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Revista Dr Plinio 214, Janeiro <strong>2016</strong><br />
luzes da civilização cristã<br />
Dignidade e sapiencialidade<br />
de um monumento<br />
As belas construções conforme o espírito católico são menos<br />
custosas que os prédios de estilo moderno, que se espalham<br />
pelas megalópoles atuais. Isso mostra que o dinheiro não é o<br />
principal fator na edificação de uma civilização, e sim a Fé.<br />
Giovanni Dall’Orto (CC3.0)<br />
32
Pierangelo66 (CC3.0)<br />
T<br />
emos aqui o Palácio da Comuna de Piacenza, na<br />
Itália, edifício gótico onde funcionam a Câmara<br />
Municipal e a Prefeitura.<br />
Agradável contraste entre<br />
a estátua e o edifício<br />
O edifício é constituído de três linhas. A parte branca<br />
é de pedra, a de cima, com janelas, é feita de tijolos,<br />
e depois vemos esses enfeites no alto.<br />
O número três tem uma misteriosa capacidade de<br />
beleza relacionada, de modo inefável, com a Santíssima<br />
Trindade.<br />
Essas janelas todas dão para uma praça, onde vemos<br />
duas estátuas muito bem colocadas. Um modo banal de<br />
posicionar esses monumentos seria o seguinte: traçar<br />
uma linha reta a partir do meio desses cinco arcos e sobre<br />
ela colocar, bem no centro, uma das estátuas.<br />
Ora, essas estátuas foram colocadas meio fora de lugar,<br />
sem muita relação com o edifício. Mas elas estão<br />
num ponto muito poético e constituem uma surpresa<br />
agradável para quem olha. Portanto, são bonitas<br />
no ponto onde se encontram. É um belo indefinível.<br />
Enquanto falo, estou procurando encontrar palavras<br />
para exprimir o que há de bonito e não as consigo<br />
encontrar. Ademais, a figura representa um cavaleiro<br />
numa marcha muito bonita, e este “movimento”<br />
contrasta agradavelmente com o que o edifício atrás<br />
tem de sério, de estático, de solene.<br />
Maxperot (CC3.0)<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Pierangelo66 (CC3.0)<br />
Giovanni Dall’Orto (CC3.0)<br />
Giovanni Dall’Orto (CC3.0)<br />
Nota-se que essa área de baixo é vazada e constitui<br />
uma espécie de passeio público que, provavelmente,<br />
acompanha o prédio em toda a sua extensão. Em certas<br />
regiões da Itália, onde chove e neva muito, esse espaço<br />
coberto é de grande auxílio para a população.<br />
Encontramos nessa parte uma série de arcos. De um<br />
lado são cinco arcos e, logo acima, seis janelas, sucedidas<br />
por elementos decorativos, no topo. Essa sucessão de<br />
elementos que se repetem dá uma sensação de unidade<br />
ao edifício; entretanto, uma impressão, ao mesmo tempo,<br />
extremamente variegada. Porque na base está o arco<br />
gótico todo feito em pedra, com uma inegável nota aristocrática,<br />
forte, dando quase a ideia de uma porta de fortaleza<br />
ou de castelo.<br />
Diversas gamas de maravilhoso<br />
Já as janelas de cima são elegantes, distintas, mas não<br />
são tão nobres e nem tão fortes quanto os arcos embaixo.<br />
Elas têm qualquer coisa de boa burguesia rica e correspondem<br />
muito a uma classe meio nobre, meio burguesa<br />
que floresceu na Itália naquele tempo.<br />
Analisando essas janelas, encontramos cinco colunas,<br />
mais uma vez. Essas colunas tornam leve a fachada a<br />
qual ficaria muito pesada com esses cinco arcos grandes<br />
que a compõem. Ademais, essas pequenas colunas constituem<br />
uma continuidade em relação ao que está embaixo,<br />
porque elas são de pedra também.<br />
Por outro lado, combinam muito bem com a parte que<br />
está acima, constituída de tijolos. A mudança de materiais<br />
está habilmente preparada pelo artista, e as passagens de<br />
um lance para outro do edifício são muito definidas.<br />
Bem no alto, nota-se este cuidado do arquiteto: encerrando<br />
essa parte de tijolos, vemos posta, na próxima passagem<br />
de um elemento a outro, uma barra com uma espécie<br />
de ameias, num estilo ainda gótico, que corta esse<br />
lance e faz com que se possa imaginar o edifício sem essa<br />
parte superior.<br />
No alto surge o campanário cujos sinos serviam para<br />
alertar a população em caso de incêndio, guerra ou outras<br />
eventualidades.<br />
Essas ameias são feitas com uma finalidade decorativa<br />
e não militar. Notem como são interessantes, altas e se<br />
abrem em cima como que para deixar escapar qualquer<br />
coisa que penetra no céu. E, como se não sentissem em si<br />
bastante poder de elevação, elas são superadas por esses<br />
elementos que, mais do que os outros, rumam para o alto.<br />
De maneira que quem olha para o alto do edifício tem<br />
a impressão de que ele termina subindo para o céu e perdendo-se<br />
no horizonte do panorama.<br />
34
Majesty400 (CC3.0)<br />
O conjunto dá uma ideia de bom senso, de peso, de<br />
ordem, de solidez que exprime bem o que seria a pequena<br />
aristocracia de uma pequena cidade. Possui a dignidade<br />
e a sapiencialidade de um monumento da Civilização<br />
Cristã, e nisto tem qualquer coisa de maravilhoso, fazendo<br />
com que, ao compararmos este edifício com qualquer<br />
casa de plutocrata em uma megalópole moderna — cuja<br />
construção e materiais utilizados custam vinte vezes mais<br />
do que este prédio —, vemos, contudo, ser este aqui um<br />
verdadeiro palácio. Um príncipe pode morar aqui, mas<br />
não poderia residir em certas casas de plutocratas.<br />
É, exatamente, a presença da sabedoria e da arte da<br />
Civilização Cristã.<br />
Notamos neste Palácio da Comuna de Piacenza aspectos<br />
do maravilhoso. Não o maravilhoso no grande, mas<br />
no miúdo, para demonstrar que há gamas diversas de<br />
maravilhoso. E para provar também não ser por falta de<br />
dinheiro, mas sim de Fé, que não se constrói uma grande<br />
civilização, pois o dinheiro não é o principal fator na edificação<br />
de uma civilização.<br />
Onde há Fé, essas coisas aparecem. Tire a Fé, elas<br />
morrem completamente. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 30/3/1967)<br />
Maria91 (CC3.0)<br />
35
luzes da civilização cristã<br />
Revista Dr Plinio 215, Fevereiro <strong>2016</strong><br />
Parece um<br />
conto de fadas<br />
Uma pequena igreja da Itália, em contraste<br />
com o prosaísmo e a feiura de tantos<br />
prédios atuais — construídos conforme o<br />
espírito revolucionário —, é mimosa com<br />
distinção e solenidade, remetendo-nos<br />
a uma atmosfera irreal e maravilhosa.<br />
Oponto de vista sob o qual analiso e comento os<br />
monumentos europeus é o de despertar o amor<br />
a um tipo de maravilhoso existente na Europa,<br />
elaborado pela civilização cristã, e que é, portanto, um<br />
fruto do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo e das lágrimas de Nossa Senhora.<br />
Maravilhoso sapiencial, de caráter religioso<br />
Federfabbri (CC3.0)<br />
Foi disto, do senso da cruz, da virtude, do sacrifício<br />
que nasceu uma civilização que engendrou essas maravilhas,<br />
as quais exprimem algo do espírito e da sabedoria<br />
da Igreja. É esse maravilhoso sapiencial, de caráter religioso<br />
que consideraremos agora.<br />
Temos aqui fotografias da Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo,<br />
na cidade de Lecce, na Itália, contendo vários elementos<br />
ornamentais explorados a diversos títulos, constituindo<br />
várias formas de beleza do panorama italiano.<br />
O panorama italiano é peculiar, pois certas coisas que<br />
são bonitas em qualquer parte do mundo, mas possuem<br />
dessas belezas comuns e vulgares que vemos e passamos<br />
adiante, na Itália existem de um modo especial, por onde<br />
elas tomam uma beleza quase clássica, que forma um dos<br />
maiores ornamentos desse país e um dos mais altos pontos<br />
de atenção do gênero humano.<br />
32
Toobaz (CC3.0)<br />
Igreja dos Santos Nicolò e Cataldo, Lecce, Itália<br />
Por exemplo, quem já esteve na Itália compreende, mas<br />
para quem nunca a visitou não é tão fácil compreender a<br />
beleza dos muros velhos escalavrados, de pedras que duram<br />
séculos, com cicatrizes de todas as molecagens que se<br />
fizeram em cima delas, de todos os granizos que caíram<br />
sobre elas, e que conservam a dignidade de uma face envelhecida,<br />
rugosa, mas com ar de matrona régia.<br />
Notem esse muro. Uma pessoa com espírito moderno<br />
e pragmático teria mandado passar massa e depois pintar<br />
a óleo, para ficar lisinho e bonitinho, porque esse tipo de<br />
pessoas não entende senão o que seja lisinho e bonitinho.<br />
Vejam quantas cicatrizes há nessas pedras! Todas cheias<br />
de poros, de sujeiras, de calosidades. Entretanto, isso batido<br />
pelo Sol da Itália dá uma ideia de eternidade, de uma<br />
coisa que nada destrói. Essa trepadeira dá a impressão de<br />
algo com uma forma de vida endêmica que não há Sol que<br />
acabe com ela, e segura com força o prédio, como quem<br />
diz: “Eu viverei”. As próprias pedras, batidas pelo Sol, têm<br />
qualquer coisa da boa natureza que resiste a tudo. Disso<br />
desprende-se uma noção de perenidade.<br />
É preciso saber entender o pitoresco<br />
Pode-se imaginar em uma dessas ruelas uma pizzaria<br />
onde se vende a famosa pizza napolitana, outro estabe-<br />
lecimento cheirando a polenta ou a mortadela, de dentro<br />
do qual se ouve um berro do patrão para a filha dele:<br />
“Angelina, eu já disse que me traga tal coisa para este<br />
freguês!” — com ares de Nero proclamando a queda<br />
de Roma, atrás do balcão como se fosse um trono, e com<br />
aquela tendência declamatória pitoresca do italiano.<br />
O filho do dono, por sua vez, é um homem que toca<br />
guitarra e canta “O Sole mio...” De repente, atrás de um<br />
arco desses ouve-se um gato miando...<br />
Há dentro disso qualquer coisa de rústico, de elementar,<br />
de simples, de uma plebe sadia, vigorosa, que canta o<br />
Sol sem nenhuma espécie de artifício, e que constitui um<br />
dos verdadeiros encantos da Itália.<br />
É muito bonito esse contraste no velho urbanismo da<br />
Itália: ruazinhas completamente emaranhadas, sem calçada<br />
e dentro das quais entram motocicletas, vespas, lambretas e<br />
automoveisinhos modernos. As pessoas se afastam, passa o<br />
automóvel, elas protestam, berram... Uma viazinha estreita<br />
que, de repente, dá num laguinho inesperado.<br />
Segundo um urbanismo “hollywoodiano” o bonito seria<br />
uma avenida muito larga, terminando num lago ainda<br />
mais largo do que ela. E o transeunte, de longe, vai vendo<br />
a avenida por onde vai. Quando chega ao final, não<br />
tem nada de novo. Boceja ao chegar ao lago, pois já o estava<br />
vendo à distância.<br />
33
Aspectos da cidade de Lecce, Itália<br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Anna Bonanza (CC3.0)<br />
Maria Grazia Schiapparelli (CC3.0)<br />
Maria Grazia Schiapparelli (CC3.0)<br />
urbanforaging.nl (CC 3.0)<br />
Na Itália, não. Tudo isso é pitoresco, e é preciso saber<br />
entendê-lo. Do contrário, não se viajou pela Itália, não<br />
se viu a Itália.<br />
Vamos, agora, analisar a igreja. Quem a construiu parece<br />
ter tido a pretensão de edificá-la como se fosse uma<br />
basílica. Ela é de proporções pequenas, mas toda sua fachada<br />
é trabalhada com a distinção e com a solenidade<br />
que caberiam a uma igreja grande. Poder-se-ia imaginar<br />
uma imensa basílica construída com essa fachada; ficaria<br />
linda! Mas o artista soube dar a isso o tamanho reduzido,<br />
para ficar, ao mesmo tempo, digno e engraçadinho.<br />
Temos, então, a beleza específica dessa fachada, na<br />
qual distinguimos dois elementos: uma cúpula e depois<br />
a fachada propriamente dita. Esta se compõe de uma linha<br />
central, que é a linha grande, e de duas linhas colaterais<br />
que são acólitas da linha central, existem para ela. Se<br />
analisarmos a linha central, notaremos ser relativamente<br />
simples. Ela tem um porte bonito, harmonioso, muito<br />
bem feito, uma proporção entre a altura e a largura muito<br />
bem tomada, a proporção de altura entre as colunas e<br />
o arco é muito bem tirada também.<br />
A porta é trabalhada, mas sem excesso. Acima dela<br />
encontramos uma longa parede vazia, onde o único elemento<br />
decorativo é a rosácea que existe, provavelmente,<br />
para conduzir luz ao coro dentro da igreja. Quer dizer,<br />
tem uma finalidade prática.<br />
O ornamento só aparece bem no alto. São formas, figuras<br />
com o seguinte objetivo: a largura dessa parte central,<br />
quando chega a certa altura se estreita um pouco.<br />
Esta sucessão de larguras diferentes culmina num ponto<br />
terminal leve, por onde acaba quase se fundindo no céu.
