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Cactus_ Grossi, o Antigo_ (2013-19)_

Dizem existir tão rudes entre nós, e sem essas impressões de decepções que nos contornam pela desconfiança; reclamando e sendo só uma chatice estendida, falam também que ser ilusória a tentação, inequivocamente.. mas não esqueça que esta é uma obra de ficção, esteja sem travas ao ler.

Dizem existir tão rudes entre nós, e sem essas impressões de decepções que nos contornam pela desconfiança; reclamando e sendo só uma chatice estendida, falam também que ser ilusória a tentação, inequivocamente.. mas não esqueça que esta é uma obra de ficção, esteja sem travas ao ler.

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Aviso 1.<br />

Para você, que adquire este livro na forma física, o preço (quando não,<br />

apreço!) terreno atribuído às obras do presente autor apenas se<br />

justificam pelos meios de produção e sua posterior divulgação. A fé em<br />

Deus, à Luz e ao Bem Comum, é e sempre será o intuito desta vida, por<br />

enquanto durarem seus dias.<br />

Agradeço a todos a oportunidade, e que nossos erros possam ser<br />

perdoados.<br />

Que a Paz esteja em nós!


Aviso 2.<br />

Dizem existir tão rudes entre nós, e sem essas impressões de decepções<br />

que nos contornam pela desconfiança; reclamando e sendo só uma<br />

chatice estendida, falam também que ser ilusória a tentação,<br />

inequivocamente.. mas não esqueça que esta é uma obra de ficção, esteja<br />

sem travas ao ler.


“PARTE UM”


– I –<br />

ANTES DA ALGAZARRA,<br />

DURANTE A BEBEDEIRA<br />

Volteiam, giram sobre si em tantas energias más; é assim ali antes da<br />

algazarra, durante a bebedeira... a palhaçada de sempre. Os amigos<br />

presepeiros Felipe F. Santos e Lucas “Dê” Carlo comemoram o plano<br />

perfeito para as suas limitadas concepções; preveem como vai ser<br />

também o seu assalto de colarinho branco, assalto esse que lhes trará<br />

estabilidade (e dinheiro!) por um tempo. “Maneiro, maneiro...”, falam e<br />

cospem. É tão amortecedor. Eles odeiam o trabalho, adoram a<br />

adrenalina marginal do roubo. Foi tudo antecipadamente planejado e<br />

revisado com perícia um milhão de vezes, mas... em síntese, calhou bem<br />

fosco com idas e vindas ao local, consultas e tocaias; seria maneiro! Para<br />

esse tipo de escolha, tudo é maneiro.<br />

É, pois é... já leram um manifesto comunista e têm apreciação típica pela<br />

vida do tal Che Guevara, a parte despótica. A América Latina devia<br />

saber mais quem realmente foi esse Che, o que e fez como Che; sabemos<br />

tratar nossos ídolos??? Sabemos da nossa importância? Mas isso não<br />

vem ao caso agora, já sabem! Ou seja, os dois em questão são<br />

historiadores das bobeiras dos rapazes do 2° grau, apaixonados por<br />

guerras e filmes de um homem só. Tolos, não têm nem ideia de como<br />

foram moldados e expostos à recolonização! Então serão para sempre<br />

apenas bandidos juvenis, nada de pais de família desesperados por<br />

sustento pros seus filhos magros com barriguinha de girino :/ São<br />

mesmo estúpidos, desinformados, modistas – a casa deles é lá no c** do<br />

Conde! Ouvem música pop deste bimestre e vão às festas hipócritas da<br />

sua idade. Ora vagabundos natos, ora os que querem mesmo é diversão<br />

e ganhar um troco fácil desconhecendo o empenho das pessoas que têm<br />

o suor da recompensa; Felipe e Dê, os mesquinhos e egoístas fáceis<br />

demais para tais compreensões, mas “seria maneiro o que fariam”,


diziam um ao outro entre goles. Essas coisas são para aparecer. É um<br />

teatro, em todo lugar há gente assim, fazendo-se de, fingindo,<br />

simulando... lamentando. Ah, a cerveja no coração pueril... E riam, pois<br />

saía fácil. “E responsa!”<br />

Enfim... O plano era sair desse bar que estão bebendo uma gelada de<br />

R$ 1,70, vocês sabem, Itaipav... atravessar a rua e subir rapidamente a<br />

esquina que dá de frente à entrada do prédio, encarando suas escadas<br />

até o consultório daquela sala protética. Tudo o que devem fazer é ir até<br />

lá fingindo procurar quaisquer das salas do edifício, arrombar a porta e<br />

levar toda a aparelhagem necessária. Querem aqueles utensílios, peças<br />

valiosas para vender pro tal Otacílio, comprador desses da vida, um<br />

arquétipo. Tudo fora já combinado antecipadamente, ele pagaria um<br />

preço abaixo do valor de mercado para ele mesmo e ainda por cima<br />

muito lucrativo aos dois caras em questão. Que é isso... fazer direito<br />

ninguém quer!


– II –<br />

PERFEITO!<br />

É! Abrir a porta foi fácil, usaram sua aparelhagem e o pé-de-cabra dos<br />

céus. Foi tudo silencioso, tranquilo; o lugar fechara às 5 da tarde. Agora,<br />

6:30, quase não tinha mais movimento neste andar, o terceiro de cinco.<br />

Além disso, era um prédio comercial abastado.<br />

Eles entram e, ainda zonzos e brilhosos por causa da bebida, começam<br />

a fuçar todo o consultório, recolhendo as situações caras précombinadas,<br />

enquanto riem e fazem piadas. Brincam cochichando, só<br />

aquele zumbido. Uma grande diversão essa de remexer as tralhas tão<br />

humilhantes para algumas pessoas. Relembram suas passagens<br />

engessadas anteriores e troçam do que dizem ser tanta boa-vida, têm<br />

poeira nos olhos.<br />

Um deles, no caso o “Dê” Carlo, começa a abrir gavetas enquanto Felipe<br />

sacaneia com recortes de gesso fedorentos. Me pergunto, caros leitores,<br />

a idade mental desses demônios da sociedade... “Dê” mexe nos<br />

relatórios e receitas médicas e começa a ler alguns laudos técnicos – os<br />

primeiros são de crianças com seus tratamentos de lesões. Logo ele acha<br />

um caso interessante, o de um rapaz de dezoito anos que sofreu um<br />

trauma e esmagou as duas pernas. Eles riram muito da falta das pernas<br />

do “Romário”; escroteavam esse infeliz, esse otário. Enquanto<br />

baforavam álcool, saíam piadas da condição desse rapaz desgraçado.<br />

Tinham o tempo a seu favor. Escapuliu inclusive um punzão do Felipe.<br />

O peito doía de tanto gargalhar, né. “Dê” leu vários boletins do<br />

tratamento. “Jonas, esse chicletinho se chama isso?” Riram e imaginaram<br />

como foi... a fatura! E o tempo se desdobra como um tecido sujo<br />

mostrando uma outra época, a era desse Jonas.


– III –<br />

O INÍCIO DOS ANOS 2000<br />

Jonas, um rapaz sadio e aparentemente normal em todos os sentidos<br />

que esta palavra banal pode conceber – saúde, moradia, estudo, pais etc,<br />

essas mesclas. Vem de família de classe média carioca, faz cursinho<br />

preparatório pré-vestibular, tenta ingressar em alguma faculdade de<br />

Geografia, das três públicas melhorzinhas que o Rio de Janeiro oferece;<br />

tem boa aparência – as garotas até o acham bonitinho, e ele tirava onda.<br />

Usava roupas da tevê e ainda gozava de vivacidade. Enfim, um carinha<br />

besta qualquer que sai para as mesmas festas e se diverte como outro,<br />

tipicamente formigáceo, totalmente distraído das complicações adultas,<br />

beirando o ridículo, insensível à temporalidade que é a vida lá fora na<br />

realidade da penetração do mercado trabalhista... torrando e rasgando<br />

o patrimônio dos pais sem se dar conta, quem dera se arrepender. Um<br />

algo normal, quase macabeano. Se fosse um anúncio viria como<br />

“Chocolates e doces de Cosme & Damião. Mais doces, mãezinha, que<br />

tá frio... pros teus meninos nada homens.”<br />

Partindo disso, seguimos para o começo da tragédia dele; a princípio, é<br />

o que interessa!


– IV –<br />

UMA VEZ<br />

A coisa se desvia para algum passado! Jonas e seus amigos fúteis<br />

resolveram dar uma festa na casa de um deles, e a festa em questão seria<br />

de fantasia. Quem tem o que fazer na cidade neste incipiente século<br />

XXI??? Só se esvaziar... Imaginaram que devia ser um abatedouro de<br />

garotas, a libido sem fim e desvirginação livres. Ele iria vestido de<br />

operário de metalurgia; até mesmo usou uniforme azul e etiqueta<br />

bordada com seu próprio nome; embaixo estava escrito entre aspas<br />

‘bêbado’. Não sei que tipo de ser iria se interessar por aquilo, mas, bem...<br />

continuemos... pressentindo o ruim!!!<br />

Então, a festa aconteceu em uma casa um pouco afastada do centro do<br />

bairro de Jonas, o distrito de Souza-Cruz, o antro de bestialidade. Na<br />

fatídica noite, ele bebeu muita cachaça e usou uma quantidade<br />

considerável de cocaína – era um hábito que, naquele verão, final de<br />

dezembro, estava se intensificando na sua rotina festiva. Idiota ou não,<br />

ele ainda achava estar é abafando fazendo essas paradas. Ficou, pois, em<br />

estado acelerado a noite inteira, cheiradão, é assim que dizem, dando<br />

cabeçadas, até quando era chegada a hora de seus amigos pegarem o<br />

carro, só ali que ele começou a voltar a si, muito provavelmente para<br />

não aparecer tão ‘chamadão’ ao lar construído pelos pais – ah,<br />

obviamente não pegou nenhum espécime humano, nem ia dar certo.<br />

Jonas, o Zé Droguinha lambendo as feridas. “Hunnf, eu sei que sô mó<br />

arame liso. Tá, eu explico, é que cerco mas num arranho... danou-se”,<br />

esclareceu pro colega ao lado. E depois continuou se desculpando aos<br />

berros que “Eu me basto, é” Mas que porcaria de cara de bucha é essa,<br />

homem???<br />

Escolham seus lados, o que quiserem, pois Jonas escolheu todos os<br />

motivos dele!


– V –<br />

EM ALTA VELOCIDADE<br />

Voados, cigarros nos dedos fumaçando pela janela, relógios de prata,<br />

praticavam brincadeiras adolescentes inconsequentes, como atirar<br />

garrafas de cerveja para fora do carro e xingar pessoas que andavam pela<br />

rua. Tudo normal para eles. Zoando, vendo outros caindo pelo<br />

acostamento, cagados de medo no mato!<br />

Mas, de repente ou não!... uma moto apareceu na frente do carro em<br />

um daqueles cruzamentos; o cara da moto olha, encara rapidamente os<br />

meninos pela fresta do visor. Eles imediatamente fogem pela esquerda,<br />

pensando que seriam assaltados. O Rio é brabo! Ainda voando,<br />

discutem entre si rapidão sobre qual caminho tomar para sair o mais<br />

depressa daquela cena. O motorista do carro deles, um dos chegados de<br />

Jonas, enquanto isso, não vê um quebra-molas, este da cor da pele, e<br />

passa por cima do troço e a lata-velha vai para o acostamento, resvala<br />

em um poste... e faíscas. Jonas é incrivelmente arremessado pelo parabrisa<br />

e cai no asfalto molhado de água da chuva e sereno. Só viu um<br />

clarão na frente, e era seco e espantoso e lhe ofuscou tudo. Por uns<br />

segundos não sentira nada, depois veio o frio e o susto. Tinha lixo de<br />

porco no chão, e sinos soavam naquele trininin... Caiu de lado batendo<br />

o ombro e parte do rosto no chão. Quebrou a clavícula e dois dentes,<br />

além de ter se ferido bastante, arranhado e coisa e tal; é claro que isso<br />

foi pouco perante uma possível morte, mas capaz de fazer um estrago<br />

emocional considerável. E foi aí que desandou a maionese...<br />

psicologicamente.<br />

Jonas na pista, solta uma lágrima e outro carro, mais um automóvel<br />

passa por ele, acima dele, por sua base e lhe esmaga as pernas.<br />

Nem adianta tentar comparar tudo o que passou com aquele velho<br />

sentimento sentado em um ponto de ônibus vazio com ele mesmo! Sim,<br />

a aula acabara. Felizes, amigos e amigas, indo para casa com seus deveres.


Com a mochila nas costas e sorrisos nos rostinhos, lancheiras vazias,<br />

saciadas. Todos caminhando para os lares, mas você não, Jonas!<br />

Doce menino, cabelo escorrido e gordinho. Adorável como um<br />

brinquedo de recém-casados. Os segundos vão passando e pessoas<br />

também. Vento, folhas, carros, bicicletas, um ônibus e ninguém vem.<br />

Somente a angústia para o coração.<br />

“Meu ponto de ônibus, dizia a cria, aqui tem papai e mamãe? Por que<br />

o sol tá azedo? E as nuvens tristes, lá, lá, lá na pista?”<br />

Nem o orgulho aguenta, nem a força juvenil, nem as pernas cansadas.<br />

Milhões de olhares e minutos traumatizantes.<br />

“Lá, lembranças são ruins. Já não tem mais ninguém, só eu”, diria<br />

também.<br />

Assim, neste ponto de ônibus vazio com ele mesmo, na pista, quanta<br />

agonia para quem veste esse uniforme de criança sadia. É o que tenta!<br />

Mas alguém se esqueceu de ligar o carro ou dar um telefonema.<br />

Revê, Jonas! Reflete caído!! E depois de uma longa espera nesse banco,<br />

devaneia mais:<br />

“Aqui tou eu! Que que houve, tia? Mamãe te deu a mesada? Nossa<br />

senhora empregada, me diz.”<br />

“Não, filhinho... A casa tava cansada”, sábia, a empregada se cala.<br />

Volta para tua realidade, Jonas, enxuga as desavenças! Só sonha quem se<br />

deixa.


– VI –<br />

A MOTO SEGUIU<br />

Aquele motoqueiro foi o último que viu o rapaz ainda inteiro, agora<br />

tudo é depois, se afasta.<br />

Jonas agoniza para todo lado “Ai, caraca, não, não, me lasquei,<br />

arghnnn...”<br />

Beirando o estúpido, uma noite desperdiçada, uma história nova a ser<br />

contada, fora dos noticiários, cuspida pelos cantos, entre fofocas... o ser<br />

estendido suspende sua feijoada, o porco deu sinal de vida, o coveiro foi<br />

enterrado no lugar.<br />

Seus amigos, chocados demais com a nova imagem, de peitos<br />

pressionados, ainda conseguiram ligar para os pais do Jonas, e eles<br />

apareceram rapidamente para o socorro, deixando a cama de casal<br />

quentinha para trás – meça agora a desintegração da família e da ordem<br />

natural, Jonas. Alguém disse “Papai e mamãe são legais nessas horas,<br />

cara... mas na hora da farra ninguém pensa.” Muitos curiosos se<br />

empurravam para ver aquele resultado.<br />

Mas o filho era do medo. Ele sangrava muito e, desesperado, esperneava,<br />

babava, dizia que sua vida estava arrebentada. Era o Inferno? Não, era a<br />

Terra ainda, lar dos teus equívocos.<br />

Foi levado a um hospital, o mais perto, onde recebeu os primeiros<br />

socorros e engessaram sua clavícula, mastigando todo o resto dentro da<br />

bandagem. Jonas teve a pior notícia, na sua concepção, a fratura nas<br />

pernas foi pior do que seus amigos tentavam tranquilizar. Diziam<br />

“Calma, calma, cara”, mas ele perderia definitivamente aquelas hastes,<br />

não havia só como colar os caquinhos. Pode-se dizer que ficou, é...<br />

desfiguradinho! Teria de fazer um possível remendo, e, assim, definhou<br />

pela primeira vez. “Sou um aleijado, ai meu Deus!”, repetia. Deus foi<br />

citado, hummm, entendo.


Era um domingo, e na segunda-feira seria feriado, portanto, Jonas ainda<br />

passou o resto do final de semana se sentindo um monstro... e realmente<br />

estava, tanto que as pessoas olhavam e faziam cara de nojo, o cocô dos<br />

cocôs!... mas nojo contido para não magoar tanto o garoto, só um<br />

pouquinho. Ele poderia se consultar na terça-feira, é o que dava.<br />

A boca inchada, lábio ferido, vermelho demais, os pedaços em um<br />

latejar de dor horária. Tem teus analgésicos, pois é, valente. Impotente,<br />

sem um grande grito... toda aquela normalidade agora ia desencaixada,<br />

era menor, domesticado. É outra época, se liga. Mártir imbecil... o<br />

macaco de estimação da família.


– VII –<br />

A PRIMEIRA NOITE DEPOIS DO ACIDENTE<br />

Nada parecia verdade, ele achava que tudo tinha sido um sonho desses.<br />

Mas a quimera daquela noite não traria a realidade no novo dia.<br />

Diante disso, papeia com sua mãe:<br />

– Caramba!!! Me dá um traguinho, mãe... no peito, tô chei de marca,<br />

mãe, nem posso me olhar.<br />

– Que fumar porcaria nenhuma! E deixa de ser melodramático, garoto.<br />

É claro que pode se olhar, cê é lindo. Isso conserta, meu filho. Tenta<br />

não ser tão assim.<br />

– Ah, tá, é claro... mas foi com quem que isso aconteceu?<br />

– Você deve ter merecido, mas vamos dar um jeito.<br />

– Bora, ali na esquina deve vender um par de pernas novas.<br />

– Mas e as razões de ter acontecido? Não pode sair por aí se dizendo<br />

um pobre coitado se o que você fazia não era certo. Eu que sou mãe já<br />

cansei de reclamar, quero é atitudes. Já pensou na possibilidade de ter<br />

sido uma punição? Ou uma dádiva, filho... – ela dá uma tragada<br />

profunda, soltando pelo canto da boca apenas um pouquinho da<br />

fumaça usada.<br />

– Dádiva de cu é rola! Isso uma dádiva? Que bosta de crítica pesada,<br />

hem!? Olha para mim, se põe no meu lugar um segundo. – ele mostra a<br />

boca desdentada, toca as pernas inertes, sem graça e vermelhas à mãe.<br />

Ela se contém, esboça uma reação, mas sem resposta imediata. Olha pro<br />

lado.<br />

– Desbocado.<br />

– Você é meu exemplo.<br />

– Hunnf. Lembra que eu te falei para não sair naquele dia? Era Anonovo!<br />

Chovia, você me sai de havaianas por aí, sem proteção alguma.<br />

Podia ter morrido, caramba!<br />

– Eu morri.


– Para com isso! Já disse que tem como remediar. Vai custar tempo, e<br />

ah, inclusive meu dinheiro, né... mas você volta a ter uma vida normal,<br />

como antes.<br />

– Antes... é uma lembrancinha indecente. Nem consigo mais sorrir,<br />

minha boca tá dormente e inchada, podre de tudo. Eu não ando, não<br />

tenho mais esse direito! Eles vão arrancar minhas pernas, cê vai ver.<br />

Fedeu! Ainda tenho cortes e sangue no rosto. Viu!? Por que fizeram isso<br />

logo comigo? Vou me calar, não consigo nem falar com os outros... pura<br />

vergonha – disse Jonas, já meio que baixinho, tolo, comendo as sílabas,<br />

inocentando-se.<br />

– Continuará a ser como sempre foi, vai sim. Olha, dá até pra usar<br />

muletas, nem vai necessitar de uma cadeira de rodas. Quem realmente<br />

gosta de você não vai ligar, pelo contrário, vai dar apoio para tratar esse<br />

problema. Existem pessoas que gostam da gente.<br />

– Um problema... Quero me negar nessa – sussurra a ponto de explodir.<br />

– Filho..<br />

– Me cago na droga toda!!! E todas as outras pessoas? Eles sabem do<br />

meu trauma? Eles entendem? Meu consolo não é nas drogas das<br />

zombarias – aumenta o tom e leva a mão à boca.<br />

– Jonas, olha esses palavrões! Tem que passar por isso, vai te fazer maior.<br />

Você sai mais maduro tendo um problema considerável a cuidar,<br />

acredita em mim, ouve tua mãe. Infelizmente, vai ter que crescer de um<br />

modo drástico – e ela dá outra tragada forte e passa a fumaça para o<br />

filho se acalmar.<br />

– É, enquanto isso, passo por cenas ridículas? – ele se detém, engole a<br />

fumaça e volta o raciocínio – Nem correr, nem saltar, nem sentir o vento<br />

ou comer posso, ô... pô... sinto dor pra caramba. Que isso!<br />

– É algo em que só você pode se ajudar. Pensa, meu filho, reage contra<br />

essa melancolia... sai dessa. Deixa de ser azedo! Vive! Vocês ainda vive,<br />

tá. Vai passar, talvez fique mais tranquilo. Vai por aí sim.


– Sai um pouco você, mãe. Dá uma volta pelo bairro, andar distrai a<br />

cabeça, vê coisa nova, sai um pouco, vai... por mim. Melhor eu ficar<br />

mesmo na minha.<br />

– Ainda não, filho... Não vai adiantar culpar as pessoas, o mundo.<br />

– Sei lá. Vou tomar outro porre. Quer saber por que eu quero... “beber”?<br />

Pra deixar as coisas um pouquinho mais alegres.<br />

– Eu não te entendo... Bebeu ontem e quase morreu, quer mais o quê?<br />

– Hunf... claro! Como se você também não fizesse essas coisas, as<br />

pessoas fazem, não somos santos. Cadê os santos? Já não existem.<br />

– Olha, mas tem uma vida lá fora. Encara os fatos, Jonas! Seja homem!!<br />

– Não me enche que eu sei o que faço.<br />

– Ah, menino... um dia vai entender, me agradecer e tudo... já fui jovem,<br />

sabia?<br />

– Sai logo!!! – disse ele, bruto, friamente revoltado com a mãe já de<br />

saída.<br />

Nesse exato momento, toca o telefone de seu quarto. Ele atende. Sua<br />

voz é monótona, lenta no alô, mas ouve assim mesmo a pessoa do outro<br />

lado. É uma dessas operadoras de telemarketing oferecendo benefícios<br />

ou sei lá o que do banco tal.<br />

Jonas ouve tudo, mudo. E diz a ela:<br />

– Nem, que eu posso te dizer, moça... logo pra mim, cachorro morto???<br />

Pô!!<br />

Berra um “nãooo!” e desliga o telefone na cara da telemarketeira do dia.<br />

Sempre que dá, bota a culpa ou desconta nos outros. Se já era assim,<br />

imaginem daqui para frente.<br />

“Deixe de ficar ofendido, o comportamento dos outros não é motivo<br />

para ficar retido. Aquilo que o ofende somente o enfraquece. Se estiver<br />

procurando ocasiões para ficar ofendido, você as encontrará a cada<br />

oportunidade”, lê a mãe preocupada.


– VIII –<br />

NA SUA CAMA<br />

Jonas tenta se esconder sendo um novo solitário. Os hormônios se riem!<br />

Passam as horas... a coisa pairava... alguma música em um fone grave e<br />

apertado como não se ouve no radinho. Passa o tempo desenhando<br />

porcarias sem sentido. “Um rato, sou um rato idem”, ele pensa. Tenta<br />

entender tudo o que aconteceu nas últimas grandes horas, a dor,<br />

frustração, um porquê para toda essa provação emitida. Ele lembra de<br />

si em pensamentos, fotos sem problemas, pura emoção nostálgica.<br />

Sofre, é um monte de coisas. A casa lhe caiu!<br />

Chegou a hora de mudar a vida, meu amigo? Ele teria que se adaptar, é<br />

uma obrigação aos antiquados. Perderia a barriga, voltaria à juventude,<br />

sairia do escuro, da vida lenta, dos “seres que são seres humanos tão<br />

lentos”. Não quer ser mais isso. Largaria este estigma de profeta do caos<br />

que lhe fez destacar... até escreveu, coisa que não sabia!<br />

Bom, essas e outras mais conclusões ele teve, desorientado, ainda de<br />

cama. Só era permitido mesmo é pensar. “Um dia de nada, lixo...<br />

perdido... num produzi... NADA!... aqui da cama”, pensou, tão bobo.<br />

Um jovem inacabado, que assistiu aos velhos ídolos no cinema e<br />

fracassou dentro de casa!!<br />

Aqui vão transcritas algumas das mesmices que ele rabiscou no seu<br />

caderno e em folhas que jogou fora, ou, posteriormente, queimou –<br />

livrou-se daquelas lembranças péssimas descritas, ainda bem. Tudo bem<br />

se não quiserem ler, é só passar para o próximo capítulo.<br />

1.<br />

“Insidio, show de tosqueiras, sinos divinos no ouvido, chuva fina e céu<br />

intrigante, sangue em dedos e boca, percepção de que falta algo. \ Terror<br />

e angústia no peito, desespero crescente, correria, procura por meus<br />

cacos, pedaços na poça minha e sangue nós. \ Raiva ao olhar um reflexo,


espelho destempero, destroçado... causa. Vergonha... esmaga... Dor,<br />

vozes, lances no momento da queda, que susto na baita queda. \ Ajuda,<br />

muda no momento, uma neblina, lenta... instante.”<br />

2.<br />

“As consequências seguem o remorso & é arrependimento por culpa ou<br />

crime cometido \ Não valeu a pena<br />

A primeira letra, aviso, advertência por aqueles que nos querem bem \<br />

Fato desesperador”<br />

3.<br />

“Meu raso cortado, semirrisonho comprometido, comerei comidas<br />

moles ou talvez nem coma \ Bambeando e escalando a rua sem firmeza,<br />

ouvindo músicas mórbidas mas rejeitadas pelo uso, sim, e me odiar<br />

porque posso e louvo a culpa \ Quando deitar no poço do quarto por<br />

resguardo, achando que deveria ter sido um dia feliz, comum \ Mas<br />

depois de tentativas de me entorpecer, apenas eu mergulhei numa<br />

parábola que rasgou \ Preocupa se senti dor física e emocional,<br />

preocupa ter pernas, este eu que corre pelo livro fatal \ Eu que se<br />

morre”


– IX –<br />

E AÍ?<br />

Chega ao consultório de manhã cedo, na terça. Atravessar o aviso!? A<br />

que ponto ele chega? Está de cabeça baixa, arrasado para a hora solene<br />

do veredito. Um besouro se abriu e fez asas... aquela doideira era um<br />

sinal ruim?? Na tevê, uma entrevista rolando depois de tiroteio em<br />

favela. Um marginalzinho encapuzado diz para uma repórter medrosa<br />

“Cara, é o Rio de Janeiro! Nenhum crime é resolvido. Por que me<br />

preocupar???” Jonas nem pensou sobre o assunto, apenas ouvia... ouvia<br />

também uma velha gorda resmungando que “Tamos perdidos”.<br />

Começa o tratamento e mais uma vez chora como uma criança ao ouvir<br />

a real situação que ocorreu. Aqui tenho um diálogo dele com sua<br />

tratante, a Dra. Ana Lúcia Lemes, mulher de uns 35, 2 filhos, maridão,<br />

gosta de viajar e sonha com uma vida burguesa sedentária necessária,<br />

sofre todos os dias ao ver as novas brotarem, as rugas.<br />

– Eu sou imparcial, Jonas – ela que começa!<br />

– Entendo, mas é ruim, por isso fiquei zoado, doutora. Como essas<br />

crianças que tão aí perdendo os dentinhos de leite, eu tenho medo. As<br />

crianças vão ter de novo, eu não, pô... mas ambos sofremos.<br />

– A verdade é que você precisa ser forte e paciente; um verdadeiro<br />

rapazinho. Pois este seu tratamento requer muitas etapas, até você<br />

reconstruir seus ossos traumatizados; uso e desuso, sabe... mas vamos<br />

estar resolvendo isso...<br />

– Porcaria... humm, ardeu. Desculpa, foi mal!<br />

– Claro.<br />

E continuam após olhares sem graça:<br />

– Serão retirados os pedaços dos ossos quebrados e feita a fundação<br />

com metal, para a colocação das suas próteses definitivas. Vamos te<br />

remodelar. Mas primeiro começamos com uma limpeza.


