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Revista Curinga Edição 24

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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<strong>Revista</strong> Laboratório | Jornalismo | UFOP<br />

Fevereiro de 2018 | Ano VIII<br />

<strong>24</strong>


Expediente<br />

<strong>Curinga</strong> é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II.<br />

<strong>Revista</strong> produzida pelos alunos do curso de Jornalismo da<br />

Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).<br />

Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA).<br />

Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (DECSO).<br />

Professores Responsáveis<br />

Frederico Tavares - 11311/MG (Reportagem)<br />

Flávio Valle (Fotografia)<br />

Michele Tavares - 0001195/SE (Planejamento Visual)<br />

Editora de Texto<br />

Francielle de Souza<br />

Editora de Arte<br />

Lígia Caires<br />

Editora de Fotografia<br />

Joyce Fonseca<br />

Editores de Multimídia<br />

Mayara Portugal<br />

Mayron Brito<br />

Revisores<br />

Luiz Loureiro<br />

Mariana Storto<br />

REPÓRTERES<br />

Carlos Paranhos<br />

Elmo de Oliveira<br />

Gabriel Conbê<br />

Glenda Louise<br />

Isabela Resende<br />

Íris Jesus<br />

Jasmine Jacyara<br />

Letícia Conde<br />

Lui Pereira<br />

Mariana Morais<br />

Nathalya Saiki<br />

Rafaela Rissoli<br />

FOTÓGRAFOS<br />

Amanda dos Santos Francisco<br />

Carmem Guimarães<br />

Evelin Ramos<br />

Fábio Souza<br />

Letícia Caldeira<br />

Luiza Boareto<br />

Mariani Barbosa<br />

Marianna França<br />

Melissa Reis<br />

Pedro Menegheti<br />

DIAGRAMADORES<br />

Bruno Andrade<br />

Caroline Borges<br />

Guilherme Oliveira<br />

Igor Mattos<br />

Ingrid Mitsue<br />

João Vitor Nunes<br />

Octávio Zumerle<br />

Rhaquel Rocha<br />

Thiago Henrique<br />

Wigde Arcangelo<br />

Monitoras<br />

Ana Paula Bitencourt<br />

Júlia Rocha<br />

Endereço da <strong>Curinga</strong>:<br />

ICSA / UFOP<br />

Rua do Catete, 166 - Centro<br />

35420-000, Mariana - MG<br />

revistacuringa@icsa.ufop.br<br />

Impressão:<br />

MIJR EDITORA GRÁFICA<br />

Rua Carlos Pinheiro Chagas, 138<br />

Ressaca, CEP 32.113-460 - Contagem/MG<br />

Tel.: (31) 3557-5777


6<br />

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<strong>24</strong><br />

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38<br />

Conhecimento maior que a vida<br />

A cor do gênero<br />

Narrativa em Cores<br />

Percepção Urbana<br />

Pigmentocracia<br />

Representatividade Importa<br />

A cor na linguagem<br />

TODAS é a tendência<br />

Corpo de Nuvens<br />

Amarelo Deserto<br />

A cor-pura do teu corpo<br />

Sumário


Editorial<br />

Os olhos de um jornalista não descansam, não piscam,<br />

não adormecem. Percorrem o mundo atrás da novidade.<br />

Extraem do cotidiano o peculiar. Procuram o novo no que<br />

já é velho. Lançam luz naquilo que a visão rotineira deixa<br />

turvo. Diante da onda de informações que circulam sem<br />

parar e em todo lugar, o jornalista antenado sabe: boas<br />

pautas moram nos detalhes.<br />

Atenta às minúcias do cotidiano, a revista <strong>Curinga</strong><br />

lança-se à empreitada de usar metaforicamente uma<br />

lupa, já que o tema desta edição é microscópico. Aqui, o<br />

pigmento, mote escolhido para ser a espinha dorsal das<br />

narrativas, amplia-se e faz surgir 44 páginas de histórias.<br />

O tema nos induz a uma problemática: sabemos que<br />

os pigmentos estão aplicados em nosso cotidiano, mas<br />

pouco refletimos sobre as construções sociais atreladas a<br />

eles. Como pautar, então, algo que na prática é tão palpável<br />

mas, ao ser submetido a um aprofundamento, parece tão<br />

desconhecido e tão revelador de nossos hábitos culturais e<br />

sociais? A edição <strong>24</strong> se insere nessa lacuna.<br />

Do potencial narrativo que surgiu daí, trazemos nas<br />

páginas seguintes algumas facetas da pigmentação no dia<br />

a dia, buscando tensionar as consequências dos usos que<br />

fazemos dela. A editoria “Eu no Mundo” aborda o que é<br />

visível: o pigmento sob uma perspectiva histórica; as cores<br />

atribuídas ao binarismo de gênero; o ofício de quem põe cor<br />

nas folhas que lemos e nas ruas em que andamos.<br />

A “Travessia” reflete sobre o papel central da melanina<br />

na sociedade brasileira, que estabelece posições de<br />

privilégios sociais e estrutura a cultura nacional. A editoria<br />

“Mundo em mim” procura desvelar situações em que<br />

pigmentar é subverter. São histórias nas quais o pigmento<br />

(ou a ausência dele) se tornou motivo de resistência,<br />

afirmação de identidade e luta.<br />

Ao fim, o que apresentamos nas páginas da <strong>Curinga</strong><br />

é apenas uma amostra do nosso microscópio, da nossa<br />

lupa, do nosso olhar. Ao leitor delegamos a tarefa mais<br />

importante: a de colorir, pigmentar e interpretar essa<br />

edição como melhor lhe convier.