Tango7174 (CC3.0)<br />
Scarlins (CC3.0)<br />
Scarlins (CC3.0)<br />
Detalhes da Igreja dos Santos Nicolò<br />
e Cataldo, Lecce, Itália<br />
O sorriso da Arte<br />
Ao lado desta parte central muito simples vemos duas<br />
partes colaterais bastante ornadas. Tudo é muito bem<br />
construído: as duas partes se repetem e têm colunas com<br />
dois nichos nos quais se encontram imagens de Santos.<br />
Essas são colunas jônicas, todas caneladas, como o fuste<br />
em cima também, todo ele com as clássicas folhagens<br />
de acanto, e depois, em cima, uma trave. Cada uma dessas<br />
partes poderia constituir um edifício autônomo, tão<br />
bonitas são. Entretanto, encaixam-se harmoniosamente<br />
dentro do conjunto da igreja.<br />
Se abstrairmos a parte superior, veremos como o restante<br />
forma uma linha básica larga e sólida em relação ao<br />
que vem acima, que é mais leve em função do princípio de<br />
que o mais pesado carrega o mais leve e o mais forte sustenta<br />
o mais fraco. É o contrário do princípio existente em<br />
determinados prédios modernos, nos quais uma superfície<br />
pequena parece esmagada por uma massa de cimento sobreposta.<br />
Aqui não: o elemento com aparência de débil fica<br />
em cima e o componente pesado embaixo.<br />
Por fim, nota-se toda uma ornamentação abundante<br />
terminando o edifício, porque a parte mais nobre, mais<br />
leve, mais etérea, deve estar junto do céu. As figuras leves<br />
ficam colocadas perto do teto para dar ideia de algo<br />
que está subindo para o firmamento e ali se perde. Todas<br />
as construções antigas observavam essa norma, que<br />
se perdeu depois por artifícios da Revolução.<br />
Considerando o conjunto do edifício temos um monumento<br />
muito bem feito, mimoso, mas com ares de pequeno<br />
rei. Mais ou menos como seria o Príncipe de Mônaco;<br />
é um rei em miniatura. Ninguém dá risada dele; ele<br />
é o “garnisé” no gênero dos reis. O garnisé é o sorriso de<br />
Deus a propósito do galo, que o mesmo Deus criou.<br />
Aqui é o sorriso da Arte a respeito de suas próprias<br />
grandezas. Ao invés de construir uma obra linda e grande,<br />
ela faz uma coisa pequena e igualmente linda, para<br />
poder sorrir a respeito de si mesma. O monumento, considerado<br />
deste ponto de vista e em contraste com o prosaico<br />
de outros prédios, parece um pouco um conto de<br />
fadas, uma coisa um tanto irreal, maravilhosa.<br />
Temos, então, um dos ângulos bonitos da Europa sagrada.<br />
<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 30/3/1967)<br />
35
Revista Dr Plinio 216, Março <strong>2016</strong><br />
luzes da civilização cristã<br />
Hora certa,<br />
Diego R. Lizcano<br />
pensamento certo<br />
Sob as maravilhosas irradiações da Santa<br />
Igreja, o relógio transcende sua função<br />
meramente utilitária para tornar-se um<br />
símbolo da infalibilidade da Esposa de<br />
Cristo a orientar o pensamento humano.<br />
N<br />
o tempo de Carlos Magno ignorava-se a existência<br />
do relógio mecânico. Um dos sistemas<br />
utilizados para marcar o tempo era a ampulheta,<br />
composta de dois recipientes ligados entre si por<br />
um gargalo finíssimo. Cada um desses recipientes tem a<br />
forma de um meio ovo, colocados de maneira a permitir<br />
que uma areia muito selecionada, com grãos bem finos,<br />
escoe durante determinado tempo de uma parte para outra<br />
da ampulheta.<br />
Presente recebido por Carlos Magno<br />
O primeiro relógio mecânico que chegou ao Ocidente<br />
foi mandado de presente a Carlos Magno, durante um<br />
intervalo de paz entre os mouros e os católicos, por um<br />
maometano inimigo da Cruz de Cristo: o Sultão Harun<br />
al-Rashid.<br />
O espírito medieval, ao qual nós nos devemos reportar<br />
continuamente como um receptáculo do espírito da Igreja<br />
e do espírito da tradição, se debruçou sobre esta invenção.<br />
Carlos Magno, logo que recebeu o relógio e viu o que<br />
era, incumbiu Alcuíno — uma espécie de ministro de finanças<br />
dele — e outras pessoas de o estudarem. Os europeus<br />
se puseram a aprender relojoaria, e daí decorreu<br />
que veio ao espírito deles fazer da relojoaria uma maravilha<br />
de precisão na marcação do tempo, mas, por outro<br />
lado, também verdadeiras obras de arte incomparáveis.<br />
Na Alemanha, há numa torre um relógio em cujo quadrante,<br />
a cada hora, passa a figura de um Apóstolo. E<br />
quando bate meio-dia, aparecem as representações dos<br />
doze Apóstolos.<br />
Outros relógios têm figuras que batem um sino. Por<br />
exemplo, em Veneza um relógio de um prédio que fica ao<br />
lado da Catedral de São Marcos. Há duas figuras de homens,<br />
que batem com toda a força num sino grande, marcando<br />
assim as horas. São bonecos de bronze, de bom gosto,<br />
e que exprimem inteligência; é uma coisa admirável!<br />
Há relógios enormes e outros tão pequenos que se<br />
tornam facilmente portáteis: o homem pode levar um relógio<br />
no seu bolso e a senhora colocá-lo num anel. Mas<br />
observem o relógio que o homem leva no bolso ou aquele<br />
que a marquesa coloca no dedo: são feitos de esmalte,<br />
têm pedras preciosas e outras coisas bonitas; são usados<br />
por quem pode comprá-los. E há coisas mais modestas<br />
para quem precisa de um relógio a fim de marcar as<br />
suas horas dignamente.<br />
Aspectos simbólicos e utilitários dos relógios<br />
Entretanto, o relógio-pulseira, em certo momento, fez<br />
parte do progresso, e a aparição dele suprimiu alguns aspectos<br />
da vida concreta antiga. Por exemplo: na Europa<br />
inteira usavam-se relógios grandes, bonitos, com carrilhão,<br />
para pôr na sala de jantar, ou na sala de estar, e su-<br />
34
Siavash Ghazvinian (CC3.0)<br />
Joe Haupt (CC3.0)<br />
Gustavo Kralj<br />
Victor Toniolo<br />
Gustavo Kralj<br />
Dr. Plinio na Praça de São Marcos em 1988<br />
Arquivo Revista<br />
as badaladas se ouviam nas demais dependências da casa,<br />
marcando a hora para a família inteira.<br />
Passaram da moda, quase ninguém mais os tem. Por<br />
quê? Porque o relógio portátil de pulso tornou inúteis esses<br />
outros relógios.<br />
Mas quanta coisa desapareceu em torno da ideia do<br />
relógio que dava o seu carrilhão solene, enchendo a casa<br />
e pondo certa uniformidade na vida de família!<br />
São aspectos minúsculos, mas quanta riqueza e quantas<br />
coisas lindas dentro disso!<br />
Existe, contudo, a ideia de que o esforço humano à<br />
procura da utilidade deve ser respeitado. E, debaixo desse<br />
ponto de vista, deve ser até admirado.<br />
Mas é diferente do esforço do espírito humano quando<br />
busca as coisas contemplativas, que se voltam para a<br />
observação da vida, a análise sociológica, psicológica, a<br />
direção espiritual das multidões humanas, dos povos, das<br />
nações, os primores da estética. Tudo isto vale mais do<br />
que a coisa verdadeiramente valiosa que está colocada<br />
dentro de um bonito objeto.<br />
Relógios nas torres de igrejas<br />
Há, entretanto, um maravilhoso mais belo do que esse,<br />
porque já não é só do homem: é o maravilhoso divino,<br />
a presença da graça na alma; é a Igreja Católica enquanto<br />
sobrenatural, com tudo quanto dela se irradia e<br />
que deixa longe o meramente humano. Não há instituição<br />
tão bonita como a Igreja Católica!<br />
Considerem só esta maravilha: os relógios nas torres<br />
de igrejas.<br />
Quando o relógio foi inventado, não se possuía ainda<br />
a tecnologia necessária para fabricar relógios pequenos.<br />
Faziam-se, então, relógios enormes que cabiam bem<br />
nas torres das igrejas. Ademais, era preciso muito dinheiro<br />
para instalar um relógio, o que devia ser feito num lugar<br />
alto para servir à população inteira. Então a torre da<br />
igreja era o lugar adequado.<br />
Mas a Igreja transformou isso num símbolo: assim como<br />
o relógio da torre indica a hora certa para toda a população,<br />
a Esposa de Cristo dá o pensamento certo para<br />
todos os homens.<br />
Eu não conheço nada tão bonito quanto a instituição<br />
infalível, com aquela calma da Igreja — porque a verdadeira<br />
Igreja é eminentemente calma — que dá o pensamento<br />
certo para cada um a respeito de tudo, com aquela<br />
naturalidade da mãe que diz “Meu filho”, acaricia,<br />
honra, eleva e passa para outro assunto. Avançam os séculos,<br />
ela se mantém naquela serenidade majestosa…<br />
Tudo isto é Igreja Católica, não tem igual, é outro ramo<br />
de maravilhoso! <br />
v<br />
(Extraído de conferências de<br />
29/5/1974, 2/8/1990 e 16/11/1992)<br />
35
Revista Dr Plinio 217, Abril <strong>2016</strong><br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Intercâmbio de mentalidade<br />
Fotos: Gustavo Kralj<br />
entre Mãe e Filho<br />
A cidade de Genazzano está<br />
construída numa montanha, no<br />
alto da qual se ergue a Basílica<br />
de Nossa Senhora do Bom<br />
Conselho, onde se encontra o<br />
belíssimo afresco, trazido no<br />
século XV pelos Anjos desde<br />
Scútari, na Albânia.<br />
T<br />
emos aqui uma vista da cidadezinha de Genazzano.<br />
Bem no centro e no alto encontra-se o campanário<br />
e o corpo da igreja e, depois, vemos a cidade<br />
que se pendura nas encostas dessa pequena montanha.<br />
Eis uma das razões do pitoresco dessa cidade.<br />
O extremo pitoresco do urbanismo<br />
“genazzaniano”<br />
Genazzano foi, outrora, uma cidade fortificada e era<br />
uma espécie de feudo dos Príncipes Colonna. No período<br />
das guerras feudais, ela teve que enfrentar várias dificuldades,<br />
diversos cercos, e por causa disso a população<br />
procurava concentrar-se dentro da cidade, encostando-<br />
-se as casas, umas nas outras, tanto quanto possível. O melhor<br />
meio para uma fortificação defender-se com facilidade<br />
era localizar-se no alto de uma montanha; ora, os altos<br />
das montanhas são naturalmente estreitos, pequenos. Daí<br />
a necessidade de fazer as ruas o mais possível estreitas e<br />
com um traçado sinuoso, pelo qual se adaptem ao modo<br />
com que cada casa consegue pendurar-se no morro. Aí es-<br />
tá o extremo pitoresco do urbanismo “genazzaniano” —<br />
se assim podemos chamar —, que vamos examinar.<br />
Veem-se restos de muralhas, pois com o desaparecimento<br />
das guerras feudais e do perigo de invasões normandas,<br />
árabes, etc., as muralhas foram caindo, mas a cidade<br />
continuou assim, agarradazinha às encostas e deitando<br />
uns prolongamentos para o sopé da montanha.<br />
Foi no alto desse local que uma ardorosa devota da<br />
Mãe do Bom Conselho, Petruccia Nora, quis construir<br />
uma igreja de acordo com revelações e visões recebidas,<br />
e que deveria ser num lugar onde havia uma capela, em<br />
estado de deterioração, em louvor de São Brás, bispo e<br />
protetor contra os males da garganta.<br />
Aí pousou, em certo momento, em meio a coros angélicos<br />
cantando e nuvens luminosas, a imagem de Nossa<br />
Senhora do Bom Conselho que tinha atravessado o Mar<br />
Adriático, acolitada pelos dois albaneses que a seguiram<br />
desde Scútari, na Albânia, caminhando milagrosamente<br />
sobre as águas.<br />
É-nos grato tomar em consideração que no lugar onde<br />
está, na igreja, o altar de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
30
de Genazzano, a imagem baixou, e imaginarmos a<br />
cena: esse burgozinho efervescendo de alegria com<br />
as graças todas que se derramavam do Céu, de um<br />
modo sensível através das músicas, das nuvens, etc.,<br />
e o triunfo de Petruccia, posteriormente sepultada<br />
na igreja, na qual há uma lápide comemorando-a.<br />
Elegância que tem poesia<br />
À primeira vista, quem olhasse essas construções<br />
poderia fazer uma objeção: “Isso é um espaço<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Arquivo Revista<br />
Dr. Plinio em peregrinação a Genazzano em setembro de 1988<br />
mal aproveitado, a cidade não deveria ter sido construída<br />
aí, as casas ficam se encostando, por assim dizer “acotovelando-se”<br />
umas nas outras; a população fica mal servida<br />
de espaços; as ruas têm que ser sinuosas e, portanto,<br />
feias; não há um plano de conjunto. Pelo contrário,<br />
se se fizer uma cidade dividida como um tabuleiro de xadrez,<br />
em quadradinhos, com espaço horizontal bem amplo,<br />
grandes avenidas e um trânsito abundante passando<br />
por aí, fica muito mais bonito!”<br />
