />

elas confeccionam pessoalmente todos os figurinos com tecidos<br />

preciosíssimos e acabamento elaborado, assim como todo<br />

o processo. As perucas imponentes, maquiagem<br />

exuberante e coreografias milimetricamente<br />

ensaiadas e executadas, presentes no clipe<br />

da música Right Now, do grupo pop estadunidense<br />

Pussycat Dolls, dublado e<br />

gravado pelas Deendjers são exemplo<br />

disso. Tudo isso, a fim de exibir um<br />

resultado “o mais perfeito possível”<br />

quando as luzes se acendem e o show<br />

começa.<br />

Por trás das cortinas dessa magia<br />

incorruptível, encontram-se artistas que<br />

trabalham incansavelmente para realizar seus<br />

sonhos. Vinicius se dedicou às artes cênicas, fez teatro<br />

itinerante durante cinco anos de sua vida e tentou investir em<br />

uma carreira, antes de encontrar com Thiago, que já fez aulas<br />

circenses de malabares e pirofagia. Nasceram para brilhar<br />

e através das Deendjers eles se realizaram, juntos. Dividem sua<br />

rotina em dupla jornada entre o salão de cabeleireiro, onde<br />

atendem por agendamento de clientes. É comum irem para<br />

casa nos intervalos do trabalho para costurar os vestidos das<br />

apresentações, que acontecem geralmente em fins de semana<br />

que não estão maquiando alguma noiva, por exemplo.<br />

Outras drag queens do mundo pop contemporâneo também<br />

estão presentes na carreira das Deendjers, inspirando-as. Da<br />

paixão pelo cinema hollywoodiano, têm Carmen Miranda, Rita<br />

Hayworth, Liz Taylor e Jean Harlow como divas inspiradoras.<br />

Porém, a musa das musas das Deendjers é a atriz Marilyn Monroe,<br />

nascida Norma Jeane Mortenson, que despontou como um<br />

dos ícones eternos de estilo e feminilidade.<br />

Polêmicas à parte, os cabelos loiros laqueados, batom vermelho,<br />

vestidos justos-justíssimos e a pinta no canto da boca<br />

são marcas icônicas de Monroe. São essas referências que o casal<br />

evidencia em suas personagens. No começo deste ano, realizaram<br />

o sonho de visitar Los Angeles: estiveram na calçada<br />

da fama e no túmulo de Marilyn, onde prestaram homenagens<br />

e reverenciaram a diva-musa-inspiradora. Vinícius coleciona,<br />

desde criança, lembranças que remetem a atriz. Nessa mistura,<br />

ainda há espaço para as princesas da Disney e seu mundo mágico.<br />

Essa é a expressão das Deendjers: a divindade do glamour<br />

e da feminilidade.<br />

TIME TO BE FREE!<br />

Conhecidos pela aparência exagerada<br />

e o porte imponente, as drag queens<br />

surgiram como um movimento urbano<br />

e tem conquistado cada vez mais<br />

espaço e reconhecimento. São uma<br />

representação caricata do feminino,<br />

em seu expoente mais exuberante e expandido.<br />

Elas usam de alegorias com fins<br />

artísticos para criação e sua definição não é<br />

associada a orientação sexual ou de gênero, e, sim,<br />

pelo seu trabalho artístico como personagem. As drags se<br />

apresentam não apenas em festas de boates LGBT’s, mas em<br />

festas particulares.<br />

Desde 2009, o reality show exibido na tv norteamericana<br />

RuPaul’s Drag Race, apresentado pela drag RuPaul é sucesso de<br />

audiência. Com participantes de diversos tipos físicos, gêneros<br />

e orientações sexuais, o reality tem sido um espaço de visibilidade,<br />

não apenas para o backstage da vida das artistas drag queens,<br />

mas para reflexão de questões sociais que envolvem preconceitos<br />

sobre sexualidade e gênero. É um sonho das Deendjers<br />

participar do programa e mostrar seu trabalho para o mundo.<br />

Qualidade e perseverança não faltam a elas! No Brasil, seguindo<br />

moldes parecidos, o reality show “Academia de Drags”, disponível<br />

no Youtube e apresentado pela veterana e ícone da cena<br />

drag brasileira, Silvetty Montilla, também é um sucesso. As<br />

Deendjers acreditam na imponência desses espaços, pois dão<br />

reconhecimento ao caráter artístico das legítimas perfomers que<br />

são as drag queens.


Quando a opressão vira arte<br />

No auge da ditadura militar, o regime censurou<br />

e oprimiu a classe artística. O teatro era um dos meios de expressão<br />

impedidos de ganhar força. Com toda pressão sofrida,<br />

os artistas da época tentavam buscar formas de expor sua<br />

arte. Então, surgiu a ideia do Teatro do Oprimido: a oportunidade<br />

de representar, nos palcos, as vivências do dia a dia.<br />

Um dos atores da época, Augusto Boal foi destaque da luta pelo<br />

teatro através dos textos emblemáticos que produzia; e por isso partiu<br />

para o exílio, em 1969. Quando voltou ao país, criou o Teatro do<br />

Oprimido (TO). Em 1986, surgiu o Centro do Teatro do Oprimido<br />

(CTO), no Rio de Janeiro.<br />

O TO é a forma de expressão das camadas oprimidas da população,<br />

que pressupõe valorizar a resistência dessa classe. A proposta<br />

é que as próprias pessoas levem suas histórias de problemas e situações<br />

que viveram, mas não conseguiram resolver. Assim, através das<br />

encenações do Teatro do Oprimido, elas podem buscar alternativas<br />

pra modificar essa relação e tornam-se protagonistas de suas próprias<br />

vidas. O grande diferencial do TO é a participação da plateia,<br />

entrando em cena para resolver a questão proposta pelos atores.<br />

Na Maré<br />

Em 20<strong>15</strong>, o CTO está com novo projeto no complexo de favelas<br />