– Legal. Mas faz isso parecer suave e o mais rápido possível, valeu?<br />

Beleza, isso aí – disse o dócil Jonas.<br />

– Claro. Tentarei fazer o possível. Podemos começar?<br />

Jonas responde com um “Ahãm” tímido. A doutorinha dá um sorriso<br />

atrás da máscara e o paninho se mexe. É só desprazer para ambos. A<br />

falta de mistérios nos deixa ensossos... até que o plano de saúde paga o<br />

resto.<br />

Eu quero, devo mais um poema desse entre aspas mártir!!! Mas só a<br />

metade, assim, vocês merecem, leitores e leitoras: “Tem asas mas não<br />

voa,/ Até que se irritou,/ Destruiu, queimou as bobeiras,/ Vendeu<br />

levezas de valor sentimental/ E foi recomeçar uma casa mais.”


– X –<br />

DERROTA E LODO,<br />

MUITAS VEZES PARA ELE MESMO<br />

Conceitos somente igualados àqueles que já sofreram igual perda...<br />

alguém se identifica aí?<br />

Depois de tudo, Jonas até reparava nas pessoas mancas das ruas. Sentiu<br />

pena de si, ali de seu aquário. E o pior de tudo, percebeu a pena e<br />

repugnância das pessoas que viam e relatavam seu caso. Porque era uma<br />

morte falarem dele. E era arrastado assim, atormentado, pelas ruas,<br />

pensando tolices...<br />

“Essa vida dá umas baitas voltas, cara... cacete! Um dia um cara, eu, pô,<br />

tô passeando por Las Ramblas durante intercâmbio de final de cursinho<br />

de espanhol, tirando uma com aqueles ferrados europeus...<br />

acompanhado de uma modelinho local, bebendo uísque escocês bom,<br />

precisamente... annn hunnn... nisso, num lembro, mas fumando<br />

charutos decentes, enfim... outro fatídico dia eu tô voltando pra casa da<br />

minha mãe, arruinado na zona das olheiras, o mais cagado abestado na<br />

face da Terra! E tá quente pacas.. Lo siento...” ele resmunga em sua<br />

autopiedade. “Meus saltinhos à frente se foram, sou qui nem criança de<br />

novo – se é que deixei de ser –, quero colo. Meu verdadeiro nome é<br />

Jonas.”<br />

Demoliram a tua fábrica... ah mais essa. “E no meu lugar só tem<br />

entulho, Jonas continua. Eu vi, hoje em dia. Só cascalho, terra, tijolos<br />

antigos e poeira. Logo essa fábrica, a que tinha aparência de terrorzão,<br />

e uma caveira com classe para assustar, pintada na entrada. Nem sequer<br />

soube de que era, já que estava abandonada e esquecida pelas pessoas.<br />

Desde criança sonhara em entrar lá e me fascinar. Que se faz lá no osso?<br />

Quem é você agora? Adeus, velha fábrica.”


– XI –<br />

SENTIA O ODOR DE PODRE<br />

Ou um cheiro de fralda de neném; de postiça haste, de velho com mau<br />

hálito; um fedor de cuspe de semanas, de carne preta e cicatrizes. Era o<br />

horizonte descolando, e suor entrando pelas frestas da prótese... e ele,<br />

mártir menino, não podia fazer nada, apenas esperar o novo dia –<br />

portanto, dormir sem qualidade – e pela manhã ir pedir correndo pelo<br />

telefone a marcar a consulta de emergência no consultório. “Mas de<br />

novo suas pernas?”, todas as que lá atendem já sabiam, “Jonas caiu de<br />

novo. Ou a cadeira zoou. Pobre garoto.”<br />

Tempos depois, o gesso já estava amarelão, cheio dessa massa<br />

quebradiça, diferente na espessura, como um brinquedo toscamente<br />

colocado. Sim que estava na hora de mais uma vez trocar aquelas<br />

próteses, operar-se, curar. Seria melhor alguma pressa.<br />

É guerra. Dor na cara, angústia e melancolia, pois aconteceu a<br />

inesperada vergonha! É de dar pena mesmo, e quem lembra dele depois<br />

de ser notícia? Quem lembra do Jonas com outra história? Um carro<br />

que te motivou, com seu motorista individualizado. Quem estará lá para<br />

acudir durante o pesadelo... de perna amassando, perna apodrecendo,<br />

perna explodindo, perna esfarelando, desmantelando, tudo quanto é<br />

maldição passava com as pernas do Jonas nos pesadelos que tinha!<br />

Quem? Claro que não. Realmente é uma pena. Ou não. A lástima<br />

universal! Continua, sempre continua o tratamento... quando vai acabar?<br />

Por que você não tem paz?<br />

Dentro de si ele xingava e estava doido querendo fugir, ouvir a eterna<br />

sonata da banda do desejo e se calar pedindo a morte de uma vez. É...<br />

juventude fresca. Mas e a solução?<br />

Logo em público? Soltinho, pendendo, apenas encaixado, o caminhar...<br />

pronto para cair e tum. Que suplício, minha gente! Pouco depois de ser


efeito, e já dando defeito. Ah porque são pernas de brinquedo,<br />

invenções, “embora estes próximos anos me tornem mais velho...”<br />

Pois bem, o que a palavra não pode explicar, a ação nada determina.<br />

Perceberam que ele está indo desnivelar? Quem se presta? “Miséria”, ele<br />

repete, atraindo cada vez mais o mal, vai ser difícil sair disso.


– XII –<br />

PASSARAM-SE VÁRIAS ETAPAS<br />

Cortes, retiradas, higienizações, raspagens, dores, feituras de placas. E<br />

mais fisio, frustrações, moldes e mais moldes, aflição e pernas postiças<br />

que caíam ao primeiro milésimo de ansiedade... passou uma via.. crusis<br />

de pouco deslocamento.<br />

Ele sentia apreensão quando, por exemplo, sorria. Jonas achava que<br />

qualquer assopro poderia fazê-las partir; tão frágeis que eram e que<br />

passavam tanta impressão de serem assim mesmo. Tudo era apreensão,<br />

desgosto, tudo era queda, deformidade, pernas de massa recente. Sua<br />

enfermidade o havia consumido em esforços e forças impregnadas nos<br />

atos bestas. Uma chatice!<br />

O certo é que passou a dizer que seu “verdadeiro nome era... ah não vale<br />

a pena.”<br />

Depois do acidente, sim que era hora se reeducar e aprender a andar,<br />

não podia mais utilizar somente cadeiras de rodas eternamente. Desta<br />

forma, o que fosse um perigo, deveria portanto ser feito com exímia<br />

cautela, às vezes na mão, com muletas, como um velho gagá! “Velho<br />

gagá”, repetia para si.<br />

Estava indo, então sua atenção se voltou para uma lanchonete, talvez<br />

um dia já tenha ido ali. Ele entra, é uma das lanchonetes do chinês Yang,<br />

famoso na cidade. Todo mundo dá uma reduzida para analisar o rapaz<br />

na cadeira, com as pernas em gesso.<br />

Não são da mesma tribo, mas ele pede pastel com caldo de cana. Olha<br />

para as pessoas, algumas até parecem felizes, e ele naquela emboscada.<br />

Vê um potinho de quétechupe. A cara muda. Vai ao banheiro e leva o<br />

pote. “Escarrei aquela massa verde e amarela, nacional, dentro do<br />

quétechupe, sacudi e larguei lá, temperado, pro azar dos outros”,<br />

confessa. É, a paciência das pessoas está acabando... que mais vai


acontecer... antes de se violentarem de vez? “Foi mal, cara, vô levar pra<br />

viagem... embrulha”, diz Jonas ao atendente. Êta moleque atentado!


– XIII –<br />

A PARTIR DAÍ<br />

Jonas começou a ter preferência por lugares menos difíceis à sua seleta<br />

locomoção, e a evitar a cozinha. Como consequência direta da nova<br />

condição, emagreceu cinco quilos nas duas primeiras semanas depois do<br />

ocorrido e continuou nessa vertente de emagrecimento contínua – ele<br />

era agora muito mais magro e fraco, com os olhos fundos e cabelos<br />

curtos, como doente de filme enlatado. Talvez possa chamar isso de<br />

inanição, ainda que seja um quadro deprê um tanto quanto óbvio.<br />

Deviam sacar as costelas e os ossos entre as pernas e tronco, com isso<br />

ele chamou mais ainda a atenção!<br />

As tramas cotidianas tiveram uma nova importância para ele, tudo<br />

começou a ser relevado, e de uma forma diferente – já se adaptava à sua<br />

própria fragilidade e incompetência.<br />

Vocês sabem, todos os sentidos giram em torno da condição a que<br />

deixamos. O corpo humano está sempre se adequando às últimas<br />

dificuldades e receios e acidentes em geral. A capacidade de observação<br />

e discernimento do bom e do ruim e do prejudicial a se ampliaram. Até<br />

mesmo de suas antigas convenções sociais se viu livre – fazer tudo na<br />

correria, chamar atenção, rir alto etc –, tornando-se cada vez mais<br />

atento. Mas, mesmo com tudo isso, ele nunca mais seria o de antes, e<br />

era isso que o afligia... a eterna sensação de que lhe faltava algo em<br />

relação aos outros de sua idade, como um bicho menor, abandonado.<br />

Jonas soube então que a vida opera nessas inconstâncias e tortas<br />

evoluções. A tempestuosa e tenra idade foi desfavorável; na verdade, o<br />

fator status foi aniquilado e chutado de seu cotidiano. Aprender era<br />

sinônimo de sofrimento. Que nada que de maturidade, dava é<br />

marteladas na porta!!! Para além de tudo isso, seu tratamento e as várias<br />

etapas desreguladas e lentas faziam cada fez mais ter agonia de algo<br />

piorar e não ter mais solução. Desenvolveu o que dizem ser uma apatia


social. “Taquil, quanto troço eu poderia fazer...”, era o que<br />

choramingava. “Ai, ai, já acabou de tentar me ensinar?”, perguntava à<br />

mãe. Coitada, onde foi amarrar seu burro? Seus olhos castanhos estavam<br />

agora úmidos, e seu pai não sabia o que dizer. Seu único filho ficava é<br />

quieto demais, olhando para parede, igual a um equino parado nesse<br />

pasto.


– XIV –<br />

A CLAVÍCULA<br />

Já estava se recuperando e os outros ferimentos do corpo haviam<br />

cicatrizado ao findar de certos meses. Já iam tarde!... Mas ele continuava<br />

em casa, só saindo esporadicamente, nisso de timidez, e apenas para ir<br />

ao canhão, como já apelidava a doutora Lemes. Nem às aulas do curso<br />

frequentava mais. Limitou-se a ser um recluso no próprio quarto,<br />

comungando com o ego. E isso não é nada legal... alguém pode ser ver<br />

com um mundo restrito e só. Começou até a ler mais, dizia agora que<br />

na tevê as pessoas eram bonitas, e nos livros imaginar amansava. “É uma<br />

palhaçada, e eu não quero tomar partido”, falava dos normais, sobre<br />

padrões de beleza e tal.<br />

A proximidade das provas do vestibular traria um quase pânico, como<br />

faria os exames se nem ao menos ele sentia ânimo ou coragem para falar<br />

direito? Como ia encarar a pessoas, seus amigos, pedir informação, pedir<br />

licença... passar, poxa?<br />

Seu agravamento se fez refletir sobre comportamentos reprimidos e<br />

ainda mais despercebidos, ele perdia cada vez mais qualquer vontade de<br />

se comunicar por desenvolver algo parecido com uma paranoia com o<br />

abrir de boca ou sorrir abertamente, sempre se preocupando com<br />

interpretações. Uma burrada mais. Todos notam. E se fazia disfarçar<br />

vivendo neutro e calado, um não-fede-nem-cheira. “Olha, vou te dizer;<br />

não adianta, porque geral sabe, se liga no que está aí.”<br />

Quem sabia de todo o caso, também não ajudava muito. O ser humano<br />

tem essa mania de seguir os defeitos alheios com os olhos, as pessoas<br />

têm pensamentos punitivos, chega a ser involuntário. Jonas de tudo isso<br />

já havia se inteirado “Ele, ou ela, depende, deve tá rindo que ainda tô<br />

nessa” ou “Percebo o olhar de isolamento pra mim. Porcaria! Deve me<br />

achar um filho da mãe pobre coitado, olha isso.”


Se um avião caiu e matou trezentas e tantas pessoas ou um velhinho<br />

levou um tombo na rua, na frente de todo mundo, Jonas nem deve ter<br />

chorado. Só pensava que “E daí, preciso ir ao correio pagar a inscrição<br />

do vestiba... eu preciso dominar as regras do jogo, eu preciso me<br />

disfarçar”. Ih, Jonas... ninguém vai rir das tuas idiotices, é só você, você,<br />

tsic.


– XV –<br />

PASSADOS<br />

Quase três meses de tratamento e ele ainda não tinha suas pernas<br />

definitivas, limitando-se a provisórios e mais provisórios<br />

recauchutamentos. Tornava-se imprevisível, desmunido... e a<br />

impaciência tinha dado lugar ao caos; era um caminho de cortes, sem<br />

volta para respirar. Tudo parecia dar errado, até mesmo as tão esperadas<br />

provas do vestibular tampouco trouxeram alegrias, muito pelo contrário,<br />

Jonas simplesmente estudou menos nesse ínterim do acidente e os<br />

prazos do começo das provas, ficou atrás dos outros jovens da sua idade<br />

e levou bomba! Por consequência, ele não passou nas matérias que eram<br />

necessárias para se aprovar e mentalmente desistiu de ingressar na<br />

faculdade – tinha já outros planos. “Deu uma coçadela no saco e pensei<br />

à moda filósofo: ‘Olhem, tou aqui!!! Nem quero sorrir, poucos me<br />

entendem, muitos me odeiam. São todos um bando de bostas...<br />

hipócritas; eu tanto ataco que mais deles virão! Ninguém vai sentir a<br />

minha falta, os outros não me preferem, gente pouca... são é retardados<br />

sem consciência’.”<br />

Vale ressaltar ainda um detalhe acerca dessas provas: a comunicação com<br />

outros humanos antes, durante e depois foi muito escassa; sua visão fora<br />

afetada, e via com atraso os movimentos ao seu redor. Teve muita<br />

dificuldade, inclusive com seus amigos, que deixou de lado e pouco se<br />

comunicou, limitando-se a um oi cabisbaixo ao passar pela fila de<br />

entrada. Eles também faziam pré-vestibular, e passaram nas provas como<br />

era esperado. Todos ficaram quietos, ninguém entendendo nadica<br />

alguma, por que essa? E esqueceram até de lembrar do Jonas nas<br />

conversas. “No olho da rua!!”, pensou o afetado.<br />

Daí em diante, a ele mesmo prometia que “logo ia ficar claro!” Sem<br />

muito juízo de caráter, agora queria resolver na mão.


– XVI –<br />

QUAL LAR<br />

Sua família não sabia mais como alegrar Jonas – e boa verdade é que<br />

nem a eles mesmos! Ainda que se amassem sem saber, lidavam com a<br />

situação apenas absorvendo. E sumiam em atos corriqueiros, sumiam<br />

dentro de casa. “Havia ele se escondido em si, bicho do mato total,<br />

total, meu filho”, falava sussurrando a mãe. “Todo o sofrimento foi<br />

canalizado contra ele mesmo, era seu próprio mal, cansado. Pelos<br />

cantos, semi.. mudo, fantasmagórico, paranoico, sempre comendo as<br />

próprias vísceras e rindo num tédio idiota”, confessava o pai em<br />

pensamentos.<br />

Preocupava a todos o caminho de Jonas, porque viam que ele gostava<br />

mesmo de estar triste; agora até fumava com frequência para exalar um<br />

ar mais caído. Casa, a entidade familiar estava abalada, e com o tempo<br />

as coisas se quebrariam e o sofá rasgaria, ou o controle remoto não mais<br />

funcionaria. Poderia soar perfeito para alguns; mas para eles ali não!<br />

“Parece que não bastamos. Mas vai acabar.. como os dentes do mundo”,<br />

falava a mãe do condenado.


– XVII –<br />

EM UMA SEMANA<br />

Fazia uma consulta, outra, ou apenas qualquer verificação; em um dia,<br />

um avanço, em outro, recaída; nada de paz. Morrendo e derretendo e<br />

morrendo sem levar um tantinho do melhor dos reis! E assim se<br />

passaram várias destas semanas torturantes, calmas e julgáveis... Tardes<br />

de sessão da tarde, lástimas. “Virgem, a peste dá um tapinha nas costas<br />

e enrosca o rabo no pé para eu tropeçar! Sem droga nenhuma pra fazer,<br />

fui dar um giro pela morna Souza-Cruz, de rodas mesmo; mas em<br />

nenhuma parte estava o que eu buscava... porque em Souza-Cruz<br />

ninguém pegava no caderno.”<br />

E sobre a vitória? Jonas, você deseja demais. “Libere a sua necessidade<br />

de vencer, o ego adora nos dividir em vencedores e perdedores. A busca<br />

da vitória é um meio infalível de evitar o contato consciente com a<br />

intenção. Por quê? Porque em última instância, a vitória é impossível o<br />

tempo todo. Alguém lá fora será mais rápido, mais afortunado, mais<br />

jovem, mais forte e mais inteligente, e novamente você se sentirá inútil<br />

e insignificante.”


– XVIII –<br />

POR MEDIDA MÁXIMA DA ANGÚSTIA<br />

Jonas resolveu acabar com todas suas lembranças e se desfez de bens<br />

inúteis, como um videogame, roupas de marca, revistas, rádio etc,<br />

ficando somente com alguns livros de inspiração necessária. Ele<br />

arrecadou uma soma considerável que relatou a seus pais ser para uma<br />

viagem de descanso e eles acharam isso ótimo; chegaram a encorajar o<br />

filho e tudo, esperançosos. Quem pode julgar, certo? São pais, visando<br />

uma possível melhora; além disso, tinham mais o que fazer também, não<br />

acham? Que as crias se resolvam. Mas não, ele reuniu todo o dinheiro e<br />

comprou uma arma – um trabuco roubado de um viciadinho do Beco<br />

– e uma quantidade considerável de pó – o vício, que não era bem um<br />

vício, pela coca, estava adormecido desde o acidente. Todo aquele estado<br />

latente de repressão no limite, ele vivia no limite... limite do juízo, limite<br />

de suas limitações, irritadiço. Cheirou e fumou uns cigarrinhos. Era a<br />

loucura, vários martelos atazanando, lhe faltaria uma orelha. “Aí, eu vou<br />

tirar uma satisfação, sabe como é que é!”, resmungou.<br />

Detestável mundo em que se metera! Havia se afundado nessa rede<br />

viciosa e mórbida em que um inapto acha de tudo, menos a liberdade<br />

da luz do dia. Teve que fumar mais, o momento pedia. “O uso deste<br />

produto...”, lembrou. “Gostava mais quando era lance de abandono!” E<br />

completa: “Pô, sou apenas mais um bicho ruim do mundo ruim ou uma<br />

janela pro mundo? Tô de saco cheio de ser mais um adolescente... mais<br />

isso ou aquilo... o problema não é se aleijar, mas quando.”<br />

Tem situações que simplesmente fogem ao controle, leitoras e leitores<br />

atentos, é o lado animal, a fúria que existe e brota... como quando o<br />

equivocado está arruinado e seu amigo cede gentilmente um cantinho<br />

na sala dele para passar uns tempos até se reerguer e desintoxicar. Mas<br />

aí o arruinado fica apaixonado loucamente, em um tesão silencioso e<br />

incestuoso pela esposa do amigo! Por ela sente o maior prazer que se


possa imaginar! Sua e tudo. Mas tem a questão de princípios, honra e<br />

tal. E ficam elas por elas, porque é medroso! Seria uma inversão de<br />

papéis!! Ele a quer, mas ela ainda não o quer, digamos, oficialmente. Ela<br />

o quer, mas “tem que esperar”. É assim a dúvida, mas qual é a hora<br />

certa? Jonas também estaria nas mãos dela, e ela estaria esperando<br />

ansiosa. Ambos querendo o mesmo, mas nada acontece até que uma<br />

explosão seja imposta. Isso quer dizer, só quando a ânsia vai e domina<br />

a razão.


– XIX –<br />

TRAVAS? TREVAS<br />

Jonas queria acabar com muitos empecilhos e pessoas que julgava<br />

erradas e prejudiciais a ele. Então, resolveu fazer tocaia e estudar o<br />

consultório da tal Dra. Célia – a recente cirurgiã que estava querendo<br />

começar algo novo nele, uma pessoa indicada. Era para aprender os<br />

esquemas, matá-la, pois havia concluído que a infeliz o enganava, e tinha<br />

retardado o tratamento por pura ganância – consultas duas vezes mais<br />

na semana!? Ficou, então, decidido a apagá-la na base da borracha<br />

escolar.<br />

O certo e o errado passavam distantes. Era o tropeço generalizado!!! Ele<br />

pressupunha não ter mais nenhum jeito de ser igual aos outros jovens, e<br />

um tal instinto de morte lhe consumiu, principalmente depois de ter<br />

recebido a notícia (outra!) de que teria de refazer o tratamento, desta<br />

vez utilizando grandes placas ‘remetalfixadoras’, e esses implantes dessas<br />

tais placas, além de muito raros e extremamente custosos, seriam a prova<br />

definitiva de que não conseguiria se recuperar. A previsão de outro<br />

processo de mais ou menos um ano de tratamento deixou o cara<br />

amplamente surpreso... e ainda tinha o efeito das drogas. “Por quê? Por<br />

quêêê, caramba??” E com corda, baita cólera!... não aguentava mais<br />

consultórios e suas rotinas; tinha passado por quatro cantos diferentes<br />

com médicos ainda mais diferentes e esquizofrênicos que ele, tendo<br />

entrado em consultórios umas trinta vezes desde o começo do<br />

tratamento. E nada de resolver, ficando ainda as pernas sempre<br />

bambeando, podres não se sabe como! Mal ficava de pé sozinho por<br />

100 metros.<br />

Aguentar era o chato. Explicar tudo novamente cansa. “Vô fundo nessa<br />

bosta!!”, concluiu. Tudo muito rápido? Só um resumo.


– XX –<br />

PASSADOS MAIS ALGUNS DIAS DE PLANOS<br />

Ah é, contemplações...! Cheirou o quase todo de cocaína que adquiriu.<br />

Se encheu dessa coragem zonza, pegou o trabuco, botou suas roupas<br />

favoritas e ainda significantes no momento: tênis azuis, calças de<br />

moletom e a camisa branca com o desenho cubista “natureza morta”,<br />

de Braque, estampado no centro, pois se morresse – uma possibilidade<br />

a se considerar –, estaria vestido como gosta. Tanto amor-próprio<br />

NELE. Pegou todo o resto do dinheiro e largou a sua vida que achava<br />

tão odiosa para trás. Nem deu importância se sentiriam sua falta ou<br />

não, foi no automático; se não teria mais seus pertences ou amigos, dava<br />

igual, pois agora só queria pensar em si. Apenas encontrou-se como a<br />

pessoa narcisista que era.<br />

Foi desnorteado se esgueirando pensando que “eu quero tanto, mas<br />

depende dum monte de certezas. Se tô loucaço, vivo num mundo que<br />

me deixa paralisado diante das opções!! Mas eu nem posso me deixar<br />

levar por essas trivialidades, já que tenho tantos planos. Dose também<br />

é pensar num trampo, barbinha feita, cabelo cortado, sem tempo pra<br />

acordar... tanta pressão, só quero ir, nem falo direito.”


– XXI –<br />

CHEGANDO LÁ<br />

Viu dois ladrões filhos da mãe rindo e ensacando aparelhos do<br />

consultório. “Babaquice, cara”. A conveniente coincidência trama dos<br />

deuses!! Ele sabia que nada poderia interpor seus objetivos, e já estava<br />

enfezado de tudo “não sair como planejou”, “nessa m*** de vida”.<br />

Entrou olhando sorrateiramente. Não teve pena daquelas almas.<br />

Assassinou os dois com tiros na testa, tipo buraquinho vulcão! E eles<br />

nem tiveram como reagir, devido ao susto, ao teor etílico elevado nas<br />

suas veias e à falta de recursos à altura de uma arma e balaços. Só ficaram<br />

os olhos abertos, e que susto traidor! “Nem sei como acertei o dedo<br />

nesse bolo!... sou principiante, me rio, mas fui preciso”, pensou o<br />

vitorioso, sem saber como ali fincava os pés na roda da desilusão.<br />

Com o barulho causado, o manco ficou com o coração mil vezes mais<br />

rápido, ouviu vozes e gritos de pessoas assustadas, vinham sei lá de onde.<br />

Pensou em disfarçar, e gritou: “Carioca está mesmo num estado<br />

deprimente: ouve um peido e diz que é tiro! Brabo.”<br />

Todo o passar foi levado ao extremo. “Mas o quê?!”, gritou para as<br />

pessoas do prédio, mas muitos falavam ao mesmo tempo. Teve que<br />

considerar uma mudança de planos. Um, dois, três minutos para ele<br />

decidir?... Não... fogo! Ateou fogo no consultório com seu isqueiro..<br />

tinha muito álcool... jogado pelos ares... Todas aquelas lembranças em<br />

cinzas... já dava para o gasto... era só o que ele queria, deixar para lá.<br />

Foi descer pelo elevador, mas suas mãos suavam e tremia feito vara verde.<br />

Quase tombou, desastrado pacas, mas a vontade de extravasar a raiva e<br />

a angústia era maior. Além disso, o pulmão estava energizado, vocês<br />

lembram, nessas horas o homem mede sua força.<br />

Entra no corredor principal e dá de cara com uma beata! Ele, rosto<br />

branco, arregalado, empapado de suor e com uma fumaceira atrás. A<br />

senhora, felizmente, diz: “Moço, entra logo, tá todo mundo doido!!!”


