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Revista Curinga Edição 23

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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<strong>Revista</strong> Laboratório | Jornalismo | UFOP<br />

Dezembro de 2017 | Ano VII <strong>23</strong>


<strong>Curinga</strong> é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II.<br />

<strong>Revista</strong> produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da UFOP.<br />

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA).<br />

Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO).<br />

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).<br />

Professores Responsáveis<br />

Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem)<br />

Flávio Valle (Fotografia)<br />

Michele Tavares - 0001195/SE (Planejamento Visual)<br />

Editor de Texto<br />

Luiz Loureiro<br />

Editor de Arte<br />

Carlos Paranhos<br />

Editor de Fotografia<br />

Bruno Andrade<br />

Editoras de Multimídia<br />

Glenda Louise<br />

Mariana Moraes<br />

Mariana Storto<br />

Revisoras<br />

Ingrid Mitsue<br />

Letícia Conde<br />

REPÓRTERES<br />

Carmem Guimarães<br />

Caroline Borges<br />

Fábio Souza<br />

Francielle de Souza<br />

Igor Mattos<br />

Letícia Caldeira<br />

Marianna França<br />

Mariani Barbosa<br />

Mayara Portugal<br />

Thiago Henrique<br />

Wigde Arcangelo<br />

Expediente<br />

FOTÓGRAFOS<br />

DIAGRAMADORES<br />

Gabriel Conbê<br />

Guilherme Oliveira<br />

Íris Jesus<br />

João Vitor Nunes<br />

Joyce Fonseca<br />

Lui Pereira<br />

Octávio Zumerle<br />

Rafaela Rissoli<br />

Rhaquel Rocha<br />

Amanda dos Santos Francisco<br />

Elmo de Oliveira<br />

Evelin Ramos<br />

Isabela Resende<br />

Jasmine Jacyara<br />

Lígia Caires<br />

Luiza Boareto<br />

Mariana Storto<br />

Mayron Brito<br />

Melissa Reis<br />

Nathalya Saiki<br />

Pedro Menegheti<br />

Monitoras:<br />

Ana Paula Bitencourt<br />

Júlia Rocha<br />

Casting da capa:<br />

Hannah Carvalho<br />

Matheus Efgen<br />

Endereço:<br />

Rua do Catete, 166 - Centro<br />

35420-000, Mariana - MG<br />

Impressão:<br />

MJR EDITORA GRÁFICA<br />

Rua Carlos Pinheiro Chagas , 138<br />

Ressaca, CEP 32.113-460- Contagem/MG<br />

Tel.: (31) 3557-5777


Ode à vida<br />

6<br />

Ventre artificial<br />

Corpo Negro, Casa Divina<br />

Rota Indefinida<br />

Universo em Construção<br />

Em busca de novas memórias<br />

Um Brasil de quem?<br />

Endereço de Todas<br />

Rotina silenciosa<br />

Aos cuidados do outro<br />

Dois tempos<br />

34<br />

Sentidos do lar<br />

8<br />

12<br />

36<br />

Ensaio: Pode Entrar<br />

20<br />

24<br />

28<br />

40<br />

10<br />

14<br />

30<br />

16<br />

Sumário


Editorial<br />

Desafio! Não há outra palavra para caracterizar a tarefa de<br />

elaborar uma edição baseada no vocábulo “lar”. Vocábulo sim,<br />

pois não há um conceito único que o traduza. As facetas são<br />

tantas, e tão diversas... Defini-las seria como tentar responder à<br />

pergunta mais fundamental da Humanidade: “De onde viemos,<br />

onde estamos, para onde vamos?”<br />

E aí... a eureca acontece! Por que não juntarmos isso? Aproveitando<br />

as denominações das editorias da <strong>Curinga</strong>, qual seria o resultado<br />

da associação com o conceito mais básico de lar, ou seja, a<br />

casa? Ou com o leite que, puro ou com café, é utilizado em tantos<br />

lares nas manhãs ou tardes de convivência à mesa.<br />

Surge daí a simbologia de “Eu no mundo”: o leite no<br />

bule, significando o recipiente, o invólucro, a mãe Terra<br />

que nos abriga nesse oásis do universo. Coube aí a reflexão<br />

a respeito de nossa relação com esse lar, submetido a brutais<br />

queimadas nos meses de clima seco. Afinal, quando<br />

aprenderemos a cuidar e viver harmonicamente com a natureza?<br />

Mas, antes mesmo disso, o que nos envolve remete<br />

ao lar uterino, ao aconchego do qual somos retirados e,<br />

como reparação, recebemos um espaço próprio, apartado do<br />

ventre materno, mas artificialmente construído.<br />

Em algumas ocasiões, porém, o lar não é uno, mas múltiplo.<br />

Por escolha ou imposição, o lar é algo impalpável e incerto, sujeito<br />

a circunstâncias que provocam desconfortos à mente e ao<br />

corpo. Mas esse mesmo corpo pode também transmutar-se em<br />

lar, ser a casa de divindades e manifestações, organismo mantenedor<br />

de coisas sagradas. Assim como pode exigir a materialidade<br />

de um abrigo, uma construção, uma casa. Um local palpável,<br />

concreto, muitas vezes edificado por quem faz disso missão, mas<br />

só consegue dedicar-se a erigir seu próprio lar em horas poucas,<br />

quando deveria descansar de sua dura labuta. Nada, contudo,<br />

pode descrever a vã esperança de recuperar seu antigo espaço,<br />

seu cantinho, brutalmente destruído pela ganância e falta de<br />

respeito humano. Não há mais mesa para a reunião familiar.<br />

Como simbolismo da “Travessia”, o leite vertido do bule à<br />

xícara, remeteu-nos à discussão de um país que, tendo atravessado<br />

mais de 500 anos, vem negando aos proprietários originais<br />

a condição de chamá-lo de lar. Assim como, por analogia,<br />

significa a luta daqueles que por intolerância, são expulsos<br />

de seus lares e da convivência familiar.<br />

Chegamos, enfim, ao “Mundo em mim”, a determinadas<br />

situações que nos são impostas, ao leite derramado, às dores<br />

do mundo. À violência, ao descobrimento de nossas incapacidades<br />

e à submissão. Mas também recuperamos nossa resiliência,<br />

nosso poder de adaptação e superação frente às situações mais<br />

desfavoráveis. A despeito de tudo, temos a capacidade de transformar<br />

em lar os locais onde estamos e para onde vamos.<br />

É isso! Aqui está nossa casa. Esteja à vontade.<br />

Pode entrar.


Eu no mundo


Sensação<br />

Ode à vida<br />

Em meio à devastaçao da natureza, a Biofilia<br />

propõe um resgate da nossa relaçào com o planeta<br />

Texto: Caroline Borges<br />

Foto: Octávio Abrão<br />

Arte: Melissa Reis<br />

Modelo: Gabriela Cornélio<br />

O mês de setembro de 2017 foi registrado pelo<br />

Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)<br />

como o mês recordista de focos de incêndios desde<br />

o início das atividades do Instituto, em 1999. A<br />

partir de 2001, o órgão possui monitoramento por<br />

satélite do território brasileiro e mantém registros<br />

da área queimada. Em setembro deste ano, o fogo<br />

consumiu uma extensão de 140.918 km², enquanto<br />

no mesmo mês de 2001, o território correspondeu a<br />

79.589 km². Esses dados equivalem aos territórios<br />

da Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica,<br />

Pampa e Pantanal juntos e dão uma visão geral de<br />

um problema que se encontra ao lado.<br />

O ano de 2017, além de possuir o mês com a<br />

maior área queimada já registrada, foi também<br />

palco da maior queimada da história do Parque<br />

Estadual da Chapada dos Veadeiros, no centrooeste<br />

de Goiás. Segundo o Instituto Chico Mendes<br />

de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio,<br />

que gerencia a unidade de conservação, o que<br />

aconteceu na reserva foi criminoso. A Chapada<br />

dos Veadeiros foi tombada em 2001, pela Unesco,<br />

como Patrimônio Natural da Humanidade e, 16<br />

anos depois, teve sua área aumentada para 240 mil<br />

hectares, quase quatro vezes mais do que quando<br />

foi reconhecida com o legado.<br />

Segundo o historiador ambiental Arthur Soffiati,<br />

doutor em História Social pela Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro(UFRJ), atitudes como incêndios<br />

criminosos, são reflexos de uma concepção do<br />

homem, em relação a natureza, que vem de um<br />

processo histórico que começou no século XI, na<br />

Europa Ocidental. O professor usa a história de<br />

Gilgamesh, uma das mais antigas da humanidade,<br />

datada do século VII A.C., como exemplo. “Até<br />

então, a natureza era protegida por uma aura de<br />

sacralidade. Não que ela fosse intocada. Contudo,<br />

os excessos eram punidos pelas entidades<br />

sagradas protetoras. A epopeia de Gilgamesh, da<br />

Mesopotâmia, ilustra essa proteção. Gilgamesh<br />

foi castigado pelos deuses por ter destruído uma<br />

floresta e matado seu protetor”, conta Soffiati. A<br />

economia mercantilista - voltada para o mercado,<br />

visando o lucro - que começou a se constituir desde<br />

então, foi responsável pela “destruição da aura<br />

protetora da natureza e a transformou em coisa<br />

uma a ser explorada sem limites”.<br />

Nas Américas, a economia de mercado chegou<br />

com os europeus, assim como o cristianismo. A<br />

ocupação do território americano é caracterizada<br />

pela intolerância religiosa. O historiador conta que<br />

os povos pré-colombianos viam a natureza como<br />

uma coisa sagrada, protegida por entidades. “Todas<br />

as sociedades caçadoras, pescadoras e coletoras<br />

crêem em divindades protetoras da natureza porque<br />

dependem dela. Pode parecer um paradoxo que elas<br />

cacem e pesquem. Mas, os limites são respeitados.<br />

Nas sociedades civilizadas, as divindades protetoras<br />

da natureza começam a perder força”.


Para Sofiatti, o sistema econômico vigente<br />

possui papel fundamental na compreensão de como<br />

esses limites são traçados atualmente. Para ele, “o<br />

capitalismo dessacraliza a natureza e a transforma<br />

em coisa a ser explorada. Os rinocerontes são<br />

abatidos como objetos só para obtenção de seus<br />

chifres, que valem muito como mercadoria, pois se<br />

acredita que têm poderes afrodisíacos”.<br />

Solução?<br />

A relação do homem com a natureza é um fenômeno<br />

histórico. Uma das linhas de pensamento<br />

que aborda essa relação é a biofilia. Biofilia vem do<br />

grego bios (vida) e philia (afeição, amor) O termo<br />

foi usado pela primeira vez pelo ecólogo Edward<br />

O. Wilson, em 1984, em seu livro de mesmo nome.<br />

Segundo o biólogo e professor André Talvani, diretor<br />

do Instituto de Ciências Exatas e Biológicas da<br />

Universidade Federal de Ouro Preto, a biofilia nos<br />

remete a uma ideia quase instintiva, na qual os seres<br />

humanos se sentem impelidos a favorecer/interessar<br />

pelos fenômenos da vida, a se aproximarem<br />

e serem afetados diretamente por eles.<br />

Diante da depredação crescente da natureza, o<br />

incentivo à biofilia desde a primeira fase humana, é<br />

uma maneira de estimular a conscientização humana<br />

sobre a importância da preservação do ambiente<br />

natural e as diferentes espécies que nele vivem.<br />

Para Talvani, a preservação do natural é comparável<br />

à ética. Segundo o professor, a ética não deveria ser<br />

exigida, mas coexistir com o ser humano. Ao longo<br />

da jornada evolutiva, o homem descobriu desvios<br />

de conduta que traziam benefícios ou facilitações<br />

e a ética passou a ser negligenciada pela humanidade.<br />

Foram criadas leis e ideologias de medo/punição<br />

numa tentativa de controlar o caos social e a<br />

conduta moral da humanidade. “A biofilia acompanha<br />

a história da evolução humana desde nossos<br />

ancestrais, que mantinham uma interação próxima<br />

com a agricultura e animais para sua sobrevivência.<br />

Não precisaríamos ser lembrados que preservar o<br />

meio ambiente e respeitar a vida das demais espécies<br />

é algo intrínseco ao nosso próprio mecanismo<br />

de sobrevivência.”, observa o biólogo.<br />

Com uma visão imediata, de “quem só vive<br />

uma vez”, a humanidade não pensa no futuro. O<br />

historiador ambiental Arthur Soffiati compara a<br />

colisão do homem com a natureza: “É como um<br />

motorista correndo a 120 quilômetros até passar<br />

por uma placa avisando que existe uma ponte<br />

caída a cinco quilômetros. Se ele mantém a mesma<br />

aceleração, cairá no precipício. Se acelerar mais,<br />

a queda ocorrerá com mais rapidez. Se afunda o<br />

pé no freio repentinamente, o carro capotará. O<br />

mais ajuizado será frear o carro lentamente nos<br />

cinco quilômetros que restam e mudar de rumo.”<br />

É o que manda o juízo.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong><br />