Ora, isso daria nessa banalidade que todos conhecemos.<br />
Pensemos, por exemplo, em uma grande avenida de<br />
São Paulo e façamos a comparação: Genazzano é pitoresca,<br />
dá vontade de ir visitar. Pelo contrário, diante da<br />
grande avenida sentimos vontade de bocejar.<br />
Vemos nesta outra fotografia, tirada de dentro de um<br />
restaurante, um panorama muito bonito, montanhoso,<br />
variado e, felizmente, pouco cultivado pelo homem.<br />
É curioso, mas às vezes a cultura do homem embeleza<br />
e às vezes torna sem graça uma determinada paisagem.<br />
Aqui se tem a impressão de que as coisas continuam como<br />
eram quando saíram das mãos de Deus.<br />
Em outra foto aparece uma parte da muralha, uma<br />
fontezinha com chafariz, que está ao lado de uma espécie<br />
de reservatório. Nota-se na muralha certa<br />
preocupação de elegância. Vejam as ameias,<br />
cuja finalidade é permitir que o defensor da<br />
cidade se proteja dos projéteis lançados pelo<br />
adversário, escondendo-se atrás disso que<br />
poderíamos chamar vagamente uns “Vs”;<br />
e na hora de ele mesmo atirar, aparece depressa<br />
e joga qualquer coisa, depois volta para trás.<br />
Entretanto, esses “Vs” são mais altos do que costumam<br />
habitualmente ser em fortificações dessa natureza, para tomar<br />
assim uma forma de elegância que tem certa poesia.<br />
Observem as paredes. São fortificações belíssimas. A<br />
vegetação se introduziu em todas as frinchas que separam<br />
uma pedra da outra. Onde um pouco de terra pousou,<br />
uma semente se deitou, uma planta nasceu e assim<br />
aquela que poderíamos chamar quase de torre é felpuda<br />
de vegetação.<br />
Do lado de cá, há uma porta que outrora fora aberta,<br />
mas provavelmente por razões de defesa resolveram fechar.<br />
Junto a ela está tudo ajardinado e arranjadinho, a<br />
fonte está bem conservadinha sobre uma bonita coluna<br />
que sustenta a bacia, e tem-se aí um golpe de vista muito<br />
interessante.<br />
Ruas estreitas em zigue-zague,<br />
terraços floridos<br />
É especialmente interessante o fato de terem conservado<br />
a muralha e, com o desaparecimento das guerras, ter-<br />
32
-se formado um pouco de cidade de um lado e do outro dela;<br />
e, para maior comodidade, foram retirados os batentes<br />
da porta, que não é mais necessário fechar, pois os inimigos<br />
desapareceram. Contudo, a muralha permanece. Vejam como<br />
é interessante esta piazzetta localizada logo depois da<br />
muralha, em cujo andar térreo vê-se uma janela com cortininhas<br />
e um toldo. Trata-se, provavelmente, de um restaurante<br />
muito barato, de comida nada raffinée, mas saborosa,<br />
onde o povo engorda tanto quanto pode, comendo e bebendo,<br />
conversando, exclamando e, pela vocação um pouco<br />
oratória do povo italiano, declamando também.<br />
Neste outro aspecto da cidade, vemos um claro exemplo<br />
do que falávamos há pouco sobre as ruas apertadas,<br />
estreitas. Aqui foi concedido ao fator “rua” o menor espaço<br />
possível, para poder caber dentro das muralhas o<br />
maior número possível de habitantes.<br />
Vejam como a rua se torna, assim, sinuosa, desenvolvendo-se<br />
numa espécie de zigue-zague. E, para aproveitar<br />
mais o espaço, por cima da própria rua constroem<br />
pontes onde deve haver quartos com gente habitando.<br />
Como habitação, não é muito diferente de uma favela<br />
de pedra. Entretanto, não se tem a impressão de miséria<br />
e para lá vão turistas para ver o pitoresco dessas mansões<br />
humildes. Notem como as ruas são limpas, os lugares<br />
arejados e como as pessoas moram um pouco ou<br />
muito apertadas ali dentro, mas alegres e com o espírito<br />
gaiato, satisfeito, cantam, evidentemente.<br />
Isso aqui está fotografado à luz do dia, porém é ainda<br />
mais bonito sob o luar. Exatamente, nós visitamos isso<br />
ao luar, e fica um verdadeiro encanto! Não é só quando<br />
a Lua nasce “por detrás da verde mata”, que ela é muito<br />
bonita. Ela é bela em todas as circunstâncias: “pulchra<br />
ut luna, electa ut sol” 1 , diz a Escritura num trecho aplicado<br />
pela Igreja a Nossa Senhora. Sob o luar essa paisagem<br />
urbana adquire certo ar de mistério, e um transeunte que<br />
anda sozinho por essas ruas, à noite, com uma capa, o<br />
rosto meio embuçado e com um passo apressado, não se<br />
sabe se é um mensageiro que está trazendo uma mensagem<br />
secreta, um aventureiro a fugir de uma polícia, ou<br />
simplesmente um habitante do lugar, um pouco teatral...<br />
É a poesia de Genazzano.<br />
Na Itália, como em outros países da Europa, existe a<br />
preocupação frequente de florir os terraços. Vemos nessa<br />
residência como tudo está enfeitadinho, indicando o<br />
prazer e a alegria de viver, o gosto de ter uma vida razoável<br />
e alegremente ornada, dentro de certa pobreza. É<br />
o contrário da revolução social marxista, com os punhos<br />
fechados, ameaçando revolta e morte.<br />
Aqui vemos uma porta e, no alto, um brasão com uma<br />
coroa.<br />
Nos edifícios antigos era comum porem-se coroas, escudos,<br />
ainda que não pertencessem às famílias nobres,<br />
mas, por exemplo, à municipalidade. Elas ostentavam<br />
uma coroa, não feita de ouro e prata, mas de pedra, representando,<br />
em ponto pequeno, a muralha, símbolo da auto-<br />
Fachada da Basílica da Mãe do Bom<br />
Conselho - Genazzano, Itália<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
nomia da cidade. Tanto quanto a minha vista me permite<br />
discernir, não há sobre esta porta uma coroa nobiliárquica,<br />
mas municipal. Entretanto, vejam como ela ficou agradável<br />
de ver em cima dessa entrada. É a pequena e modesta<br />
pompa de um vilarejo consciente de sua dignidade.<br />
O teto, a mesa de Comunhão e o<br />
quadro da Mãe do Bom Conselho<br />
Vemos aqui o interior da igreja. O afresco de Nossa<br />
Senhora do Bom Conselho de Genazzano está à esquerda.<br />
Nota-se do lado esquerdo alguns arcos grandes que, à<br />
primeira vista, parecem vedados por um grande cortinado;<br />
mas não é cortina, e sim um gradeado muito bonito,<br />
sólido e bem desenhado, que defende por todos os lados<br />
a imagem de eventuais atentados durante a noite. Assim,<br />
a sagrada imagem fica ao resguardo de qualquer ladrão<br />
que queira vendê-la, de qualquer devoto indiscreto que<br />
deseje fazer com ela uma extravagância, inspirado por alguma<br />
piedade mal entendida, ou de qualquer blasfêmia<br />
de algum profanador.<br />
A igreja tem um tom de seriedade que lembra a Igreja<br />
do Sagrado Coração de Jesus, em São Paulo. Na parte<br />
do fundo, vê-se a capela-mor, o presbitério e dois altares<br />
— o altar onde estão as velas, e aquele onde se encontra<br />
o Crucifixo é o altar antigo.<br />
O teto não cai perpendicularmente, mas à maneira de<br />
uma semiabóboda, cujo desenho é mais ou menos entrevisto<br />
pelo arco que há no alto, na entrada do presbitério,<br />
e que se repete depois. Aqueles losangos e os desenhos<br />
dentro deles não são pintados, e sim feitos em alto-relevo<br />
muito fino, muito bonito e distinto, sem aqueles transbordamentos<br />
demagógicos e um tanto cafajestes que o<br />
Renascimento tem, mesmo quando procura ser aristocrático.<br />
Aqui não: esse adorno é muito discreto e distinto,<br />
como convém às coisas sacrais.<br />
A mesa de Comunhão é de um mármore de muito boa<br />
qualidade, concebida segundo uma inspiração muito justa<br />
e verdadeira, do ponto de vista teológico. Dado que o Santíssimo<br />
Sacramento é Nosso Senhor realmente presente<br />
sob as espécies eucarísticas, o padre dar a Comunhão e o<br />
fiel recebê-la constituem um ato tão alto, de uma elevação<br />
infinita — porque Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-<br />
-Deus, é Aquele que é dado e recebido — que seria próprio<br />
aos Anjos segurarem o pano da mesa de Comunhão.<br />
Por isso, é muito bonita a ideia de representar a mesa<br />
de Comunhão como um pano improvisado, sustentado<br />
poeticamente por anjos, não esticado, mas com umas<br />
ondulações bonitas esculpidas no mármore.<br />
Desagrada, entretanto, o fato de serem representados<br />
uns anjos travessos, sem seriedade, nada daquilo que se<br />
pode imaginar de um Príncipe na presença de Deus por<br />
34
toda a eternidade. Isso desdoura e entra em contraste<br />
com toda a respeitabilidade autêntica, muito maternal e<br />
afável da igreja.<br />
Ao fundo da nave esquerda, na capela guarnecida<br />
de grades fortes e distintas, de que falamos há pouco, e<br />
cujas paredes estão revestidas de mármores particularmente<br />
bonitos, encontra-se o nicho com o quadro de<br />
Nossa Senhora do Bom Conselho.<br />
A imagem é altamente expressiva e deixando transparecer<br />
esse convívio maternal, silencioso, de longas e longas<br />
horas entre Ela e o Menino Jesus, e uma espécie de<br />
consenso mudo entre ambos a respeito de toda espécie<br />
de coisas, de temas, indicando a união intimíssima de almas<br />
da mais alta das meras criaturas, que é Maria Santíssima,<br />
com Aquele que, enquanto Homem é criatura,<br />
e na sua natureza divina é o Criador. Isso tudo vivido na<br />
simplicidade das relações, Mãe e Filho. É o tipo de relação<br />
mais simples, mais espontânea, mais natural e mais<br />
íntima que o espírito humano pode conceber.<br />
Há nessas duas figuras uma espécie de silêncio vivo<br />
pelo qual não dão a impressão, nem um pouco, de meras<br />
pinturas. Não se pode retratar melhor o intercâmbio de<br />
afeto, de mentalidade e quase de vitalidade entre Mãe e<br />
Filho do que essa imagem representa.<br />
agostiniano que viveu em meados do século XIX 2 . É o<br />
grande devoto de Nossa Senhora de Genazzano.<br />
Tanto quanto a minha experiência faz notar, essa devoção<br />
tem como que eclipses. Quer dizer, há momentos<br />
em que ela é muito sensível, e a esperança de ser atendido<br />
pela intercessão de Nossa Senhora do Bom Conselho<br />
é fácil, alegre e luminosa. Em outras ocasiões fica difícil,<br />
essa esperança não é sensível e torna-se necessária uma<br />
grande força de alma para se perseverar na confiança.<br />
Para praticar esta virtude com este grau enérgico de<br />
confiar, quando todas as impressões de caráter sobrenatural<br />
se apagam em nós para nos provar, a intercessão do<br />
Beato Stefano Bellesini que, com certeza, foi exímio nisso,<br />
nos é muito favorável. Eu rezo a ele mais de uma vez<br />
por dia, e recomendo muito que rezem também.<br />
A atitude dele nessa imagem de cera que reveste suas<br />
relíquias é muito calma, tranquila, de quem já está elevado<br />
às tranquilidades eternas do Céu.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 9/11/1988)<br />
1) Do latim: bela como a Lua, incomparável como o Sol (Ct 6, 10).<br />
2) * 1774 - † 1840.<br />
Arquivo Revista<br />
Imagem do Beato Stefano Bellesini<br />
Em uma capela contígua à igreja encontra-<br />
-se um altar com os restos mortais do Bem-<br />
-aventurado Stefano Bellesini, sacerdote<br />
Arquivo Revista<br />
Dr. Plinio reza diante do afresco da Mãe do Bom Conselho e das<br />
relíquias do Beato Stefano Bellesini, em setembro de 1988<br />
35
Revista Dr Plinio 218, Maio <strong>2016</strong><br />
luzes da civilização cristã<br />
Majestade multissecular<br />
de um palácio<br />
Analisando a Praça do Campidoglio, Dr. Plinio aponta graves<br />
defeitos na urbanização de grandes cidades brasileiras.<br />
E<br />
sta é a bonita Igreja de Trinità dei Monti, construída<br />
em louvor da Santíssima Trindade.<br />
Agradável contraste entre três palácios<br />
Jean-Pierre Dalbéra (CC3.0)<br />
Nota-se uma elevação de terreno e, em baixo, um ajardinamento<br />
e uma escada muito bonita que, através de vários<br />
lances desde a igreja, desce até uma praça onde se ergue<br />
uma coluna no alto da qual está a Imagem da Imaculada<br />
Conceição, construída no tempo de Pio IX para celebrar<br />
a promulgação do dogma da Imaculada Conceição.<br />
Em outra foto, vemos uma das coisas mais bonitas<br />
que conheci em minha vida: a Praça do Campidoglio, em<br />
Roma, no centro da qual se encontra uma estátua do Imperador<br />
Marco Aurélio. Trata-se de uma réplica, pois a<br />
figura original estava se deteriorando por causa da poluição;<br />
então, fizeram esta cópia e puseram a escultura<br />
original numa sala, onde não sofresse a deterioração.<br />