“Vamos, me ajude aqui a entrar, sou deficiente”, disse a ela.<br />

Ingenuidade. Você aí desconfiaria???<br />

Ele em frenesi, não se sentia assim há meses: via tudo, vibrava, poderoso,<br />

incrivelmente feliz e satisfeito respirando muito mais ar do ambiente do<br />

que o necessário, felicitando-se com o que fez e faria a seguir. Pronto<br />

para latir despretensioso! A doutora, ele deixaria para matar depois...<br />

“Ou melhor”, pensou, “mato agora essa!”<br />

Depois que os bombeiros chegaram, ele sai no meio da multidão. Ria<br />

para si, pedestres notavam, e a noite sem fim também.


– XXII –<br />

JONAS JÁ<br />

Tinha estudado tudo, supunha, e até sabia onde morava a próxima<br />

vítima.<br />

Invadiu o condomínio pela porta da frente, simples assim, enquanto o<br />

porteiro ia ao banheiro! Seguiu beirando o muro e foi pelo lado inferior,<br />

depois pelo estacionamento e logo estava na entrada do bloco B, onde<br />

Célia residia. Entrou despercebidamente, com sua pouca-vergonha. A<br />

boa aparência e roupas o haviam favorecido: ele podia ir a qualquer lugar<br />

sem ser notado ou passar por um jovem normal de classe média escrota.<br />

Em geral, apenas o que encontrava era peninha dele... um rapaz<br />

deficiente.<br />

Célia morava sozinha, encalhada, e estava dormindo. Foi fácil entrar no<br />

apartamento, a porta apenas estava encostada, e ainda mais simples fora<br />

matar a médica com aqueles golpes. “Como amassar um bife”, pensara<br />

o assassino. Jonas tapou o corpo com uma coberta grossa que achou em<br />

um dos quartos e lhe emergiu em pancadas secas vlafo! vlafo! com um<br />

banquinho de madeira muito dura que estava ao lado da cama dela.<br />

“Depois peguei a trolha, apalpei o presunto pra saber onde tava a fuça,<br />

abafei com um travesseiro e soltei o dedo! Sabe como é que é, né? Tinha<br />

que me certificar!!! Manchadão de vermelho... um só teco”, confessava<br />

falando sozinho. Tudo muito silencioso acobertado pelo barulho de<br />

uma festa de criança que acontecia no salão do condomínio ali perto.<br />

Assim, antes de sair, ainda disse ao corpo da antiga doutorada, em uma<br />

coronhada de leve: “Mudar sempre sendo eu mesmo. Cê pecou ni me<br />

tratar como um doente em potencial. Eu faço um monte de troços. A-<br />

A-Agora olha só pra tu, seu monte de carniça. Adeus.” Jonas tinha umas<br />

frases muito românticas, evasivas. “Se f*** aí, Doutora!!”, finaliza.<br />

“Arredio tava que tava, hã!?”


– XXIII –<br />

E VERRÀ L' UOMO<br />

Sentia-se mesmo novo, apreciável... vivo! Até teve vontade de entrar na<br />

festinha e brincar com as crianças; mas não, não, teve um pouco de senso<br />

de ridículo. “Só tô preocupado em seguir minhas próprias fantasias.”<br />

Ele achava que era como a raposa no galinheiro, tinha aquele olhar<br />

compenetrado, não o perdeu, não perdera da ousadia... rodou por aí e<br />

até gritou “ahhhhhhhhhhhhhhhhhhahah!!!”, em um misto de berro<br />

lamentável com riso que completou com “Eu sou humano, EU SOU<br />

HUMANO, EU SOU HUMANO!!!” Tipinho estranho eu vou<br />

narrando, que me dizem!? Puro azar... e o mais incrível é que ninguém<br />

nota essas pragas na rua! Vai entender.<br />

No dia seguinte, ligaram para a casa dos pais dele e disseram que um<br />

tal Lucas, primo seu de segundo grau foi brutalmente assassinado. Que<br />

mista coincidência!!! Como assim?? Primo? Já tinham se visto? “Não faz<br />

diferença.” Viver é uma sucessão de casos... e lá foram todos da família<br />

Carlo ao enterro do rapaz. E Jonas reencontrou vários outros primos,<br />

papearam tranquilamente aquelas conversinhas que se tentam em<br />

encontros de gerações que vivem separadas. Mas desse teatro ele estava<br />

vacinado, orgulhoso.<br />

“Volto pra casa, Jonas confabula, e tudo continua como deixei. Nestes<br />

tempos de descanso, eu tenho frieza. Eu, o feliz morador do planeta!<br />

Como folhas, eu cultivo uma flor tipo cacto. Ela tá feliz, mas nem diz.<br />

Ela é como um doce de espinhos. Eu nem tenho cagaço de voltar pra<br />

outra casa, digo, sair do zero. Eu também sou feliz. Sei que ela me ama,<br />

aqui... no meu planeta: eu e eu mesmo. O mundo é meu, e ele é pequeno.<br />

Se a lua e o sol e eu, coisa tal.”<br />

Os dias mais fluíram monotonamente como em um romance de época...<br />

mas Jonas havia se manchado com tanto sangue, e nunca poderia sair


impune da lei imemorial dos pecados. Devia ter deixado ir a sua<br />

necessidade de estar certo, o ego é a fonte de muitos conflitos e<br />

desavenças, porque “ele o empurra na direção de tornar outras pessoas<br />

erradas. Quando você é hostil, está desconectado do poder da intenção.<br />

O Espírito Criativo é bondoso, amoroso e receptivo; e livre da raiva, do<br />

ressentimento ou da amargura.”


– XXIV –<br />

DOMINGO ZOADO<br />

“Desses que um tipo pensa como um monstro mijou na tua tumba na<br />

última encarnação!” Infelizmente, Jonas compra um saquinho de 2, “a<br />

rala de tchôzen misturado com esterco e perninhas de barata”. Lembrou<br />

de uma ex-namoradinha, mas estava realizado demais por amar mais a<br />

ele mesmo do que qualquer ser, orgulhoso de largar os outros. Depois<br />

sua vista se perde mirando um livro do Torquato Neto recémpresenteado<br />

pela mãe – ela achou que a poesia tinha a ver com o filho,<br />

sabe-se lá como ou por quê. E Jonas viajou na sua nova teoria de como<br />

morreu o autor! Leiam o que ele concluiu, mas sem dar muita bola:<br />

“Ainda que só tenha passado da contracapa... sorrateiramente pra se<br />

esconder em paz e fazer uma boquinha na cozinha. Ligou o fogão, virou<br />

pra trás a fim de pegar um miojo, enquanto a água esquentava na<br />

panelinha; nem se ligou no gás, até que aquele cheiro começou a inundar<br />

seu coração. Torquato estava doidão de maconha, ele viajava como eu<br />

na onda, copo de uísque na mão, gracioso ao acender um cigarro. Mas<br />

se contém, é levado pelo gás de odor maravilhoso... encontrado morto!<br />

Imagens, misturas, cores e detalhes. Fazer cada momento maravilhoso<br />

de rebelar.”<br />

Jonas solta as baforadas, a boca escura, esperando que aquilo lhe<br />

acalmasse algo! Encosta a cabeça na parede e vai, dorme, se achando.<br />

Olha o que você fez! Poxa, deixa ir a sua necessidade de ser superior, “a<br />

verdadeira nobreza não se refere a ser melhor do que outra pessoa.<br />

Trata-se de ser melhor do que você costumava ser. Permaneça focado<br />

em seu crescimento, com uma consciência permanente de que ninguém<br />

neste planeta é melhor do que outro.”


– XXV –<br />

MAIS<br />

Vinte dias e ele já tinha matado outras duas pessoas com o resto de<br />

balas que tinha: a Dra. Ana Lúcia Lemes e seu marido, que tinha tentado<br />

impedir o assassinato. De quebra, catou mais dinheiro e se farta de<br />

distrações corpóreas, cada vez mais fundo.<br />

Foi assim com o casal: ele chamou, “Ô bacana, olha aqui a sentença!”<br />

O cara paralisou, a esposa ficou chocada, e daí para frente vocês já<br />

podem imaginar! Órfãos!!! “Dessa vez, a mão tremeu um cadinho, eu<br />

parecia aqueles bandidinhos do Cidade de Deus, todo errado na hora<br />

de atirar. Mas eu tava no poder, tinha munição, disposição de sobra nos<br />

pulmões, iahahah!”<br />

Melhorou muito de humor depois que matou aquelas pessoas –<br />

inclusive nenhum dos casos foi solucionado! Muito menos preso, nem<br />

mesmo era suspeito de nada, muito pelo contrário, marcou consulta<br />

com uma outra médica, a Cristina, que se sensibilizou com a falta de<br />

cuidados e relaxamento no tratamento – ela soube que Jonas estava sem<br />

a conclusão do tratamento devido a sua “falta”, incompletude nas<br />

etapas. “Que grande chance!!! Panaceia a mais. É por isso que digo que<br />

esse país não vai para frente. Concordam comigo?”<br />

São suas as palavras também: “Descobri que havia um mundo vasto lá<br />

fora. Há muito o que fazer; um campo virgem e extenso de vida vegetal<br />

e animal quando se encontra algo que existe. Vou andar sem conversar.<br />

Andar muito e chegar a um lugar vazio, vista cidade. Deve ser verde e<br />

depois cinza.<br />

Mudou minha vida juvenil saber que sou maior e faço parte de algo,<br />

enfim. Tudo o que tem depois da família é mais abrangente. Não quero<br />

ficar mais em casa, preciso explorar e juntar – toda uma civilização a<br />

decifrar. Não é tudo aleatório assim. Descobri o portão pra rua, por


falta do que fazer naquelas tardes todas. Qualquer coisa que olhar, mais<br />

ar, pulmão aquecido.<br />

O mundo é meu e eu o amo por ser vasto – do ruim que vem a voz.<br />

Quero mais tempo, sou um embrião” Isso... foi dito por ele, ainda por<br />

cima, deve ser algum plágio! Mas nós ainda temos como parafrasear,<br />

isso sim é válido, para que um dia Jonas deixe ir a necessidade de ter<br />

mais; o mantra do ego é “mais”. Ele nunca está satisfeito. “Não importa<br />

quanto você consiga ou adquira, seu ego vai insistir que não há o<br />

suficiente. Você se encontrará em um estado perpétuo de esforço para<br />

obter, eliminando a possibilidade de nunca chegar.”


– XXVI –<br />

SÓ DE CURTIÇÃO<br />

“Passei o cerol até na Cristina. É isso. Já era. Iêe! Numa sexta, fui no<br />

último horário de marcações. Já tava amiguinho dela, sei lá, pensei até<br />

em rolar um clima, enfim. Daí me ofereci na cara dura pra ganhar uma<br />

carona. Ela adorou, sorriu e disse ‘claro’. Fico bom nisso! Disse que<br />

minha casa ficava no caminho da dela e tal, mas desviei um pouco do<br />

trajeto numa ruela de chão batido, pedi pra ela parar na casa 75, tá<br />

vendo? Nem olhei na cara que tinha, se não me sensibilizava ou sentia<br />

medo, sei lá, nunca aconteceu, mas sabe-se lá... TÁ! Dei um tirinho de<br />

lado. Voou o cabelo que nem no assassinato do 174. Muito show!!! TÁ!<br />

TÁ! TÁ! O resto mandei na barriga. O corpo caiu tombado pra janela.<br />

Me preocupei se num tinha sangue na minha roupa e vazei. A gente tava<br />

perto da Av. Brasil, peguei um ônibus desses novos adaptados.”<br />

Então é fácil, já entendi tudo... esse cara chega, faz o que quer e some!<br />

Engraçado como quando escrevia esse capítulo, ouvia uma música, e no<br />

exato momento em que digitava certa palavra o cantor proferiu a mesma<br />

palavra. A vocês também, estão atentos? E o mais arrepiante é que isso<br />

acontece de vez em quanto. Como se chama? Como pode a<br />

insensibilidade dominar? Foi tudo acontecendo sem mais nem menos.<br />

Pois bem, devemos prosseguir a ver no que dá, estamos aqui para isso.


– XXVII –<br />

NO MÊS SEGUINTE<br />

Depois de tudo pago, ele já estava com seu tão sonhado par de pernas<br />

recauchutadas! Ah panaceia. Sim, e já conseguia andar. Será mesmo que<br />

milagres vêm de forma incompreensível, ou apenas existe quem os faça<br />

dentro de um contexto limitado?? Nem adianta ir longe se as respostas<br />

estão perto, dizem..<br />

Enfim, não ligou mais de serem as pernas alteradas ou não – tinha novas<br />

e era isso que importava; tudo parecido com seu o normal, nada<br />

efêmero. O que chegasse mais perto do ideal já estava valendo. E não<br />

era mesmo tão preocupado assim com a opinião dos demais. Se foram<br />

os tiranos da beleza. “Demorou pra entender, pô!”<br />

Mesmo assim, há de se confrontar a memória das bestialidades feitas, é<br />

muita sujeira, uma carga extremamente difícil de erradicar. E vejam, até<br />

o fim desta e de outras vidas Jonas será julgado, é o que se proclama.<br />

‘Os pápis’ nada perceberam acerca de seus crimes, pois acharam que<br />

tinha havido uma melhora devido às suas saídas frequentes. “Novos<br />

ares, revitalização, uma outra namoradinha, quem sabe”, pensavam eles,<br />

tão cegos. E Jonas dizia: “Como é difícil a vida em sociedade, me liguei,<br />

gente... tantas pessoas caminhando juntas, tantas bobeiras que nos<br />

mantêm presos. Mas agora estou melhor, tenho tido distrações legais.”<br />

Agora essa, um mimadinho culto! Gozaram...! Seus pais ficaram<br />

tranquilizados, pois o adorado filho único estava bem de novo, sorria<br />

mais vezes, e isso era o que importava. “Deixe de se identificar com base<br />

em suas realizações”, lia o pai de Jonas no livro da sua esposa. “Este<br />

pode ser um conceito difícil se pensar, que vocês são as suas realizações.<br />

Deus canta todas as músicas, Deus constrói todos os prédios, Deus é a<br />

fonte de todas as suas realizações, pode ouvir o seu ego protestando em<br />

voz alta.”<br />

O tempo faz a calma, dá normalidade. Faremos também uma pausa.


– XXVIII –<br />

HERANÇA ASSIM?<br />

Comunidades são sucessivas; filhos e herdeiros com os mesmos anseios,<br />

empatias, roupas que fazem diferença no quesito melhor ou pior status<br />

do ano... o leite sagrado, tanta gente indo e vindo, lares e essa regressão<br />

escrita.<br />

Ele sabia que não teria os mesmos amigos, nem as mesmas diversões,<br />

nem a família e uma comunidade reconhecível. Foi um menino sabotado<br />

com ideias tortas! Tanto era diferente já que tinha uma outra<br />

mentalidade, digamos, despreocupada. Havia crescido, mesmo que a<br />

altos e sórdidos custos. E para que amigos se tinha a ele mesmo? Estava<br />

rico! “As visões que eu tive, ah se cê visse... ia se amarrar!” Era um tipo<br />

de lição!? A luta primordial de cães e homens com ossos nas mãos? Fazer<br />

cada ser líder de si, concluindo com as próprias leis ou tatuagens na<br />

memória... botando as tripas no lugar!!! “Eu sou o parasita e o<br />

antibiótico, e ponto.”<br />

A música de fundo sugerida é morna, porque agora tudo já ficou<br />

alegrinho, impune, e Jonas sugere a liberdade e o distrair de atos, um<br />

fim e tchau. “Obrigado. Foi muito bom enquanto durou”, disse. Já se<br />

foi o ano, esse que será lembrado como o ano do porco ensanguentado;<br />

muita coisa mudou, Jonas, você é mais um ser humano que recai. Para<br />

mim, apenas um redator, foi péssimo ter que entregar isso, toda essa<br />

depressão, toda essa exclusividade de ego... idiotices que mesmo assim<br />

dizem e assistimos.<br />

Sinto também informar que continua! Me espantei muito, acreditem! A<br />

cara de pau é uma arma, prestem atenção... assim como qualquer<br />

amnésia forçada, a mente cria esses engates. Distancio-me. Vejam o que<br />

ele tem a dizer depois dos deslizes de antes, Jonas caminha, simula.


“Deixe ir a sua reputação, sua reputação não está localizada em você.<br />

Ela reside nas mentes dos outros. Portanto, você não tem nenhum<br />

controle sobre tudo isto.”<br />

(Wayne W. Dyer, do texto “Sete passos para superar o controle do ego<br />

sobre você”)


“PARTE DOIS”


– XXIX –<br />

A VOLTA DO TRABALHO É SEMPRE CHATA<br />

Quando não, monótona; um empurrão aqui, outro ali, superlotação,<br />

tosses e conversa fiada no ônibus. É a vida adulta. Mau humor<br />

irritadiço: é a tal vida adulta. Depois de tanto, na verdade dois anos, o<br />

bandido aqui ficou com medo e se misturou! Todos sabem, e a fala<br />

também chega a essa conclusão de bosta.<br />

Apesar de trabalhar regularmente há meses depois dos ocorridos, ainda<br />

não me acostumo a essa rotina, essas pessoas e suas vidinhas. Às vezes,<br />

acho que todos estamos dormindo... em... tudo tão distraído e em crise.<br />

Um chiado para demonstrar o estado dormente das pessoas seria<br />

apropriado: eu os assustaria, e eles, talvez... talvez, pois é uma hipótese<br />

anormal... fariam um coro para perguntar: “Caraca! Que foi isso?” E<br />

ficariam mais ligados nas reações ao seu redor? Até poderiam discutir<br />

algo mais interessante. Ah, mas duvido, falariam de asco.<br />

Tão burros. Aleatoriamente. Poderia até invejar no quesito falta de<br />

compromisso por viver e pensar tão pouco, mas não. Eu ficaria é com<br />

mais sono olhando e sendo como eles. O mundo dos belos é uma ilusão<br />

que se desfaz, esmoesse avaliada. Acordei para a realidade, fazer o quê?!<br />

Esta que não é perfeita mas real a cada passada em sua direção. Quem<br />

desconhece seus sentimentos está cego pra si e ao redor. E que<br />

sonolência ao assistir pela janela a rua se declinando, correndo, e os<br />

lugares passando; luzes fortes da cidade. Dá sono, isso sim. O<br />

movimento vai e vem do ônibus é também uma vertigem, os olhos<br />

fechando, a garrafa derretendo, embaçada, um sono novamente, da<br />

porta de marfim e um remédio de... somnium. Tudo isso, tão distraído...<br />

e eu como que sendo ninado... sem meu berço... desacordado, cabeça<br />

tombada, as chamas voltam (...)


“Um quarto com vários casais”, Jonas começa a sonhar. “Eles acabaram<br />

de se encontrar e querem ficar juntos, se beijar, conversar... ou talvez<br />

coisas a mais; sei lá, um cruzar o outro.<br />

Nesse mesmo quarto eu apareço. Ai m**! Ainda não tenho um par como<br />

os outros. Nem vejo problema nisso, é bom ser livre. Tenho minhas<br />

vezes. Sendo assim, sou descriminado por eles; me repudiam, os<br />

canalhas. Dizem que somente eles têm o direito de ficar residindo ali.<br />

Somente os casais, pois são uma colônia.<br />

O tempo passa. Vão ficando cada vez mais impacientes. Ignoram o<br />

carinha aqui e às vezes olham de lado para saber se não fico observando.<br />

Bom, na verdade, eu estou sim. Mas não com maldade ou coisa parecida.<br />

Olhava com curiosidade, com espanto de novato. Eles eram tão normais<br />

e ao mesmo tempo esquisitos, eu ficava querendo saber o porquê deles<br />

estarem ali e por que a situação desagradável.<br />

Os casais nem pareciam ser do mesmo planeta que eu, essa é a verdade.<br />

Não se julgavam. Éramos distantes uns para os outros; isso e não me<br />

queriam ali nem me aceitavam. E eu, em contrapartida, queria observar<br />

esses espécimes, essa doideira, sem mais nada. Somente entender.<br />

Mais um intervalo passou, cheio desses lapsos. Agora uma parada<br />

relevante aconteceu: eles se revoltaram! Expulsaram a mim! Fui levado<br />

pra rua à força, pelo braço. Chegando lá, me deparei com uma garota...<br />

ou mulher, não sei ao certo... muito familiar, como uma antiga<br />

namorada, uma amiga ou uma priminha boa. Ela gostava de mim e eu,<br />

naquele momento, também gostava dela. Alguns dos amigos ficaram<br />

dizendo que ela era minha namorada. Eu nem podia acreditar! O que<br />

sentia por ela era uma ternura, algo quase paterno, mas quem sabe.<br />

Andamos por um tempo, esquecemos tudo, conversamos sobre<br />

situações banais e refletimos o sentido das caras daquele lugar onde eu<br />

apareci... e como fomos deixados juntos. Acho que éramos bons amigos.<br />

Eu não entendia bem, mas estava tranquilo. Acreditei que éramos uma<br />

coincidência boa – ou eu era maluco.


Logo, apareceu à nossa frente uma escola. Era hora da entrada. Muitos<br />

alunos pelas calçadas conversavam e corriam atrasados: garotas, crianças<br />

e adultos, todos juntos nessa bagunça; quase um movimento estudantil.<br />

Nós víamos isso como espectadores, entrando na escola. Aquela gente<br />

também me parecia familiar. Ela disse que era aluna, e já estava na hora<br />

de começar – o lugar era grande, ao ar livre e espaçado, só havia uma<br />

sala de aula e nela ficavam distribuídos por todos os lados e em<br />

diferentes assentos todos os alunos.<br />

Mas que dia! Logo antes dela entrar, eu também fui convidado por uma<br />

colega sua, que apareceu para nos receber. Recusei, é claro. Tinha a<br />

sensação de que a visão daquele tipo de colégio me indignava de um<br />

jeito especial, como se já tivesse estudado nele e sofrido algum dano.<br />

Despedi-me, e ela foi andando. Nesse momento, algo novo aconteceu:<br />

aquilo que sentia por ela se modificou. Agora eu sentia uma saudade<br />

enamorada, como se ela não voltasse mais e eu fosse ficar só, para todo<br />

o sempre. Acho que percebi o quanto amava essa garota. Endoidei, era<br />

minha hora.<br />

Mas ela se foi. Sumiu na mesma velocidade que tudo acontecia, e me<br />

ludibriava. Sua colega ainda me perguntou, quando eu virava o rosto<br />

para ver se ela ainda estava ali: “Por que a deixou escapar? Como não<br />

percebeu logo que se amam? Depois de tanto estarem juntos e você ter<br />

sumido por tanto...” Sumir? Tempo? Qual devia ser o nome que eu não<br />

compreendia?!<br />

Foi-se. E eu fiquei ainda mais confuso e perdido, pois um turbilhão de<br />

sentimentos angustiantes tinha me invadido. Mas solitário, como<br />

quando apareci ou me encontrava naquele tal quarto. Caminhei só, até<br />

o quarto novamente, porque era o único lugar que reconhecia e ao qual<br />

sabia chegar. Muito pensativo, fui entrando. Dois casais saiam, mas<br />

outros ainda estavam nas mesmas camas de antes. As fêmeas desses seres<br />

foram embora, então eles se transformaram em lagartos, moscas, cobras<br />

e cágados. Qual foi!


Algumas camas estavam vazias. Eu tentava sentar... em vão... não<br />

deixavam, ficavam no meu caminho me enxotando. Olhavam e eu sentia<br />

muita aflição, e ainda por cima sentia um cansaço amargo. Me senti bem<br />

ao me acovardar, ainda que o certo fosse peitar a situação... vai saber. Os<br />

casais remanescentes iam discutindo cada vez mais. E me olhando, ali,<br />

deslocado, deserdado. Quando finalmente consegui um canto para<br />

tombar, tudo se apaziguou.<br />

“Deixe-me ir, preciso andar. Vou por aí a procurar.. Rir pra não chorar”<br />

(Cartola, da música “Preciso me encontrar”)


– XXX –<br />

CÔMODOS, PLAUSÍVEIS<br />

Chegar em casa longe dessas andanças é sempre um alívio; não ter<br />

muitas desavenças é outro ainda melhor. Difícil é não cochilar em<br />

conduções, acaba acontecendo!<br />

Bem, ainda me recordo de quando era guri e vivia com a facilidade de<br />

minha família. Era tudo muito relaxado, pois não precisava fazer força<br />

pra minha própria comida ou pra arrumar a casa. A verdade é que<br />

sempre me senti bem vagabundeando, é... como vagabundo de férias<br />

mesmo! E olha... todos tínhamos um estranhamento, muitos anos deles.<br />

Cansamos uns dos outros, já era hora, enfim. Era um casamento em<br />

declínio.<br />

Nada como a total independência. Sim, a independência. Ahhhhh... Ela<br />

faz um homem muito realizado, mesmo com as dificuldades da vida<br />

solitária, como chegar em casa e não ter o que comer e precisar preparar<br />

tudo na hora – ainda com muita fome! Isso arrebenta! E você tem que<br />

limpar o recinto, mesmo que não com tanta voracidade como as mães<br />

pedem; você deve pagar as contas, economizar... estou dizendo, todas<br />

esses tipos de dores de cabeça zoadas. É um papo morto.<br />

Bom, o que importa é minha vida nova. A antiga é só o que já era.<br />

Agora tenho a oportunidade de repor energias, descansar, dormir<br />

tranquilamente etc, etc e tal. Depois de um dia longo, só penso em<br />

descansar, e tudo no meu lar como deixei.<br />

Mas não vou dizer que, hunf... O certo é que medito acerca daquelas<br />

pessoas. Todos ainda me deixam intrigado, pois também sou uma<br />

pessoa. Lembro das imagens passadas, toda a liberdade e libertinagem<br />

não têm um sentido? Desastres, assassinatos, comida quente, o que pode<br />

haver de relação? Como achar sentido? O que é sentido, afinal?<br />

As pessoas só querem ser amadas e satisfeitas – é, eu vi, um abraço,<br />

como lhes faz falta.


