Chicos 58 - 22.09.2019
Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com
Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil.
Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com
- TAGS
- gabriel-franco
- flauzina-marcia-da-silva
- fernando-abritta
- alberto-pereira
- alberto-bresciani
- antonio-jaime-soares
- mauricio-vieira
- ronaldo-cagiano
- ronaldo-werneck
- emerson-teixeira-cardoso
- paschoal-motta
- helen-massote
- inez-andrade-paes
- chicos-cataletras
- joaquim-branco
- jose-vecchi-de-carvalho
- lecy-delfim-vieira
- luiz-ruffato
- jose-antonio-pereira
- andressa-barichello
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Nº <strong>58</strong><br />
22 de setembro de 2019<br />
e-zine de literatura e ideias de<br />
Cataguases – MG<br />
Um dedo de prosa<br />
Esta é a nossa edição <strong>58</strong><br />
<strong>Chicos</strong> é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.<br />
Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar<br />
nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta<br />
página.<br />
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a<br />
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno<br />
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,<br />
uma diversidade temática.<br />
Neste número, a poeta da primeira página é Lecy Delfim<br />
Vieira. Mais uma de nossas poetas ainda inédita em<br />
livros. Quem nos dá um pouco de sua dimensão é Joaquim<br />
Branco.<br />
No último dia 17.09.2019 faleceu o artista plástico e<br />
professor Ady Resende, quem fala dele em sua poesia é<br />
o estreante nestas páginas Marcos Venícios de Melo.<br />
Esta edição é dedicada ao Cairu Teles, agitador da cena<br />
cultural de Cataguases por décadas, falecido recentemente.<br />
Uma agradável leitura para todos! E até o início do verão.<br />
Os <strong>Chicos</strong><br />
Capa: Foto Vicente Costa<br />
Editores:<br />
Emerson Teixeira Cardoso<br />
José Antonio Pereira<br />
Colaboradores:<br />
Projeto gráfico - Gabriel Franco<br />
Fotografia - Vicente Costa<br />
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com<br />
Visite-nos em:<br />
https://independent.academia.edu/<strong>Chicos</strong>Cataletras<br />
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras<br />
http://chicoscataletras.blogspot.com/<br />
05.05.1939 — 26.06.2019<br />
01
<strong>Chicos</strong><br />
03 LECY DELFIM<br />
Menina nº 4 + 2 poemas<br />
VIEIRA<br />
08 JOAQUIM BRANCO<br />
Lecy Delfim Vieira (1942-2008)<br />
10 INEZ ANDRADE<br />
PAES<br />
Amazónia<br />
11 HELEN MASSOTE<br />
O bobo da corte / Não é o bobo<br />
do povo<br />
13 FERNANDO ABRITTA<br />
Feito Corpo<br />
23 ALBERTO BRESCIANI<br />
Pedras ao mar + 4 poemas<br />
27 GISELA GRACIAS<br />
RAMOS ROSA<br />
2 poemas de O livro das mãos<br />
29 MAURICIO VIEIRA<br />
Floema<br />
34 MARCOS VENÍCIOS<br />
Paraíso + 2 poemas<br />
DE MELO<br />
37 FLAUSINA MÁRCIA<br />
Pedipereipetos Pehumapenos<br />
39 ALBERTO PEREIRA<br />
Um poema<br />
42 RONALDO CAGIANO<br />
Variação sobre um poema de<br />
Marçal Aquino<br />
47 RONALDO WERNECK<br />
Uma noite na Galart<br />
50 JOSÉ VECCHI DE<br />
Dentim<br />
CARVALHO<br />
52 JOSÉ ANTONIO<br />
Ô Glória!<br />
PEREIRA<br />
55 ANDRESSA<br />
Loucura<br />
BARICHELLO<br />
59 ANTÔNIO JAIME<br />
SOARES<br />
Presença espírita e lembrança de<br />
índios<br />
61 MAURICIO VIEIRA<br />
De Bucéfalo ao Acéfalo<br />
63 LUIZ RUFFATO<br />
Lendo os clássicos: Short cuts -<br />
Cenas da vida<br />
65 CLARA ARREGUY<br />
Mecanismos do mal descortinados<br />
66 EMERSON TEIXEIRA<br />
CARDOSO<br />
Gaiola de vidro, de Gleison<br />
Dornellas<br />
68 RONALDO CAGIANO<br />
Uma escritura demiúrgica<br />
71 JOSÉ ANTONIO<br />
Em agosto de 2007<br />
PEREIRA<br />
32 PASCHOAL MOTTA<br />
Saudação da primavera<br />
57 VANDERLEI PEQUENO<br />
A Fina Flor do Noel<br />
75 CLIPS<br />
02
<strong>Chicos</strong><br />
Lecy Delfim<br />
Vieira<br />
Lecy Delfim Vieira, nascida em Cataguases<br />
em 12 de outubro de 1942, falecida em<br />
08 de agosto de 2008. É, infelizmente, mais<br />
uma de nossas ótimas escritoras ainda inédita<br />
em livro.<br />
Graças ao poeta Joaquim Branco, a totalidade<br />
de sua obra não se perdeu; já que vários inéditos<br />
dela encontram-se em seu acervo.<br />
Além da participação no jornal O Muro, de<br />
Joaquim Branco e equipe, apareceu também<br />
nas antologias:<br />
Poetas novos do Brasil, organizada por Walmir<br />
Ayala em 1967.<br />
Marginais do Pomba, organizada por Joaquim<br />
Branco, Fernando Cesário e Ronaldo Werneck.<br />
La Nueva poesia Latinoamericana, organizada<br />
por Jorge A. Boccanera publicada no México<br />
em 1999.<br />
03
<strong>Chicos</strong><br />
Menina nº 4<br />
Não me importa que sonhes as coisas sem sabê-las.<br />
importa-me que saibas<br />
e sonhes as coisas.<br />
Já te dissera que fosses materialista soberba e cínica<br />
não<br />
que fosses fingida.<br />
E quem sonha finge se não sabe com que sonha<br />
e os que sonham não sabem nada<br />
senão<br />
não sonhariam.<br />
04
<strong>Chicos</strong><br />
Menina nº 8<br />