da Maré, zona norte do Rio de Janeiro. A área tem cerca de 130 mil<br />

moradores e uma das piores rendas per capita da cidade, com baixíssimos<br />

indicadores de desenvolvimento humano. Geo Britto, coordenador<br />

político-artistico do CTO acredita que o local tem uma grande<br />

história de resistência, coincidindo com as atenções e interesses do<br />

TO. “São pessoas que saíram de várias regiões do Brasil e lutam para<br />

montar uma casa própria”, conta.<br />

“A ideia do CTO na Maré é potencializar uma rede de parceiros<br />

para construir políticas públicas em prol da juventude, a fim de auxiliar<br />

na superação das dificuldades de se viver numa comunidade”,<br />

explica Geo. Os jovens participantes tem a oportunidade de transmitir<br />

nas peças, situações de opressão como, por exemplo, o preconceito<br />

no mercado de trabalho com moradores de comunidades pobres, o<br />

machismo, a questão de gênero, a violência sexual dentro de casa.<br />

Habitar<br />

TexTO: DAnielle CAMpez<br />

FOTO: peDrO MAgAlhães<br />

ArTe: elis reginA<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 9


Sensação<br />

Livre Resistência<br />

TexTO: KATiusCA DeMenTinO<br />

FOTO: eDuArDO MOreirA<br />

ArTe: FrAn vilAs bOAss<br />

“Eu sou um nômade.” Assim se autodenomina<br />

Newton. Quinze minutos de trilha dentro de uma área de preservação<br />

ambiental, sem mapas ou placas, chega-se ao lugar<br />

no qual ele habita. Newton possui uma habitação e não uma<br />

moradia. Essa distinção é muito importante para compreender<br />

seu estilo de vida, pois, quem reside possui vínculos administrativos<br />

com a sociedade. Contas à pagar, serviços à cumprir,<br />

normas à respeitar, além de uma série de outras convenções<br />

sociais. Newton não tem endereço, inscrição cadastral, contrato<br />

de locação, escritura. Seu nome não está na lista telefônica, seu<br />

perfil não está no Facebook, e seu currículo não está no Linkedin.<br />

Em cima de uma pedra, está sua cabana, construída por ele<br />

mesmo, a quarta desde que chegou em Ouro Preto. Dentro, a<br />

falta de mobília, roupas e utensílios abre espaço para os livros,<br />

os minerais, e algumas plantas. Fora, a mata é seu quintal;<br />

sua horta, seu galinheiro; sua terra, suas plantas. Assim vive<br />

Newton, resistente aos meios tecnológicos e ao sistema que ele<br />

considera antiquado e opressor. Por mais que seja praticamente<br />

invisível nas redes sociais, e viva mato a dentro, ele mantem<br />

sua relação com as pessoas da cidade e participa das atividades<br />

sociais comuns a todos os cidadãos.<br />

Das coisas que cultiva, uma parte é para sua alimentação, e<br />

outra parte é para sua fonte de renda. O que é plantado, utiliza<br />

para o seu próprio bem-estar; e o que sobra, ele vende para<br />

pessoas conhecidas. Com o dinheiro arrecadado, Newton ajuda<br />

algumas pessoas da região que sofrem vulnerabilidade social;<br />

compra alguns alimentos mais difíceis de produzir, como arroz,<br />

feijão e café, além de guardar uma parte desse valor para um<br />

tratamento dentário que necessita.<br />

Comportamento partilhado<br />

Como Newton, existem outras pessoas, grupos, e comunidades<br />

que mantem um estilo de vida diferenciado, no qual outros<br />

valores e costumes são agregados aos seus cotidianos, como é o<br />

caso da comunidade Temple Source em Cunha, São Paulo. Neste<br />

local, as pessoas pregam o altruísmo e o amor ao próximo. Deixaram<br />

pra trás suas rotinas, seus trabalhos, suas famílias para<br />

se dedicarem à evolução espiritual. Segundo “Chris”, morador<br />

do Temple Source, esse mundo no qual estamos adaptados é uma<br />

virtualidade. Para ele, as sensações verdadeiramente reais estão<br />

dentro de cada um, e podemos exercer o domínio de filtrar o<br />

que é bom ou ruim.<br />

Na comunidade Temple Source vivem pessoas de diversas<br />

partes do mundo, quase uma Torre de Babel, repleta de idiomas.<br />

Ainda assim, a comunicação acontece de maneira fluida e


eficaz. Diferente de Newton, eles utilizam as redes sociais para<br />

propagar o que consideram relevante na vida, como as diretrizes<br />

do livro “Curso dos Milagres” e a ideologia de persistir no<br />

amor ou persist love, como é conhecida mundialmente. Apesar<br />

de terem acesso à internet, utilizarem serviços bancários e possuírem<br />

um endereço, também são nômades. Estão sempre em<br />

fluxo, seja de lugares ou de ideias. Muitas pessoas, inclusive, já<br />

extinguiram seu nome de registro e adotaram outro que, segundo<br />

eles, condiz mais com essa nova etapa de vida e “evolução”.<br />

Tanto Newton quanto as pessoas do Temple Source se relacionam<br />

de maneira muito harmônica com a natureza, não apenas<br />

na relação de plantio e cultivo de alimentos e plantas medicinais,<br />

mas também, na forma como os bens de consumo são<br />

utilizados, descartados e/ou reciclados, além das construções<br />

serem ecologicamente sustentáveis. Resistência, liberdade e<br />

ideologia se confundem nesses estilos de vida, pois são diversas<br />

forças que influenciam nas tomadas de decisões das pessoas e<br />

na forma como elas enxergam a sociedade. No caso de Newton,<br />

a influencia para o nomadismo começou cedo e se estendeu à<br />

vida adulta. Órfão de pai e de mãe, ele foi criado pela madrinha<br />

em torno de uma grande vulnerabilidade social, e já adolescente<br />

seguia a vida de maneira independente.<br />

Há quem diga que é loucura abdicar-se de hábitos que proporcionam<br />

nosso conforto. Mas o que é conforto para uns, não é<br />

conforto para outros, porque o bem-estar é algo muito particular.<br />

Ao ser questionado se é um resistente, Newton afirma que<br />

sempre considerou seu comportamento como um movimento<br />

próprio da sua individualidade. Acredita que o afastamento<br />

territorial proporciona uma mente mais livre para obter as reflexões<br />

que considera necessárias à sua sanidade: “eu enxergo<br />

a sociedade como um corpo social. Sendo um corpo social e fazendo<br />

parte dessa espécie, eu sou atuante, dentro ou fora. Eu<br />

estou dentro para as questões relevantes, mas estou fora para as<br />

questões superficiais”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 11


Sensação<br />

Resistir não é<br />

remediar<br />

Medicina tradicional ou alternativa? A escolha por diferentes<br />

tratamentos significa mais que a busca pela cura do corpo.<br />

G<br />

Texto: Samuel Perpéuo<br />

Foto: Alessandra Alves<br />

Arte: Charles Santos


O abuso de remédios tarja preta,<br />

além de causar dependência pode desencadear<br />

outras doenças. Primeiro começa com<br />

um antidepressivo, que causa problemas na<br />

pressão. Da pressão o medicamento acelera o<br />

coração. Do coração o diabetes, e quando se<br />

percebe, a pessoa está consumido mais de 20<br />

tipos de medicamentos, diariamente. Em comprimidos<br />

e capsulas, parece existir uma solução<br />

na dose exata para cada problema da vida.<br />

Segundo a Organização das Nações Unidas<br />

(ONU), o Brasil está entre os três maiores consumidores<br />

de remédio controlado do mundo,<br />

junto com os Estados Unidos e Argentina. O uso<br />

de medicamentos tarja preta disparou nas últimas<br />

décadas. Karen Rafaela Santos, psicóloga do<br />

CAPS em Mariana, revela que um dos grandes<br />

desafios do profissional, atualmente, é diagnosticar<br />

e diferenciar o sofrimento da depressão.<br />

As pessoas não encaram mais adversidades<br />

humanas como tristeza, medo e sofrimento.<br />

“Nosso desafio é entender que as pessoas podem<br />

sofrer. Hoje em dia a gente vive em uma sociedade<br />

em que as pessoas não podem mais sofrer, não<br />

podem mais chorar, não podem mais entristecer.<br />

Quando se entristecem e choram é depressão,<br />

precisam de remédio. O que esse remédio vai calar?<br />

Algumas coisas precisam aparecer”, afirma<br />

Karen.<br />

A procura de uma saída rápida para um problema<br />

que deveria ser encarado e não mascarado<br />

com medicações, vem aumentando cada vez<br />

mais o abuso de remédios, o que Karen chama de<br />

“Medicação da Vida”.<br />

que o sintomas que eles tratam. Tomar um chá de<br />

boldo, por exemplo, cura bem mais sua ressaca<br />

do que um Engov. Quando você toma uma remédio<br />

pra queimação no estômago, o remédio pode<br />

afetar seu fígado e assim por diante”.<br />

Outra medicina alternativa de grande adesão<br />

é a homeopatia. A homeopatia surgiu há pouco<br />

mais de 200 anos com os estudos do médico<br />

alemão Samuel Hahnemann. Considera doença<br />

como o desequilíbrio da energia vital. Diferente<br />

da alopatia, que é conhecida como medicina tradicional<br />

e busca tratar os sintomas das doenças,<br />

a homeopatia não busca combater ou anular sintomas,<br />

mas sim compreender o seu significado<br />

e importância de medicar o paciente no sentido<br />

total da sua recuperação, fazer com que a força<br />

vital volte ao seu equilíbrio.<br />

Em Mariana, a farmacêutica homeopata<br />

Gishia de Fátima Horta Moreira trabalha com<br />

essa medicina há mais de cinco anos. “Cansados<br />

dos tratamentos tradicionais, alguns pacientes<br />

procuram outra forma para tratar a sua doença”,<br />

comentou. Ela acredita que apesar da medicina<br />

tradicional ainda ser a primeira opção da maioria,<br />

a procura pela homeopatia tem aumentado.<br />

Segundo a farmacêutica, uma boa parte das pessoas<br />

que vão ao médico alopata se queixam de<br />

não ser bem atendidas. Com isso, cria-se um mal<br />

estar para o paciente e ele procura outras alter-<br />

nativas de tratamento. “No meu ponto de vista,<br />

a medicina tradicional é mecanizada e as medicinas<br />

alternativas e a homeopatia são humanizadas”,<br />

afirma. De qualquer forma, procurar um<br />

profissional antes de iniciar qualquer tratamento<br />

é sempre a melhor opção.<br />

Existem outras alternativas?<br />

Por outro lado, as terapias não convencionais<br />

estão se tornando cada vez mais populares entre<br />

um grupo de pessoas. Deles destaca-se duas populares<br />

que são a fitoterapia e a homeopatia.<br />

A fitoterapia acredita na “cura através das<br />

plantas”. Surgiu na medicina chinesa e é um<br />

conhecimento que muitas pessoas usam mesmo<br />

que desconheçam seu poder curativo, mas que<br />

foram passados de geração em geração.<br />

Um dos adeptos dessa medicina, o estudante<br />

de Pedagogia Edson Vinício de Oliveira Soares,<br />

só utiliza a medicina tradicional em casos graves<br />

onde não resta outro recurso. “Eu nasci na roça<br />

e tomava chá quase todos os dias. Os efeitos colaterais<br />

dos remédios tradicionais são bem piores<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 13