Eu no mundo


Sensação<br />

Conhecimento<br />

maior que a vida<br />

O saber humano e a manipulação de pigmentos é<br />

fundamental para a integração das ciências<br />

e das artes no nosso mundo.<br />

Texto: Lui Pereira e Elmo O. Alves<br />

Foto: Luíza Boareto<br />

Arte: Guilherme Oliveira


Os pigmentos de origem natural são substâncias<br />

presentes no cotidiano do ser humano desde a préhistória.<br />

Os hábitos e costumes dos homens pré-históricos<br />

só puderam ser estudados a partir do descobrimento de<br />

registros feitos com minerais, como o óxido de ferro, ou<br />

de vegetais, como o urucum, o carvão ou o jenipapo.<br />

O professor de física Clayton Antonio Pereira Pires,<br />

em sua dissertação de mestrado, explica: “pigmento é um<br />

material que muda a cor da luz transmitida ou refletida<br />

como resultado de uma absorção seletiva em um dado<br />

comprimento de onda”, ou seja, são substâncias capazes<br />

de modificar a luz visível de um material.<br />

Na alimentação, os pigmentos servem tanto para<br />

dar cor quanto para dar sabor à comida, além de serem<br />

muito importantes para a saúde do nosso corpo. Para a<br />

nutricionista esportiva e funcional, Dra. Daniela Pala,<br />

vale a regra: quanto mais colorido, mais saudável ele é.<br />

Ainda de acordo a nutricionista, os pigmentos de<br />

alguns vegetais podem previnir doenças como diabetes,<br />

pressão alta e câncer. A alcina, que confere a cor branca ao<br />

alho, protege o coração e melhora os níveis de colesterol.<br />

Já as antocianinas, presentes nos alimentos vermelhos e<br />

roxos, combatem o envelhecimento e doenças articulares.<br />

Essas substâncias e suas várias cores servem também<br />

para identificar plantas ou animais e nos alertar sobre<br />

quais são comestíveis ou venenosos. Sobre alguns<br />

anfíbios, o professor e especialista em microbiologia e<br />

parasitologia, Erich Espinelo, nos ensina: “A coloração<br />

dos sapos, rãs e pererecas são indícios de que são<br />

venenosos. Quanto mais brilhante, vibrante a cor, maior<br />

será sua toxicidade para os outros animais e para nós<br />

seres humanos. Na verdade, é uma forma de defesa<br />

contra predadores, ou seja, sua cor forte já demonstra que<br />

se for comido o predador terá problemas sérios”.<br />

No campo militar, nem sempre foram utilizadas<br />

camuflagens e cores neutras para cada tipo de combate.<br />

O Dr. Paulo Morais Alexandre, especialista em História<br />

da Arte (Universidade de Coimbra), afirma em seu artigo<br />

“A Moda e o Traje Militar”, que cores vibrantes, como o<br />

vermelho e azul, eram utilizadas no início, mas, como<br />

eram chamativas,expunham os soldados aos inimigos.<br />

Desde os tempos mais remotos, os pigmentos são<br />

utilizados também como elemento decorativo e artístico.<br />

Talvez tenha sido nesse segmento que os seres humanos<br />

mais manipularam e descobriram infinitas possibilidades<br />

de cores capazes de serem extraídas da natureza para<br />

criar pinturas e objetos feitos tanto para uso cotidiano<br />

quanto para a contemplação ou fruição.<br />

De acordo com Lilian Panachuk, doutoranda em<br />

antropologia pela Universidade Federal de Minas<br />

Gerais (UFMG), algumas das cerâmicas mais antigas<br />

encontradas no baixo Amazonas datam de oito mil anos.<br />

Foram encontrados os pigmentos tabatinga e argila<br />

branca para a cor branca, já o pigmento óxido de ferro, a<br />

partir de diferentes graus de oxidação, foi relacionado às<br />

cores vermelho, amarelo e preto.<br />

A antropóloga ainda nos esclarece que foram<br />

feitas poucos estudos dos objetos encontrados, mas<br />

os resultados obtidos a partir das análises químicas de<br />

cerâmicas das populações pré coloniais dessa região<br />

apontam que as substâncias encontradas como pigmentos<br />

eram de origem mineral.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 7


Resgate de uma tradição<br />

Cachoeira do Brumado, distrito de Mariana (MG),<br />

onde a tapeçaria de sisal, feita de fibras extraídas das<br />

folhas de Agave sisalana, é a principal fonte de renda<br />

da população, vivia uma situação preocupante nas<br />

últimas décadas com relação às práticas de produção.<br />

A tapeçaria de fibras sisal é considerada uma tradição<br />

secular, mas com o passar do tempo, os artesãos<br />

substituíram o uso de corantes naturais por anilinas<br />

sintéticas no tingimento das fibras.<br />

Um projeto coordenado pela professora Maria<br />

Cristina Teixeira Braga Messias, do Departamento<br />

de Biologia da Universidade Federal de Ouro Preto<br />

(UFOP), foi realizado em conjunto com artesãos locais<br />

para solucionar o problema. “A disposição dos rejeitos<br />

originados pelo processo de tingimento era descartado<br />

diretamente nos rios e córregos do distrito, gerando<br />

impactos ao ambiente”, esclarece. Sendo assim, o<br />

projeto “Aspectos etnobotânicos do artesanato em<br />

sisal em Cachoeira do Brumado” resgatou o uso de<br />

corantes naturais para tingir as fibras de sisal.<br />

Segundo a docente, o objetivo foi investigar junto<br />

à população o conhecimento sobre plantas corantes<br />

disponíveis na região. A existência de várias dessas<br />

plantas possibilitou seu uso, produzindo, inclusive,<br />

cores inexistentes no repertório dos corantes artificiais.<br />

A partir do projeto, foram resgatadas tecnologias<br />

ecologicamente corretas, agregando valor ao produto.<br />

Pigmentos nas artes<br />

Jacques Rodrigues é poeta, escritor e artista<br />

plástico. Autodidata, contou com a mentoria do<br />

também artista Ayrton Pyrtz que o incentivou a dar<br />

seus primeiros passos nas artes visuais e lhe ensinou,<br />

entre outras coisas, a linguagem do concretismo<br />

brasileiro e o minimalismo da poesia Haikai.<br />

O artista utiliza essencialmente terras coloridas,<br />

café, folhas e cascas de frutas para criar suas<br />

obras. Segundo Jacques, a diversidade de cores e<br />

as tonalidades únicas encontradas nos minerais e<br />

vegetais trazem uma maior originalidade às suas<br />

obras. Outro aspecto importante para o artista é sua<br />

ligação espiritual com o mundo e o fato das tintas<br />

produzidas a partir de elementos naturais não serem<br />

tóxicas, o que o auxilia a ter uma maior integração<br />

com os elementos da natureza.<br />

Presente na alimentação e nos saberes humanos,<br />

os pigmentos naturais fizeram e ainda fazem parte<br />

do nosso cotidiano como elemento de união entre as<br />

ciências, as artes e a natureza.<br />

Preto: Carvão Mineral<br />

Branco: Tabatinga<br />

Verde: Folhas<br />

Amarelo: Açafrão<br />

Vermelho: Urucum


CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong><br />

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Comum<br />

A cor do gênero<br />

Texto: Letícia Conde<br />

Foto: Carmem Guimarães<br />

Arte: Rhaquel Rocha<br />

Casting: Laura Souza Lourenço,<br />

Bryan Azevedo de Melo e Lis Silva Marchi<br />

“Azul é uma cor para meninos e rosa para meninas” é uma<br />

convenção que está presente em nossas vidas antes mesmo<br />

do nosso nascimento. No entanto, essa concepção nem<br />

sempre foi assim. Até o século XIX, recém-nascidos e crianças<br />

pequenas utilizavam peças brancas. Os processos de lavagem<br />

eram manuais e a tintura das roupas tinha alto custo.<br />

Na virada para o século XX, como explica a historiadora<br />

Jo Paoletti no livro Pink and Blue: Telling the Boys from the Girls<br />

in America (Rosa e Azul: diferenciando meninas de meninos<br />

na América), redes de lojas e revistas sugeriam que o rosa era<br />

cor de menino, por ser “mais decidido e forte”, e o azul cor<br />

de menina, por ser “mais delicado e amável”. Além disso, é<br />

nessa época que os tons pastéis começaram a ser utilizados<br />

nos produtos infantis. Depois da II Guerra Mundial o rosa<br />

começou a ser associado com o gênero feminino e o azul com


Occullup tatur, sunt. Ucium aliquas per<br />

o masculino, embora a consolidação desse conceito tenha<br />

ocorrido somente na década de 1980, conforme diz Paoletti.<br />

Ellem Souza, 27, é mãe da Laura, 10 meses, e conta que<br />

antes de descobrir o sexo do bebê não tinha comprado nada.<br />

Porém, quando começou a montar o enxoval de sua filha, teve<br />

certeza de que o rosa estaria na lista. “Além da gente ter essa<br />

ideia de que o rosa é cor de menina e o azul de menino, as<br />

lojas te dão muita influência sobre isso. As opções de enxoval<br />

para meninas são, em sua maioria rosa, e para meninos, azul”.<br />

Paula Viegas, graduada em Publicidade e Propaganda<br />

pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e mestra em<br />

Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica<br />

do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que a mídia<br />

influencia na construção de rótulos em relação aos gêneros<br />

e a publicidade colabora na consolidação dessa convenção,<br />

atuando principalmente através da repetição e persuasão com<br />

o intenso uso de formas e cores.<br />

A publicitária também afirma que a indústria da<br />

maternidade - responsável por criar produtos que,<br />

supostamente, proporcionam uma maternidade livre de<br />

dificuldades - determina quais cores são adequadas para cada<br />

gênero. “Por ser um momento único na vida de uma família,<br />

o nascimento de uma criança gera consumo, o que em grande<br />

escala movimenta a indústria. A descoberta do sexo do bebê<br />

também é um momento de bastante comoção. Assim, a oferta<br />

de produtos nessa fase é gigante. Com isso, normalmente há<br />

um reforço de produtos separados por gênero, como carrinhos<br />

para meninos e bonecas para meninas”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 11


Padrões e rupturas<br />

A descoberta do sexo do bebê é uma etapa de grande<br />

expectativa para os pais e, como forma de ritualizar esse<br />

momento, há um fenômeno novo: os “chás de revelação”.<br />

Nessa comemoração, a decoração faz referência a ambos<br />

os sexos, que, na maioria das vezes, são representados<br />

pelas cores rosa e azul. Durante a festa, os pais, familiares<br />

e demais convidados descobrem o gênero do bebê de<br />

acordo com a cor do bolo.<br />

Paolla Mello já havia descoberto que ganharia uma<br />

menina. No entanto, resolveu fazer uma celebração para<br />

revelar o sexo do bebê à família. “São os primeiros netos<br />

dos meus pais, pois sou filha única, e meus sogros só<br />

tinham netos meninos, então foi criada uma expectativa<br />

muito grande sobre o sexo do meu bebê. Queríamos<br />

contar a eles de uma maneira especial e escolhemos esta”.<br />

Embora extremamente atraentes e pensados de<br />

maneira carinhosa pelos pais, os chás de revelação, os<br />

ensaios newborn, isto é, um álbum de fotos realizado<br />

quando o bebê tem de 5 a 12 dias de vida, os mesversários,<br />

que são as comemorações de cada mês completado pelos<br />

bebês, e as fotografias durante o parto revelam também<br />

formas de criar novos mercados e necessidades de<br />

consumo. Segundo a professora e pesquisadora Karina<br />

Gomes Barbosa, da Universidade Federal de Ouro Preto<br />

(UFOP), em momento algum devemos descredibilizar a<br />

mãe por realizar esses rituais, porém é preciso entender<br />

o que existe por trás de todo esse mercado. Conforme<br />

explica Karina, esses eventos são “uma oportunidade de<br />

criar novas ‘necessidades’ de consumo que alimentam a<br />

roda econômica do capitalismo contemporâneo”. Para<br />

além da questão econômica, essas práticas revelam que<br />

a indústria quer vender uma imagem de maternidade:<br />

“É preciso mostrar às mães que a maternidade é atraente<br />

e esconder a depressão pós-parto, o cansaço, a birra, o<br />

choro, a cólica infantil, a dor da amamentação”.<br />

Há algumas mães e pais que buscam quebrar esse<br />

padrão, como é o caso de Juliana Rodrigues de Almeida,<br />

jornalista, e de Caio Rodrigues do Vale, professor. O casal<br />

escolheu descobrir o sexo do bebê no instante do parto.<br />

“Ambos escolhemos isso por algumas razões. Uma delas é<br />

porque para nós não faz diferença se é menino ou menina<br />

e a gente queria viver essa emoção como antigamente se<br />

vivia, de descobrir o sexo do bebê quando ele nasce. Ter<br />

essa emoção completa do momento do nascimento”.<br />

Além disso, a grande diversidade de itens que a<br />

indústria de produtos para bebês oferece, criando assim<br />

um consumo excessivo, também levou Juliana Rodrigues<br />

a optar por descobrir o sexo do bebê durante o nascimento.<br />

“Quando você não conhece o sexo, você acaba comprando<br />

o básico, não ficando tentada a comprar. Por exemplo,<br />

quando você sabe que é menina, vestido, lacinho ou se<br />

você sabe que é menino, boné e camisa quadriculada.<br />

A gente é que constrói as necessidades de consumo do<br />

bebê”. Juliana também relata que “essas construções de<br />

gênero começam muito cedo e são constituições que os<br />

pais impõem, pois as crianças não nascem aprendendo<br />

que rosa é de menina e azul de menino, ou que boneca é<br />

para menina e carrinho para menino”.<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong> 17 13