Agora me responderias<br />
num único verso<br />
talvez<br />
como é composto o poeta.<br />
É quando se protesta.<br />
Poeta protesta profundo<br />
tão profundo<br />
quanto o sangue sem cores<br />
e sem lugar<br />
cujo alvo dileto<br />
é a plataforma do poeta.<br />
Poeta alvado<br />
distante<br />
ou<br />
amado<br />
poeta incrédulo,<br />
impossível<br />
ou compacto<br />
meu poeta é um monstro suavíssimo.<br />
05
<strong>Chicos</strong><br />
Menina nº 11<br />
Menina<br />
ninguém pode dizer que eu não procurei.<br />
Até sob os troncos<br />
nas folhas<br />
na raiz<br />
– o que é raiz? –<br />
até nos lagos profundíssimos<br />
eu que não sei nadar<br />
porque eu não sei.<br />
Se eu soubesse teria visto que era inútil<br />
e me afogaria.<br />
mas ninguém pode dizer que eu não procurei.<br />
Até nos olhos profundíssimos<br />
imaculados<br />
em todas as cores<br />
de todos os olhos<br />
eu procurei.<br />
E se eu fosse cega<br />
eu teria visto<br />
e eu não vi<br />
e teria achado.<br />
06
<strong>Chicos</strong><br />
Menina<br />
que grande é o mundo<br />
o mundo é sempre grande<br />
quando se procura.<br />
as escavações, as esperanças, a volta<br />
tudo é tão grande<br />
que é insuportável<br />
e se eu fosse fraca<br />
eu teria achado<br />
pois menina<br />
só os fracos acham.<br />
e eu nunca acho.<br />
[...]<br />
07
<strong>Chicos</strong><br />
Joaquim Branco<br />
Nasceu em Cataguases (MG), em 1940, poeta, Joaquim<br />
Branco herdou de seus conterrâneos da revista<br />
Verde, do final dos anos 20, o gosto pela experimentação<br />
e pela literatura de vanguarda. É autor de<br />
Concreções da fala (poesia 1969); Consumito ( poesia<br />
1975); Laser para lazer (Poesia 1984) Marginais do<br />
Pomba (Contos org. 1985) O caça-palavras (Poesia<br />
1997) Do pré ao pós-moderno Manual de literatura<br />
(1998); Ascânio, o poeta da Verde (org. 1998) , além<br />
de livros de crítica, literatura infantil.<br />
LECY DELFIM VIEIRA (1942-2008)<br />
“Fundarei o céu e a terra<br />
só para ter aonde ir.”<br />
Espanto e susto. Foi o que me acometeu.<br />
Também fiquei muito triste. Alguém me dissera:<br />
– Lecy morreu. Dito assim, seco, funcionou<br />
como um baque.<br />
Não importa quando, como, onde. Parecia que<br />
isso jamais iria acontecer. Sua presença, seus<br />
livros voltaram-me à mente. Em suas invenções<br />
de paródias ou ensaios de meninas, não era<br />
prevista a orfandade do rio e das meninas ao<br />
mesmo tempo.<br />
Imagino sua vida ao escrever ainda muito jovem<br />
o romance Paródias de um gigante líquido.<br />
Um título e tanto. Na época, peguei os manuscritos,<br />
li-os numa sentada. Um texto incrível.<br />
Naqueles idos de 1961, já senti ali a literatura<br />
pulsando célere, madura, imagens bem construídas,<br />
novas, o pensamento de uma autora no<br />
limite de sua pouca leitura e de sua muita densidade.<br />
Como me assustei.<br />
Nem tive tempo de olhar pro lado. Apresentoume,<br />
logo depois, os originais de Ensaios-<br />
Menina, não sem muita insistência de minha<br />
parte. Poemas de reflexão. Novo impacto. Ela<br />
não estava ali para brincar. As meninas, numeradas<br />
de 1 ao infinito, não terminariam nunca,<br />
e a narradora se dirigia a elas, uma a uma, como<br />
se fossem filhas ou espelhos de si mesma<br />
ou ambas as coisas. O diálogo textual com as<br />
meninas funcionava como num ringue de alteregos.<br />
Daria outro excelente livro.<br />
Tentei incorporá-la ao nosso grupo de rapazes<br />
que, na época, fazia o jornalzinho O Muro; publiquei<br />
alguns de seus textos, mas ela era impermeável<br />
à equipe. Tinha seu próprio mundo e<br />
mostrava-se arredia ao assédio.<br />
Mesmo assim, busquei editores, críticos no Rio,<br />
em Belo Horizonte e São Paulo, pois Lecy era a<br />
única do grupo que tinha livros prontos e eu<br />
sabia o que estava diante de mim. Nada. A sorte<br />
não estava a seu favor.<br />
O máximo que consegui foi o interesse do crítico<br />
Assis Brasil e depois de Walmir Ayala, que<br />
selecionou vários de seus poemas para a antologia<br />
Poetas novos do Brasil, em 1967. Ali foram<br />
editadas, pela primeira vez em livro, as<br />
‘meninas’, com apresentação de Francisco Inácio<br />
Peixoto, que dizia: ‘Herdeira do nada, senão<br />
dos caminhos de Cataguases, e de sua infância,<br />
explode em diálogos que, na verdade, são monólogo<br />
de obsedante desamparo: ‘Será que não<br />
há no mundo/ quem queira comigo ir,/ mesmo<br />
que não olhe meus olhos/ inda que vá por partir?’.<br />
Falamos ‘explode’ e não há de fato, outro<br />
verbo para exprimir o jeito que Lecy tem de<br />
dizer as coisas.”<br />
08
<strong>Chicos</strong><br />
“Volto a Lecy. Procuro um fragmento de Paródias...<br />
, ele dá o tom do belo discurso do rio:<br />
“Nasci nas frontes de Minas Gerais como um<br />
mineiro qualquer. Depois de ser nascido fui<br />
amado e batizado como um rio qualquer. Minha<br />
infância foi sem tréguas. Sempre corri demais.<br />
Talvez por isso começaram as ofertas que não<br />
vinham por amar-me sim por acalmar-me. E<br />