Identidade<br />

Religião<br />

para todos<br />

A historiadora Sidnéia dos Santos, 39, conta detalhes sobre a existência<br />

de quatro gerações de escravos que tiveram seus cantos e ritos<br />

perdidos, na hoje chamada Região dos Inconfidentes. Os negros que<br />

trabalhavam na extração do ouro, em Ouro Preto, eram trazidos de<br />

uma região da África conhecida como Costa da Mina, que atualmente<br />

abrange Gana, Togo, Benim, Nigéria e parte da Angola. Os reinos<br />

que pertenciam a região possuíam mais de 1.500 dialetos diferentes.<br />

Eram estrangeiros entre si, tentando se reorganizar socialmente, além<br />

de proibidos de praticarem suas crenças.<br />

Uma das poucas formas de culto permitidas na colônia acontecia<br />

através das irmandades de negros, como a do Rosário, de Santa Efigênia,<br />

de Santo Elesbão, São Raimundo e de São Benedito. Assim nasceu<br />

o sincretismo, em que divindades africanas se tornavam santos católicos<br />

aos domingos, único dia da semana em que o escravo podia ir à<br />

missa e também trabalhar por conta própria, para subsidiar a existência<br />

da irmandade.<br />

Hoje, as religiões de origem africana resistem em terreiros espalhados<br />

pela cidade, que é famosa por suas igrejas centenárias.


Um dia no terreiro<br />

Na descida da Igreja Matriz de Nossa Senhora<br />

do Pilar até as proximidades da Estação Ferroviária de Ouro<br />

Preto está localizado o Centro Sete Poderes. São cinco da tarde<br />

de uma segunda-feira e junto com um fotógrafo da <strong>Revista</strong><br />

<strong>Curinga</strong> estou indo, pela primeira vez, a um centro de Umbanda.<br />

Sou recebida por Seu Zequinha, 61, aposentado, pai<br />

de dois filhos, que reserva boa parte do tempo como diretor<br />

do centro instalado em sua própria casa e que abre as portas<br />

toda segunda e quarta-feira. Pouco a pouco pessoas chegam<br />

para o atendimento com os médiuns. São eles que incorporam<br />

as entidades que irão dar conselhos aos que estão ali.<br />

Com a casa já cheia, me sento com Zequinha. Para ele, a<br />

principal dificuldade no entendimento social da religião de<br />

matriz afro-brasileira é que poucos médiuns divulgam a doutrina<br />

de forma mais aberta. Quando falamos em Ouro Preto o<br />

problema se agrava: praticar umbanda em uma cidade muito<br />

católica pode trazer riscos.<br />

Em outro espaço do centro, sentado enrolando fumo, está<br />

um médium que nos fala um pouco mais sobre as peculiaridades<br />

da umbanda. Mesmo sendo kardecista fico um pouco<br />

nervosa com a ideia, pois não sei muito bem o que perguntar<br />

ou como devo me portar diante da entidade. O médium,<br />

enquanto fuma, explica que as ervas usadas nos rituais são<br />

geralmente conseguidas em matas próximas ao centro. Ao fim<br />

da conversa, ganho um rosário e um preparo para banho. O<br />

Texto: Adrean Larisse Nunes<br />

Fotos: Aprígio Vilanova e Edione Abreu<br />

Arte: Laís Diniz<br />

A fala de Pai Jacó me faz perceber o quanto a umbanda<br />

está sincretizada com o catolicismo, uma herança de quando<br />

os escravos não podiam cultuar os deuses africanos de forma<br />

livre em terras brasileiras. Depois disso procuro saber mais<br />

sobre como essa religião e outras de matrizes africanas foram<br />

abafadas pela coroa portuguesa.<br />

Do meu mergulho em religiões que antes, por medo ou<br />

preconceito, nunca tive coragem de saber mais, ficou só uma<br />

certeza: assim como Pai Jacó revelou, o que é preservado é o<br />

amor, que mesmo sincretizando Ogum em São Jorge, Iansã<br />

em Santa Bárbara e Oxalá em Jesus, é o mesmo que se busca<br />

em qualquer outra crença. Voltei para casa acreditando mais<br />

no respeito a outros credos. Como disse Pai Jacó, o que deve<br />

prevalecer é o amor ao próximo, seja ele da umbanda, do<br />

candomblé, catolicismo ou qualquer outra doutrina. Afinal,<br />

de axé e amor todo mundo precisa.<br />

A religião verdadeira cada um de vocês carrega<br />

em seu coração. É através do amor, da<br />

fraternidade um com o outro. Fui descrente.<br />

Hoje estou na verdadeira fé. A fé não está<br />

escrita em nenhum livro. A fé está dentro de vocês.<br />

Pai Jacó da Jaula<br />

rosário é emprestado, para que eu volte. Pouco depois sou<br />

levada ao Preto Velho, conhecido como Pai Jacó da Jaula. É<br />

ele quem começa a falar.<br />

Pai Jacó diz que veio de um mundo espiritual que muitos<br />

chamam de Aruanda. Segundo ele, na existência carnal foi<br />

trazido da Guiné em um navio quando criança e começou<br />

a trabalhar como escravo em uma fazenda de café. Diz que<br />

aceitou a condição de escravo “para aprender a necessidade<br />

dos filhos”, sendo que, em outra vida havia os rejeitado.<br />

Ele então vê o rosário em meu pescoço e pergunta se eu o<br />

ganhei, assim como o banho de ervas. Quando respondo que<br />

sim, que o banho irá me ajudar com problemas de saúde, Pai<br />

Jacó diz que “pode ver de nada que tá com medo de tudo”,<br />

fazendo menção a uma gastrite nervosa para a qual o banho<br />

irá servir.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong><br />

<strong>15</strong>


Identidade<br />

Foto: Bruno Arita e Eduardo Moreira


Arte: Edmar Borges CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 17


CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 19


TRAVESSIA


Corpos ditos<br />

e sentidos


TexTO: leTíCiA AFOnsO<br />

FOTO: KAiO bArreTO<br />

ArTe: nATAne generOsO<br />

Limitar um corpo é impor que suas emoções, gestos, palavras,<br />

sejam enquadrados em padrões de comportamento.<br />

Cerceada a liberdade, delimitadas as regras que oprimem...<br />

Ao corpo feminino foram atribuídas diversas características<br />

que restringiram e ainda restringem suas escolhas. Opressões<br />

que vêm disfarçadas em atos cotidianos. Assim, libertar<br />

os corpos é justo e necessário... Resistir às opressões, experimentar<br />

o mundo, expressar os afetos. Há quem faça isso!<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 23


