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Publicação Mensal Vol. XXII - Nº <strong>257</strong> Agosto de 2019<br />
Rainha dos corações<br />
e da História
Flávio Lourenço<br />
Santo Afonso Maria<br />
de Ligório - Igreja<br />
de São Jorge, La<br />
Coruña, Espanha<br />
Dor pelas aflições e<br />
tristezas da Santa Igreja<br />
Oestado sacrifical de Santo Afonso de Ligório, com um fim de vida que era aflição e miséria, por onde ele<br />
não podia mais fazer outra coisa senão sofrer, foi provavelmente a fase mais preciosa de sua existência.<br />
Ele que tinha sido Fundador, Doutor, grande escritor, sublimava sua vida morrendo pregado na cruz<br />
para nos ensinar que a oração e o sofrimento valem incomparavelmente mais do que todas as obras; e quando<br />
um homem não vive para outra coisa a não ser para rezar e sofrer, tem uma vida fecundíssima, inteiramente<br />
justificada.<br />
Nossa Senhora quis que esse grande Santo continuasse vivo para sua alma chegar aos píncaros da sublimidade,<br />
atingidos na inação, na oração e na dor, não apenas física, mas aquela que tanto devemos pedir: a dor pelas<br />
aflições e tristezas da Santa Igreja Católica.<br />
(Extraído de conferência de 2/8/1967)
Sumário<br />
Publicação Mensal Vol. XXII - Nº <strong>257</strong> Agosto de 2019<br />
Vol. XXII - Nº <strong>257</strong> Agosto de 2019<br />
Rainha dos corações<br />
e da História<br />
Na capa, Assunção de<br />
Maria Santíssima - Catedral<br />
de Sevilha, Espanha.<br />
Foto: Gabriel K.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Roberto Kasuo Takayanagi<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Editorial<br />
4 Graças de Maria na alvorada<br />
de seu Reino<br />
Piedade pliniana<br />
5 Quebrai as resistências abjetas<br />
de meu coração<br />
Dona Lucilia<br />
6 Um rio de dignidade e afeto<br />
Gesta marial de um varão católico<br />
11 Guerra de tendências<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Antônio Pereira de Sousa, 194 - Sala 27<br />
02404-060 S. Paulo - SP<br />
E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />
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Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum............... R$ 200,00<br />
Colaborador........... R$ 300,00<br />
Propulsor.............. R$ 500,00<br />
Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />
Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editoraretornarei@gmail.com<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
16 Todos serão julgados pelo que<br />
fizeram por suas nações<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Agosto<br />
Hagiografia<br />
26 O Bem-aventurado da<br />
grande resolução<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 Admiração: suprema alegria!<br />
Última página<br />
36 O Coração no qual reside a Contra-Revolução<br />
3
Editorial<br />
Graças de Maria na<br />
alvorada de seu Reino<br />
A<br />
festa de Nossa Senhora Rainha é, talvez, a mais oportuna de ser lembrada nos dias em que<br />
vivemos, porque à medida que a realeza da Santíssima Virgem é contestada, nós a devemos<br />
proclamar.<br />
Sendo Nossa Senhora a Mãe de Deus, Ele quis honrá-La concedendo-Lhe a realeza sobre todo<br />
o universo: os Anjos, Santos, homens vivos, almas do Purgatório, condenados e réprobos do Inferno,<br />
e demônios; todos A obedecem. Há, portanto, uma mediação de poder e não apenas de graça,<br />
pela qual Deus executa todas as suas obras por meio de Nossa Senhora. Ela possui o cetro, de modo<br />
a ser não só o canal por onde o império de Deus passa, mas a Rainha que decide, sempre em<br />
conformidade com a vontade divina, no entanto, com uma piedade de Mãe que Ele não poderia<br />
ter, por não estar no seu papel de Pai e Juiz. Assim, a realeza de Nossa Senhora sobre o universo<br />
é uma obra-prima do que poderíamos chamar a habilidade de Deus para ter misericórdia dos homens.<br />
Lembrado este princípio da universalidade da realeza de Nossa Senhora, devemos nos perguntar<br />
se em nosso interior Ela é Rainha de fato. Para isso, não basta saber se estamos em estado de graça;<br />
é necessário ir mais longe e nos questionarmos se temos o espírito da Revolução ou da Contra-Revolução.<br />
Se a Revolução é a negação do Reino de Maria, quem participa de seu espírito não pode dizer<br />
que contém em si esse Reino, pois ele só existe na alma de quem possui, positiva e completamente, o<br />
espírito contrarrevolucionário.<br />
Participa da Revolução todo aquele em cuja mentalidade existem ideias e tendências consentidas<br />
que conduzem a conclusões e atitudes revolucionárias. Devemos, pois, nos esforçar para que não<br />
exista em nós eiva alguma de Revolução, de maneira que os mais puros princípios contrarrevolucionários<br />
estejam entronizados em nossa alma e sejamos verdadeiros adeptos da Contra-Revolução.<br />
Por outro lado, não basta que Nossa Senhora seja Rainha em cada um de nós. É preciso que façamos<br />
o possível para que Ela reine no mundo inteiro. Para isso, convém nos perguntarmos o que fazemos<br />
pela realeza de Maria na Terra. Somos apóstolos contrarrevolucionários? Ou somos inseguros,<br />
medrosos, calados, tendo condescendências para com as máximas do mundo?<br />
Em face dessas questões, peçamos à Mãe de Misericórdia que arranque de nossas almas qualquer<br />
fermento de Revolução; que Ela nos fale, no fundo de nossos corações, mostrando o que devemos fazer<br />
para sermos autenticamente contrarrevolucionários.<br />
Imploremos que diante de nós desponte a alvorada do Reino de Maria com a comunicação das<br />
graças mariais que farão destes seus filhos e escravos, os verdadeiros Apóstolos dos Últimos Tempos<br />
1 . 2<br />
1) Apóstolos profetizados por São Luís Maria Grignion de Montfort, especialmente devotos da Santíssima Virgem,<br />
que trabalharão pela instauração do Reino de Maria.<br />
2) Cf. conferência de 22/5/1968.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Luis C.R. Abreu<br />
Virgem de Fátima<br />
(acervo particular)<br />
Quebrai as resistências<br />
abjetas de meu coração<br />
Minha Mãe, Vós sois Rainha de todas as almas, mesmo das mais duras e<br />
empedernidas que queiram abrir-se a Vós. Suplico-Vos, pois: sede Soberana<br />
de minha alma; quebrai os rochedos interiores de meu espírito e<br />
as resistências abjetas do fundo de meu coração. Dissolvei, por um ato de vosso império,<br />
minhas paixões desordenadas, minhas volições péssimas e o resíduo dos meus<br />
pecados passados que em mim tenham ficado. Limpai-me, ó minha Mãe, a fim de<br />
que eu seja inteiramente vosso.<br />
(Composta em 31/5/1972)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Um rio de<br />
dignidade e afeto<br />
Chad and Steph / Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Tal era a união de alma entre Dona Lucilia<br />
e seu filho, que ambos tinham o mesmo<br />
temperamento e modo de ser. Ao receber<br />
uma carta de sua mãe, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, muito<br />
mais do que experimentar uma alegria nova<br />
e extraordinária, sentia a felicidade estável<br />
da continuação de um rio de dignidade<br />
e afeto, à margem do qual ele vivera, em<br />
cujas águas cristalinas navegara várias<br />
vezes, com toda espécie de encantos.<br />
Creio que nunca passou pelo espírito<br />
de mamãe que uma carta<br />
dela destinada a mim fosse<br />
lida num auditório. Podem me imaginar<br />
em Paris recebendo essa missiva,<br />
na qual nota-se bem com que extremo<br />
afeto preparei a minha despedida<br />
e vendo, pela resposta, como ela foi<br />
sensível a esse meu gesto.<br />
Um mesmo temperamento<br />
e modo de ser<br />
Alguém poderia imaginar-me na<br />
portaria do Hôtel Régina, e o porteiro<br />
me dizendo:<br />
— Une lettre du Brésil pour vous 1 .<br />
Eu, então, entrando rapidamente<br />
no primeiro salão, abrindo a carta,<br />
lendo e sentindo-me dominado por<br />
uma profunda impressão.<br />
Ora, não foi o que se deu. Não me<br />
lembro dos pormenores de como a<br />
carta chegou. Mas imaginem que o<br />
porteiro me tenha dito isso, e eu, subindo<br />
no elevador “bonbonnière”, de<br />
cristal e carvalho, até meu quarto, lá<br />
tenha aberto tranquilamente a carta,<br />
sentado junto a uma mesa, e lido.<br />
Qual a repercussão da carta em mim?<br />
Quem imaginasse que a repercussão<br />
foi intensíssima, julgaria ter uma<br />
ideia da realidade. Entretanto, ela<br />
foi plácida, tranquila e de uma intensidade<br />
que eu chamaria supersônica,<br />
quer dizer, uma coisa de tal amplitude<br />
que não repercute. Tal era a minha<br />
união de alma com Dona Lucilia, a<br />
Entrada do Hôtel Régina;<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1960
certeza de que ela receberia daquela<br />
maneira o que eu lhe enviava, e que<br />
se exprimiria mais ou menos naquele<br />
sentimento, que eu li como se ela<br />
me tivesse dito tudo pelo telefone, e<br />
depois a carta me chegasse. Independente<br />
de ela dizer-me qualquer coisa,<br />
eu tinha certeza do que ela sentiria.<br />
E ao tomar todas aquelas medidas<br />
que tomei, eu tinha certeza de<br />
como ela receberia e o que faria. De<br />
maneira tal que fiz uma narração do<br />
que eu já conhecia. Tal era a minha<br />
união de alma com ela, que assim se<br />
passavam as coisas. Era um mesmo<br />
temperamento, uma mesma alma,<br />
o mesmo modo de ser. Como se eu<br />
contasse a mim mesmo a tristeza que<br />
tive em me separar dela. Assim tam-<br />
Arquivo <strong>Revista</strong>
Dona Lucilia<br />
bém era ela contar-me a tristeza que<br />
teve em se separar de mim. E isso<br />
é muito mais do que a surpresa, do<br />
que a emoção diante de cada palavra,<br />
do que o sentir-me invadido por<br />
uma alegria nova e extraordinária;<br />
era a felicidade estável da continuação<br />
de um rio de dignidade e afeto,<br />
a cuja margem eu vivera, em cujas<br />
águas cristalinas navegara várias vezes,<br />
e com toda espécie de encantos.<br />
De maneira que, para mim, se ela estivesse<br />
na sala ao lado e entrasse no<br />
meu quarto para dizer aquilo, era<br />
absolutamente a mesma coisa.<br />
Não sei se as pessoas podem conceber<br />
que uma união entre duas almas<br />
possa chegar a esse ponto. Era<br />
como se fosse eu falando comigo<br />
mesmo, ou ela escrevendo para si<br />
própria.<br />
O jarro do imperador<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
O que me impressionou<br />
mais foi o pequeno<br />
gesto delicado, e muito<br />
dela, que representava<br />
alguma coisa nova para<br />
mim: a distribuição<br />
das flores. A delicadeza<br />
de levar flores para<br />
a capela de nossa sede,<br />
era um modo amável<br />
de deixar transparecer<br />
que ela bem sabia ser o<br />
meu Movimento, para<br />
mim, mais do que o lar.<br />
É subconsciente, mas<br />
transparece. Em seguida,<br />
levar flores para a<br />
imagem no meu quarto,<br />
e por último, para o dela;<br />
as sobras iam ornar<br />
o jarro do imperador,<br />
na sala de estar, porque<br />
ela sabia que eu gostava<br />
muito desse jarro,<br />
sobre o qual, em certa<br />
ocasião, tivemos uma<br />
afetuosa “discussão”.<br />
Uma vez tive um pesadelo<br />
de que eu apanhara<br />
uma pneumonia fortíssima, e<br />
que ela estava sem dinheiro para pagar<br />
as despesas do médico. Então,<br />
eu percebi, do meu quarto, que ela<br />
estava querendo vender o jarro do<br />
imperador. E sonhei que me levantei,<br />
doente, fui para o salão onde ela<br />
se encontrava e disse:<br />
— Meu bem, isso não. Prefiro<br />
correr qualquer risco, a que se venda<br />
o jarro do imperador.<br />
E ela me retrucou:<br />
— Isso, nunca! Meu filho vale<br />
mais do que esse jarro.<br />