mais vingança eu sonhava quando uma rosa sem<br />
história sumia na minha cara perdida. Sempre fui<br />
assim muito quieto e muito rápido, muito forte e<br />
bem amado. Era assim o meu trecho, sempre<br />
cresci sem vontade e cheio de mágoas. Como<br />
lágrimas sentidas de uma guerra interminável de<br />
um texto prevendo misérias.<br />
Fora isso, sempre fui muito sóbrio, contra o<br />
Amazonas.”<br />
Outros fragmentos de sua obra, e não é difícil<br />
encontrá-los da melhor qualidade:<br />
“Precisarei de alimento, água, bússola, companheira./<br />
– será que não há no mundo quem queira<br />
comigo ir? –/ inda que não olhe meus olhos/<br />
inda que vá por partir./ – Fundarei o céu e a terra<br />
só pra ter aonde ir.” (Menina nº 70)<br />
“O que devemos Menina é fazer a vida/ não assisti-la.”<br />
(Menina nº 62)<br />
“E o grande aguaceiro, e as grandes orgias, e o<br />
aguaceiro e as orgias. Meu sonhar terrível me<br />
desperta de tantas mágoas que nem sei se verei<br />
o fim do mundo. [...] Todos os que caíram nas<br />
minhas águas aumentaram meus pesadelos. Então<br />
que lhes devo?” (Paródias do gigante líquido,<br />
p. 5)<br />
“Além de mim o que mais quererão os deuses<br />
de mim?” (Menina nº 54)<br />
“O mundo?/ O mundo é aquilo que era redondo<br />
e que mudou de forma como eu./ Será que o<br />
mundo me imita?” (Menina nº 31)<br />
“Do jeito que vais Menina/ em pouco o mundo<br />
estará velho demais./ – e são 365 dias às vezes<br />
66 além dos nossos –/ tantos/ que tu me perguntas/<br />
como/ a humanidade pode viver com tão<br />
poucos dias/ incrível não Menina?” (Menina nº<br />
24)<br />
“...até que o mar que nunca fica louco de sede/<br />
– que só a sede enlouquece –/ até que o mar<br />
normal, arrebente este litoral/ que nunca sei se<br />
termina/ cá/ ou acolá/ da mangueira.” (Menina<br />
nº 22)<br />
“Eu me importaria que te suicidasses/ que então<br />
eu não teria armas contra o mundo./ Tu és o<br />
meu projétil.” (Menina nº 20)<br />
“Serei eu provável pedreira?/ Eu te darei todas<br />
as pedras./ Que são as estrelas que não buracos<br />
no céu/ feitos por pedradas?/ Uma pedra bem<br />
atirada revela tudo ao homem Menina./ Um pássaro<br />
apedrejado – por Deus não chores –/ o pássaro<br />
é um embuste./ Um homem apedrejado –<br />
por Deus não te escondas atrás de mim –/ já te<br />
ensinei a enfrentar os dragões Menina./ Além do<br />
mais/ tu tens todas as pedras./ No entanto, recorda-te,/<br />
que o que importa é o alvo/ não é a pedra.”<br />
(Menina nº 18)<br />
“A felicidade é como o segundo andar de um<br />
clube/ três garrafas/ dois copos/ uma mesa./ A<br />
paisagem atrás da vidraça/ eu/ e catorze cadeiras./<br />
Mas não é felicidade que eu busquei/ ninguém<br />
pode dizer isto./ Eu não quero buscar mais<br />
nada/ se tu nunca estás em nada/ nem em mim/<br />
tu tão independente./ Não quero felicidade/ de<br />
cadeiras/ de copos/ de mesa./ Menina/ eu te quero<br />
apenas.” (Menina nº 11)<br />
“O que vale na vida é comer ou não comer./<br />
Mas jamais deixes de devorar os extremos/ pois<br />
para além deles/ não há mais nada para se comer./<br />
E é no ato de se devorar os extremos que<br />
está a fórmula iminente da vida.” (Menina nº 6)<br />
No dia 8 de agosto morreu a cataguasense escritora<br />
Lecy Delfim Vieira, ela que nascera no dia<br />
12 de outubro de 1942. Um talento tão grande<br />
que acabou prejudicando a sua edição em livro<br />
solo.<br />
Além da antologia de Walmir Ayala, participou<br />
apenas da coletânea Marginais do Pomba, organizada<br />
por mim, Fernando Cesário e Ronaldo<br />
Werneck. Deixou inéditos títulos como Rua sem<br />
elevadores, 8.511.965 km2 de omissão, PAN-<br />
Pressão atmosférica normal, Mulher setentrional,<br />
Ensaios-Menina e Paródias do gigante líquido.<br />
Espero editá-los brevemente, e levar ao público<br />
palmo a palmo o seu caminho literário.<br />
09
<strong>Chicos</strong><br />
Inez Andrade Paes<br />
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de<br />
O Mar que Toca em Ti (Crônica de viagem -<br />
2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011);<br />
Libreto em três atos, constituindo a Cantoriana<br />
Marítima - Acto I Mar falante, Acto II<br />
Transparente Luva de Água, Acto III Flores de<br />
Acanto em Marfileno Lençol ; D Estrada Vermelha<br />
(Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia<br />
2015) : À Margem de Todos os Rostos (2017).<br />
Coordena desde 2012 o Prêmio Literário Glória<br />
de Sant”Anna.<br />
Amazónia<br />
os homens trazem cornos em fogo<br />
duma cegueira luminosa<br />
com restos<br />
de cinzas<br />
alimentam<br />
a morte<br />
no chão deitado<br />
10
<strong>Chicos</strong><br />
Helen Massote<br />
Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no<br />
Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta e cronista<br />
trabalha no Portal Fiocruz.<br />
O bobo da corte<br />
Não é o bobo do povo<br />
Quando criança<br />
Toda cidade<br />
Tinha o seu<br />
Bobo de estimação<br />
Chamado pelo nome<br />
Pelas invenções<br />
Nomeado por lugares<br />