Ao olhar para cada indivíduo notamos algo diferente. Isso<br />

porque o corpo carrega classificações sociais. Por exemplo: Este<br />

corpo é de uma mulher ou de um homem; Este corpo de mulher<br />

tem a pele negra; Este corpo veste roupas femininas. Portamos<br />

rótulos para que sejamos identificadas e aceitas por todas as<br />

outras pessoas. De acordo com a historiadora Guacira Lopes<br />

Louro, professora da Universidade Federal do Rio Grande do<br />

Sul (UFRGS), as pessoas são percebidas por sua aparência, que<br />

é “algo que se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se<br />

mostra, o que aparece; e ao que se vê se atribui significados.<br />

Pele, pêlos, seios, olhos são significados culturalmente”.<br />

Uma das formas de classificar e rotular o ser humano é o gênero,<br />

construído e mantido pelas pessoas organizadas em instituições.<br />

Na maioria das sociedades, os corpos são diferenciados<br />

como feminino ou masculino, e é comum vê-los reduzido ao<br />

determinismo biológico, uma delimitação pautada nas verdades<br />

aparentes de um corpo. Nesse processo, as características<br />

culturais da humanidade são reduzidas à fisiologia em detrimento<br />

da cultura.<br />

Os rótulos dados às pessoas evidenciam os modos aceitáveis<br />

de serem percebidas. Em tal processo, por vezes, a imagem<br />

exterior do corpo torna-se justificativa para as limitações<br />

do indivíduo ante a sociedade, e assim, é necessário resistir a<br />

alguma situação de opressão no cotidiano. As lutas travadas<br />

pelo feminismo em busca da igualdade de gênero advêm desse<br />

processo. Questionam os lugares subalternos reservados para o<br />

feminino na sociedade, impostos, historicamente, pela autoridade<br />

e prestígio social atribuídos à figura do patriarca. Conforme<br />

os ideais de gênero pautados no patriarcalismo presente em<br />

diversas culturas, as mulheres não poderiam atuar dentro de<br />

esferas sociais, como instituições de ensino, políticas, jurídicas,<br />

econômicas e religiosas. Nesse viés, cada uma dessas organizações<br />

sociais, à sua maneira, teria um papel conformador na<br />

identidade de todas as pessoas.<br />

Por muito tempo, não foi aceitável que as mulheres fossem<br />

matriculadas em instituições de ensino. Isso era uma regra, e<br />

quem ousasse quebrá-la sofreria com as punições. O ingresso<br />

das mulheres na educação pública no Brasil, por exemplo, se deu<br />

apenas em 1880, com a fundação da Escola Normal no Rio de Janeiro.<br />

Apesar disso, o conhecimento passado ao ser feminino era<br />

censurado. Somente homens aprendiam matemática e física, e<br />

tinham acesso às leis conformadoras da sociedade. A prioridade<br />

na educação para mulheres era ensiná-las a portar-se diante das<br />

outras pessoas, e principalmente do seu companheiro.<br />

De acordo com Josenia Antunes Vieira, professora aposentada<br />

da Universidade de Brasília (UnB), a identidade feminina<br />

abriga experiências particulares, emoções e vivências culturais,<br />

pelo fato estar sujeita aos discursos restritivos em momentos<br />

históricos específicos. Em artigo de 2005, a professora afirma:<br />

“determinados comportamentos discursivos comuns à cultura<br />

masculina são proibidos à feminina e vice-versa. No universo<br />

das mulheres, pela construção social a que está sujeita a linguagem,<br />

geralmente são interditadas certas palavras relativas<br />

ao sexo e às partes sexuais”. A educação seria um dos fatores<br />

que contribuiria para a exigência e o exercício de direitos civis,<br />

sociais, econômicos e políticos. Para garantir espaços sociais, é<br />

necessário conhecer e ter acesso às possibilidades de atuação<br />

diante dos outros indivíduos. O conhecimento, atrelado a ideais<br />

políticos e comportamentos questionadores, foi importante elemento<br />

para a busca da liberdade corporal e mental da mulher<br />

ao longo da história.<br />

Autonomia sexual<br />

O corpo não deve ser desassociado da mente, pois ambos<br />

coexistem e são afetados pelo estar no mundo. A sexualidade,<br />

tal qual o gênero, está atrelada a ambos e pode ser pensada em<br />

termos psicológicos, biológicos, e culturais, uma construção do<br />

convívio social. É também uma maneira de experimentar o que<br />

nos afeta. Quando a identidade sexual dos indivíduos é limitada<br />

por padrões repressivos, pode haver culpabilidade ao ato<br />

sexual, gerando traumas psicológicos e comportamentais. Esse<br />

processo é usual, pois a sexualidade foi e ainda é rigidamente<br />

controlada por normas corretas de conduta.<br />

Há papéis sexuais atribuídos a cada gênero. Para as mulheres,<br />

o prazer foi edificado como motivo de penitência, pois seu<br />

sexo era estritamente procriativo e limitado pelo gozo do homem.<br />

A conduta sexual feminina foi mitificada de acordo com<br />

os padrões de gênero, e controlada por meio da culpa gerada<br />

pela moralidade. Isso evidencia o processo de repressão sexual<br />

comum às minorias, que não se reconhecem na binaridade de<br />

gêneros homem/mulher, masculino/feminino.<br />

Tendo a sexualidade praticamente anulada e pouca possibilidade<br />

de atuação no domínio público, a mulher foi reduzida<br />

ao âmbito doméstico. Onde deveria expressar virtudes e dons<br />

que transpusessem a fraqueza da carne por meio da libido. Sua<br />

função era cuidar dos afazeres domésticos e da família. Ainda<br />

hoje, para muitas daquelas que trabalham fora, a casa e os filhos<br />

permanecem exclusivamente sobre seus cuidados.


CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 25


O desejo sexual das mulheres foi inibido por processos de<br />

repressão social. No estudo publicado em 2008 por Wânia Ribeiro<br />

Trindade e Márcia de Assunção Ferreira, professoras da<br />

Faculdades Integradas Espírito-Santenses (FAESA) e da Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), baseado em entrevistas<br />

com mulheres em um posto de saúde em Vila Velha – ES,<br />

a ausência de desejo sexual feminino aparece relacionado “ao<br />

esforço das mulheres na luta diária, numa tentativa de garantir<br />

com seu trabalho a independência, sua afirmação pessoal e<br />

profissional, mas que consequentemente repercutem negativamente<br />

nas suas condições de saúde”. As estudiosas defendem<br />

a existência de espaços de “discussão coletiva entre as próprias<br />

mulheres”, para que compartilhem experiências e se percebam<br />

na vivência uma da outra. Isso possibilitaria o reconhecimento<br />

de diversos problemas comuns à condição feminina.<br />

Termos de libertação<br />

Os estudos feministas traçaram formas de resistência para<br />

que as mulheres pudessem ocupar espaços e atuar nas instituições.<br />

Foram desenvolvidos à partir dos movimentos sociais<br />

femininos, como a convenção dos direitos da mulher em Nova<br />

York em 1848. Nesse contexto, a mulher deve ser vista como<br />

alguém que resiste às classificações limitantes de sua atuação<br />

na esfera pública, posicionando-se como um “segmento” diante<br />

das lutas de gênero, classe social, etnia, dentre outras. A partir<br />

desses estudos, pautas acerca da vivência feminina vêm sendo<br />

levantadas nos últimos anos. E diversos elementos formadores<br />

de sua identidade estão presentes no processo de elaboração de<br />

pesquisas e debates.<br />

A partir da segunda metade do séc. XX passou-se a considerar<br />

a inclusão da mulher no mercado de trabalho, o papel dos<br />

meios de comunicação na formação identitária da mulher, as<br />

discussões acerca do aborto, a abertura de espaços para discutir<br />

gênero e sexualidade nas instituições de ensino, dentre outras.<br />

Passou-se a considerar também sua representatividade nas<br />

áreas de produção do conhecimento da humanidade. Agora a<br />

mulher também tem a possibilidade de se expressar por meio de<br />

livros, como a escritora Adélia Prado, artigos científicos como a<br />

estudiosa Simone de Beauvoir, músicas como a cantora “Cris”<br />

do extinto grupo de rap SNJ, filmes como a cineasta Anna<br />

Muylaert. Todas, a sua maneira, empoderam e libertam a figura<br />

feminina de estereótipos limitante.<br />

Eu mesma, a outra mulher<br />

Ao final desse texto, conto um pouco da minha história e<br />

trago com ela o pulso da minha intimidade. Carrego significados<br />

em meu corpo, sou indivíduo. Me porto diante da sociedade<br />

de acordo com normas compartilhadas. Me reconheço como<br />

mulher e, para mim, foi simples a adaptação de alguns padrões<br />

de sexualidade. Quando menina, não me perguntava acerca das<br />

normas sociais que poderiam cercear minha capacidade de expressão.<br />

Mesmo assim, em algum momento de minha história,<br />

quis ocupar espaços predominantemente masculinos. Presumia,<br />

então, que o melhor seria suprimir características de minha<br />

construção identitária como mulher. Me machuquei, mas<br />

ainda obtive vantagens na corrida para ocupar espaços na sociedade.<br />

Tive acesso ao ensino, saúde, e não precisei resistir às<br />

opressões étnicas e sociais.<br />

Alguns de nós possuímos meios para se desviar das opressões<br />

colocadas no cotidiano. Mas a quem oprimimos, mesmo<br />

sem perceber, para que pudéssemos manter nosso conforto e<br />

modo de vida?


O<br />

MUNDO<br />

EM<br />

MIM


Sensação<br />

Ladainha da<br />

persistência<br />

“Que Navio é esse, é o navio negreiro, aqui chegando não<br />

perderam sua fé”. É através de cânticos como esta ladainha ,<br />

escrita pelo mestre Camisa, que os capoeiristas retratam histórias.