E respondi:<br />
— É precisamente o que eu contesto,<br />
de maneira que não quero que<br />
a senhora venda.<br />
Quando acordei, contei para ela<br />
o sonho. Então ela fincou o pé, afirmando<br />
que venderia certamente o<br />
jarro do imperador, e que era bom<br />
eu saber, porque agora ela tomaria<br />
Jarro do imperador<br />
ainda mais cuidado do que antes de<br />
ter esse sonho. A coisa terminou em<br />
nada, naturalmente, mas eu insistia<br />
em que não era o caso de vender o<br />
jarro do imperador.<br />
Na carta há uma alusão ao jarro<br />
do imperador, que ficou todo florido.<br />
Era um gracejo que ela fazia,<br />
mas quão discreto; não tem nada de<br />
uma piada moderna, é uma outra<br />
coisa, nem comparemos.<br />
As cartas de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
eram lidas e relidas<br />
Certa vez, voltando da Europa, avisei-a<br />
que viria em tal dia; mas encontrei<br />
um jeito de chegar na véspera,<br />
com o intuito de fazer-lhe uma surpresa<br />
e poupá-la do receio, durante a noite,<br />
de eu estar voando a cinco mil metros<br />
de altitude e qualquer coisa acontecer<br />
com o avião. Os desastres aéreos,<br />
naquele tempo, eram<br />
muito mais frequentes<br />
do que hoje. Lembro-me<br />
de que entrei no quarto<br />
de manhã e encontrei-a<br />
deitada na cama. Ela já<br />
estava com a vista muito<br />
fraca e, por isso, apesar<br />
de ser dia, estava com o<br />
abat-jour aceso bem junto<br />
dos olhos dela, relendo<br />
a minha última carta.<br />
Ela me esperava para o<br />
dia seguinte. Eu entrei e<br />
saudei-a:<br />
— Meu bem, como<br />
vai a senhora?<br />
— Oh, você!<br />
Abraçamo-nos e nos<br />
beijamos.<br />
Meu pai me disse:<br />
— Você não sabe<br />
quantas vezes essa carta<br />
foi lida e relida...<br />
Então, perguntei:<br />
— Mas por que a senhora<br />
estava relendo<br />
esta última carta, tão<br />
sumária?<br />
8
— Cada vez que eu leio, sinto alguma<br />
coisa que não tinha sentido<br />
anteriormente. Deixa a carta, que isso<br />
é comigo.<br />
Isso indica bem como são diversas<br />
as relações entre mãe e filho. O<br />
próprio do relacionamento do filho<br />
com a mãe é ser totalmente confiante.<br />
Nem lhe passa pela cabeça que<br />
ela não retribua inteiramente o afeto<br />
que se tem por ela. Mas a mãe para<br />
o filho não. Quando é uma boa mãe<br />
católica, ela não rateia nunca. Quer<br />
sentir a alegria da segurança, apalpar<br />
mais outra vez. A releitura da<br />
carta dava a ela essa tranquilidade.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Filha da Igreja Católica<br />
Apostólica Romana<br />
Quando eu era pequeno, frequentemente<br />
dava-se isto: estávamos<br />
brincando todos no jardim – meus<br />
primos, minha irmã, e eu pelo meio<br />
–, de repente eu sumia e a Fräulein<br />
começava a me procurar. Até<br />
que um dia ela disse: “Não adianta,<br />
quando o <strong>Plinio</strong> some, já se sabe…<br />
ele está com a mãe.”<br />
Eu pensava:<br />
“Mamãe tem outra substância,<br />
outro entretenimento, outro afeto,<br />
outra seriedade... Eu escapo dessa<br />
gente de qualquer modo, subo e vou<br />
dar uma prosinha com ela.”<br />
Podem imaginar como ela me recebia!<br />
E como era a prosinha: olhos<br />
nos olhos, coração no coração, a<br />
mais unida que se possa imaginar.<br />
Até a hora em que viessem me pegar<br />
e pôr no meio da criançada de<br />
novo, com a ideia de que criança<br />
brinca com criança e que não deve<br />
estar muito tempo com os mais velhos.<br />
Então, no meio da criançada<br />
eu brincava também. Mas de vez em<br />
quando me voltava à mente: “Mamãe<br />
deve estar em tal sala assim; se<br />
eu der uma corridinha agora e disser<br />
alguma coisa para ela, obtenho alguma<br />
coisa dela para mim.” Ora, essa<br />
atitude a inclinava a sentir-se unida a<br />
mim, é evidente. Isso desde pequeno<br />
até o último momento, com a graça<br />
de Nossa Senhora, foi assim.<br />
Dessa maneira, as minhas tendências<br />
afinaram, pela graça da Santíssima<br />
Virgem, com as dela. E o seu modo<br />
de ser pareceu-me o feitio natural,<br />
a posição ambiental exata que correspondia<br />
com certo lado do meu modo<br />
de ser que eu desejava que prevalecesse<br />
e vencesse. Portanto, para mim,<br />
aquilo não era apenas uma consonância,<br />
mas um programa de vida.<br />
Esse modo de ser de mamãe resultava<br />
das suas qualidades, da sua<br />
condição de filha da Igreja Católica<br />
Apostólica Romana, mas com o específico<br />
da geração e da família dela,<br />
acompanhado de uma carga de sobrenatural,<br />
infelizmente muito menos<br />
densa em outras pessoas. Entretanto,<br />
trazia uma marca de certa tradição<br />
católica, que o feitio da família<br />
dela indicava bem.<br />
<strong>Plinio</strong>, Ilka e Rosée<br />
Vocabulário elevado, timbres<br />
de voz agradáveis de ouvir<br />
O modo de ser geral na geração<br />
de Dona Lucilia e da mãe dela era,<br />
antes de tudo, muito cerimonioso,<br />
mas muito íntimo. Conversavam sobre<br />
coisas bastante simples com muita<br />
intimidade e naturalidade, mas o<br />
tempo inteiro com muitíssima cortesia.<br />
De maneira que, por exemplo,<br />
no meu tempo de criança, nunca<br />
presenciei uma briga entre os mais<br />
velhos. Sequer um levantar de voz,<br />
um gênero de resposta ácido, nunca<br />
vi isso. Pode ser que quando sozinhos<br />
tivessem algum atrito. Na minha<br />
presença nunca. A coisa corria<br />
num manso lago azul.<br />
Exprimiam-se muito bem, com<br />
um vocabulário bonito, não frequente<br />
em qualquer lugar, habitualmente<br />
com timbres de voz agradáveis de ouvir.<br />
Ninguém tinha voz muito anasa-<br />
9
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
lada, ou estridente, nada disso. Eram<br />
timbres que causavam a impressão de<br />
que a voz de um comentava a do outro.<br />
Tinha-se mais a impressão das<br />
várias notas de um mesmo teclado,<br />
do que propriamente aparelhos diferentes<br />
que estivessem tocando.<br />
A ocasião de a família estar junta<br />
era a hora das refeições, uns minutos<br />
antes e algum tempo depois. À<br />
mesa também surgiam, às vezes, temas<br />
muito elevados: política, discussão<br />
de religião; e quando o assunto<br />
era elevado, a conversa tendia ligeiramente<br />
para o discurso e a conferência.<br />
Quando o tema baixava, passava<br />
a ser completamente caseiro,<br />
mas sempre num vocabulário elevado.<br />
Ademais, com uma coisa que minha<br />
geração e as posteriores já não<br />
conheceram, que é a vida sem pressa.<br />
Aquele era um gênero de gente<br />
que não era arrastada, vagarosa, mas<br />
não fazia nada correndo.<br />
A não ser uma coisa: a hora de tomar<br />
o trem; a família sempre foi um<br />
pouco atrasada em horários. Então,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no ano de 1979<br />
havia “epopeias” contadas como fatos<br />
engraçados, de trens que um pegou<br />
de tal jeito à última hora, esses<br />
e aqueles episódios. Um tio que foi<br />
pegar um trem na Estação da Luz,<br />
a bilheteria estava fechada e não se<br />
passava mais. Ele viu que um elevador<br />
de carga ia levando coisas para<br />
baixo, guiado por um homem. Era<br />
proibido passageiro descer<br />
pelo elevador de carga.<br />
E ele estava longe e<br />
não alcançava o elevador.<br />
Então, deu um berro<br />
tão imponente, que o<br />
condutor parou instintivamente<br />
o elevador, e<br />
ele entrou sem dizer nada.<br />
O homem ficou tão<br />
tonto, que trouxe meu<br />
tio até embaixo e ele pegou<br />
o último vagão do<br />
trem. Era a única forma<br />
de pressa que tinha cidadania<br />
entre eles. O resto<br />
era devagar.<br />
Falar devagar, cada palavra<br />
pronunciada inteiramente<br />
e, durante a conversa,<br />
com um pouco de pausa.<br />
Quando o tema chegava<br />
a uma altura maior, ou<br />
uma parte mais enfática,<br />
falava-se mais devagar do<br />
Estação da Luz em 1900<br />
que mais depressa, e fazia-se fisionomia<br />
para o caso. De maneira que, por<br />
exemplo, um está contando uma conversa<br />
delicada que teve com alguém sobre<br />
tal coisa: “Bom… bom… você pode<br />
imaginar o meu apuro.”<br />
Gesto e pequena pausa, atitude<br />
para completar o ambiente. Depois<br />
a narração continuava. Despedida,<br />
ou saudação na entrada: calma. Ninguém<br />
entrava ou saía correndo. Todos<br />
os fatos da vida passados com<br />
densidade; ninguém era atado ou<br />
amarrado, nem do corre-corre. Havia<br />
um relógio de parede, na sala de<br />
jantar, que parecia ritmar a atmosfera<br />
da casa: “tem-tem-tem”.<br />
Tudo isso que estava muito em<br />
consonância com Dona Lucilia, ela<br />
havia levado a uma espécie de auge,<br />
ao seu ponto mais característico.<br />
Mas com a nota católica muito presente.<br />
Era a tradição católica, onde<br />
a piedade pessoal de alguém – no caso,<br />
mamãe – tinha posto a nota católica<br />
retonificada, reavivada pela ação<br />
dela.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/7/1979)<br />
1) Do francês: Uma carta do Brasil para<br />
o senhor.<br />
José Rosael/Hélio Nobre/MP-USP (CC3.0)<br />
10
Gesta marial de um varão católico<br />
Guerra de tendências<br />
A vida de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, analisada à luz da batalha das tendências<br />
por ele travada e transposta para a história dos povos,<br />
permitiu-lhe formar princípios dos quais deduziu uma teoria<br />
e com esta elaborou o livro “Revolução e Contra-Revolução”,<br />
que constitui, em grande parte, as memórias dele.<br />
Aprimeira sensação que tive,<br />
relacionada com a Revolução<br />
tendencial, foi a da pressa.<br />
Entre a geração de mamãe e a minha<br />
havia uma intermediária, de primos.<br />
Dona Lucilia tinha, em números redondos,<br />
trinta anos a mais do que eu.<br />
Assim, entre ela e mim havia primos<br />
quinze anos mais velhos do que eu, parentes<br />
e vários amigos da família.<br />
Choque entre dois modos de ser<br />
Pouco depois de Dona Lucilia, começava<br />
a aparecer uma geração na<br />
qual a alegria do viver estava deslocada.<br />
Não era mais o bem-estar daquela<br />
placidez, com tempo diante de si, mas<br />
uma forma de vivacidade que consistia<br />
em andar e falar depressa, em estar<br />
continuamente alegre, satisfeito,<br />
em contar coisas tendentes ao engraçado,<br />
ao divertido, ao sensacional.<br />
Eu presenciei, mas de forma confusa,<br />
o choque desses dois modos de<br />
ser e notei que, ou me engajava nesse<br />
modo de ser novo e mudava minha<br />
personalidade, abandonando essa<br />
placidez e tomando esse trem que<br />
ia para a frente, ou seria tido como<br />
sem graça por essa gente nova. Era<br />
toda uma orquestração tendencial<br />
que ia nascer, na qual a estabilidade<br />
fecunda, pensativa, forte, mas compassada,<br />
cedia lugar ao corre-corre<br />
<strong>Plinio</strong> nos braços de<br />
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Sgt Norris (CC3.0)<br />
11
Gesta marial de um varão católico<br />
Aurélio Becherini (CC3.0)<br />
em busca de prazeres, agitação e excitação.<br />
Conferi esse modelo comigo mesmo,<br />
perguntando-me, entre outras<br />
coisas, se me adaptaria a isso. E pensava:<br />
“Eu não sou assim. Sou tranquilo,<br />
gosto das coisas plácidas e que<br />
andam passo a passo. Não quero essa<br />
alegria saltitante.”<br />
Por exemplo, via determinada<br />
pessoa entrar em casa assobiando<br />
a última música da moda. Alguém<br />
perguntava:<br />
— Que música é essa?<br />
Gargalhada...<br />
— Ah, você não sabe?! É tal música<br />
assim.<br />
E sentava-se com uma cara radiante,<br />