Por procedência ou<br />
Desconhecimento<br />
11
<strong>Chicos</strong><br />
Ou por acontecimentos<br />
Que não só os seus<br />
Por procedimentos diversos<br />
De conhecimento público ou<br />
Suposto porém aceito<br />
E ele era digamos<br />
entendido<br />
Por certo que cada<br />
Um conforme a<br />
Sua medida também<br />
O tinha como seu.<br />
12
<strong>Chicos</strong><br />
Fernando Abritta<br />
Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino,<br />
distrito de Cataguases-MG. Mora em Juiz de<br />
Fora (MG) Tem publicados umÁrvore, O Caso<br />
da Menina Que Perdeu a Voz, e, em parceria<br />
com Joaquim branco, Uma Verde História,<br />
além de um ebook, Relâmpago.<br />
Feito corpo<br />
Um corpo<br />
feito boto<br />
abrindo caminho na água<br />
feito onça<br />
teimando existir sem matas<br />
feito seriema<br />
feito serafim<br />
sobreviver sem deixar de ser<br />
raiz tronco folha<br />
flor e fruto<br />
exu abrindo caminhos<br />
costurando vida<br />
feito nós enlaçados<br />
——————···0<br />
13
Minha pele parte<br />
<strong>Chicos</strong><br />
O mundo em um<br />
dentro e outro<br />
fora<br />
Fronteira falsa<br />
Não consigo viver<br />
sem o fora<br />
nem sem o dentro<br />
Meu corpo se<br />
se estende pra<br />
dentro em<br />
células e<br />
átomos até<br />
onde não enxergo<br />
nem meu sonho vai<br />
Meu corpo se<br />
espraia pelo mundo<br />
chão montanha<br />
árvore capim<br />
floresta rio<br />
lago e mar<br />
oceano até<br />
onde não enxergo<br />
nem imagens faço<br />
——————···0<br />
14
<strong>Chicos</strong><br />
Corpo,<br />
o meu<br />
tromba com o<br />
corpo seu<br />
o envolve e<br />
o penetra no<br />
ar que respiro<br />
ar que respiras<br />
ar que respiramos<br />
um peixe tem<br />
em si a água<br />
mesma água<br />
que circula<br />
dentro de outro<br />
peixe. Todos<br />
compartilham<br />
do mesmo corpo<br />
feito de todas<br />
águas num<br />
único corpo<br />
comum<br />
——————···0<br />
15
<strong>Chicos</strong><br />
Meu corpo só<br />
tem uma medida<br />
limite beirada<br />
fronteira<br />
onde para<br />
Eu sou vontade<br />
desejo<br />
Sou o mundo<br />
Meu corpo<br />
só se queda<br />
quieto no seu<br />
desejo quando<br />
tromba com<br />
tua vontade<br />
Eu sou vontade<br />
desejo<br />
Sou o mundo<br />
Meu corpo<br />
só se queda<br />
quieto no seu<br />
desejo quando<br />
16
tromba com<br />
<strong>Chicos</strong><br />
tua vontade<br />
Eu sou vontade<br />
desejo<br />
Sou o mundo<br />
e se<br />
a mim permite<br />
penetro vc<br />
como água num<br />
vaso e te<br />
possuo e me<br />
aproprio de ti<br />
A menos que<br />
sua vontade me<br />
contenha e<br />
estabeleça a<br />
fronteira entre<br />
eu e tu<br />
——————···0<br />
17
<strong>Chicos</strong><br />
Seria guerra<br />
se não fosse<br />
guerra, ela mesmo, o fim dos corpos<br />
Ou<br />
uma fronteira<br />
fundada na<br />
caridade<br />
(quando faço algo a vc<br />
e nada espero de retorno)<br />
Seria guerra<br />
se guerra não<br />
fosse fim dos corpos<br />
Ou<br />
solidariedade<br />
(quando faço algo a vc e<br />
espero ter algo de volta)<br />
Seria guerra<br />
se guerra não<br />
fosse fim dos corpos<br />
Ou<br />
respeito<br />
(quando espero tempo<br />
necessário a vc para<br />
que me reconheça<br />
como igual)<br />
18
Seria guerra<br />
<strong>Chicos</strong><br />
se guerra não<br />
fosse fim dos corpos<br />
Ou<br />
respeito<br />
(quando espero tempo<br />
necessário a vc para<br />
que me reconheça<br />
como igual)<br />
——————···0<br />
19
<strong>Chicos</strong><br />
tu<br />
uma divisão<br />
fundada no ato<br />
que faço<br />
sem espera de retorno<br />
E<br />
(esperando ter de volta o mesmo)<br />
respeito<br />
(na esperança<br />
de o tempo nos fazer<br />
iguais)<br />
——————···0<br />
20
<strong>Chicos</strong><br />
Vc?<br />
uma divisão que<br />
não termine em<br />
exclusão ou<br />
silêncio ou<br />
silenciamento<br />
Ou morte<br />
vez que<br />
sua morte<br />
seu silêncio<br />
sua exclusão<br />
diminui meu<br />
Corpo<br />
este (corpo)<br />
já anda<br />
tão ferido tão<br />
em chagas<br />
Tantas árvores cortadas<br />
ervas queimadas<br />
Tanta terra pelada<br />
tostada<br />
revirada e lavada<br />
sem pele de húmus<br />
Resultante do<br />
conflito entre<br />
minha versus<br />
sua vontade<br />
——————···0<br />
21
<strong>Chicos</strong><br />
Bom lembrar<br />
quanto de eu<br />
quanto de mim<br />
possa ser vc<br />
sem esquecer<br />
quanto de vc<br />
passa a ser eu<br />
Lembrar o link<br />
ligação estrada<br />
relação entre eus<br />
caminhos entre nós<br />
resumindo o encontro<br />
de vontades iguais<br />
movimento de ir<br />
e vir<br />
caminho de ida<br />
e volta<br />
Feito broto<br />
abrindo caminho na casca<br />
Feito verme<br />
teimando existir no asfalto<br />
Feito seriema<br />
Feito serafim<br />
sobreviver sem deixar de ser<br />
——————···0<br />
22
<strong>Chicos</strong><br />
Alberto Bresciani<br />
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), mora em Brasília<br />
(DF). É autor de Incompleto movimento (2011), Sem<br />