A mochila está nas costas e o<br />

berimbau permanece entre os dedos. É<br />

possível perceber algumas pessoas vestindo<br />

calça branca e segurando instrumentos<br />

como pandeiro e agogô. O cenário é o<br />

da ação do grupo Oxalufã, que pratica a<br />

capoeira, na praça Gomes Freire, em Mariana,<br />

Minas Gerais. O som do gunga indica<br />

que a rodada de gingado irá começar<br />

a qualquer momento. Progressivamente<br />

dezenas de pessoas vão se rendendo ao<br />

encanto da melodia e formando uma<br />

roda de espectadores em volta do grupo.<br />

O professor Damião Cosmi Leonel, 54<br />

anos, lembra que antes de ser aplaudido<br />

e elogiado pelas pessoas por causa do trabalho<br />

que desenvolve na capoeira, já sofreu<br />

repressão social e racial. Relata, ainda,<br />

que em determinadas instâncias foi<br />

até perseguido pela polícia por conta da<br />

dedicação ao ofício. Para ele, muitos indivíduos<br />

ainda persistem em não aceitar a<br />

capoeira como uma prática cultural, livre<br />

dos preconceitos e da marginalidade.<br />

Ser capoeirista<br />

A capoeira surgiu no século XVI. Segundo<br />

o pesquisador Matthias Röhring<br />

Assunção, que leciona história na University<br />

of Essex, ela originou-se na África<br />

e veio para o Brasil através dos navios<br />

negreiros. Baseada em tradicionais danças<br />

e ritmos africanos, a capoeira é uma<br />

mistura de esporte, luta e brincadeiras.<br />

Ela pode dividir-se em duas vertentes. A<br />

primeira é a capoeira Angola, cujo o estilo<br />

se aproxima de suas raízes e a principal<br />

característica são os movimentos lentos.<br />

O segundo segmento é caracterizado pela<br />

capoeira Regional, que incorpora golpes<br />

contemporâneos, acompanhados por movimentos<br />

rápidos.<br />

O mestre Aloísio Augusto, de 43 anos,<br />

trabalha como professor de capoeira há<br />

mais de 30 anos. Ele conta que se encantou<br />

pelo gingado quando ainda era<br />

criança, “desde pequeno eu gostava de<br />

observar a roda de capoeira, não demorei<br />

muito para começar a praticar e logo<br />

em seguida tive a certeza que era isto que<br />

gostaria de fazer”, lembra. Aloísio explica<br />

que a capoeira é um oficio sério e para se<br />

tornar mestre as pessoas devem se dedicar.<br />

Como o mestre Damião, Aloísio ressalta<br />

que ainda há resistência das pessoas<br />

em acolher a capoeira como profissão:<br />

“muitos nem sabem do percurso que caminhamos<br />

e acabam fazendo interpretações<br />

erradas sobre nós”.<br />

Conflitos e perspectivas<br />

A capoeirista Mara Silva, 38 anos, frequenta<br />

o grupo Oxalufã há cerca de dois<br />

meses. Para ela ainda há persistência da<br />

sociedade em não concordar que mulheres<br />

também podem praticar a capoeira,<br />

por ser uma manifestação artística que<br />

utiliza movimentos de luta. Mara completa<br />

dizendo que “a capoeira ainda é mal<br />

interpretada pela sociedade. As pessoas<br />

só conhecem superficialmente, elas precisam<br />

entender a verdadeira filosofia que<br />

propagamos. Muitos acham que a roda é<br />

um ambiente perigoso para as mulheres”.<br />

O mestre Damião relembra as dificuldades<br />

que sofreu quando chegou em<br />

Mariana para trabalhar como capoeirista.<br />

Segundo ele, houve muita dificuldade em<br />

aceitar a capoeira como uma modalidade<br />

de arte. A polícia foi uma das principais<br />

repressoras, muitos diziam que “nós estávamos<br />

trazendo a marginalidade para<br />

o município”, relata. O mestre Damião<br />

ainda enfatiza que muitas pessoas não<br />

aprovam a capoeira por não conseguirem<br />

distinguir da religião.<br />

A capoeira vai além do que uma simples<br />

atividade física. Ela é um dos componentes<br />

que definem a identidade brasileira.<br />

No dia 26 de novembro de 2014,<br />

a Organização das Nações Unidas para<br />

Educação, Ciência e Cultura (UNESCO),<br />

reconheceu a capoeira como Patrimônio<br />

Imaterial da Humanidade. Isso reforça a<br />

importância desta arte para a sociedade.<br />

Mesmo diante de todas as dificuldades<br />

e resistência, o jovem capoeirista de 21<br />

anos, Denis Patrick Vieira, enxerga o futuro<br />

da capoeira com otimismo. Segundo<br />

ele, a globalização e o fácil acesso da informação<br />

está ajudando as pessoas a entenderem<br />

o verdadeiro sentido desta arte:<br />

“os valores culturais não estão ligados<br />

especificamente na performance do gingado,<br />

eles estão incorporados na música,<br />

nos trajes, nos instrumentos e no comportamento.”<br />

TexTO : MATheus MAriTAn<br />

FOTO: AprígiO vilAnOvA<br />

ArTe: isÂniA silvA sAnTOs<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong><br />