Três palácios circundam a praça: um ao fundo e dois<br />
frente a frente. Há um contraste agradabilíssimo entre esses<br />
palácios, pois o do fundo, com um aspecto completamente<br />
distinto dos outros, forma uma dissonância harmônica<br />
com a perfeita identidade dos dois palácios laterais.<br />
Considerando este palácio do fundo, vemos como ele<br />
é de uma altura muito formosa. A proporção das janelas<br />
Davide Lussetti (CC3.0)<br />
34
Gustavo Kralj<br />
Gustavo Kralj<br />
e das portas é também muito bonita. O palácio é de uma<br />
cor um tanto avermelhada e tem no alto uma balaustrada<br />
branca. Ao fundo vê-se uma torre e um relógio.<br />
Considerem a distinção e — eu não recuo diante da<br />
palavra — a majestade multissecular desse palácio! É<br />
uma verdadeira beleza, e pode-se ficar aqui horas contemplando.<br />
Vejam os bonitos desenhos do chão, a aplicação de pedra<br />
sobre pedra, sem o que esse espaço, permanecendo de uma<br />
só cor, ficaria vazio e a harmonia da praça desapareceria.<br />
Chamo a atenção para o fato de que, por toda parte, o<br />
europeu se empenha em plantar bonitas árvores e colocar<br />
fontes, o que não é tão frequente encontrarmos em grandes<br />
cidades brasileiras, como São Paulo, por exemplo.<br />
Síntese entre a cidade e o mato<br />
Por que faço comparações como essa? Não é antipático?<br />
Não se diria que essas comparações, necessariamente<br />
desfavoráveis a nós, melhor seria que não fossem feitas?<br />
Quem levantasse tal objeção diria uma coisa caracteristicamente<br />
desprovida de inteligência, porque a pessoa<br />
criteriosa quer conhecer os seus defeitos para corrigi-los.<br />
E se foram cometidos erros no urbanismo de São<br />
Paulo, como no de outras grandes cidades do Brasil, é<br />
preciso conhecê-los e criar um estado de espírito por onde<br />
esses erros não se repitam.<br />
Assim, a perpétua linha reta que não acaba mais; a<br />
ausência de arborização, ou uma arborização raquítica,<br />
pobre, retorcida, que se prefere nem ver, são defeitos<br />
gravíssimos que a cidade apresenta, e contra os quais<br />
quase ninguém faz objeções, porque não há muita apetência<br />
de nosso povo por essas coisas.<br />
Talvez isto se deva, um pouco, à fobia do mato, própria<br />
ao desbravador. Este chega onde há mato e tem uma<br />
enorme vontade de estar na cidade; então procura, dentro<br />
do mato, construir a cidade. E como, segundo uma<br />
concepção simplista, o mato é o contrário da cidade, a<br />
primeira providência para urbanizar é derrubar as árvores.<br />
Ora, é propriamente uma síntese entre a cidade e<br />
o mato que convém fazer! As grandes capitais da Europa<br />
são construídas com essa ideia. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 9/11/1988)<br />
Paolo Monti (CC3.0)<br />
35
luzeS da civilização criStã<br />
Revista Dr Plinio 219, Junho <strong>2016</strong><br />
Nobreza, severidade<br />
e dignidade<br />
A praça onde se encontra o Paço Municipal de Siena —<br />
juntamente com a Praça de São Marcos, a de São Pedro e a<br />
Place Vendôme — é uma das mais bonitas da Cristandade.<br />
Um dos prédios mais bonitos que existe é o Paço<br />
Municipal da cidade de Siena, situada a<br />
uma distância considerável de Orvieto. Há<br />
ali uma grande praça pública e veem-se uns prédios de<br />
construção mais ou menos antiga. A praça no seu conjunto<br />
forma uma moldura adequada para o Paço Municipal.<br />
O prédio merece uma análise.<br />
Equilíbrio arquitetônico<br />
O edifício se compõe de três corpos diferentes: um principal,<br />
que é o prédio propriamente dito, composto por sua<br />
vez de uma parte central guarnecida de uma de torre, com<br />
um círculo bem no meio. Em cima, ameias, e nos dois extremos<br />
da fachada, como que dois torreõezinhos vazados.<br />
Como essa construção data aproximadamente do fim<br />
da Idade Média, e as guerras entre senhores feudais, entre<br />
cidades, estavam terminando, o aspecto de castelo<br />
fortificado que o Paço Municipal conserva é mais uma<br />
reminiscência artística do que uma necessidade tática<br />
para defender o paço. As ameias continuam no alto, e<br />
terminam agradavelmente o prédio.<br />
Há um equilíbrio arquitetônico muito bonito entre<br />
os dois lados, os dois corpos de edifício mais<br />
abaixo e, no centro, um mais alto onde se encontram<br />
os tais torreõezinhos.<br />
A torre grande forma praticamente um edifício<br />
separado do Paço Municipal e possui um<br />
relógio, o qual, para o tempo em que foi instalado,<br />
representava um grande progresso. No<br />
alto está o campanário dos sinos do Paço Municipal,<br />
por meio dos quais se davam os avisos<br />
aos habitantes da cidade, em caso de perigo,<br />
de incêndio, etc.<br />
Em baixo, encontramos uma espécie de tribuna<br />
de mármore branco encostada na torre,<br />
mas não constitui um só todo com a torre. É<br />
também uma beleza!<br />
Esses três elementos juntos formam uma<br />
verdadeira maravilha.<br />
Tango7174 (CC3.0)<br />
32
Wpopp (CC3.0)<br />
Antonio Lutiane<br />
William Domenichini (CC3.0)<br />
Rabe! (CC3.0)<br />
Vincenzo Rustici (CC3.0)<br />
K. Lásztocskatalk (CC3.0)<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Sergio Hollmann<br />
Sailko (CC3.0)<br />
Arquivo Revista<br />
Nessa praça realiza-se a famosa festa do Pálio de Siena,<br />
que atrai turistas do mundo inteiro. Vários bairros<br />
da cidade, denominados “contradas”, comparecem a cada<br />
ano com seus trajes, bandeiras e hinos característicos,<br />
e realizam uma corrida de cavalos em honra de Nossa<br />
Senhora, em meio a uma festa tão fabulosa que todas<br />
as janelas em torno da praça são alugadas a um preço<br />
enorme, e com muita antecedência.<br />
Este é um dos aspectos dessa praça que faz dela, junto<br />
com a Praça de São Marcos, a de São Pedro e a Place<br />
Vendôme de Paris, uma das mais bonitas da Cristandade.<br />
Severidade e dignidade do Palácio<br />
Mas o que é muito menos conhecido e perfeitamente<br />
notável é a parte interior do edifício municipal, o qual<br />
é um palácio com lindas ogivas e salas com alguma coisa<br />
ainda do arranjo medieval. De maneira que se pode<br />
saborear com toda a intensidade o que seria um palácio<br />
medieval no período em que a Idade Média estava caminhando<br />
do meio para o fim.<br />
Vejam a nobreza — eu quase diria a severidade e a<br />
dignidade — desse prédio, curiosamente côncavo.<br />
Notem na parte alta da torre o mármore branco próprio<br />
à região, como é bonito! Por outro lado, como essas<br />
reminiscências de ameias e de contrafortes para escorar<br />
as ameias tornam bonita a cena do campanário. No alto<br />
encontramos ainda o local para pendurar os sinos, que<br />
tocavam para dar avisos à cidade.<br />
No interior do Paço Municipal, o único objeto moderno<br />
é o lustre com lâmpadas elétricas encarapitadas ali. Percebe-se<br />
a indústria do latão e do bronze do século XIX, com<br />
muito menos nobreza do que as tochas que na Idade Média<br />
se colocavam. O resto é estritamente medieval e muito bem<br />
conservado, com chão encerado de modo exímio e as pinturas<br />
das paredes muito bem conservadas também.<br />
Percebe-se a riqueza do ambiente. Essa impressão<br />
de fausto é causada, por exemplo, pelas pinturas. É de<br />
notar também a grossura das paredes. Basta percorrer<br />
com o olhar as pilastras que separam os arcos para ver<br />
como as paredes são grossas e como todo o edifício é sólido.<br />
Isso corresponde, até certo ponto, à ideia de edifício-fortaleza,<br />
por causa da guerra urbana. Pode-se imaginar<br />
o esplendor de uma festa noturna dentro de uma<br />
sala dessas...<br />
Há ali uma capela separada do restante da sala por<br />
um gradeado lindíssimo. Nas paredes, belas pinturas de<br />
cunho religioso, muito adequadas à capela. Depois, por<br />
outro lado, a sala se prolonga para outros fins.<br />
No pátio interno do Paço Municipal vemos as lindas<br />
ogivas e bandeiras colocadas em um dos corpos de edi-<br />
Francisco Lecaros<br />
Sergio Hollmann<br />
34
fício. Já o outro corpo de edifício mais adiante é digno,<br />
mas menos bonito e mais recente, e também está adornado<br />
por alguns estandartes.<br />
A catedral e as residências fortificadas<br />
A Catedral de Siena é lindíssima, construída segundo<br />
a mesma técnica da matriz de Orvieto. Nela encontramos<br />
lindos mosaicos, por exemplo, nos tímpanos das<br />
portas, esculturas, e a torre listrada de mármore branco<br />
de acordo com o estilo existente em Florença e em outras<br />
cidades mais ou menos dessa região.<br />
Em certas igrejas antigas, a pia batismal ficava colocada<br />
num apêndice do edifício sagrado. É o caso da Catedral<br />
de Siena.<br />
Outro aspecto interessante é o púlpito, inteiramente<br />
destacado de qualquer coluna ou parede, e amplo, possibilitando<br />
ao pregador mover-se em todas as direções.<br />
Havia para isso uma razão prática: essas igrejas eram<br />
muito grandes e se enchiam de fiéis inteiramente. E não<br />
havia autofalantes e coisas desse gênero. Então, o pregador<br />
tinha que se colocar em posições diversas no púlpito<br />
para fazer ouvir sua pregação ora para um lado, ora<br />
para outro, evitando desfavorecer excessivamente uma<br />
parte do público que estava na igreja.<br />
Em Siena veem-se prédios antigos que, embora não<br />
sendo palácios, possuem ameias. Não se trata apenas<br />
de uma reminiscência da Idade Média. As lutas de cidade<br />
com cidade tinham cessado, mas as querelas entre famílias<br />
na mesma cidade ainda existiam. Então eram lutas<br />
de casa contra casa. Por isso, às vezes, as residências<br />
eram fortificadas.<br />
Em muitas casas encontramos lindas janelas medievais,<br />
junto às quais são colocadas, por vezes, bandeiras,<br />
todas muito originais. Quiçá são as bandeiras das tais<br />
contradas que ali permanecem até o momento de serem<br />
entregues aos que participam daquele espetáculo.<br />
As ruas da cidade são sempre pitorescas. São as antigas<br />
ruas da velha Itália. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 17/11/1988)<br />
Raimond Spekking (CC3.0)<br />
35
luzes da civilização cristã<br />
Revista Dr Plinio 220, Julho <strong>2016</strong><br />
Alain Patrick<br />
Vista da cidade de<br />
Florença, Itália<br />
Florença e a perfeição<br />
das formas<br />
A arte florentina se caracteriza pela perfeição das formas e seu<br />
estilo despojado. Embora alguns monumentos de Florença<br />
causem respeito e admiração por seu grande valor artístico,<br />
a mania do despojado — hoje tão difundida — parece uma<br />
censura a Deus que não fez um universo sem ornatos.<br />
Em certo sentido, podem-se considerar como sendo<br />
três as metrópoles de irradiação do espírito<br />
renascentista a partir da Itália: Florença, Veneza<br />
e Roma. Cada uma delas teve um papel determinado<br />
na difusão desse espírito.<br />
Palácio da Senhoria: exemplar<br />
típico do espírito florentino<br />
Do ponto de vista artístico, enquanto Florença prima<br />
pela busca na perfeição das formas, Veneza procura<br />
realçar a supremacia das cores sobre o desenho. Roma,<br />
por sua vez, é a síntese dos vários aspectos da Renascença,<br />
onde os Papas procuraram recolher obras-primas de<br />
todas as fontes e formas de beleza.<br />
O espírito florentino é muito raciocinante e amigo de<br />
ver nas coisas principalmente o aspecto resultante do silogismo.<br />
Essa é uma posição quase ascética dos renascentistas,<br />
que recusa à imaginação muitas invenções, e<br />
ao sentimento um papel muito grande na elaboração do<br />
conjunto do pensamento humano. Pelo contrário, vive de<br />
cálculos, proporções, perspectivas realmente bem elabo-<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Alain Patrick<br />
do pelo qual essa torre se ergue altaneira no monumento<br />
é formidável.<br />
Mas não se pode negar que ele nos leva a perguntar<br />
se não poderia ser um pouco mais coerente em alguns<br />
de seus aspectos. Por exemplo, não vejo o objetivo funcional<br />
daquelas quatro janelinhas numa primeira fileira;<br />
depois uma embaixo da quarta, colocada ali, onde tudo<br />
levaria a crer serem necessárias pelo menos algumas<br />
das janelas do estilo das três que estão mais ou menos<br />
na mesma linha, continuando para a direita. Por que isso<br />