Alternativa<br />

narrativa<br />

em cores<br />

Texto: Íris Jesus<br />

Foto: Marianna França<br />

Arte: João Vitor Nunes


O mercado de histórias em quadrinhos (HQs) no Brasil tem crescido<br />

gradualmente desde 1990, como afirma o Sebrae em relatório divulgado<br />

em 2014. Em consequência desse processo, profissionais como desenhistas,<br />

roteiristas, coloristas e arte-finalistas que atuam nesse nicho já conseguem<br />

atingir o reconhecimento de seus trabalhos. exemplo disso é a notoriedade<br />

que a carreira dos coloristas vem ganhando.<br />

Um dos nomes de referência dessa carreira é o de Marcelo Maiolo.<br />

Natural de Piracicaba, interior de São Paulo, e publicitário de formação,<br />

atua como colorista desde 2005. Ao longo de sua carreira, Maiolo já<br />

coloriu títulos de grandes empresas internacionais, como da Marvel e<br />

da DC. Entre seus trabalhos estão o Arqueiro Verde, Old Man Logan e<br />

Green Lantern Corps. Apesar de parecer algo simples, o trabalho de colorir<br />

HQs é complexo e exige empenho dos artistas.<br />

<strong>Curinga</strong> - Como você iniciou sua carreira de colorista?<br />

Marcelo Maiolo - Fui convidado por dois amigos para participar de<br />

um projeto de HQ para o roteiro, e os dois iam desenhar e finalizar.<br />

Como íamos publicar online, resolvi aprender a colorir só para não ser<br />

publicado em branco e preto. Acabei pegando gosto pela coisa e comecei a<br />

estudar com afinco até enviar meu portfólio para agências que<br />

cuidam da carreira de artistas no mercado internacional.<br />

C. - o colorista é o profissional que põe cor (e, às vezes, texturas)<br />

nos desenhos das HQ’s. em uma perspectiva mais pessoal, como você<br />

descreveria o trabalho de um colorista?<br />

M.M. - O mais importante na colorização, para mim, é ajudar na narrativa.<br />

Tudo tem que funcionar em prol da mídia, nesse caso as HQs, e a cor é um<br />

elemento muito importante para isso. Além disso, criar emoção para as<br />

cenas. Todo o resto é técnica para chegar nisso.<br />

C. - Considerando o mercado de HQs no Brasil,<br />

com todas as mudanças que ele vem passando<br />

no comércio de revistas impressas, como<br />

você avaliaria a carreira de um colorista<br />

profissional hoje?<br />

M.M. - Eu acredito que não existe ainda<br />

um mercado profissional de quadrinhos<br />

no Brasil, pois dificilmente o artista pode<br />

viver da venda de seus gibis. Geralmente<br />

trabalham com publicidade e outras coisas<br />

para se manter. Um mercado profissional para<br />

mim é isso. Analisando por esse lado e pelos<br />

valores pagos aqui, um colorista que vivesse<br />

apenas de quadrinhos brasileiros dificilmente<br />

teria um salário satisfatório no final do mês, uma<br />

vez que o processo de colorização é um processo<br />

pesado e geralmente de prazos curtos.<br />

C. - em 2017, o Premio Jabuti passou a ter<br />

uma categoria direcionada às HQs, o que<br />

mostra uma notoriedade crescente nessas<br />

obras. Apesar de toda a polêmica sobre as<br />

HQs serem ou não literatura, você acha que<br />

prêmios como o Jabuti possam fortalecer<br />

carreiras como as dos coloristas?<br />

M.M. - Eu não tenho muita certeza, afinal<br />

eu acredito que nesse ramo de artes visuais<br />

conta muito mais o portfólio do que o<br />

curriculum. Prêmio agrega no curriculum,<br />

mas não melhora a qualidade do seu trabalho.<br />

Sempre prefiro minha parte em dinheiro,<br />

não me importo com os prêmios.<br />

C. - Na maioria das vezes, coloristas trabalham a partir de<br />

contratos individuais firmados a cada obra. Você considera isso<br />

um ponto positivo na carreira (uma vez que dá maior autonomia<br />

para o profissional), ou acha que é algo que ainda pode melhorar<br />

com o fortalecimento e reconhecimento da profissão?<br />

M.M. - Isso é muito pessoal. Tem artistas que gostariam de um contrato de<br />

exclusividade para ter uma garantia maior, mas eu acredito que ninguém<br />

tem garantia nenhuma em lugar nenhum, por isso, prefiro sempre a<br />

possibilidade de ter as empresas como clientes e não como patrões. Dessa<br />

forma, eu posso me dedicar a vários tipos de trabalhos e projetos.<br />

C. - Para as pessoas que estão começando agora na carreira, você daria<br />

alguma dica ou sugestão?<br />

M.M. - Primeiro de tudo: aprenda inglês. Com isso você terá acessos a cursos<br />

e material didático do mundo todo e não ficará refém só do que é publicado<br />

aqui. Além disso, poderá comprar livros de arte por um terço do valor. E segundo:<br />

estude, estude e estude. Camarão que dorme a onda leva.<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong> <strong>24</strong> 15


Habitar<br />

Percepção<br />

Texto: Nathalya Saiki<br />

Foto: Letícia Caldeira<br />

Arte: Octávio Abrão<br />

Artistas: Bruno Miné e<br />

Iolanda Leiko<br />

A paisagem histórica e interiorana das cidades mineiras de<br />

Mariana e Ouro Preto é marcada pelo charme das construções<br />

coloniais e por monumentos de mestres como Aleijadinho<br />

e Ataíde, cercados por belas montanhas. Porém, além dos<br />

centros históricos, das ruas de pedra sabão e das obras<br />

barrocas, há também uma paisagem urbana, simples e muitas<br />

vezes ignorada. São nesses locais “esquecidos” que artistas<br />

criam espaços de resistência, esperança e transformação.<br />

Quem se encarrega de dar beleza e significado a essas<br />

áreas afastadas são os grafiteiros, que usam de traços e cores<br />

para passar mensagens, provocar sensações e, além de se<br />

expressar, incentivar outros a fazerem o mesmo.<br />

Iolanda Leiko é estudante de Museologia na Universidade<br />

Federal de Ouro Preto (UFOP) e grafita há cinco anos. Como<br />

estuda Cromoterapia (prática pseudocientífica de utilizar<br />

cores na cura de doenças), ela conta que costuma usar as<br />

cores no grafite pensando nas sensações e sentimentos que<br />

quer despertar nas pessoas.<br />

Em seus trabalhos, Leiko busca destacar a importância<br />

do autoconhecimento e da interiorização: “Meu grafite tem o<br />

intuito de tentar fazer as pessoas olharem pra dentro e verem<br />

que fazem parte de uma coisa maior”. Para difundir essa<br />

mensagem, ela geralmente utiliza cores como rosa e azul, que<br />

emitem a sensação de harmonia e equilíbrio, e o laranja, que<br />

desperta concentração e criatividade.<br />

Durante o movimento estudantil de ocupação da UFOP,<br />

realizado em 2016, do qual Iolanda participou, a grafiteira<br />

fez diversos trabalhos no Campus do Morro do Cruzeiro. Os<br />

grafites realizados tinham o objetivo tanto de melhorar o<br />

ambiente universitário e o clima entre os estudantes que o<br />

ocupavam quanto de registrar a resistência dos universitários.<br />

Urbana<br />

Diversidade de estilos<br />

Diferente de Iolanda, que é de Mogi das Cruzes (SP), o<br />

artista Dinho Bento é natural de Ouro Preto e começou sua<br />

trajetória na FAOP (Fundação de Arte de Ouro Preto). Hoje,<br />

com trabalhos espalhados por todo Brasil, e em diversos<br />

outros países, ele aborda os mais variados temas em seu<br />

trabalho, que tendem a dialogar com o meio rural ou com o<br />

local e o propósito de cada obra.<br />

Em muitos de seus grafites, as cores possuem um<br />

significado especial, ligado à arte e ao mote específico de<br />

cada trabalho. Alguns exemplos retratam crimes contra<br />

a humanidade ou ambientais e usam o vermelho como<br />

simbolismo do sangue ou oferecem uma paisagem sem cores<br />

vivas para remeter a um cenário pós-apocalíptico.<br />

Um dos trabalhos citados por Dinho é o mural “Verde<br />

- lama” pintado em Fortaleza, em homenagem às vítimas<br />

do rompimento da barragem de Fundão da mineradora<br />

Samarco, em Minas Gerais. “Eu batizei de ‘Verde-Lama’,<br />

mas não utilizei nenhum tom verde no trabalho. Da mesma<br />

forma que existem diversos tons de verde (como verde limão,<br />

verde folha, verde mar...) a Samarco criou o verde lama,<br />

transformando áreas onde era o verde da natureza em tons<br />

de lama”, esclarece o artista.<br />

O grafiteiro Felipe de Souza valoriza o uso das cores,<br />

porém considera a legibilidade do grafite como ponto mais<br />

importante. Além disso, ele destaca um fator que dificulta a<br />

combinação de cores: o orçamento. Segundo Felipe, as latas de<br />

spray são caras, por isso, infelizmente, nem sempre é possível<br />

usar uma grande variedade ou as cores desejadas, porém o<br />

artista conta que busca diferentes técnicas para suprir esses<br />

problemas, como o uso de tinta comum para o fundo.