29


Identidade<br />

Ocupe-se,<br />

pois<br />

ocupa-se<br />

texto: Raquel Satto<br />

Foto: Lucimara Leandro<br />

Arte: Débora Simòes


Wall Street, Rosa Leão, Flaskô, Mercado<br />

Sul, Ufop. Ocupa-se. Seja contra um sistema<br />

econômico ou a especulação que empurra<br />

a população para fora de suas casas,<br />

ocupar é reivindicar direitos e também a<br />

solução para a falta de um deles. Existem<br />

ocupações de fábricas falidas, realizadas<br />

por operários que são gestores e ressignificam<br />

relações trabalhistas, ocupações de<br />

caráter colaborativo artístico, que se engajam<br />

questionando a função social de construções<br />

e o direito à cidade...<br />

Occupy, 17 de setembro de 2011. Wall<br />

Street como cenário de críticas ao capitalismo<br />

financeiro. Com o slogan “Nós somos<br />

os 99%” - a população maior em número e<br />

menor em poder monetário - o movimento<br />

ocupou um lugar simbólico para o sistema<br />

que viveu profunda crise. Suas influências<br />

foram a Geração à Rasca e o Movimento<br />

dos Indignados; que por sua vez bebeu da<br />

fonte da Primavera Árabe e de movimentos<br />

que derrubaram governos na Tunísia<br />

e Egito. Depois de Wall Street, o Occupy<br />

se alastrou do México ao Nepal. Com suas<br />

particularidades mas semelhantes na mudança.<br />

Segundo Felipe de Oliveira, jornalista e<br />

doutorando em Ciências da Comunicação,<br />

os movimentos de ocupação global “são<br />

novas formas de intervenção na esfera<br />

pública, antes mesmo de se constituírem<br />

como movimentos sociais na plena acepção<br />

da definição”. Além disso, as ações<br />

contemporâneas constituem “uma proposta<br />

de nova esquerda mundial, com lastro<br />

na democracia real e em princípios como<br />

a horizontalidade para a tomada de decisões,<br />

o que gera perplexidade nos campos<br />

político, acadêmico e da comunicação.”<br />

Um caso representativo da situação de<br />

ocupações habitacionais é o da região do<br />

Isidoro, em Belo Horizonte. Segundo publicação<br />

no site das Brigadas Populares, as<br />

ocupações Rosa Leão, Vitória e Esperança<br />

sofrem perseguição por parte do Estado,<br />

mesmo após o governador ter se comprometido<br />

a não despejar nenhuma comunidade<br />

sem alternativa de moradia. Assim<br />

como em diversos casos, a grande mídia<br />

adota o discurso governista de criminalização<br />

dos movimentos e a falta de abertura<br />

para se posicionarem.<br />

Ocupações também estão presentes no<br />

movimento estudantil. Em artigo de 2011,<br />

“O espetáculo das ocupações: Estudantes<br />

ou Vilões?”, Elionay Marques e Lucas Fano<br />

explicam o significado de ocupar: “as ocupações<br />

são uma resposta contrária às constantes<br />

tentativas de diminuição do espaço<br />

público e da autonomia universitária, um<br />

ato estratégico na luta pela defesa da universidade<br />

pública e, num sentido maior,<br />

pela defesa da educação para todos”. É colocado<br />

que a mídia se aproveita de casos<br />

controversos para espetacularizá-los e não<br />

problematizam suas raízes. Em 20<strong>15</strong>, nos<br />

movimentos da Educação, Ocupa é recorrente<br />

- de OcupaUFPB a OcupaUFOP - e as<br />

reflexões de 2011 são atuais.<br />

Cortes de 9,4 bilhões na Educação.<br />

Ampliação nas terceirizações. Restrições<br />

à pensão por morte e fator previdenciário.<br />

Acesso dificultado a seguro-desemprego<br />

e abono salarial. O cenário colocado no<br />

início de 20<strong>15</strong> é caótico para estudantes<br />

e trabalhadores, a crise bateu na porta e<br />

os movimentos respondem. Lutando, ocupando<br />

e incomodando.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 31


Ocupando entre ladeiras: um relato.<br />

(Ouro Preto, junho de 20<strong>15</strong>)<br />

Café e luta são combustíveis. Assembleia e encaminhamento<br />

penetram no vocabulário. Qualquer conversa é debate<br />

e qualquer lugar é cama. A vivência de uma ocupação estudantil<br />

traz reflexões sobre coletividade, seja em revindicações<br />

ou no convívio de pessoas diferentes que se unem em prol de<br />

um bem comum.<br />

O movimento OcupaUfop nasceu, frente a burocracias e<br />

apatia geral, para que pautas fossem esclarecidas e atendidas.<br />

A “casa” respira, come e bebe política. Histórias de outrora,<br />

PLs e MPs se misturam à conversa besta do café. Tudo faz<br />

refletir a necessidade da política no dia-a-dia, em pequenas e<br />

grandes coisas. Não podemos nos alienar do contexto maior,<br />

enquanto indivíduos somos seres históricos e políticos.<br />

Não se negocia apenas com a Reitoria, diariamente se vê<br />

a necessidade de respeitar lugares de fala e pontos de vista.<br />

Saber contrapor o que não é concordado e prestar atenção no<br />

que pode ferir se tratado com desleixo. Daí, tudo é problematizado.<br />

Urgência e política exalam da ocupação. As emoções<br />

ficam à flor da pele, a ansiedade e o cansaço são perceptíveis.<br />

Apesar dos desentendimentos ocasionais, é como se os ocupantes<br />

se conhecessem há tempos e fizessem parte de uma<br />

grande comunidade, onde se divide desde comida até toalha.<br />

Além de discordâncias internas, existem as pressões externas,<br />

da Universidade ou da parcela que se coloca contra o<br />

grupo autônomo. Difícil saber qual a mais persistente. Apesar<br />

disso, o foco é o coletivo e a defesa de uma universidade pública<br />

de qualidade, acessível e plural. Ninguém faz ocupação<br />

porque gosta: é um processo desgastante psicológica e fisicamente.<br />

Mas ainda uma ferramenta válida.<br />

Quem trabalha na reitoria se junta aos ocupantes, no café<br />

ou ao conversarem sobre a situação delicada em que o país e<br />

a universidade se encontram. Um apoio que se sente, cara a<br />

cara. A maior manifestação pode ser um simples “que bom<br />

que vocês entendem”. A troca de saberes é constante, cada<br />

um ensina o que sabe, aprende com a outra, ajuda no que<br />

pode. Entre cartas e manifestos, deliberações e protestos, os<br />

trabalhos acadêmicos. O período letivo continua.<br />

Há marcas em quem participa. Tudo é intensificado e<br />

pensado profundamente, as concepções são reavaliadas. O<br />

mundo externo é mais difícil de ser encarado quando há o estranhamento.<br />

O mundo interno pode parecer uma fuga, mas<br />

na verdade é o olho do furacão. Tudo parece estar na ordem<br />

enquanto o frenesi reina da porta para dentro.<br />

Na timeline, críticas e apoios, notas e fotos. Na linha do<br />

tempo da vida que segue, aniversários comemorados, horas<br />

de sono perdidas, laços feitos e desfeitos. Uma realidade palpável<br />

ao alcance das mãos. Pena que são poucas as dispostas<br />

a se colocarem na massa. Mesmo que o horizonte pareça ser<br />

distante, as pessoas perdidas e o panorama, conturbado, ainda<br />

há quem acredite. Pois como diria Síntese: “Não se ilhe,<br />

sonho que se sonha junto é o maior louvor”.


Identidade<br />

Cidade em palavras<br />

<strong>Curinga</strong> entrevista Ferréz, autor do livro<br />

“Os ricos também morrem”, lançado em 20<strong>15</strong>.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 33


Morador do Capão Redondo, periferia de São Paulo, Reginaldo Ferreira da Silva,<br />

39 anos, é um escritor renomado. Com textos traduzidos em mais de seis países, Ferréz como é conhecido,<br />

traz em suas obras um olhar mais próximo da realidade das favelas. Mostra de forma simples e verossímil<br />

que o morro tem muito mais para contar do que só as mortes e os problemas exibidos pela grande mídias.<br />

Ferréz é lembrado também por ser um dos fundadores da “Literatura Marginal”, gênero no qual os<br />

textos refletem a realidade e o cotidiano das periferias. Ele e outros autores utilizam-se do estilo para<br />

permitir que a voz das favelas seja ouvida e que estas pessoas possam ser vistas de uma nova forma.<br />

Fazem da literatura um dispositivo de resistência, contra uma realidade mascarada e distorcida.<br />

<strong>Curinga</strong>: Como o livro e a leitura influenciaram sua<br />

vida?<br />

Ferréz: Em tudo, aos 12 anos li meu primeiro livro e<br />

comecei a ter uma visão de mundo, fora que desde que li<br />

meu primeiro gibi quando tinha 7 anos, que sempre me<br />

diverti muito lendo.<br />

C: Quais livros e autores te inspiraram?<br />

F: Hermann Hesse, Plínio Marcos, João Antônio, e<br />

hoje tem muitos outros, como Marcelino Freire, Lourenço<br />

Mutarelli.<br />

C: Quando surgiu a ideia de escrever sobre/para a periferia?<br />

F: Foi no primeiro livro oficial, o Capão Pecado, que<br />

ficou pronto em 2000, nele pude abranger esse lado, que<br />

muita gente não queria falar sobre isso, foi uma coisa natural,<br />

me senti mais a vontade falando sobre o universo<br />

que eu conhecia.<br />

C: Como se desenvolve seu trabalho na periferia? E<br />

como as pessoas se envolvem com o movimento?<br />

F: Começou numa crença, eu acreditava que as pessoas<br />

tinham que ter acesso a esse mundo que eu estava<br />

entrando, o da leitura, e fui organizando pequenos eventos<br />

onde lia meus poemas, falava da maravilha de se ler,<br />

foi natural querer passar isso para frente, então eu pedia<br />

para falar em eventos políticos, em shows de hip-hop e<br />

assim fui sendo conhecido como o escritor da periferia.<br />

C: Como é pra você ver seus textos traduzidos em vários<br />

países e saber que a voz da periferia está sendo representada<br />

e conhecida?<br />

F: É uma coisa que trago com muito orgulho, mas<br />

também com responsabilidade, saber falar em plural em<br />

vez de ter uma opinião fechada, saber representar essas<br />

pessoas que as vezes não se veem bem representadas por<br />

onde passam os meios de comunicação.<br />

C: Quando você escreve para as crianças, como deseja<br />

entrar na cabeça delas? Com que tipo de informação?<br />

F: Tento falar de assuntos que geralmente não são<br />

abordados, os livros infantis geralmente não abordam<br />

nada real, e quando fazem creio que eles menosprezam<br />

o saber da criança, então trago temas que geralmente são<br />

desconfortantes, mas necessários. Sempre penso que ao<br />

terminar o livro ela tenha que ter aprendido algo.<br />

C: É mais fácil instigar uma criança ou um adulto a<br />

ler? Como uma geração de leitores pode melhorar o senso<br />

crítico da população?