7


Habitar<br />

Ventre<br />

artificial<br />

O nascimento rompe a relação do<br />

bebê com o ventre materno.<br />

Será possível compensar<br />

esta primeira morada?<br />

Texto: Letícia Caldeira<br />

Foto: Rhaquel Rocha<br />

Arte: Lígia Caires<br />

Nosso primeiro lar é completo, calmo, aconchegante. Não tem teto,<br />

não tem chão, não tem contato com o ar. Dentro desta casa arquitetada<br />

e projetada, o fio gerador de energia é o cordão umbilical. É a principal<br />

nutrição da criança, segundo o ginecologista e obstetra Paulo Marchetti.<br />

“Ele é a grande ligação entre o útero e a criança, o que media tudo. As<br />

reações químicas, nutrientes, descargas energéticas. Tudo o que vai<br />

acontecer de bom e de ruim será através do cordão”.<br />

O desenvolvimento da criança dentro da barriga é instintivo e,<br />

embora muitos acreditem na conexão mãe-filho através do toque e da<br />

voz materna, não há comprovação científica da sensação direta percebida<br />

pelo bebê. “Psiquicamente, não foi comprovado que essas sensações sejam<br />

proporcionais. Claro, uma gravidez mentalmente sadia faz com que a ‘casa’<br />

da criança seja melhor”, afirma Marchetti. Luana Cerceau, grávida do<br />

primeiro filho, acredita que essa ligação acontecerá de maneira mais sólida<br />

depois do nascimento. “Já existe, mas acho que a conexão vai vir depois<br />

que nascer, depois de ver a pessoa ali completa”.<br />

A adaptação é o termo comum entre mãe e filho durante a gravidez,<br />

já que ambos passam por processos de adequação de seus organismos.<br />

O ajustamento também ocorre, primordialmente, após o nascimento. De<br />

acordo com os estudos do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods<br />

Winnicott, a mãe tem papel fundamental na adaptação do bebê à realidade<br />

e no seu desenvolvimento emocional. A partir da mediação materna, a<br />

criança passa a conhecer e identificar o mundo, ganha seu próprio espaço<br />

e cresce com referências externas necessárias.


Espaço potencial da criança<br />

A cultura do quarto do bebê começa com a<br />

industrialização, a partir da mudança na construção<br />

das edificações e costumes. O berço, de certa forma,<br />

sempre esteve presente - demarcando, assim, a<br />

individualização da criança desde o seu nascimento. A<br />

professora e pesquisadora Elaine Pedreira Rabinovich<br />

explica que a cultura do “espaço potencial” do bebê<br />

está ligado à transição entre culturas coletivistas para<br />

individualistas. “O seu começo está na emergência<br />

de sociedades coletivizadas para aquela em que o<br />

indivíduo está no centro. Hoje estamos vivendo em uma<br />

sociedade que é fundamentalmente individualizada”.<br />

O berço é um marco separatório entre mãe-filho,<br />

assim como o desmame e o dormir separado. Para<br />

o adulto suportar ver seu bebê sozinho, são criados<br />

objetos transicionais como bichinhos de pelúcia,<br />

enfeites e o cantinho próprio. Para a criança, esse<br />

ambiente é utilizado como forma de suprir suas<br />

necessidades e amenizar desconfortos - a transição<br />

entre útero e mundo exterior traz instabilidades e<br />

carências ao recém-nascido, fazendo necessário uma<br />

continuidade e estabilidade em seu cuidado.<br />

A sociedade do consumo exerce grande impacto<br />

na cultura do espaço potencial da criança. “O<br />

cantinho do bebê está cada vez mais tecnológico e<br />

computadorizado. A venda de produtos especializados<br />

foi a que mais cresceu no Brasil nos últimos anos. Tudo<br />

em crise, menos isto. Existem chupetas que permitem<br />

serem vistas à noite, baby monitors, gadgets para<br />

crianças. Vejo muitos bebês se auto-complementando<br />

com celulares, mas existe também uma consciência<br />

culposa dos pais que sentem que não deveriam estar<br />

sendo substituídos por objetos”, pontua Rabinovich.<br />

Para a pesquisadora, a cultura do consumo não<br />

permite à criança elaborar seus lutos e pequenas<br />

perdas, já que ela é invadida por produtos que estão<br />

sempre se renovando. “A artificialização do ambiente<br />

pode levar a uma artificialização de estruturas básicas.<br />

Nada substitui o contato humano, e o que os pais<br />

tentam suprir ao exagerar neste cantinho é a sua<br />

própria falta”, completa.<br />

O quarto do bebê é uma evidência do carinho e<br />

atenção dos pais, mas também de suas fragilidades.<br />

Como explica Rabinovich, a nossa cultura induz os pais<br />

a pensarem que a felicidade de seus filhos depende do<br />

consumo, criando neles, e nos pais, um “vazio” que<br />

nunca é preenchido. “Tudo isto visa substituir a mãe e<br />

o útero em sua ausência, mas a perda deste ambiente<br />

de segurança e conforto é irrevogável”.<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>23</strong> 17 9


Identidade<br />

Corpo<br />

Negro,<br />

Casa<br />

Divina<br />

Braços levantados em direção ao céu.<br />

Troncos prostrados como se carregassem todo<br />

o peso do mundo nas costas. Um idioma que<br />

foge do entendimento daqueles de fora. Vozes<br />

produzindo sons indecifráveis que se somam<br />

ao barulho das palmas maximizando o<br />

volume do ruído. Corpos em êxtase.<br />

Os bairros Centro e Barro Preto, Mariana,<br />

Minas Gerais, abrigam um templo pentecostal<br />

e uma casa espírita umbandista, locais onde<br />

a cena se repete. A médium Maria Marta<br />

Ramos, responsável pela Casa de Umbanda Mãe<br />

Maria, incorpora entidades durante as sessões.<br />

“É como se você saísse do corpo, a gente empresta<br />

o corpo e a mente para uma entidade”, diz.<br />

Já o pastor Alexsandro Souza, da Igreja<br />

Missão Evangélica do Brasil, em Mariana,<br />

diz que os fiéis são moradas do Espírito<br />

Santo, mas para que ele aja é preciso que<br />

ocorra arrependimento do pecado. Dessa<br />

forma, os membros podem experimentar<br />

a manifestação da divindade, o que,<br />

segundo ele, é algo que não é entendido no<br />

âmbito da razão. “É um sentimento, uma<br />

emoção que não se sabe explicar”.<br />

Apesar das diferenças entre o credo<br />

desses dois universos devocionais, essas<br />

crenças compartilham o entendimento<br />

que o corpo humano é espaço, além<br />

de um amontoado de carne e ossos. É<br />

templo de entidades espirituais. No<br />

Brasil, esses lugares sagrados possuem<br />

uma característica em comum: a maioria<br />

deles carregam a cor negra em suas<br />

paredes. Em 2010, o pentecostalismo<br />

possuía 57,4% dos seus membros de<br />

cor preta ou parda, segundo o Censo<br />

IBGE. Superando, inclusive, os 51,9%<br />

do candomblé e da umbanda.<br />

O pentecostalismo surgiu nos Estados<br />

Unidos com a pastora Jennie Evans Moore<br />

Seymour e o pastor William Seymour,<br />

descendentes de escravos. Em seu livro<br />

A Religião Mais Negra do Brasil, o teólogo<br />

e militante negro Marco Davi de Oliveira<br />

defende que ao chegar ao país a corrente<br />

teológica pentecostal incorporou novos<br />

elementos da cultura brasileira. Isso fez<br />

com que esse segmento se propagasse por<br />

camadas mais pobres da população.<br />

Texto: Wigde Arcangelo<br />

Foto: Rafaela Rissoli<br />

Arte: Amanda dos Santos Francisco


Resistência pela fé<br />

Erisvaldo Pereira dos Santos, professor do<br />

Departamento de Educação da Universidade<br />

Federal de Ouro Preto (UFOP), acredita que<br />

há uma semelhança entre as performances das<br />

celebrações do pentecostalismo e das religiões<br />

de matrizes africanas. “Esse foi o processo pelo<br />

qual se deu a aproximação das classes populares<br />

nessas igrejas, o fato de terem um tipo de<br />

culto e uma liturgia que mais afeta a relação<br />

com a corporeidade das pessoas”, afirma o<br />

professor e também Babalorixá no Terreiro de<br />

Candomblé em Contagem.<br />

A historiadora Débora Armelin<br />

Ferreira defende que os negros usaram<br />

suas próprias peles para manterem<br />

vivas suas culturas, apesar da tentativa<br />

do dominador europeu de apagar a<br />

tradição africana. Para ela, no período da<br />

escravidão, “o corpo torna-se possuidor<br />

de valores financeiros, e foi através da<br />

expressão de suas tradições culturais que<br />

eles ‘resistiram’ à escravidão capitalista,<br />

tentando romper este conceito de serem<br />

apenas bens móveis”, escreve em O<br />

Corpo Como Local De Discurso: artistas<br />

mulheres em África, texto de 2012.<br />

A religião e o sincretismo religioso<br />

foram uma forma de se ligarem com<br />

suas origens. O que faz acender hoje o<br />

debate sobre o que seria uma religião<br />

tradicionalmente negra. Para o professor<br />

Erisvaldo, a pessoa negra deve possuir<br />

autonomia para decidir o local em<br />

que se sente mais confortável. “O<br />

sujeito tem que avaliar não em cima de<br />

uma pressão política ou religiosa, mas<br />

tem que perceber o que há de força capaz<br />

de potencializar sua vitalidade”, afirma.<br />

Agdo Mariano é médium da Casa<br />

de Umbanda Mãe Maria e foi nessa<br />

religião que se sentiu preenchido. “A<br />

partir do momento que coloco minha<br />

roupa e a minha guia, penso que<br />

os meus problemas da porta pra dentro<br />

sumiram. Eu me sinto realizado, foi onde<br />

eu me encontrei”, afirma.<br />

No entanto, ao contrário dos casarões<br />

históricos que são protegidos por leis que,<br />

geralmente, são obedecidas, o corpo negro<br />

é visto como lugar abandonado, passível<br />

de violação. Wall Moraes, militante<br />

negra feminista, professora e pastora<br />

da Igreja Assembleia de Deus Liberdade<br />

e Vida do Distrito Federal, defende que<br />

“o cristianismo nasceu negro. O que<br />

aconteceu foi que as brancas europeias e<br />

os brancos europeus ocuparam os espaços<br />

de poder, detinham o capital às custas da<br />

escravização das africanas e dos africanos e<br />

impuseram uma história e cultura branca em<br />

todos os setores de atividades da sociedade<br />

civil”. Até mesmo na religião, ela conta que<br />

seus avós eram obrigados a se sentarem nos<br />

últimos bancos da igreja que iam por causa<br />

de suas etnias, “tudo relacionado a Deus é<br />

branco e relacionado ao Diabo é negro”, diz.<br />

Intolerância<br />

O médium Marcelo Ramos hoje<br />

comanda o terreiro de umbanda de<br />

Mariana junto com a mãe Maria Marta,<br />

mas carrega com ele uma lembrança<br />

negativa da escola. Ele estava em<br />

aula quando a professora perguntou<br />

sua religião. Ao responder que era<br />

católico e espírita, ele diz ter ouvido<br />

de um colega de classe: “Já que você é<br />

macumbeiro eu nunca irei na sua casa e<br />

nem irei comer nada na sua casa”. Tal<br />

desfeita foi seguida por uma cusparada.<br />

Racismo e intolerância religiosa estão<br />

intimamente ligados e, para combater esse<br />

problema, o professor Erisvaldo entende<br />

que a educação é uma saída. “Setores<br />

da educação se recusaram a entender<br />

a religião como fenômeno da nossa<br />

sociabilidade a escola precisa conversar<br />

com esse segmento e formar sujeitos<br />

para uma convivência mais amistosa,<br />

verdadeiramente solidária nas relações”.<br />

É entre essas questões que o<br />

corpo negro ressignifica o seu espaço,<br />

abandonando o lugar de marginalizado<br />

para se transformar em lares de<br />

divindades. No pentecostalismo e<br />

nas religiões de matrizes africanas,<br />

esses corpos são livres, pelo menos<br />

no momento em que o espiritual se<br />

manifesta em suas vidas.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong> 11