Nos trabalhos do grafiteiro Bruno Miné, as paletas de cores<br />

costumam ser bem diferenciadas. “Isso me remete um pouco<br />

da alegria de pintar”, diz Bruno. Apesar de buscar intrigar as<br />

pessoas com o uso de diferentes tonalidades, ele acredita que<br />

a obra e suas cores têm leituras diferentes para o artista e para<br />

o público. Bruno enxerga nessa diferença um ponto positivo,<br />

pois acredita que a obra não pertence ao artista a partir do<br />

momento em que as pessoas passam a interpretá-la.<br />

Outros olhares<br />

As entrevistas realizadas com os artistas revelam o poder<br />

transformador, tanto visual quanto ideológico da arte urbana.<br />

Porém, em cidades onde uma boa parte do espaço de circulação<br />

é formado por patrimônio histórico material, a limitação do<br />

espaço é um obstáculo para atividade dos grafiteiros.<br />

No âmbito jurídico, a lei nacional nº 12.408/2011, que<br />

proíbe grafitar em local público ou privado sem autorização,<br />

prejudica a busca dos grafiteiros por locais onde expressar<br />

sua arte. Além disso, a lei 312/2010, instituída pelo Instituto<br />

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),<br />

regulamenta as intervenções no Conjunto Arquitetônico e<br />

Urbanístico de Ouro Preto, e a lei 1.728/2003 da Prefeitura<br />

Municipal de Mariana que visa também a preservação do<br />

patrimônio histórico material e imaterial da cidade, deixam<br />

as opções ainda mais escassas.<br />

Felipe conta que, mesmo nos locais fora do Centro<br />

Histórico de Ouro Preto, tem dificuldade em achar espaço<br />

para pintar, e afirma que a população da cidade não gosta do<br />

grafite devido ao seu conservadorismo e, por isso, dificilmente<br />

consegue permissão dos moradores.<br />

Meu grafite tem o intuito<br />

de tentar fazer as pessoas olharem para dentro<br />

e verem que fazem parte de uma<br />

coisa maior.<br />

Iolanda Leiko<br />

Já o artista Bruno Miné relata que, por ser uma arte<br />

diferente, em Mariana, moradores de locais afastados<br />

ficam curiosos e têm boa receptividade. Sobre a população<br />

ouropretana, ele acredita que as pessoas têm medo de sofrer<br />

alguma sanção social ao autorizarem o grafite em suas casas.<br />

Dinho sempre busca locais diferentes para pintar, como<br />

o campo e os distritos. Ele diz que não se importa com a<br />

visibilidade que o trabalho terá nesses lugares, mas sim com<br />

o diálogo e a poesia que ele pode construir.<br />

O recém-formado arquiteto e urbanista Breno dos Santos<br />

está no universo da arte urbana há 8 anos, e, para ele, a<br />

arquitetura e o grafite se complementam, já que um oferece<br />

o espaço planejado para a arte e vice-versa. Breno afirma<br />

que muitos arquitetos têm uma espécie de rejeição ao grafite<br />

por serem adeptos de um estilo erudito de arquitetura. Diz<br />

também que a junção dos dois conceitos de forma planejada é<br />

algo único, a partir da sua experiência em projetos do gênero.<br />

“O grafite feito por um arquiteto, assim como a arquitetura,<br />

pode transformar espaços e trazer sensações às pessoas”.<br />

Durante o curso de Arquitetura e Urbanismo, o artista fez<br />

estudo das cores e de como o uso delas influencia as sensações<br />

e percepções de cada pessoa, por isso julga as cores usadas no<br />

grafite como os principais elementos causadores do impacto<br />

artístico nos ambientes onde ele é empregado.<br />

Mesmo limitante para alguns, a restrição do grafite a áreas<br />

mais periféricas das cidades tem um lado positivo: contempla<br />

alguns moradores desses locais, especialmente os jovens,<br />

com uma arte que é mais próxima de sua realidade, não só<br />

ao reconhecê-la no grafite, mas também por se inspirarem a<br />

realizar esse mesmo trabalho.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong><br />

17


A estudante Iolanda ressalta que quem não<br />

tem muita proximidade com a cultura erudita<br />

dificilmente se enxergará fazendo esse tipo de arte,<br />

mas ao ver o grafite se identificaria. Isso aconteceu<br />

com Bruno Miné, que se apaixonou pelo grafite<br />

aos 12 anos ao presenciar Thiago Alvim, um dos<br />

artistas mais famosos na região de Ouro Preto e<br />

Mariana, grafitando. Miné, que já tinha interesse<br />

no universo hip hop, conta que ficou fascinado e<br />

começou a treinar em casa, onde até hoje olha com<br />

carinho para os primeiros grafites.<br />

O estilo barroco e colonial retratado nos centros<br />

históricos das duas cidades, especialmente Ouro<br />

Preto, não representa os indivíduos que moram<br />

afastados dos monumentos e museus, construções<br />

voltadas aos turistas, e não à população local. Aos<br />

que moram nos morros e bairros com paisagens<br />

e cotidianos bem diferentes do elitizado, a Arte<br />

Urbana oferece o sentimento de pertencimento,<br />

que é reforçado com o uso das cores, carregadas de<br />

significado e esperança para futuros artistas e seus<br />

respectivos apreciadores.


Travessia<br />

CURINGA | EDIÇÃO 17 19


Pigmentocracia<br />

O preconceito racial atinge os diferentes tons da pele negra.<br />

Superar essa exclusão exige uma luta só.<br />

Texto: Glenda Louise e Jasmine Jacyara<br />

Foto: Evelin Ramos<br />

Arte: Ingrid Mitsue<br />

Casting: Jahi Amani, Júlia Rocha,<br />

Raphael Rogrigues e Uriel Silva<br />

Desde a década de 1990, a personagem Globeleza estampa<br />

as telas da Rede Globo durante o período de carnaval. Seminua,<br />

a mulher negra é apresentada de modo atraente ao público. O<br />

que de início pode parecer positivo, visto que a conquista de<br />

espaço na mídia é uma luta ainda vigente dos movimentos<br />

sociais em defesa dos negros, tem efeito contrário, já que<br />

reforça estereótipos e naturaliza o preconceito.<br />

Em 2014, ao ser selecionada para atuar como Globeleza,<br />

a modelo e atriz Nayara Justino foi alvo de ofensas diretas do<br />

público. Um dos comentários mais frequentes foi que ela era<br />

“negra demais”. Após o ocorrido, o contrato com a emissora<br />

não foi renovado e a modelo foi substituída por uma negra de<br />

pele mais clara. O episódio deixou explícito como, no Brasil,<br />

os estereótipos variam de acordo com o tom de pele. Quanto<br />

mais escuro for o indivíduo, mais intenso é o racismo sofrido<br />

por ele. Um problema histórico. A negra de pele clara tem<br />

aval para ser desejada, enquanto Nayara, por ser negra de pele<br />

escura, é rejeitada nessa posição.<br />

Essa diferença de aceitação é nomeada como colorismo.<br />

Um fenômeno já conhecido pelos movimentos sociais, mas<br />

ainda pouco discutido no restante da sociedade. O conceito<br />

foi usado pela primeira vez em 1982, quando a escritora<br />

estadunidense Alice Walker, conhecida por defender os<br />

direitos dos negros e das mulheres, publicou um livro de<br />

ensaios chamado “In Search of Our Mother’s Gardens”<br />

(Em busca dos jardins da nossa mãe). Na publicação, Alice<br />

introduz o termo ao questionar a hierarquização das mulheres<br />

negras em dois fenótipos: negra de pele mais clara, que era<br />

vista como objeto sexual, e negra de pele escura que serviria<br />

apenas para trabalhar, evidenciando assim níveis de exclusão<br />

dentro de um grupo já marginalizado.<br />

Alessandra Devulsky, advogada e doutora em Direito<br />

Econômico e Financeiro, explica que o estudo vem da<br />

Antropologia e da Sociologia, além de estar relacionado às<br />

práticas do racismo: “De uma forma ou de outra, o colorismo<br />

cria estruturas de hierarquização entre as pessoas por conta do<br />

fenótipo que elas apresentam. Então, entender o colorismo é<br />

entender que as discriminações não ocorrem da mesma forma”.<br />

No Brasil, apesar de ser um conceito que se orienta<br />

apenas pela cor da pele, as características fenotípicas, ou seja,<br />

características físicas, também são usados como forma de<br />

hierarquizar o negro. Assim, Alessandra explica que “existem<br />

tonalidades que são consideradas belas, positivas e humanas e<br />

existem as características pejorativas, relacionadas à ideia<br />

de uma animalização do sujeito”.<br />

Nesse sentido, o colorismo surge com o intuito de derrubar<br />

a ideia de que o Brasil é uma nação livre de preconceitos, por<br />

ser um país miscigenado. A mistura de raças, portanto, não<br />

cria uma barreira no racismo, mas sim uma hierarquização<br />

social. “Os chamados negros na verdade vêm de múltiplos<br />

povos de várias regiões do território africano. A miscigenação<br />

não elimina essas diferenças, ela multiplica”, é o que diz o<br />

sociólogo Ronaldo Sales, professor da Universidade Federal de<br />

Campina Grande (UFCG).<br />

Busca pelo embranquecimento<br />

De acordo com Djamila Ribeiro, feminista negra e mestre<br />

em Filosofia, ainda que a maioria da população brasileira seja<br />

negra, os negros não são vistos em determinados espaços.<br />

Para a advogada Alessandra Devulsky, que atualmente escreve<br />

um livro sobre colorismo, entender a história do Brasil ajuda<br />

a contextualizar atuais pensamentos racistas. De acordo com<br />

a autora, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, a<br />

eugenia voltou a ser uma prática no país: “portarias e decretos<br />

administrativos vedavam a entrada de pessoas oriundas do<br />

continente africano. O objetivo era embranquecer a sociedade<br />

com imigrantes europeus, pois entendia-se que dessa forma<br />

a raça brasileira melhoraria”.<br />

Atualmente, os vestígios da busca pelo embranquecimento<br />

podem ser identificados pelos processos de alisamentos<br />

capilares e cirurgias para a afinação do nariz. Para a advogada,<br />

os negros de pele clara têm a possibilidade de serem associados<br />

em menor escala à negritude. “O fenótipo ajuda na medida em<br />

que eu sou capaz de me aproximar dessa linha normalizante,<br />

isto é, das características europeias”, explica. A autora diz<br />

que seu interesse pelo o assunto vem da percepção de ser um<br />

tema pouco abordado fora dos coletivos negros, além de sua<br />

vivência pessoal instigá-la a minimizar as diferenças: “Meu<br />

lugar é de enfrentamento e luta contra o racismo. Cabe a nós,<br />

mulheres negras de pele clara, não só reconhecer o privilégio<br />

que a gente tem, mas dar lugar em muitas circunstâncias a<br />

mulheres negras de pele escura que são invisibilizadas e<br />

silenciadas historicamente”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 21