passagem para Barcelona (2015), finalista do prêmio<br />
APCA de Literatura - Poesia de 2015). Integra, entre<br />
outras, as antologias Outras ruminações (Dobra<br />
editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá,<br />
2014), Pássaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa<br />
– Littérature brésilienne contemporaine<br />
(Revista Pessoa, edition spéciale – Salon du Livre<br />
de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016).<br />
Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da<br />
internet e em revistas e jornais impressos.<br />
Pedras ao mar<br />
E se estávamos ali,<br />
fixos no movimento<br />
uniforme das ondas,<br />
era que dividíamos<br />
ventos, os poucos,<br />
as tempestades,<br />
as aves marinhas<br />
e seus peixes, as aves<br />
marinhas já mortas<br />
Todos os ciclos<br />
nos pertenciam<br />
– ainda que distantes<br />
nos parecessem<br />
as nossas ilhas<br />
Não tínhamos olhos<br />
E assim era melhor<br />
Sem ossos,<br />
somos aquelas pedras<br />
para sempre.<br />
23
<strong>Chicos</strong><br />
Habitat I<br />
Bisões<br />
Guardei sob a pele<br />
todos os peixes, as conchas,<br />
anêmonas, veleiros antigos<br />
e recuperados aos sargaços<br />
Ninguém conheceu<br />
os oceanos que devoravam<br />
as moças e os rapazes<br />
de olhos castanhos<br />
O silêncio da maré baixa<br />
sabe o doce<br />
de frutas selvagens,<br />
um mundo híbrido,<br />
primeiro, anfíbio<br />
À custa de nomes marinhos,<br />
sobrevivo<br />
Aprendi a respirar na água.<br />
E seguimos como bisões,<br />
olhando para a frente,<br />
em disparada, fugindo<br />
de absolutamente nada<br />
e de quase tudo<br />
No caminho, outros bisões<br />
se juntam ao grupo<br />
e continuamos todos,<br />
aos atropelos, na mesma rota<br />
Corremos, nós os bisões,<br />
para onde não sabemos<br />
em uma pradaria fictícia<br />
que, a exemplo dos rios,<br />
é outra a cada migração<br />
Olhamos para a frente<br />
e nos perguntamos,<br />
os olhos bovinos,<br />
se este é mesmo<br />
o nosso lugar.<br />
24
<strong>Chicos</strong><br />
Golfinho<br />
O dorso sobre a areia grossa,<br />
a pele rasgada ao sol<br />
e pelo atrito das conchas,<br />
preso à terra que não quis,<br />
enquanto as gaivotas<br />
gritam o fim<br />
Ainda o poderiam salvar<br />
a maré mais alta<br />
ou uma onda que encontrasse<br />
o céu cinzento<br />
Mas ao país chegaram<br />
os bárbaros e seu rei<br />
e à invasão cederam<br />
todos os mortais<br />
Vêm agora com suas facas,<br />
suas cimitarras<br />
Logo, o primeiro corte.<br />
Souvenir<br />
Todo o tempo, vamos embora<br />
e, no entanto, não nos perdemos<br />
de vista em instante algum<br />
Tentamos um novo enredo,<br />
mas a memória é outro corpo<br />
que arrastamos e decai<br />
com os nossos, permanece,<br />
cicatriz, nome que nunca cessa<br />
E se nos víssemos entre os vivos,<br />
outra vez na multidão? A imagem<br />
fixa de susto e nos perguntaríamos:<br />
e agora, quem some? Nenhum<br />
de nós: somos a provação,<br />
o cravo nas costas, as vértebras<br />
e suas cracas para sempre,<br />
um aleijão, a fisgada em cada gesto<br />
25
<strong>Chicos</strong><br />
Não nos esquecemos, sim,<br />
nos esconderíamos com a mentira,<br />
não nos lembramos, não<br />
nos lembraremos de esquecer,<br />
tornaremos os rostos à parede<br />
mais vendo assim, transe,<br />
mais sabendo que somos nada,<br />
aprisionados nos nossos estômagos<br />
Sim, a memória é uma unha<br />
e ainda que cortemos o dedo<br />
que a leva, e mesmo amputados,<br />
leríamos a mutilação, a dor<br />
fantasma, o concreto, toxina,<br />
o plástico nas narinas,<br />
o afogamento, a despeito<br />
das transparências<br />
E nos olharíamos, os mesmos,<br />
quase os mesmos, despojos<br />
de dias gastos.<br />
26
<strong>Chicos</strong><br />
Gisela Gracias<br />
Ramos Rosa<br />
Nasceu em Maputo (Moçambique). O seu primeiro<br />
livro foi um diálogo de poesia com António Ramos<br />
Rosa, Vasos Comunicantes (publicado em 2006).<br />
Colaborou em várias Antologias e Revistas de poesia.<br />
Publicou também entre outros As palavras<br />
mais simples (2014) , O livro das mãos (2017) e A<br />
pedra e o corpo (2018)<br />
Estas mãos sonâmbulas transcrevem<br />
tudo o que sonhei em vigília<br />
Estendo os dedos e toco a página de um lugar<br />
fado dialógico, extremo de minhas mãos.<br />
Sou textura polifónica, luz sonâmbula<br />
de um breve segredo em que me inscrevo.<br />
27
<strong>Chicos</strong><br />
A Inez Andrade Paes<br />
Está no corpo o centro do que ainda não tem nome<br />
a dança contínua em projecção esculpida contra o vento<br />
elevamo‐nos na promessa de encontrar essa linha ao meio<br />
que em diagonais se configura e em movimentos se cumpre<br />
por isso amamos toda a dança que no tempo esboça<br />
o que ainda não tem nome<br />
De: O livro das mãos (2017)<br />
28
<strong>Chicos</strong><br />
Floema<br />
...Solo natura subest... (Georgicon Liber II 49)<br />
à Patrícia Portela<br />
o anelamento na casca da árvore,<br />
o floema —ou líber—segmentado,<br />