é assim? Não se entende.<br />
Por outro lado, um aspecto que exprime, no meu modo<br />
de entender, a secura do estilo é a repetição dessa disposição<br />
de janelas em baixo. Depois, surgem de repente<br />
duas ou três janelinhas muito mais curtas, sem arcos em<br />
cima, colocadas ali não se sabe por quê. Por fim, no andar<br />
térreo, duas portinhas.<br />
Dir-se-ia que são elementos de feiúra. Entretanto, o<br />
conjunto agrada enormemente. Por quê? Porque a boa<br />
ordem da fachada — indiscutivelmente<br />
há uma<br />
bela boa ordem aí — faz<br />
esquecer os defeitos dessas<br />
janelinhas. Ou, pelo<br />
contrário, essas janelinhas<br />
entram meio subconscientemente<br />
no espírito<br />
como elementos<br />
dessa boa ordem. Sou<br />
mais propenso à segunda<br />
ideia.<br />
De uma dessas janelas<br />
parte um balcão.<br />
Não se diria que um palácio<br />
monumental comportaria<br />
um balcão<br />
mais bonito, mais elegante?<br />
Entretanto, é esticadinho<br />
e sequinho.<br />
Não obstante, o palácio<br />
é de uma beleza mundialmente<br />
elogiada. No<br />
mundo inteiro encontram-se<br />
estampas, postais,<br />
álbuns apresentando<br />
esse edifício deste<br />
ângulo.<br />
Se o comparamos<br />
com certos palácios de<br />
Veneza, que parecem<br />
descidos de um céu empíreo,<br />
das nuvens, notarados.<br />
Tendência da qual, a meu ver, nasceria o racionalismo.<br />
É o que principalmente notaremos nos edifícios florentinos<br />
que analisaremos a seguir.<br />
O palácio dito da Senhoria de Florença foi durante muito<br />
tempo a sede do governo de um pequeno Estado, que<br />
ocupou na cultura e no pensamento humano um lugar<br />
enorme, constituindo uma grande potência do pensamento.<br />
O Palácio da Senhoria de Florença é um exemplar<br />
típico do espírito florentino. O que há de cor neste palácio?<br />
Do lado de fora, nada. Um tijolo de um aspecto<br />
agradável, mas nada mais do que isso. Uma torre bonita<br />
com um relógio que lembra o de Siena 1 . Notam-se em algumas<br />
das janelas ainda certo sentido ogival; outras, porém,<br />
constituem meros furos realizados na parede sem<br />
sentido de beleza especial nenhum.<br />
A torre não está no meio do edifício. Na ótica moderna,<br />
a torre deveria estar bem no centro, segundo um princípio<br />
elementar do traçado artístico razoável, desejável. Mas<br />
neste palácio a torre fica empurrada um pouco para o lado,<br />
e o relógio posto na raiz da torre, quando normalmente<br />
o colocaríamos na parte de cima daquelas ameias, para<br />
ser visto pelo maior número possível de pessoas.<br />
Há embaixo, nos dois ângulos do edifício, dois ornatos<br />
extrínsecos ao palácio, mas que ajudam a ter uma ideia da<br />
harmonia total dele. São duas estátuas monumentais, de<br />
estatura maior do que a de um homem. Não lembro bem o<br />
que as estátuas representam. Elas são de um mármore bem<br />
alvo, e contrastam bastante, portanto, com a cor do prédio.<br />
Edifício sério, altivo, lógico<br />
Nesta página e na seguinte,<br />
aspectos do Palácio da<br />
Senhoria - Florença, Itália<br />
No meu modo de entender, esse edifício é lindo, extraordinário<br />
enquanto sério, altivo, lógico em tudo. O mo-<br />
JoJan (CC3.0)<br />
32
mos uma diferença colossal de psicologias. Esta é a psicologia<br />
florentina.<br />
Vê-se ali o emblema de Florença: a flor de lis vermelha<br />
que caracteriza, na heráldica, a cidade.<br />
Uma palavra sobre a arcada. São três arcos só, entretanto,<br />
pela suavidade deles — eu quase diria pela doçura<br />
séria, hierática, agradável dos arcos — a arcada completa<br />
e atenua um pouco o que o palácio tem de seco. São<br />
três arcos famosos, que constituem uma parte do décor<br />
da Praça do Palácio da Senhoria.<br />
Duas atitudes de alma face<br />
ao Palácio da Senhoria<br />
sonofgroucho (CC3.0)<br />
Antes de passar adiante, eu queria apenas apanhar<br />
uma impressão que me vem de um prédio localizado ao<br />
fundo, em um dos lados da arcada. É um edifício comum,<br />
provavelmente construído no século XIX. Mas imaginem<br />
uma pessoa que tenha um escritório naquele prédio,<br />
onde ela exerce uma<br />
função muito absorvente.<br />
Vamos dizer que, por<br />
exemplo, no primeiro<br />
andar desse edifício, esteja<br />
instalada uma grande<br />
agência internacional<br />
de notícias, na qual<br />
informações chegam a<br />
toda hora e que precisam<br />
ser difundidas a cada<br />
instante. É necessária<br />
uma vigilância muito<br />
grande, para distinguir<br />
as notícias verdadeiras<br />
das falsas, da boataria,<br />
para condensar e enviá-<br />
-las para o maior número<br />
de pessoas possível,<br />
responder às perguntas<br />
que vêm, etc.; é um contato<br />
com o mundo inteiro<br />
que se dá ali.<br />
Quando chega a hora<br />
de encerrar o expediente,<br />
a agência de notícias<br />
fecha e o indivíduo,<br />
que esteve ali o dia<br />
inteiro em contato com o<br />
que há de mais moderno<br />
no acontecer do mundo<br />
contemporâneo, sai. Ele<br />
deixou um automovelzinho<br />
qualquer encostado ao Palácio da Senhoria. Chove,<br />
ele sai com uma capa de chuva, fumando um cigarrinho,<br />
cansado, chega até lá e toma seu automóvel.<br />
Ele está com o pensamento, com o temperamento e<br />
todo o modo de ser dele completamente voltado para o<br />
mundo contemporâneo. O Palácio da Senhoria, com essa<br />
loggia e esses três arcos, ele vê todos os dias e não tem<br />
nenhuma providência a tomar a respeito disso.<br />
Podemos imaginar esse homem com dois modos de<br />
ser distintos: um é o indivíduo atolado no mundo moderno<br />
do qual gosta, e que passa perto disso como uma coisa<br />
importuna. Se ele olhar para ela, tira o espírito dele<br />
dos gonzos do seu ganha-pão para considerações com as<br />
quais ele não tem nada o que fazer. Então, o Palácio da<br />
Senhoria, para ele, é uma coisa com a qual ou sem a qual<br />
o mundo vai tal e qual.<br />
Se, pelo contrário, ele tem um grande espírito, distancia-se<br />
um pouco e, apesar da chuva, pensa: “Deixe-me<br />
descansar um pouco, olhando essa beleza. Vou tomar<br />
um “banho” de alma pensando nisso, contemplando um<br />
pouco isso.” Entra no automovelzinho, dá um giro, recua<br />
o veículo e, enquanto acaba de fumar o seu cigarro, ele<br />
fica olhando pela enésima vez em sua vida o Palácio da<br />
Senhoria. Aquilo entranha na alma dele, a qual fica rica<br />
de um depósito de arte que é uma coisa incomparável.<br />
Homens como este último são incomparavelmente<br />
mais raros do que os do primeiro tipo.<br />
A Ponte Vecchio<br />
Gostaria de chamar a atenção para a cor desse rio.<br />
Tem-se a impressão de um cristal colorido, de um verde<br />
um pouco dado a certo tipo de musgo, que se tornou<br />
líquido e está correndo lentamente. Trata-se do famoso<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Vitor Toniolo<br />
Vistas da Ponte<br />
Vecchio - Florença, Itália<br />
Targeman (CC3.0)<br />
Alain Patrick<br />
Rio Arno de Florença, de águas lindas, e em cujas margens<br />
se sucederam fatos históricos extraordinários.<br />
Sobre ele passa a conhecidíssima Ponte Vecchio. Para<br />
compreender a constituição dessa ponte, precisamos nos<br />
reportar às condições militares da cidade de Florença na<br />
Idade Média, com muralhas de todos os lados para se<br />
defender contra as agressões de fora. Naturalmente, havia<br />
uma grande vantagem para os florentinos em morarem<br />
dentro do espaço protegido pelas muralhas, porque<br />
quando havia cercos, a família, com seus pertences, estava<br />
a salvo do incêndio e do saque dos adversários que,<br />
muitas vezes, a primeira coisa que fazem quando investem<br />
sobre uma cidade é arrasar as construções localizadas<br />
do lado de fora e tocar fogo, para as muralhas ficarem<br />
atingíveis de alto a baixo.<br />
Acontece que, sendo muito caro aumentar as muralhas,<br />
os habitantes se espremiam dentro da cidade. Assim,<br />
por falta de lugar onde colocar as pessoas, certas<br />
casas foram construídas em cima da ponte. E algumas<br />
até suspensas, meio com base na ponte, e meio no ar,<br />
com uma suspensão muito sólida, sem qualquer perigo<br />
de ruir. Compreendo que isso deixasse apreensivo a algum<br />
de nossos contemporâneos. Eu, entretanto, dormiria<br />
ali completamente despreocupado.<br />
Vemos, assim, de um lado e de outro, ao longo da ponte,<br />
prédios suspensos por meio de apoios fixados na própria<br />
ponte, o que indica uma falta de espaço tremenda!<br />
No andar térreo funciona algum comércio e, em cima,<br />
habitações.<br />
34
O Lungarno degli Archibusieri<br />
Lembro-me de que, em uma das vezes que estive em<br />
Florença, jantei em um restaurante instalado sobre um<br />
tablado posto sobre estacas no Rio Arno. E exatamente<br />
no lugar onde eu estava havia uma espécie de fresta na<br />
madeira — pedacinhos de madeira tinham caído no rio<br />
—, e pela fresta se via passar o Arno. Este é tão bonito,<br />
que para mim a atração do jantar foi ficar o tempo todo<br />
olhando pela fresta.<br />
Eu me recordo de que nos hospedamos em um hotel<br />
que era uma antiga torre talvez medieval, adaptada inteiramente<br />
para hotel, e dando para uma avenida ao longo<br />
do Arno, que se chamava Lungarno degli Archibusieri.<br />
O arcabuz é uma arma de fogo do período inicial desse<br />
tipo de armas ainda na Renascença. O arcabuzeiro era<br />
o soldado que portava essa arma. Lungarno quer dizer<br />
“ao longo do Arno”, e as várias partes ao longo do Arno<br />
chamavam-se Lungarno disso, Lungarno daquilo; o local<br />
onde eu estava era Lungarno degli Archibusieri, uma<br />
verdadeira beleza. O nome é lindo e, estando deitado na<br />
torre, tem-se a impressão de ouvir a marcha cadenciada<br />
dos arcabuzeiros que caminhavam para alguma guerra<br />
de conquista de um terreninho com quatro ou cinco galinheiros,<br />
que iam arrancar da cidade vizinha.<br />
O comércio existente no andar térreo dos prédios dessa<br />
ponte é riquíssimo, magnífico. Creio já ter contado que,<br />
numa das vezes em que estive aí, eu procurava uma lembrança<br />
para Dr. João Paulo e Da. Lucilia e entrei numa<br />
loja de antiguidades, no andar térreo. Entrei um pouco<br />
para ver a loja e, entre os objetos expostos, observei um<br />
par de castiçais para se colocar em criado-mudo. Precisamente<br />
faltava arranjar uma peça bonita desse gênero para<br />
o quarto deles. Perguntei quanto custava. Era um preço<br />
fabuloso. Aí prestei mais atenção; os castiçais tinham<br />
me encantado, mas eu não tinha feito o raciocínio muito<br />
simples de que tudo que encanta é caro e, portanto, eu deveria<br />
desconfiar do preço. Mas era um cristal com tais e<br />
quais qualidades, cujo preço eu não podia pagar. Os castiçais,<br />
em vez de irem para a Rua Alagoas, 350, onde eu residia<br />
com meus pais, ficaram na Ponte Vecchio não sei por<br />
quanto tempo. Talvez ainda estejam lá... <br />
1) Ver Revista Dr. Plinio n. 219, p. 32.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 23/11/1988)<br />
Giovanni Dall’Orto (CC3.0)<br />
Lungarno degli Archibusieri - Florença, Itália<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Alain Patrick<br />
Florença e a perfeição<br />
das formas - II<br />
Cidade com edifícios de proporções perfeitas, Florença, como<br />
todas as antigas urbes, viu transformarem-se em museu seus<br />
palácios e outras bonitas residências. Isso se deve ao fato de<br />
que seus habitantes, em determinado momento, quiseram<br />
romper com Aquele que disse de Si mesmo: “Eu sou o<br />
caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6)<br />
Por certo, nesse casario há residências onde as<br />
escadas devem ter alguns degraus podres, as donas<br />
de casa brigam umas com as outras, de andar<br />
para andar, ameaçando-se com aquele rolo para fazer<br />
macarrão, e se vê um velho subir até o quarto andar,<br />
no qual ele foi morar por ser mais barato, mas tem medo<br />
por causa do coração... À noite ele sentiu umas dores<br />
no peito e não sabe se é bronquite ou começo de enfarte;<br />
então saiu muito preocupado e agora sobe devagarzinho,<br />
levando sua bengalinha e o jornal do dia debaixo<br />
do braço, e fumando o último cigarrinho que ele aspira<br />
até o fim, porque não pode comprar muitos; e vai curtir<br />