Afroconveniência e autodeclaração<br />

Em dezembro de 2017, a Universidade de Brasília (UnB)<br />

analisava 100 casos de estudantes que supostamente haviam<br />

fraudado o sistema de cotas para negros. A investigação<br />

repercutiu em todo o país e uma pergunta passou a circular<br />

na sociedade: em que momento a identificação como negro se<br />

diferencia de uma afroconveniência?<br />

Adilson Pereira dos Santos, pedagogo e coordenador do<br />

Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI)<br />

da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), define a<br />

afroconveniência como “o ato de uma pessoa se declarar negra,<br />

mesmo não sendo, pela conveniência de ser reconhecido<br />

assim em determinada situação.” Como exemplo, cita o<br />

fato de pessoas não-negras se declararem assim para obter<br />

benefício de uma política de ação afirmativa.<br />

Mesmo criticando o atual sistema de autodeclaração, o<br />

pedagogo, que luta pelo fim da sub-representação do negro<br />

dentro das universidades desde 1999, se declara totalmente<br />

a favor do uso de cotas. Adilson explica que o objetivo das<br />

ações afirmativas, de acordo com a lei nº 12.711/2012, é<br />

destinar 50% das vagas aos estudantes oriundos de escola<br />

pública; negros, pardos e indígenas; pessoas portadoras de<br />

necessidades especiais e pessoas com baixa renda.<br />

Entretanto, o que tem se revelado desde a aplicação da<br />

lei em 2013, de acordo com o coordenador do NEABI, é a<br />

recorrência de estudantes que não fazem parte do núcleo de<br />

pessoas a quem as vagas se destinam, se matriculando apenas<br />

com a autodeclaração. “A condição imposta na lei, não leva<br />

em consideração o genótipo ou o fenótipo. Ela simplesmente<br />

pede ao sujeito que se autodeclare. Um alemão pode se<br />

autodeclarar como negro”, explica.<br />

Segundo Raphael Amaral, gerente da agência do IBGE<br />

(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de Ouro Preto,<br />

se um informante, pessoa que responde aos questionários,<br />

identifica-se como negro, ainda que não possua características<br />

afrodescendentes, a autodeclaração será computada. “O IBGE<br />

não atesta a cor”, afirma. Mas, para auxiliar na identificação,<br />

o entrevistador é orientado a explicar as cinco categorias<br />

existentes: branco, preto, pardo, amarelo e indígena.<br />

Raphael conta que existem casos em que a autodeclaração<br />

gera distorções. Um dos motivos é o fato do informante<br />

acreditar que sua resposta para o IBGE cria algum tipo de<br />

atestado de negritude, possibilitando assim a inserção a um<br />

grupo ao qual não pertence. Dessa forma, o atestado gerado<br />

serviria como justificativa para a entrada no sistema cotista,<br />

por exemplo. É importante ressaltar, no entanto, que as<br />

informações identitárias coletadas pelo instituto são sigilosas,<br />

ou seja, não produzem nenhum atestado.<br />

Para a estudante Raquel Satto, sua própria identificação<br />

racial foi mais complicada do que as cinco categorias citadas.<br />

Negra de pele clara e olhos puxados, ela conta que durante a<br />

infância ouvia comentários do tipo: “olha, uma é branca e a<br />

outra é meio encardida”, quando se referiam a ela e à irmã.<br />

Atualmente, Raquel faz parte do coletivo Braima Mané, que<br />

foi criado por alunos da UFOP com o intuito de aumentar<br />

a visibilidade do negro dentro da instituição de ensino. A<br />

militante entende que dispõe de algumas concessões por<br />

ter a pele mais clara, apesar de não possuir os mesmos<br />

privilégios de uma pessoa branca.<br />

Embora entenda o processo de autodeclaração e sinta<br />

que faz parte da comunidade negra, Raquel admite não ter<br />

convicção sobre a maneira correta de se autodeclarar: “Eu<br />

tenho muitos dilemas porque, pelo fenótipo, meu grupo<br />

específico é afro, asiático e indígena”. Para o coletivo, no<br />

entanto, a autodeclaração vem acompanhada de outras<br />

características além do fenótipo de cada um. “A gente entende<br />

que, para se autodeclarar, é necessário levar em consideração<br />

características físicas, ancestralidade, experiência de vida e a<br />

forma como indivíduo é lido pelos outros”.<br />

Apesar da existência dos coletivos, que ajudam nas<br />

discussões sobre a autodeclaração, serem cada vez mais<br />

frequentes na sociedade e principalmente nas universidades,<br />

o número de estudantes negros que ingressam no ensino<br />

superior ainda é baixo. O último censo demográfico<br />

divulgado pelo IBGE, em 2010, mostrou que no grupo<br />

de pessoas de 15 a <strong>24</strong> anos que frequentavam o nível de<br />

educação superior, 31,1% dos estudantes eram brancos,<br />

enquanto apenas 12,8% eram negros.<br />

Para Adilson, a solução para diminuir essa diferença entre<br />

o número de negros e brancos nas instituições de ensino<br />

superior é a obrigatoriedade do sistema de cotas, junto com<br />

o trabalho de uma comissão que valide a autodeclaração do<br />

candidato cotista. “Devemos combinar os dois mecanismos. A<br />

autodeclaração é o ponto de partida, é o primeiro documento<br />

que o estudante vai apresentar no momento de sua matrícula.<br />

Em seguida, o comparecimento à comissão de validação.<br />

No meu entendimento, quando você tiver esses dois<br />

mecanismos aliados, a tendência vai ser de que o sujeito<br />

reflita um pouco mais”, justifica.<br />

Conforme o coletivo negro Braima Mané explica, a<br />

afirmação racial reflete no fortalecimento da comunidade<br />

negra. “É importante se autodeclarar negro, mesmo que de<br />

pele clara, porque o colorismo é uma das formas de separar<br />

as pessoas que são negras e a ideia do coletivo é unificar as<br />

forças em combate ao racismo”.


“A miscigenação não elimina as diferenças, ela multiplica”. Ronaldo Sales<br />

“Entender o colorismo é entender que as discriminações não ocorrem da mesma forma”. Alessandra Devulsky<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong> 23


Representatividade<br />

Importa<br />

A indústria cultural - que produz conteúdos<br />

televisivos, musicais, publicações, etc. - elenca grupos sociais<br />

brancos para representar uma publicidade nada compatível com<br />

a realidade etnográfica do nosso país, no qual 54% das pessoas<br />

autodeclaram-se pardas ou negras. Como consequência, milhares<br />

de brasileiros não se sentem representados ao acessarem esses<br />

produtos. Liv Sovik, professora da Universidade Federal do<br />

Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que esse embranquecimento<br />

propicia uma ideia errônea de “projeto de nação”, na qual todos<br />

nós devemos seguir certos padrões.<br />

Dados sobre raça na indústria cultural brasileira, coletados<br />

em listas divulgadas ao final de 2017, revelam a discrepância<br />

entre a participação de artistas negros e artistas brancos<br />

em diversos cenários artísticos.<br />

3,33%<br />

9%<br />

Protagonistas<br />

dos FIlmes<br />

* As 10 obras nacionais mais assistidas em 2017<br />

91%<br />

15,02%<br />

96,67%<br />

Livros<br />

*Livros mais vendidos nos últimos 10 anos no Brasil<br />

Capas de<br />

revistas<br />

*Foram analisadas as capas das revistas Tirp, Tpm e Vogue Brasil<br />

84,8%<br />

mais executadas n


*Foram analisadas 272 apresentadores fixos de 7 emissoras abertas<br />

3,7%<br />

0,3%<br />

Legendas:<br />

Brancos<br />

Negros<br />

Outros<br />

Apresentadores<br />

na TV Brasileira<br />

1,98%<br />

o Spotify<br />

4,88%<br />

96%<br />

98,02%<br />

Protagonistas<br />

das telenovelas<br />

*Novelas exibidas pela Rede Globo, Record e SBT<br />

Música<br />

*Lista que elencam Artistas, Álbuns e Músicas<br />

brasileira<br />

95,12%<br />

Texto: Carlos Paranhos<br />

Foto: Amanda Santos<br />

Arte: Wigde Arcangelo<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 25


Sentido Encarnado<br />

Ainda que a escravidão tenha sido abolida há 130 anos,<br />

o racismo não deixou de ser uma realidade<br />

Texto: Isabela Resende e Rafaela Rissoli<br />

Foto: Fábio Souza<br />

Arte: Thiago Henrique<br />

Casting: Gabriela Telésforo e Luiz<br />

Gustavo Rose<br />

A história do Brasil é feita de heranças e<br />

continuidades. Mesmo diante dos avanços políticos<br />

e sociais, o país ainda é refém de problemas criados<br />

há muito tempo. É o que acontece com o racismo,<br />

produto de uma ordem hierárquica desenvolvida<br />

na sociedade escravocrata e que deu o tom da<br />

formação da nação por quase quatro séculos.<br />

Durante o período colonial, via tráfico<br />

negreiro, o Brasil foi o país que mais recebeu<br />

africanos para serem escravos, e um dos últimos<br />

a abolir a escravidão. Assim, a segregação racial se<br />

implantou como instrumento de manutenção de<br />

diferenças, manifestadas ainda hoje no preconceito<br />

de cor e na valorização do embranquecimento.<br />

Como explica o antropólogo e professor brasileirocongolês<br />

Kabengele Munanga, casos cotidianos<br />

de racismo passam despercebidos pelas pessoas<br />

porque o subconsciente identifica que a raça<br />

negra é um grupo social com traços culturais,<br />

linguísticos e religiosos inferiores a outro grupo:<br />

‘’essa tendência consiste em considerar que as<br />

particularidades intelectuais e morais de um<br />

dado grupo são consequências diretas de suas<br />

características físicas ou biológicas’’.<br />

A discriminação de cor possui consequências.<br />

Quando manifestada de maneira explícita, envolve,<br />

por exemplo, episódios de conflitos diretos. Em<br />

2012, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia<br />

e Estatística (IBGE), o número de assassinatos de<br />

jovens negros periféricos foi um exemplo disso,<br />

ultrapassando os 70% dos homicídios de pessoas<br />

entre 15 e 29 anos. Já a discriminação velada faz<br />

com que conflitos raciais sejam minimizados como<br />

um “mero mal-entendido”.<br />

O fato deste tipo de racismo ter força na sociedade<br />

brasileira torna difícil conseguir evitar alguns<br />

processos que impactam concretamente a vida<br />

das vítimas de preconceito.<br />

Claro, ninguém quer assumir o título de<br />

preconceituoso. A expressão “racismo” parece<br />

remeter a algo obsoleto quando, na verdade, está<br />

longe de sê-lo. É importante nos atentarmos<br />

a isso, pois em uma sociedade racista, aqueles<br />

que carregam melanina são os mesmos que<br />

convivem com uma dor antiga, sem receber<br />

nenhum tipo de apoio.<br />

A lógica de desvalorização do negro está<br />

incrustada também nas palavras e expressões da<br />

nossa linguagem. Durante o período escravocrata<br />

brasileiro, vigorava um ditado popular segundo<br />

o qual “mulher branca é para casar, mulata<br />

é para fornicar, negra é para trabalhar”.<br />

Cento e trinta anos depois da abolição da<br />

escravatura, esse ditado ainda está vivo no<br />

imaginário social e exemplifica como o preconceito<br />

se perpetua em nossas falas mais cotidianas.