impede o fluir da seiva elaborada.<br />
poção concebida da luz do dia,<br />
por varinhas de condão de verde ornadas,<br />
quem olha de fora não sabe subindo<br />
29
<strong>Chicos</strong><br />
da terra os sais e a água<br />
de conjuração embebidos,<br />
palavras de breu sem céu estrelado.<br />
o anel à volta do tronco<br />
futuros anéis faz cessar.<br />
não orna, mas grava<br />
em trincheira, expõe o xilema,<br />
na lida de ázimo aquoso levar<br />
à queima nas verdes fornalhas.<br />
mas vala agora a doce seiva barra<br />
no êxodo cujo pacto não permite muralha.<br />
que inanes labores agora se travam?<br />
sem luz adocicada que som se propaga,<br />
senão o grunhir do martelo de lâmina,<br />
o silente instrumento que é o cinzel?<br />
logo uma cica se entoca no oco<br />
das línguas, que de lamento e fel<br />
no solo nodoso criam bruta saliva.<br />
30
<strong>Chicos</strong><br />
línguas dantes conversantes não se suportam<br />
sobe do breu maldição que os galhos soletram<br />
cuspindo folhas decrépitas às costas da terra<br />
a dita do escuro despida das falas do claro<br />
ruído de mó cobrindo de pó um livro fechado<br />
31
<strong>Chicos</strong><br />
Paschoal Motta<br />
Nasceu em São Pedro dos Ferros (MG), mora em<br />
Belo Horizonte (MG). Jornalista, Crítico de Literatura,<br />
Professor universitário de Literatura Brasileira e<br />
Linguística, Teoria da Literatura, Didática de Literatura<br />
Portuguesa. Editor do Suplemento Literário do<br />
Minas Gerais.<br />
Saudação da primavera<br />
Viaja no pólen do desejo<br />
nas asas de abelhas operosas,<br />
luz inteira, garça em azul;<br />
volta do sempre, desde o gesto<br />
inicial, desde a pedra e o musgo,<br />
desde a fonte, desde a sede;<br />
e chega: suas mãos destas vazias<br />
velejam num remanso de lágrima,<br />
por ausência e apelos repetidos;<br />
luar na tarde, calma na estrada,<br />
sonho de um sabiá protegido<br />
na sombra de verde cantiga;<br />
32
<strong>Chicos</strong><br />
nem sabia mais o gosto da polpa<br />
da manga de vez das meninices,<br />
cheiro roxo do capim-de-mel;<br />
agora, encanto: a festa nas espigas,<br />
e novo encontro, encantada manhã,<br />
flor de primavera, seiva e raiz.<br />
33
<strong>Chicos</strong><br />
Marcos Venícios de<br />
Melo<br />
Nasceu em Cataguases (MG), mora em Juiz de<br />
Fora (MG). Poeta é autor de Chuvas e luas (2018)<br />
Paraíso<br />
Macondo não é minha Pasárgada.<br />
Nem meu Shangri-la fica nos grandes sertões.<br />
Meu Éden é banhado pelo Rio Pomba<br />
E a árvore da vida floresceu<br />
Onde hoje fica a concha acústica.<br />
34
<strong>Chicos</strong><br />
Cato,<br />
No chão das estradas<br />
Onde trafego<br />
Pedregulhos;<br />
Tocos de pau,<br />
Restos de animais<br />
E<br />
Alguma poesia perdida.<br />
Tem dias que encontro:<br />
Diamantes;<br />
Madeiras nobres,<br />
Fosseis pré-históricos<br />
E<br />
Ainda vou achar uma obra prima.<br />
35
<strong>Chicos</strong><br />
Ao Sr. Ady<br />
Um óleo sobre tela;<br />
Uma tapeçaria;<br />
Uma escultura em cerâmica;<br />
Aço.<br />
Uma fotografia<br />
Um oratório em madeira<br />
Uma peça de selaria.<br />
Ando por exposições,<br />
Museus e galerias<br />
Paro diante de cada obra<br />
E me pergunto:<br />
Como Seu Adyr as faria?<br />
36
<strong>Chicos</strong><br />
Flausina Márcia<br />
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo<br />
Horizonte (MG) onde trabalhou na Secretaria<br />
de Cultura de Minas Gerais.<br />
Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua<br />
Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives<br />
(2014).<br />
Pedipereipetos Pehupemapenos<br />
POVO OVO VOO<br />
NAVE AVE EVA<br />
VIDA UVA VIU<br />
VOVÔ IVO VIR<br />
Ver a banda passar<br />
Ir para Pasárgada<br />
Rimar com Raimundo<br />
Vasto Mundo<br />
37
<strong>Chicos</strong><br />
Ambientalizado<br />
Racializado<br />
Mulherizado<br />
Elegebetado<br />
Raiz com profundeza<br />
Própria para a superfície.<br />
Agonia/19<br />
38
<strong>Chicos</strong><br />
Alberto Pereira<br />
Nasceu em Lisboa. É membro do PEN Clube<br />
Português. Publicou: O áspero hálito do amanhã<br />
(2008), Amanhecem nas rugas precipícios<br />
(2011), Poemas com Alzheimer (2013), O<br />
Deus que matava poemas (2015), Biografia das<br />
primeiras coisas (2016), Viagem à demência dos<br />
pássaros (2017). Em 2017, foi editado no Brasil<br />
Bairro de Lata, na coleção Dulcineia Catadora.<br />
Entre vários prêmios em 2018 Menção<br />
Honrosa no Prémio Internacional de Poesia<br />
Glória de Sant´Anna.<br />
IV<br />
Para Victor Oliveira Mateus<br />
Caminho como uma fogueira no tempo.<br />
Estão longe os dias<br />
que pronunciavam o Louvre.<br />
Tudo respira entre dois hemisférios:<br />
um repleto de harpas e cotovias,<br />
o outro,<br />
hirto de mandíbulas e agónicas ficções.<br />
O corpo,<br />
antigo prado vigiado pela neve.<br />
39
<strong>Chicos</strong><br />
Cultivámos o aroma da máscara<br />
e a sensualidade está agora<br />
ligada ao ventilador.<br />
A minha mãe<br />
que orava a Cesariny,<br />
repetia a<br />
Pena Capital.<br />