Beijar o céu é difícil, mais difícil ainda para uns. Ao mesmo tempo, o<br />

que é? É a minha, é a nossa busca eterna. Homens e mulheres, todos<br />

tentando se entender. Todos com suas armas, manias, formas de matar<br />

o tempo. Matar, e acabar uns com os outros, porque não sabemos mais<br />

viver juntos. Mas, no final, o que vem mostras simples vence, e voltamos<br />

até nós mesmos, em casa, para a busca primária, aquietar. E dormir.<br />

Facilita estender a vida.<br />

Tudo o que foi feito vem à tona. Mas alguém como eu ainda tem chance<br />

de errar de novo; errar é sempre o mesmo, tem que aprender! Longe de<br />

tudo, daqui da cama, reflito sobre estas tantas coisas, e chego à brutal<br />

conclusão de que tudo sempre volta de uma forma ou de outra. E é<br />

latente. Sempre volto para essa ilha.<br />

Tenho que cair, amanhã eu volto. Deixo esta reflexão inacabada<br />

NOTA – Caros leitores, deixemos Jonas cuspir o que for, é um vazio<br />

de caridade. Todas essas suas mentirinhas! O que parecia “detalhe”,<br />

“banalidade”, só desencadeia sua voz inominada, que matou, feriu e<br />

fugiu. Não que aqui seja um tribunal, mas são tantos fatos que qualquer<br />

sentença se aplica.


– XXXI –<br />

O DEITÃO<br />

De tão cansado que eu ia, nem sonhei – ou, pelo menos, não me recordo.<br />

Apaguei legal no ônibus, isso sim. Nessas horas, nada funciona da<br />

mesma forma.<br />

Vou deslizando pela rotina e chego ao meu trabalho: sou um almoxarife<br />

de loja. O serviço em si consiste em abrir caixas e colocar os produtos<br />

nas prateleiras. Mecânico, bruto, sem ter motivo pra pensar direito. Às<br />

vezes, me mandam colocar etiquetas nas roupas, embalar, contudo nada<br />

de pesado, ainda que bruto. Na verdade, é um trampo de m***, bobo e<br />

provisório; só fico nessa por mais alguns meses, depois vou cair no<br />

seguro-desemprego e arrumar algo melhor. É, peguei a primeira<br />

porcaria que apareceu... ganho pouco... me arrastando que nem uma<br />

minhoca agonizante afogada em água.<br />

Simples, eu sei. Mas com essa ocupação consigo sobreviver e não me<br />

enchem a paciência.<br />

Fico o dia inteiro lá no trampo: almoço, descanso, trabalho mais, tomo<br />

café da tarde, trabalho, volto para casa. Chego só de noite. Parece o<br />

purgatório mas vivo estável.<br />

O rango é lá perto, em uma pensão barata cujos donos são um casal de<br />

fofinhos imigrantes que servem a 5ª categoria dos alimentos tipo<br />

quentinha. Mas fazer o quê? É o que meu dinheiro consegue pagar.<br />

Além disso, me alimento de todas as porcarias possíveis a um jovem de<br />

20 anos: refrigerantes, biscoitos, salgadinhos, hambúrguer, ovo frito,<br />

maionese, batata – também – frita, doces, industrializados em geral...<br />

café, água da bica. Pego muita coisa também nos estoques da loja e<br />

revendo; levo para casa algo escondido nos bolsos, ocasionalmente.<br />

Sempre foi fácil. E é bom o palpitar da ação. Não vejo problema em um<br />

escravo se auto... ajudando!


De vez em quando, fico sem fazer nada, coçando, pois o trabalho é<br />

realizado rápido; então paro no almoxarifado, à toa. Não tenho muitas<br />

amizades, por isso fico mais paradão ainda. Revejo essas situações e<br />

modos das pessoas todos os dias – gostam de ler, não de estudar, de<br />

teorias. Mas o que querem mesmo?<br />

Do ócio sai o negócio, certo? Pensei baboseiras. Dentre essas, eu fiz<br />

algo: uma charadinha idiota, que pensei em largar por lá e espiar se os<br />

outros funcionários iam ver ou solucionar; que passaria nas cabeças<br />

deles, não é? Acho que não muito, são meio burros – não burros de<br />

propósito, mas defeituosos de ensino. Não os culpo, tenho até um<br />

pouco de pena. Esperança é um espinho canalha que ninguém sabe a<br />

hora que vai afetar. É um doce na panela quente com açúcar e cravos.<br />

Quem sabe qual gosto terá se do ponto fugir? Pelo menos eu sei o que<br />

sou, apesar de nem ser lá tanto e até me achar meio sem sal atualmente.<br />

Pois é, eles não!<br />

Hum, mesmo assim, pensando bem, resolvi deixar lá, só de sacanagem.<br />

Era assim:<br />

“Em 1321, não existia elevador; caí então de uma escada de 25 degraus.<br />

Em 04.3, eu tinha 16 questionamentos, que data! E com sete anos eu<br />

acho que já sabia andar. Olha, não há nada que cubra tantos pecados<br />

capitais; veja a Filosofia, ainda não acabou, é cíclica.. pois este é o sétimo<br />

verso.” – Qual é a reposta mais agradável pra essa conta?


– XXXII –<br />

CHEGA A HORA DA SAÍDA<br />

Que bom! O dia foi enorme, com reviravoltas, pleno de tarefas inúteis<br />

até fechar o expediente na loja. Muitas reposições de um carregamento<br />

extra que chegou atrasado pela tarde – a fama pelos atrasos é cultural.<br />

O lugar onde geralmente pego a condução que passa perto de meu<br />

apertamento é meio perigoso, dizem; encaro com desconfiança<br />

qualquer... noite de sombras e todos, como se eu corresse mesmo do<br />

perigo. Ainda assim hoje está estranho, a lua, sei lá.<br />

Vejo então outro no ponto, um homem de roupas normais e uma<br />

maleta, olhou para cá. Ficou bolado? Provavelmente, pensou que eu<br />

fosse um ladrão ou qualquer meliante perdido das ruas. Pensei o mesmo,<br />

mas depois que vi a aparência atarracada dele fiquei mais tranquilizado<br />

– não tinha aspecto de vagabundo; com um peteleco eu lhe derrubaria.<br />

Mas enxergo com dificuldade. Acho que pela vivência, já reconheço um<br />

vagabundo de verdade. Fosse há alguns anos eu vontade de esganar esse<br />

infeliz e acabar logo com isso!!<br />

Ali, por um espaço de tempo, há um clima de tensão no ar. Quem passa<br />

por perto de nós é encarado com uma desconfiança fria. É hora de<br />

cautela e olhares de lado, as pessoas não sabem lidar.<br />

Passa um ônibus que poderia servir para ir embora, mas nem tenho<br />

certeza se serve, a frente dele só fica nítida quando chega bem perto.<br />

Mesmo assim, o ônibus passa em alta velocidade e não para, nem que<br />

eu quisesse. Porcaria de motorista safado, tomara que tua dona coma<br />

teu fígado na cama, seu corno!!!<br />

Incerteza... porquê?! Como vou embora agora? A essas horas, é<br />

complicado passar uma condução aqui para o meu larzinho tão longe.<br />

Voltar todo o trajeto pelo meio de duas pistas e com a cara a tapa até<br />

chegar à rodoviária não seria uma boa ideia, lonjona. Ruim e perigoso é<br />

o c** do Conde. É, fiquei sem escolha e nervoso. A m*** me persegue!


“Sem uma estrela decadente, não tem volta para esse passageiro.” Que<br />

refrão!<br />

Aí penso em algo: o outro pode saber algo, vai que... de repente.<br />

Pergunto ao companheiro de medos sociais se ele sabe se aquela<br />

condução que passou serviria para ir ao tal lugar em questão, o Centro.<br />

O outro, ainda se recuperando do tranco da pergunta inesperada,<br />

responde que desconhece. “De nada, amigo.”<br />

Clima chato, esperamos mais perguntas, disfarçamos, olhamos para<br />

lados diferentes. Depois de muito tempo de agonia nesse friozinho de<br />

junho, em que passam conduções para todos os lugares menos o<br />

desejado, vira, na esquina, um ônibus: parece ser o que eu quero, penso<br />

eu; o outro também pensa: parece ser o que eu quero. Agora espera pelos<br />

segundos, salva... a gente.<br />

É ele; indica a seta para a esquerda e para ao mesmo tempo em que nós<br />

dois, personagens medrosos, fazemos sinal para que estacione a<br />

carruagem de escombros. Entreolhamos... ao ver que queríamos o<br />

mesmo. Há um leve alívio, contido. Que é isso? Já fomos lutadores nas<br />

selvas, mas então... isso.<br />

Agora, um menos assustado que o outro, entramos no ônibus, pagamos<br />

e nos sentamos em locais diferentes. Fica um silêncio brabo, ninguém<br />

sabe de nada. Os passageiros olham. O clima de desconfiança volta e se<br />

modifica de um segundo ao outro, a cada curva, cada reflexo da cidade<br />

montada. É assim, como agentes, como novos passageiros, milenares,<br />

somos o motivo da desconfiança.<br />

Aquelas pessoas sujas, feias, maltrapilhas e com aspecto de derrotismo,<br />

como isso me deprime, como essa rotina imposta estraga as pessoas.<br />

Nós somos o pós, as máquinas humanas, todos em fila indiana para<br />

sobreviver e lidar com os nossos estereótipos capitalistas. E existe! Essa<br />

é uma verdade dura: sou, vivo pelo meu trabalho. Sem o que produzo,<br />

morro. É uma imposição do senhor Dinheiro que abala a selva de trocas.<br />

E eles ainda pensam no disparate da geladeira do anúncio! Desanima. A


gente nesse fim de deslumbramento, mulas 10 vezes sem juros!!! Mas é<br />

chato reclamar, ninguém quer ouvir também, só ficar caladinho.<br />

Vão passando os locais, é tudo bem rápido, nossas residências são muito<br />

distantes. Um por um, geral saindo, aliviados. Outros entram e são<br />

atacados com os mesmos olhares aflitos. Todos pensam que um ladrão,<br />

assassino, um monstro qualquer pode entrar no ônibus e estragar o<br />

momento; este é o esperado ônibus para suas mais que esperadas casas,<br />

aquelas quentinhas. Mas estragar todos seus planos de segurança,<br />

velhice? Pensam nos sofás, computadores, comidas, celulares, famílias...<br />

Vidas, trepadas e saber de tudo isso. Até quem já foi assediado pelos<br />

olhares temerosos faz o mesmo. Pensam em seus corpos estraçalhados<br />

pelas balas sem número de série. É uma guerra, um disputa e um jogo<br />

de quem quer mais chegar seguro e com seus pertences intactos.<br />

O tempo se apressa outra vez, tudo vai ficando mais vazio......<br />

despropositado..... contudo o clima é o mesmo. Quase perdemos o<br />

controle, nem sei o porquê de não acontecer.<br />

Uma mulher entra com outra mais nova. Sentam e esquecem. Querem<br />

ir pra algum lugar – acho que um hospital. Cochicham, dizem depois<br />

de algum tempo que tem alguém doente, só não especificam quem. São<br />

tristes, dá para ouvir tudo, acho até que querem. O motorista lá na frente<br />

tenta explicar onde é o hospital mais próximo mas não consegue, nem<br />

falando alto. Elas tampouco sabem direito aonde querem ir. O<br />

motorista percebe que elas ficaram perdidas e nem conhecem ao certo<br />

o tal hospital em que querem ir... se estatelar. Um leve gelo na barriga<br />

toma conta delas, e se perguntam o motivo débil das doenças virem em<br />

horas tão inoportunas. Sempre o porquê.<br />

É chegada a hora de sair e ir pra casa. Me ajeito, levanto, olho para os<br />

lados e para fora da janela visando a rua. Confiro se não esqueci nada<br />

no banco. Ando e puxo a cigarra para o ônibus parar. Fico menos<br />

nervoso. E me equilibro. Mas então penso: posso ajudar essas mulheres?<br />

É, pelo menos posso tentar, nem custa nada. Acho que sei ser simpático


ainda. Digo: “Senhora, tenho quase certeza que o hospital que cês<br />

desejam ir é pra lá”, e gesticulo com o meu guarda-chuva na mão,<br />

indicando o local. Elas acompanham o guarda-chuva com o olhar,<br />

agradecem e dizem que, mesmo assim, vão sair em outro canto para<br />

pegar outra condução ou se informarem melhor sei lá onde, eu acho.<br />

Foi uma ajuda tímida, mas uma ajuda. Melhor que a do motorista, com<br />

certeza. “Tudo bem então, boa noite”, disse eu. Saio e penso que tentei.<br />

Se elas preferem o mais difícil e perigoso, é uma escolha. Mas gostei das<br />

duas. Despeço do motorista com um ‘valeu’ e desço. Que se... Que dia<br />

a dia bizarro que aguentamos!<br />

Estamos mais ou menos no começo dos 2000, né. Cada um com sua<br />

vida, e logo entraremos em colapso. Que mundo é esse...? Atado à<br />

própria época... ainda... e dias contados, nascendo entre códigos.<br />

Vou pela rua vazia em direção à minha casa – na verdade, um<br />

apertamento, como já disse. Reflito sobre aquelas pessoas e seus<br />

destinos. Refletir é muito do que faço, já que economizo as palavras da<br />

boca.<br />

Chego inteiro, enfim, são e a salvo depois de andar rápido – agora algo<br />

mais cansado ainda, já não tenho as mesmas pernas, sabe. Foi um dia<br />

difícil, mas aqui estou. E os outros? Vão ter meu mesmo fim? Eles<br />

acreditam em sorte? Existe esse troço de sorte? Uma boa noite? Espero<br />

que a resposta seja positiva, é o que deveria ser. Qual daquelas pessoas<br />

já matou, já usou a força? Tenho pena do mundo. Mas só por turnos, e<br />

depende da lua!


– XXXIII –<br />

COMO UM ROMANCISTA INICIANTE<br />

Moro em um canto bem simples: um quarto com cama de solteiro,<br />

pequeno armário de mogno com as fechaduras quebradas, cadeira ao<br />

lado da cama, despertador tipo os do camelô... mais barato, poxa... com<br />

som enjoativo; cortinas marrom, cabides de madeira escura para as<br />

roupas que não podem ficar amassadas – no caso, as do trabalho. Tem<br />

uma divisória que virou sala com um sofá de dois lugares azul de listras<br />

verticais bege e cinza, televisão de quatorze polegadas, tapete também<br />

marrom, uma pequena mesa para os meus livros, CDs & DVDs<br />

selecionados e microcomputador ultrapassado, com espaço para<br />

escrever; sonzinho, uma janela das mesmas dimensões da parede – que<br />

dá vista para a entrada do quarteirão –, ocultada por mais cortinas cor<br />

marrom, uma cozinha frágil embutida com um fogão de quatro bocas,<br />

geladeira pequena e outro armário para louças e coisas de cozinha em<br />

geral; um banheiro suficiente para tomar banho e fazer as demais<br />

necessidades sem muito deslocamento, tudo amontoado com mais um<br />

monte de quinquilharias extras, em sua maioria, papéis. Tá uma bagunça<br />

de m***! Mas não muito mais que isso. Enfim, um lar marrom bem<br />

aconchegante e simples – a verdade era que meu lugar tinha o aspecto<br />

daqueles quartos dos filmes da segunda guerra mundial: paredes cinza,<br />

morno e com poucos e básicos utensílios, uma casa de tons marrons e<br />

cinza borrado pelo preto e branco de si própria... sem enfeites, apagada,<br />

fosca, ruinzinha – acho que descrevi tudo de essencial. E acaba aqui meu<br />

inventário de acumulador mediano.<br />

Jogo minhas roupas no chão e as troco por outras de usar em casa, mais<br />

gastas e ferradas, como eu. Já sem querer estou formando uma pilha<br />

delas no chão. Mas eu nem ligo.


Abro a geladeira e como pão de forma com queijo e manteiga, bebo<br />

suco de uva de caixinha enquanto sento no sofá e me esparramo. Mas<br />

eu não ligo não.<br />

Já descansado e saciado da fome, me ponho à mesa para escrever algo –<br />

esse nem é um hábito frequente, pois não é sempre que tenho tempo<br />

para fazer. O trabalho e os passeios dos fins de semana tomam demais<br />

minha vidinha, pô. Gosto de andar, ver o mar – ou o que sobrou dele,<br />

já que fedia a peixe velho o daqui de perto – e os prédios. Somente...<br />

saio. Arrumo um destino e vou sem companhia mesmo, mas isso não<br />

me impede de me divertir do meu jeito. Quando não faço isso, ouço<br />

música, vejo televisão ou, nas horas mais vagas ainda, atiro dardos. É um<br />

passatempo idiota. Vou até um bar do esquema – um boteco a uma<br />

quadra daqui –, peço uma bebida quente, geralmente uma dessas<br />

Natashkaka – quando estou esbanjando.. –, e fico em um dos cantos<br />

reservados a atiradores de dardos. Não sou um especialista e nem quero<br />

ser, mas fico lá e me distraio. Os outros atiradores são um tanto quanto<br />

exímios em relação a mim, mas que importa? Eles também não me<br />

importam. É só uma distração. Jogam conversa fiada, e eu atiro dardos<br />

na maior calmaria. Compro um charuto ou algo que se assemelhe a um,<br />

porque sou pobre nos últimos tempos até de espírito... e escapo de lá<br />

saciado. Caminho pela paisagem.<br />

Voltando à vontade de escrever, pego uma folha de papel-ofício branco<br />

e caneta de tinta preta, pois essa borra mais a folha e isso, para mim, dá<br />

um ar mais artístico e descolado ao texto já por si mastigado.<br />

Fiz uns rabiscos geométricos nas bordas e no cabeçalho, depois tentei<br />

desenhos mais coerentes e... por fim comecei a fluir pelo conhecimento<br />

empírico; pelo menos igualar ao que já foi feito, nunca menos. Um<br />

cartão de visitas de péssima qualidade não é bem-visto; sempre tem a<br />

ânsia de aprender, evoluir, sim, essa parada.<br />

Chega um momento na vida de um homem, um cara, que ele não precisa<br />

mais de nada que já têm. Perdeu sua afeição pelas coisas e circunstâncias,


aprende a viver sozinho, deixar tudo o que tem. Deixar tudo o que tem<br />

é fácil, pois sabe que não é nada em comparação ao maior que virá – o<br />

algo de..., a tranquilidade.<br />

Nada é nada sem um motivo específico. Um tipo de nada, que ninguém<br />

consegue definir porque não tem embasamento suficiente... mas existe,<br />

é sim, com certeza que sim.<br />

Se já aprendeu um cado de tudo, beleza. Já aprendeu tudo, mas não é<br />

profissionalismo. Muito menos é a morte iminente. Entende tudo ao<br />

redor, essa percepção, razão, intuição, essas..?<br />

Não há detalhes pendentes. Apenas uma recompensa: a experiência de<br />

saber e o deleite dos prazeres do presente de ter sido algo pequeno que<br />

cresceu.<br />

Ainda tem vida em ser único! É a caneta borrando (...)<br />

Tombei no sofá mesmo, e dormi como um bebê. Acordo só de<br />

madrugada sentindo vontade de ir beber um copo d'água. Minha boca<br />

está completamente seca e com gosto de azedo pacas. Ando pela<br />

minúscula cozinha no escuro, apalpando as paredes para não atingir<br />

nada com meus tornozelos. Acendo as luzes para poder enxergar as<br />

coisas ao meu redor e aí bebo água com um alívio e gosto de mau hálito.<br />

Odeio essa m***!<br />

Com a cara amassada, volto para o quarto e sento na cadeira ainda<br />

muito confuso. Lembro de ter ido a um lugar indefinido e ter pegado<br />

um quadro sem moldura enquanto dormia. E sei que olhei por muito<br />

tempo, ô...<br />

“Um quadro e nele um algo amarelo, um ser, quase um homem. Sua<br />

boca está vedada por uma tarja vermelha, não vejo os lábios e dentes e<br />

as mãos foram cortadas, somente aparecendo os sulcos do sangue preso<br />

no cotoco-braço. Seus olhos estão vermelhos e não tem cabelos. A<br />

aparência é molecular, a pele pelada, mas não tem o sexo exibido. É pura


magreza e aparece no meio do quadro, atravessando e não encostado na<br />

tinta, completamente.<br />

Isso flutua sobre um rio vermelho que sai desse infinito, descendo<br />

correnteza abaixo. Ao lado direito desse rio tem uma árvore vermelha.<br />

Suas folhas, galhos e raízes são vermelhas também, putz! E essa árvore<br />

tem olhos, e eles são negros e infantis. Os olhinhos vão seguindo na<br />

direção de... é... desse treco amarelo! No fundo, atrás da árvore, há um<br />

negro horizonte, uma escuridão em que nada pode ser reconhecido.<br />

Do lado esquerdo do rio lembro de duas bocas: uma grande e<br />

sorridente, com lábios pintados de batom vermelho forte, contornos<br />

verdes e uma pintura vermelha contornando ela toda – como as de um<br />

palhaço que pinta as laterais da boca. A outra boca se vê triste e<br />

encharcada de sangue. Seus contornos são também verdes e há, além<br />

disso, pintura vermelha no entorno melancólico.<br />

Ao fundo do quadro, dividido em partes, um céu avermelhado, tons de<br />

pasta negra e marrom; tudo muito obscuro para um céu. Do lado<br />

esquerdo do céu, há uma pequena nuvem nascente. Ela é pequena e<br />

também infantil; desenhada a lápis cinza, começa precipitar algumas<br />

gotinhas de chuva... essas gotinhas vão irrompendo o obscuro da tela. A<br />

nuvenzinha vai atravessando a tela, meio tímida mas decidida. Onde ela<br />

passa a coloração é branca, como se a tela voltasse ao estado puro, de<br />

nada. Ela vai em direção ao amarelar... claramente como o real (...)”<br />

Saio da cadeira e finjo desabar na cama. Volto a dormir, me esforço à<br />

vera, já não vale a pena questionar.


– XXXIV –<br />

SAIU DA RETA!<br />

Tudo foi uma grande e titânica ponte... Jonas talvez não esteja realmente<br />

se dando conta de como pensa, e nessa mesma noite tem mais um sonho<br />

desconcertante. Parafraseando Rimbaud, “segue-se pela estrada<br />

vermelha para se chegar à hospedaria deserta”. Você por você mesmo e<br />

mais ninguém, Jonas. É sua consciência alertando.


– XXXV –<br />

ACORDO<br />

(...) com uma dor de cabeça ferrada... latejando. Bem, devo voltar para<br />

minha rotina – faço todo o ritual matinal, me arrumo e vou trabalhar;<br />

enfim, e... infelizmente, trabalho novamente. Que fatalidade!<br />

Trabalhadores e urucubacas. Quase não dá pra acreditar que convivo<br />

com isso, todo esse desespero, essa troca injusta que é fazer isso nesse<br />

país! Dificilmente é prazeroso com toda essa carga de submissão.<br />

Preciso desacelerar, perceber mais ao meu redor. Há vidas boas, né!?<br />

Jonas, Jonas, Jonas, tsic, tsic... Vejamos o que me oferece um pensamento<br />

extra, e também uma angústia: ir para o serviço! Agora saio, pode deixar.<br />

Pela manhã, saquei um troco no caixa eletrônico da rua transversal ao<br />

meu necrotério diário. Pus na carteira e depois nas calças, pois sou<br />

cagão. Corro até o trampo, mais um pouco e solto óleo de máquina<br />

pelas juntas.<br />

Já pelo final do dia, no vestiário da loja, tenho a precaução de enrolar a<br />

grana em um papelote e colocar dentro do meu maço de cigarro. O que<br />

imaginei? É que ninguém ia me roubar, muito menos aqui, muito menos<br />

hoje, muito menos qualquer dia. Mas é melhor estar um passo à frente,<br />

poxa!<br />

Saio. Passo meu cartão de ponto e pego a condução. Um filho de quenga<br />

me manjou, já estava estranhando. Desci e ele não veio atrás; me dei<br />

bem, pensei. Quando viro para o lado, um mané brota com uma seringa<br />

encostada na minha barriga e me ameaça. Disse que precisava comer,<br />

estava na marola, esses troços. Não me lembro ao certo, só recordo de<br />

resmungos. Geralmente é blefe, e tentei desenrolar, claro. Ou falamos a<br />

mesma língua ou não convivemos, é assim nas ruas. Segue a nossa<br />

discussão:


“Calma aê, parceiro! – Digo, tentando apaziguar nós dois.<br />

CCCacalma é o car**** – Ele retruca, tem os olhos em fogo.<br />

Essa parada tá infectada mermo? Sô trabalh<br />

Mim dá o celulá, bacharel<br />

Doutô? Senhor, o senhor se enganousse – Sou ágil na resposta.<br />

Nem tenta mi engambelá, pô – Disse o pivete, me sacando.<br />

Tô na paz, é qui tô duro, bróder<br />

Dá esse volume no bolso – Ele era esperto, talvez servisse para algo<br />

mais! Sabe, quem tem coragem de sair por aí assaltando poderia fazer<br />

feitos incríveis se bem direcionado, é uma pena. Eles não sabem.<br />

Isso? – Mostrei o cigarro.<br />

BÓRA!<br />

Ó, te dô meu celular, mas o cigarro é vacilo<br />

Eu sô fumante igualzin – Disse o moleque, não arredando pé.<br />

Mas tu num tava com fome?<br />

Coé, coé, plêi<br />

??<br />

Vamo<br />

Vai, leva o celular e faz um rolo nele, mas sem tabaco eu num durmo –<br />

E passei o celular. Tremia um pouco apesar da repentina calma de antes.<br />

TÁ TÁ TÁ BOM<br />

Valeu”<br />

Nisso, enquanto pronunciava a última palavra e respirava, ele saiu<br />

varado, correu muito. Correu igual doido. Fui atrás, nem pensei, ele me<br />

xingou de sei lá o quê. Desesperado que estava, nem percebeu que estava<br />

na Visalândia. Sabe-se que lá ainda rola um policiamento. Dei um soco<br />

na nuca dele, desequilibrou, tropeçou... caiu. “Chutei na cara pra<br />

desnortear mais”, falei esbaforido para um dos policiais. Incrivelmente,<br />

brotaram mais dois polis rápido demais, acho que pensaram que era<br />

caso de turista e tal. Mas em um milésimo de segundo, outro descuido,


eu desviei o olhar para eles e o safadinho cravou a seringa na minha<br />

perna. Arranquei logo! Mesmo assim, me declararei por morto... O<br />

resto... pode-se imaginar o que os guardinhas fizeram com ele.<br />

Com o sangue mais frio, eu mancava. O que eu fiz? Será que era pelo<br />

dinheiro? Que idiotice, mas a agulha não quebrou dentro de mim. No<br />

hospital, fizeram um curativo e exames sanguíneos e nem deu nada.<br />

Depois de tanto, o bandido aqui ficou com medo!<br />

Quem sabe, e então alguns dias se passam. Nada de interessante a ser<br />

relatado, deve ser a vez também da gente fazer uma pausa!