quando eu não via razão para estar<br />
radiante. Aliás, não vejo nenhuma<br />
necessidade de passar a vida radiante,<br />
mas sim de modo tranquilo. É<br />
uma coisa completamente diferente.<br />
E concluía: “Não tenho embocadura<br />
para isso. Se fosse meter-me nisso,<br />
falsearia minha personalidade. Mas,<br />
pior, não se deve ser assim. Deve-se<br />
ser como quem? Como mamãe. Ali<br />
está certo, está direito, está bom…”<br />
Estabelecia-se entre mim e os adeptos<br />
da nova mentalidade um diálogo<br />
de surdos que terminava amavelmente<br />
porque todo mundo era amável, mas<br />
com um pensamento assim na cabeça<br />
deles: “Esse menino não tem jeito...<br />
É um desmancha prazeres mesmo!”<br />
E eu com outra reflexão: “Essa gente<br />
não tem jeito. Não se pode viver perto<br />
deles. Eu vou destoar mesmo.”<br />
Mecanização geral da vida<br />
Essa impressão acentuou-se à<br />
medida que a influência do pós-<br />
-guerra, carregada de vida mecânica,<br />
se intensificou. Em São Paulo,<br />
os carros puxados a cavalo foram<br />
ficando mais raros, enquanto<br />
os automóveis e bondes mais numerosos.<br />
A mecanização geral da<br />
vida foi entrando e dando um ritmo<br />
mais apressado a todas as coisas.<br />
Fiquei colocado diante da seguinte<br />
situação: eu tinha tendência à lentidão<br />
e à preguiça. Sentia a preguiça como<br />
uma espécie de peso em cima de mim,<br />
que me tornava todos os movimentos<br />
lentos, lerdos, pesados, desagradáveis,<br />
e me fazia encontrar gosto na<br />
inação. Isso devia ser vencido por uma<br />
vida ativa. Ora, vida ativa só era possível<br />
no ritmo daquela que todo mundo<br />
levava, porque era necessário tomar<br />
o bonde, ir para o colégio, voltar<br />
correndo, ir ao dentista, depois passar<br />
por casa para fazer não sei o quê, e isso<br />
precisava ser feito dentro daquela<br />
<strong>Plinio</strong> aos 2 anos de idade<br />
velocidade, não tem remédio, do contrário<br />
“perdia o bonde”.<br />
Donde uma espécie de reajuste<br />
interno tendencial para combater<br />
a preguiça, nunca permitindo deixar<br />
para mais tarde o que eu pudesse<br />
fazer logo. E começando sempre,<br />
se pudesse optar, pelo mais desagradável.<br />
Porque para o mais agradável<br />
se tem ânimo; o difícil é fazer logo<br />
o mais desagradável, de maneira a<br />
nunca me permitir, nesse ponto, moleza<br />
nenhuma, mas dentro do corre-<br />
-corre dos pés conservar a tranquilidade<br />
do modo de ser e da alma, de<br />
molde a dar, com a estabilidade antiga,<br />
uma force de frappe 1 nova, juntando<br />
as duas reações.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Rua General Carneiro, no Centro de São Paulo, em 1900<br />
Contraste entre a posição<br />
tendencial da pureza<br />
e da impureza<br />
Ligada a isso, outra coisa tornou-<br />
-se clara para mim: o contraste entre<br />
a posição tendencial da pureza<br />
e da impureza. A castidade tem isto<br />
de próprio: quem a vive verdadeira-<br />
12
Mas eu via os outros de minha idade<br />
indo dormir; era completamente<br />
diferente. Não tinham vontade<br />
de que chegasse a hora de repousar,<br />
queriam ficar conversando e mexendo.<br />
Era preciso ir arrancando-os para<br />
a cama, meio brigados com a governanta.<br />
A hora de dormir era triste<br />
porque iam entrar nas sombras<br />
da noite. Para mim as sombras eram<br />
amigas. Apagada a luz, eu ainda ficava<br />
ouvindo um pouco os grilos num<br />
terreno baldio perto de casa, com um<br />
cheiro de vegetação que vinha dali.<br />
Logo passava da reflexão para o sono.<br />
Contudo eu não ousava elogiar isso<br />
diante de ninguém, pois percebia<br />
que não sentiam isso assim.<br />
A hora de levantar também me<br />
era agradável. Mas levantar sem corre-corre;<br />
sentar na cama e rezar, tomar<br />
um pouco a noção das coisas que<br />
me rodeavam: a luz que entrava pela<br />
veneziana, os sons domésticos, os<br />
ruídos da rua, a vida que começava a<br />
pulsar em torno de mim. Depois me<br />
levantava com calma e, primeira coisa:<br />
“Bom dia, mamãe!”, depois fazia<br />
minha toilette e começava a vida.<br />
Outros se jogavam para fora da cama.<br />
Eu pensava: “Mas o que é isso?<br />
Essa eletricidade perto de mim!” Tinha<br />
vontade de dizer: “Fora!” Mas<br />
não podia, tinha de engolir por inteimente<br />
é comedido e encontra sabor<br />
em tudo, até nas menores coisas. Ela<br />
se contenta com pouco e se alegra<br />
muito com coisas pequenas; não precisa<br />
viver correndo atrás de delícias.<br />
Um pequeno prazer, um pequeno<br />
atrativo já a regozija inteira. Quando<br />
lhe acontece de receber uma delícia,<br />
o homem puro se alegra também<br />
e, cessada a delícia, ele não entra na<br />
depressão, mas continua a vida animado<br />
pela alegria que teve.<br />
No homem impuro é tudo ao contrário.<br />
As alegrias pequenas não lhe<br />
satisfazem, parecem bagatelas. As<br />
coisas que se repetem lhe parecem<br />
enfadonhas. Ele só quer alegrias<br />
enormes e, quando elas passam, cai<br />
na depressão. Antes de chegar a alegria,<br />
ele fica na torcida; depois da<br />
alegria, vem a frustração. Essa é a vida<br />
do impuro. Não preciso entrar em<br />
descrições, porque todos nós vemos<br />
o mundo encharcado disso.<br />
Eu notava muito o contraste nesse<br />
ponto entre pessoas de minha geração,<br />
em torno de mim, sonhando com<br />
maravilhas, e o desdém que tinham<br />
pelas coisas agradáveis e pequenas<br />
que a vida oferece. Eu me regozijava,<br />
às vezes, com essas coisas, mas não comentava<br />
com eles. Por exemplo: sábado<br />
à noite, tendo todo um domingo<br />
diante de mim, eu me deitava. Era o<br />
dia em que, em minha casa, se trocava<br />
a roupa de cama. A cama dava impressão<br />
de inteiramente nova; quarto tranquilo,<br />
todo revestido com um papel de<br />
parede de que eu gostava muito, um<br />
quadro de Nossa Senhora em esmalte,<br />
uma mesinha com pequenos objetos.<br />
Eu me deitava e pensava: “Como<br />
me sinto bem e estou contente! Vou<br />
ter amanhã o dia inteiro de repouso;<br />
irei de manhã à Missa, depois voltarei<br />
para casa e vou brincar com os soldadinhos<br />
de chumbo; chegada a hora do<br />
almoço, terei um superalmoço. À tarde,<br />
vou ao cinema e depois é o desfile<br />
nas confeitarias. Por fim, janto. Como<br />
é agradável deitar-me agora na previsão<br />
desse dia!”<br />
Soldadinhos de chumbo<br />
ro. Se fosse algum primo que ia passar<br />
a noite comigo e conversava com exagero,<br />
eu respondia pausadamente até<br />
que ele também se domasse um pouco.<br />
Outra coisa altamente apreciável<br />
para mim, mas não para ele: tomar café<br />
com leite, pão com manteiga. Não<br />
tinha geleia, nem queijo, nem outras<br />
delícias. Era o comum. Mas um pão<br />
no qual se sentia o bom gosto do trigo,<br />
uma manteiga feita do genuíno leite,<br />
passada abundantemente sobre o pão.<br />
Um prazer simples, mas cheio de suco<br />
para uma alma equilibrada.<br />
Uma espécie de<br />
xadrez humano<br />
Eram tendências que se chocavam.<br />
Resultado: eles gostavam de<br />
brigar, eu detestava a briga. Discussão,<br />
sim, é agradável, pois entra o<br />
florete do argumento. A meu ver,<br />
é a mais bela forma de esgrima que<br />
o espírito humano excogitou. É lindo!<br />
Disso eu gostava. Mas, brigar…!<br />
Então um diz para o outro: “Eu te<br />
parto a cara!” Que intenção é essa?<br />
“Primeiro, com a minha não pode.<br />
A sua, não tenho o menor intuito de<br />
partir, pela simples razão de que não<br />
perco tempo com ela. A sua cara me<br />
desinteressa do modo mais total possível.<br />
Nem sequer para quebrar, ela<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
13
Gesta marial de um varão católico<br />
me importa. Concebo bem que você<br />
tenha as mesmas disposições a meu<br />
respeito. Portanto, cada um com sua<br />
cara, e não quebre a do outro.”<br />
O senso da hierarquia, muito desenvolvido<br />
em mim, vinha de todo<br />
o ambiente doméstico de que falei,<br />
marcado pela recusa à pressa. No<br />
momento em que recusei a pressa<br />
revolucionária, preservei dentro de<br />
mim o senso da hierarquia. Porque<br />
a vida com pressa é feita sem hierarquia,<br />
as pessoas não têm hierarquia<br />
de valores e, no convívio, não existe<br />
a hierarquia de pessoas. Elas se cortam<br />
a palavra umas às outras. E me<br />
causava muita estranheza exatamente<br />
a vida igualitária dos meus companheiros<br />
de colégio.<br />
Ficam assim apresentados alguns<br />
problemas com os quais me deparei<br />
ainda em pequeno: uma escolha e<br />
uma definição temperamental e tendencial;<br />
um choque entre uma posição<br />
e outra; depois esses choques se<br />
multiplicam, porque a posição inicial<br />
se desdobra em posições afins, tanto<br />
de um lado quanto de outro, formando<br />
uma guerra de tendências.<br />
Então, havia pessoas com<br />
as quais eu estava em guerra<br />
total, ou seja, eram completamente<br />
opostas a mim.<br />
Elas percebiam isso, como<br />
eu também, e inaugurava-se<br />
uma verdadeira batalha, disfarçada<br />
pela educação comum.<br />
Quer dizer, não se podia<br />
mostrar, mas havia luta.<br />
Eu notava também a existência<br />
de indivíduos divididos<br />
tendo, em parte, tendências<br />
boas que afinavam comigo<br />
e, em parte, tendências<br />
más que afinavam com a Revolução.<br />
Esses constituíam<br />
uma “terra de ninguém” entre<br />
os dois extremos de tendências<br />
opostas, e que estavam<br />
na guerra total, procurando<br />
acentuar nos intermediários<br />
as tendências afins<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
para puxá-los ao seu próprio campo,<br />
constituindo uma espécie de xadrez<br />
humano. Eram a Revolução, a Contra-Revolução<br />
e o semicontrarrevolucionário,<br />
apresentados tendencialmente<br />
e já entrevistos no tempo<br />
de pequeno. Assim, minha vida de<br />
criança e de mocinho era levada nessa<br />
batalha das tendências, mas sem<br />
uma conscientização inteira.<br />
Montando um vocabulário<br />
como quem confecciona<br />
uma joia imensa<br />
Que papel faz dentro disso a conscientização?<br />
Por incrível que pareça, sentia tudo<br />
isso em pequeno, mas, foi tal a<br />
inibição causada pelo fato de ninguém<br />
aludir a tais considerações,<br />
que só vim a explicitar essas coisas<br />
mais ou menos a partir dos meus vinte<br />
e cinco anos, e devagar. Implicitamente,<br />
eu tinha torrentes disso; porém,<br />
não saberia explicitar para os<br />
outros, como não saberia fazê-lo para<br />
mim. Ademais, para saber por em<br />
<strong>Plinio</strong> (primeiro à esquerda, de pé) entre seus<br />
colegas de turma do Colégio São Luís, em 1924<br />
termos é preciso ter toda uma linguagem.<br />
É quase outra ordem da realidade<br />
e outra paragem do espírito<br />
humano, que exige um vocabulário<br />
próprio para se chegar a explicitar.<br />
Esse vocabulário não se procura<br />
no dicionário. Encontra-se testando:<br />
“Tal palavra serve, tal outra não serve.<br />
O que quer dizer essa, o que quer dizer<br />
aquela?” No uso do dia a dia, reter<br />
as palavras: “Essa serviu para explicar<br />
tal coisa, vou reter; aquela outra<br />
palavra vai me servir, mas em tal ocasião...”<br />
Assim ir montando o vocabulário<br />
como quem monta uma joia imensa,<br />
com milhares de pedras preciosas<br />
ou semipreciosas, para poder explicitar<br />
essas coisas. Isso não faz uma vida<br />
mole, mas uma existência sumamente<br />
entretida. No dia em que o homem<br />
pode dizer antes de dormir: “Hoje encontrei<br />