Alternativa<br />

Sada Maitreya, deixou<br />

seu trabalho, e dedicindo<br />

viajar em busca<br />

de novas experiências<br />

sensoriais e culturas.<br />

Rota Indefinida<br />

Texto: Thiago Henrique<br />

Foto: Guilherme<br />

Arte: Elmo de Oliveira Alves<br />

Viajantes sem destino fazem dos caminhos seus lares<br />

Difícil dizer o que nos motiva a caminhar. Algumas<br />

pessoas saem de seu lugar pela sobrevivência, outras<br />

pela inadequação, para conhecer novas culturas,<br />

aventurar-se ou até mesmo são obrigadas pelo trabalho.<br />

Os primeiros povos nômades, pessoas que<br />

não tem uma habitação fixa, deslocavam-se<br />

constantemente à procura de alimentos, coletando<br />

a vegetação natural e procurando novas pastagens<br />

para o gado, para escapar de um ambiente inóspito,<br />

ou mesmo pelo desacerto ao lugar de onde estavam.<br />

Muitos povos estabeleceram-se como nômades,<br />

entre eles os Beduínos, árabes que vivem em movimento<br />

pelo norte da África e o Oriente Médio. Os<br />

Ciganos, originários da Índia, dividem-se em clãs<br />

pelo globo. Porém, com o desenvolvimento da agricultura,<br />

o estilo de vida se modificou e a vida se<br />

fixou em um único lugar.<br />

A geógrafa Alana Roos afirma que “os povos<br />

nômades foram os primeiros a desenvolverem uma<br />

técnica primitiva de agricultura, visto que eles descobriram<br />

que as sementes das frutas que colhiam<br />

geravam novas fontes de alimentos, com isso os<br />

primeiros sinais da agricultura se estabeleciam.”<br />

Com esse aparato, o deslocamento constante deixa<br />

de ser questão de sobrevivência e passa a ser um<br />

fator cultural ou de resistência.<br />

Contracultura<br />

A vida na estrada não está sempre ligada<br />

à sobrevivência. Em alguns momentos, viajar<br />

sem ter onde ficar, sem se preocupar com as<br />

demandas da sociedade foi um símbolo de<br />

resistência e de não aceitação do sistema vigente.<br />

Foi no século XX que essa prática tornouse<br />

um elemento comum de contracultura.<br />

Os beatniks, grupo de escritores e poetas<br />

nômades que viviam viajando de carro pelo<br />

Estados Unidos na década de 1950, são um<br />

marco desse movimento cultural.<br />

Ainda na literatura, os livros de Jack London,<br />

escritor americano do século XX, principalmente<br />

“O Grito da Selva”, influenciaram jovens a<br />

abandonar o conforto do lar e viver aventuras. Os<br />

hippies, principais representantes da contracultura<br />

nômade, eram uma comunidade que buscava<br />

romper com os valores tradicionais da sociedade e<br />

viver mais próxima à natureza.<br />

Apesar de beber dessa fonte, Felipe Augusto, ou<br />

como prefere ser chamado, Sada Maitreya, não se<br />

adequa totalmente a esses movimentos. Saiu de<br />

casa aos 24 anos, em 2014, quando, cansado de<br />

trabalhar em um bar que compartilhava com os<br />

amigos, decidiu mudar de vida após se questionar:


“O que a gente tá fazendo aqui nos grandes centros?<br />

Qual nosso papel aqui?”<br />

Em Santa Catarina, seu primeiro destino<br />

trabalhando como tatuador e body piercing, teve<br />

contato com o malabares, atividade que seria<br />

fundamental para sua vida na estrada: “O sinal, o<br />

semáforo, a faixa de pedestres, é um palco. É ali<br />

que todas as pessoas passam, que tudo acontece.”<br />

Sada é adepto das raves psicodélicas, festas com<br />

música eletrônicas que normalmente são realizadas<br />

ao ar livre, em locais que a natureza proporciona<br />

experiências sensoriais. Sada viaja o país indo de<br />

um festival ao outro. No Brasil, a maior e mais<br />

conhecida é a Universo Paralelo, que acontece<br />

na Bahia a cada dois anos durante o réveillon. O<br />

festival existe há 15 anos e dura uma semana.<br />

Além do Universo Paralelo, Sada destaca o<br />

Festival Ressonar, que há 10 anos leva música<br />

eletrônica à chapada Diamantina durante a<br />

primeira lua cheia do ano e afirma: “Eu gosto disso,<br />

de ir para as cidades e conhecer a cultura daquele<br />

lugar, o que as pessoas dali fazem.”<br />

Academia<br />

Com outra forma de ver o mundo, através da<br />

academia, Paolo Cetrangolo, estudante italiano<br />

de letras, veio para o Brasil por um programa de<br />

intercâmbio da Universidade de Napoli. Morando<br />

na república Quitandinha, em Ouro Preto, Paolo<br />

conheceu o que chama de sua segunda família,<br />

as pessoas que o fazem sentir em casa, mesmo<br />

estando tão longe de sua cidade natal.<br />

O intercâmbio é uma prática que proporciona ao<br />

estudante a possibilidade de compreender melhor<br />

outras culturas, o que Paolo acha fundamental<br />

para um estudante das línguas.<br />

A instituição Rotary Internacional foi pioneira<br />

nos programas de troca de estudantes desde a<br />

década de 1920, com a iniciativa do clube de<br />

Copenhague, na Dinamarca. Mas, os primeiros<br />

estudantes não europeus a participarem dos<br />

programas datam de 1939, quando o clube decidiu<br />

abarcar as Américas.<br />

Atualmente, o Rotary envolve estudantes de<br />

82 países e aproximadamente 9000 estudantes<br />

por ano. É o principal programa de intercâmbio<br />

no Brasil, com 55% dos intercambistas da<br />

América Latina. Além desse programa, o Ciência<br />

sem Fronteiras, programa criado pelo Ministério<br />

da Educação em conjunto com o Ministério<br />

de Ciência, Tecnologia e Inovação, foi um dos<br />

principais programas de intercâmbio no Brasil.<br />

Trabalho<br />

Viver viajando nem sempre é uma questão de<br />

escolha. Alexandre Ferreira, 33, caminhoneiro<br />

há 8 anos, afirma: “Não sei fazer outra coisa”.<br />

Natural de Caetanópolis, suas rotas o obrigam a<br />

ficar até 20 dias sem visitar a família, viajando de<br />

norte a sul do Brasil.<br />

O caminhoneiro considera o veículo sua<br />

primeira casa e gosta da vida de viagens porque<br />

conhece melhor o país e consegue ver paisagens<br />

incríveis. Mas, é durante a noite que a situação<br />

aperta: “Aí que bate a solidão, você fica preocupado,<br />

vai ligar pra família, corta o coração na hora. Duro<br />

da estrada é isso”<br />

Casado e com filho pequeno em casa,<br />

Alexandre quase não consegue presenciar os<br />

momentos importantes do crescimento da criança.<br />

Além de não ter muito contato com a família,<br />

passa dias sem banho e sem comer enquanto viaja,<br />

mas a vontade de ver as coisas diferentes: “O cara<br />

pra ir pra estrada tem que gostar, tem que gostar<br />

de verdade, porque é sofrido”.<br />

Paolo Cetrangolo é italiano e<br />

veio estudar letras no Brasil por<br />

um programa de Intercâmbio<br />

da Universidade de Napoli.<br />

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CURINGA | EDIÇÃO 17<br />

13


Identidade<br />

Universo concreto<br />

“Se um pássaro com o próprio bico constrói sua casa, porque não<br />

me animar a fazer a minha com as próprias mãos?”, questionou-se<br />

Carlos Vilaró, famoso artista plástico uruguaio. As palhas entrelaçadas<br />

com gravetos, terra e argila são moldadas para se transformarem em<br />

grandes obras arquitetônicas, onde as aves, por dias e às vezes anos,<br />

constroem um local onde poderão encontrar abrigo e proteção. O João<br />

de Barro, um dos pássaros mais conhecidos da fauna nacional, é capaz<br />

de construir verdadeiros edifícios e, devido a essa grande habilidade,<br />

é popularmente chamado de pedreiro das florestas. Inspirado pelos<br />

pássaros e imortalizada no poema de Vinicius de Moraes, “A Casa” de<br />

Vilaró é cantada por várias gerações de brasileiros.<br />

Texto: Carmem Guimarães<br />

Foto: Lui Pereira<br />

Arte: Nathalya Saiki


A origem da palavra pedreiro vem do latim:<br />

Petrarium. Relacionado às pedras. Há quem diga<br />

que a profissão seja uma das mais antigas e está<br />

presente desde o mito da criação do universo.<br />

Segundo a tradição cristã, como um construtor,<br />

Deus criou o céu e a terra em sete dias. Ao<br />

apóstolo Simão, Jesus Cristo delegou a função<br />

de edificar sua igreja e chamou-lhe de Pedro.<br />

As escrituras talvez expliquem a gênese da<br />

profissão, embora seja praticamente impossível<br />

identificar o primeiro homem que construiu e a<br />

primeira casa chamada de lar.<br />

Por mais de 50 anos, Jair Gomes Pinheiro,<br />

74, executou com maestria a tarefa. Sua história<br />

confunde-se com a de mais de 6,8 milhões de<br />

profissionais da construção civil segundo dados<br />

do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estatísticas<br />

(IBGE) em 2017. Quando jovem, por razões<br />

econômicas abandonou os estudos para ajudar<br />

nas despesas de casa. “Meu pai falou pra mim e<br />

pro meu irmão se queríamos continuar estudando<br />

ou trabalhar. A gente não tinha muito dinheiro”.<br />

Contudo, enganam-se aqueles que pensam<br />

que o ofício é simples. Para ser pedreiro, é<br />

preciso grande conhecimento em geometria,<br />

matemática, estudo de solos, entre diversos<br />

outros saberes. Valéria Silva, 33, iniciou na<br />

profissão aos 14 anos. Especializou-se em<br />

pinturas artísticas, restauro, policromia.<br />

Trabalhou em mais de 150 casas, além de<br />

várias igrejas barrocas. “Comecei na área<br />

através de um projeto social e ao longo dos<br />

anos fui aprimorando. Fiz curso de pedreira,<br />

cantaria, pintura, carpintaria”.<br />

Além dos conhecimentos técnicos, é preciso<br />

dedicação, compromisso e resistência física.<br />

No currículo invejável de Jair, há três escolas,<br />

o Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (Icsa)<br />

da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop),<br />

um centro de reabilitação para usuários de<br />

drogas, a reforma e restauração de incontáveis<br />

casarões tricentenários, e o próprio lar, uma<br />

bonita casa na região central de Mariana.<br />

“Até parece aquela música do Zé Geraldo. Tá<br />

vendo aquela igreja moço? Ajudei a levantar<br />

(…) As vezes, vejo algumas construções<br />

e nem eu acredito que fiz”. Oficialmente<br />

aposentado após 30 anos de trabalho na Ufop,<br />

Jair continua realizando pequenas obras nos<br />

fundos de casa. Aliás, aposentadoria total não<br />

parece ser comum neste tipo de ofício. Há<br />

sempre um amigo com uma pequena reforma<br />

para fazer ou uma obra para terminar.<br />

(In)Visibilidade<br />

Embora seja inegável a importância dos<br />

profissionais da construção, ao longo da história do<br />

Brasil eles costumam ser silenciados. As grandes<br />

obras enaltecem as memórias dos idealizadores,<br />

mas muitas vezes, esquecemos os seres humanos<br />

por detrás de cada tijolo, pedra e areia daquela<br />

construção. O caso mais emblemático da<br />

história da engenharia civil no país aconteceu<br />

em 1971 na cidade de Belo Horizonte. As obras<br />

no Parque da Gameleira levavam as assinaturas<br />

de Oscar Niemeyer e Joaquim Cardoso e, de<br />

acordo com o jornal O Globo, de fevereiro<br />

daquele ano, aproximadamente dez toneladas<br />

de cimento e ferro desabaram sobre centenas de<br />

trabalhadores. No total, 65 mortos e mais de 50<br />

homens feridos e mutilados. Quase cinquenta<br />

anos após a tragédia, não há no lugar memorial,<br />

placa ou homenagem às vítimas.<br />

Muitas vezes socialmente negligenciado,<br />

o pedreiro é parte da vida do brasileiro. De<br />

acordo com o Instituto Brasileiro da Qualidade<br />

e Produtividade (IBPQ), a casa própria é o nosso<br />

segundo maior desejo, perdendo apenas para o<br />

sonho de viajar. Valéria entende a importância da<br />

profissão. Sabe que cada obra é uma conquista e,<br />

por isso, esforça-se para fazer o melhor: “Não há<br />

nada mais prazeroso que entregar um serviço e ver<br />

a alegria do cliente. Hoje entreguei uma pintura e<br />

você precisava ver a felicidade da dona”.<br />

Após anos dedicados à construção civil, Valéria<br />

e Jair têm orgulho do ofício que escolheram. Valéria<br />

quer mais. Deseja criar um projeto social para<br />

jovens e adultos na Prainha, bairro onde cresceu<br />

em Mariana, para transmitir seus conhecimentos.<br />

“O dinheiro tornou o mundo egoísta. Gosto de<br />

ensinar e ajudar as pessoas. Quando fazemos isso,<br />

o pouco que temos multiplica”.<br />

Enquanto Valéria sonha, Jair tenta descansar<br />

depois de meio século dedicado à profissão. O maior<br />

orgulho não está em uma parede erguida, ou uma<br />

obra específica, mas ter proporcionado às cinco filhas<br />

a formação escolar. Todas fizeram magistério, uma<br />

delas também é graduada em administração no Icsa<br />

e estudou exatamente nas salas que seu pai ajudou a<br />

construir. Segundo nosso João de Barro, mérito total<br />

de sua filha, embora saibamos que o trabalho de Jair<br />

construiu os alicerces deste sonho.<br />

CURINGA | EDIÇÃO | <strong>23</strong> 17 15


Habitar<br />

Em busca de<br />

novas<br />

memórias<br />

Após dois anos, atingidos pela barragem de Fundão<br />

permanecem à procura de um recomeço<br />

“Eu quase que não consigo ficar na cidade sem viver<br />

contrariado”. O trecho faz parte da canção Lamento<br />

Sertanejo, composição de Gilberto Gil e Dominguinhos.<br />

A música fala sobre a odisséia de sentimentos<br />

que as pessoas passam por estarem longe daquilo<br />

que consideram lar. Como é o caso dos atingidos de<br />

Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em Mariana,<br />

e Gesteira, distrito de Barra Longa, Minas Gerais.<br />

Após dois anos do rompimento da barragem de rejeitos<br />

de minério, administrada pela empresa Samarco,<br />

estas pessoas ainda vivem sob a perspectiva<br />

de voltar para a casa. Ou para a nova casa.<br />

O reassentamento das comunidades é importante<br />

e está assegurado por lei. “Ser atingida é ter<br />

os sonhos interrompidos”, afirma Luzia Queiroz,<br />

52, que viu ruírem todos os planos futuros da família<br />

na comunidade de Paracatu de Baixo. Assim<br />

como muitos atingidos, Luzia mora em Mariana, e<br />

mantém uma realidade diferente de outrora. Seu<br />

dia a dia está em meio a novas narrativas.<br />

A leveza do interior faz falta e atividades como<br />

cuidar dos animais e até mesmo colher uma laranja<br />

no quintal não fazem parte do cotidiano<br />

da maioria dos atingidos. O sítio de Marcos Muniz,<br />

54, morador de Bento Rodrigues, era o fruto<br />

de toda uma vida. Por 30 anos, foi funcionário<br />

da Samarco e almejava uma aposentadoria tranquila<br />

na casa de campo que, em outros tempos,<br />

pertencera ao seu pai. Em seu pomar, havia centenas<br />

de laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e<br />

limoeiros. No quintal criava galinhas e mantinha<br />

gado nos pastos. O sonho durou exatamente um<br />

ano, até a lama levar sua residência, seus frutos,<br />

seus animais e as memórias de sua família.<br />

Pertencer<br />

Alguns atingidos ainda não se acostumaram<br />

com o jeito mais acelerado da cidade. O cantinho de<br />

antes era bem mais calmo, com uma feição só deles.<br />

Luzia, planejou todos os detalhes da sua casa,<br />

o terreno onde construiu pertencera ao avô do seu<br />

marido Caetano e mantinha inúmeras histórias. As<br />

paredes revestidas por azulejos portugueses eram<br />

o seu xodó e o piso antiderrapante da cozinha foi<br />

pensado especialmente para seu neto Miguel.<br />

Além das questões burocráticas que estendem a<br />

espera pelo reassentamento, a passagem dos anos<br />

tem transformado o cotidiano da população. Os<br />

afetos e as relações sociais tiveram que se adaptar<br />

à rotina de lares temporários e muitas amizades e<br />

vínculos afetivos também se romperam. A psicóloga<br />

Maíra Almeida Carvalho, responsável técnica<br />

pela equipe Conviver que atua especificamente com<br />

os atingidos de Mariana, esclarece essas dificuldades:<br />

“Estão dispersos num território em que muitos<br />

não se reconhecem, situados em casas que não são<br />

próprias, distantes dos vínculos familiares, de vizinhança<br />

e das redes de suporte social”.<br />

Tanto Marcos quanto Luzia lamentam a perda<br />

de contato com alguns vizinhos, amigos e parentes.<br />

“Meu netinho ficava comigo em Paracatu, às vezes<br />

passávamos as tardes deitados na cama olhando os<br />

bois pela janela. Isso acabou”.<br />

Manter a mesma identidade com o novo local<br />

é um dos grandes problemas a ser enfrentado. De<br />

acordo com a psicóloga Lilian Garate Castagnet, especialista<br />

em eventos pós-traumáticos, “por mais<br />

que o novo terreno seja adequado e possa oferecer<br />

mais segurança, é um local sem história, sem me-


Texto: carmem guimarães e igor mattos<br />

foto: Íris jesus<br />

arte: mayron brito<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>23</strong> 17 17


mória, e que não foi parte de uma construção escolhida,<br />

e sim imposta”. Segundo Lilian, uma das<br />

maneiras de tentar reverter a situação é respeitar<br />

o luto por tudo que foi perdido. É permitir o protagonismo<br />

da comunidade no processo de escolha<br />

e na organização dos novos distritos para, assim,<br />

incorporar a memória do que foi vivido. Um posicionamento<br />

que reforça a importância de manter<br />

preservada o senso de comunidade quando voltarem<br />

à vida em grupo. “Uma coisa é a Samarco te<br />

dar a casa, outra é você construir”, reforça Luzia.<br />

Incertezas<br />

Conforme os anos passam, o desejo de recomeçar<br />

tem se transformado em aflição. Os projetos<br />

para os novos distritos ainda não foram totalmente<br />

aprovados pelos moradores e as documentações<br />

das terras ainda não estão regularizadas. As obras<br />

nos terrenos de Lavoura, onde será construído o<br />

Novo Bento; Lucinda destinado ao reassentamento<br />

dos moradores de Paracatu de Baixo, e Macacos<br />

para a reconstrução de Gesteira sequer começaram.<br />

De acordo com a Fundação Renova, responsável<br />

por reparar os danos causados pelo rompimento da<br />

barragem, a expectativa é que as obras comecem no<br />

início de 2018, pois dependem do registro dos terrenos,<br />

da aprovação do conceito urbanístico dos novos<br />

distritos pelos atingidos, bem como do processo de<br />

licenciamento urbanístico e ambiental.<br />

A situação, que parecia provisória, tornou-se<br />

longa e exaustiva e o reassentamento ainda é incerto.<br />

Inicialmente, a Renova afirmava que o novo<br />

Bento, por exemplo, seria entregue em março de<br />

2019. Contudo, com o passar dos meses, a fundação<br />

já não indica mais a data de entrega do novo local.<br />

A psicóloga Maíra teme os efeitos pela demora<br />

deste processo: “Quanto mais se prolonga a espera<br />

pela construção das comunidades, maiores são os<br />

desafios para a retomada das rotinas e cotidianos”.<br />

Mesmo com toda demora e prazos incertos, a<br />

luta pela moradia é um direito que os atingidos não<br />

abrem mão. As relações talvez nunca mais voltem a<br />

ser como antes. Porém, reconstruir os distritos é um<br />

modo de reforçar suas existências e fazer justiça.<br />

Marcos pretende retomar parte da sua vida e acredita<br />

que quando se dedica às tarefas do sítio deixa<br />

de pensar no crime ambiental. “Não sei se quero<br />

plantar todo o pomar de novo. Já tenho mais de 50<br />

anos e é muito difícil recomeçar, mas quero minha<br />

casa exatamente como era. Pintada com a cor areia,<br />

que é uma cor que eu gosto”, reivindica.