sua pobreza e seu isolamento junto a um gato no quarto<br />
que ele ocupa.<br />
O povinho que a Revolução massacrou<br />
Entrevê-se um formigamento de gente nesse casario.<br />
De gente vivaz, que fala, comenta, canta, trabalha, que<br />
quando dorme ronca; enfim, gente estuante de vida e, ex-<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
ceto o meu velho do gato, o resto todo com muita saúde.<br />
E esse velho, a doença dele é só velhice. Mas essa é inevitável...<br />
Esse formigamento de vida não há em um arranha-<br />
-céu moderno, nem nas pobres “vilas-Moscou” das periferias<br />
de certas cidades. Ora, é este o povinho que a Revolução<br />
massacrou, proclamando a soberania popular.<br />
Em Florença, e em outros lugares, algo disso ainda vive.<br />
Notem, agora, aquela outra ponte que não tem construções<br />
colaterais e cujo traçado pode ser melhor apreciado.<br />
Vejam a beleza da ponte e também da iluminação<br />
pública. Que lampadários bonitos, delicados! Comparem<br />
com a iluminação que encontramos, por exemplo,<br />
em determinadas avenidas de São Paulo: as luminárias<br />
parecem esqueletos de não sei que animal pré-diluviano,<br />
que tinha um pescoço compridíssimo encimado por uma<br />
cabecinha inútil. Nesta ponte, ao contrário, tudo é proporcionado.<br />
A propósito da arquitetura desta ponte, vem-me à memória<br />
a seguinte comparação. A Ponte Alexandre III, de<br />
Paris, é muito bonita, construída no século XIX, porém<br />
ultraenfeitada.<br />
Esta aqui não tem um enfeite. A beleza está na linha<br />
dos arcos, mais nada. É o que se chamaria, na linguagem<br />
de hoje, um estilo despojado. Isso faz lembrar, em<br />
relação aos enfeites, um caso que se contava na Grécia.<br />
Realizou-se um concurso de arte — creio que de pintura,<br />
não me lembro bem —, no qual concorriam artistas<br />
de vários lugares. Um deles, persa, representou uma<br />
mulher com um traje riquíssimo que visava realçar a beleza<br />
de sua obra. Outro pintor, um grego, figurou uma<br />
grega com uma simples túnica branca.<br />
O júri deu a primazia à pintura grega.<br />
O persa protestou, argumentando que a sua estava<br />
muito melhor vestida. Os gregos responderam: “Tu a fizeste<br />
rica porque não soubeste fazê-la bela.”<br />
Uma construção estética reputada perfeita<br />
Vemos em outra fotografia a Catedral de Florença, toda<br />
feita de mármore branco e preto. A mesma coisa que<br />
nós encontramos nas fachadas laterais da Catedral de<br />
Orvieto, onde há mais mosaicos. Notem o choque: Florença,<br />
muito mais importante e mais rica do que Orvieto,<br />
nem tem comparação, ousa fazer para si uma catedral<br />
que não possui um mosaico na frente. Mas a superioridade<br />
de Florença, segundo o meu modo de entender,<br />
está exatamente em que cores bonitas, mosaicos,<br />
etc., são enfeites fáceis, para imaginações débeis. Na Catedral<br />
de Florença existe uma proporção perfeita entre a<br />
torre, o corpo da igreja e a abóboda com aquela torrezinha<br />
em cima. E depois o tamanho das naves laterais. E<br />
32
Miguel Hermoso Cuesta (CC3.0)<br />
isso está tão bem calculado, como as rosáceas nas portas,<br />
as colunatas, a rosácea grande, que é uma construção<br />
estética reputada perfeita. Então, a reflexão, o equilíbrio,<br />
a profundidade, zombam do ornato, do charme, da<br />
graça, e Florença tem uma beleza autêntica a qual resiste<br />
à metralhagem dos olhares analíticos que querem encontrar<br />
um defeito.<br />
A Catedral parece dizer: “Eis-me aqui, despojada e<br />
sem maquiagem; eu sou eu, veja como sou linda!”<br />
Não sou um especialista em matéria de arte. Não afirmo,<br />
portanto, como quem se acha entendido, o seguinte.<br />
Mesmo porque o valor do argumento da autoridade de<br />
incontáveis críticos, que têm achado isto perfeito, pesa<br />
mais do que o meu. Mas, em minha opinião, essa cúpula<br />
se fecha muito belamente em cima, tem uma proporção<br />
bonita com a barra branca sobre a qual ela se pousa, porém<br />
ela é muito pesadona para o conjunto do edifício. Ao<br />
menos eu a sinto assim.<br />
Vemos na torre da Catedral, por exemplo, alguns vestígios<br />
do gótico nos vários andares, mas muito poucos. É<br />
muito bonito como os andares vão se afinando discretamente<br />
para cima. O branco está utilizado aqui magnificamente.<br />
Os vários espaços e dimensões, os ornatos dos<br />
diversos elementos, tudo está perfeitamente bem posto, e<br />
é muito bonito, não tem dúvida.<br />
Mania do despojado<br />
No interior da Catedral o despojamento vai bem mais<br />
longe. Não se pode negar que as dimensões, a altura das<br />
colunas são muito bonitas, que os arcos estão muito bem<br />
colocados, e que tudo quanto a Catedral apresenta é muito<br />
belo. Mas se tomamos, por exemplo, o altar do fundo,<br />
vemos como ele é pequeno em comparação com o tamanho<br />
da igreja, e como fica um espaço em cima, provavelmente<br />
destinado ao arejamento e à entrada de luz, mas<br />
que não traz nenhuma ideia piedosa. São meras janelas.<br />
Se fosse uma arquitetura elaborada segundo outra escola<br />
artística, essas colunas teriam, em cada ângulo, um<br />
nicho com a imagem de um Santo portando seu instrumento<br />
de martírio. Ali não: tem-se a impressão de que<br />
uma tropa de ladrões entrou e roubou os ornatos da<br />
igreja.<br />
Minha posição pessoal diante do monumento: respeito,<br />
admiração, vejo inegavelmente grandes valores artísticos,<br />
mas minha afinidade não vai para isso. A mania<br />
do despojado parece-me conter uma censura a Deus que<br />
não fez um universo despojado. É bonito que apareça,<br />
de vez em quando, alguma coisa despojada. Com isso eu<br />
concordo. Mas que haja a mania do despojado, com isso<br />
eu não posso concordar. E é como se apresenta a arte<br />
florentina.<br />
Fachada da Catedral<br />
de Florença, Itália<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Jorge Royan (CC3.0)<br />
Nesta página, aspectos do interior<br />
da Catedral de Florença, Itália<br />
Fczarnowski (CC3.0)<br />
JoJan (CC3.0)<br />
Os entusiastas do despojamento dirão: “Mas Dr.<br />
Plinio, assim aparece melhor a linha lógica.” Eu respondo:<br />
“Está bem, mas nem tudo que aparece melhor é bem<br />
feito.” Isso é para pessoas incapazes de perceber a linha<br />
dentro da pluralidade dos ornatos. Não julgo que eu esteja<br />
afligido por esse mal. Em uma obra de arte com uma<br />
muito bela linha e lindos ornatos, estes não estragam a<br />
linha.<br />
Residência de uma antiga família<br />
transformada em hotel<br />
Ainda em Florença, mas nos arrabaldes da cidade, há<br />
um hotel excelente. Ao que tudo indica trata-se da residência<br />
de uma antiga família de banqueiros — Florença<br />
foi um centro bancário muito grande — ou de nobres<br />
que viviam fora da cidade na opulência, e cuja propriedade<br />
foi transformada em hotel.<br />
A mim, que impressão dá? Como se trata de uma casa<br />
de uma família — seja de nobres ou de banqueiros —<br />
portadora de certa tradição, esta eleva e dignifica a vida<br />
de família, porque dá a ela uma nota de eternidade. A<br />
família percebe melhor as obrigações que lhe impõe um<br />
grande passado ao qual se sente ligada. Os mortos parecem<br />
ornatos dos vivos. E por outro lado, os que estão para<br />
nascer parecem a luz que entra para a família, a qual<br />
vive há séculos e pretende viver séculos ainda, na beleza<br />
de uma grande continuidade familiar.<br />
Vemos ali uma casa grande construída para se levar<br />
uma vida de família, não como se entende hoje, dentro de<br />
um apartamento, mas com quartos de dormir grandes, salões<br />
espaçosos; uma residência feita para que se passe muito<br />
tempo nela, com conforto, tempo para pensar, ler, conversarem<br />
uns com os outros, para formarem grupos de dois<br />
ou três e irem passear pelo jardim que, aliás, é magnífico.<br />
Podemos imaginar a magnificência de uma recepção<br />
dada numa propriedade como essa, à noite, com orquestra<br />
tocando, senhoras e senhores com trajes de gala,<br />
condecorações, desse tipo de recepções com tanta categoria<br />
que até os prelados do lugar apareciam. Então<br />
a hora da chegada do grão-duque, do cardeal-arcebispo,<br />
de tal autoridade militar, de tal grande artista que vai<br />
cantar, outro que vai acompanhar ao piano... Tudo isso<br />
em meio à conversa que rumoreja, enquanto incessantemente<br />
garçons fazem circular grandes pratos com pequenas<br />
delícias, bandejas repletas com taças e garrafas<br />
com bebidas. Se a noite é quente, uma parte dos convidados<br />
sai e conversa também do lado de fora.<br />
34
Divulgação (CC3.0)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Tudo isso foi transformado em um hotel muito bem<br />
mobiliado, onde se paga para estar, e no qual um turista<br />
anônimo entra, mete-se nas cobertas durante a noite,<br />
e no dia seguinte sai.<br />
Notem o conforto, a estabilidade, a dignidade. Não é<br />
verdade que uma família como essa pareceria estar destinada<br />
a durar séculos? Entretanto, está morta, como<br />
uma concha que se encontra na praia, na qual o respectivo<br />
caramujo morreu. Por que morreu? Porque essa gente<br />
toda foi rompendo com Aquele que disse de Si mesmo:<br />
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6).<br />
Paganizou-se, estancou. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 23/11/1988)<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Nesta página, aspectos do<br />
Hotel Villa Cora, comentado<br />
por Dr. Plinio - Florença, Itália<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
35
luzes da civilização cristã<br />
Revista Dr Plinio 222, Setembro <strong>2016</strong><br />
Sergio Hollmann<br />
Majestade com<br />
tranquilidade, força<br />
com bondade<br />
Possuindo em altíssimo grau a<br />
virtude da combatividade, Dr.<br />
Plinio tinha grande admiração<br />
por Carlos Magno, varão<br />
católico que levou o combate<br />
desde o Reno até Santiago de<br />
Compostela, e desde o norte das<br />
florestas alemãs até o centro do<br />
poder árabe na Espanha.<br />
Antonio Jakosch Ilija<br />
A<br />
nalisemos segundo a regra do ver, julgar e agir,<br />
de São Tomás de Aquino, o relicário de Carlos<br />
Magno, que se encontra na Catedral de Aachen.<br />
Firmamento de equilíbrio e de bom gosto<br />
O objeto é constituído de duas partes: uma caixa e<br />
uma tampa. A caixa é quadrangular, comum. Mas sobre<br />
uma forma tão simples — uma caixa com tampa — está<br />
colocado um mundo, um verdadeiro firmamento de equilíbrio<br />
e de bom gosto.<br />
Em primeiro lugar, vejamos de que espécie de metal<br />
é feito. Não é propriamente ouro. Creio que eles nem tinham<br />
ouro suficiente para fazer uma caixa como esta.<br />
32<br />
“São Carlos Magno” - Igreja de São<br />
Martinho, Regensburg; ao fundo,<br />
Catedral de Aachen, Alemanha
ACBahn (CC3.0)<br />
Mas é uma espécie de bronze dourado que tende a imitar<br />
o ouro, e talvez entre um tanto de ouro nessa liga.<br />
É uma caixa que dá a ideia de ser forte; tem-se a impressão<br />
de se tratar de um cofre que não se arromba<br />
com facilidade, o qual guarda um tesouro. A urna manifesta,<br />
de algum modo, a grandeza do tesouro que ela encerra<br />
em si. Quer dizer, ela exprime, de certa maneira, a<br />
grande alma de Carlos Magno. Em que sentido?<br />
A vida dele foi de equilíbrio, de ação reta e de uma<br />
constância admirável. Notem a bonita proporção existente<br />
entre a altura da caixa e a da tampa. Se a tampa<br />
tivesse três vezes a altura da caixa, por exemplo, o objeto<br />
estaria estragado. Caso ela fosse um pouco mais baixa<br />
do que é, ficaria achatado. Tem o tamanho necessá-<br />
Paulo Mikio<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Sergio Hollmann<br />
ção em que eles todos estão, tem-se a impressão de que<br />
cada um possui a sua individualidade, tem seu papel,<br />
mas não procura abafar os outros, não procura<br />
dominar. É o convívio perfeito dos reis na Cristandade,<br />
convívio perfeito dos Santos no Céu.<br />
A meu ver, é esta a impressão causada, e é<br />
muito bonito que seja assim.<br />
É interessante o papel das pedras preciosas.<br />
Há um formoso trabalho de ourivesaria<br />
aí, cheio de pedras preciosas<br />
de cá, de lá e acolá. Contudo, tem<br />
todas as pedras que convém, na<br />