uma palavra!”, esse foi um dia<br />
positivo na vida dele.<br />
Quando explicitei isso para mim<br />
mesmo, consegui montar as regras<br />
que instintivamente eu tinha seguido.<br />
Então, em grande parte, a obra<br />
Revolução e Contra-Revolução constitui<br />
minhas memórias. Não<br />
que eu tenha pensado naquela<br />
ordem teórica, histórica, filosófica.<br />
Esses pensamentos<br />
não afloraram em minha cabeça<br />
assim, mas constituíam<br />
um magma fecundo no qual<br />
as ideias iam se ordenando.<br />
As batalhas internas<br />
de um povo são<br />
parecidas com as<br />
de uma alma<br />
Em sentido figurativo, cada<br />
povo tem uma cabeça, um<br />
espírito, uma alma, à maneira<br />
de um homem: o que neste<br />
são tendências diversas,<br />
naquele são partidos políticos,<br />
correntes filosóficas ou<br />
artísticas. As batalhas internas<br />
de um povo são extraor-<br />
14
dinariamente parecidas com as de<br />
uma alma. Logo, é conhecendo as<br />
lutas internas de nossa própria alma<br />
e da dos outros que interpretamos<br />
bem os fatos históricos.<br />
Minha vida analisada e reanalisada<br />
à luz da batalha das<br />
tendências por mim travada, e<br />
transposta para a história dos<br />
povos, permitiu-me uma remontagem<br />
da minha experiência,<br />
formando princípios,<br />
dos quais deduzi uma teoria<br />
e com esta elaborei um livro.<br />
Neste sentido, esse livro<br />
constitui as minhas memórias,<br />
mas não só. É a minha previsão.<br />
Porque, como na luta das tendências,<br />
percebi, com a ajuda de<br />
Nossa Senhora, quais eram as regras<br />
do jogo, daqui por diante sei como<br />
esse jogo deve continuar. Sempre<br />
aprenderei algo de novo, porque<br />
as tendências são insondáveis, e não<br />
presumo esgotá-las. Qualquer alma<br />
humana tem um fundo incognoscível.<br />
Entretanto, é possível conhecer muita<br />
coisa e, por aí, saber o traçado do<br />
futuro. A previsão política é, em boa<br />
medida, a análise de como estão as<br />
tendências hoje e no que elas vão dar<br />
amanhã. Com isso, a previsão política<br />
é fecundada como a água fecunda<br />
a raiz de uma planta. Na raiz do pensamento<br />
previsor está o conhecimento<br />
das regras das tendências. Essa é a<br />
vantagem de conhecer as tendências.<br />
Entretanto, todas as coisas verdadeiramente<br />
muito elevadas são<br />
passíveis de serem exploradas. Por<br />
exemplo, a música. Quanta coisa<br />
magnífica se faz com ela, mas também<br />
quanta vilania! Todas as artes<br />
são assim. Ora, agir nas tendências é<br />
uma arte; logo, pode ser tomada para<br />
o melhor e para o pior.<br />
Onde está a dignidade disso?<br />
Quando se vive toda essa intensa vida<br />
das tendências, há determinados<br />
momentos em que o espírito se<br />
distancia desse jogo e faz a pergunta:<br />
“Mas, afinal, o que aqui é ver-<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aos<br />
25 anos<br />
dade, o que é erro? O que é bem, o<br />
que é mal?” Passo, então, a fazer disso<br />
uma análise lógica, com argumentos,<br />
raciocínios, para saber como<br />
uma coisa se costura na outra. E faço,<br />
eu mesmo, a crítica do meu pensamento<br />
para verificar se ele enfrenta<br />
as objeções. Então, vemos surgir,<br />
à maneira de um píncaro de neve sobre<br />
uma montanha muito verde, a<br />
lógica fria, rutilante e, dentro da sua<br />
frialdade, espelhando melhor o Sol<br />
do que a relva nas encostas da montanha.<br />
E podemos formular a teoria.<br />
Um modo de ser<br />
eminentemente<br />
hierarquizante<br />
Por exemplo, eu tenho um modo<br />
de ser eminentemente hierarquizante.<br />
Não basta dizer que possuo esse<br />
modo de ser para provar que é justo<br />
que isso seja assim. Quem me dá<br />
o direito de ser assim? A ordem natural<br />
das coisas feita por Deus é assim?<br />
Se for, então é bom que eu seja<br />
assim. Do contrário, não é bom. Por-<br />
que a medida de todas as coisas de<br />
nenhum modo sou eu, que fui criado<br />
por Deus. A medida de todas as coisas<br />
é Ele. O que Ele ensinou a esse<br />
respeito? Por que Ele ensinou?<br />
Qual foi a intenção d’Ele?<br />
E aqui entraria a teoria esplendorosa,<br />
magnífica, de São<br />
Tomás que contraria o igualitarismo.<br />
Explica o Doutor<br />
Angélico que, ao criar seres<br />
que refletissem suas infinitas<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
perfeições, Deus não poderia<br />
fazer um único ser, porque<br />
qualquer criatura é tão insuficiente<br />
para realmente espelhá-Lo<br />
que ela seria caricata.<br />
Mas essas criaturas, por sua<br />
vez, para O refletir têm que ser diferentes<br />
umas das outras. Se Deus<br />
criasse dois seres iguais, Ele cometeria<br />
o erro que um gago pratica quando<br />
pronuncia duas sílabas inúteis: “Eu<br />
que-quero.” Porque na palavra humana<br />
cada sílaba tem um som. O resto é<br />
linguagem de criança, ou de uma pessoa<br />
que não tem a locução normal,<br />
bem construída. Então, por causa disso,<br />
Deus formou criaturas diferentes,<br />
e assim sendo, criou-as desiguais, pois<br />
não há seres diferentes sem que um<br />
seja superior ao outro em algum ponto.<br />
Logo, ou não haveria Criação, ou<br />
existiria hierarquia.<br />
Então, Gloria in excelsis Deo! (Lc<br />
2, 14). No fim, o cristal de rocha do<br />
raciocínio, em arestas tomistas definidas<br />
que rutilam ao Sol, é o encanto<br />
e a glória da montanha. Assim,<br />
nos entusiasmamos tanto com<br />
as tendências quanto com o raciocínio,<br />
e glorificamos a Deus que nos<br />
deu esta riqueza: sermos verdadeiros<br />
instrumentos de música de tendências<br />
e cristais reluzentes de raciocínio.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/7/1979)<br />
1) Do francês: força de ataque.<br />
15
Perspectiva pliniana da História<br />
Charles Chipiez (CC3.0)<br />
Todos serão julgados<br />
pelo que fizeram<br />
por suas nações<br />
No Juízo Final os indivíduos serão<br />
julgados, entre outras coisas, pelo<br />
bem que poderiam realizar a favor das<br />
nações às quais pertenceram, mas por<br />
terem sido preguiçosos, ambiciosos,<br />
hereges ou cismáticos, não o fizeram.<br />
Se desejamos que os nossos países<br />
sejam grandes, queiramos antes de tudo<br />
que a Igreja Católica seja glorificada.<br />
Há duas espécies de povos<br />
que desapareceram: uns sumiram<br />
definitivamente; outros<br />
preenchem o vácuo deles na História<br />
e a vida vai para a frente. Exemplo<br />
característico são as ruínas, que se<br />
encontram em certas partes da Ásia<br />
e da Polinésia de modo especial, de<br />
civilizações bastante desenvolvidas,<br />
das quais ninguém sabe o que foram,<br />
quando existiram e por que desapareceram.<br />
São os navios fantasmas da<br />
História!<br />
Embarcações vazias flutuando<br />
sem rumo pelos mares<br />
Diego Delso (CC3.0)<br />
Ruínas de Persépolis, atual Irã<br />
Até a navegação obter o progresso<br />
que ela tem hoje, era frequen-<br />
16<br />
Monumento em<br />
Persépolis, Pérsia
Detroit Publishing Company (CC3.0)<br />
Navio de passageiros RMS Saxônia, por volta de 1900<br />
te haver mares ermos os quais passavam<br />
anos sem que um navio neles<br />
entrasse. Às vezes, quando dois navios<br />
se encontravam, costumavam<br />
se aproximar e, se não eram inimigos<br />
– pois nesse caso saía tiro! –, chegavam<br />
a se encostar para saber qual<br />
deles tinha estado em terra firme a<br />
menos tempo e que notícias trazia.<br />
Compreende-se isto perfeitamente.<br />
Essa história de os navios se aproximarem<br />
perdurou por muito tempo.<br />
Lembro-me que quando eu tinha<br />
cinco anos mais ou menos, vinha<br />
de Gênova para Santos num<br />
navio de passageiros chamado Duca<br />
D’Aosta, quando nos chegou um<br />
telegrama passado do bordo de outro<br />
navio, parece-me que era inglês.<br />
Eles avisavam que tinham tido notícia<br />
de que o Duca D’Aosta ia passar<br />
por lá e pediam que se aproximasse,<br />
para que os passageiros pudessem<br />
se saudar, tal era a aventura de estar<br />
em alto-mar. Todos os passageiros<br />
de ambos os navios foram para o<br />
tombadilho, e as duas tripulações se<br />
saudaram, como poderiam fazer hoje<br />
dois navegantes no espaço, que se<br />
movimentam em sentido contrário.<br />
Lembro-me de ver distintamente<br />
os passageiros do outro navio, onde,<br />
aliás, havia parentes muito chegados<br />
nossos, que sabíamos estarem<br />
viajando nele. Então nos reconhecemos,<br />
houve saudações, as senhoras<br />
trocavam beijos, etc. Não lembro se<br />
todas, mas algumas pelo menos compareciam<br />
ao tombadilho preparadas<br />
para resistir ao vento e à deslocação<br />
de ar no navio, com chapéus grandes,<br />
uns tules protegendo o rosto e<br />
ainda echarpes. Porque quando se<br />
está num alto-mar ínvio como aquele,<br />
é melhor estar preparado para tudo!<br />
Nesses tempos, e também em<br />
épocas anteriores, encontravam-se,<br />
por vezes, navios aos quais se mandava<br />
um sinal e não se obtinha resposta.<br />
Então, o capitão do navio que<br />
não recebia resposta aproximava-se<br />
para ver o que se passava, porque<br />
podia haver casos de necessidade. E<br />
várias vezes foram encontrados navios<br />
completamente vazios, em situações<br />
muito curiosas. Num deles,<br />
por exemplo, tudo indicava que<br />
17
Perspectiva pliniana da História<br />
Samuel Holanda<br />
RMG (CC3.0)<br />
Navios veleiros “Érebo” e “Terror” em expedição<br />
na Nova Zelândia em agosto de 1841<br />
uma parte dos passageiros estivesse<br />
tomando refeição, porque foram<br />
encontrados nos pratos de sobremesa<br />
restos do que comiam. E sem<br />
nenhum sinal de luta interna – ninguém<br />
lutou, não houve começo de<br />
incêndio nem infiltração de água. O<br />
navio estava perfeito, flutuando sem<br />
rumo pelos mares.<br />
Nações que se tornaram os<br />
navios errantes da História<br />
Qual foi o mistério que levou a tripulação<br />
inteira – supõe-se que sejam<br />
navios de passageiros, pais, mães, filhos,<br />
enfim, parentelas e outros avulsos<br />
– a saírem do navio para irem a<br />
outra embarcação? E por que motivo<br />
os que transportaram essa gente<br />
não levaram reservas de comida? Podem<br />
imaginar que prejuízo para um<br />
navio levar bocas e não água doce,<br />
alimentos? O que houve?<br />
Em uma revista histórica francesa<br />
li um artigo muito bem feito e cheio<br />
de casos desses, que levantava a seguinte<br />
hipótese: Tudo bem analisado,<br />
só há uma conjetura cabível, mas<br />
que não tem base científica: terem<br />
vindo entes de outros astros e levado<br />
essa população inteira para outro<br />
planeta.<br />
Não estou opinando nem pelo<br />
sim nem pelo não, porque acho impossível<br />
opinar, mas é um mistério<br />
enormemente pitoresco, interessante,<br />
acho até atraente... Eu, por mim,<br />
gostaria de visitar um navio assim!<br />
Há navios cujas ruínas estão em<br />
ilhas e desertos, dentro dos matos...<br />
uma população viveu lá, floresceu,<br />
morreu. E não se sabe quando e por<br />
que deixaram aquele lugar. Não foram<br />
mortos, porque não se encontraram<br />
cadáveres. Não foi guerra,<br />
porque não há sinal de combate. O<br />
que aconteceu? É pitoresco.<br />
Pois bem, há civilizações que se<br />
tornaram os navios errantes da História.<br />
O homem responde pela<br />
sua nação perante Deus<br />
Nossa civilização tanto entrelaçou<br />
o mundo, que não nos passa pela cabeça<br />
de sermos algum dia um povo<br />
navio errante da História. Mas imaginem<br />
que venham os castigos previstos<br />
em Fátima, e restem uns punhados<br />