– XXXVI –<br />

DA ALIMENTAÇÃO<br />

Depois do almoço, tem uma sagrada hora: “A hora de fazer a digestão”.<br />

Tranquilamente eu me sento, desta vez em caixas de pacotes mais<br />

resistentes, porque não tem o perigo de quebrar, amassar, como as caixas<br />

de sapato, e descanso nos trinta minutos restantes de uma hora inteira<br />

de almoço cedida, é o que tem.<br />

Comia biscoitos de chocolate quando paralisava meus olhos. Relembro<br />

assim da minha infância, tão boa. Fiquei pensando em partes daquela<br />

época o dia todo, desde que acordei. Havia tanta, tanta... bondade!<br />

Tantos melhores momentos, ahhh, tudo roubado. Nenhum tempo se<br />

aquieta, pois é.<br />

Fico cansado, pesado, toda vez que acabo a refeição. Dá aquela vontade<br />

de imitar os sesteiros e tirar a soneca no meio do dia! Enfim, acho que<br />

posso cochilar.<br />

““Eu estava deitado no chão e... tentei levantar. Então, um gatinho me<br />

viu e subiu no meu chinelo. Esse era muito querido como inocente<br />

malicioso. Era dela, a garota esperando do outro lado da rua; sua<br />

propriedade, como um livro.<br />

Havia pessoas que se pareciam com os tais micro, é... organismos<br />

patogênicos que vi no noticiário local. Eles sorriam sem ninguém ver<br />

quando o vento da chuva chegava ao meu encontro, cara a cara. Eram,<br />

na verdade, esboços de um não-encontro.<br />

Fui caminhar para esquecer toda aquela chateação. E continuava<br />

andando nas bordas daquela ruela tonta. Vento, pedras, etéreos...<br />

Formigas felizes com seu trabalho não me notaram. E continuo indo<br />

papa o meu refúgio. Não passou nenhum carro nem carruagem de<br />

parentes meus, que bom.


Um pedaço de ser humano... já em casa. Hum... gotas de chuva do lado<br />

de fora me fazem dormir. Amanhã, vou fazer coisas que não faço todos<br />

os dias; como um escravo alforriado, pedirei outro emprego, tomarei<br />

banho, estudarei, terei dias de inspiração; terei melhores amores. Só que<br />

ainda fico com sono... será que descanso? Dormindo dentro de um<br />

sonho? Deve ser algum tipo de fadiga. Olha, digo para o tal gato,<br />

novamente. Ele está correndo daquele palhaço de sapatinhos grandes e<br />

vermelhinhos. Venha aqui, queridinho, o dia, pequenino, está tão<br />

chatinho... Ei, por que falo no diminutivo? Que droga toda é essa?<br />

Lembrei da escola, odiava apelidos. Odiava quando me chamavam do<br />

jeito er... ÊTA!””<br />

“Acorda, garotu! Tão ti chamanu lá em cima... Vê si num apaga assim<br />

di novo, pouxa, senão cê volta pra rua; conselhu di velhu”, disse um dos<br />

faxineiros, o mais gente fina de todos os funcionários da loja. Boa gente<br />

humana, existe.


– XXXVII –<br />

O QUE DIRIA DIÓGENES, O CÍNICO?<br />

“Trabalho, trabalho, caraca! Mas só me vem um vazio, toda essa<br />

situação. Fecho os olhos e tenho a lembrança mais antiga da minha vida,<br />

de quando destruí o colar de pérolas daquela que chamei de mãe!<br />

Mais do que marrom eu via aquele restaurante, com pratos e gente<br />

faminta, cadeiras simples e falta de garçons. Não havia música, e as<br />

palavras se mesclavam e formavam um ginásio em plena luta em que<br />

ninguém esperava sua vez.<br />

Agoniado, puxei quase sem querer aquele colar; pérolas escorriam e<br />

criavam mais barulho.... – eram todas falsas, feitas para serem vendidas<br />

em feira pública, mas eram dela.<br />

Barulho! Mais barulho... Comida, cheiro de gente, pano, sucos e<br />

cigarros.<br />

Procurem meu colar! – falava mamãe. Tantas vozes.<br />

Deixa eu ajudá, mãeêê! – dizia eu.<br />

Senta aí, menino! – retrucou ela quando eu atrapalhava.<br />

Agoniado, aguentei um barulho também... até a hora que fiz minha<br />

parte!”<br />

NOTA – Algo se perde na alma do trabalhador contínuo, senhoras e<br />

senhores. E nesse processo a juventude, inocência e o sabor das coisas<br />

se vão! Assim foi com esse Jonas, suas vicissitudes, acometido pelas<br />

mesmas sentenças. Soube também que a vida realmente não é justa, não<br />

como esperava. “É um troço pouco armado, ele pensou, nem dá para<br />

escolher as regras... nem quando começa nem quando termina.”<br />

Mas não o culpamos tanto? “Só se vive uma vez”, dirão. “Devemos nos<br />

colocar no lugar dos outros também, entender tais motivos. Quem sabe<br />

se não faríamos igual?”, também comentam. Mas só há uma chance;<br />

várias opções, mas só uma chance, uma droga de vez... e não faz o certo?!


“Pois então, assim como os espinhos dos cactos, a melhor defesa é<br />

sempre o ataque”, Jonas ainda pensa, sempre o mesmo. Seguimos a ver<br />

no que dá, como se comporta sem a saúde e a paz de que tanto precisa.


– XXXVIII –<br />

AH DE APREENSIVO<br />

Começo a estranhar essa quantidade de pesadelos, não sei, incomoda.<br />

Anda brabo, mais essa! Sinto dores fortes na cabeça, fico com irritado<br />

durante o dia, tenho lapsos, suor frio, pareço febril. Será indício de quê?<br />

Ansiedade? Cansaço? Fadiga? Doença nova? Mas doença nova... dá até<br />

vontade de rir dessa última alternativa! Motivo de preocupação, ou algo<br />

sem sentido? Quais significados? Qual o meu vínculo com a realidade?<br />

Quanta parada para me embaralhar.<br />

Entendo que tenho repousado pouco; minhas horas de sono têm sido<br />

fragmentadas, eu me liguei. E esse emprego que consegui tem custado<br />

muito tempo e dedicação. Acho que meus neurônios enfraqueceram<br />

sendo repositor de mercadorias! Não penso muito, deve ser uma<br />

resposta da minha ociosidade. A complicação é que não posso me deixar<br />

abater, ou como pagarei as contas? Um especialista tem que me dar<br />

respostas. Soluções rápidas! É! É para isso que são pagos: para nos<br />

ajudar. É estúpido, mas não pensei em nada melhor.<br />

Acho que vou procurar um especialista; isso mesmo, alguém que me dê<br />

algum tipo de remédio ou dicas para parar de ter tantos pesadelos. Deve<br />

é me receitar remédios de açúcar, mas tudo bem. Quase não gasto<br />

dinheiro com médicos de toda forma, por isso nem vai ser ruim para o<br />

bolso. Tenho reservas para essas emergências. Isso passa com o tempo,<br />

o corpo se gastando e, é... Vou logo amanhã de manhã cedo. O trabalho<br />

começa às 11, na terça. Acho que dará tempo; não deve demorar, uma<br />

consulta tão boba.


– XXXIX –<br />

TIQUE<br />

O despertador faz o seu serviço e me acorda às seis. Escovo os dentes<br />

para tirar a crosta, tomo um café da manhã rápido, mas reforçado: uma<br />

xícara de café bem adocicado, pão com queijo e manteiga, patê de<br />

presunto e biscoitos de chocolate – o melhor que tenho a me oferecer.<br />

Se hoje eu como isso, é graças tanto ao meu empenho físico como<br />

psicológico, porque antes eu só tinha de prato do dia arroz, ovo, azeite<br />

e farofa pronta. De sobremesa, rosquinhas dessas que dão para as<br />

crianças nas escolas públicas.<br />

Preparo também a roupa: calças, tênis bege e camisa azul sem estampa<br />

e o relógio do meu avô – um verdadeiro uniforme antes do meu<br />

verdadeiro uniforme: camisa branca da marca do estabelecimento e calça<br />

preta! Tudo pronto, só falta a peste do banho!<br />

Entro no banheirinho e vou ligar o chuveiro. Que porcaria velha e feia,<br />

deve ser dos anos 70, ou remete. Mas, que houve? A água acabou, mas...<br />

pou***, como assim? Droga! Não é possível... logo hoje? Maldito<br />

serviço de águas, tudo que é público e se privativa e continua ruim.<br />

Quando você precisa muito, eles falham! Na hora da conta chegar, ãn,<br />

dá tudo certo?!<br />

Vou reclamar, hoje não posso me atrasar, é fogo. Desço três lances de<br />

escadas – resido no terceiro andar de um prédio de cinco – e vou<br />

procurar o bundão do síndico, ex-alcoólatra, mais arruinado que eu.<br />

Depois de falar com ele, tenho a triste notícia de que haveria falta d'água<br />

hoje no bairro todo, devido a um conserto de tubulações. Isso existe<br />

mesmo, e foi até noticiado na mídia. Bom, eu não vejo tevê há um bom<br />

tempo. “Valeu, mas vai um uisquinho aí, tio???”, penso rindo por dentro.<br />

Já vou ficar atrasado mesmo, pois bem, não estou sujo completamente.<br />

Acho que não é algo horrível sair sem banho. Vou dessa forma, ninguém


nota, a menos que esteja podre. Vou trocar de roupa. Não é tão grave,<br />

não ganho abraço mesmo. É só meter um desodorante potente e bau!<br />

Me arrumo e saio. Antes, verifico se não deixei nada ligado – sou muito<br />

precavido quanto a acidentes e desperdícios – e vou até o ponto de<br />

ônibus. Não tenho automóvel, percebe-se, seria muito custoso para mim<br />

agora, além de entender zero de mecânica. Dizem que os mecânicos<br />

desse bairro são piores que os políticos. Bem, pago minhas contas, e<br />

assim já é muito difícil com o que tenho; na verdade, nem sei dirigir;<br />

nadar tampouco, enfim.<br />

Ele até que chega rápido, esse ônibus. Que bom, cara, ainda são 7:30,<br />

sabe como é o trânsito aqui no pela manhã. Até 10 horas posso me<br />

consultar.<br />

No meio de um engarrafamento, ele encalha... o ônibus, quem conduzia,<br />

geral. Mas que belo dia chegando! Filho da mãe, por que não menciona<br />

essa jaca dando pinote?? Avisa, pelo menos.<br />

Duas horas para chegar, poderia ter feito em quarenta minutos... não é<br />

uma beleza? Me pergunto por qual motivo não uso uma bicicleta.<br />

Às 9 e trinta e pouca chego ao tal consultório, que é uma clínica pequena<br />

e aconchegante, de sofá macio. Vou à recepção. A mulher, doce como<br />

peça de cerâmica, confere minha ficha, e tenho outra bela notícia: “Olha,<br />

desculpe, senhor, mas o clínico acabou de sair. Teve que resolver um<br />

problema familiar. Lamento.” Frouxo.<br />

Dose... recepcionistas com suas vozes delicadas e computadorizadas, até<br />

parece que aprenderam em curso de dublagem para dar notícia<br />

desagradável. Mas tudo bem, foi só um começo de dia ruim. Pego um<br />

pouco de água no bebedouro. À m*** a droga da água, quem precisa<br />

dela!!?? E essa... recepcio.. não pode estragar o resto. Mas eu te comia,<br />

era até bonita. Odeio pensar assim, mas é como aquela premissa: “Uma<br />

vez que vivemos em sociedade, tendo que considerar suas regras, somos<br />

todos neuróticos.”<br />

Vou para a escravidão agora, é o jeito, que p...


– XL –<br />

PASSOU O DIA<br />

Ainda posso dizer que estou vivo. Mais um dia, de nada! Descanso<br />

então, vou fazer algo que não faço há algum tempo por achar meio<br />

desnecessário e vicioso, vou descansar vendo televisão. Fico aqui até não<br />

aguentar mais. Vou me entupir de chocolate e refrigerante de cola vendo<br />

um filme. Isso; fazer algo para quebrar essa rotina tosca, relaxar a vista.<br />

Isso deve me fazer bem. Diz na tevê que é bom variar até o caminho<br />

para o trampo para não zuretar as ideias. E se não tiver a fim, nem vou<br />

trabalhar amanhã – pego um atestado por, sei lá... dor na perna!!! É fácil,<br />

eu tenho às vezes mesmo. Afinal de contas, vestir a carapuça de escravo<br />

não faz muito meu estilo; posso fazer o que quero. Ainda sou livre, já<br />

que me nego e escolho.<br />

Vejo o filme, depois o jornal da meia-noite, o programa de auditório;<br />

como muito, cochilo, vejo o programa de auditório, durmo, hunf,<br />

durmo, vejo menos o programa de auditório, durmo e... acordo, e não<br />

quero, essa vida, ah lá vai<br />

“”Cansaço, perda de lucidez, medos, falta de concentração, lerdeza,<br />

poucos tipos de apetite. Sem vontades definidas, quarto desarrumado,<br />

pertences de lado, descaso aos... efeitos do sono, tantas vidas estragadas.<br />

Não me sentindo até mesmo feliz, preciso de boas horas de sono. Senão<br />

continuarei a ter cãibras noturnas.<br />

Dormência, cansaço, sono e cair... Eu caio. Não vejo nada, apenas<br />

pecado. Não ouço nada, sou nada pairando em memórias.<br />

Ainda vivo, mas onde vim parar? Dê uma razão para tudo isso. Sei que<br />

ela me levou ao limite a que estou acostumado.<br />

Olá, heroísmo! Tão confuso, imitando seus gestos. Olá, que estamos<br />

perdidos, descendo a um outro lado. Sem essa de visões sem sentido, e<br />

o herói? Eu deveria? Hem?!””


“”Ahhh..! Folias, folguedos, adornos etc... é uma viagem, um deslize na<br />

minha consciência.<br />

O tal prédio cinzento foi ficando azul e nele apareceram poltronas<br />

verde-musgo, humm. As paredes desse prédio eram de tijolos expostos<br />

mais de uma vez, sem nenhum tipo de indicação. Então, ele foi ficando<br />

azul-escuro, depois roxo, e vi e entrei e dancei no saguão, com a dama<br />

de honra dos ricos que vestia um lindo vestido preto de bolinhas<br />

brancas e... usava uma pasta de documentos de importância. E fumei<br />

algo, com muito estilo, eu tinha classe!<br />

Fechei os olhos e estávamos naquela piscina de goma de amoeba cor de<br />

abóbora, sem roupa e rindo muito. Éramos felizes! Havia lá, também,<br />

uma cabeça flutuante, com batom vermelho e tudo – ofuscante! – na<br />

boca... e também com hálito de bala de hortelã e cheiro de álcool, tudo<br />

junto, falando ao celular: “Faz parte da minha viagem, aqui, viver assim.”<br />

Um perfume fresco pós-banho e sabor de ovos quebrados mais abaixo,<br />

então ela me deu o seu lenço, lençol e leito, éramos bichos no cio!!!<br />

Ei, que lugar é esse? Eu é que sou um alienígena? Por que não me diz<br />

logo o tom daqui? Moça? Ô sua maluca, me ouve, cadê você??<br />

“Isso, sim. Mas são sinteticamente moldáveis a estações do aan”, ela<br />

responde.<br />

Concluo, então, que ela me deu minhas asas de novo. Eu sei, sempre as<br />

tive, desde criança, mas elas eram diferentes. Essas novas não são as<br />

infantis, são modificadas para parecerem as da infância, mas voam, que<br />

bom.<br />

Dançamos de novo. Desta vez, ela usava um vestido feito na Índia, e<br />

também blusa branca. Bela moça, a mesma e diferentes épocas!<br />

Estávamos na rua, e eu gritei: “A festa vai terminar! Nosso carnaval terá<br />

fim amanhã. Dá mais um beijo e deixa de lado o que eu te trouxe de<br />

ruim, fica é com carinho. Quando a gente era criança fazia de tudo,<br />

agora só podemos o que dá com notas, quatro dias e máscaras de<br />

atitudes. Até o próximo ano, fofa!”


Já de dia, peço uma lanterna ao menino da rodoviária e digo para levar<br />

um bilhete a ela. Estava escrito: “Hoje eu me vou, meu amor. Ouve,<br />

moça, elas vão aumentando com o tempo! Fica aqui, lá fora é ruim,<br />

preciso voltar.””<br />

“”Tchôôônnnnkkkkkhhhhh. Um pesadelo de angústia e nuvens<br />

carregadas. Eu já sei o fim disso. Por que, então, sempre volto aqui? E<br />

me pergunto depois..?<br />

Aqui dentro é uma bagunça. Eu já tive situações melhores.<br />

Quebro a entrada... ela é só uma porta, uma de marfim onde o material<br />

utilizado é de caixas de ovos de supermercado. Isolam meu som. Sim,<br />

eu preciso retornar, já sei o fim disso, poxa... mas por que que volto?””<br />

“”(...) na festa que tudo começou; ilusões à parte para a música fluir<br />

livremente. Esperávamos mais um pôr do sol gélido, mas, dessa vez, nem<br />

mesmo o que seria destino se fez certo. Esta noite foi só o começo, e<br />

não poderíamos morrer sem vivenciar a euforia da experiência recente.<br />

O grito musical fez a gente acordar e definhou como vinho no<br />

estômago, afundando nossos delírios de novo e com drogas para<br />

inocentar.<br />

“Minha doce menina”, disse para ela com a voz chiada tipo rádio,<br />

“ahhhhhhhhxxxxiii em poucas palavras eu te fiz. Tua pureza se perdeu<br />

na minha conversa. Hummmmmm em nossa ladainha já não existem<br />

mais virgens. A pureza se foi, lares se foram, mas as palavras doces ficam,<br />

em tu.”<br />

Grande noite, querida, nem se esqueceu, não é? Hum... pelo interior,<br />

grande noite. Você novinha, a pele.<br />

Para que sonhos de beleza se realizem, não basta que ela apenas olhe;<br />

nem mil moedas de ouro das nossas fortunas comprariam a face. Vê?<br />

Amantes, aquela boca doce de geleia de duas cores, das padarias de


sempre... mas não para as almas tristes, porque fortunas não chegam no<br />

ritmo certo.<br />

Ela não vai te levar, eu penso, nem através do sussurro, pensando nos<br />

eunucos sentimentais, porque você não teve a mesma sorte daqueles que<br />

a tiveram nas mãos, mãos que nem mais. Facilmente, o último sorriso<br />

será meu, ninguém terá, nem quase. Nada é perfeição, anulados. Nada!<br />

É só uma palavra. E daí!!!?<br />

Doce ilusão, pária perfeitamente maquiavélica, maligna. A embalagem<br />

que encontramos para adentrar esse mundo, essa última encarnação.<br />

Vertigens, sonhos onde eu era um garoto protegido e feliz, e nos<br />

bastaríamos, diretão. Mas eu sonhei, eu sou realidade pobre, prodígio?<br />

Estraguei de novo, você viu, me acusou para todas as cidades que<br />

passamos com seus bilhetes.<br />

Beleza sutil que sem dinheiro não se compra foi sua, minha, por terra.<br />

Eles pensavam que eu não conseguiria. Então, o último sorriso foi meu,<br />

o último suspiro, grito. Que foi? Não esperneia não, deixei minha<br />

música rolar; não fiz não, mas se parece comigo... agora. Ainda tem<br />

vertigem? Talvez a dosagem tenha sido alta.<br />

Endoidando... apunhalada, seca, apenas em casca, sublime, a menininha<br />

que eu gosto.<br />

Podem vir do jeito que quiserem agora, ela fica sempre à disposição. Por<br />

que eu ia querer ela do jeito que parece agora? Um lugar para ela, eu<br />

deixo.<br />

Já é a páscoa para os judeus, ateus naturalistas reivindicam. Ouvi na<br />

canção, sério...<br />

Pois bem, contarei a sua história, é esta: alimentei a ilusão com uma vida<br />

melhor, adociquei com livros, pratos de arroz e caldos humanos.<br />

Adicionei um fútil “quem iria se importar com teus sentimentos, sua...<br />

adolescente?” Abri a janela dos nossos aposentos subterrâneos e falei:<br />

“Nunca ninguém te viu com bons olhos, nunca ninguém me olhou nos<br />

olhos também. Me perverti, cada um de um jeito, somos muito


parecidos, talvez até irmãos, gosto de pensar nisso.” Contei minha<br />

história, toda a verdade, eu fui alugado porque deixei.<br />

Ela enfim se surpreendeu com meu tom sereno e debochado. Nos seus<br />

próprios olhos, corpo, vastidão, escrito em sangue fresco por pingar:<br />

“Sirva-se sem moderar.” Mas no coração arrisca que “destrói até na<br />

estrutura, só que sem partir sentimentos.” Quanta bosta vazia, querida!<br />

Sentimentos perfeitos, e acha ser um amor. Eu parei de ter essas<br />

palhaçadas facilmente... tenho algo de ruim sem erradicar, não sei como.<br />

Trago das torturas inumanas, a queimar os pés, dedos. Furando os<br />

olhos, sentindo cheiro de podre, dor, tudo eu penso. “Suor, arrepios,<br />

náuseas e ansiedade; vem viver na beira, vem!”<br />

De novo ouço aquela música... de acordes lentos. Eu que pus no rádio,<br />

um disco de 80. Bela face... bela e tchau!! A mente virou uma bagunça,<br />

mas não, não te perdoo. Amarrei para ver o Éden. É bom imaginar.<br />

Exausta e louca, por vários dias, com essa música repetida para liberar<br />

os instintos mais animais, seu lado ruim, seu verdadeiro íntimo e<br />

primitivo. Ótimo será o tesão da gente nessa hora, não vai ter<br />

hostilização! Várias vezes o coro das crianças órfãs. Teu corpo gasto se<br />

revela, é a mesma, te amo.<br />

Quando essa sacanagem acabar, não me condenem; ela me conduziu ao<br />

mundo raso, vários pensares, delírios, sonhos, aquela música lenta de<br />

novo!<br />

Mesmo que me mate, um dia me salvou. Ihhh, eu lembro. Nos salva,<br />

alivia mesmo que custe muita grana. “Com muito, você aceita?”, ela<br />

perguntou. “Mas não é do suborno que preciso. Tenho uma linguagem<br />

ultrapassada, já percebeu. E esse papo é de esculachados que somos.”<br />

Só para saciar dessa música, vou nas estrelas, na rua aqui ao lado; vou<br />

comprar cigarros e cerveja para passar a noite, ou até comida e te ver. E<br />

uma cerveja, a refeição mais completa que existe!! É barata, qualquer bar<br />

que se preze oferece. Quero te observar bem calmo.


“Com a explosão do gatinho da arma a sangue vai se espalhar pela<br />

parede e jorrar pelo nariz da vítima sem história. Não há respostas para<br />

certos questionamentos, somente imagens contrabandeadas nesse<br />

perímetro justo... acaso o susto for maior que o desgosto.”<br />

Sozinho na escora, ainda comemoro as festividades populares. É uma<br />

pena não te ter... por perto, querida. Mas o que houve com nossas vidas?<br />

Não sei por que se foi. Fico te procurando... Coloco nossa música no<br />

rádio... Nem sei quando ela começa ou termina... Ouço distúrbios às<br />

vezes... Fico te procurando... Coloco nossa música no rádio... E você, eu<br />

ouço. Não sei por que se foi... Fico te procurando... Coloco nossa<br />

música no rádio... Coloco nossa música no rádio... música e.. TUM!


– XLI –<br />

P***<br />

Que me pariu! Eita, que foi isso? De onde chegaram essas palavras? Que<br />

bizarro! Estou doente, devo ser um doido, essa é a resposta. Um doente,<br />

maníaco, que m***! A mulher dos pesadelos se parecia com Joana, minha<br />

antiga namoradinha. Mas por que eu faria aquilo com ela, coitada?! Não<br />

me fez nada, meu cérebro está cozinhando dentro.<br />

Depois de todos esses pesadelos, fiquei muito perturbado. Preciso de<br />

alívio. Vivo cheio de besteiras, acho que vivo doente e agora... resfriado.<br />

Acordei resfriado, com a garganta em péssimo estado e com o corpo de<br />

uma tonelada. Odeio ficar doente, ficar nessa de acamado. Deve ter sido<br />

o vento noturno pela janela, me sacaneando toda a noite. Poxa, ainda<br />

tenho isso, a gente é muito perecível mesmo.<br />

Aproveito e preparo algo para comer porque a barriga me dói. Ruim ia<br />

ser ter que sair da cama e gastar dinheiro lá fora na rua. O punhado de<br />

arroz, ovo, farofa pronta e geleia de goiaba de ontem já me bastam. Mas,<br />

sei lá... Jonas, seu imbecil! Tem alguma coisa te cobrando, para tudo há<br />

um preço. Devia deixar de ser um monte de suspeitas em forma de gente!


– XLII –<br />

1,2,3 GRAVANDO!<br />

9:20 da manhã:<br />

De uma hora para outra fico assim: fraco e estatelado no sofá. Por qual<br />

motivo existem essas limitações? O ser humano não podia evoluir de<br />

verdade e virar Deus!? Nestas horas, é boa uma companhia, mas não<br />

tenho ninguém. E é melhor nem ter mesmo, porque dá mó trabalhão!<br />

Os que poderiam me ajudar estão muito longe daqui. Não posso contar<br />

com ninguém para cuidar e medicar o animal aqui enquanto descansa.<br />

Devia deixar de ser tão egoísta, isso sim. Estou pagando o pato!<br />

14:50 da tarde:<br />

Era para saber sobre essa vida sedentária, de serenos... – me deixou<br />

pouco imunizado. Tem uns dias que já vinha notando os primeiros<br />

sintomas, mas nem dei bola.<br />

As dores estão mais intensas. Tomei analgésicos e bebi um pouco de<br />

suco de laranja com limão, mas não surtiu efeito ainda; poderia tentar<br />

beber mel no gargalo... só que não, definitivamente, não! Mal consigo<br />

andar pela casa. Vou ficar aqui, no sofá mesmo, vendo essa maluquice<br />

que exibem, pensando se tem saída, ahh<br />

20:00 da noite:<br />

As dores corporais fizeram par com as dores de cabeça e o nariz<br />

entupido pediu à febre a honra da dança, todos no mesmo salão.<br />

Continuo aqui, na mesma, dormindo, acordando. E meu cabelo duro.<br />

É quando ficamos podres que a consciência ativa, deve ser.<br />

23:10 da noite:<br />

Nem antibióticos eu tenho aqui. Sair para comprar, não dá, até porque<br />

sem prescrição médica não é muito lá aconselhável. E não gosto muito<br />

de remédios. Odeio pronta entrega também. É tudo uma lasqueira,<br />

melhor esquecer... Podia ser mais doloroso do que me infligir?