Dorme meu filho<br />
o amor<br />
será<br />
uma arma esquecida<br />
um pano qualquer como um lenço<br />
sobre o gelo das ruas<br />
Abolimos a leveza<br />
de encostar os lábios<br />
e a nebulosa taquicardia<br />
não deixa que a vertigem recite:<br />
o teu corpo é o Guggenheim.<br />
De súbito,<br />
Agosto inala tumulto.<br />
40
<strong>Chicos</strong><br />
Não entendemos<br />
porque a Aurora Boreal<br />
não continua a girar<br />
à volta do nosso ego.<br />
Como traduzir o Outono<br />
onde a queda é definitiva?<br />
O homem será sempre a partitura de um pântano.<br />
41
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nasceu em Cataguases, autor, dentre outros,<br />
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />
de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />
(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />
2012) e Eles não moram mais aqui<br />
(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente<br />
em Portugal.<br />
Variação sobre um poema de Marçal Aquino<br />
para Adeilton Lima<br />
Outro dia<br />
faleceu a puta mais antiga<br />
da cidade.<br />
Devorada por um câncer,<br />
a quimioterapia rareou seus cabelos,<br />
impingiu-lhe uma face esquálida<br />
e a boca semiaberta e murcha<br />
realçava a minúscula<br />
povoação de dentes.<br />
Seu tempo, um rol de incertezas.<br />
Sua vagina, um cemitério de espermatozoides.<br />
Jamais reclamou da sorte,<br />
não teve patrão nem FGTS,<br />
42
não falava mal dos políticos,<br />
<strong>Chicos</strong><br />
respeitava as religiões,<br />
pagava as contas em dia,<br />
mas desconhecia o que foi<br />
o maio de 68.<br />
Em certa manhã de primavera<br />
viram-na contemplando<br />
os flamboyants da Avenida<br />
como uma dama num quadro de Van Gogh.<br />
Em um Natal distante<br />
levou presentes às crianças do Orfanato<br />
e assistiu à Missa do Galo<br />
indiferente ao aço dos olhares,<br />
à labareda dos comentários.<br />
Gostava de jogar na loteria<br />
na esperança de mudar de vida.<br />
Enquanto seu enterro atravessava a cidade<br />
o comércio não baixou as portas,<br />
um taxista palitava os dentes,<br />
um mendigo inventariava uma lixeira,<br />
o engraxate sentado na barbearia<br />
observava o comboio ferroviário<br />
que invadia a cidade feito uma língua metálica<br />
como tantas foram as que lhe roçaram a buceta.<br />
Falavam que ela era amante<br />
de um mandachuva da política,<br />
mas nunca frequentou os clubes,<br />
43
não saiu na coluna social,<br />
<strong>Chicos</strong><br />
nem recebia convites<br />
para as solenidades da prefeitura.<br />
Restaram-lhe tantas rugas,<br />
crateras de celulites,<br />
feixes de pelancas pelo corpo,<br />
corolário das entregas,<br />
mas se importava mesmo<br />
é com as cicatrizes na alma.<br />
Votou sempre na Arena, mas amava JK,<br />
não sabia o que era estadista,<br />
mas chorou no suicídio de Vargas,<br />
tinha medo de comunista,<br />
ajudava ao asilo de idosos,<br />
não passava debaixo de escada,<br />
mas se confessava aos domingos.<br />
Dizem que emprestava dinheiro,<br />
detestava a servidão de gigolôs,<br />
acompanhava a novela das oito,<br />
era viciada em cibalena<br />
e guardava um serrote,<br />
lembrança do pai marceneiro.<br />
Se amores teve, nunca disse seus nomes,<br />
mas a foto de um galego de chapéu<br />
dividindo espaço na penteadeira<br />
com batons, esmaltes e brincos,<br />
falava dos caminhos de um coração<br />
44
tão distantes como a esperança<br />
<strong>Chicos</strong><br />
que sempre a desacompanhou.<br />
Morreu sem nenhuma presença,<br />
sem vela nem orações,<br />
a puta mais antiga da cidade.<br />
Mas a enfermidade<br />
da qual nunca se livrou<br />
foi uma tristeza<br />
escondida em suas vísceras,<br />
a jornada na náusea da noite.<br />
Um dia alguém quis saber<br />
por que não teve marido nem filhos.<br />
Outro, a razão de sorrir com tanta facilidade<br />
apesar de seus desertos.<br />
Mas de si não escondia<br />
que a rotina e a maternidade<br />
e uma vida feliz na COHAB<br />
trariam o desgosto e o inferno.<br />
Preferiu a rotatividade das camisinhas<br />
e os gemidos clandestinos<br />
a trocar fraldas e ouvir choros.<br />
E sua coleção de Sétimo Céu<br />
empanturrando as gavetas<br />
tinha mais vida que a realidade.<br />
Findou junto com o século a puta mais velha da cidade,<br />
sem conhecer o novo milênio,<br />
sem testemunhar o 11 de setembro,<br />
45
nem os terremotos do Japão<br />
<strong>Chicos</strong><br />
e também não sabia<br />
que na Abbey Road, em Londres,<br />
há a faixa de pedestres mais famosa do mundo,<br />
mas dentro dela outras<br />
tragédias se passaram.<br />
Morreu num dia sem jogo<br />
com botequins vazios<br />
e as unhas por fazer,<br />
sem meninos brincando na rua,<br />
sem foguetes estourando nas vilas<br />
e os porcos de dona Alzira<br />
cevando no chiqueiro.<br />
Numa tarde comum<br />
com a solidão de nuvens carregadas,<br />
roupas mergulhadas no anil,<br />
a felicidade apequenada nos becos<br />
que impunham aquele mesmo vazio<br />
com que as árvores<br />
sabotam as ruas no outono<br />