medida e proporção exatas,<br />
tudo bonito, bem arranjado.<br />
Quem contempla<br />
esta urna encontra<br />
nela um misto<br />
de calma, majestade<br />
com tranquilidade,<br />
e força com bondade.<br />
Aí está retratado o grande<br />
Carlos.<br />
Esse relicário é uma<br />
obra de equilíbrio, bom<br />
gosto e santidade.<br />
Bem, isso já é julgar.<br />
Portanto, nós vimos e julgamos.<br />
Agora, resta-nos<br />
agir.<br />
Devemos perguntar se<br />
em face disso tomamos a<br />
atitude interior que devemos<br />
tomar. Quer dizer, se<br />
damos a esse objeto a imrio<br />
para uma obra de equilíbrio que representa o equilíbrio<br />
do grande Carlos.<br />
Modelo para a formação<br />
de nossas almas<br />
Para adornar a caixa, ela tem externamente<br />
essas colunas e esses arcos, próprios à parede<br />
de uma capela. Cada Santo está colocado<br />
em um trono no interior de uma<br />
espécie de capelinha. Porque convém<br />
a cada Santo ter seu altar<br />
e seu culto. Mas convém também<br />
a cada rei ter um reino<br />
com sua corte. E esses<br />
são reis que ficaram<br />
santos exercendo<br />
a função e<br />
a vocação de rei; a<br />
realeza e a santidade<br />
estão apresentadas<br />
juntas no caixão daquele<br />
que foi um rei-modelo,<br />
e esperamos que um dia a<br />
Igreja o declare um verdadeiro<br />
Santo.<br />
Há uma coisa curiosa<br />
que talvez alguns não notem<br />
à primeira vista: nenhum<br />
deles está gesticulando,<br />
falando, nem nada<br />
disso. Se ficassem “gesticulando”<br />
e “falando” dava<br />
a impressão de uma<br />
feira. Entretanto, na posi-<br />
Willy Horsch (CC3.0)<br />
Beckstet (CC3.0)<br />
34
portância que precisamos dar, pois ele é um modelo para<br />
a formação de nossas almas.<br />
Por exemplo, se eu tivesse muitas fotografias dessas,<br />
colocaria à disposição de qualquer um que pedisse para<br />
ter, por exemplo, no respectivo aposento, porque é uma<br />
coisa que faz bem olhar antes de dormir.<br />
Se não no quarto de dormir, no lugar onde trabalha<br />
ter um quadro sobre a mesa. É bonito, agradável e faz-<br />
-nos sentir ao mesmo tempo pequenos — porque isso<br />
é grandioso —, mas também filhos. Não há aí nenhum<br />
desprezo por nós. Há um convite como quem diz: “Chegue<br />
perto e admire. Seja filho disso, ame isso, na harmonia<br />
que deve haver entre todas as coisas. Essa atmosfera<br />
é sua.”<br />
A pedra em cabochon e a lapidada<br />
Vemos em outra fotografia o famoso busto de Carlos<br />
Magno.<br />
Prestem bem atenção nesta fisionomia esculpida por<br />
alguém que estava muito menos distante dele no tempo.<br />
Observem como é doce, natural. Não tem nada de orgulhoso.<br />
É o homem que levou o combate dele desde o Reno<br />
até Santiago de Compostela, e desde o norte das florestas<br />
alemãs até o centro do poder árabe na Espanha.<br />
Uma coisa formidável! Mas vejam a naturalidade, a<br />
bondade, a nobreza, ao mesmo tempo. Que grande pessoa!<br />
Notem que, além das pérolas, há várias pedras preciosas,<br />
todas elas lapidadas à maneira do que em francês<br />
se diz en cabochon.<br />
Qual a diferença do cabochon para o outro modo de lapidar?<br />
Na pedra lapidada, corrente hoje, corta-se a pedra<br />
em várias superfícies para fazer ângulos. E os ângulos<br />
aumentam o brilho da pedra quando<br />
uma pessoa, uma senhora, por exemplo,<br />
está com um anel e gesticula.<br />
Aqui não. Eles não sabiam lapidar;<br />
simplesmente arredondavam<br />
o contorno da pedra. Mas tinha<br />
isto de bonito: de longe brilhava<br />
menos, mas guardava mais luz<br />
dentro de si. Essas pedras são<br />
pequenos reservatórios de luz.<br />
É supérfluo dizer que eu<br />
gosto muito mais da lapidação<br />
en cabochon do que da<br />
lapidação moderna. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 22/11/1988)<br />
35
aPóstolo do PulcHruM<br />
ToucanWings (CC3.0)<br />
Molduras que cantam<br />
Revista Dr Plinio 223, Outubro <strong>2016</strong><br />
A arte de compor jardins com uma vegetação viçosa junto a<br />
edifícios antigos e veneráveis constitui um cântico à eternidade<br />
de Deus e à glória imperecível da Santíssima Virgem Maria.<br />
T<br />
enho visto muitas coisas bonitas, antigas, nas<br />
quais sempre me chamou a atenção um particular:<br />
a parte que diz respeito aos jardins.<br />
O ajardinamento constitui uma moldura dentro da<br />
qual os acontecimentos se passam. E eu, embora não entenda<br />
nada de plantas, tenho alguma prática em fazer comentários<br />
a respeito de ambientes e costumes.<br />
Debaixo desse ponto de vista, procurarei explicar o<br />
papel da vegetação para a ambientação, não somente de<br />
um prédio, mas também dos que nele moram. O que é a<br />
arte do ajardinamento?<br />
“Fugindo” para os jardins de Versailles<br />
Não posso me esquecer do verdadeiro encanto que<br />
senti quando, pela primeira vez, tive uma fotografia global<br />
do palácio de Versailles. Era uma espécie de fotografia<br />
aérea que dava uma vista panorâmica do jardim.<br />
Lembro-me de que eu tinha um cartão representando<br />
essa cena, na minha carteira no Colégio São Luís. E<br />
nas longas horas em que estava obrigado a estudar coisas<br />
interessantes, mas também outras desinteressantes,<br />
um dos modos de “fugir” era suspender o tampo da minha<br />
escrivaninha e ficar olhando a fotografia dos jardins<br />
de Versailles, as alamedas, etc. Eu ficava encantadíssimo<br />
com o jardim!<br />
Diversas formas de beleza em um jardim<br />
Sempre me atraiu a atenção o fato de que quando há<br />
um palácio ou uma igreja, e em torno um jardim, existe<br />
um elemento inerte, que é o edifício, e um elemento mutável<br />
constituído pelo próprio jardim. Este vai sofrendo<br />
transformações ao longo das várias estações do ano, é alterável<br />
de acordo com o que nele se planta, enfim, muda<br />
enormemente.<br />
Como todo prédio dura muito mais do que a vegetação<br />
que o circunda, as plantas tendem a envelhecer em<br />
torno do edifício, e por causa disso este tem a sua velhice<br />
própria agravada pelo envelhecimento da vegetação.<br />
Um prédio se cobre, então, de altas árvores cheias<br />
de sombras — às vezes estas árvores trazem no tronco a<br />
cicatriz de longas idades heroicamente atravessadas —<br />
e o tornam mais digno. Mas é uma dignidade que se soma<br />
a outra dignidade; uma velhice que se soma a outra<br />
velhice; uma penumbra que se acrescenta à moldura<br />
de outra.<br />
O cântico da soma das idades<br />
Ora, a teoria da soma das idades pediria que o prédio<br />
e o jardim apresentassem todas as idades e, ao lado de<br />
Izaaaak (CC3.0)<br />
34
uma veneranda ancianidade, mostrassem o esplendor de<br />
uma juventude repleta de viço.<br />
Compreende-se que haja um jardim só com elementos<br />
velhos, como determinados jardins de palácios italianos<br />
em que, por um inteligente descuido, as árvores até apodrecem<br />
e caem, as águas estagnam e surgem mosquitos...<br />
Isso tem uma grandeza do passado, uma coisa fenomenal!<br />
Entretanto, causava-me certa má impressão ver sempre<br />
o passado circundado de coisas que falavam de morte.<br />
E me parecia necessário que algumas formas de vegetação<br />
cercassem os prédios magníficos e antigos de todo<br />
o viço da coisa nova.<br />
Nesse sentido há determinadas plantas encantadoras<br />
que têm ar de coisa sempre jovem, cujas folhas parecem<br />
estar na sua primeira alegria, saudando os primeiros<br />
raios do Sol.<br />
A visão desse contraste sugere-me a seguinte ideia:<br />
Como é bonito plantar, ao lado de monumentos veneráveis<br />
e antigos, vegetações novas e cheias de viço! Como é<br />
belo que as idades, as forças se somem e que todos juntos<br />
cantem a eternidade de Deus e a glória imperecível<br />
de Nossa Senhora!<br />
Assim devem ser as coisas, pensava eu, e então concluí:<br />
Se algum dia me for dado dispor sobre a ordenação<br />
de algum grande jardim de palácio, igreja ou praça pública,<br />
farei com que haja, junto ao antigo — conservado na<br />
força convicta, desinibida e afirmativa de sua continuidade<br />
—, algo de novo que fale de uma vida que emerge<br />
com pujança no momento mesmo de seu nascimento. v<br />
Sergio Hollmann<br />
SnoopyCo (CC3.0)<br />
(Extraído de conferência de 8/3/1980)<br />
Ricardo Castelo Branco<br />
35
luzes da civilização cRistã<br />
Revista Dr Plinio 224, Novembro <strong>2016</strong><br />
Movimentos do mar...<br />
Teresita Morazzani A.<br />
...e da alma humana<br />
O movimento das águas do mar, ora tempestuoso,<br />
ora calmo, deixa transparecer uma série de gamas<br />
de beleza, todas elas extasiantes. Do mesmo modo,<br />
a arquitetura religiosa parece simbolizar os diversos<br />
aspectos da alma humana ao louvar seu Criador.<br />
V<br />
endo o mar — objeto perpétuo de meu enlevo, de<br />
meu encanto, de meu entusiasmo! — eu seria capaz<br />
de passar uma tarde inteira sozinho olhando-o,<br />
quieto, inteiramente entretido, contemplando-o...<br />
Beleza do mar e o pulchrum<br />
de sua movimentação<br />
No mar me chamava muito a atenção o seguinte: ele —<br />
na minha ótica; compreendo que outro sinta de um modo<br />
diferente, depende de cada um — apresentava para mim<br />
dois pontos extremos, com todas as gamas intermediárias.<br />
Ao contemplá-lo era-me agradável ver tantas formas<br />
de beleza que Deus tirava fazendo o mar passar de um extremo<br />
a outro através das gamas intermediárias. Ou, de<br />
repente, interromper a sequência em qualquer gama intermediária,<br />
dar um giro e passar para o outro lado.<br />
Quer dizer, o ordenado, bonito, quando avançam<br />
aquelas grandes ondas, em ofensiva para<br />
a terra, mas são ondas que não são descabeladas<br />
fazendo tumulto — o descabelado<br />
não me agrada —, mas são grandes ondas<br />
em ordem, um ataque em regra de uma<br />
cavalaria nobre. É a maré montante de<br />
certos dias, que vai cobrindo a praia. É<br />
uma coisa bonita. É a bataille rangée, em<br />
fileiras. É até bonita a variedade, por-<br />
Arquivo Revista<br />
33
Rodrigo Aguiar<br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Antonio Lutiane<br />
Lucio C. R. Alves<br />
Francisco Lecaros<br />
Arquivo Revista<br />
Gustavo Kralj<br />
que às vezes as ondas não chegam a arrebentar, quase arrebentam,<br />
formam assim aquelas eminências e vão adiante.<br />
Outras não, pelo contrário: arrebentam e há um gáudio<br />
de gotas pelo ar que depois caem e seguem na sua<br />
ofensiva, parando um pouco antes de chegar à terra para<br />
saltitar pelo ar, antes de se entranhar nas profundidades<br />
das areias; e até aquilo virar água de novo é um<br />
processo enorme. Elas então bailam um pouco pelo ar,<br />
jubilosamente; são guerreiros que antes de dar o ataque<br />
definitivo dançam a dança da vitória. Uma coisa bonita,<br />
que me agrada ver.<br />
Mas também agrada ver quando o mar está inteiramente<br />
calmo, quase imóvel. Diríamos que está de tal maneira<br />
absorto na contemplação do céu, que nem pensa<br />
em si mesmo. Eu falo o céu, não o Céu celeste, mas a<br />
abóboda celeste, que se vê com os olhos.<br />
De repente, de um lugar qualquer, notamos que a surpresa<br />
vem, algo começa a se mover. É um vagalhão, é<br />
uma bagunça aquática, é um assalto contra a terra, porém<br />
os vários elementos do mar não vêm em bataille rangée,<br />
mas parecem se empurrar uns aos outros para tomar<br />
a dianteira e conquistar a terra mais depressa. É a<br />
beleza da variedade, do inesperado, do quase susto, do<br />
imprevisto, que tem, a meu ver, seu encanto próprio. E a<br />
sucessão das coisas torna o mar muitíssimo entretenido.<br />
Esses vários modos de ser do pulchrum... Esse é mais<br />
um pulchrum do movimento do que do mar. Quer dizer, se o<br />
mar fosse feio, o movimento dele não seria bonito. A dança<br />
é bela quando o que dança é belo. Um exército que avança é<br />
muito bonito quando é composto de homens fortes, robustos;<br />
pelo contrário, um exército de capengas que se arrasta<br />
em certa ordem não vale dois caracóis. Do mesmo modo, o<br />
mar é belo, mas a movimentação está à altura dele.<br />
Fracisco Lecaros<br />
34
Hector Mattos<br />
Depois, os mistérios que ele contém; é outro mundo<br />
que se move nas entranhas dele, que ele oculta, não se<br />
vê um polvo, é raro um peixe, é raro ver qualquer coisa,<br />