populacionais pelo mundo.<br />
Pode ser que os componentes de alguns<br />
desses punhados morram muito<br />
velhos e não tenham descendência,<br />
está acabado. Mas, há outras na-<br />
Juízo Final - Catedra<br />
18
ções que têm contas mais severas a<br />
prestar a Deus, porque muito tempo<br />
depois de extintas as suas descendências<br />
ainda deveriam marcar a<br />
História. É uma possibilidade.<br />
Então, no dia do Juízo Final tudo<br />
isso vai se apurar? Sim e não. Porque,<br />
no Céu, não há nações. E o Juízo Final<br />
é um juízo individual, vai julgar<br />
os indivíduos. Então, o que fazem as<br />
nações dentro disso? Os homens serão<br />
julgados, entre outras coisas, pelo<br />
que eles fizeram às nações a que pertenceram.<br />
É evidente. E aqueles que<br />
poderiam ter modificado muitas nações<br />
para o bem serão julgados por<br />
aquilo que elas não receberam deles,<br />
porque foram preguiçosos, ambiciosos,<br />
hereges ou cismáticos.<br />
Uma nação desapareceu na História,<br />
mas o homem responde pela<br />
nação perante Deus: “Por que tal<br />
país que Me deveria ter prestado tais<br />
e tais serviços não prestou? Tu tinhas<br />
na mão a possibilidade de fazer isto,<br />
aquilo, aquilo outro. Por que não fizeste?”<br />
E, sobretudo, e essencialmente<br />
o que se refere ao apostolado:<br />
“Tu poderias ter feito que tua nação<br />
espalhasse meu Nome em tais outros<br />
lugares. Isso não aconteceu.”<br />
Tomada de Saigon<br />
pelos comunistas<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Causou-me um arrepio ler a queda<br />
de Saigon 1 . De manhã, antes de os<br />
comunistas chegarem a esta cidade<br />
– todo mundo sabia que iam chegar<br />
–, o comércio abriu, tudo funcionava<br />
normalmente. No melhor clube da cidade,<br />
a piscina cheia de banhistas e<br />
o bar vendendo champagne e outras<br />
bebidas de luxo. Nos grandes hotéis,<br />
também de luxo, os correspondentes<br />
de imprensa, os diplomatas, etc., divertindo-se,<br />
esperando que os comunistas<br />
chegassem. Perguntam:<br />
— Mas vocês não fazem nada?<br />
Na piscina, um nababo que tomava<br />
champagne deu esta resposta:<br />
— Só eu? Não é possível fazer nada<br />
mesmo. Deixe-me beber aqui a<br />
última taça de champagne!<br />
Muito inteligentemente, os primeiros<br />
contingentes comunistas que entraram<br />
em Saigon eram compostos de<br />
rapazinhos adestrados e, naturalmente,<br />
com gente mais velha atrás para fazer<br />
a coisa trotar. Pulavam dos caminhões<br />
em que estavam e se espalhavam<br />
pela cidade. As pessoas os olhavam,<br />
achavam-nos tão jovens e inofenl<br />
de Amiens, França<br />
Tomada de Saigon<br />
19
Perspectiva pliniana da História<br />
Angelo L.<br />
Vista panorâmica de Florença, Itália<br />
Lateral da Catedral de<br />
Florença, Itália<br />
sivos que davam risadas<br />
e os saudavam amistosamente.<br />
Eles tinham a palavra<br />
de ordem de tomar<br />
conta dos postos-chaves.<br />
Quando as tropas começaram<br />
a entrar, toda<br />
a resistência era impossível<br />
porque elas estavam<br />
armadas e os lugares-chaves,<br />
de<br />
onde podiam desencadear<br />
alguma<br />
resistência, já<br />
estavam nas mãos<br />
desses meninos. Se<br />
matassem esses meninos<br />
havia o risco de atrair<br />
sobre si uma vingança da qual<br />
eles tinham medo. Compor com os<br />
comunistas era a coisa melhor que tinham<br />
para fazer, imaginavam eles.<br />
Os católicos eram numerosos em<br />
Saigon e poderiam ter feito uma resistência.<br />
Mas eles tinham um arcebispo<br />
a favor da conciliação com os comunistas.<br />
E esse arcebispo trazia consigo<br />
uma série de gente que era do mesmo<br />
naipe, leigos e eclesiásticos.<br />
Rodrigo Q.<br />
Rodrigo Q.<br />
Fachada da Catedral de Florença, Itália<br />
Gabriel K.<br />
20<br />
Vista do Grande Canal de Veneza, Itália
Gabriel K.<br />
J.P. Castro<br />
Aspectos de Veneza<br />
Estes não vão prestar contas pelo<br />
fato de que Saigon caiu? Os homens<br />
que pregaram a rendição não entregaram<br />
irremediavelmente seu país<br />
ao inimigo, quando tinham a obrigação<br />
de defendê-lo? Então, não vai<br />
ser julgado o Vietnã, mas sim todos<br />
os homens que resistiram ou não,<br />
que amoleceram. Todos vão prestar<br />
contas por sua vida individual e pelo<br />
que fizeram de seu país.<br />
Veneza e Florença: duas<br />
vertentes do espírito humano<br />
Entretanto, as nações pagam nesse<br />
mundo os pecados que cometem,<br />
precisamente porque não haverá nações<br />
no Céu nem no Inferno. Logo,<br />
Deus pune com castigos terrenos os<br />
pecados das nações. Resultado: as<br />
nações se tornam infelizes, mesquinhas,<br />
sem importância, por causa<br />
dos pecados que cometeram.<br />
Quando a nação não peca e corresponde<br />
à graça, qual a recompensa<br />
que ela recebe nesta Terra também<br />
pela sua virtude? Recebe toda espécie<br />
de grau de glória, de grandeza<br />
que Deus lhe tinha destinado. Com<br />
uma alegria especial, que é a ufania<br />
justa e razoável daqueles que pertencem<br />
a essa nação.<br />
Então, encontramos nações que<br />
tiraram de si o que podiam. O exemplo<br />
mais característico disso talvez<br />
tenha sido a Itália. Nos séculos XV<br />
e XVI, a Itália não era uma nação,<br />
mas um conjunto de pequenas nações<br />
independentes. Florença, por<br />
exemplo, era um grão-ducado à testa<br />
da Toscana. O povo havia correspondido<br />
durante muito tempo à graça,<br />
e com isso tinha desenvolvido o<br />
seu perfil intelectual e moral extraordinariamente.<br />
E houve um pulular<br />
de grandes homens, de Santos, que<br />
faziam da vida interna da Toscana<br />
um dos ápices do acontecer do mundo.<br />
A Catedral de Florença, os monumentos,<br />
as bibliotecas, o Palácio<br />
della Signoria, mil coisas, constituem<br />
um tesouro. Todo mundo que deseja<br />
ter cultura precisa se informar um<br />
pouco sobre Florença. Ela foi ou não<br />
uma grande cidade? Foi inclusive<br />
um grande Estado.<br />
Veneza é mais ou menos contemporânea<br />
de Florença. Vai-se de uma cidade<br />
à outra em poucas horas, mas são<br />
dois mundos completamente diferen-<br />
Samuel Holanda<br />
21
Perspectiva pliniana da História<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Revolução dos Cravos<br />
tes. Eis um lado por onde se pode ver<br />
a característica de cada uma: os artistas<br />
de Florença eram peritos, sobretudo,<br />
no desenho das figuras que pintavam,<br />
porém davam menos importância<br />
às cores, enquanto os de Veneza eram<br />
exímios pelo colorido. São dois feitios<br />
de alma: um é aberto, afável, ameno,<br />
dos que gostam mais da cor do que da<br />
forma; outro é lúcido, penetrante, inteligente,<br />
daqueles que dão mais importância<br />
à forma do que à cor.<br />
Em Veneza os coloridos são feéricos,<br />
não só dos quadros, mas também<br />
da natureza. Aquela laguna com toda<br />
a sua beleza, os coloridos que se fazem<br />
durante o dia quando o Sol se levanta<br />
ou se põe, os palácios construídos<br />
ao longo daqueles canais onde se refletem<br />
indefinidamente, tudo é de um colorido<br />
estupendo! Vai-se para Florença<br />
e se vê uma coisa diferente: é a precisão<br />
do desenho carregado de expressão.<br />
Então, que glória: duas cidades próximas,<br />
pequenas, republiquetas, engendraram<br />
essas duas escolas de arte representando<br />
dois feitios, duas vertentes<br />
do espírito humano. É uma maravilha!<br />
Poder-se-ia perguntar: O espírito<br />
do povo brasileiro vai mais pelo gosto<br />
das cores ou do desenho? Nos panoramas<br />
do Brasil, o que é mais bonito:<br />
o colorido ou o desenho? Procurando<br />
– não como um argumento<br />
de certeza, mas de probabilidade –<br />
um traço do espírito nacional, como<br />
seria interessante tratar disso!<br />
Portugal sobreviverá, mas<br />
precisa mudar muito<br />
São Luís Grignion de Montfort, contemporâneo<br />
de Luís XIV, diz que no<br />
tempo dele o mundo já estava invadido<br />
por uma torrente de iniquidade, mas<br />
haveria um momento em que Nossa<br />
Senhora interviria, venceria e implantaria<br />
o Reino d’Ela. A Santíssima Virgem<br />
falou de nações inteiras que desapareceriam;<br />
serão os “navios fantasmas” da<br />
História. Com certeza, Ela já escolheu<br />
as nações que sobreviverão.<br />
Garantia de sobreviver, a Virgem<br />
de Fátima só deu a uma nação: Portugal.<br />
Ela escolheu esse país para lá aparecer,<br />
quer dizer, foi o pedestal do alto<br />
do qual a Mãe de Deus quis falar ao<br />
mundo. No entanto, poderia perfeitamente<br />
não ter dito que Portugal, depois<br />
de todos os castigos por Ela profetizados,<br />
conservará o dogma da Fé 2 .<br />
Como será Portugal no Reino de<br />
Maria? Por certo, Portugal terá que<br />
mudar muito até lá... É uma nação<br />
que se deixou semientregar aos comunistas.<br />
Aquela porcaria da Revo-<br />
lução dos Cravos 3 , poderia haver algo<br />
de mais contrário à índole de um povo<br />
guerreiro como o português, tendo<br />
o passado de batalhas que tem?<br />
Portugal daquele tamanhozinho, com<br />
um império colonial formidável! E<br />
mais ainda, nenhuma colônia de país<br />
europeu resistiu tanto a favor da metrópole<br />
quanto Moçambique e Angola<br />
em relação a Portugal. Entretanto,<br />
depois disso, Portugal ir na onda daquela<br />
Revolução dos Cravos, e por<br />
causa desses cravos acreditar nas intenções<br />
pacíficas daqueles bandidos!<br />
Ora, Portugal conservará o dogma<br />
da Fé. Conclusão: para que haja<br />
o Reinado de Nossa Senhora é<br />
preciso que a nação lusa mude muito,<br />
porque não podemos imaginar no<br />
Reino de Maria um Portugal com o<br />
Estoril rachando de imoralidade em<br />
épocas de turismo, e daí para fora.<br />
No Reino de Maria, as<br />
nações católicas constituirão<br />
um concerto de beleza sublime<br />
Mas no Reino de Maria deve realizar-se<br />
a descrição famosa de Santo<br />
22
Santo Agostinho<br />
Igreja Santa Cruz,<br />
México<br />
Agostinho, a respeito da nação católica.<br />
Disse ele: Imaginem uma nação<br />
onde o rei e o povo, os generais<br />
e os soldados, professores e alunos,<br />
esposos e esposas, pais e filhos, todos<br />
vivem em estado de graça e no<br />
cumprimento do amor de Deus; esse<br />
país sobe assim ao mais alto de<br />
sua glória.<br />
Será que para isso acontecer<br />
vão desaparecer as características<br />
dos diversos povos, e todos<br />
se fundirão por terem a mesma<br />
Fé? Absolutamente não. Pelo<br />
contrário, as características se<br />
acentuarão, constituindo entre<br />
todas as nações católicas um concerto<br />
com harmonias de uma beleza<br />
sublime. Se víssemos o mundo assim,<br />
diríamos: “Mas isso é o Céu ou<br />
é a Terra?”<br />
Este “sonho” viveram-no tantos<br />
povos da Idade Média. A Cristandade<br />
era a família das nações cristãs<br />
católicas, na qual se cumpria a<br />
Lei de Deus. São Pio X disse isso<br />
em uma de suas encíclicas: se a Europa<br />
estava acima de todas as nações<br />
do mundo, por causa do esplendor<br />
de sua civilização cultural,<br />
artística e material, era devido à Fé<br />
Católica.<br />
Conclusão: preocupemo-nos, sobretudo,<br />
em que todas as nações sejam<br />
inteiramente católicas, e então<br />
se aplicará a promessa de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo: “Procurai o Reino<br />
de Deus e a sua justiça – quer dizer,<br />
a virtude que nele se pratica – e<br />
todas as coisas vos serão dadas por<br />
acréscimo” (Mt 6, 33).<br />
Se desejamos que os nossos países<br />
sejam grandes, queiramos antes<br />