23:11:<br />

Opa, opa, calma aê! Achei um canal educativo legal, passando um<br />

documentário sobre os homens das cavernas. É bem interessante, e uma<br />

raridade! Algum programador se inspirou. É isso, dá para relaxa e passar<br />

as horas. Até esqueço de mim


– XLIII –<br />

COM A TEVÊ DE AMIGA<br />

Esqueço a doença, a chaga durante a divisão do prazer, ou se chega<br />

sorrateira durante a noite..... é uma ladra, uma ninfa – por não matar<br />

fatalmente; como não?? A escrota mãe atrativa de todas as escrotas<br />

transmissoras. Passava e passa nessa tela, mas aqueles; me impressionei<br />

muito vendo aqueles seres, dado todo o sincretismo em relação ao tema:<br />

nós, humanos. Eles tentavam de tudo para sobreviver em um local<br />

totalmente hostil a eles. Eram deslocados ali, e ainda atípicos, brutos...<br />

na terra, era, tempo, idade, sei lá... tribo do fogo.<br />

Ainda assim, o que realmente me espantou foi o conceito de morte, seus<br />

enterros e ritos de passagem naquele frio. Não entendi direito, mas acho<br />

que viviam em uma das eras do gelo, e eles já sentiam falta de seus “entes<br />

queridos”.<br />

Questionamentos: nossos ancestrais, eles tinham consciência? Crenças?<br />

Eles também se transformariam em almas? A partir de quando os seres<br />

humanos viram almas? Como seria o dia a dia das almas penadas? Mais<br />

legal? Os macacos, nossos ancestrais, têm alma? Ou eu sou parente de<br />

quem? Os homens primitivos, por exemplo, os de Neandertal, já<br />

acreditavam em deuses? Já ouvi que enterravam os mortos com seus<br />

objetos de uso, deviam então ter alguma crença em vidas futuras ou<br />

sabe-se lá quê! Tinham medos como os nossos? Foram para o céu ou<br />

inferno os primatas? E se o planeta Terra fosse explodido por um<br />

cometa e virasse pó, onde ficariam nossas alminhas? (...) Vagando pelo<br />

espaço sideral? Haveria outro refúgio? Ter inteligência é sinônimo de ter<br />

um outro destino no pós-morte? Zoeira. Está fogo isso aqui, esse filme<br />

embaralhou minha cabeça, nunca havia pensado sobre isso.<br />

É isso, devo ter pensado demais, acho que nunca vou saber a verdade.<br />

Só sei que não se pode deter quem não teme a porcaria da morte, a<br />

força.


– XLIV –<br />

O SER HUMANO E<br />

Suas conclusões que se encaixam; repetidas e através do tempo. Como<br />

tudo segue um padrão, como somos instintivamente previsíveis; quase<br />

nada mudou desde nossos ancestrais, principalmente em se tratando de<br />

comportamento, trabalho, amor, sexo. Às vezes, somos iguais demais,<br />

nos vemos em outras pessoas na rua, nos enxergamos como aquele<br />

parente tal que puxamos, mas, mesmo assim, o complexo nos confunde.<br />

Várias vezes me disseram que pareço com não sei quem, que me viram<br />

noutro lugar qualquer, vivem confundindo. Mas eu não sou ninguém,<br />

existo apenas como mais um carinha entre roupas.<br />

Nas decisões e na violência, no bem e mal, nunca acaba o déjà vu animal<br />

chamado por nós de instinto. Somos pura tendência, somos tão fáceis e<br />

não sabemos; é o que acho, concluo depois desse programa que vi.<br />

Por que ainda existe gente que complica a própria mediocridade? É o<br />

ócio. A febre da vida. Como dizia o compositor, “Quero assistir ao sol<br />

nascer/ver as águas dos rios correr/ouvir os pássaros cantar/eu quero<br />

nascer/quero viver”, afinal de contas, poeta é quem vive, não?! Mas não<br />

sou isso, sou outro Jonas, sou um lascado e um devedor!


– XLV –<br />

UMA MORTE<br />

Mas e a consequência? E para onde vai? Haverá depois, algo como um<br />

espírito ou serei apenas um tipo de luz? Aquilo que somos desaparecerá<br />

de vez? Que é morte? Vivo, eu poderei me ver... mas e morto? Pensarei?<br />

Sentirei algo, calor ou frio? E sexo, vai rolar? Será que vou poder beber<br />

suco de laranja? Preciso de laranjas!! Faço questão demais, é isso.<br />

Vazio, hunf. Queria que já fosse sábado, domingo, feriadão. Final de<br />

semana é quando as famílias do prédio se juntam para brigar. É, acho<br />

que passam a semana toda se segurando para liberar as agonias uns nos<br />

outros quando dá. Ao menos é entre gente do mesmo sangue, que se<br />

ama, ficam unidos de alguma forma.<br />

A morte deve ser muito ruim mesmo. Quando tomei consciência dela,<br />

diante do falecimento de parentes queridos e da visão de que, um dia,<br />

virarei lembrança ou não, fiquei esquisito. Fiquei assim ainda durante<br />

semanas, enxergava terror, e só com o tempo fui esquecendo aquela<br />

descarga de emoções, essa que é a pior das sensações. Talvez por não<br />

saber o próximo passo e por não crer em religiões, pois existem tantas,<br />

e com tantos deuses e divindades... fico zonzo com a criatividade das<br />

pessoas em procurar abrigo e segurança espiritual na vida pós. Melhor<br />

viver no hoje, acho.<br />

Não sei se me arrependo do que fiz, se conto e sou assassinado também.<br />

Vejo que...<br />

“Há uma praia, e nela estão todas as pessoas, conscientes, de todas as<br />

épocas e lugares do mundo sem suas divindades ou crenças<br />

mirabolantes. Foram simplesmente jogadas ali?”, pensava eu, sobre um<br />

sonho repetitivo, ainda moleque.. eu tinha muito esse sonho. Não sei,<br />

não me lembro ao certo, apenas a base. Herdei alguma imaginação<br />

familiar! Nem sou espírito, estou é vivo. Mas, e o não... haver? O não...<br />

pensamento. É possível? Criar algo é fácil, ter certeza é outra história.


Vagar ou desaparecer? Se não sou um animal, portanto penso, por que<br />

pararei de pensar? Esse desconhecido nem deve ser algo filosófico, como<br />

pensam, mas é sim uma boa de uma dor no peito, angústia de lembrar<br />

e, às vezes, de nem saber de quem já morreu, foi assassinado ou cometeu<br />

suicídio e perdeu sua história... não deixou um legado e caiu no<br />

esquecimento. Isso é triste pacas, ahh que m*** de juiz fui??<br />

Gostaria de não ser apenas um ator coadjuvante das malícias ao meu<br />

redor, nem me deixar perder tudo, viver nebuloso, é pior do que ser um<br />

grão de areia no deserto. Sou um outro eu quando acordo? Mas, se não<br />

sou eu, morri? E se já morri e não me dei conta, nem tive a elevação<br />

necessária para entender... e fico como que preso neste planeta de<br />

sofrimentos. Que isso!<br />

Uma última questão: mas, e depois? Falam que todos ficaremos felizes<br />

e puros naquele “céu”, mas ei, isso não seria um tanto quanto chato?<br />

Vai usar toga? Nunca iria mesmo para lá, estou mais pesado que pedra!<br />

Penso no dia em que, aqui, sozinho em casa, vou morrer aos poucos;<br />

ninguém virá para me acudir, eu sei, eu vou desaparecer nessa desgraça,<br />

e a terra, sempre por perto, vai me tragar e deglutir porque já não sou<br />

digno. Devo ser honesto comigo mesmo.<br />

Vou botar meu fígado na geladeira e comer daqui a sete anos! Não sei<br />

mais o que pensar, só não quero parar. Será mesmo que estou<br />

arrependido? Então por que não me entreguei? E quanto às famílias<br />

daquelas pessoas? Deve doer.<br />

Coitados de nós, homens dessas cavernas ainda. Eu então, que nem amar<br />

consegui. Muitas coisas me impressionam fácil. Tanto adubo.<br />

Apago, voluntariamente. Não tenho mais o que dizer.


– XLVI –<br />

QUEM CONSTATA<br />

Como sou bobo, a hipocrisia me iguala, me põe de volta à realidade e<br />

acordo em uma nova manhã, tão cansado, porém muito melhor do que<br />

ontem.<br />

Saio ao trabalho já sabendo que vou levar um esporro por não ter ido<br />

ontem, nem avisei. O supervisor gosta de um sermão escolar, mas eu<br />

expliquei direitinho o que me ocorreu e argumentei – muito bem, por<br />

sinal! Sou bom com essas bestas, falei até que não tinha tirado folga<br />

ainda e que estava no meu direito. Tinha que entender, vai se lascar, sou<br />

humano, pequeno empregado, subjugado pelos grandalhões... a culpa é<br />

dos outros. “E se quiser outro, me demite, seria é um alívio!!! Melhor o<br />

olho da rua do que essa servidão!”, penso.<br />

Trabalho. Fraco, mas trabalho. Embromo, faço hora... até o último<br />

minuto. Não vão reclamar mais.<br />

Nada de pesadelos hoje também, fiquei mais relaxado. Que paranoia!<br />

Não entendo, são vozes mútuas me sacaneando... estaria melhor, mais<br />

produtivo sem esses pesadelos? Ou é uma forma de retorno?


– XLVII –<br />

O DESMILINGUIR<br />

Saio mais cedo neste outro dia, é porque aleguei dores fortes no corpo.<br />

O patrão entendeu. Mula! Adora uma sopa de legumes, ai, ai. Hahahah<br />

“os piores escravos são aqueles que estão servindo constantemente as<br />

suas paixões.”<br />

Respiro fundo, hummm. “Tem... analgésico pras dores?”, pergunto em<br />

uma farmácia no caminho.<br />

Sigo, ainda é cedo, 9 e pouca da noite. Essa lanchonete é muito boa,<br />

dizem. Vou tapear o estômago aqui, porque não tem nada em casa para<br />

comer, muito menos minha paciência anda para jogo.<br />

Peço um sanduíche natural e suco de laranja padrão, só preciso amenizar<br />

um pouco a quantidade de porcarias que tenho comido, já que ando me<br />

alimentando muito na rua, e podrões da rua não são tão confiáveis.<br />

Mesmo assim, nenhuma lanchonete é isenta de tal premissa, eu sei! Essa<br />

galera faz barbaridades.<br />

Sento em um canto e espero o pedido, ou melhor, a dona trazer lá do<br />

buraco. Penso, sabe, sempre achei escroto e suspeito essa coisa de filas<br />

para pegar comida em lanchonetes. Essa palhaçada de fastfood enlatada<br />

é uma invenção cruel de sei lá onde que deveria ser abolida da Terra,<br />

começando por aqui! E por que essas músicas e essa estrutura que<br />

dependem da rapidez? Comida é para ser digerida, não enfiada goela<br />

abaixo, de pé, já sacando mais e mais notas.<br />

Enfim. O dia foi cansativo, comi pouco, descansei pouco, ando<br />

trocando as pernas. Tem tanto que tenho que resolver.<br />

Bom, então o pedido chega; como com muita pressa também, tipo um<br />

monstrinho! Me esparramo depois, aliciado como tantos. Através do<br />

vidro da entrada enxergo o movimento daqui, é bom, devem tirar um<br />

lucro maneiro, um grande entra e sai de gente e carros passando, rua<br />

iluminada, desenhos nas paredes.


“Estava eu na sala com tu, sem tu, conversando com a família de alguém<br />

– esse alguém me parecia ser uma mulher. Os presentes no recinto<br />

ficavam perguntando sobre minha vida, costumes, meu jeito de ser e o<br />

que faço diariamente. Importunavam, eram interesses. Sou pobre, e daí?<br />

Não sou extraordinário. Talvez eles estivessem me testando, muito<br />

provavelmente para uma possível união com – aliás, perto de mim, você<br />

agora me olhava enquanto não percebia. Embaraçoso mas divertido. É,<br />

desnecessário... fica a impressão de que todos nós preferimos ser<br />

enganados. Por que não espanta?<br />

Queriam saber o que vejo na tevê e se eu tenho algum nível de instrução.<br />

Falei que não vejo tanto assim. “Não gosto da atual programação<br />

exibida, acho demasiado fútil e indiferente quanto a me agregar algo de<br />

bom”, disse, tentando soar inteligente; como sou ingênuo. Falei também<br />

que, quando paro para ver, assisto programas que sejam culturais. Eles<br />

não gostaram da notícia, achavam que só os programas que gostavam<br />

seriam os melhores para nós. Vai entender!<br />

Eu não me abalava; muito pelo contrário, tentava mostrar como estavam<br />

errados e que há coisas boas onde não se conhece. Seus medos eram em<br />

relação ao desconhecido, dava para sacar. Acho que viam o Faustão ou<br />

um similar genérico qualquer. A opinião é minha, aleatória é a escolha.<br />

Todos pararam de me analisar e começaram a me deixar andar pela casa.<br />

Logo depois, fiquei sentado. De repente, eu olhava para uma tela e me<br />

via. Olhando... para meu reflexo? Como se estivesse vivendo dentro de<br />

lá? Sabia que era eu... ah, de novo essa cópia!!”<br />

“Ouço um barulho, inaudível para os comuns, algumas distorções e um<br />

zumbido. Tremem as bases, a atmosfera pesada cai em batidas rápidas.<br />

Corrói a garganta, escorre o nariz... e silêncio. Hem?<br />

Algo parece dar as caras. Aumenta a velocidade de novo, huuum. Sons<br />

estranhos emanam de todos os lados, estéreos. Um martelo na cabeça,


alguém machucando meus pensamentos, um demoniozinho medieval<br />

dentro da razão, está para vir, sei lá!<br />

Distorções, tudo sem sentido. Obscuro, ruídos e embaçado. Velocidade,<br />

vultos. Tensão. Algo quer explodir. Ruídos mais fortes. Demolição.<br />

Colapso. Nervoso. Caído. Estragado. Um fio<br />

Silêncio... mas que droga!<br />

Alguma voz quer dizer algo... Cantaaaaahhhhhh<br />

Fuga, dentro desse corpo. É medieval de novo, toda moléstia!<br />

Agora tem um martelo mais destrutivo, cheio de potência no golpe.<br />

Muito estrago. Demolição... para me rachar de novo. Eu me parto,<br />

concluindo? Esmaeço com os ruídos ao mesmo tempo.<br />

Caí. Sem forças. Inerte. Um avião lá no céu. Mistério, tremedeira, suor,<br />

frio, angústia, medo... e silêncio? Não, de novo não! Tudo vazio. Finura.<br />

Só eu!!<br />

Angústia. Maldito silêncio. Quero me mexer mas nada responde, ahh<br />

Pequenas novidades acontecendo por aí: sons da natureza, pássaros,<br />

aviões, o vento... uivos do vento? Cantigas para dormir? Dormir?<br />

Fábulas!?<br />

“Acho que agora consigo. Não tem ninguém me dando broncas.”<br />

Vou caminhar, eu, posso, posso, tuuuummm<br />

M*** caio em mim, engatinho. O teto longe, a escuridão.<br />

Um fim? O quê??? Quem quer falar comigo agora? Fala mais alto,<br />

droga!!!<br />

Quase conseguindo..?? Ruídos... maiores, melhores. Um navio apitando<br />

no meu cérebro, óóóóhh!<br />

“Não conseguiu... o que te venceu foi o sono, Jonas, o bocejo de tua<br />

baixa energia. Há quanto tempo tenta?”<br />

NOTA – Olha ele apagando novamente, ihhhhh!!! Aceite que agora<br />

você faz parte do frio e da escuridão, Jonas. Seu mundo mudou, tudo


transformado. Segura essa avalanche, rapaz, é tua cabeça que anda te<br />

passando a perna. Sigam, caros.


– XLVIII –<br />

TE OBSERVAM<br />

“Ele já tá ali tem meia hora, ô Deus”, disse uma das funcionárias da<br />

lanchonete, já com a cabeça na hora de fechar.<br />

“Como esse rapaz consegue dormir com todo esse barulho ali fora?”,<br />

perguntou uma velhinha.<br />

“Pode mudar de canal, querida? (...) Heh, garçonete. Tá passando um<br />

jogo que tamos na pilha de ver.”<br />

“Ele deve estar muito cansado. Mas vou dar uma olhada.”<br />

“É, quem não está cansado aqui?”<br />

“Senhor, por favor... Hiii, apagou mesmo. Não consigo acordar não.”<br />

“Que houve ali, morzinha?”<br />

“Deve ser um desses doidões.”<br />

“Vamo, chama a porcaria da ambulância, ele tá desacordado...<br />

desmaiado, sei lá. Tinha que ser aqui??”<br />

“Não dá ouvido não, mas se a encrenca tá vindo é hora de vazar.”<br />

“Ele não deve tá bem, pessoal, pode ser algo realmente sério. Cacete, ele<br />

tá cheirando a xixi! Mas que... logo no meu dia!”<br />

“Vagabundos. Esses rapazes sem estudo... Deve ser um chapado. Não<br />

olha para ele, filhin. Tá alteradaço esse aí...!”<br />

“Vamo logo, parece que tá delirando. Pode tá sob o efeito de..”, assim<br />

proferiu a enfermeira, olhando um outro enfermeiro.<br />

“Uma intoxicação? Travou??”, fala o motorista da ambulância.<br />

“Deixa que eu examino. Baita m***! Essa é nossa noite”, falou o médico<br />

“Isso aqui é uma emergência, dá passagem, por gentileza! Quero exames<br />

de sangue, acho que foi uma intoxicação! Vai!”<br />

“O problema é psicológico?”, pergunta a enfermeira.<br />

“Levem para um quarto. E mandem chamar o Dr. Orlando, vou passar<br />

essa peteca para ele”, brinca o médico.


“Contrações nas mãos e face, movimentos oculares rápidos, frequência<br />

cardíaca e respiratória irregulares, registro encefalográfico<br />

característico... sono profundo. Hipócrates te ajude, garoto. É um<br />

paradoxo, Jonas. Só quem é livre é mais forte. Você-só-achava-que-sim!<br />

Aguente suas novas paredes em branco, tudo fechado.”


– XLIX –<br />

UM QUARTO E NADA MAIS<br />

As paredes do quarto eram pintadas de branco. Siim... como o frio e<br />

vazio polar. Meus olhos tremem, preciso sair do nada!<br />

Acordo e alguém me aplica uma injeção, daí fico zonzo pacas. Nem<br />

conheço essa, essa mulher com tanto veneno. Tento falar, contar minha<br />

história, mas não me dá ouvidos. “Ei, calma aí... por favor, não preciso<br />

de mais sono. Já chega. Ou! Não, não!!! Droga, ouve, pô!”<br />

Abro os olhos nem sei quanto tempo depois, muito confuso. Meu<br />

maxilar parecia querer entortar, ainda que sentisse o sentisse rígido.<br />

Acho que visito um hospital, um bom mesmo. O melhor para me retirar,<br />

talvez. Será isso é uma alguma hospedagem forçada? Acho que devo<br />

mesmo descansar, ficar sem pensar (...)<br />

As paredes tão brancas, amarelas, algumas partes creme em seus detalhes<br />

laterais. Camas benfeitas, tubos, enfermeiras e cheiro de clorofórmio.<br />

Um bom atendimento, seco e ensaiado depois de algumas horas<br />

esperando a operação. Espera, operação? Do que falo? Mas que<br />

operação é essa, de onde tirei isso? Devo ter ficado besta!(..)<br />

Outros internados passam, são hóspedes que como eu fitam o teto e a<br />

tela. É um internar, já sei, a estadia.<br />

Tudo tão limpo... um exímio hospital, é mesmo. Quem será que pagou<br />

por isso? Será que foi minha família? A empresa? Nem lembro se tenho<br />

plano de saúde... muito menos que cubra tudo isso, essas paradas de<br />

rico. Vai que me confundiram (...)<br />

Pela noite, o movimento liga-desliga do ar-condicionado me acorda,<br />

então reparo que a comida foi trocada. Mas, e o gosto? Cadê a bo*** do<br />

tempero? Serviram uma papa, mas a fome me obriga a digerir o que der<br />

e vier(..)


Nunca consigo sintonizar um canal decente nessa tevê – talvez seja a<br />

antena. Será que esse é hospital público? Foi propaganda enganosa.,<br />

acho que me enrolaram (...)<br />

O médico, muito correto, me tratou com indiferença de novo – ele e a<br />

enfermeira, também muito bonita e alinhada, pensam que não percebo.<br />

Será que treinam isso antes da hora do trabalho? O que será que<br />

discutem na hora do almoço? Devem é dar umazinha nas horas vagas,<br />

certo que sim.<br />

Tudo tão besta e morno, chato. Assim fica difícil alguém se recuperar<br />

de algo. Ahhh, é dose!<br />

Hãn? Babou, descobriram que matei aquelas pessoas anos atrás! Vão<br />

contar para família toda<br />

Huumm... de novo com fome; com fome de comida, mas acho que não<br />

vai rolar um lanchinho. E que chiado pentelho na tevê! Olho ao redor,<br />

e tédio, nem consigo dormir. Mas ao menos fico é descansando longe<br />

de tudo, enfim. Ao redor só as entradas de ar comprimido, oxigênio e<br />

vácuo; tomadas e mais tomadas, banheiro brilhando com cheirinho de<br />

desinfetante de jasmim, esse armário, geladeira pequena e cheia de<br />

gelatinas. Lá fora aposto que os corredores são encerados, as macas se<br />

estacionam, essa gente de branco – todos sérios, em poucos sorrisos.<br />

Com certeza tem uma sala de recepção normal, várias portas e dispensas<br />

pelos corredores. Será mesmo que foi o plano de saúde do trampo que<br />

bancou tudo isso? Meio suspeito, hem. Eu lá tenho plano de saúde? Se<br />

tiver, não pago (...)<br />

Indiferença, indiferente gesticulação na hora de explicar algo. Doutores,<br />

faxineiros amistosos etc. É muita rotina, parceiro! Mas como esconder<br />

o sangue, a tristeza, a vergonha e as doenças pelo ar? Ah, que se lasque<br />

tudo, nem sei se devo ficar nessa!<br />

“Bom dia, senhor(a), o que deseja? Oh, sim, vai estar tudo bem...”<br />

Porcaria. Ainda não acabou, ainda aquela fala mansa e atenciosa. Será<br />

que aprenderam com algum político? Que m***, que m*****!!!


“Quantos anos você tem, meu filho?”, perguntou um dos caras de jaleco.<br />

Eu disse minha idade e ele fez gestos de tristeza disfarçada. Nem liguei.<br />

Será que ele sabe algo que não quer dizer? Hunf... um câncer ou<br />

caganeira? Deve ter ficado com pena, mas não devia, não é bom poupar.<br />

Sorrisinho acompanhado de piada sem graça para tentar amenizar o<br />

clima pesado.<br />

Meus olhos não param, presto atenção, sinto a indiferença... vários<br />

lados! Assim eu não melhoro, ô mula (...) Era só uma visita (...)<br />

Arrghhnn... quanta bobeira. Como minha cabeça dói, muita confusão<br />

mental. Provável que esteja cheio de substâncias nas veias (..)<br />

O ar-condicionado estalou, apitou... rugiu mais uma vez. Ainda são<br />

3:29 de madrugada, mas descanso. Logo... falta pouco, e me recupero.<br />

Essa é só uma visita.. não consigo me concentrar em nada... sou uma<br />

bola de futebol na favela!


– L –<br />

SAI DESSA MACA!<br />

Não me lembro ao certo de como vim parar aqui, está tudo uma<br />

porcalhada desconexa. É um hospital, isso eu já saquei. O que resta saber<br />

é qual a da razão de desconfiança da equipe médica. Devo algo,<br />

parceiros??? Acho que pensam que sou ou genial ou maluco. Ou não,<br />

pois se me achassem realmente um lunático teriam me trancado e<br />

colocado uma camisa de força de cara. Ainda assim, não confio em gente<br />

assim dissimulada. Devem estar mesmo muito ocupados até para pensar<br />

em mim, já que só apareceram aqui duas vezes. Talvez tenham já<br />

chegado zoados de casa e eu seja uma segunda opção. Mas não importa,<br />

quero ir embora. Que se dane, eu me viro.<br />

Vou sair daqui, odeio esse ambiente, desconfio demais. Se uma médica<br />

resolver me diagnosticar como doido, vou parar na jaula, isso eu já sei;<br />

e se for algo pior, nem quero ouvir. E mesmo que não lembre dos<br />

últimos acontecimentos com muita clareza, é mais prudente não me<br />

arriscar à toa perdendo a liberdade que já tenho.<br />

São 4 horas da madrugada. Não deve ter ninguém cuidando da entrada<br />

dessa ala, vou ver.<br />

Levanto tropeçando em mim!! Espero um tempo, respiro fundo, bebo<br />

um copo d'água.<br />

Não posso mentir nem inventar, apenas me sobrepor às tantas outras<br />

histórias a serem contadas. Tudo tem uma certa relevância, muitas vidas.<br />

Vou juntar as peças e verbalizar com sinônimos para ir. Partiu!<br />

Se for câncer, diabetes, reumatismo, caxumba é melhor nem saber,<br />

viverei até quanto der! A Natureza e o Destino que precisem. Melhor<br />

vazar.<br />

Ótimo, escapo. Boa. Ninguém percebeu que saí; mas que hospital<br />

porcaria é esse? Saí assim, tão facilmente, que quase me deram “tchau”.<br />

Devo realmente ser um paciente comum, como todos os outros: iguais


perante a lei. É Brasil! Quem paga um salário para funcionários desses?<br />

Quem treina essa galera? Vou deixar um currículo aqui da próxima vez.<br />

Saio pela entrada. Algumas roupas minhas estavam em uma sacola<br />

dentro do armário do quarto. Talvez alguém conhecido passou lá.<br />

O prédio some em si como uma voz descendo ao porão dos humanos.<br />

Coloquei uma camisa branca. Sim, são as ruas de sempre. Penso, nem<br />

tão ferrado assim, quem sabe o que a cara de pau faz!