F: Mais fácil é criança mesmo, adulto é teimoso, tem<br />

pensamentos já concretos, mesmo que errados. Na criança<br />

você consegue dar a ideia de aventura, de se divertir e<br />

aprender ao mesmo tempo. A leitura melhora e cria o senso<br />

crítico, você toma atitudes mais pensadas, vai saber viver<br />

com decisões que lhe fazem sofrer menos na sua vida.<br />

C: O que é resistência pra você?<br />

F: Ficar firme em meio a tanto caos, saber que somos<br />

únicos e podemos sim fazer uma grande diferença<br />

na vida do outro, se nos importamos e decidimos também<br />

não desistir jamais.<br />

C: Como a literatura pode ser utilizada como ferramenta<br />

de resistência?<br />

F: Em todos os casos, sem informação não tomamos<br />

decisões sábias, e ai a vida nos machuca, com a leitura,<br />

você vai saber ser resistente a uma mídia massificante,<br />

mentirosa, estereotipada, vai saber se defender dessa<br />

grande mentira que nos vendem.<br />

C: Você é apresentado como um escritor da Literatura<br />

Marginal. Qual o significado disso para você?<br />

F: Poder falar sobre temas que são estigmas para a<br />

população, saber que temos uma responsabilidade com<br />

a periferia.<br />

C: Como você se sente em poder representar a periferia<br />

através de um olhar diferente daquele que é veiculado<br />

nas grandes mídias?<br />

F: Me sinto bem em não engrossar esse coro dos descontentes,<br />

onde só se vende morte em jornais, e medo em<br />

toda a programação ou jornal que você lê, eu não participo<br />

disso, sou livre na minha vida.<br />

C: A poesia pode tudo? Pode fazer revolução?<br />

F: Sim, o amor é mais forte que a dor, e mostrar o<br />

amor pela palavra, pela história do outro, isso é ajudar a<br />

mudar o mundo.<br />

Foto: Marcus Kawada /Arquivo Ferréz<br />

Obras<br />

Fortaleza da desilusão - 1997<br />

Capão pecado - 2000<br />

Manual prático do ódio - 2003<br />

Amanhecer esmeralda - 2005<br />

Ninguém é inocente em São Paulo - 2006<br />

Deus foi almoçar - 2011<br />

O pote mágico - 2012<br />

Os ricos também morrem - 20<strong>15</strong><br />

Acesse: http://www.ferrez.com.br/<br />

Texto: Cíntia Magela<br />

Foto: Hugo Coelho<br />

Arte: Paloma Ávila<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 35


Habitar


TexTO: peDrO eWers<br />

FOTO: rAquel esTevãO liMA<br />

ArTe: ChArles sAnTOs<br />

Cerco aos Coronéis<br />

Combater o oligopólio da midia é lutar por uma<br />

comunicação livre e plural.<br />

A Constituição Federal Brasileira determina que<br />

os canais de rádio e tv devem ser divididos em três sistemas<br />

de comunicação diferentes e de forma equilibrada:<br />

o sistema público, estatal e privado. O sistema público<br />

abrigaria os canais sem fins lucrativos, o estatal existiria<br />

para dar transparência e comunicar o que acontece no<br />

governo e parlamento, já o privado seria financiado por<br />

empresas que fazem comunicação a fim de obter lucro.<br />

Em teoria, os canais de rádio e televisão do Brasil são<br />

públicos e concedidos a terceiros. Devem ter a obrigação de<br />

veicular conteúdos culturais e educativos que expressem a<br />

pluralidade regional do país. Entretanto, são os políticos<br />

que detêm a maioria dessas concessões, criando, historicamente,<br />

um oligopólio da comunicação, uma estrutura<br />

de mercado caracterizada pelo alto grau de concentração,<br />

centralizado em um número pequeno de empresas. Segundo<br />

o site Donos da Mídia, que reúne dados públicos e<br />

informações sobre os conjuntos de meios da comunicação<br />

brasileiros, os políticos com participação direta em emissoras<br />

de rádio e TV representam 271 sócios ou diretores, que<br />

atuam em 324 veículos. Para a ex-coordenadora da Executiva<br />

Nacional dos Estudantes de Comunicação (ENE-<br />

COS), Mari Buent, “a diversidade cultural, em todos os<br />

seus aspectos, não encontra espaço nos grandes meios de<br />

comunicação de massa, as definições do setor continuam<br />

sendo tomadas em gabinetes, ouvindo apenas o interesse<br />

do empresariado”.<br />

Para tentar barrar o oligopólio da comunicação, existem<br />

organizações independentes e sem fins lucrativos. Os<br />

jornalistas dessas mídias trabalham de forma colaborativa.<br />

Essas organizações lutam pela democratização da comunicação<br />

e junto a algumas entidades como a Intervozes, Sindicados<br />

de Jornalistas Profissionais (FENAJ) e ENECOS,<br />

fazem linha de frente a campanha “Para expressar a liberdade”,<br />

de 2012, que tem como objetivo retirar a concentração<br />

das concessões públicas da comunicação das mãos de<br />

políticos e transferir o seu controle para a sociedade civil.<br />

Libertar a expressão<br />

Além dos danos políticos à sociedade, a concentração de<br />

poder midiático provoca redução de postos de trabalho e superexploração<br />

da mão-de-obra, gerando concorrência entre<br />

os próprios jornalistas. Nos últimos anos, trava-se no país<br />

uma batalha de suma importância: o oligopólio da mídia<br />

procura convencer a sociedade de que há, na democratização<br />

dos meios, uma ameaça à liberdade de imprensa. Mas<br />

o que acontece é exatamente o contrário: o Brasil e outros<br />

países da América Latina procuram ampliar e arejar os espaços<br />

midiáticos, o que resultaria na pluralização do setor.<br />

A Constituição Federal de 1988, assegura, no Art. 5º,<br />

a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica<br />

e de comunicação, independentemente de censura<br />

ou licença; uma forma de proteger a sociedade de opressão,<br />

sendo um elemento fundamental nos pilares de uma<br />

sociedade democrática. Entretanto, de acordo com a assessoria<br />

da FENAJ, no Brasil a liberdade de expressão “é<br />

algo que estamos muito longe de conquistar, se por ela<br />

entendemos a capacidade e possibilidade de se expressar<br />

livremente (e a respeito de todo e qualquer assunto) ao<br />

alcance de toda a sociedade, de toda a população, de todos<br />

os grupos sociais e étnicos, sem exceção”.<br />

A luta pela democratização dos meios de comunicação<br />

tornou-se uma bandeira central para os movimentos sociais<br />

e os partidos de esquerda que combatem as desigualdades<br />

e injustiças de no Brasil. Enquanto esse processo de<br />

democratização ainda não é consolidado, essas organizações<br />

independentes lutam pelos diversos movimentos sociais<br />

e grupos de minorias, promovendo uma organização<br />

social verdadeiramente democrática, permitindo o debate<br />

jornalístico e a quebra de um domínio tradicional dos<br />

meios de comunicação.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 37


Identidade<br />

Um novo<br />

quadro negro<br />

Em 1997, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística<br />

(IBGE) apenas 2,2% de pardos e 1,8% de negros, com idade entre 18 e 24<br />

anos, cursavam ou haviam concluído o ensino superior no Brasil. Os números<br />

alarmantes indicavam que algo precisava ser feito. A adoção de<br />

políticas de Ações Afirmativas, em benefício de pessoas pertencentes a<br />

grupos discriminados pela exclusão socioeconômica, entrou em pauta.<br />

Estava aberta a discussão sobre as cotas na universidade brasileira.<br />

Texto: Pamela Moraes<br />

Foto: Hugo Coelho<br />

Arte: Núbia Azevedo


As cotas raciais fazem parte de políticas de reserva de vaga, que teve início na década<br />

de 1960 nos Estados Unidos, com o intuito de diminuir a desigualdade entre brancos e<br />

negros. No Brasil, ganharam visibilidade em meados dos anos 2000, quando a Universidade<br />

de Brasília (UnB) aderiu a esse sistema. Mais de uma década após a pesquisa<br />

do IBGE de 1997, a pesquisa de 2011, do Instituto, indicou que o percentual de negros<br />

no ensino superior saltou para 35,8%. Segundo Nelson Inocêncio da Silva, professor<br />

e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB, o processo de cotas naquela<br />

universidade foi desencadeado a partir da reprovação, no final dos anos 1990,<br />

de um doutorando negro e homossexual sem justificativas plausíveis, com repercussão<br />

negativa para uma parcela expressiva da comunidade universitária. Em sintonia<br />

com o movimento negro, dois professores brancos do Departamento de Antropologia<br />

assumiram o desafio de formular uma proposta de políticas de inclusão de estudantes<br />

negros nos cursos de graduação, apoiados por um conjunto de docentes, discentes e<br />

técnicos da UnB. Eles acreditavam que a presença mais significativa de alunos negros<br />

representaria um modo eficaz de enfrentamento ao racismo no ensino superior. Foi<br />

um longo percurso, que levou anos, desde a formulação da proposta até a aprovação<br />

do projeto em 2003. O Sistema de cotas raciais começou a ser implantado no segundo<br />

semestre de 2004 com o objetivo de que ao final de uma década o corpo discente<br />

da universidade fosse composto pelo percentual mínimo de 20% de alunos negros.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 39