de tudo que a Igreja Católica<br />
seja glorificada, que todas as nações<br />
pratiquem a Lei de Deus e<br />
Flávio Lourenço<br />
tenham o espírito da Santa Igreja;<br />
o resto nos será dado por<br />
acréscimo e teremos o Reino de<br />
Maria.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
4/9/1986)<br />
1) Nome da capital do antigo Vietnã do<br />
Sul, tomada pelos comunistas em 30<br />
de abril de 1975.<br />
2) Cf. IRMÃ LÚCIA. Memórias I.<br />
Quarta Memória, c. II, n. 5. 13ª ed.<br />
Fátima: Secretariado dos Pastorinhos,<br />
2007, p.177.<br />
3) Ocorrida em 25 de abril 1974.<br />
Joseolgon (CC3.0)<br />
Dom Afonso Henriques na Batalha de Ourique<br />
23
Flávio Lourenço<br />
C<br />
alendário<br />
1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />
bispo e Doutor da Igreja (†1787). Ver<br />
página 2.<br />
São Pedro Fabro, presbítero (†1546).<br />
Discípulo de Santo Inácio de Loyola<br />
que participou da fundação da Companhia<br />
de Jesus. Morreu em Roma quando<br />
se dirigia ao Concílio de Trento.<br />
2. Santo Eusébio de Vercelli, bispo<br />
(†371).<br />
São Pedro Julião Eymard, presbítero<br />
(†1868).<br />
3. São Pedro de Anagni, bispo<br />
(†1105). Monge beneditino eleito Bispo<br />
de Anagni, Itália.<br />
4. XVIII Domingo do Tempo Comum.<br />
São João Maria Vianney, presbítero<br />
(†1859).<br />
Beata Cecília Cesarini, virgem<br />
(†1290). Recebeu o hábito monacal<br />
das mãos do próprio São Domingos,<br />
em Bolonha, Itália.<br />
Santo Eusébio de Vercelli<br />
e São Luís Rei<br />
dos Santos – ––––––<br />
5. Dedicação da Basílica de Santa<br />
Maria Maior.<br />
Beato Francisco Zanfredini, eremita<br />
(†c. 1350). Terciário franciscano<br />
que, após doar seus bens aos pobres,<br />
viveu quase 50 anos numa ermida em<br />
Montegranaro, Itália.<br />
6. Transfiguração do Senhor.<br />
Santo Hormisdas, Papa (†523).<br />
Amante da paz, resolveu o cisma provocado<br />
por Acácio no Oriente e combateu<br />
a simonia.<br />
7. São Sisto II, Papa, e companheiros,<br />
mártires (†258).<br />
São Caetano de Thiene, presbítero<br />
(†1547).<br />
Beatos Agatângelo de Vendôme e<br />
Cassiano de Nantes, presbíteros e mártires<br />
(†1638). Religiosos capuchinhos<br />
que na Síria, Egito e Etiópia procuraram<br />
reconciliar os cristãos separados<br />
com a Igreja. Foram enforcados com os<br />
próprios cordões por ordem do rei em<br />
Gondar, Etiópia.<br />
8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />
(†1221).<br />
Beata Maria Margarida Caiani, virgem<br />
(†1921). Fundadora do Instituto<br />
Franciscano das Irmãs Mínimas do Sagrado<br />
Coração, em Poggio a Caiano,<br />
Itália.<br />
9. Santa Teresa Benedita da Cruz,<br />
virgem e mártir (†1942).<br />
Santa Cândida Maria de Jesus,<br />
virgem (†1912). Fundou em Salamanca,<br />
Espanha, a Congregação das Filhas<br />
de Jesus.<br />
10. São Lourenço, diácono e mártir<br />
(†258).<br />
Beatos Francisco <strong>Dr</strong>zewiecki e Eduardo<br />
Grzymala, presbíteros e mártires<br />
(†1942). Evangelizadores poloneses<br />
mortos por inalação de gás em Dachau,<br />
Alemanha.<br />
11. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Clara de Assis, virgem (†1253).<br />
Santo Hipólito<br />
Beato Luís Biraghi, presbítero<br />
(†1879). Sacerdote da Diocese de Milão,<br />
Itália, fundador da Congregação<br />
das Irmãs de Santa Marcelina.<br />
12. Santa Joana Francisca de<br />
Chantal, religiosa (†1641).<br />
Beato Carlos Leisner, presbítero e<br />
mártir (†1945). Membro do Movimento<br />
Apostólico de Shönstatt, preso no campo<br />
de concentração de Dachau, Alemanha.<br />
Morreu logo após ser libertado, em<br />
decorrência dos maus-tratos sofridos.<br />
13. Santos Ponciano, Papa, e Hipólito,<br />
presbítero, mártires (†c. 236).<br />
São Máximo Confessor, abade<br />
(†662). Abade de Crisópolis, que por seu<br />
zelo em combater o monotelismo, foi<br />
desterrado de Constantinopla pelo Imperador<br />
Constante II, preso e mutilado.<br />
14. São Maximiliano Maria Kolbe,<br />
presbítero e mártir (†1941).<br />
Santo Domingos Ibáñez de Erquicia,<br />
presbítero e Francisco Shoyemon,<br />
noviço (†1633). Missionários dominicanos<br />
mortos em Nagasaki, Japão, por<br />
ordem do xogum Tokugawa Yemitsu.<br />
15. Solenidade da Assunção de<br />
Nossa Senhora (no Brasil, transferida<br />
para domingo, dia 18).<br />
Santo Alípio, bispo (†c. 430). Bispo<br />
de Tagaste, Argélia, discípulo de Santo<br />
Flávio Lourenço<br />
24
––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />
Agostinho, foi também companheiro<br />
dele na conversão, no ministério pastoral<br />
e na luta contra os hereges.<br />
16. Santo Estêvão da Hungria, rei<br />
(†1038).<br />
São Roque, peregrino (†c. 1379).<br />
Nascido na França, peregrinou pela Itália<br />
cuidando dos afetados pela peste.<br />
17. São Mamede, mártir (†273/274).<br />
Humilde pastor que viveu solitário nas<br />
florestas dos montes da Capadócia,<br />
Turquia, e foi morto por ter proclamado<br />
sua Fé.<br />
18. Solenidade da Assunção de Nossa<br />
Senhora (transferida do dia 15).<br />
São Reinaldo de Concorezzo, bispo<br />
(†1321). Governou com zelo, prudência<br />
e caridade a diocese de Ravena,<br />
Itália.<br />
19. São João Eudes, presbítero<br />
(†1680).<br />
Santo Ezequiel Moreno y Díaz, bispo<br />
(†1906). Ver página 26.<br />
20. São Bernardo de Claraval, abade<br />
e Doutor da Igreja (†1153).<br />
São Filiberto, abade (†c. 684). Educado<br />
na corte do rei Dagoberto, tornou-se<br />
monge ainda adolescente. Fundou<br />
e dirigiu as abadias de Jumièges e<br />
Noirmoutier, na França.<br />
21. São Pio X, Papa (†1914).<br />
São Sidônio Apolinário, bispo<br />
(†c. 479). Alto funcionário do Império<br />
Romano eleito Bispo de Clermont-Ferrand,<br />
França.<br />
22. Nossa Senhora Rainha.<br />
Beato Elias Leymarie de Laroche,<br />
presbítero e mártir (†1794). Encarcerado<br />
numa sórdida embarcação, em<br />
Rochefort, França, por não ter aceitado<br />
assinar a Constituição Civil do<br />
Clero, morreu consumido pelas enfermidades<br />
aí contraídas.<br />
23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />
(†1617).<br />
São Zaqueu, bispo (†s. II). Segundo<br />
a tradição, foi o 4º Bispo a dirigir a<br />
Igreja de Jerusalém depois do Apóstolo<br />
São Tiago,<br />
24. São Bartolomeu, Apóstolo.<br />
25. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Luís IX, Rei de França (†1270).<br />
São José de Calasanz, presbítero<br />
(†1648). Fundador da Ordem dos<br />
Clérigos das Escolas Pias.<br />
Beata Maria Troncatti, virgem<br />
(†1969). Filha de Maria Auxiliadora<br />
que exerceu longa e generosa atividade<br />
entre os indígenas shuaras do Equador.<br />
26. Beata Lourença Harasymiv, virgem<br />
e mártir (†1952). Religiosa da<br />
Congregação das Irmãs de São José, na<br />
Ucrânia, morreu tuberculosa no campo<br />
de concentração de Kharsk, Sibéria.<br />
27. Santa Mônica (†387).<br />
São Guarino, bispo (†1150). Tendo<br />
sido monge de Molesme na época de<br />
São Roberto, fundou a abadia de Aulps,<br />
França, e a agregou à Ordem Cisterciense.<br />
Foi eleito Bispo de Sion, Suíça.<br />
28. Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†430).<br />
Santa Joaquina de Vedruna, viúva<br />
(†1854). Após educar seus nove filhos,<br />
fundou o Instituto das Carmelitas<br />
da Caridade em Vic, Espanha.<br />
29. Martírio de São João Batista.<br />
Beata Eufrásia do Sagrado Coração<br />
de Jesus, virgem (†1952). Religiosa<br />
da Congregação da Mãe do Carmelo,<br />
de rito Sírio-Malabar, falecida no<br />
convento de Ollur, em Kerala, Índia.<br />
30. São Bonônio, abade (†1026). Seguiu<br />
a vida eremítica no Egito e no Monte<br />
Sinai. Ao retornar à Itália foi nomeado<br />
abade do Mosteiro de Lucédio.<br />
31. São Paulino de Trier, bispo e<br />
mártir (†358). Recusou-se a condenar<br />
Santo Atanásio no Sínodo de Arles e,<br />
por isso, foi exilado para a Frígia, Turquia,<br />
onde consumou seu martírio.<br />
São Pedro Fabro celebrando missa em Montmartre para os primeiros jesuítas<br />
Flávio Lourenço<br />
25
Hagiografia<br />
O Bem-aventurado<br />
da grande resolução<br />
Por meio de seus Santos, Deus faz brilhar<br />
de mil maneiras a fortaleza católica.<br />
Em Santo Ezequiel Moreno y Díaz essa<br />
virtude reluz de modo enlevante, por sua<br />
vontade resoluta em cumprir a vontade<br />
divina, disposto aos maiores sacrifícios.<br />
Mandaram-me um quadro<br />
de um Bem-aventurado colombiano,<br />
famoso por seu<br />
antiliberalismo, Ezequiel Moreno y Díaz<br />
1 . Sua fisionomia me agrada muito.<br />
Batalhador destemido<br />
contra o liberalismo<br />
Divulgação<br />
A expressão fisionômica é digna,<br />
forte, nobre, dentro de uma grande<br />
serenidade. Nota-se uma determinação<br />
e uma resolução que não precisa<br />
de fogachos para se firmar. Ele é calmo,<br />
tranquilo, mas o que ele resolveu,<br />
resolveu.<br />
Parece-me uma fisionomia que,<br />
a seu modo, pode emular, ser colocada<br />
à altura do semblante de Dom<br />
Vital Maria Gonçalves de Oliveira,<br />
Bispo de Olinda e Recife no tempo<br />
do Império. Com a diferença de<br />
que o Beato Ezequiel é espanhol, o<br />
que se percebe considerando algo no<br />
rosto que dá essa ideia. Dom Vital é<br />
tipicamente brasileiro, inclusive a vivacidade<br />
no olhar é do estilo de vivacidade<br />
brasileira.<br />
26 Santo Ezequiel Moreno y Díaz
Dom Vital Maria<br />
Gonçalves de<br />
Oliveira<br />
Fizeram-me um pequeno relato<br />
sobre esse Bem-aventurado, que<br />
passo a ler.<br />
O Bem-aventurado Ezequiel Moreno<br />
y Díaz foi Bispo da cidade de Pasto,<br />
que faz fronteira com o Equador,<br />
onde está o Santuário de Nossa Senhora<br />
de Las Lajas, grande devoto<br />
d’Ela e importante promotor da<br />
construção do atual santuário.<br />
Um dado que chama especialmente<br />
a atenção é seu combate<br />
ao liberalismo que nessa época<br />
– fins do século XIX –, tanto<br />
na Colômbia quanto no Equador,<br />
estava atacando fortemente a Igreja,<br />
desapropriando os bens eclesiásticos<br />
e perseguindo o clero.<br />
Ele levou a luta contra o liberalismo<br />
ao ponto de escrever pastorais,<br />
nas quais chamava os católicos a se<br />
levantarem em armas contra o liberalismo,<br />
inclusive citando-lhes o exemplo<br />
dos Macabeus: Mais vale morrer<br />
do que viver numa terra devastada e<br />
sem honra (cf. I Mac 3, 59).<br />
A prédica desse prelado deu calor<br />
aos católicos especialmente durante<br />
uma guerra havida na Colômbia entre<br />
exércitos católicos e liberais, que se<br />
desenrolou ao longo de três anos, intitulada<br />
a “Guerra dos Mil Dias”.<br />
Outro traço da firmeza deste Bem-<br />
-aventurado foi o fato de ele ter lançado<br />
uma excomunhão contra todos os<br />
pais de família que enviassem os seus<br />
filhos a um colégio, cujo diretor era<br />
uma pessoa de doutrinas liberais. O tal<br />
diretor se transladou para o outro lado<br />
da fronteira e, com a anuência de um<br />
bispo equatoriano de ideologia liberal,<br />
começou a funcionar ali uma escola.<br />
Alguns pais colombianos mandaram<br />
seus filhos a esse colégio do Equador.<br />
Então, o Beato Ezequiel renovou<br />
a excomunhão, o que levou o bispo<br />
equatoriano a se queixar junto à Santa<br />
Sé. Resultado: a Sagrada Congregação<br />
dos Bispos desautorou o Bem-aventurado.<br />
Este foi a Roma – viagem que<br />
naquela época durava vários meses –,<br />
fez revisar todos os documentos no Vaticano<br />
e obteve que Leão XIII levantasse<br />
a condenação que havia recebido.<br />
A correia de São Tomé, característica<br />
dos agostinianos<br />
Isso é saber lutar bem! Notem a<br />