– LI –<br />

LEMBRO<br />

“Por falta do que fazer naquela tarde, meus amigos pediram que eu fosse<br />

mais além – nunca tinha ido longe, nem ficado tanto tempo para lá de<br />

casa. Todos éramos arruaceiros ali!<br />

Descobri que tinha um mundo vasto lá fora. Há muito o que fazer; um<br />

campo virgem e extenso de vida vegetal e animal quando se encontra<br />

algo que existe, uma direção que seja.<br />

Fomos andar e conversar. Andamos muito e chegamos em um lugar<br />

vazio, e depois à cidade. Nos espalhamos. Era verde e logo cinza.<br />

Mudou minha vida juvenil saber que sou maior e faço parte de algo,<br />

enfim. Tudo o que há depois da família é mais abrangente. Não quero<br />

ficar mais em casa, há muito que explorar e juntar – toda uma civilização<br />

a decifrar. Qualquer lance a olhar. Preciso ir mais, encher os pulmões<br />

de mais ar, mais!<br />

O mundo é meu e eu o amo, é vasto. Quero mais tempo, sou um<br />

embrião. É isso, até que enfim descobri o portão para rua!!!”<br />

Latente e manifesto; sem censura; sem uma saída de laços contidos, e<br />

libertação de traumas familiares; sem regras ou de difícil solução...<br />

isento de situações fictícias, de dormir meio que acordado.<br />

Quais foram os modelos de conduta na minha criação? Como era a<br />

minha matriz? Refletido no espelho, consigo me reconhecer? Ou<br />

aprendi algo ruim? Quais são meus personagens, meus ídolos? E mais,<br />

quem sonha vive no agora?<br />

Lembrar de textos com suas letrinhas pequenas e pensar em Édipo é<br />

como olhar um mesmo livro e ainda assim nada entender – até porque<br />

meus olhos ficam dilatados, enxergo embaçado se me esforço. Ou seja,<br />

um novo texto se parece com um grande solo árido que está rachado,<br />

isso quando embaçar? O que contam se parece. Mas a epopeia de pais


e filhos soa como uma esponja nos dias de hoje, retendo biótipos,<br />

protótipos de vezes nocivas. Chamam isso de sentimentos? São tão<br />

inteligentes e empregados... domésticos, isso é, podem ser. E a grande<br />

verdade? “Só pode haver um!”<br />

Tenho uma vontade... continuamente me apresentando nos minutos<br />

finais. Perco meu senso de valor, perco minha calma e monotonia.<br />

Desejo ser um ermitão, epilético, talvez; nascido de complicações no<br />

parto, personalidade débil e sem defesas, abatido em combate.<br />

Eu sou meu tumor. Ainda durmo?


– LII –<br />

E DAÍ?!<br />

Superego pelo mundo, no confronto com todas essas sombra, as ruas...<br />

ainda assim, dessa caminhada noturna surge alguma paz, qualquer<br />

clareza de ideias, e eu respiro algo desse sufoco, hunnf.<br />

Reconstruir disso um mundo tão fastidioso quanto, explicar, acertar as<br />

contas com os outros seres, precisamos mesmo? Os fatos pesam, a<br />

verdade é sintoma de intenção oculta, ruptura e absurdo, tudo longe do<br />

que as pessoas chamam de felicidade... digo um volumoso “e daí”!<br />

Eu fujo, não me arrependo. Já não suportava mais essa vida em<br />

sociedade mesmo, cara, é chato nem ser reconhecido, descaracterizado<br />

no prédio!<br />

Não, não é no mundo burguês, na superficialidade e vidinha tediosa;<br />

não é o Cosmo governado por mentiras e injustiças, é na própria sorte<br />

que me agarro... uma posição diante do mundo. Por que nunca vi isso<br />

antes? Que bom que todo o Universo não pense assim, quero ter espaço!<br />

Na minha loucura ou audácia, ainda posso ter medo do indefinido, do<br />

desconhecido, de dormir ao relento dia após dia, mas a escolha é essa,<br />

e livre de qualquer influência, ou isso ou o hospital!<br />

Eu me desespero por quê? Minha autoconsciência não está ativa? Claro!<br />

O perigo da estrutura fixa não apavora, mesmo sem fé. Sou eu. Sei. E é<br />

conceitual o conceito de ter que sobreviver.<br />

Ainda durmo? Não. Tudo é claro, se o que aprendi na passagem for útil,<br />

de todas as formas.


– LIII –<br />

DEBAIXO DE ESCOMBROS<br />

Andando pelas calhas, como uma recém-nascida lagartixa fujona, minha<br />

cara pálida e desgrenhada chama um pouco de atenção, mas não tem<br />

quase ninguém com a força de me interrogar, somente alguns bêbados<br />

ou trabalhadores indo aos seus destinos fatais.<br />

É noite, só não sei já que horas. Chego então em uma parte... o lugar é<br />

muito pichado, sujo e antigo. Vejo, ao longe, uma floresta; toda essa<br />

cidade foi cravada no meio desse desconcertante tapete verde e denso...<br />

me seduz como a própria Medusa faria. Sinto uma vontade de ir lá,<br />

presumo que estarei melhor afastado; deve ser meu destino viver sem<br />

ninguém. Naquele lugar que existe, desolado patrimônio urbanístico;<br />

floresta preservada presa pelo poder público, a casa que escolhi, agora<br />

sim.<br />

Me vem uma sensação perdida, de quando eu adormecia tantos anos<br />

atrás, já cansado das brincadeiras e de comer e dar risadas; minha cama<br />

estava muito macia e a coberta era sonolenta. Não saía daquela cama<br />

hipnótica quando acordava, pois era algo tão fácil, preguiçoso: a casa,<br />

seus cômodos; as tranqueiras e velharias entulhadas. Podia voltar no<br />

tempo no cheiro daqueles móveis, nas fotos ou as tintas nos baldes e<br />

canetas dos potes feitos de lata de molho de tomate... caramba, em qual<br />

lugar que perdi esse estilo?<br />

E tinha lá, também, o gasto tronco do coqueiro queimado, os animais e<br />

insetos molhados. Era bom imaginar a vida a partir do que queria.<br />

Enxaguávamos as plantas e eu ajudava a comer bolos, também. Eu tinha<br />

uma família! A comida era incrível, típica de quem já fez muitas vezes<br />

ao longo da vida. Havia a tevê com seu Buda marrom sentado bem ao<br />

lado, gordinho e pensativo na bancada. Apenas um enfeite, uma imagem.


Era simples, como ser criança ou idoso. Uma infância fértil... na grande<br />

e velha casa dos avós. Mas nada disso existe mais, me negaram até o<br />

curso superior e fali, hoje eu nego todos vocês (...)


– LIV –<br />

AOS POUCOS<br />

Esta onisciência murcha só deixa passar aquilo que convém: a<br />

sobrevivência. O real é omitido.<br />

Acho que a única saída está em mim, no meu morrer; em dizer, preciso<br />

me extirpar; não que tudo tenha sido um erro, foi é necessário. Preciso<br />

dar a volta e me impor para sair do caos humano, é a concorrência, é o<br />

descaso, a vida cheia de clichês modernos. Eu fico escondido,<br />

metamorfose de burro para uns, resistente para outros.<br />

Se organizar tudo e souber dividir o certo do errado, o duvidoso do<br />

nem-tão-duvidoso... serei alguém? E meu canto? Tanto para se viver e<br />

aprender, queria ser pura vontade... qualquer alternativa além do zero.<br />

E depois que acabarem os projetos, acabará o caminho? Não, a vida tem<br />

muito mais, não é possível ser tão pouco... oferece.. possibilidades.<br />

Que baita estalo eu tive na cabeça ao vir aqui, minha imaginação<br />

fervilha, mesmo dentro desse cenário de marasmo desestimulante que é<br />

esta existência regulada. Afinal de contas, ainda tenho consciência,<br />

minhas pernas, portanto posso largar a confusão se quiser. Ainda sou o<br />

meu caminho de liberdade.<br />

Apesar de tudo, gosto da vidinha que tenho... apesar de contraditória.<br />

Algo me induz a “abandonar o homem a seu destino opaco”, como<br />

Breton. Partes. Apesar de tudo. Agora eu lembro, agora eu entendo!<br />

Não é mais fútil, há inteligência! Mas meu cérebro se revolta contra o<br />

esperado, ele me impõe algo que deve estar implícito; acho até que ele<br />

busca, talvez uma saída estratégica do meu leigo ego.<br />

Hunn, fui abduzido, morri e renasci no dia final de uma grande mente<br />

de outrora, que me passou toda a sua experiência; agora eu me renovei!<br />

Não sou mais um boçal!<br />

Hhhh... maleável... hálito... acho que sou um rasgo, um estrago ou um<br />

asno que rima mal. Talvez um vidro trincado e estúpido. É porque tem


grito aqui, um bombardeio de chances e caminhos. Se essa moda pega...<br />

se pudesse só um pouquinho atazanar alguns pensamentos, poderia<br />

pintar algo, o que seja.<br />

Tudo é tão fácil, mas sou tão recente. Quem sou? Quem nesse... espelho?<br />

Como é o meu rosto de agora? Tal como uma gravura refletida<br />

marcando página de livro, revés, metamorfoseado, vagabundo de férias.<br />

Tudo bem. É difícil, mas falo com ela, a trilha, revelo. Só preciso é dessa<br />

trilha para me sentir bem; esquentando, onde tudo seja calor.<br />

Os sonhos foram uma hipnose, hipótese, um vai e vem que só tonteou.<br />

É tempo de ânsia, rápida. É uma ânsia essa vida. Um sim contra a massa,<br />

mas da massa também sou composto, portanto foi um alerta, um aviso<br />

de alguém que vai querer saber do ato posterior.<br />

Permanente angústia ou supremacia que lida com o próprio futuro:<br />

extremamente tenso; predestinado a quê? “Talvez à falta de sentido e<br />

descrença nas passagens ao redor”, uns dirão.<br />

Tanto, tanto a se aprender, como na frase que diz que o “Homem é<br />

livre”, contextualizando Sartre. Ou melhor, exemplificando em<br />

Kierkegaard: “Se não há lógica na existência, mas a existência é<br />

verdadeira, então a verdade também não tem lógica”. É uma sina a...<br />

busca, eu leio e canalizo. Mas vou com os autores, eles são como guias,<br />

refúgios secretos ainda que eu saiba que todo ser tem no corpo sua<br />

corrupção; as ideias seriam o pé no acelerador. Foi bom pacas ter me<br />

acidentado tanto e ter conhecido a Literatura, a morte de perto.<br />

Hume diria: “É por causa das suas impressões”, ou melhor, “feixe de<br />

diferentes conteúdos de consciência, que se sucedem numa rapidez<br />

inimaginável e que estão em constante fluxo e movimento”. A<br />

derrapagem toda foi um grande sonho; toda essa experiência na cidade.<br />

Ah, o conhecimento me atingiu, a morte exemplifica! Uma ilha, eu devo<br />

ser uma ilha. E me precaver.


– LV –<br />

QUALQUER VOLTA<br />

Este foi o melhor e o pior presente que me dei. Antes de ter estado aqui,<br />

eu fazia tudo que queria despretensiosamente – como rabiscar em um<br />

caderno coisas que talvez nem viria a usar, mas sabia plenamente que<br />

tudo vinha de mim. Ah, fatalidade!!! Tudo tem propósito, já escreveram<br />

sobre isso; aparentemente, tudo o que disse e não sabia já foi dito e<br />

feito, somos repetidores! Agora é tão límpido.<br />

Sou um molde, uma pecinha. Não sabia, eu não sabia o quanto ainda<br />

preciso me quebrar em pensamentos para me igualar a esse molde. Mas<br />

tenho precisão ao dizer que ainda sou pouco, muitos são.<br />

O molde, essa fita mestra, já está por aí. Tem sua semente em cada<br />

átomo. Eu sou sua peça teatralizada – digo e redijo repetidamente, algo<br />

ainda em formação, princípio... ou melhor, pós, pós-mártir e imagem<br />

incompleta da minha própria cruz.<br />

Meu trabalho, ou melhor, meus trabalhos, teses, tarefas são atender e<br />

receber umas quantas recusas, calar e não chorar, aprender e aplicar o<br />

melhor dos casos ao meu redor, sempre com a simplicidade que<br />

conseguir.<br />

Apesar de já ter dado um primeiro passo além das massas, acima da<br />

repleta ignorância desleixada, de ter tido algo da sede filosófica, quando<br />

me perguntarem o porquê de ter estado tão sumido, direi: “Ah, sim, mas<br />

não é por nada. Fico muito ocupado. É porque ando pensando demais.”<br />

Mas só realmente comecei a pensar quando tentei entender as nuances,<br />

pensar pelos excessos, isolar quimeras e escritos. Daí, resvalam os<br />

defeitos, já que das histórias não saí ileso, ninguém saiu; mas quero sair,<br />

e não bastar apenas em ficção. Há tantas situações pendentes, sinto até<br />

alguma impotência em relação às pessoas.<br />

“Tem que crescer, que alguém cresça contigo”, dizem, é um desejo já<br />

não mais incontido; em parte é bem instintivo. Quero essa


aprendizagem em conjunto. Quero que, além de mim, ela adquira<br />

confiança, autocontrole, autoritarismo, feminismo, noção de sua<br />

importância no mundo etc. Direi: “Você é uma mulher e precisa<br />

descobrir o quão isto é fascinante, importante. É mais do que atinge em<br />

pensamentos, e quero que floresça mais linda que teu próprio corpo;<br />

não apenas reflexo. É uma busca, meu amor.” Assim vamos catar algo de<br />

felicidade, realizando. Mas preciso de tempo, da ocasião e vez. Uma<br />

mulher, uma nova família demandaria empenho demais. Vou começar<br />

utilizando esse dia de hoje para recolher tudo o que tenho e sair deste<br />

mundo feio que atingi. Antes de tudo, preciso saber o que levar comigo,<br />

qual alimento... e se devo. Qualquer ideia além do zero e estacionado<br />

está sendo válida e bem-vinda.


– LVI –<br />

SOU PAPEL CORTADO?<br />

Ou verme negativo? Sou massa! Danificado... e refleti tudo como em<br />

uma máscara de algo passado, do tempo. O que me intriga é como não<br />

me liguei antes, como demora a ficha a cair. Deve ter uma boa razão,<br />

ainda deve existir um sim na explosão.<br />

Tocava a sexta música do álbum descolorido (...) Depois uma<br />

microfonia crescendo, a guitarra repetitiva, é a sétima canção em<br />

movimento, e a frase em estribilho até acabar. Penso que também não<br />

sou mais mero papel.<br />

Angústia flutuante, gesto interrompido, pulsão proibida, vontade de<br />

controlar o lado animal; remeter ao passado; tal incompetência<br />

socioafetiva; prevenir; esquecer a igreja; cuspir para o alto; precipício em<br />

mim; achar significados. Bem, depende da personalidade, da sede, das<br />

circunstancias e dos problemas estáticos.<br />

“Reinventa o mundo para ser um senhor de si!? A firmeza das opiniões<br />

leva a qualquer lugar? Para os já ricos talvez.”<br />

Não venho aqui para prever futuro algum, nem profetizar, tampouco<br />

botar uma melancia na cabeça, contudo... acho que me preparei<br />

inconscientemente a vida toda para o que quero. Agora sei, e que se<br />

dane a falta de teto. Vários dias se passam depois da saída do hospital<br />

e de abandonar minha casa para viver no meio do mato, me sinto ótimo!


– LVII –<br />

UMA BOCA TORTA<br />

No meu último banho onírico, de cara, abria a boca e mostrava os<br />

dentes. E eles eram rígidos e franziam toda a boca, como que enrijecidos<br />

e simbólicos... só que não me queriam. Brotava sangue das gengivas;<br />

sangue lento e em gotas.<br />

O brilho dos dentes começava a sair; eles se quebravam, como grafite.<br />

Eu tentava consertar mas era em vão, pois os dentes esfarelavam. Eu<br />

ainda queria algo? Sei não, mas logo vi não estar enfiado em tijolos, vivia<br />

nas estradas, nas florestas. Vivia agora no topo íngreme de um morro,<br />

uma clareira ocasional da Natureza. Já fazia muito que nem pensava em<br />

moléstias, e nem é mais para pensar! Que fique tudo arrebentado no<br />

mundo exterior, eu que não me perco mais.<br />

Agora durmo menos, mas a qualidade diferencia. Só quem já dormiu<br />

com as estrelas como teto e o chão frio como cama sabe como é. Muitos<br />

a todo tempo acordariam sobressaltados e com medo de troços que não<br />

existem, pessoas ou animais que podem ou não ser nocivos. Ou seja,<br />

muitos dormiriam com o medo! Sem sinais de vida burguesa por terra<br />

intriga esse tipo de gente. E por quê? Bem, as coisas naturais fazem isso<br />

com as coisas artificiais... apenas não entendem a ruptura, percepção e<br />

tudo mais.<br />

A verdadeira noite serena, úmida e fria, a real inquietação natural pelo<br />

teor denso do ar que faz tremer e gelar até o líquido dos olhos e espinha.<br />

Perderia meu pudor, teria novas ideias fantásticas e associações... agora<br />

ou nunca, agora ou nunca mais teria meu espaço. Inflexão! E já passou<br />

muito desde a despedida, é isso. As páginas escondem o tempo real, até<br />

que enfim.<br />

Ficou na mente uma vez a citação daquele livro sobre um viajante.<br />

“Nenhum homem deveria passar pela vida sem experimentar pelo<br />

menos uma vez a saudável e até aborrecida solidão em um lugar


selvagem, dizia Kerouac, dependendo exclusivamente de si mesmo e,<br />

com isso, aprendendo a descobrir sua verdadeira força oculta. –<br />

Aprendendo, por exemplo, a comer quando tem fome e a dormir<br />

quando tem sono”


– LVIII –<br />

AQUÉM<br />

(...) ficar comendo latas de sardinha e atum, frutas das árvores, biscoitos<br />

de água e sal e de maisena... ainda dos últimos que roubei antes de vir<br />

para cá. Este “meu destino é um lugar feliz, onde não há nenhuma<br />

preocupação.” É o que prezo, ao menos estou aqui para isso!<br />

Ainda em meu corpo o ritmo do trabalho: acordar cedo e só ter sono<br />

ao cair do dia. Perambulava assim de um lado ao outro, conhecendo o<br />

lugar em que me encontro, demarcando mentalmente. E as noites eram<br />

sombrias, quando, por exemplo, fazia uma fogueira. Mas uma fogueira<br />

tornava mais fácil descansar, e o calor deixava aconchegante essa<br />

acomodação aqui na mata, aplacando o efeito dolorido do frio úmido<br />

na pele.<br />

Apesar de tudo, nem tenho rotina, sempre andando ou refletindo para<br />

lá e para cá; sendo a mais pura paz. Subo em árvores baixas, cato o que<br />

vier e cozinho em uma fogueira; às vezes simplesmente fico olhando o<br />

horizonte visto do morro, este que se alastra e volta para dentro da<br />

bruma como um ser inominável; e não passava disso (...)<br />

O nada sempre meu atraiu, o todo é a visão; todas as plantas e o imenso<br />

verde com sua vida tranquila e selvagem; cada animal, cada ser na cadeia<br />

alimentar harmoniosa como tal. Insetos, pássaros... pensava no quanto<br />

a vida que costumava levar era desgastante e inútil. Tudo o que prezava,<br />

queria construir, ter e mostrar era em vão, era tão... desnecessário.<br />

Alguém pode até achar débil, mas foi a existência que acolhi naqueles<br />

dias; eu era menor, confesso. É a vida.<br />

Já aqui, o verdadeiro é simples, e com o pouco... único. O maior triunfo<br />

em relação ao caminho... as pequenas vezes, estes poucos dois meses por<br />

aí têm sido gigantescos. Posso assim dizer adeus àquela intensa<br />

existência insignificante e dar um olá para o horizonte; havia lutado<br />

contra um sono tosco!


Gosto de viver na matéria orgânica; não preciso me preocupar em limpar<br />

o quarto ou comprar roupas todo mês, sim, e posso rir disso! Um dia<br />

bem aproveitado com experiências boas e gratificantes cobre várias<br />

dívidas. Também não preciso ligar para o que as pessoas pensam. É uma<br />

vitória, espero debaixo das chuvas, uso uma casca imunizada! E banho<br />

para quê? Não é?!<br />

Tudo ao redor é melhor, é junto. Uma cura para quem foi cria daquela<br />

sociedade industrial e ostentosa sem verduras; queria ser normal, queria<br />

ser um pouco tradicional quando necessário, dar presentes no natal ou<br />

trocar alianças. Mas há algo de trágico no cotidiano, muitos têm<br />

princípios de convulsões... por isso tento me conter, não brincar tanto<br />

com meu cérebro. Mas vejo como a realidade parece mais próxima da<br />

certeza; e o que é o certo? Quem são os reais birutas da História?<br />

Compreendo muito mais, chega. É o fim da minha linha e linhagem<br />

como a conheceram (...)<br />

Antes da barba me tomar a cara, vou decorar o Livrinho de Sabedoria<br />

com desenhos geométricos e reproduções dos lugares que passei,<br />

herança deixada de pai para filho único, o ingrato-de-cada-dia, dada a<br />

clareza e impaciência do adágio de que, hunnf... “foi na infância que se<br />

mal fez.” Isso! Vou saber mais até que o livrinho. Que meta! E as<br />

perguntas serão desfeitas. Flui, como a volta para a terra, do mais secreto<br />

desejo.<br />

É uma questão essencial: educação, educação e sua relação com a<br />

bagagem cultural quando adquirida na formação de um próximo<br />

indivíduo do Cosmos; acontece que meu universo acabará aqui.<br />

Era Jonas Nicolas Carlo, aquele que corria ao contrário do significado<br />

do próprio nome, o que andava com as pernas originais. Morei durante<br />

meses no centro da cidade do Rio, confesso que fui um revolto<br />

desgarrado, um juvenil imprevisível... depois de ter cometido graves<br />

erros, mortes. Venho de família modesta desse mesmo estado. Sou<br />

magro, castanho-escuro, estou liso, olhos negros, a pele morena clara já


sem uma raça definida. Isso porque sou síntese de índio e branco... entre<br />

tanto? Mas agora encontrei meu destino, volto a ser poeira. Apenas<br />

perco minha identidade. E, é... isso aí. Sonho, mas é real.


“PARTE TRÊS”


– LIX –<br />

PERAMBULANDO<br />

“Eu não preciso dizer nada sobre este abismo, ah não” Três anos mais.<br />

Era na época eu um andarilho real, só um cara, desde então. Não sabia<br />

mais de amor algum, tinha abandonado tudo o que se prezara normal.<br />

Ainda vagava de carro pela riquíssima América Latina, rosto queimado,<br />

puído. Um tempão passou desde que saí da reclusão do mato. Agora<br />

vago como que refugiado, clandestino, meio abatido.., aprendido, quem<br />

dera sabedor. Às vezes, me vejo obrigado a furtar para sobreviver, como<br />

no caso do carro, ou, mais corriqueiramente, para comer! Não me<br />

dariam um emprego mesmo, e nem eu lhe daria tal chance. Mas é, não<br />

tenho escolha. Quero o público de outro que não o meu, mas não faz<br />

mal! Não é que veja glamour nisso, é que, depois de tudo o que fiz,<br />

tinha tudo para acabar em outra total estupidez, muito pior. Assim é<br />

viver, pilhar, um monte de trocas e saio. Escolhas regem toda nossa<br />

existência, a cada dia tendo que optar, de alguma forma coexistir.<br />

Dentre outros pertences que me restaram – na verdade, quinquilharias<br />

espalhadas no banco de trás do tal carro –, utilizei dois VHS’s do<br />

Nirvana, um livro de Matemática do 2º grau, outro de Geografia, A<br />

metamorfose, Noite na taverna, um livro sobre o Buda e outro sobre<br />

movimentos estudantis... vendi tudo! Ou melhor, troquei em um sebo<br />

de beira de estrada pelo Satíricon ao custo de 10,50 pesos, em moeda<br />

de troca! Logo me desfiz do carro também, como se verá adiante, até<br />

porque andar com troço roubado por aí é brabo; a polícia rodoviária<br />

tem muitos apelidos mas não é nenhuma lata velha. Me desfiz também<br />

de tudo quanto é excedente, mesmo que não chame tanta atenção com<br />

essa minha fuça de nada, mas enfim...<br />

A leitura do Petrônio ia às alturas... eu leve, com mais cara de adulto,<br />

dono do quisesse, rodando, só andando para frente. A barba crescendo,<br />

povoando meu rosto para aguentar o vento; as roupas ficando cada vez


mais surradas. Tomara que meu espírito a cada dia se renove; quanta<br />

energia pura foi perdida! Quem sabe o que passa agora no deserto, o<br />

que é vivido, visto. É impossível, mas seria maravilhoso descrever. Peço<br />

que talvez imaginem aquele doido que vocês viram à beira de tudo,<br />

andando, rindo enquanto vocês viajavam nas férias com a sua família:<br />

tinha sentido aquilo? Não era corajoso??<br />

Estudei a região, não me importava nada um calendário, segui na direção<br />

oposta ao volume de carros e gente para o cada vez mais isolado ínterim.<br />

Curiosamente, nesses dias não havia a grande quantidade de viajantes<br />

que os livros e as más-línguas me advertiram. Ainda assim, a sorte me<br />

sorriu mais, enfim. Talvez isso aqui em outros tempos tivesse outro<br />

aspecto que a intempérie não tivesse devastado – a região era só pó!<br />

Acho que água não se via há anos, é o Atacama! Enfim cheguei onde<br />

sonhei estarem meus ossos.<br />

Não há placas de indicação no deserto puro. Tem dias que está um<br />

climinha pacato em cânions de vales multicoloridos, um oásis<br />

impressionante com extrema sensibilidade... de aspecto comparado<br />

somente ao de Marte e esses largos passos lentos. Mas logo chega o<br />

ponto em que as manhãs de tons cinza borrado chegam ao seu clímax,<br />

uma atmosfera carregada, viu, abafada e sufocante como em uma sauna.<br />

É aí que penso: “Qual caminho não é sem volta? Isso não existe, é<br />

enganação; ou se atira ou afoga no próprio marasmo!”<br />

Umas horas em que parecia que caminhava com pedras atadas às costas,<br />

ainda... mais sem carinhos. Só nunca desisti por motivo algum, não<br />

mesmo! Parei um pouco foi para recuperar o fôlego, larguei minha<br />

mochila na estação de ônibus, a passada – quem sabe se volto para pegála,<br />

já que o peso me destrói a cada dia. Além do mais, quero estar<br />

tranquilo para poder continuar mais e mais e rápido, migrando,<br />

migrando, de leve.


Durante dias e semanas fui a esmo. Até que, lonjão, vi que os céus se<br />

enfureciam de vez... ouvi trovoadas anunciando água. Era a hora de<br />

parar por uma siesta, opa. Mas debaixo de proteção, pois até um<br />

resfriadinho nas condições físicas e morais em que me encontrava<br />

poderia ser fatal.<br />

Atacama visceral e indigesto, lugar de extremos, um filme dentro da<br />

realidade e para sempre meu tipo de lar... deixa esvair todas lembranças.