Travessia<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17 19


Um Brasil de quem?<br />

No século XXI, negros e índios no país ainda sofrem com a<br />

desigualdade social imposta pela colonização portuguesa<br />

Nas últimas décadas, a onda conservadora no Brasil e<br />

no mundo dá voz e lugar para que práticas racistas e excludentes<br />

se tornem visíveis no espectro social. Casos como<br />

o do jornalista William Waack, que, à época da cobertura<br />

das eleições presidenciais dos Estados Unidos, ao se preparar<br />

para uma entrada ao vivo, irritou-se com o barulho<br />

das buzinas nas ruas e disse: “É preto. É coisa de preto”.<br />

Ou a tragédia do índio Galdino, queimado vivo em Brasília<br />

por quatro jovens entre 17 a 19 anos. A motivação do<br />

crime foi para o “entretenimento” dos rapazes. Em 2017,<br />

completaram-se vinte anos do episódio e os assassinos já<br />

cumpriram as suas penas em liberdade condicional com<br />

apenas metade da sentença inicial de 14 anos de prisão.<br />

Esses dois casos são exemplos que mostram a forma<br />

como os preconceitos étnico e de classe se manifestam<br />

por aqui. Hoje, esses dois grupos coexistem no<br />

país em situação semelhante. No passado, negros e<br />

índios, donos de seus próprios espaços, se viram expulsos<br />

de seus lares. Inicialmente, em decorrência da<br />

colonização e da premissa de um repovoamento supostamente<br />

civilizatório. Porém, sabe-se que mesmo depois<br />

da colonização a situação continua igual, os dois<br />

grupos continuam à margem da sociedade.<br />

Desapropriação antiga<br />

Existem índios no Brasil? A resposta é sim, mas persiste<br />

um senso comum de que a história deles no nosso país acaba<br />

no período colonial. “O motivo desse senso comum é que ou<br />

as pessoas pensam que eles foram totalmente inseridos na<br />

sociedade e ‘deixaram de ser índios’”, explicou Manoel Rendeiro<br />

Neto, historiador formado pela Universidade de Brasília<br />

(UnB). Conforme Manoel, essa é uma ideia errada, porque ser<br />

indígena não é uma questão civilizatória cultural e sim identitária.<br />

A segunda hipótese do senso comum, levantada pelo<br />

historiador, é de que os nativos da nação teriam sido totalmente<br />

dizimados.<br />

A partir do momento em que os europeus desembarcaram<br />

em suas primeiras caravelas no Brasil, a história dos<br />

indígenas se tornou turbulenta. Para aqueles que nunca<br />

tiveram contato com a civilização europeia, os portugueses<br />

até pareciam deuses cheios de boas intenções. Porém,<br />

como já dizia o velho ditado, ‘de boas intenções o inferno<br />

está cheio’. Pouco tempo depois, o homem branco mostrou<br />

a sua verdadeira face aos nativos, apropriou-se das terras<br />

indígenas, matou e escravizou aqueles que eram contra as<br />

texto: Mariani Barbosa e Marianna França<br />

Arte: Pedro Menegheti<br />

Foto: Lui Pereira<br />

suas decisões. “Praticamente a história da colonização e<br />

de povos europeus versus indígenas é marcada pela questão<br />

de desapropriação das terras indígenas, principalmente<br />

através do genocídio dessa população. Se formos estudar<br />

a fundo a questão de história indígena no Brasil, além do<br />

período colonial, vamos ver que o contato da civilização<br />

europeia com esses povos gerou a perda e a desapropriação<br />

dos seus lares originais. E, até hoje, nós vemos a situação<br />

precária com relação à divisão de terras”, afirmou Manoel.<br />

Cinco séculos se passaram e os índios continuam habitando<br />

o Brasil. Por incrível que pareça, sofrem com os mesmos<br />

problemas da época da colonização, entre eles o medo<br />

constante de perderem os seus lares. A grande diferença é<br />

que hoje a reivindicação de direitos é uma possibilidade.<br />

Luta por direitos<br />

O assunto mais debatido dentro dos movimentos indígenas<br />

é a questão da demarcação justa de terras. O Marco<br />

Temporal - ação judicial da constituição da década de 1980<br />

- alega que se as comunidades nativas não estavam nos<br />

territórios declarados como delas desde o dia 5 de outubro<br />

de 1988, essas comunidades não teriam direito à tais<br />

terras. O problema é que até 1988, os indígenas não eram<br />

reconhecidos como pessoas capazes à prática do ato civil.<br />

Exatamente por isso não era possível às comunidades defenderem<br />

com legitimidade os seus direitos aos territórios.<br />

”A questão de demarcação de terras é a central. Geralmente,<br />

qualquer tipo de declaração envolvendo movimentos<br />

indígenas sempre busca a legitimação de suas terras. Porque<br />

mesmo grupos indígenas que as tiveram demarcadas,<br />

muitas vezes, são ameaçados de perdê-las. A bancada mais<br />

conservadora do Congresso fala que apenas as terras demarcadas<br />

oficialmente até 1988 podem ser consideradas<br />

terras indígenas”, comentou Manoel.<br />

Almir Narayamoga Suruí, chefe do Clã Gameb, um dos<br />

quatro clãs que fazem parte do povo Paiter Suruí, em Rondônia,<br />

é um exemplo da resistência indígena contemporânea.<br />

Almir é formado em Biologia pela Pontifícia Universidade<br />

Católica de Goiás (PUC Goiás) e tem título de Doutor<br />

Honoris Causa pela Universidade Federal de Rondônia<br />

(UNIR). Essa formação acadêmica ajuda-o a proteger o<br />

seu clã contra aqueles que tentam contrabandear madeira,


É importante enfatizar o índio como vítima da<br />

colonização e do processo de formação nacional.<br />

Mas, também, não podemos ficar só nessa imagem.<br />

No final das contas, isso não os favorece.<br />

Só favorece uma imagem de que eles foram derrotados<br />

e que não tem mais força. Isso já não é<br />

mais verdade. Eles estão buscando força e estão<br />

se mobilizando cada vez mais no movimento<br />

político em nível nacional.<br />

Manoel Rendeiro Neto,<br />

historiador formado na<br />

Universidade de Brasília<br />

Os retratos desta reportagem foram construídos em parceria<br />

entre o fotógrafo e as pessoas fotografadas, em uma tentativa<br />

de dar novo significado a imagens produzidas por diversos<br />

fotógrafos do final do séc XIX e início do séc XX que retratam<br />

negros, indígenas e mestiços brasileiros um ar de exotismo e<br />

de submissão.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong> 21


garimpar ilegalmente e contra os que insistem em explorar<br />

o território dos Paiter Suruí de forma indevida. “Quando se<br />

tem grande potencial em um território, acaba despertando<br />

interesses econômicos. Tudo isso é um grande desafio e hoje<br />

mais ainda porque transforma um discurso do governo em<br />

anti-indígena. Ele pretende aprovar uma lei de mineração<br />

no nosso território”. Almir cita como exemplo a PEC 215,<br />

que tem a intenção de delegar ao Congresso Nacional o dever<br />

de demarcação dos territórios indígenas e quilombolas.<br />

Seria proibir a expansão das áreas indígenas já existentes,<br />

“[...] prejudicando o direito dos povos indígenas em geral.<br />

Para nós isso é um retrocesso”, afirma.<br />

O chefe do clã Gameb começou a falar português com<br />

12 anos, pela necessidade de se comunicar com os ditos<br />

não indígenas. De acordo com ele, os Suruí tiveram o<br />

contato pela primeira vez com comunidades externas em<br />

1969, há 48 anos. “O contato trouxe grandes epidemias e<br />

doenças. Gripe, sarampo, tuberculose… Dizimou mais de<br />

90% da população Paiter”, contou Almir Suruí. Essa comunicação<br />

se deu por uma ação do Serviço de Proteção aos<br />

Índios (SPI). “Essa região estava sendo ocupada, tinha um<br />

projeto de colonização do governo brasileiro. Eles estavam<br />

ocupando toda a região que nós habitamos. Tivemos vários<br />

conflitos com os não indígenas, com os seringueiros, as pessoas<br />

que chegaram pela primeira vez aqui”, contou o chefe<br />

Suruí. Repetindo mais uma vez a mesma história do início<br />

da colonização do Brasil: o homem branco se apropriando<br />

do lar dos povos indígenas.<br />

A solução que Almir encontrou para apaziguar os conflitos<br />

e proteger o território dos Paiter Suruís foi entender<br />

como funcionava a vida fora da aldeia e correr atrás dos<br />

direitos do seu povo indígena. “Em 1994, idealizei a construção<br />

de um plano estratégico de 50 anos para o meu povo.<br />

Queremos a autonomia do povo Paiter Suruí na gestão de<br />

seu território. Hoje em dia a responsabilidade da gestão do<br />

território é do governo, através da política de indianista que<br />

é dirigida pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Não<br />

queremos tomar esse poder da Funai, mas queremos criar<br />

a consciência do povo sobre o valor do seu território e cultura”,<br />

explicou Almir. As demandas do plano são pedidos<br />

básicos de sobrevivência de uma população: a proteção territorial,<br />

proteção cultural, direito à educação baseada nos<br />

costumes da cultura indígena Paiter Suruí, saúde, gestão<br />

política, fortalecimento da economia e uso tecnológico. Ou<br />

seja, tudo que é instrumento importante que pode mover a<br />

vida de um ser humano, porém foi negligenciado para as<br />

comunidades indígenas desde o ínicio do Brasil.<br />

Segregação e memória<br />

Embora se completem, no próximo ano, 130 anos da<br />

Lei Áurea, ainda hoje a sociedade brasileira vive as sequelas<br />

desse período tão obscuro da narrativa nacional. E assim<br />

como as tribos que já viviam por aqui à época da chegada<br />

dos portugueses e que ainda sofrem com a segregação, a população<br />

negra permanece marginalizada e forçada a ocupar<br />

apenas espaços periféricos das cidades.<br />

Segundo a socióloga Mayara Amaral, o movimento migratório,<br />

que ganhou força no Brasil especialmente com a<br />

atividade industrial, entre os séculos XIX e XX, e que trouxe<br />

milhares de europeus ao país, contribuiu para uma crescente<br />

marginalização do negro por aqui. “Marginal se usa para<br />

falar daquela pessoa que está à margem da sociedade, ou<br />

seja, não foi inserida. (...) O negro não é inserido na sociedade<br />

de classes, ele é colocado à margem, porque (à época<br />

da escravidão) quem trabalhava na roça? Quem cultivava o<br />

café? Eram os negros, os escravos”.<br />

Mayara acrescenta também a questão do êxodo da po-


pulação negra para os morros, decorrente dessa imigração<br />

europeia pós-escravidão. Para ela, a vinda dos brancos,<br />

que ocuparam postos de trabalho - seja em atividades industriais<br />

ou do campo - que poderiam ser realizados por<br />

brasileiros, significou ao negro a perda de seu próprio espaço.<br />

“Quando se deixa de ter a escravidão, passa-se esse<br />

processo e os brancos vêm pro Brasil, para trabalhar nessa<br />

roça, para trabalhar com o café, com o algodão, com<br />

o açúcar, eles perdem os empregos, então são deixados<br />

à margem (...) e são obrigados a subir os morros e é aí<br />

que começa a construção das favelas”.<br />

Até hoje, quando se considera a densidade demográfica<br />

dos aglomerados subnormais e periféricos, pretos e pardos<br />

ainda são maioria. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro<br />

de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, cerca de<br />

11,4 milhões de brasileiros vivem em favelas e, destes, 68%<br />

são declarados negros. Muitos não contam com acesso a<br />

serviços de saneamento básico, como tratamento de esgoto<br />

e limpeza urbana. A periferização, além de prejudicar nas<br />

questões trabalhistas, ainda contribui para que as condições<br />

de vida sejam precarizadas, dificultando a ascensão.<br />

Raças marginalizadas<br />

Ao analisar a trajetória do afro-brasileiro, percebe-<br />

-se que o racismo foi instaurado e enraizado na história<br />

brasileira. O mito da democracia racial, ainda presente,<br />

revela o exercício de um racismo velado que encontra<br />

a justificativa de sua existência na afirmação de que a<br />

segregação já não existe mais no Brasil.<br />

Embora o país seja a nação com a maior população negra<br />

fora da África - 54% da população, de acordo com o<br />

IBGE - pouco se faz para preservar e valorizar a ancestralidade<br />

africana por aqui. Ações orquestradas pelo Estado,<br />

como a política de cotas raciais e a instituição do 20 de<br />

novembro como Dia da Consciência Negra (em homenagem<br />

ao líder quilombola Zumbi dos Palmares, morto nesta<br />

data em 1695) são pequenas iniciativas que, apesar de<br />

promissoras, se revelam insuficientes para reparar as consequências<br />

de mais de 300 anos de escravidão. “Quando<br />

colocam lá na vaga de secretária ‘ah, é uma pessoa bonita’.<br />

O que é uma pessoa bonita? O que é uma moça com<br />

boa aparência? É uma moça que tenha um padrão branco.<br />

Ela pode até ser parda, mas ela tem que ter o cabelo liso,<br />

ela tem que fazer uma progressiva. Só que essas coisas não<br />

estão colocadas para sociedade de forma clara e explícita.<br />

O racismo no país é um racismo que não é auto-declarado<br />

(é velado)”, completa Mayara.<br />

Ao analisar a história do Brasil, é possível perceber<br />

que essas duas etnias foram negligenciadas. O historiador<br />

Manoel acredita que é de extrema importância destacar<br />

o índio como vítima da colonização. “(...) Mas, também,<br />

não podemos ficar só nessa imagem, porque no final das<br />

contas, isso não os favorece. Só favorece uma imagem de<br />

que eles foram derrotados e que não têm mais força (...)”.<br />

O mesmo vale para o negro. O processo colonizador instituiu<br />

um contexto de marginalização para um grupo social,<br />

como questiona Amaral: “Por que a nossa sociedade<br />

não pode ser igualitária e se a filha da empregada quiser<br />

ser médica, quiser ser doutora, ela não pode ser doutora?<br />

Ela tem que ser no máximo, uma professora, porque<br />

é o que cabe pra classe e pra raça dela”.<br />

Hoje, movimentos de resistência e valorização da cultura<br />

negra e indígena contribuem para manter viva a tradição<br />

de ambas as etnias, que lutam diariamente para pertencer<br />

e ocupar seu lar de direito no Brasil. A mistura dos índios,<br />

negros e europeus deu origem ao brasileiro, o descendente<br />

que sustenta a exclusão de seus sucessores diretos.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong><br />

<strong>23</strong>


Texto: Igor Mattos<br />

Foto: Gabriel Conbê<br />

Arte: Luiza Boareto<br />

Endereço de Todas<br />

Anyky Lima mantém uma pensão em BH para travestis.<br />

O objetivo não é só alugar o espaço. Ela acolhe quem é<br />

muito excluída pela sociedade.<br />

Entre uma tragada e outra no cigarro, Anyky vai<br />

abrindo um pouquinho mais da sua vida. Fala do passado<br />

sem saudosismo ou pieguismo, mas sim com orgulho.<br />

Muito orgulho. Ela que passou por tanta coisa (e ainda<br />

passa). Travesti, matriarca, idosa e militante. Dona de<br />

uma pensão em Belo Horizonte que recebe travestis há<br />

mais de 30 anos, a carioca é a matriarca da família que<br />

construiu no bairro Carlos Prates.<br />

Com 63 anos de vida, já tem muita coisa para contar.<br />

Foi expulsa da casa dos pais no Rio de Janeiro aos 12<br />

anos. “Era muito afeminada”, afirma. Eles, de uma<br />

família tradicional nordestina, não entendiam. O caçula<br />

de quatro irmãs foi parar na rua. Lá conheceu uma amiga,<br />

Sandra Dragão, e, juntas, foram tentar a sorte. Depois de<br />

tanto custo, conseguiram uma carona para o próximo<br />

destino: Vitória. Lá ela se fez travesti, apanhou por ser<br />

travesti, lutou para ser travesti. Tudo isso em meados da<br />

década de 1960, em um Brasil vivendo os primeiros anos<br />

da ditadura militar. Conviveu com as dores da solidão<br />

íntima e a sorte de ter outras irmãs para se apoiarem.<br />

Prostituiu-se até os 32 anos, quando decidiu largar a<br />

vida de garota de programa. Ela tinha poucos clientes,<br />

problemas de saúde e contas para pagar. Anyky resolve<br />

se mudar para Minas Gerais. Belo Horizonte é o novo<br />

endereço. Local onde abre a pensão para acolher outras<br />

travestis. Meninas de diversas partes do país que também<br />

fixaram os pés junto a “tia Anyky”.<br />

A pensão<br />

Anyky tomou esse papel de família para si. Desde a<br />

década de 1980, que a casa emoldura o seu lar. Não gosta<br />

quando falam que é um albergue: “Não tenho um albergue.<br />

Eu tenho uma casa onde as meninas pagam pra viver. E<br />

eu como militante acho uma obrigação, se ela quiser ir no<br />

médico, se eu não puder ir, pelo menos informar onde”,<br />

afirma. As paredes da pensão se configuram neste apoio.<br />

Das trocas de sabedorias dos anos de vida: “Essas coisas<br />

a gente tem que passar pra frente, por ser militante, dona<br />

de casa e por gostar também”. Ao todo já passaram pela<br />

pensão pouco mais de 3 mil meninas. Algumas vão e<br />

não voltam, enquanto outras retornam e querem ficar.<br />

Mas,Anyky agora quer sossego. Ver seus filmes na TV. Já<br />

teve muita movimentação na casa. Ou nas casas.<br />

Em tempos mais movimentados, chegou a alugar<br />

duas moradias. Nem sempre cobrava o aluguel. A<br />

compaixão falava mais alto. “Já peguei algumas meninas<br />

da rua, sabe? Que estavam sem casa. Que eu já conhecia.<br />

Conhecia a família e botei aqui dentro.” Atitude deixada<br />

para trás: “Eu já não faço mais. Eu fico com pena e tudo,<br />

mas você sabe que não tem lugar nenhum pra apoiar<br />

essas pessoas. E você pegar uma pessoa na rua e trazer<br />

pra dentro da sua casa, também não adianta. Tem que ter<br />

um acompanhamento de saúde, de tudo.” Ela brinca que,<br />

se ganhasse na mega-sena, iria trazer todas as meninas<br />

para viverem juntas: “Minha vontade é comprar uma<br />

casa grande, onde morassem mais meninas. Mas, meu<br />

intuito realmente é esse. Morar todas comigo.”<br />

Até que esse dia chegue, o lar que ela mantém abriga<br />

nove meninas: “Era para ser quatro, sabe? Mas ligaram<br />

e insistiram tanto para ficar, que acabei deixando”, conta<br />

Anyky. Algumas já moraram no mesmo endereço anos<br />

atrás. Voltaram para Belo Horizonte, o que significa<br />

querer estar perto da Anyky. “Elas vão atrás de mim.<br />

Querem ficar onde a tia Anyky está”, afirma, com ares de<br />

uma tia que podem sempre contar.<br />

Passinhos pra frente<br />

Figura já conhecida em BH, Anyky atua também<br />

publicamente na causa das travestis. Dá palestras<br />

para diversas instituições. Participa de grupos como<br />

a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais<br />

(ANTRA) e Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual<br />

(CELLOS). Isso começou em 2007, mesma época em<br />

que a polícia invadiu sua casa à procura de drogas. Na<br />

busca de encontrar um lugar para saber quais são seus<br />

direitos - e não mais deixar isso acontecer - ela conheceu<br />

o CELLOS. Tornou-se íntima do pessoal. Ia às reuniões,<br />

eventos e debates. Até uma hora ser chamada para<br />

participar do centro. “Porque para trabalhar com travesti<br />

você não pode ficar num lugar sentada esperando. Você<br />

tem que ir ao encontro delas”, diz.<br />

Encontro que deu certo. Apesar de alguns anos<br />

separarem sua geração com a das meninas que moram<br />

com ela, Anyky sabe que muita coisa não mudou: “A<br />

violência continua do mesmo jeito, sabe? As pessoas se<br />

negando a fazer as coisas pra ajudar essa população. As<br />

políticas públicas ficam no papel e não saem do papel.”<br />

Segue na luta para desvincular a imagem da travesti com<br />

a do perigo para sociedade.