analogia com Dom Vital que, desautorado<br />
por uma carta de Pio IX, inspirada<br />
pelo Cardeal Antonelli, foi a Roma,<br />
obteve o julgamento do caso dele<br />
e a afirmação de Pio IX de que ele<br />
tinha andado bem. Portanto, a intriga<br />
havia subido até dentro do Vaticano.<br />
Passo a comentar o quadro. Estamos<br />
na presença de um religioso da<br />
Ordem de Santo Agostinho. Notam-se<br />
as insígnias episcopais: o solidéu<br />
roxo, a cruz peitoral e o anel<br />
pastoral. Em seu hábito ele traz a<br />
correia característica dos agostinianos,<br />
a qual, segundo me disseram,<br />
é uma reminiscência do<br />
Museu Paulista (CC3.0)<br />
cinto que Nossa Senhora levava<br />
consigo e que atirou a São Tomé,<br />
enquanto Ela subia ao Céu.<br />
Como sabemos, São Tomé foi<br />
o único Apóstolo que não assistiu<br />
à dormição e Assunção da Santíssima<br />
Virgem, no que se poderia ver<br />
uma severidade por causa daquela<br />
dúvida dele a respeito da Ressurreição<br />
de Nosso Senhor. E o que Nosso<br />
Senhor disse a ele: “Tu creste, Tomé,<br />
porque Me viste; bem-aventurados<br />
os que não viram e creram.” (Jo 20,<br />
29); é uma censura. Santo Agostinho<br />
diz sobre essa censura uma coisa extraordinária:<br />
que a Fé de milhões de<br />
homens pelo futuro pendeu do dedo<br />
de São Tomé, porque como há muita<br />
gente com a mentalidade que São<br />
Tomé tinha antes de tocar nas Chagas<br />
de Jesus, essas pessoas se sentem<br />
tranquilizadas com tal narração.<br />
Mais uma vez entram os desígnios<br />
ocultos, misteriosos e superiores da<br />
Combatentes antiliberais antes da Batalha de<br />
Palonegro, durante a Guerra dos Mil Dias<br />
<strong>Revista</strong> Credential Historia (CC3.0)<br />
27
Hagiografia<br />
Diego Delso (CC3.0)<br />
Santuário de Las Lajas<br />
Providência. Em última análise, São<br />
Tomé teve um momento de dúvida,<br />
mas desta dúvida a Providência tirou<br />
uma vantagem tão grande que nos<br />
perguntamos como Ela Se teria arranjado<br />
para produzir esse efeito, se<br />
São Tomé não tivesse duvidado. Tal é<br />
a complexidade dos fatos considerados<br />
do ponto de vista da Providência.<br />
São Tomé chegou atrasado, quando<br />
Nossa Senhora já ia subindo, e ficou<br />
naquele encantamento por vê-<br />
-La. Ela sorriu, desprendeu de Si o<br />
cinto e atirou para ele. Onde, uma<br />
vez mais, entram os tais desígnios da<br />
Providência. O único Apóstolo que<br />
não esteve presente foi ele; entretanto,<br />
pelo que conste, o único a receber<br />
uma lembrança d’Ela, quando já Se<br />
destacava da vida terrena e ia subindo<br />
ao Céu, foi ele. Tem-se vontade de<br />
dizer: “Bem-aventurado Tomé!”<br />
Distensão das grandes<br />
resoluções tomadas<br />
Mas voltando ao quadro, o olhar do<br />
Bem-aventurado Ezequiel Moreno es-<br />
tá fitando alto no horizonte. Esta atitude<br />
do olhar, uma pessoa romântica<br />
não tem. Porque ele está olhando para<br />
um ponto fixo, e o romântico não<br />
gosta de olhar nada de fixo, é um olhar<br />
“melado” que não se crava em nada<br />
porque fita sonhos interiores.<br />
O rosto dele está inteiramente distendido,<br />
não se nota nele a menor<br />
contração. Entretanto, não é a distensão<br />
comum do homem que dorme,<br />
mas é aquela forma de distensão que<br />
os irresolutos não têm. Estes possuem<br />
a distensão da moleza, parecem carnudos<br />
ainda que sejam magros. Aqui<br />
ele tem a distensão das grandes resoluções<br />
tomadas, do homem que resolveu<br />
tudo, entrou rijo no caminho por<br />
onde tinha que entrar e disse: “Vi, decidi<br />
e entrei! Haja o que houver, venha<br />
o que vier e custe o que custar, eu<br />
resolvi, aquilo eu faço!”<br />
Alguém poderia me perguntar:<br />
“Como o senhor nota isso?”<br />
Como notaria numa fisionomia viva.<br />
Quando o homem tomou uma grande<br />
resolução, algo fica marcado no rosto,<br />
onde a musculatura é definida e rija,<br />
mas ao mesmo tempo distendida, porque<br />
as dúvidas ficaram para trás e todos<br />
os sacrifícios que esse caminho traga<br />
consigo, vê-se que de algum modo<br />
ele os mediu, aceitou e pede a Nossa<br />
Senhora que o ajude a não recuar.<br />
Resolução absoluta do<br />
Redentor e de sua Mãe<br />
Santíssima durante a Paixão<br />
Creio que o modelo transcendental<br />
e infinito dessa resolução deveria<br />
estampar-se na face de Nosso Senhor<br />
depois que o Anjo O consolou,<br />
considerando etimologicamente<br />
o termo, ou seja, deu-Lhe força.<br />
No Horto das Oliveiras Ele pediu:<br />
“Meu Pai, se for possível afaste-<br />
-se de Mim este cálice, mas faça-se a<br />
tua vontade e não a minha” (Mt 26,<br />
39). Veio o Anjo e O fortaleceu (cf.<br />
Lc 22, 43). Ele que nunca estivera irresoluto,<br />
entretanto estava com toda<br />
a natureza humana d’Ele posta diante<br />
da previsão terrível da Paixão, mas<br />
com a determinação: “Deus Me ajuda,<br />
Eu aguento, agora vou.”<br />
28
Podemos notar essa resolução de<br />
um modo divino no Santo Sudário.<br />
Uma das notas que a Sagrada Face dá<br />
é precisamente de uma resolução absoluta:<br />
ela está machucada, cuspida,<br />
nota-se que o nariz sofreu uma pancada.<br />
Nosso Senhor morreu no auge<br />
de todas as dores, mas Ele deliberou<br />
resgatar o gênero humano e resgatou.<br />
Algo disso se deveria notar também<br />
em Nossa Senhora, no momento<br />
e depois do consummatum est:<br />
“Eu resolvi, Ele é meu Filho, Eu O<br />
ofereci ao Padre Eterno para isto.<br />
Aconteceu que meu oferecimento<br />
foi aceito e Ele morreu. Era o que<br />
Eu queria. Vamos para a frente!”<br />
É indizível isso, mas é assim. Esta é<br />
uma das razões pelas quais, sem ter<br />
nem de longe o atrevimento de negar<br />
o valor artístico da Pietà de Michelangelo,<br />
nego o valor religioso. A<br />
Pietà é um conjunto lindo; entretanto,<br />
o jeito de Nossa Senhora olhar<br />
para Ele não é aquela compaixão de<br />
quem contempla o fruto doloroso de<br />
sua própria resolução. Há qualquer<br />
coisa de mole, que não corresponde<br />
a quem acaba de beber a derradeira<br />
gota de fel e ver a última consequência<br />
da resolução tomada: “É terrível,<br />
é trágico, porém é o que Eu queria!”<br />
Compaixão é ter dor, sem dúvida,<br />
mas é participar da intenção sacrifical<br />
d’Ele.<br />
Diversidades de brilho da<br />
graça nas almas dos Santos<br />
J. P. Castro<br />
Percebe-se isso na postura do corpo.<br />
A cabeça não está nem um pouco<br />
numa atitude de galo de briga; é<br />
uma posição normal, mas alta, não<br />
tem nada de cabeça “heresia branca”<br />
2 , de nenhum modo. O corpo<br />
não está arqueado nem é preguiçoso,<br />
mas tem qualquer coisa de quem<br />
diz: “Não estou sequer fazendo força,<br />
porque todas as forças foram feitas.<br />
Está tudo consumado, chegarei<br />
até o fim.”<br />
Ele poderia se chamar “o Bem-<br />
-aventurado da grande resolução”.<br />
É bonito compararmos um Santo<br />
com outro, não para saber qual é<br />
o maior, mas para ver as diversidades<br />
de brilho da graça conforme a alma.<br />
Considerem este Santo em face<br />
de seus adversários. A atitude dele é:<br />
“Eu vos combato, mas estou muito<br />
além de vós! Meus olhos pousam em<br />
outros horizontes e minha alma ama<br />
outras grandezas.”<br />
Dom Vital Maria Gonçalves de<br />
Oliveira, o Bispo de Olinda e Recife,<br />
é diferente. Ele olha para o adversário<br />
como quem diz: “Atrevido, que<br />
ousaste levantar-te contra o Senhor<br />
Deus dos Exércitos e contra a Imaculada<br />
Conceição de Maria. Eu te enfrento!<br />
Estou te combatendo e tenho<br />
o gáudio de estar te derrotando.”<br />
O Beato Ezequiel polemiza, mas<br />
paira acima das polêmicas. Dom Vital<br />
não. Ele entra na polêmica como<br />
um tufão que leva tudo consigo. É<br />
outro modo de ser.<br />
A Igreja se exprime assim, e ainda<br />
de muitos outros modos. Por exemplo,<br />
a face triste, inabalável, resoluta<br />
e angelical de São Pio X; a fisionomia<br />
batalhadora, desconfiada, férrea<br />
e dulcíssima de Santa Bernadete Soubirous.<br />
E assim poderíamos ir comparando<br />
as mil maneiras de brilhar a<br />
fortaleza católica. A do Bem-aventurado<br />
Ezequiel Moreno y Díaz é uma<br />
maneira altamente enlevante. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
14/11/1980)<br />
1) Canonizado em 11/10/1992.<br />
2) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />
sentimental que se manifesta na piedade,<br />
na arte e na cultura em geral.<br />
As pessoas por ela afetadas se tornam<br />
moles, medíocres, pouco propensas à<br />
fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />
esplendor.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Na fisionomia do Beato Ezequiel<br />
Moreno y Díaz notamos algo que eu<br />
poderia dizer que está à altura de alguém<br />
que adorou e se embebeu profundamente<br />
do consummatum est.<br />
Vê-se que ele está para além dos sacrifícios,<br />
das resoluções e das dúvidas.<br />
A atitude dele é de como quem<br />
diz: “Já sofri muito e talvez tenha<br />
muito por padecer, mas resolvi sofrer<br />
isso para atender à vontade de<br />
Deus. Nossa Senhora obteve d’Ele<br />
esta força, e eu sigo até o fim.”<br />
Santa Bernadete Soubirous<br />
São Pio X<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Admiração:<br />
suprema alegria!<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Devemos ter uma postura<br />
habitual de admiração<br />
pela qual sejamos<br />
capazes de ver nas almas<br />
dos outros toda a beleza<br />
existente ou desejada por<br />
Deus. Ao mesmo tempo,<br />
precisamos considerar<br />
nelas o que é diferente<br />
disso, para rejeitar. Essa<br />
posição continuamente<br />
admirativa nos dá<br />
a possibilidade de<br />
discernir o bem e o mal,<br />
a verdade e o erro, o<br />
belo e o feio. Sem isso, a<br />
vida não é interessante.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> diante da Catedral Notre-Dame de Paris, em 1988<br />
Por ser espiritual, a alma é de uma categoria<br />
muito superior ao corpo. Por<br />
isso, ver em alguém o reflexo de algo<br />
que há em sua alma vale incomparavelmente<br />
mais do que considerar aspectos materiais.<br />
A admiração enche a vida de alegria<br />
Por exemplo, discernir a alma de um homem<br />
que está recolhendo lixo numa rua<br />
30
qualquer tem muitíssimo mais valor do que admirar<br />
a coroa magnífica do Xá da Pérsia, de tal maneira<br />
uma alma bem entendida é mais valiosa, ainda que<br />
seja uma alma deformada em que reconheço defeitos<br />
repugnantes, aos quais adquiro horror e me uno<br />
a Deus que os execra também.<br />
A meu ver, o pitoresco da profissão de lixeiro está<br />
em que ele vive lutando contra o lixo e conservando a<br />
chama de seu espírito no meio do lixo; é um batalhador<br />
contra a sujeira, um antilixo. Logo, é bonito ser<br />
lixeiro. Tudo isso mostra o aspecto bonito da vida.<br />
Conhecer uma alma e perceber no que ela é conforme<br />
ou contrária à Igreja Católica, notar as afinidades,<br />
as desarmonias, a beleza interna de todo esse<br />
universo que é uma alma, enfim, admirar a alma enquanto<br />
alma faz-me compreender melhor ainda como<br />
deve ser magnífico Deus, puro espírito.<br />
Quem me conhece há anos me viu nas mais variadas<br />
circunstâncias, até mesmo quebrado, espancado<br />
por um desastre de automóvel. Contudo, nunca me<br />
presenciaram com tédio, com ar de quem não tem<br />
o que pensar porque, ainda que seja para prestar<br />
atenção num interlocutor o mais sem graça que seja,<br />
fico admirando como ele é um homem sem graça…<br />