– LX –<br />

IDÍLIOS<br />

Ao chegar à cidade pequena de nome Calama eu a vi – é que vendi meu<br />

carro em ali para aplacar a minha ‘sorte’ e a deles. Me confundi um<br />

pouco, pensei ser uma alucinação, miragem, minha vista meio que ficou<br />

desbaratada. Entrar em cidades sempre me deixa confuso, perdidão,<br />

oscilando entre bem e mal. A última, então, havia me chocado por<br />

demais: rabo de saia, cafonice, aliciamento, tráfico humano, golpe do<br />

baú, crepúsculo e polis e polis! Mas ela. Ah, tinha uma calça marrom e<br />

blusa básica, um tipo de casaco típico, bege, e ela... um manjar dos<br />

deuses, protótipo de plenitude. O cabelo era longo e preto, ou castanho,<br />

meio cacheado um pouco... mas que surpresa, lembra aquelas fotos da<br />

minha antiga mãe, as fotos em preto e branco. Amor e ressurreição da<br />

Maria virgem menina! Era uma claridade opaca, algum troço... é... algo<br />

que você pode... sem direção... era a glória! Isso, sem códigos que<br />

modificou tudo.<br />

Entreolhamo-nos em um misto de adrenalina, medo, pulsação forte e<br />

paz: era o sinal de nossas duas existências oculto aos olhares<br />

desesperados dos humanos normais. Acho que chegou um ponto onde<br />

só nós, perdidos nesta era, podemos ter esse nível de comunicação! Aos<br />

outros, toca um borrão eterno, a falta da alma complementar.<br />

Não sei que loucura era aquela, mas era fácil, normal. Eu soube de tudo<br />

na hora. Puxei um assunto depois do “Ei, espera um pouco”, mas nem<br />

precisava, não mesmo... Ela virou o rosto, riu. Tudo em volta não passava<br />

de um borrão utópico.<br />

Tão pequena e sábia, mas boba quando devia, segurando minha mão,<br />

me pedindo para guiar. Acho que as pessoas ao redor viraram estátuas<br />

móveis; ou isso e éramos fantasmas, já que nem notaram um maltrapilho<br />

saindo da cidade com uma garota linda e frágil. Dá para entender a<br />

(des?)complexidade humana? Maria, Maria; ela entrou na minha vida


feito devastação poética, feito uma personagem de romance e rima fatal.<br />

A confiança mais potente do planeta! Homem & garota. Sabe, às vezes<br />

decidir é o mais difícil, ruim não é enxergar; ruim é quando sabe e nem<br />

faz nada para a própria felicidade.<br />

Apesar de muitos indígenas estarem por perto, Maria era clara, ainda<br />

que tivesse uma pitada, talvez esquecida pelo tempo, de algo mesclado;<br />

notei os cabelos e apenas sorri. Perguntei qual era o nome dela, ela<br />

respondeu “Maria”. Eu disse “já sei”. Nós dois estávamos ansiosos por<br />

nosso momento, a via de pedras expostas na areia, esculturas<br />

inomináveis, cactos vivos, todos nós vivos em um céu em alvoroço; ainda<br />

assim existem nossas lagoas, há sede. É... nem sei quantos metros acima<br />

do nível do mar estamos, espero então que não infarte!<br />

Ficamos ali nos olhando mais um tempo, quando enfatizei: “Todos os<br />

cactos do mundo estão nascendo aqui!? Bem, ao menos, nós já estamos,<br />

não acha!?” Era ria. “Eles não percebem.”<br />

Saímos. Fiz questão de caminhar na frente da Iglesia para a despedida.<br />

Ainda zombariam da gente por sermos os vitoriosos desse caso. “Pela<br />

Natureza”, eu comecei. “Tá bom”, ela respondeu me interrompendo.<br />

Nem precisava mais completar aquela frase.


– LXI –<br />

COMO PISTAS DA GENTE<br />

A toda, a cidade ia lá atrás... o sol se pondo, deliciando a visão e<br />

ressecando de frio a boca. Mas agora ela ia ao meu lado, nunca olhando<br />

para trás – já não era a primeira vez que fugíamos dos nossos pais<br />

biológicos. Ela contou tudo, das vezes que sofreu, das que riu mais ou<br />

menos, esperando chegar a sua vez de dar o bote! Conversávamos como<br />

se tudo já tivesse um passado, antes das coisas passarem. E sabe-se lá<br />

como as estradas dos mundos são distintas umas das outras; pode-se<br />

dizer que as nossas eram verdes, fortes e lisas; assumimos o risco!<br />

Arriscar é o fato. Juntos, o passeio final.<br />

Agora ela, ela tem qualquer mostra de força, sei lá. É como meu ideal,<br />

eu sinto, parece que estava ali me esperando com seu olhar altivo e<br />

certeza nos movimentos. Não é uma coitadinha, sabe, dessas que se<br />

fazem de vítima, murchinhas com seus não me toques. É uma fêmea,<br />

uma flor selvagem cheia de fibra, precisa apenas desabrochar, e eu vou<br />

ser teu homem, pequena.<br />

Pernoitamos sorrateiramente. Não era permitido acampar por aqui,<br />

mas e daí? Depois de tudo e do descaso, que crime seria tão grave quanto<br />

deixar marcas no frágil solo do deserto.<br />

Assim que clareou, juntei as mochilas, me espreguicei, tirei remelas e<br />

cuspi a saliva de barriga vazia – que consegue ser pior que a sua<br />

contrapartida. Meus olhos ainda não estavam prontos, mas era preciso...<br />

a estrada pedia. Disse a ela, com uma calma que me invadia: “Aqui não<br />

é seguro, nem vale a pena.” E fomos.<br />

A estrada à frente e nossos planos, seguindo, toda uma vida mais para<br />

ser sugada sem barreiras, apenas duas almas livres. Conseguimos uma<br />

bicicleta e a viagem ficou mais agradável, ligeira. Só precisávamos de<br />

mais realidade, ou apaixonar-se por nossa realidade, começo, meio e fim.


No final do dia, paramos nessa hospedaria ou algo parecido. Não<br />

poupei esforços para tomarmos um bom banho e limpar nossos corpos<br />

do pó do passado, além de saciar nossas barrigas. Perguntei a ela: “Será<br />

que poderemos ver o mar? É que no caminho vi umas flores, umas<br />

coloridas... por quê?”, ao que ela me respondeu: “Você já tem a resposta,<br />

hã!? Espera mais um pouco que veremos. Aí vou repetir aquelas frases,<br />

imagina ‘que você é uma onda pacífica, e você vê uma onda muito<br />

grande vindo em sua direção. Você tem medo de ser engolido vivo. Você<br />

tem medo de morrer. Você teme o caos e a perturbação da sua paz.<br />

Suponha que você tenha tentado reagir e lutar contra essa onda de raiva.<br />

O que você acha que teria acontecido? A maioria da gente sabe a<br />

resposta, seríamos engolidos na luta... E se, no entanto, alguém<br />

afundasse de volta em sua Fonte, no oceano, e permitisse que aquela<br />

onda de raiva passasse a gente, apenas para se erguer novamente mais<br />

forte, mais pacífica, mais confiante em sua capacidade de resistir a<br />

qualquer tempestade porque sabemos que é mais do que até aquela onda<br />

de ira. Você é Um com o vasto poder do oceano que o guia.’” Depois<br />

do que ela disse, eu outra vez pude sorrir.<br />

Ziguezagueamos indefinidamente pelos Valles, semanas, até<br />

atravessaríamos países inteiros, só os astros saberiam! De resvalos em<br />

resvalos, mais, mais, até que chegamos em uma área longe, lá no raio<br />

que o parta. Por alguns dias analisamos e sentimos em nossos corações<br />

que ali era bom. Tinha que construir uma casa, um trabalho limpo,<br />

objetivo, sem pensar demais, apenas nosso verdadeiro lar para termos os<br />

incríveis momentos, para prosperar.<br />

Usei meus findos trocados e comprei material para fazer uma cabana.<br />

Levei exatos 17 dias, mas foram aproveitados à exaustão! E nosso<br />

refúgio foi aos poucos se formando. Madeiras, mãos e suor. Nos<br />

esforçamos muito, caçamos, plantamos; é certo que por muito vivemos<br />

batendo cabeças mas, no final, deu é certo. As privações até que servem!


Todos os meses eu ia ao mercado da cidade mais próxima, a Quebrada<br />

del Diablo, um emaranhado de labirintos dos nossos futuros<br />

necessários. Só fotos poderiam entender... tão marrom-claro! Eu<br />

comprava algo, trocava um serviço ou outro Quem sabe como eu<br />

conseguia moedas... mas tudo era melhor do antes, sem comparação.<br />

Por volta de 3 anos depois, eu tive outro daqueles pesadelos, ainda<br />

estava lá. Vi do alto, como se flutuasse, nós dois papeando e dando<br />

gargalhadas do lado de fora de casa quando ouço passos e alguém<br />

chegando perto. Grito de onde estou “¿quién??”, mas ninguém<br />

responde, então fui conferir. Pedi a minha esposa que ficasse no porão<br />

– não disse antes, mas construí um deles, com direito a mantimentos e<br />

distrações, por si acaso!<br />

Bem, eu dava a volta pela casa e surpreendia essa figura se esgueirando.<br />

Ele me via, tentava se recompor e parecer algo que não era. Achei<br />

esquisito, a ordem era desconfiar naqueles dia? Não sei. Primeiro, veio<br />

com um papinho de vender isso ou aquilo, depois começava a suar e<br />

desconversar conforme eu ia indagando. Por fim, se exaltava, puxava um<br />

trabuco de dentro do casaco e ia mirar na minha cabeça, certamente.<br />

Mas não era minha vez ainda, pois ele se atrapalhou! Nisso, eu dou um<br />

chute na sua mão e a arma voa. Ele me olha furioso, me acerta no rosto,<br />

de volta. Entretanto, bem... ele não fez questão de continuar batendo,<br />

então o surpreendi com uma banda e o mané cai feito fruta velha!<br />

Continuei tentando espantar ele, que se fechou no chão tentando se<br />

defender... mais parecia é um caramujo!<br />

Não desistiu... puxou uma faca e ia me furar. Que passa com essa gente,<br />

que te fiz? Me enervei. Corri e peguei alguma arma também. O homem<br />

se assustou tanto com aquilo que não aguentou, sério! Tem gente que<br />

não entende o susto, nunca volta o mesmo. Vi ele se ofegando, aí o olhar<br />

paralisa e ele foge. “Será que foi enfarto? Você devia ter muita gordura<br />

nessas tuas veias?”, eu pergunto.


Minha esposa reaparece. Maria ficava parada, olhando. “Chegariam<br />

mais?”, ela pergunta. “E eu pensando que não ia engolir mais nenhum<br />

desaforo. Acho que é questão de tempo até ele tentar revidar, chamar a<br />

galera dele e vir aqui zoar conosco... que mais eu faria, meu amor? Que<br />

fariam no meu lugar, poxa? Era ele ou eu, minha família ou nada. Ora,<br />

eu ao menos não o matei, ele que se extinguiu sozinho, sumiu. Nem<br />

soube por qual motivo foi. Mesmo assim, fica martelando na minha<br />

cabeça... como uma sensação de já ter feito pior.” Maria então alisa a<br />

barriga. “Ainda bem, porque estou grávida.”


– LXII –<br />

CASAL<br />

Pela manhã ela me fez um café forte, chá, comemos biscoitos, balas de<br />

forno com grãos integrais dentro; que tinha o melhor sabor de todos<br />

os tempos, o melhor de tudo que já havia recebido. Claras manhãs do<br />

deserto sem fim. Esteja ao meu lado, querida, te amo mais que tudo;<br />

nada mais importa ou se presta lá fora, apenas sermos um para o outro;<br />

só assim atingimos certo limite. Limite esse do Criador, entre a sanidade<br />

e o progresso!<br />

À tarde, falávamos ao vento. “Alguma vez pensou que sua vida seria<br />

assim?”, ela pergunta. “Sinceramente, não, respondo sorrindo. Mas o<br />

que posso fazer, reclamar?? Tenho mais que agradecer ter ainda uns dias<br />

para repensar tudo o que fiz. “Serviu então”, ela diz, olhando fundo<br />

nos meus olhos.<br />

“Antes eu poderia achar que o único que adiantaria na vida seria<br />

extravasar. Hoje eu espero a sentença de tudo isso. Ao menos você está<br />

do meu lado, minha dor diminuiu.”<br />

“Isso já fazemos, querido! Cada dia é uma eternidade se você pensa nele<br />

como especial, único. Se tudo que havia feito fosse entendido e<br />

discutido, haveria uma solução proposta, segura.”<br />

“Eu sei, e nunca paro... de agradecer. Recordo a frase de um conhecido,<br />

dita em uma outra ocasião mas de valor insubstituível. Ele falava que<br />

tudo tem um preço, de certa forma. Para tudo há um preço, não é!?”<br />

“E para a verdade, o que necessita? Querer.”<br />

NOTA – Caro leitor, mais uma vez apareço... não que seja para atacar,<br />

destrinchar, devo situar a união deles. Este pobre narrador tampouco<br />

seria capaz de omitir algo, e mesmo que pudesse, não o faria pois no<br />

fim devo ser apenas imparcial, é o que importa. É como me ouviriam!


Portanto, não se assustem, a história desses dois não deve ser vista com<br />

maus olhos, e sim com ternos sentimentos, perdão, redenção, liberdade<br />

e o maior amor fraterno – síntese de várias formas e situações, livre de<br />

reflexões sedentárias. Não digam por aí ser um amor politicamente<br />

incorreto, digam por si próprios que também merecem. Às vezes, os<br />

caminhos se estreitam e colidem as diferentes estrelas e suas conclusões.<br />

O movimento não perdoa, apenas é. Veja então sem conceitos prévios –<br />

há de se chegar a algo, não importa qual.<br />

Em geral, as pessoas são muito passivas. O que lhes acontece é<br />

observado, ficando a ação de lado; não se engane a si mesmo, atuar é só<br />

para atores, as pessoas vivem! Cada um tem a hora e a vez.<br />

Ora, realmente muitos são passivos, o que lhes acontece fica absorvido,<br />

não há muita reação. Sem tragédia, drama, o que é este mundo? Muitos<br />

recordam que a vida já foi como um leão observado de longe; como não<br />

alertar uns aos outros que uma hora esse mesmo leão pode sentir o teu<br />

cheio e atacar? Não há prazer nisso, apenas instinto. Uma só patada é<br />

suficiente para ele matar alguém, apenas um deslize e toda uma<br />

existência condenada. É preciso se antecipar, reagir. O ideal era não sair<br />

correndo; muitos tentam, na selva ou não!<br />

Peço que prossigam a fim de esclarecermos este final, um pouco mais<br />

de paciência. Obrigado... e até a próxima!


– LXIII –<br />

ÉRAMOS PAI, MÃE, FILHO, FILHA, PARENTES<br />

Um do outro, um pelo outro, um pacto que não tinha capa nem nada,<br />

tudo em branco. Sabíamos o que queríamos, e como! Isso e uma luz nos<br />

atingiu, como anteriormente. Passaram-se os anos e a sabedoria nos<br />

energizou como raio, logo nossos corpos fluíam. Maria tão pronta, me<br />

chamando nesse processo entre o carinho e o tesão; éramos animais<br />

reclusos, seres dispersos na Terra; tudo era mastigação, todas as posições<br />

que a imaginação pudesse conceber; o que coubesse a nós, os<br />

sobreviventes da noite, imersos em novos dias.<br />

Saltamos!!! Tudo que na tranquilidade vivemos e evoluímos rápido até...<br />

aderir.<br />

Logo ela se tornou mais que uma simples mulher, minha companheira<br />

era a celeste e a devassa. Me tornou também várias coisas – uma delas,<br />

um homem livre, ativo, que amou a vida a partir dali sem limite algum.<br />

Eu entendi o ditado que dizia que ‘uma mulher completa o serviço da<br />

tua mãe’!<br />

Mas ela amou mais, ah sim... tinha uma coisa tinhosa, arredia, algo<br />

irresponsável, aquele cabelo longo, moreno, querendo ficar cacheado, sei<br />

lá... pediria aos céus para me ajudar a descrever. A rosa! Enfim,<br />

conseguiu, e eu canto! “Che mi manca? Cosa mi manca? Se sono libero,<br />

adesso sai dirmi. Cosa mi manca? Mi manca rosa.”<br />

A minha rosa não podia se inativar, ia sempre à frente, existindo mais,<br />

me dizendo sem querer, refazendo a questão da vontade... sem brecar.<br />

Namorados rebeldes no precipício, reza a lenda que sim, os olhos verdes<br />

iam. “Eu devia te engravidar todos os dias, meu amor, ahãm, tem sempre<br />

mais espaço para nossas cópias!”<br />

Enfim, todos os atos levavam a Adão e Eva; início do próximo molde,<br />

mais um casal da língua desse Universo pronto. E o tempo passava<br />

perfeito, digno e unitário, misterioso em nossa galáxia criada. Quem


precisa saber mais?? Odiaríamos ter que sair da cama... sempre<br />

mantendo o fogo aceso. A lascívia nos venceu. E risos!<br />

“Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltavame<br />

desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução<br />

e que me recebessem com gritos de ódio.”<br />

(Albert Camus, do evocativo “O Estrangeiro”)


– LXIV –<br />

PAIRA<br />

“A esfera de nossos corações voava”, recita minha esposa, “e<br />

caminhávamos seguindo os passos à moda do tal Antonioni em Il grido,<br />

isso pelo fato transgressor.”<br />

Nossa diferença é de dez anos! Neste momento, ela tem 39, eu 49.<br />

Adultos por completo. No entanto, já menos culpados; rogamos que<br />

tantas conclusões não passem mais nas cabeças dos ultrapassados!<br />

Aqui não há mais resquícios, saímos da floresta não devastada,<br />

entretanto, solar, do limbo, e nos deparamos com a “Cidade 1” –<br />

inventamos esse nominho na hora porque não deu vontade de saber o<br />

nome real daquela paragem. Tinha chegado o momento de voltar, dar a<br />

cara a tapa! É assim a vida. Nossa fama já havia corrido, tanto que<br />

devíamos mesmo deixar a cabana e ver como seria.<br />

Acreditávamos em fofocas, em todo caso. Talvez já sabiam do que cada<br />

um de nós fez no passado, muita carga. Felizmente, nossos 3 filhos já<br />

estavam longe, infiltrados na atmosfera – o “projeto FUTURO”,<br />

alguém aí sabe, ou lembra? Enfim, outra invenção em família. Nossos<br />

filhos minando a sociedade, refazendo de baixo, nas bases. O mundo<br />

precisa de novas referências, certamente, e do inesperado, do que não se<br />

mede; todos nós em dado momento ansiamos por paixão, além da paz,<br />

felicidade... sempre que der. “Mas no caminho atravessam as sensações”,<br />

agora eu recito, “das mais descontroladas! Não haverá perigo de<br />

fracasso... não para eles que desprezam, por exemplo, a inveja! A salvação<br />

dessa estirpe está garantida, sim!” Rimos. Todos nós temos nossos<br />

segredos, as pessoas dos povoados exageraram só nas conclusões<br />

precipitadas. “Que desposar, estou de joelhos. Só você me importa<br />

agora, Maria; é como se tudo seguisse até estarmos aqui nessa decisão.”<br />

Mas o povoado vizinho não eviraria, veio ao nosso encontro em<br />

procissão de fé, passeata pela vida... moral, lado a lado; como cobras,


cabras, um cardume... nos espreitaram na noite nasal, enquanto<br />

dormíamos melhor, a missão cumprida. Queriam atenção e fama;<br />

parecia que sabiam ou puseram cães treinados para sentir nosso cheiro...<br />

e nos LINCHARAM! Fomos levados ao tal matadouro, atados,<br />

estriparam tudo que fosse necessário! Isso. Partes. Virei para Maria e<br />

falei, ofegante: “Tudo há de ser perecível. Vão beber do nosso sangue<br />

ainda fresco, amor.” Ela responde: “Dizem... que... todo castigo para nós<br />

é pouco, querido. Melhor calar e aceitarmos a idiotice passar.” Só quem<br />

esteve perto da morte sabe o que é essa fúria. Deixamos levar, não sem<br />

antes olhar um na cara do outro e sorrir, compreendendo nosso boicote,<br />

a revolução do boicote; a saber que só ficaria a carne morta, mártir<br />

sempre, umas cascas vazias.<br />

Foi preciso acelerar a narrativa! Nossos pedaços foram lançados à água<br />

fria do mar, espontaneamente, em pequenas caixas em forma de<br />

crucifixos direto para as profundezas do oceano Pacífico, lá onde reina<br />

o mais completo silêncio e só as águas podem presenciar o movimento<br />

da vida. Nos afastamos com dignidade, pairando, assistindo.<br />

“Qual partido tomar nesse novo mundo? Qual contexto usar? Que<br />

herdeiros deixar para sustentar essa piração? Demorou muito tempo<br />

para aceitarmos o que sempre fomos: modificadores. Agora sabemos do<br />

valor, da mentalidade renovada, desta espiritualidade alta. Avancem,<br />

vejam nossos filhos... são artistas da compreensão! E vão ensinar os<br />

filhos deles também como conduzir seu progresso pela Terra, eles<br />

sorriem sem peso, é suave. Estamos na boa, para eles não ensinamos a<br />

matar. Eles vivem! Sempre há uma saída se nos mantivermos juntos,<br />

compartilhando mais suor, palavras. A celebridade veio, é livre; se<br />

acabei, acabamos... e foi demais... para logo nos encontrarmos naquela<br />

outra estrada, tão doida quanto!”


“PARTE QUATRO”


– LXV –<br />

COMO EM UM POSFÁCIO<br />

Posso entregar ainda algumas últimas palavras sobre as consequências<br />

de tudo isso, porque mesmo que tanta ruindade tenha tido um fim<br />

comigo, eu ainda sofro, mais que ela. Ainda precisamos evoluir e<br />

entender, continuamos pagando pelos erros daquela última existência,<br />

temos consciência de tantos dias terríveis. Por que não entendemos a<br />

humildade a tempo? Por que não contornamos o caminho? Nossa, no<br />

meu caso é ainda mais grave, eu que nunca pedi desculpas àquelas<br />

pessoas. Sei que não havia um guia para viver, mas devia ter me<br />

esforçado para achar um (..)<br />

Notadamente estou morto, e só agora me avisaram! Minha esposa até<br />

mesmo já havia despertado bem antes. Há quantas décadas, quanto já<br />

passou? Vejam, antes eu via o mundo e me alterava em sua maléfica<br />

armadilha, fui sim pego nessa histeria humilhante, egoísta, fiz o mesmo<br />

que tantos... pratiquei o mal, me emporcalhei de tantos débitos; sim, eu<br />

estou morto, tenho certeza agora de que me viam passar pela última<br />

existência e só eu... não percebia; ainda assim estavam ávidos por meu<br />

despertar. Falo dos meus auxiliares. Tantas vezes me viam agir<br />

toscamente, deviam cochichar sem eu ver, mas tinham a maior paciência<br />

comigo. Então agradeço sua atenção, obrigado por tanta benevolência.<br />

Eu estou aqui, por fim já sei, reviso essa passagem desde a certeza da<br />

queda (...)<br />

Agora posso contar, refletir sem embaraços. Como eu nunca ajudei<br />

ninguém? Também, só falava de mim, hunnf. De onde eu estou avalio o<br />

desenrolar de tantos atos ruins juntos e as memórias me pesam! Quanta<br />

mágoa, fui nessa época um animal rastejante, um desprezo à vida e ao<br />

respeito mútuo. Era um viajante do tempo, preso na roda das<br />

encarnações vis que meus erros guiavam; então... só hoje me avisaram<br />

de fato... já fui de tudo isso, eu nem sabia! Aos que estão prestes a ler


este desfecho posso adiantar que de nada do passado me orgulho, estas<br />

letras serão traçadas de novo apenas com o intuito da advertência, uma<br />

última revisão; não era para ser assim! Salvo meu amor por ela. A razão<br />

agora sabe. Estava morto mas vivendo a vida entre os vivos, que bom<br />

que nos últimos anos eu a tive comigo. Sinto pena por tudo mais, ah<br />

me desculpem, quantas existências estranhas passei para chegar aqui e<br />

ser sincero! Que meus filhos não chorem mais como eu chorei, estou<br />

rendido, amém.<br />

Passo a palavra então, é uma leitura que aprendi há pouco, fala que<br />

“todas as coisas na Terra passam. Os dias de dificuldades, passarão.<br />

Passarão também os dias de amargura e solidão (…) As dores e as<br />

lágrimas passarão. As frustrações que nos fazem chorar… um dia<br />

passarão.<br />

A saudade do ser querido que está longe, passará. Dias de tristeza…<br />

dias de felicidade…<br />

São lições necessárias que, na Terra, passam, deixando no espírito<br />

imortal as experiências acumuladas.<br />

Se hoje, para nós, é um desses dias repletos de amargura, paremos um<br />

instante. Elevemos o pensamento ao Alto, e busquemos a voz suave da<br />

Mãe amorosa a nos dizer carinhosamente: isso também passará (…)<br />

E guardemos a certeza, pelas próprias dificuldades já superadas, que não<br />

há mal que dure para sempre.<br />

O planeta Terra, semelhante a enorme embarcação, às vezes parece que<br />

vai soçobrar diante das turbulências de gigantescas ondas.<br />

Mas isso também passará, porque Jesus está no leme dessa Nau, e segue<br />

com o olhar sereno de quem guarda a certeza de que a agitação faz parte<br />

do roteiro evolutivo da humanidade, e que um dia também passará (…)<br />

Ele sabe que a Terra chegará a porto seguro, porque essa é a sua<br />

destinação.


Assim, façamos a nossa parte o melhor que pudermos, sem<br />

esmorecimento, e confiemos em Deus, aproveitando cada segundo, cada<br />

minuto que, por certo… também passarão.”<br />

“Tudo passa... exceto DEUS!” Deus é o suficiente!”


<strong>Grossi</strong> é escritor, roteirista e músico espiritualista, publicou entre outros<br />

títulos a novela “Beijo técnico”, além dos argumentos de “Amor, Ódio,<br />

Redenção e Morte” e “Casa de praia”. Pela Poesia, lançou “Cura”,<br />

“Servidão”, “A Conferência”. “Cabezada”, “Esencias”, “Maneja” e “El<br />

Viajero Loco Ø § La May Madre” são suas obras em espanhol.<br />

Participou também como guitarrista e vocalista das bandas Alice, íO,<br />

Instrumental Vox, Ummantra e SAEM


20<strong>19</strong>, EDIÇÃO DEFINITIVA<br />

<strong>2013</strong> © GROSSI, O ANTIGO

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