A travesti ao mesmo<br />

tempo que constrói seu próprio corpo,<br />

também constrói seu<br />

próprio lar.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong><br />

25


Anyky tenta passar sua sabedoria de vida para as<br />

demais. Explica como fazer para conseguir seus direitos,<br />

onde procurar para reivindicar e a quem procurar. “O que<br />

a gente leva da vida é mostrar pra outra pessoa o lado<br />

positivo da vida. Porque a travesti, a partir do momento<br />

em que bota uma saia, não tem mais ninguém em volta<br />

dela. Pode estar cercada de pessoas, mas está sempre<br />

sozinha”. Na dinâmica delas na casa, uma vai ajudando<br />

a outra. Superando as dificuldades de serem travestis no<br />

país que mais as mata. Serem colocadas à margem não<br />

é motivo para as meninas se sentirem para baixo. Pelo<br />

contrário, na casa, o riso de todas atravessam os cômodos.<br />

“Gosto das neuroses das meninas, das conversas, das<br />

histórias, de dar conselhos”, completa Anyky. Ela quer<br />

manter isso por muito tempo.<br />

Uma destas compreensões é valorizar a união. Anyky<br />

quer que elas entendam o valor da vida e a importância<br />

de estarem juntas. Ali, afirma, é a família delas, “porque<br />

a família da gente é quem está mais próximo. As meninas<br />

que me socorrem caso aconteça algo. Família é quem<br />

te acolhe na hora que você mais precisa”. A pensão é<br />

a materialização da crença dessa comunhão de todas.<br />

Sororidade que Anyky com certeza é devota. Sobre a<br />

expectativa da casa, afirma que enquanto tiver saúde a<br />

mantém. Porque, segundo ela, família a gente faz junto,<br />

um pouquinho de cada dia. Assim como resistência.<br />

SORORIDADE - A palavra sororidade, com origem no latim soror (irmã),<br />

é uma forma de valorizar a irmandade feminina. Representa a união entre<br />

as mulheres a partir de uma concepção de todas caminharem juntas.<br />

ESTATUTO DA FAMÍLIA - O projeto de lei que transita no Senado PL<br />

470/ 2013 cria o chamado Estatuto das Famílias. Levado em frente pela<br />

senadora Lídice da Mata (PSB-BA), tem como idéia reconhecer diversos<br />

arranjos definidos como família.


O mundo<br />

em mim


Comum<br />

Texto: Francielle de Souza<br />

Foto: Rafaela Rissoli<br />

Arte: Evelin Ramos<br />

Rotina Silenciosa<br />

No Brasil, a maioria dos casos de violência contra mulheres,<br />

crianças, adolescentes e idosos é cometida por familiares e<br />

ocorre na casa das vítimas.


Na sala de espera do Centro de Referência Especializado<br />

da Assistência Social (Creas) de Ouro<br />

Preto, uma senhora e três mulheres de meia idade<br />

aguardam, em silêncio, o atendimento. Em<br />

geral, elas não se olham nem levantam a cabeça.<br />

O silêncio, que por vezes chega a ser incômodo, é<br />

interrompido quando a psicóloga Carina Lemos<br />

surge acompanhada por um menino e uma das<br />

mulheres pergunta se ele gostou do atendimento.<br />

A criança sinaliza que sim.<br />

Na sala da psicóloga, duas cadeiras dispostas<br />

lado a lado indicam que a última conversa ali foi<br />

próxima e as pastas empilhadas na mesa ao fundo<br />

sugerem que ela não usou o móvel naquela manhã.<br />

Enquanto arruma os papéis, Carina exemplifica os<br />

casos que recebe todos os dias: uma pilha de documentos<br />

solicitando atendimentos psicossociais<br />

para mulheres, crianças e adolescentes em situação<br />

de violência. Em outra sala do Creas ou, se preciso,<br />

na casa da vítima, a psicóloga Áurea Queiroz acompanha<br />

os idosos que também vivem nessa situação.<br />

Dados nacionais apontam que os casos de violência<br />

doméstica, em geral, acontecem na casa da vítima<br />

e parentes próximos são os principais suspeitos<br />

de cometerem a agressão. De acordo com o último<br />

relatório da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos,<br />

entre os tipos de violência, os de maior destaque,<br />

em 2016, foram negligência, violência<br />

psicológica, violência sexual, violência física<br />

e violência patrimonial.<br />

Ainda segundo a Ouvidoria, a violação de direitos<br />

de crianças e adolescentes corresponde a<br />

57% das denúncias. Contra idosos, são 25%. Enquanto<br />

a negligência - caracterizada pelo abandono<br />

parcial ou total dos responsáveis e/ ou incapacidade<br />

de prestar os cuidados necessários ao<br />

bem-estar do indivíduo - atinge mais crianças e<br />

idosos, a agressão física é o motivo da maioria de<br />

denúncias das mulheres. Dos 140 mil atendimentos<br />

realizados em 2016 pela Central de Atendimento<br />

da Mulher, serviço de denúncia criado pela<br />

Secretaria de Políticas para Mulheres, a violência<br />

doméstica corresponde a 86% dos relatos.<br />

Ciclo da Violência<br />

Para as psicólogas, o que faz do lar um ambiente<br />

propício para a violação de direitos é a naturalização<br />

da violência: “Muitas vezes não há consciência<br />

de que é um crime. Há uma repetição de<br />

comportamento, é uma questão cultural. ‘Eu apanhei<br />

quando criança, então vou bater quando for<br />

adulto’”, aponta Carina. O balanço da Central de<br />

Atendimento da Mulher confirma a explicação da<br />

psicóloga. Os dados mostram que 78% das mulheres<br />

que sofreram violência doméstica em 2016 são<br />

mães. Em 59% dos casos, os filhos presenciaram<br />

a agressão e em 22% eles também foram vítimas<br />

dela. Áurea traduz: “Infelizmente, a violência faz<br />

parte da criação de muita gente desde cedo”.<br />

Na voz de Carina, o caso de Ana*, uma menina<br />

de 8 anos estuprada pelo pai, revela que a dificuldade<br />

em sair da situação de violência pode ser explicada<br />

também pela noção de status social que um<br />

lar tradicional carrega. “O pai confessou que teve<br />

relações sexuais com a filha. Perguntamos para a<br />

mãe da Ana: ‘Você está ouvindo o que ele disse?’.<br />

Ela respondeu que não podia fazer nada depois que<br />

o abuso já tinha sido feito. Quando ele foi preso, ela<br />

veio brigar com a gente e pagou cinco mil reais para<br />

um advogado tentar tirá-lo da cadeia”.<br />

A recusa da mãe de Ana em abrir mão do lar<br />

tradicional - formado por marido, esposa e filhos - é<br />

comum para mulheres. “As mulheres que têm dificuldade<br />

de sair da situação, geralmente, veem um<br />

ganho com a violência. Ou não querem ser mães<br />

solteiras, ou têm um ganho financeiro, ou acreditam<br />

que os companheiros batem porque amam,<br />

porque sentem ciúmes. Muitas mulheres que vêm<br />

até aqui querem que a gente só dê um susto no marido.<br />

Elas não querem denunciar”, conta Carina.<br />

Para Áurea, além de já ser difícil fazer a denúncia,<br />

o ambiente familiar pode pressionar a vítima<br />

a desistir de continuar com o processo. A psicóloga<br />

enfrentou casos em que a pessoa idosa relatou<br />

a violência durante o atendimento, mas, por medo<br />

do agressor, negou quando o caso foi levado para o<br />

Ministério Público. “Nesses casos, a gente fica de<br />

mãos atadas”, lamenta Áurea.<br />

Papel do Estado<br />

Até que ponto o Estado pode intervir no ambiente<br />

familiar? Alexandre Bahia, professor de Direitos<br />

Humanos da Universidade Federal de Ouro<br />

Preto (UFOP), aponta que houve mudanças na forma<br />

como a lei enxerga o lar: “Durante muito tempo,<br />

essa questão da família era considerada de fato<br />

intocável, mas essa é uma compreensão que já está<br />

bem desatualizada. Desde a Constituição de 1988,<br />

existe uma interferência grande do Estado na família”.<br />

Advogado e professor de Direito da rede de<br />

ensino Doctum, Filipy Bicalho explica ainda que as<br />

relações de afeto contidas na ideia de família pressupõem<br />

um ambiente sadio e, por consequência,<br />

menos intervenção do Estado. Porém, quando há<br />

violação de direitos humanos, o limite entre público<br />

e privado é frágil, exigindo uma ação do governo.<br />

Apesar disso, as leis ainda têm dificuldade de<br />

penetrar esse ambiente. Alexandre explica que<br />

isso acontece porque “nós criamos o mecanismo<br />

penal, mas não criamos os mecanismos para<br />

evitar que se chegue na violência.” Ambos os especialistas<br />

acreditam que a saída é investir em<br />

uma educação não sexista e em políticas públicas<br />

para o combate à violência doméstica.<br />

Ao final, o silêncio na sala de espera do Creas é<br />

reflexo do silêncio nos lares. Para entender quem<br />

chega ali, quem não olha ao redor nem levanta a<br />

cabeça, é preciso saber que denunciar ainda é um<br />

desafio. Seja por causa de uma cultura violenta,<br />

pelo status social ou por pressão familiar, as salas<br />

de nossas casas ainda permanecem em silêncio.<br />

* O nome foi alterado para proteger a identidade da fonte.<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong><br />