Preconceito falado<br />

Falamos o tempo todo de “inveja branca”<br />

(quando é positiva) e “inveja negra” (quando se<br />

deseja o mal a alguém). Outra expressão problemática<br />

e repetida à exaustão é “não sou tuas negas”,<br />

também de referência histórica, já que “negas”<br />

remete às escravas, que sofriam abusos e<br />

maus-tratos de seus senhores brancos.<br />

No dito “a coisa está preta”, há o uso do termo<br />

“preto” como valor negativo, uma associação<br />

pejorativa do preto como algo ruim. O mesmo<br />

acontece com “mercado negro”, com um agravante<br />

histórico: a origem do termo é ligada ao mercado<br />

ilegal de escravos, que passou a vigorar no Brasil<br />

após a proibição do tráfico, em 1850. Sinônimo<br />

de tornar negro, o verbo “denegrir” significa “deturpar,<br />

destruir, fazer mal”, preconceito que se<br />

revela nos próprios dicionários.<br />

Não é difícil constatar que, até nos mecanismos<br />

tradicionais de formação do léxico,<br />

estão arraigadas essas conotações. As diversidades<br />

negativas atribuídas aos termos<br />

preto e negro, revelam esses significados: sombrio,<br />

infeliz, triste, fúnebre e perigoso.<br />

Resistência letrada<br />

Na pesquisa O Branco no Preto: As Negras Expressões<br />

de Racismo na Literatura Brasileira, desenvolvida<br />

pelo professor de Língua Portuguesa<br />

da Universidade de Fortaleza (Unifor), José Lemos<br />

Monteiro, investiga o uso de alguns desses termos<br />

por grandes escritores brasileiros. Nas conclusões<br />

do trabalho, o autor revela que jamais imaginaria<br />

quão desvalorizado o negro pudesse ser, expresso<br />

na linguagem de forma tão intensa e cruel.<br />

Pelos dados apresentados, o termo “negro”,<br />

na função de adjetivo, se associa geralmente a nomes<br />

que encerram algum significado pejorativo.<br />

Se funciona como substantivo, refere-se a aspectos<br />

que depreciam o negro, evidenciando um preconceito<br />

fortemente arraigado em nossa cultura.<br />

José Lemos chama a atenção sobre a importância<br />

de dimensionar o problema do preconceito racial<br />

na linguagem, já que se fala tanto em igualdade<br />

de direitos: ‘’Um esforço de conscientização, a partir<br />

da revelação desses sintomas, pode desencadear<br />

novas atitudes que, ao fim, se refletirão por via de<br />

consequência nas formas de expressão linguística”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 27


Entre os nomes dos autores citados no estudo<br />

de José Lemos Monteiro, um possui destaque: o<br />

escritor que fez uma ruptura pioneira no teor romantizado<br />

da palavra negro, Lima Barreto. No início<br />

do século XX, pouco tempo depois do fim da escravidão,<br />

esse autor soube retratar sua cor a partir<br />

de uma crítica aguda ao que negros e negras eram<br />

submetidos durante o período escravocrata: “negros,<br />

negras, negros flexíveis, pardos, pardas, pardos<br />

claros, escuros, morenos, morenas, caboclos,<br />

caboclas, mestiços, crioulos, azeitonas, morenos<br />

pálidos, morenos fortes, negra suja, velha preta,<br />

criada preta, moça pobre mulata”.<br />

Dessa forma, seus romances fazem-se densos<br />

a partir de “uma miríade de cores para dar conta<br />

desse vocabulário brasileiro que acomoda origem,<br />

hierarquia, sexualidade, região, geração e classe<br />

social”, como ressalta a historiadora e antropóloga<br />

Lilia Moritz Schwarcz, autora de importantes<br />

obras que retratam o negro.<br />

Apesar de acharmos que o jeito de agir e falar<br />

entre nós é harmônico e cordial, na verdade isso<br />

apenas mostra uma vocação quase explícita de não<br />

se criar conflito direto. Tudo o que é problemático<br />

é tratado de maneira velada, escondida. Tal comportamento<br />

explica as especificidades do “racismo<br />

à brasileira”, que produz desigualdades visíveis nos<br />

dados, mas se reproduz com força quase inabalável<br />

em processos culturais e silenciosos de opressão.<br />

Apesar de 54% dos brasileiros serem negros, segundo<br />

dados disponibilizados pelo IBGE em 2015,<br />

a rejeição simbólica do negro e do africano ainda é<br />

persistente no Brasil. Uma informação relevante<br />

dentre tantas outras acerca dos desafios que cabem<br />

à luta pela igualdade racial.<br />

Segundo José Monteiro, ‘’qualquer tentativa<br />

de mudança não deve centrar-se na preocupação<br />

exclusiva com o uso da língua. Esta,<br />

sendo espelho ou reflexo da sociedade, apenas<br />

sugere sintomas do comportamento social’’.<br />

É hora de tirar o racismo do seu vocabulário, porque<br />

preconceito não precisa ter voz.


O mundo<br />

em mim


Comum<br />

TODAS A é a<br />

tendênciaê<br />

Sentir-se bela parte de dentro para fora e vice-versa. A diversidade<br />

estética brasileira e global é imensa e construtora de inúmeras realidades<br />

de boniteza. Pensando nos cosméticos e sua relação com o ser bonita, a<br />

maquiagem é uma dessas vertentes. Mulheres e homens buscam na<br />

maquiagem um modo de exaltar e promover novos conceitos de beleza.<br />

Essa indústria, que por tempos foi fragmentada atendendo apenas<br />

a um perfil de consumidora, se vê obrigada a expandir seu catálogo<br />

de peças, por conta da tensão de suas consumidoras que não se<br />

identificam com o padrão acolhido. É o caso da Fenty Beauty, marca<br />

criada pela artista Rihanna.<br />

Riri, como é carinhosamente apelidada pelas fãs, é nascida em<br />

Barbados (Caribe) - um país, de acordo com o site institucional do<br />

Colégio São Francisco, composto por uma população 90% negra. Essa<br />

realidade pode ter tido grande influência na escolha dela e de sua firma<br />

em lançar recentemente uma linha de maquiagem que carrega o slogan<br />

de um produto "para todas". Tal ação inclusiva diferencia a marca de<br />

Rihanna das concorrentes ao promover a comercialização de mais de 40<br />

tonalidades de bases faciais.<br />

Fenty Beauty foi avaliada, no mês de lançamento, em 72 milhões<br />

de dólares. Na premiação Beauty Innovator Awards (evento anual que<br />

premia artistas e empreendedores da beleza por inovações no setor dos<br />

cosméticos), venceu em três categorias: “Melhor Base para Cobertura”,<br />

“Melhor Campanha” e “Empresa Inovadora do Ano”. A revista TIME<br />

nomeou a novidade como uma das melhores criações de 2017. A publicação<br />

destacou que as marcas L’Oréal e Make Up For Ever, após o sucesso de<br />

Fenty, produziram linhas com maior abrangência de tonalidades. De<br />

acordo com o site oficial, as bases de nuances escuras se esgotaram em<br />

sua primeira semana de venda, o que revela uma demanda antes ignorada.<br />

Black inclusão<br />

A discriminação mercadológica combatida por Fenty Beauty não se<br />

esgota na maquiagem. O cuidado com os cabelos cacheados e crespos<br />

também faz parte dessa realidade. Apenas nas últimas décadas, rompeuse<br />

a padronização dos cabelos, na qual o liso era enxergado e cultivado<br />

como elegante. A comercialização e utilização dessas mercadorias tiveram<br />

uma alta exuberante; diversas linhas específicas foram lançadas e<br />

sua exigência por parte das clientes fez com que salões mudassem<br />

seu menu de produtos.<br />

Solange Faustino, 40, é proprietária do Salão H.E.S e atua em Mariana<br />

(MG) há 23 anos. Especialista em cabelo afro, tornou-se profissional aos<br />

17 anos, mas comenta que desde os oito já estava envolvida com atividades<br />

capilares. Começou realizando tranças indianas, tranças raiz e as tranças<br />

brox braids (Rastafari), mas devido as exigências de sua clientela, buscou<br />

aperfeiçoamento para trabalhar com cabelos crespos e cacheados. “No<br />

começo era trança, uma febre surgindo. Agora que o povo está assumindo a<br />

naturalidade, assumindo o cabelo afro”, diz ela.