há um mundo que vive aí dentro, um mistério. Não sei se<br />
sentem como eu. Eu tenho, assim, entusiasmo pelo mar!<br />
Élans da alma expressos na arquitetura<br />
Agora, a arquitetura, e a arquitetura religiosa, diante<br />
dos movimentos da alma humana, tão parecidos com os<br />
do mar, parecem se assemelhar. Há homens cujo pensamento<br />
avança em bataille rangée, cuja oratória, cuja argumentação,<br />
cuja dialética aperta, estala. Mas há homens<br />
que não são do gênero do famoso general de Luís<br />
XIV, Turenne, mas são “condeanos” 1 : pulos de vitória<br />
em meio de raios de luz, aventura! Captam uma coisa e<br />
liquidam uma situação. Há feitios de inteligência assim,<br />
espíritos assim, há formas de beleza assim.<br />
Por exemplo, Notre-Dame. Ela é irrepreensível, ordenada,<br />
perfeita, lindíssima! Tudo lógico, mas de um lógi-<br />
co com poesia; são as lógicas não do filosofastro, mas as<br />
lógicas da mãe de família, do pai, da vida, é essa lógica<br />
verdadeira. É isso que às vezes a arquitetura apresenta.<br />
Às vezes a arquitetura borbulha e apresenta coisas<br />
meio inesperadas. E é o próprio movimento da alma religiosa,<br />
nos seus entusiasmos, nos seus êxtases, nos seus<br />
impulsos, na sua generosidade, nos lances à la Santa Teresa<br />
de Jesus, por exemplo, enormes, que deixam a alma<br />
desconcertada diante da grandeza daquilo.<br />
E isso se exprime mais na arquitetura religiosa da<br />
Igreja grega, do tempo que estava unida à Igreja Católica.<br />
Daí vem o jogo das várias cúpulas que borbulham,<br />
como o mar se move, e que se notam na Basílica de Santo<br />
Antônio na cidade de Pádua.<br />
Eu queria, então, mostrar um pouco a descrição daquilo<br />
que em Pádua me agradou... <br />
v<br />
Continua no próximo número.<br />
(Extraído de conferência de 25/11/1988)<br />
1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 - †1686).<br />
Sobre o estilo “condeano”, ver Revista Dr. Plinio n. 213, p. 30.<br />
Dr. Plinio, em 1993, contempla<br />
o mar pelas janelas de uma<br />
hospedagem em Ubatuba, Brasil<br />
Basílica de Santo Antônio, Pádua, Itália<br />
35<br />
Arquivo Revista
luzes da civilização cristã<br />
Revista Dr Plinio 225, Dezembro <strong>2016</strong><br />
Fracisco Lecaros<br />
Ansiedade jubilosa<br />
do maravilhoso<br />
Atmosfera sobrenatural, piedade,<br />
colorido interior, são alguns dos<br />
fatores que tornam a Basílica de<br />
Santo Antônio em Pádua um<br />
lugar que convida à prática da<br />
virtude e ao desejo do Céu.<br />
Santo Antônio era um polemista de primeira ordem.<br />
Doutor da Igreja, homem de grande inteligência,<br />
cultíssimo, falecido aos trinta e nove anos;<br />
portanto, muito prematuramente. Era tal polemista que<br />
arrasava os adversários, tendo passado para a História<br />
com o título de “Martelo dos hereges”.<br />
Peregrinando em Pádua<br />
A penúltima vez que fui a Pádua foi durante um período<br />
de peregrinações. Afluíam peregrinos de todas as<br />
partes da Europa e do mundo, em especial da Itália e de<br />
Portugal. A basílica enchia-se de gente falando, quase<br />
não se podia mover ali dentro.<br />
Ademais, havia dentro da igreja mesinhas vendendo<br />
aos peregrinos medalhinhas e outros objetos de piedade,<br />
isso também muito legítimo, pois as pessoas voltam para<br />
casa levando lembranças religiosas para suas famílias,<br />
amigos. Longe de mim criticar isso. Mas há sempre gente<br />
indecisa que para diante do balcão e fica comparando<br />
medalhinha com medalhinha não sei por quanto tempo.<br />
Outros que querem comprar se empurram... E a cena repete-se<br />
na próxima mesa.<br />
Entra aqui uma questão pessoal: tenho uma verdadeira<br />
ojeriza a lugares de oração superlotados. Alegra-me<br />
que estejam cheios, mas me comprazo de estar lá quan-<br />
32
do estão com pouca gente. Acho legítimo que as pessoas<br />
sintam isso de um modo diferente, pois depende do temperamento<br />
de cada um.<br />
Entretanto, em minha última visita, não. Era um interstício<br />
entre temporadas de peregrinação e havia menos<br />
gente. Eram pessoas piedosas do lugar e das redondezas<br />
que iam lá como todo mundo vai às respectivas<br />
igrejas por toda parte. Era um bom número, rezavam e<br />
não tinham a preocupação do compra-compra, do vende-vende,<br />
sendo vários deles realmente fiéis. Percebia-se<br />
que eram pessoas boas, piedosas, que estavam lá para rezar.<br />
É Santo Antônio de Pádua e o ambiente criado pelas<br />
relíquias dele, as graças das quais ele é ocasião e veículo,<br />
que impregnam de algum modo a basílica e condicionam<br />
também essa piedade.<br />
A presença dessa piedade cotidiana, boa, realçada pelas<br />
graças recebidas por meio de Santo Antônio, faz bem<br />
à alma.<br />
Juan Pablo Calavid Arango<br />
Algo do pulchrum católico<br />
Pádua pertenceu outrora ao distrito político da República<br />
Aristocrática de Veneza e, enquanto tal, era muito<br />
influenciada por Bizâncio e pelos Bálcãs. Veneza fica<br />
praticamente em frente aos Bálcãs, e a travessia do Mar<br />
Adriático, mesmo com os meios de navegação antigos,<br />
era muito fácil e relativamente rápida.<br />
Os críticos de arte são unânimes em afirmar que a Basílica<br />
de São Marcos em Veneza tem uma nota bizantina<br />
muito marcada.<br />
Assim também nota-se que, sendo Pádua politicamente<br />
dependente de Veneza na época em que a Basílica de<br />
Santo Antônio foi construída, esta dá um pouquinho a<br />
ideia de um edifício à maneira de igrejas orientais, e algumas<br />
de suas torres lembram minaretes turcos.<br />
A Basílica de Santo Antônio em Pádua exprime bem algo<br />
do pulchrum da Igreja Católica. Não é uma grande peça<br />
de arquitetura, mas exprime o que eu quero fazer notar.<br />
Jogo de cúpulas e minaretes<br />
É impossível negar certa beleza à sucessão de cúpulas<br />
e torres, quer pelo colorido, quer pelo ar de fantasia que<br />
há dentro disso, por onde se tem a impressão de que essas<br />
abóbodas emergem de dentro da igreja como as bolhas<br />
de gás de um copo de água mineral: sobem e depois<br />
estouram. A aparente desordem em que tudo isto está<br />
colocado em cima é bonita, entretém e é agradável de<br />
olhar. Portanto, em profundidade, não é uma desordem,<br />
pois isso tudo atrai e contenta muito o espírito.<br />
Nota-se, nessa construção, o contraste entre o estilo<br />
veneziano e o florentino. É uma outra concepção das<br />
coisas pela qual vê-se a riqueza espiritual e intelectual<br />
da Europa e, particularmente, da Itália daquele tempo:<br />
a uma distância pequena, dois mundos que se desenvolvem<br />
lado a lado, sem interferir um no outro, mas numa<br />
posição quase polêmica de aspectos diferentes da vida.<br />
O despojado está totalmente ausente do interior da Basílica<br />
de Pádua. Se nos dermos o trabalho de lembrar a<br />
Catedral de Florença, olhando essas pinturas e essa espécie<br />
de sinfonia de cores, triunfal, alegre — “Cristo ressuscitou,<br />
vamos nos alegrar!” — encontramos uma diferença<br />
radical. Porque aqui tudo é pintado, tudo é enfeitado,<br />
tudo fala. Enquanto em Florença é o tal estilo despojado.<br />
As cúpulas e essas espécies de minaretes têm o borbulhar<br />
de certas formas de beleza como o têm certos movimentos<br />
do mar.<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Hugo Grados<br />
Hugo Grados<br />
Olhando para o telhado, quase que se<br />
esquece do corpo do edifício. Temos a impressão<br />
de que o resto da construção<br />
existe como uma bandeja para carregar<br />
bem alto o jogo musical dessas<br />
cúpulas. Podemos imaginar um<br />
movimento musical crescendo em<br />
que as notas se vão sucedendo alegremente<br />
umas às outras; assim, temos<br />
a impressão que esses minaretes<br />
e essas cúpulas estão alegremente<br />
esperando a hora que se lhes corte<br />
a base para poderem subir para o<br />
céu. Uma ansiedade do maravilhoso,<br />
uma ansiedade jubilosa, alegre,<br />
apenas contida por uma corda que<br />
uma mão caridosa irá cortar.<br />
Isso se encontra, por exemplo, em<br />
muitos monumentos da Igreja Ortodoxa<br />
que são da arquitetura grega.<br />
Pádua recebe a influência, através<br />
de Veneza, muito helenizante, pelas<br />
razões geográficas que já expliquei.<br />
Também a Igreja de São Basílio, se<br />
não me engano, na Praça Vermelha,<br />
Guillermo Asurmendi<br />
tem aquela série de torres, de torreões, aquilo<br />
que sobe, um jogo dessa natureza. No castelo<br />
francês de Chambord não encontramos<br />
cúpulas assim, mas um jogo de tetos, de<br />
chaminés, que também aproveitam<br />
este princípio do corre-corre rumo ao<br />
céu. É como um dos modos de beleza<br />
do mar e isso me agrada.<br />
Atmosfera sobrenatural<br />
e preciosa relíquia de<br />
Santo Antônio<br />
No corpo material da igreja há o<br />
Santíssimo Sacramento — antes de<br />
tudo e mais nada —, as relíquias, as<br />
imagens especialmente abençoadas<br />
que datam de várias épocas da História<br />
da Igreja Católica, desde mais<br />
ou menos o tempo de Santo Antônio<br />
até os nossos dias. Várias épocas<br />
foram fazendo as suas pinturas,<br />
acrescentando suas imagens; aquilo<br />
poderia um pouco parecer um<br />
compêndio da história da piedade<br />
católica, cada vez menos intensa à<br />
medida que nos aproximamos dos<br />
grandes dramas, dos grandes cataclismos<br />
e dos grandes vazios de hoje<br />
em dia. Há também os fiéis que recebem graças e deixam-nas<br />
transpirar de algum modo na sua maneira de<br />
ser, no modo de andar e de rezar, etc. Esses fatores concorrem,<br />
numa igreja como esta de Pádua, com uma especial<br />
intensidade para dar uma única impressão da graça e<br />
da piedade verdadeira, da presença da Igreja.<br />
O post-cerimônia ali deixava um não sei quê de sobrenatural<br />
flutuando pela igreja, que tornava este período<br />
da vida da Igreja, ao menos para mim, particularmente<br />
saboroso. E foi o que eu peguei na Basílica de<br />
Santo Antônio. E isso, naturalmente, me encantou. Eu<br />
saía com a alma cheia. Falando sobre isso minha alma<br />
ainda se enche. São as coisas de que eu gosto mais do<br />
que qualquer outra coisa na vida, porque elas são o antegozo<br />
do Céu.<br />
Agora, por que a relíquia da língua de Santo Antônio?<br />
Porque se ele era “martelo” era por causa da língua.<br />
Ele era um grande orador sacro e fulminava os hereges<br />
do tempo dele, e ele os rechaçou magnificamente. Então<br />
ele morto, os amigos da verdadeira Fé quiseram glorificar<br />
esta língua que tanto falou a favor da glória de Deus.<br />
Cortaram e ali está.<br />
34
Hugo Grados<br />
Pintura de Santo Antônio<br />
Nessa pintura vê-se como a piedade daquele tempo<br />
imaginava o Santo Antônio da hagiografia, da história<br />
santa. Nota-se uma placidez extrema decorrente do rosto,<br />
mas também de uma coisa que é muito expressiva: a<br />
posição dos ombros como modo de indicar o estado de<br />
espírito da pessoa.<br />
Ele é franciscano. A capa do hábito forma várias dobras,<br />
muito ordenadas, quase diríamos ondas em um suave<br />
avançar rangé, que exprimem que esse homem nunca<br />
faz um movimento exagerado, excessivo, em que o hábito<br />
se coloca fora do lugar. A ordem do hábito é uma espécie<br />
de sismógrafo da ordem da mente.<br />
O rosto, quase imberbe, com uma boca pequena. O<br />
nariz adunco muito bonito, que tem qualquer coisa do<br />
bico de uma ave de rapina. No arcado das sobrancelhas,<br />
uma delicadeza, uma precisão e uma força que sobretudo<br />
o olhar exprime. É um olhar, sob certo ponto de vista,<br />
glacial. Não deixa transparecer emoção alguma. O que<br />
aparece é a análise — esse tipo de análise que só os pacíficos<br />
fazem. Nesse olhar vê-se toda a precisão de quem<br />
já passou por todos os desencantos; já viu tudo como é,<br />
conhece o pecado original e seus efeitos, satanás com suas<br />
pompas e suas obras. Tudo está analisado, catalogado,<br />
ele tem um discernimento extraordinário.<br />
A ponta dos lábios é fina e muito ordenada. Ele tem a<br />
resposta que faz dele um martelo que está preparando o<br />
seu golpe. Há uma pureza, uma castidade e uma serenidade<br />
extraordinárias. <br />
v<br />
(Extraído de conferências de 23 e 25/11/1988)<br />
Guillermo Azurmendi<br />
35