29


Sensação<br />

Aos cuidados<br />

do outro<br />

Como funcionam instituições socioassistenciais<br />

responsáveis pela tutela de crianças e idosos<br />

Texto: Fábio Souza<br />

Foto: João Vitor Nunes<br />

Arte: Mariana Storto


Frequentemente usada com o intuito de descrever<br />

o local onde as pessoas vivem, a palavra Lar está ligada a<br />

sensação de segurança, conforto, pertencimento e calma.<br />

No entanto, muitos não recebem esse conforto por parte de<br />

sua família. São pessoas tuteladas, estando sob a guarda de<br />

abrigos institucionais, casas lares ou famílias acolhedoras.<br />

Estes serviços são definidos e regulados pela Resolução nº<br />

109, de 11 de novembro de 2009, do Conselho Nacional<br />

daeAssistência Social (CNAS), que dispõe sobre a Tipificação<br />

Nacional dos Serviços Socioassistenciais.<br />

O Acolhimento Institucional ampara milhares de idosos,<br />

crianças, adolescentes e jovens em todo o país. Na cidade<br />

de Mariana, Minas Gerais, o Lar Santa Maria, abriga atualmente,<br />

58 idosos com e sem alguma deficiência mental,<br />

oferecendo cuidados médicos, geriátricos, apoio funcional,<br />

e terapêutico, além de cuidados com alimentação, tendo<br />

como premissa o cuidado humanizado. Esta instituição faz<br />

parte das Obras Sociais Monsenhor Horta, uma sociedade<br />

civil de direito privado, regida por estatuto e que possui títulos<br />

de utilidade pública dos governos federal, estadual e<br />

municipal e de filantropia, concedido no ano de 1974. A entidade<br />

mantém quatro departamentos assistenciais vinculados<br />

a esta matriz, sendo elas: Casa da Criança Jesus, Maria<br />

e José, Centro Promocional Cônego Renato, Casa da<br />

Sopa Tia Lica e o Lar Santa Maria.<br />

Já em Ouro Preto, o abrigo para meninos, localizado no<br />

Bairro Alto da Cruz, é responsável pela tutela de sete garotos.<br />

A casa existe há cinco anos, e teve seu início no ano de<br />

2012, no distrito de Santa Rita de Ouro Preto. A instituição<br />

surge após ser dividida em duas, através de um Termo de<br />

Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério<br />

Público. Isso aconteceu para sanar problemas decorrentes<br />

do excessivo número de jovens que morava no abrigo. A<br />

ideia era que se criasse uma outra instituição apenas para<br />

garotos de 12 a 18 anos, diferente da Casa Lar de Ouro Preto,<br />

que continuaria a receber crianças de ambos os sexos.<br />

Chegadas e partidas<br />

A chegada de crianças e adolescentes até a uma instituição<br />

é cercada de incertezas, medos e estranhamentos. Segundo<br />

a psicóloga do abrigo para meninos em Ouro Preto, Priscila<br />

Câmara, 36, os garotos chegam até a instituição através de<br />

uma ordem judicial de caráter excepcional. Emitida quando<br />

há violação dos direitos da criança e adolescente, funciona<br />

como medida protetiva. Os casos mais comuns para o<br />

Abrigo ou Casa Lar ser destino dessas crianças é a<br />

família estar envolvida com tráfico, quando fazem uso e<br />

abuso de drogas, ou até mesmo negligência - quando<br />

são abandonadas. “O pessoal some e deixa, aí os órgãos<br />

dizem que tem um adolescente que está morando<br />

sozinho e não tem ninguém, está passando dificuldade, já<br />

tentamos localizar familiar e ninguém quer ficar.<br />

Já teve problema, ninguém se dispõe, ninguém se<br />

responsabiliza”, explica Priscila.<br />

Não há um período de adaptação para os jovens<br />

que chegam, uma vez determinado, eles seguem para o<br />

abrigo. Então, segundo a psicóloga, eles tentam acolhêlos<br />

da melhor forma possível. Quando novos meninos são<br />

encaminhados para a instituição, as outras crianças são<br />

orientadas a recebê-los bem: “Olha, vai chegar! A gente<br />

não sabe muita coisa, mas, assim como vocês vieram<br />

para cá, vocês chegaram assustados, então vamos tratar<br />

a pessoa bem. Vamos conhecer a pessoa”. Segundo<br />

Priscila, eles são super receptivos.<br />

A psicóloga chama a atenção para algo particular sobre<br />

abrigos: o fato de que muitos não conhecem e usam o<br />

termo como uma penalidade, para recriminar a criança ao<br />

fazer algo errado. E não é bem assim. As crianças, como<br />

ela afirma, não estão ali porque cometeram ato infracional,<br />

e sim por uma medida protetiva.<br />

Uma coisa que eu tentei trazer no meu<br />

trabalho é que aqui fosse a casa deles,<br />

para que eles sentissem isso<br />

O coordenador do abrigo, Rhenan Hermes, 31, vê seu<br />

trabalho para além das questões administrativas, estando<br />

ligado também ao relacionamento e convívio dos meninos<br />

na instituição, que é feito em conjunto com a psicóloga.<br />

Segundo Rhenan, suas atividades envolvem questões<br />

mínimas do dia a dia, como se fossem coisas de família.<br />

Então, seu trabalho é, além de tudo, trazer a conscientização<br />

de que temporariamente o abrigo é casa deles: “uma coisa<br />

que eu tentei trazer no meu trabalho é que aqui fosse a casa<br />

deles, para que eles sentissem isso”.<br />

O abrigo funciona como uma medida temporária. O<br />

ideal, segundo os órgãos de assistência social, é que as<br />

crianças e adolescentes fiquem no máximo por dois anos<br />

na instituição. Durante este período, é feito um trabalho<br />

de retorno deste jovem para a família de origem ou uma<br />

família extensa, que seria um tio, um primo, etc. Não sendo<br />

possível este retorno, irão tentar uma família substituta.<br />

Ao completar dezoito anos, o jovem deverá deixar o<br />

abrigo e retornar para sua família, ou encontrar um novo<br />

local para morar. Durante o processo de desligamento, o<br />

coordenador, juntamente com a psicóloga, preparam este<br />

adolescente para a sua saída, porém, conforme explica<br />

Priscila: “é difícil esse período, pois não está fácil conseguir<br />

trabalho e geralmente eles têm uma defasagem escolar que<br />

vem lá de traz. E isso já é uma coisa que dificulta”. Segundo<br />

ela, o jovem com dezoito anos tem que ter algum apoio, e<br />

esses adolescentes que lá residem não tem, “os que ficaram<br />

aqui até os 18 é porque não conseguiram ter vínculo com a<br />

família, não teve muito apoio da família, então a gente faz<br />

o que dá. Mas eles saem sozinhos, e é difícil”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17 <strong>23</strong> 31


Proteção para seguir com a vida<br />

Para o idoso chegar até uma instituição de longa<br />

permanência, ele atravessa um caminho bem parecido<br />

com o que será encontrado por um adolescente.<br />

Segundo Teresa Cristina, assistente social do Lar<br />

Santa Maria, o primeiro contato com a instituição e<br />

o familiar acontece quando a demanda é espontânea.<br />

Neste momento, haverá as demandas do município,<br />

outras que chegam pelo Centro de Referência<br />

Especializado de Assistência Social (CREAS) e aquelas<br />

que geralmente são levadas pela família. Segundo<br />

a assistente social, em um perfil de acolhimento<br />

institucional, são levados em consideração<br />

critérios como questão clínica, social e a condição<br />

financeira daquela família de se organizar para aquele<br />

cuidado. Após o contato, a demanda será tratada<br />

e, logo depois, será acolhida.<br />

Ao receber esta demanda que chega, buscase<br />

a rede de serviços do município na saúde e na<br />

assistência social, levando em consideração quem<br />

está acompanhando esse idoso, e se já existe um<br />

acompanhamento por parte do poder público e<br />

dos equipamentos do município. Além destas,<br />

existem também as demandas de risco, que chegam<br />

através de ordem judicial, aquelas que já irão com a<br />

determinação, como uma medida protetiva. Segundo<br />

Teresa Cristina, se for um idoso que estiver em risco<br />

de violência e maus tratos, solicita-se uma medida<br />

cautelar protetiva, o que acaba sendo uma internação<br />

compulsória, por uma medida de proteção, até que se<br />

consiga entender o que está gerando a violência.<br />

Outra forma não muito comum para o idoso chegar<br />

até a instituição é, em casos raros, quando ele mesmo<br />

irá buscar acolhimento, o que geralmente acontece<br />

por causa da solidão. O idoso está entristecendo<br />

sozinho ou tem medo. Segundo a assistente social,<br />

enquanto ainda está independente, ele vai conseguir<br />

se organizar, mas à medida que vai entendendo ou<br />

reconhecendo alguns obstáculos, como esquecer um<br />

gás aberto em casa, isso se torna algo terrível para eles.<br />

A assistente social coloca uma questão importante<br />

sobre a liberdade da opinião do idoso. Quando o<br />

idoso é lúcido, a primeira conversa que tem com ele,<br />

pergunta: “O senhor gostaria de ir?”. Se ele falar que<br />

não, conta Teresa, a conversa encerra-se ali e o idoso<br />

não é levado para a instituição. O asilo Santa Maria,<br />

não é uma instituição pública, mas atende a todo o<br />

município de Mariana bem como seus distritos. O<br />

acolhimento institucional é uma garantia legal ao<br />

idoso, conforme ressalta Teresa Cristina, mas não<br />

existe uma instituição municipal, desse porte, em<br />

Mariana. No caso do asilo Santa Maria, “ela não é<br />

pública, ela é de direito privado, mas presta um serviço<br />

público. Ela tenta suprir uma deficiência do Estado”.<br />

A moradora do Lar Santa Maria, Dona Efigênia,<br />

falando com a visitante Hermínia sobre suas plantas


Sensação<br />

Identidade<br />

Meu lar é onde meu coração encontrar abrigo<br />

Além dos abrigos institucionais, casas lares e repúblicas<br />

para jovens de até 21 anos, a Resolução nº 109, de 11 de<br />

novembro de 2009, do Conselho Nacional de Assistência<br />

Social (CNAS), define e regula o serviço de acolhimento<br />

em Família Acolhedora. Que irá garantir o abrigo de<br />

crianças e adolescentes, afastados da família por medida<br />

de proteção, em residência de famílias acolhedoras. Este<br />

amparo será feito até que haja possibilidade de retorno à<br />

família de origem ou o encaminhamento para adoção. É<br />

de responsabilidade deste serviço a seleção, capacitação,<br />

cadastramento e acompanhamento dessas famílias que<br />

acolhem, bem como realizar o acompanhamento da criança<br />

e adolescente e sua família de origem.<br />

M.B. mora em Viçosa e participou do projeto Família<br />

Acolhedora, após o convite da assistência social. Apesar<br />

de ter uma casa humilde e pequena ela afirma que sempre<br />

tinha espaço, e que já recebia jovens estudantes que<br />

não tinham onde ficar. A novidade, segundo ela, é<br />

que no programa tinha uma responsabilidade maior,<br />

conforme relata: “como mãe acolhedora de crianças<br />

pré adolescentes, além de serem de situação de risco,<br />

são crianças protegidas da justiça, então nesses casos a<br />

atenção tem que ser redobrada”.<br />

Este programa segue os princípios, diretrizes e<br />

orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente<br />

(ECA), além do documento “Orientações Técnicas: Serviços<br />

de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”, sendo<br />

aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social<br />

(CNAS) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do<br />

Adolescente (CONANDA) em 18 de junho de 2009. Tendo<br />

como finalidade regulamentar, no território nacional,<br />

a organização e oferta de Serviços de Acolhimento<br />

para Crianças e Adolescentes, no âmbito da política de<br />

assistência social. O serviço é particularmente adequado<br />

ao atendimento de crianças e adolescentes cuja avaliação<br />

da equipe técnica indique possibilidade de retorno à<br />

família de origem, nuclear ou extensa. Tem como principal<br />

objetivo acolher crianças e jovens em situação de risco,<br />

reeducá-las, dar suporte, educação e, depois de um certo<br />

tempo, retornar com elas. O atendimento também deve<br />

envolver o acompanhamento às famílias de origem, com<br />

vistas à reintegração familiar.<br />

Ao se lembrar do programa, M.B* relata e lamenta um<br />

fato triste. Um jovem que estava sob sua tutela junto com sua<br />

irmã, teve abstinência de drogas: “Eu sofri muito, porque<br />

ele fugiu e levou a menina com ele”. Ela relata ainda que<br />

acionou o Conselho tutelar e foi atrás deles, encontrando-os<br />

na casa da mãe, que não quis devolvê-los e que os ajudou<br />

a fugir. Quando as crianças foram encontradas, já era bem<br />

tarde: “Eu e meu filho só encontramos eles às 19h, já muito<br />

escuro, a menina deitada no meio do mato como bicho, e<br />

ele com um enorme cigarro de maconha aceso na boca.”<br />

Apesar de acontecimentos isolados como este, M.B<br />

acredita que o processo de Família acolhedora resolve<br />

problemas que essas crianças passam. Para ela, um lar<br />

é onde existe amor, carinho, proteção, compreensão e<br />

dedicação. E, acredita, que o Lar para essas crianças que<br />

moram em abrigos é aquele que gera amor e carinho.<br />

*O nome foi alterado para proteger a identidade da fonte<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17<br />