Texto: Gabriel Conbê<br />

Foto: Mariani Barbosa<br />

Arte: Bruno Andrade<br />

Casting: Carol Rooke, Hannah<br />

Carvalho, Jahi Amani<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong> 17 31


Atualmente, sua clientela é composta por 98% de pessoas<br />

negras, das quais 90% são mulheres e 10%, homens. Para<br />

Solange, realizar o processo de transição capilar em suas<br />

clientes hoje é uma facilidade, por conta dos produtos voltados<br />

para o cabelo afro. Ela afirma que isso faz com que as pessoas<br />

desfilem pelas ruas com seus blacks (um estilo de penteado):<br />

“Antigamente as pessoas achavam que o cabelo tinha que ser<br />

liso. Então acho que quebrou o tabu. Porque o cabelo afro<br />

não cresce para baixo, né; ele cresce para cima. As pessoas,<br />

a maioria, tinha vergonha de assumir. Eu acho que quebrou<br />

isso. As pessoas estão se amando, se respeitando mais".<br />

Exemplo desta nova modelagem, Karol Conká, 31, é<br />

símbolo de empoderamento e representação. Atualmente<br />

a rapper curitibana é a apresentadora do programa<br />

"Superbonita", do canal de TV por assinatura GNT, um show<br />

de variedades que discursa sobre o universo da beleza "de fora<br />

e de dentro". Em 17 anos de exibição, o programa contou com<br />

sete apresentadoras, apenas duas negras. A primeira delas foi<br />

a renomada atriz Taís Araújo, de 2006 a 2009, que detém uma<br />

trajetória construída pela grande mídia. O inverso de Conká,<br />

que debutou pela cena underground e foi conquistando<br />

visibilidade. “Agora à frente do 'Superbonita', Karol mostra<br />

toda sua versatilidade e despojamento nesse novo passo<br />

em sua já brilhante carreira”, uma das frases que o site do<br />

programa utiliza para descrevê-la.<br />

Quando a cantora foi anunciada como a comandante<br />

do programa, no ano de 2017, ela chegou a dar diversas<br />

entrevistas sobre ser a nova cara do show. Em entrevista ao<br />

jornal Extra, a artista explica a rejeição que as consumidoras<br />

negras enfrentavam pelas marcas de cosméticos: “Eu tinha<br />

dificuldade de encontrar produtos de beleza. Quando eu abria<br />

o catálogo e comprava o que estava no rosto da modelo, não<br />

ficava legal porque eu esquecia que era negra e que a menina<br />

tinha o tom da pele mais claro do que meu. Mas ainda bem<br />

que a indústria está abrindo os olhos. Sabe que tem gente que<br />

vai comprar e que tem um povo com voz ativa para cobrar."<br />

2012”, afirma a empresa GP Investments (companhia líder<br />

em investimentos alternativos na América Latina), através<br />

do comunicado oficial publicado em 2013, após adquirir um<br />

terço da empresa.<br />

Hoje os cachos movimentam milhões. E é pensando<br />

também no perfil econômico desta coletividade consumidora,<br />

que em 2016 a marca Negra Rosa surgiu.<br />

Délia das Graças, 38, é revendedora da Negra Rosa há<br />

quase um ano. “Queria [vender] uma maquiagem específica<br />

para pele negra e com preço acessível”. Ela explicita que seu<br />

público está crescendo a cada dia e comenta sua escolha por<br />

representar a marca: “A maioria [das clientes] reclamava das<br />

bases terem sempre tons claros demais, deixando o rosto<br />

carregado por terem que usar um pó mais escuro. Demorou<br />

muito para o mercado voltar a atenção para a pele negra".<br />

Essa potencialidade e representação da comunidade negra,<br />

com a criação de produtos étnicos, defende a identidade, direitos<br />

e valores de uma coletividade que há pouco tempo era rejeitada<br />

por suas características físicas. A (re)ação da indústria da<br />

estética repentinamente em promover uma gama de produtos<br />

destinado às características das pessoas negras é também uma<br />

conquista de diversos movimentos sociais, que resistem a<br />

antigos preconceitos e estereótipos que, lamentavelmente, são<br />

associados às negras. “O cabelo do negro, visto como 'ruim', é<br />

expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre<br />

esse sujeito. Ver o cabelo do negro como 'ruim' e do branco<br />

como 'bom' expressa um conflito”, afirma a pedagoga Nilma<br />

Gomes, autora da pesquisa Corpo e cabelo como ícones de<br />

construção da beleza e da identidade negra nos salões étnicos<br />

de Belo Horizonte (2002).<br />

Que os tempos são outros, não podemos negar. Mesmo<br />

diante do aumento de representatividade da negra e do<br />

avanço socioeconômico, não se trata verdadeiramente de um<br />

progresso. Afinal, a inclusão por parte do capital é focada em<br />

ser lucrativa, não transformadora.<br />

Bonita Rebelião<br />

A resposta do mercado relatada por Conká não aconteceu<br />

espontaneamente. Uma matéria publicada pela Agence<br />

France-Presse (AFP), em 2013, indica que a renda da<br />

população negra foi a que mais cresceu no Brasil entre 2001<br />

e 2009, cerca de 45%, segundo dados do Instituto de Pesquisa<br />

Econômica Aplicada (Ipea). A marca nacional O Boticário<br />

lançou em 2008 a linha Intense, buscando atender uma<br />

clientela diversa. Em 2011, a marca apresentou uma nova<br />

coleção, incluindo o kit voltado as mulheres de pele negra.<br />

A Indústria Cor Brasil, lançada em 2004, criou produtos<br />

específicos para os cabelos cacheados.<br />

Tais mercadorias foram desenvolvidas para serem usadas<br />

nos salões de beleza do Instituto Beleza Natural (1993).<br />

Resultante da ausência de produtos com qualidade destinados<br />

às consumidoras negras, Beleza Natural - que antes era um<br />

salão de garagem, tornou-se em uma das maiores redes<br />

especializadas em cabelos cacheados e crespos. “O Beleza<br />

Natural é uma rede de institutos de beleza com foco na Classe<br />

C. Atualmente opera através de 13 lojas em três estados<br />

diferentes (Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia) e alcançou<br />