Inclusão tardia<br />

No início do ano 2000 não havia nas universidades<br />

brasileiras registros sobre a identidade<br />

racial ou de cor de seus alunos. A demanda por<br />

ações afirmativas para a educação superior começou<br />

a surgir, inaugurando as primeiras iniciativas,<br />

na forma de censos e de pesquisas por<br />

amostra, a fim de reparar tal deficiência. Essas<br />

medidas se espalharam pelo país, e hoje fazem<br />

parte da seleção da maioria das Universidades.<br />

Para o pedagogo e professor da Universidade Federal<br />

de Ouro Preto (UFOP), Adilson Pereira dos<br />

Santos, a ausência histórica de políticas públicas<br />

sociais de inclusão dos negros na sociedade, justificam<br />

a adoção de ações afirmativas. “O Sistema<br />

de Cotas é o resultado da luta do movimento<br />

social negro, que as reivindicou como uma medida<br />

de ‘reparação’ da dívida histórica do Brasil<br />

com o povo negro”, explica.<br />

No momento da pós-abolição não havia políticas<br />

institucionais de inclusão do negro nos<br />

círculos de exercício de direitos sociais e políticos.<br />

Problema que persiste, de muitas maneiras,<br />

na sociedade brasileira. Para o estudante e cotista<br />

da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Danilo<br />

Araújo, a política de cotas, enquanto uma<br />

das modalidades de ações afirmativas promovidas<br />

pelo governo federal tem relevância fundamental<br />

para a transformação deste cenário e<br />

tem o papel de incluir o negro e de trazê-lo para<br />

o exercício deste direito social que é a educação.<br />

“A partir da implementação das políticas de cotas<br />

nas universidades, o que se intenta é que o<br />

acesso dos negros às cadeiras universitárias seja<br />

facilitado em resposta às determinantes históricas<br />

que o impediram de reunir as mesmas condições<br />

dos brancos para chegar a elas”, concluiu<br />

o estudante.<br />

Se por um lado as medidas foram colocadas<br />

em prática pelo governo, cabe a universidade,<br />

seja ela pública ou privada, o papel predominante<br />

de inclusão, e segundo Adilson, ela não deve se<br />

limitar à garantia do simples acesso dos negros,<br />

mas deve comprometer-se com a permanência e<br />

o seu sucesso acadêmico. “A universidade deve<br />

se reconhecer como produtora e reprodutora da<br />

exclusão, devendo posicionar-se criticamente e<br />

atuar na perspectiva da inclusão”, afirma o pedagogo.<br />

Adilson acrescenta também que devem<br />

ser incorporados na grade acadêmica aspectos<br />

da história e cultura afro-brasileira e africana,<br />

historicamente negligenciados nos currículos<br />

dos diversos cursos.<br />

Controvérsias e ganhos<br />

Com o efeito causado pelas cotas, ouviu-se<br />

muito sobre o mérito de cada aluno, seja qual for<br />

a definição de raça, como critério para a obtenção<br />

de vaga na universidade. No entanto, como


explica o professor Nelson, da UnB, o mérito só<br />

pode servir como parâmetro quando, em uma<br />

sociedade, todos os indivíduos partilhem das<br />

mesmas oportunidades, o que ainda não acontece<br />

no Brasil. “Somos desiguais quando tratamos<br />

de questões étnico-raciais, quando lidamos<br />

com questões de gênero, quando falamos de<br />

classe social entre outras iniquidades”, salienta.<br />

O estudante Danilo, da UFV, reforça essa ideia,<br />

apontando para a inclusão como efeito de redução<br />

dessa desigualdade: “como a universidade é<br />

no Brasil um dos principais meios de ascensão<br />

social, na medida em que os sujeitos negros forem<br />

incluídos neste espaço, a sua participação<br />

em outros setores da sociedade brasileira poderá<br />

ser transformada, alcançando-se mais espaço<br />

e representação e combatendo cada vez mais a<br />

imposição do racismo sobre sua vida cotidiana”.<br />

Walliston dos Santos Fernandes é Engenheiro<br />

Civil formado na UFOP, concluiu o mestrado<br />

e hoje é o único negro na sua turma de doutorado<br />

na Universidade Federal de Minas Gerais<br />

(UFMG). Walliston não usou o Sistema de Cotas,<br />

pois inicialmente era contra esse sistema e acredita<br />

que as pessoas precisam saber a hora de usar<br />

quaisquer benefícios, sem tirar do mais necessitado.<br />

“Hoje percebi que ele é necessário até que<br />

uma quantidade considerável de negros alcance<br />

um nível de estudos suficiente ou até que uma<br />

parcela significativa de negros termine o ensino<br />

superior, pelo menos”, avalia o engenheiro. O<br />

número de negros que terminam o ensino superior<br />

e se dedicam ao mestrado e doutorado ainda<br />

é baixo. Para que esse índice cresça, Walliston<br />

acredita que é preciso ter incentivo à educação<br />

e políticas de cotas após a graduação. Segundo<br />

a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade<br />

Racial do Governo Federal (SEPIR) até o<br />

final do primeiro semestre de 20<strong>15</strong> haverá uma<br />

proposta de cotas para estudantes negros na pósgraduação,<br />

garantindo não apenas o ingresso,<br />

mas a diversidade de temas pesquisados. Para o<br />

professor Nelson, o fato da ausência de docentes<br />

negros ter sido tratada de forma natural por décadas,<br />

permitiu que a categoria dos docentes nas<br />

universidades brasileiras se acostumasse com tamanha<br />

exclusão.<br />

Onze anos após a implantação, o Sistema<br />

de Cotas na universidade brasileira logrou êxito,<br />

pois, segundo o professor Nelson, garantiu<br />

o acesso de estudantes negros, jovens em sua<br />

grande maioria, ao ensino superior. A iniciativa<br />

da UnB serviu como estímulo para as demais<br />

universidades federais e estaduais, habitualmente<br />

responsáveis pela formação das elites culturais<br />

desse país. “Até o fim desta segunda década do<br />

século XXI acredito que colheremos com maior<br />

intensidade os frutos dos investimentos feitos<br />

desde 2004. Obviamente que estamos apenas começando,”<br />

completa.<br />

Foto: Thiago Sabino<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>15</strong> 41


Opinião<br />

Porque<br />

Menina não fala palavrão.<br />

Menino não chora. Negro não sofre<br />

preconceito. Grafite não é arte.<br />

Funk não é música. Você NÃO<br />

pode. Você NÃO deve. Você NÃO é...<br />

Do momento em que nascemos,<br />

e durante toda a nossa existência no<br />

mundo, somos cerceados pelo que podemos<br />

e devemos, de acordo com a<br />

noção que outras pessoas tem de qual<br />

seria nosso lugar, nosso papel social,<br />

determinado pelo gênero, etnia, classe,<br />

sexualidade e uma infinidade de<br />

outros fatores. Os NÃOs se acumulam<br />

ao longo de nossa infância e nos acompanham<br />

por toda a vida.<br />

Aprendemos que desobedecer os<br />

padrões é errado, feio e algumas vezes<br />

até pecaminoso.<br />

O NÃO é muro, barreira, porta que<br />

se fecha? Seria permanente, limitador?<br />

Ou seria ele o berço da resistência? Resistir<br />

é uma outra forma de dizer não.<br />

Dizer não aos padrões pré-estabelecidos,<br />

que nos enquadram nos papéis<br />

sociais, aos pré-conceitos, ao machismo,<br />

à homofobia, ao racismo.<br />

A resistência nasce daqueles que<br />

tem a coragem e a disposição para enfrentar<br />

os NÃOs da vida, reverter os<br />

conceitos e compreender que longe de<br />

nos limitar, eles nos impulsionam a<br />

pensar e agir diferente, encontrar outros<br />

caminhos, outras oportunidades.<br />

Em uma sociedade tão cheia de<br />

negações, há aqueles que lutam para<br />

reverter os padrões e se libertar das<br />

amarras que nos são impostas e há<br />

aqueles que param, se aquietam, se escondem,<br />

com medo da palavra de três<br />

letras que carrega consigo tanto peso.<br />

Para esses, o NÃO é o fim. Para os que<br />

resistem é SIM.<br />

Texto: Luiza Mascari<br />

Arte: Elis Regina


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