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Identidade<br />

Lava, passa, cozinha. Lava, passa, cozinha. A<br />

rotina dupla de afazeres domésticos acompanha<br />

as 5,9 milhões de mulheres que trabalham como<br />

empregadas domésticas no Brasil. O dado é do<br />

levantamento feito pelo Ministério do Trabalho<br />

e Previdência Social e pelo Instituto de Pesquisa<br />

Econômica Aplicada (Ipea), lançado em 2016.<br />

Uma pesquisa publicada em 2012 pela Organização<br />

Internacional do Trabalho (OIT) apontou que<br />

61,7% das empregas domésticas são negras.<br />

O perfil do trabalhador doméstico brasileiro,<br />

formado predominantemente de mulheres<br />

negras, é consequência do período colonial. Segundo<br />

estudo publicado em 2017 e realizado por<br />

pesquisadoras da Universidade Federal de Viçosa<br />

(UFV), “no período escravocrata, as trabalhadoras<br />

domésticas moravam na senzala, mas passavam<br />

grande parte do dia na Casa Grande. Com o redimensionamento<br />

das casas na zona urbana, esses dois<br />

lugares fundiram-se e foi criado um novo cômodo nas<br />

casas: o quarto da empregada”.<br />

A aproximação da empregada doméstica da família<br />

para a qual trabalha mudou com sua presença<br />

constante na casa. É comum ouvir relatos onde os<br />

filhos se apegam à empregada, tal como acontecia<br />

com as amas-de-leite, mulheres que amamentavam<br />

os filhos dos senhores por serem consideradas mais<br />

fortes e saudáveis, na época da escravidão.<br />

A fala de Cida*, uma senhora negra de 52 anos,<br />

é marcada pela proximidade conquistada com<br />

as crianças na casa onde trabalha como doméstica<br />

há quatro anos: “Lá é como se fosse minha<br />

família mesmo. Eu praticamente criei as crianças.<br />

Me considero madrinha, me considero avó, me<br />

considero tudo”. A relação de afeto criada entre<br />

funcionária e chefe culminou no convite para ser<br />

madrinha da filha mais velha dos patrões.<br />

A história de Cida contrasta com a de Maria*.<br />

Acusada de roubo em uma das casas em que trabalhou,<br />

a empregada relembra o constrangimento:<br />

“Teve uma época em que eu estava parando<br />

de fumar, aí me dava muita fome. Lá tinha aqueles<br />

biscoitinhos recheados de chocolate e eu c<br />

omi um. Quando ela [a patroa] viu, disse que eu estava<br />

trazendo pra casa”.<br />

Para Marcelo Brito, pesquisador das relações<br />

de trabalho entre patrões e empregadas domésticas,<br />

“a ambiguidade intimidade/distanciamento<br />

é clara nessas relações em que ora se evidencia a<br />

proteção e benesses, ora se enfatiza a divisão<br />

das classes e as imposições”.<br />

Dois<br />

tempos<br />

Texto: Francielle de Souza e Mayara Portugal<br />

Foto: Octávio Zurmele<br />

Arte: Isabela Resende


Troca involuntária<br />

Empregadas domésticas<br />

dividem as horas e o afeto<br />

no cuidado de dois lares:<br />

o seu e o do outro<br />

São nos detalhes do dia a dia que surgem os conflitos<br />

próprios de quem, por necessidade, abdica do<br />

próprio lar para cuidar de outro. Embora goste dos<br />

momentos em que passa com as crianças no local<br />

de trabalho, Cida sente falta de tempo para cuidar<br />

de si. Fazer as unhas, arrumar os cabelos, ir ao forró<br />

com o marido, viajar com as amigas: atividades que<br />

faz com menos frequência do que gostaria.<br />

Também pela falta de tempo, Maria reserva os<br />

fins de semana para cuidar de sua casa. “Eu faço<br />

o serviço muito melhor lá. Na hora que eu deixo<br />

tudo limpinho e arrumadinho, me dá uma vontade<br />

de ficar na casa, mas daí eu penso ai meu Deus, agora<br />

é a minha’”, confessa.<br />

O peso de passar mais tempo cuidando de outra<br />

família marca a vida de Maria. Aos 11 anos, ela já<br />

trabalhava com serviço doméstico, aos 14 foi mãe. A<br />

necessidade de manter o emprego fez com que passasse<br />

a deixar a filha sozinha em casa muito cedo,<br />

quando a pequena tinha apenas seis anos.<br />

Ao lembrar dessa fase, Maria deixa transparecer<br />

como era difícil ficar longe da menina. “Eu<br />

passava aperto. Deixava a comidinha dela quente,<br />

em banho-maria e tudo. Ficava com medo dela se<br />

queimar. Era só correria, eu chegava correndo onze<br />

meia, meio-dia, pra levar ela pra escola. Tinha muito<br />

medo de deixar ela sozinha. Instalei o telefone fixo<br />

para sempre ligar e saber como ela estava”.<br />

No tempo em que trabalhou em casas de família,<br />

o receio de que a história se repetisse impediu<br />

que Maria engravidasse novamente. Hoje,<br />

trabalhando como diarista nas repúblicas estudantis<br />

de Ouro Preto, a história é outra. Há três<br />

meses, Flávia espera um novo bebê. Aos 34 anos,<br />

com horários mais flexíveis e com a ajuda do marido,<br />

ela acredita que terá mais tranquilidade<br />

para viver a segunda gravidez.<br />

A PEC das domésticas, política pública elaborada<br />

em 2013 para garantir direitos trabalhistas às<br />

empregadas, não eliminou a invisibilidade do serviço<br />

doméstico no Brasil. Os direitos estão garantidos<br />

na lei, mas os relatos de Cida e Maria demonstram<br />

que não é apenas uma questão burocrática. Diante<br />

da pergunta “Você acha que é justo o que recebe<br />

pelo seu trabalho?”, Maria diz: “Eu não posso ficar<br />

por conta de família dos outros e esquecer da minha”.<br />

Cida contrapõe: “a consideração paga”.<br />

*Os nomes foram alterados para proteger a identidade das fontes.<br />

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Alternativa<br />

Sentidos<br />

do Lar<br />

Texto: Mayara Portugal<br />

Foto: Íris Jesus<br />

Arte: Amanda dos Santos Francisco<br />

Na memória, o sentimento de lar se constrói<br />

nos detalhes mais corriqueiros do cotidiano:<br />

no cheiro do refogado de alho e cebola, no<br />

programa de TV dos domingos de manhã ou no<br />

pé de mangueira do quintal de terra. À medida<br />

que os anos passam, nossas concepções de lar se<br />

transformam quase na mesma proporção com a<br />

que mudamos de endereço. A diferença entre a<br />

concretude da casa e o sentimento de lar é muito<br />

sensível: enquanto a casa é o lugar físico, a rua<br />

ou bairro que constam nos inúmeros formulários<br />

preenchidos ao longo da vida, o lar é tido como<br />

uma sensação que atravessa o tatear, é um<br />

sentimento de encontro e de abrigo mutável.<br />

Linda Desirée nasceu na Holanda, morou no<br />

México e veio para o Brasil com os pais ainda<br />

criança. A mãe mineira e o pai estadunidense se<br />

apaixonaram na Praia de Ipanema, lugar onde<br />

escolheram viver durante a infância da filha, que<br />

entrega a vivência carioca no sotaque marcado.<br />

Aos <strong>23</strong> anos, para Linda, o significado de lar tem a<br />

ver com os lugares por onde a pessoa passa e com<br />

o tempo que dedica a esse espaço. A companhia<br />

da família em todos esses lugares também é<br />

importante na construção desse significado.<br />

“Teve um lugar onde passei mais tempo e, na<br />

minha memória, esse lugar é meu último lar antes<br />

daqui. Minha família morava na Serramar e lá<br />

era um lugar lindo, tinha uma cachoeira gigante.<br />

Não era a casa, sabe? Tinha um rio praticamente<br />

no quintal e quando penso em lar, penso naquele<br />

rio onde eu nadava todo dia. Conheci aquele rio<br />

inteiro, cada pedra. Acho que esse foi meu primeiro<br />

lar, por causa disso, eu dediquei tempo, e por tudo<br />

que eu era ali, sem pensar no amanhã”.


Contrastes<br />

Assim como o rio determina essa<br />

construção para Linda, para Edgar de<br />

Sá, as montanhas de Minas Gerais<br />

pontuam contrastes. Nascido na Guiné-<br />

Bissau, o estudante de Engenharia<br />

Civil adotou Ouro Preto como cidade<br />

natal há sete anos. Das saudades mais<br />

latentes, está a do clima tropicalúmido<br />

de seu país - localizado a 4978<br />

quilômetros do Brasil - e dos frutos do<br />

mar frescos nas refeições cotidianas.<br />

O rapaz não gosta de queijo e passa<br />

mal somente com o cheiro de café. Em<br />

contrapartida, seu prato mineiro favorito<br />

é o frango com quiabo. Preferências<br />

culinárias à parte, os sete anos no Brasil<br />

têm sido uma experiência enriquecedora<br />

na transformação desse novo espaço em<br />

lar. Edgar garante que o tempo no Brasil o<br />

fez amadurecer e ter outras perspectivas<br />

sobre si mesmo e sua família, que o<br />

ajudaram a construir sua personalidade,<br />

mantendo sua raiz africana.<br />

“Além dos colegas da Guiné que me<br />

receberam aqui, teve uma família que até<br />

hoje agradeço muito. Me acolheram na<br />

casa deles até que eu achasse um lugar<br />

para morar. Nessa casa ganhei irmãos,<br />

uma mãe e uma avó. Não volto muito<br />

para Guiné porque é muito caro e não<br />

compensa passar pouco tempo lá, mas<br />

assim que eu me formar, é pra lá que eu<br />

quero voltar: casa em primeiro lugar”.<br />

As mudanças, no entanto, não são<br />

apenas entre um continente e outro.<br />

Aos 81 anos, o ouro-pretano Roque<br />

Nolasco nunca saiu de Ouro Preto. Sua<br />

história se confunde com a história<br />

do Zé Pereira e o Club dos Lacaios,<br />

agremiação carnavalesca centenária da<br />

qual participa desde a adolescência.<br />

Diferente de Edgar, a ressignificação do<br />

lar de Roque acontece junto às mudanças<br />

da cidade impressas nas lembranças de<br />

cada carnaval em que desfilou. “Eu me<br />

lembro que ali na Praça Tiradentes, onde<br />

hoje é o Banco Bradesco, era uma empresa<br />

de eletricidade. Mudou muito.”. Para<br />

Roque, seu lar é a trajetória no Zé Pereira:<br />

“O Zé Pereira me faz sentir um bem muito<br />

grande, eu gosto do que sinto aqui e por<br />

isso estou há tanto tempo. Minha família<br />

foi toda embora e o que eu tenho é aqui. Eu<br />

adoro o Zé Pereira porque ele é minha vida”.<br />

De acordo com o psicólogo Geraldo<br />

Tadeu, o processo de ressignificação do<br />

lar é fundamental para a construção<br />

social do indivíduo. “A casa e o lar estão<br />

conectados, mas existe uma distinção entre<br />

ambos. O lar é diferente da casa porque é<br />

uma construção psíquica, que começa na<br />

infância e com o passar do tempo repercute<br />

no processo de construção da personalidade<br />

do indivíduo”. O psicólogo afirma ainda que,<br />

na infância, o sujeito passa por situações com<br />

as quais ainda não sabe lidar, o que resulta<br />

na transferência desse sentimento para<br />

algum objeto que rememore nele aquela<br />

determinada circunstância.<br />

Tempo<br />

Cláudio Coração morou a maior parte da<br />

infância na zona rural de Botucatu, cidade<br />

do interior de São Paulo, localizada a 240<br />

quilômetros da capital. Os contrastes entre a<br />

eletricidade da capital e a calmaria do interior<br />

formam a personalidade do jornalista e<br />

professor aficionado por livros, música e<br />

cinema. Da infância, ficaram as marcas da<br />

timidez e a curiosidade, características que<br />

o trouxeram do interior de São Paulo ao<br />

interior de Minas Gerais. Professor do curso<br />

de Jornalismo da UFOP, é na sala de aula o<br />

lugar onde se sente realizado.<br />

“A sala de aula é um lar pra mim porque é<br />

onde eu me sinto preenchido, é o lugar onde<br />

eu faço o que eu gosto de fazer, mas não é só<br />

isso. Lar é olhar para as ruas por onde a gente<br />

passa, é reparar num detalhe novo de uma<br />

casa que a gente vê todo dia e a partir disso ir<br />

ressignificando as coisas”. O ritual de passar<br />

café e assistir “Sr. Brasil” aos domingos de<br />

manhã o acompanha na vida em Mariana.<br />

Comandado por Rolando Boldrin, o programa<br />

apresenta músicas e ritmos genuinamente<br />

brasileiros que rememoram a infância e a<br />

família que ainda vive em Botucatu.<br />

O tempo, assim como a casa, atravessa<br />

os processos de significação do lar. Segundo<br />

Geraldo Tadeu, à medida que o tempo<br />

passa e o sujeito envelhece, suas percepções<br />

desse sentimento são alteradas. O psicólogo<br />

afirma que não existe uma fase em que o<br />

sujeito vai estar mais preparado para isso<br />

ou não, é a própria experiência de vida do<br />

sujeito, das dificuldades e dos prazeres que<br />

ele tem que vão estar sempre em processo<br />

de construção na sua formação. “Diante<br />

dessa ideia dos afetos no lar, é o sujeito que<br />

está amadurecendo ali. Exemplos como a<br />

comida são as partes concretas levadas da<br />

casa. Não dá para distanciar uma coisa da<br />

outra, mas, ao mesmo tempo, é nítida a<br />

percepção do lar nestes afetos”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong> 37


Habitar<br />

- Muito prazer! Estou produzindo um ensaio<br />

‘<br />

fotografico sobre o Lar. Gostaria de conversar um<br />

pouco, conhecer sua casa e tirar algumas fotos.<br />

ˆ<br />

Voce aceita participar?<br />

Talvez outro dia<br />

Hoje nao...<br />

˜<br />

melhor nao<br />

Não vou aceitar<br />

Não vai dar<br />

˜<br />

Desculpa, mas não.<br />

nãO<br />

˜<br />

Claro, nao repare a bagunca.<br />

POde entrAr


Texto: Joyce Fonseca<br />

Foto: Joyce Fonseca<br />

Arte: Jasmine Jacyara<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17<br />

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Maria do Carmo<br />

Religiosa assídua. Por amar hospitais, dedicou sua vida a cuidar das pessoas.


Fatinha Muniz<br />

Lembranças da infância na fazenda com seus pais e 9 irmãos fazem seus olhos brilharem.<br />

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Emy Verona<br />

Professora de Português, Ciências e Inglês. Viveu por 56 anos um casamento perfeito que gerou 4 filhos, 13 netos e 6 bisnetos.


Elza Lopes<br />

Filha de fazendeiros, estudou até o quarto ano por opção. Casada há 39 anos, dedica seu tempo a religião e família.<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17<br />

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