um faturamento de aproximadamente R$140 milhões em


Brilhemos intensamente como um<br />

diamante. Nós somos belos como os<br />

diamantes no céu.<br />

Rihanna<br />

CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong> 17 33


Identidade<br />

Corpo de Nuvens<br />

A designer Bruna Sanches, autora do Blog “Minha segunda<br />

pele”, convive com o vitiligo há 13 anos. Desenhista de seu<br />

próprio corpo, aceita hoje os desenhos que só ela tem.<br />

texto: Mariana Morais<br />

Foto: Melissa Reis<br />

Arte: Caroline Borges<br />

Casting: Débora Madeira<br />

Era um dia como qualquer outro em 2005, quando<br />

Bruna se levantou para fazer sua rotina matinal antes<br />

do trabalho. O espelho estava embaçado com o vapor da<br />

água, e quando passou as mãos querendo desembaça-lo<br />

para se maquiar, notou uma manchinha muito branca e<br />

bem pequena no canto da boca. Ela tinha ido dormir com<br />

a pele perfeita, e acordou assim, manchada.<br />

O desespero foi instantâneo. Bruna estava com uma<br />

anomalia de pele caracterizada pela despigmentação do<br />

maior órgão do corpo humano. A casa onde habita sua<br />

alma, e ela não queria mais morar ali. Não com aquelas<br />

manchas. Tinha 18 anos, se achava bonita, tinha uma<br />

vida profissional no design gráfico e o sonho de se casar.<br />

Nessa vida planejada não existia uma Bruna manchada.<br />

No reflexo do espelho, as manchas brancas,<br />

confundidas com a cor natural da pele, tinham<br />

nome. Os médicos foram duros: “é vitiligo”. Para<br />

Bruna Sanches é mais que isso: as marcas são<br />

desenhos que ilustram sua história há treze anos.<br />

Tempo chuvoso<br />

Seu primeiro contato com a anomalia foi quando<br />

ainda era pequena. Parece até ironia do destino, ou<br />

coincidência demais, já que um de seus maiores medos<br />

era ter vitiligo, desde que viu um primo de seu pai que<br />

tinha a doença. Ela sentia pena dele e imaginava como<br />

sua vida era ruim por ter a pele toda manchada.<br />

Foi ao dermatologista, e saiu de lá mais sem chão<br />

do que quando chegou. A notícia foi curta e sem<br />

empatia. Segundo o médico a causa era ansiedade.<br />

Bruna sentiu que estava se machucando, que a<br />

culpa era sua. Isso só piorou o processo de aceitação<br />

da doença. Estava com vitiligo e não queria estar.<br />

Depois da notícia, a família não sabia o que fazer.<br />

Bruna tinha medo de nunca mais ser amada e sua<br />

insegurança falou mais alto. A sensação era de ter perdido<br />

o controle de si mesma. Não conseguia dormir tranquila,<br />

porque sabia que ao acordar podia olhar para o seu corpo<br />

e encontrar novas manchas. Tentou vários tratamentos,<br />

de laser, remédios a pomadas e uma série de regras que<br />

eram difíceis demais para seguir. O processo era sofrido e<br />

a machucava. Na mesma época, em 2011, veio o término<br />

de um namoro e o falecimento do avô. Sua autoestima<br />

chegou ao fundo do poço. A tristeza bateu à porta sem<br />

pedir licença e se transformou em depressão. O choro<br />

era rotina e a doença aumentou. Sua pele começou a se<br />

despigmentar cada vez mais. As manchas aumentavam,<br />

assim como sua raiva por elas.<br />

Em meio a toda turbulência, Bruna precisou enfrentar<br />

também o preconceito. Caras de nojo, olhares maldosos,<br />

inúmeras opiniões e invasões oferecendo tratamento para<br />

o que julgavam uma anormalidade. Buscou se recuperar<br />

de alguma forma. Fotografava constantemente sua pele<br />

para acompanhamento médico. Tinha vergonha das fotos,<br />

mas paixão pela fotografia. E o gatilho para sua aceitação<br />

veio do olhar para a poesia que ela via em sua própria pele.<br />

Tempo nublado<br />

Bruna costuma chamar as pessoas que a ajudaram<br />

de “boias salva vidas”. Uma delas é o Fernando. Eles<br />

se conheceram em um show, onde trabalhou como<br />

fotógrafa. Depois de um ano conversando nas redes<br />

sociais, marcaram de se ver novamente. Bruna ainda<br />

vivia para o vitiligo e sentia necessidade de falar rápido<br />

sobre a doença, torná-la uma verdade.<br />

Com o Fernando foi assim, no início da conversa, já<br />

tirou as mãos que estavam escondidas de baixo da mesa e


CURINGA | | EDIÇÃO <strong>24</strong> 17 35


Identidade Habitar<br />

de uma forma dramática mostrou o seu vitiligo. E, quando<br />

ouviu as palavras saindo da boca de Fernando, se assustou.<br />

Ele já tinha reparado suas manchinhas e as achado<br />

lindas. Não eram manchas, e sim desenhos únicos que<br />

só ela tinha. Foi a primeira vez que Bruna ouvia alguém<br />

fora do âmbito familiar falar do vitiligo com doçura.<br />

Com um sentimento de renovação, correu para<br />

compartilhar com sua mãe o que tinha ouvido. Chegando<br />

em casa perguntou como ela via suas manchas. Recordando<br />

uma cena do filme Amelie Poulain, onde a personagem<br />

olhava para o céu buscando desenhos, a mãe comparou<br />

sua pele com o céu e suas manchas com as nuvens.<br />

Bruna logo pegou uma caneta e começou a circular suas<br />

manchas buscando seus desenhos. Encontraram o Pluto,<br />

fantasminhas, corações e isso foi incrível. Foi a primeira<br />

manifestação espontânea de sua mãe em relação a doença.<br />

Os conceitos começaram a mudar. O que antes parecia<br />

terrível, já não era tão ruim. A designer ainda se escondia,<br />

andando com as mãos no bolso, maquiando suas<br />

manchas. Estava rodeada de pessoas que a motivaram a<br />

aceitar o seu vitiligo e enxergar que ela é linda e que suas<br />

manchinhas são sua marca.<br />

Em 2015, Bruna já estava mais madura e acostumada<br />

com sua condição. Morava com o namorado, trabalhava<br />

e levava uma vida normal. Mas a anomalia ainda<br />

a incomodava. Ouviu de sua mãe sobre um novo<br />

procedimento que poderia acabar com o seu vitiligo. Uma<br />

cirurgia de enxerto, na qual ela poderia remover uma<br />

parte da pele de suas costas e implantar em sua mão.<br />

Marcou a cirurgia, porém ainda se sentia insegura.<br />

Lembrou dos mais de 50 dermatologistas que<br />

consultou sem resultado. Sua doença é muito rara e<br />

muitos médicos se assustaram, enquanto outros queriam<br />

testar tratamentos. Era muito perigoso. Dois dias antes da<br />

cirurgia, seu ex-namorado a fez repensar, mostrando como<br />

suas manchas eram características dela. Além de bonitas,<br />

eram sua marca, e ela não deveria se machucar novamente.<br />

Recorreu a seu pai, que sempre acompanhou seu processo.<br />

Depois de ouvir seus conselhos, Bruna desmarcou a<br />

cirurgia. Naquele dia, deparou-se com o que até então<br />

não tinha vivido: ela havia se aceitado.<br />

Tempo ensolarado<br />

A necessidade de compartilhar isso com outras<br />

pessoas apareceu. Bruna selecionou sua melhor foto,<br />

colocou no Facebook e escreveu que não iria mais se<br />

machucar. As reações foram muito positivas.<br />

O que era um horror estava se tornando uma missão<br />

de vida. O seu primeiro projeto foi a criação de um<br />

perfil no Instagram, o Minha Segunda Pele. Em agosto<br />

de 2016, criou seu blog e começou a compartilhar sua<br />

história com outros leitores. Em dezembro de 2017,<br />

recebeu um convite para participar de uma campanha<br />

nacional de uma empresa de cosméticos. Em janeiro de<br />

2018, Bruna tirou mais um projeto do papel e criou seu<br />

canal no YouTube.<br />

O que antes era motivo de sofrimento, hoje, com<br />

quase 31 anos, é motivo de gratidão e inspiração. Pois foi<br />

graças ao vitiligo que ela se reconstruiu, renovou sua auto<br />

estima e se tornou uma mulher forte e inspiradora.<br />

Hoje, aceita o seu céu cheio de nuvens, um céu<br />

que só ela tem e que sabe que precisa cuidar. O seu<br />

lado místico faz com que veja isso de uma forma bela:<br />

a ressignificação do corpo como o céu e das manchas<br />

como nuvens. Quando está muito triste, é como se o seu<br />

céu estivesse nublado, novas manchas aparecem e mais<br />

nuvens surgem. Mas quando está sol e Bruna está feliz,<br />

as nuvens ficam mais bonitas.<br />

O que era um horror estava se tornando uma missão de vida.<br />

O seu primeiro projeto foi a criação de um perfil no Instagram,<br />

o Minha segunda Pele. Em agosto de 2016, criou<br />

seu blog e começou a compartilhar sua historia com outros leitores.


AMARELO<br />

DESERTO<br />

Texto: Rafaela Rissoli<br />

Arte: João Vitor Nunes<br />

- Mãe.<br />

- Que foi, Maria Júlia?<br />

- Nada não.<br />

- Fala logo, menina!<br />

- Não, deixa pra lá...<br />

- Mas olha, você sabe que não gosto de drama.<br />

- É que eu esqueci o que eu ia falar.<br />

É claro que eu não havia esquecido coisa alguma.<br />

Se há algo que eu não fiz foi esquecer. Demorei para<br />

memorizar o nome de M. C. Escher, mas as escadas<br />

e as luzes e as sombras e as meias sombras e o reflexo<br />

de sombras eu nunca, nunca esqueci. Quem já viu deve<br />

saber do que eu estou falando. Aqueles quadros tentam<br />

dar uma lógica ao caos. Nem sei se é isso que o tal de<br />

Escher quis fazer, mas foi isso que eu vi.<br />

“Onde já se viu ordenar um caos?”, era o que eu<br />

pensava enquanto descia aquelas escadas, enquanto<br />

subia, enquanto os degraus embaralhavam na minha<br />

mente. “É, isso não faz sentido”. Mas que fazia sentido<br />

fazia, nunca vi uma exposição que fizesse tanto sentido.<br />

- Mas quanta tolice, garota! Já lavou a louça?<br />

- Já vou, mãe.<br />

- Eu tô falando pra ir agora, não tem essa de “já vou”!<br />

Comecei a pensar em criar minha própria exposição<br />

com louças sujas. A ideia parecia perfeita, uma aquarela<br />

inteira de imundície. Até sorri.<br />

- Vocês já pensaram em levar Maju ao psicólogo?<br />

Talvez seja depressão.<br />

Eu estava muito ocupada para ficar atrás da porta<br />

ouvindo minha mãe e minha tia conversarem. E também,<br />

pudera, um amontoado de coisa-de-gente-grande.<br />

Sempre disse que meu quarto era feito de quatro paredes<br />

e meia. Tinha uma quina no vértice da porta, não sei<br />

explicar muito bem, mas acontece que quando eu estava<br />

ali, era tudo parede. Negligenciei a maçaneta e comecei<br />

o trabalho. Minha exposição tinha hora marcada e eu<br />

precisava agir. As vozes familiares que estavam além do<br />

trinco já me soavam como algo inanimado. Ouvi breve<br />

algo sobre “isso é doença de rico”, mas não fiz disso um<br />

evento. Até porque, mamãe sempre disse que as coisas<br />

são muito relativas, então sei lá se existe alguém que<br />

saiba de verdade alguma coisa nesse mundo. Vai ver ela<br />

também conhecia os quadros de Escher, mãe deve saber<br />

o que fala.<br />

O primeiro splash de tinta parecia mais uma poça<br />

depois de uma forte chuva. Eu estava satisfeita. “Vou<br />

ficar famosa”, pensei. Começaram a surgir vários<br />

ladrilhos. A princípio eram dourados, depois as cores<br />

foram se confundindo com preto e cinza, cinza, mais cinza.<br />

Pronto. Faltava só mais um detalhe.<br />

Craccc!<br />

Mãe e tia saíram correndo pra ver o que eu tinha<br />

aprontado desta vez. Juntei alguns cacos do espelho<br />

para compor a obra. Uma, duas batidas na porta. A arte<br />

não pode esperar. Aquilo era a primeira coisa que me<br />

fazia feliz desde que me entendia por gente. Não tinha<br />

perfume, era tudo cor de sujo. “Não, mãe, Maju não quer<br />

viver mais”, foi o que eu disse antes de ver o vermelho<br />

da minha garganta colorir as paredes que eu chamo de<br />

“Belvedere da Maju”.<br />

Opinião<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 37


Sensação<br />

A cor-pura do<br />

teu corpo<br />

Foto: Pedro Meneghetti<br />

Arte: Igor Mattos<br />

Texto: Igor Mattos e Pedro Meneghetti<br />

Casting: Indie Odara e Lanara Odara


CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 39


CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong> 41


Composto de melanina, o corpo nasce<br />

nu, liso e vazio de gênero. É um quadro<br />

a se fabricar na progressão dos dias e nas<br />

despedidas das noites. Na dança da vida,<br />

constroem-se laços ao som das vozes. O<br />

gênero transforma, a cor abraça. A drag é o<br />

embate do que foi ensinado a ver no espelho.<br />

O íntimo entra em contato com o exterior.<br />

Pigmentos, sons, tecidos, cabelos, anéis,<br />

pincéis, batons, colares, cílios começam a<br />

preencher essa tela e fazer o que chamamos<br />

de humano. Parafraseando Simone de<br />

Beauvoir, “o corpo é uma situação”, somos<br />

o que nós pintamos e representamos .<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>24</strong><br />

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