Jamain (CC3.0)<br />
Onbekend / Anefo (CC3.0)<br />
Fate Ali Xá Cajar, segundo xá do Império Cajar<br />
Museu Louvre-Lens, França<br />
Coletor de lixo em 1945 - Jordaan, Holanda<br />
Entretanto, se é tão atraente<br />
analisar um homem, como deve ser<br />
prodigiosamente mais interessante<br />
conhecer as miríades de Anjos! Ver<br />
passar diante de mim tal e tal Anjo,<br />
todos interessantíssimos, curiosíssimos,<br />
com reflexos magníficos,<br />
rutilantes, que estupendo! Compraz-me<br />
imaginar quando eu, pela<br />
bondade de Nossa Senhora, estiver<br />
no Céu, como será poder cruzar<br />
com os Anjos nas vastidões celestes<br />
e perceber as harmonias magníficas<br />
deles. Por detrás e por cima está<br />
Nossa Senhora, Rainha dos Anjos<br />
e mais bela, Ela só, do que to-<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
The Yorck Project (CC3.0)<br />
Coroação de Nossa Senhora, por Fra Angelico - Museu do Louvre, França<br />
dos eles juntos; e acima d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
Homem-Deus.<br />
Vemos, assim, como a posição de admiração enche a<br />
vida de interesse, de alegria. Não é uma tristeza, uma<br />
cruz a carregar, mas é ter asas. Rejeitar a admiração<br />
porque ela pesa, equivaleria a um sujeito tão preguiçoso,<br />
que se um Anjo lhe oferecesse asas, ele dissesse: “Mas eu<br />
já carrego pernas e braços, e ainda vou ter que levar essas<br />
asas nas costas?” Ó seu tonto, você não percebe que<br />
são as asas que o carregam e não você que as carregará?!<br />
Transformar essa admiração em asas que nos levem<br />
é o que devemos desejar, adquirindo uma capacidade de<br />
ver nos outros toda a beleza existente ou que fosse desejada<br />
por Deus. Mas, ao mesmo tempo, devemos considerar<br />
neles o que é diferente disso, para rejeitar e to-<br />
32
NOAA (CC3.0)<br />
mar horror, crescendo assim<br />
no amor ao Criador. Essa posição<br />
continuamente admirativa<br />
nos dá a possibilidade<br />
de discernir o bem e o mal,<br />
a verdade e o erro, o belo e o<br />
feio. Sem isso, a vida não é interessante.<br />
Simbolismo do<br />
peixe-voador<br />
Se, por exemplo, estou viajando<br />
para a Europa em um<br />
transatlântico, tendo a meu<br />
lado um homem da Nova Zelândia, o qual conheci naquele<br />
instante, vemos passar, de repente, uns peixes-voadores<br />
e ele me diz:<br />
— Que interessante é ver um peixe-voador!<br />
Eu penso: “É mesmo interessante, mas mais interessante<br />
é analisar o efeito do peixe- voador na alma desse<br />
neozelandês.” Não obstante, embora conhecer esse homem<br />
valha mais do que conhecer o peixe, não vou deixar<br />
de conhecer um para conhecer o outro. Quero conhecer<br />
ambos e admirar o que Deus pôs de admirável<br />
neles, como também censurar o que há de censurável<br />
ou defectível.<br />
O peixe-voador, por exemplo, pode ser visto como a<br />
imagem da veleidade de um indivíduo que faz sonhos<br />
Viver analisando é a<br />
alegria de viver, porque<br />
é viver amando, odiando,<br />
voltado para Deus<br />
Nosso Senhor... esta<br />
é a posição normal<br />
do católico, e para<br />
isso nos são dadas<br />
graças especiais.<br />
e não é capaz de os realizar: vive dentro da água, pula<br />
para fora e afunda de novo... Por um lado, olho e digo:<br />
“Que elegância! De algum modo supera a todos os peixes.<br />
Mas, por outro: “Que desilusão! Ele quis ser ave e<br />
não conseguiu.”<br />
Olho para meu interlocutor e pergunto:<br />
— Você gosta de peixe?<br />
Ele pensa que estou falando sobre peixe, quando de<br />
fato estou analisando a ele. Uma viagem assim, para<br />
mim, alcançou pleno êxito. É desse modo que se vive.<br />
Viver analisando é a alegria de viver, porque é viver<br />
amando, odiando, voltado para Deus Nosso Senhor, ou<br />
seja, odiando o que é contra Ele e amando o que Lhe é<br />
favorável.<br />
Alguém poderá objetar:<br />
“Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, será verdadeiramente<br />
possível uma pessoa<br />
ter na cabeça tudo quanto<br />
o senhor acaba de dizer? É de<br />
se pedir a alguém que tenha<br />
esse estado de espírito, essa<br />
mentalidade?”<br />
Insisto no que disse anteriormente<br />
1 : esta é a posição<br />
normal do católico, e para isso<br />
nos são dadas graças especiais.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência em 1990<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Sebastião C.<br />
São Domingos Sávio - Basílica de<br />
Maria Auxiliadora, Turim, Itália<br />
Conferência sobre São Domingos Sávio<br />
Certa ocasião li uma biografia de São Domingos Sávio,<br />
Santo salesiano que foi, em certo sentido, um dos<br />
discípulos perfeitos de um verdadeiro grande Santo, São<br />
João Bosco.<br />
Essa leitura correspondeu a um apuro em que me encontrava:<br />
fui convidado pelos salesianos de São João del<br />
Rey a fazer um discurso sobre São Domingos Sávio, e<br />
aceitei sem mais pensar. Eles mandaram um aviãozinho<br />
para me pegar em São Paulo, embarquei e, quando deixei<br />
todas as minhas atividades para trás, já sentado no<br />
avião, pensei: “Bem, agora tenho essa conferência sobre<br />
São Domingos Sávio... Mas como vou fazer uma exposição<br />
a respeito de quem não conheço nada?”<br />
Cheguei lá para o almoço, onde estavam o Arcebispo,<br />
o Prefeito e outras notabilidades de São João del Rey.<br />
Avisaram-me que a sessão seria soleníssima, na maior<br />
igreja da cidade. Haveria, portanto, milhares de pessoas<br />
presentes, e confirmaram que eu deveria falar sobre<br />
São Domingos Sávio. Pensei: “Mas agora, como vou fazer<br />
isso?”<br />
Terminada a refeição, eu disse ao padre responsável<br />
pelo evento: “O senhor poderia me arranjar um lugar<br />
para descansar, porque gostaria de fazer uma sesta antes<br />
da sessão. E também uma biografia bem pequena de<br />
São Domingos Sávio?”<br />
Ele me deu um livrinho bem popular que trazia traços<br />
da vida do jovem Santo, que morreu aos 14 anos de<br />
idade. O que teria de extraordinário? Li aquilo e pensei:<br />
“Daqui não tiro nada... O que vai sair como discurso,<br />
não sei. ‘Salve Rainha, Mãe de Misericórdia!’” E por<br />
incrível que pareça, dormi.<br />
Acordei e, enquanto me preparava para ir à igreja,<br />
ocorreu-me a seguinte ideia. O livro continha a narração<br />
de fatos que indicavam, entre outras coisas, o quanto<br />
a vida de São Domingos Sávio fora marcada por uma<br />
seriedade enorme, desde pequeno. Embora o autor não<br />
ressaltasse este aspecto, nos episódios contados por ele<br />
isto transparecia. Por exemplo, quando ia para o colégio,<br />
São Domingos levantava cedinho, ainda antes da aurora,<br />
e às vezes, com a neve caindo, viam-no passar em<br />
frente à igreja paroquial da aldeiazinha onde moravam<br />
seus pais, ajoelhava-se no pórtico da igreja, ainda fechada,<br />
tirava o chapéu e, se fosse preciso, na neve, ele ficava<br />
rezando durante algum tempo terminando as suas orações<br />
da manhã. Depois punha o chapéu de novo e caminhava<br />
para o colégio. Quem o via andar por detrás diria:<br />
é a miniatura de um homem!<br />
Fiz a minha conferência a respeito disso e Nossa Senhora<br />
me ajudou, pois logo no começo, quando eu disse:<br />
“Ele deveria chamar-se o Santo da seriedade”, todos<br />
que conheciam bem São Domingos Sávio compreenderam<br />
corresponder tanto à verdade que foi uma longa salva<br />
de palmas. Compreendi que estava no ponto e podia<br />
prosseguir. Foi um grande alívio e a conferência se fez a<br />
contento de todos.<br />
Digo isto para ressaltar como de uma narração da vida<br />
de um menino, lida em um livreco, pode-se fazer a reconstituição<br />
da mentalidade dele.<br />
O mais importante na vida é ler as almas<br />
Vemos, assim, o quanto os menores episódios são interessantes,<br />
pois o que Deus colocou principalmente na<br />
vida para nós lermos são as almas: admirar as virtudes,<br />
as qualidades, detestar os defeitos; conhecer as nossas<br />
qualidades e amá-las, conhecer os nossos defeitos e detestá-los.<br />
Lembro-me de uma época de minha vida, ainda em<br />
menino, em que eu me perguntava a mim mesmo o seguinte:<br />
“Quem sou eu? Eu me defino por onde? Quais<br />
são as características principais de minha alma e de que<br />
maneira elas correspondem aos traços de meu rosto, ao<br />
feitio de meu corpo, e o que devo acrescentar em mim pa-<br />
34
a que os outros vejam o que sou e para eu representar<br />
o meu papel na vida, sendo aos olhos dos outros aquele<br />
que sei claramente que devo ser?”<br />
Isso vinha com um certo tormento quando eu sentia<br />
que não era bem expresso e que os outros me tomavam<br />
mais ou menos como um anônimo, me tratavam como se<br />
eu fosse o que não sou, ora para mais, ora para menos,<br />
mas sobretudo para outra coisa. Uma sensação de mal-<br />
-estar, até que me compus como eu achava que era, dando<br />
minha expressão ao que deduzi de minha alma: “O<br />
que minha alma tem de bom é tal lado assim, o que ela<br />
tem de ruim e que preciso vencer é tal aspecto. Esse lado<br />
ruim devo vencer por uma qualidade muito<br />
preponderante em sentido contrário, e que,<br />
portanto, a minha personalidade apareça<br />
muito, sob pena de eu não ter identidade verdadeira,<br />
de não ser sincero; construo um modo<br />
de ser onde sou inteiramente eu mesmo.”<br />
Como se consegue isso? É um fruto da admiração.<br />
Admirando, se discerne; discernindo,<br />
escolhe-se; escolhendo, aceita-se ou rejeita-se.<br />
Sem admiração não há nada disso. Quer dizer, para o trabalho<br />
da inteligência e da observação, ter padrões segundo<br />
os quais se veem as coisas é absolutamente fundamental.<br />
Deixo estas considerações entregues à meditação de todos,<br />
para compreenderem como é normal ser como estou<br />
descrevendo e, pelo contrário, como é inumano não ser assim.<br />
Devemos, portanto, censurar os ambientes sem admiração<br />
e admirar os ambientes nos quais se admira. v<br />
(Extraído de conferência de 15/2/1977)<br />
1) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 256, p. 32-33.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em visita ao Castelo<br />
de Chambord, França<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em frente à Basílica de<br />
São João de Latrão, Itália<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em Veneza, Itália<br />
35
Flávio Lourenço<br />
Imaculado Coração de Maria<br />
Mosteiro da Sagrada Família,<br />
Ciudad Rodrigo, Espanha<br />
O Coração no qual reside a Contra-Revolução<br />
Nossa Senhora é Rainha dos corações enquanto tendo um poder sobre a mente e a vontade dos homens.<br />
Este império, Maria o exerce, não por uma imposição tirânica, mas pela ação da graça,<br />
em virtude da qual Ela pode liberar os homens de seus defeitos e atraí-los, com soberano agrado<br />
e particular doçura, para o bem que Ela lhes deseja.<br />
Esse poder de Nossa Senhora sobre as almas nos revela quão admirável é a sua onipotência suplicante,<br />
que tudo obtém da misericórdia divina. Tão augusto é este domínio sobre todos os corações, que ele representa<br />
incomparavelmente mais do que ser Soberana de todos os mares, de todas as vias terrestres, de todos os astros<br />
do céu, tal é o valor de uma alma, ainda que seja a do último dos homens!<br />
Cumpre notar, porém, que a vontade do homem moderno, com louváveis exceções, é dominada pela Revolução.<br />
Aqueles, portanto, que querem escapar desse jugo devem se unir ao Coração por excelência contrarrevolucionário,<br />
no qual, abaixo do Sagrado Coração de Jesus, reside a Contra-Revolução: o Sapiencial e Imaculado<br />
Coração de Maria.<br />
(Extraído de conferência de 31/5/1972)