e desfolham a alegria das meretrizes.<br />
46
Uma noite na GalArt<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Werneck<br />
Nasceu em Cataguases. Poeta e jornalista, colaborou<br />
em vários jornais e revistas cariocas. Publicou<br />
entre outros os livros: Poesia - Selva Selvaggia<br />
(1976), Pomba Poema (1977), Minas em mim e o<br />
mar este trem azul (1999) Minerar o Branco (2008),<br />
Cataminas Pomba e outros Rios (2012) e O Mar de<br />
Outrora e Poemas de Agora (2014). Prosa - Há Controvérsias<br />
1 (2009) , Há Controvérsias 2 (2011), Rosário<br />
Fusco por Ronaldo Werneck/ Sob o signo do<br />
imprevisto (2017) e o ensaio biográfico “Kiryrí Rendáua<br />
Toribóca Opé” Humberto Mauro Revisto por<br />
Ronaldo Werneck<br />
Cataguases, 29 de outubro de 1983:<br />
o marchand Cairu Teles organiza uma grande<br />
noite de lançamentos de livros com escritores<br />
da terra na GalArt: Lina Tâmega Peixoto<br />
(“Entretempo”); Francisco Inácio Peixoto<br />
(“Chamada Geral”);<br />
Francisco Marcelo Cabral<br />
(“Inexílio”); P.J.<br />
Ribeiro (“Muralhas<br />
Humanas, os Dragões<br />
e Visuais”; Ronaldo<br />
Werneck (“Selva Selvaggia”<br />
e “Pomba Poema”);<br />
Joaquim Branco<br />
(“Concreções da Fala”);<br />
Plínio Filho<br />
(“Leções de Vida”); e<br />
M á r c i a C a r r a n o<br />
(“Zeroversus”).<br />
Do Rio de Janeiro viriam Luiz Linhares<br />
(“Desencontros de Harvey”); Victor Giudice<br />
(“Os Banheiros”); Jair Ferreira dos Santos (“A<br />
Faca Serena”); Fausto Wolff (“O Acrobata Pede<br />
Desculpas e Cai”). Esses acrobatas<br />
“estrangeiros” – a exemplo de Francisco Marcelo<br />
Cabral, P. J. Ribeiro, Plínio Filho e Francisco<br />
Inácio Peixoto (que já havia “saído de cena”)<br />
– pediram as devidas desculpas e caíram,<br />
quer dizer, não vieram.<br />
Em outubro de 2002, Cairu Teles organizou<br />
um número todo do jornal GalArt sobre este<br />
prestidigitador aqui, este que vos prestidigita –<br />
e me fez uma surpresa: colocou uma foto que<br />
eu desconhecia com algumas das presenças<br />
daquele lançamento<br />
de 1983. Estavam lá e<br />
estão aqui agora, impávidos,<br />
perfilados da<br />
esquerda para a direita:<br />
Márcia Carrano,<br />
Lina Tâmega Peixoto,<br />
Ronaldo Werneck, o<br />
cineasta Sylvio Lanna,<br />
Joaquim Branco, o<br />
professor José Silva<br />
Gradim e o próprio<br />
Cairu.<br />
Assim que vi a foto “cometi de imediato” um<br />
poema-legenda para ela, (in)devidamente inédito<br />
até hoje. E que agora publico em homenagem<br />
ao meu amigo Cairu Teles, falecido recentemente.<br />
Cairu, como Francisco Marcelo Cabral,<br />
Luiz Linhares, José Silva Gradim, Victor<br />
Giudice e Fausto Wolff, queridos comparsas de<br />
vida e literatura que também já caíram do trapézio.<br />
E sem rede. Vejam o poema a seguir.<br />
47
<strong>Chicos</strong><br />
Legenda<br />
em sépia e sempre<br />
tanto tempo<br />
e essa ausência<br />
na curva cataguáis<br />
chico peixoto<br />
não mais<br />
nem linhares<br />
nem giudice<br />
enfim<br />
indesculpáveis acrobatas<br />
fausto wolff<br />
trapézio que não veio<br />
nem chico cabral<br />
nem jair ferreira<br />
nem plínio filho<br />
nem<br />
nem p.j.ribeiro<br />
mas nós<br />
esses sós desatados<br />
que, sus!, saltam do pomba<br />
e da foto e da ponte<br />
onde<br />
márcia<br />
lina<br />
mais eu<br />
48
<strong>Chicos</strong><br />
e sylvio lanna<br />
e quincas<br />
e um branco<br />
sorriso<br />
e gradim<br />
e cairu<br />
– sus!<br />
sós no rio<br />
indesculpáveis acrobatas<br />
caímos<br />
e sobre as águas da mata<br />
andamos<br />
sol que cega e arrebata.<br />
Cataguases, dez/2002<br />
49
José Vecchi de<br />
Carvalho<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases, após morar por muito<br />
tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido<br />
todas cidades mineiras. Coautor de A casa da<br />
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de<br />
Duas Cruzes (contos 2018).<br />
Dentim<br />
Não tive escapa. Ele veio direto em cima<br />
de mim, véio, balançando o corpo, já tava<br />
daquele jeito. Tive que enfrentar a zoeira no<br />
meu ouvido, a lengalenga de sempre, porra,<br />
a receita médica na mão, o bafo da birita e o<br />
pedido de uns trocados. É foda, Dentim tinha<br />
aquela mania de chegar bem perto, falar<br />
e pôr a mão no ombro da gente. Não deu<br />
outra, pra fugir do bafo e da chuva de cuspe<br />
abri a carteira e dei logo uma nota de dez.<br />
Fez um “tinindo” e saiu todo todo.<br />
Fiquei olhando ele cambaleando pela calçada.<br />
Eu já sabia aonde ia se meter. Ainda<br />
tentou parar o próximo que vinha na correria.<br />
O cara desviou, nem deu confiança. Dentim<br />
tava acostumado com isso, seguiu em<br />
frente mostrando a receita pra todo mundo<br />
que passava. Era umas sete e meia. Ele contou<br />
a grana, atravessou a rua e sumiu. Foi<br />
pras quebradas atrás de uma brita, sacou?<br />
Zanzava por aqui há um ano, mais ou menos.<br />
Antes andava por outras bandas, onde<br />
rolava mais grana, mas puseram ele pra correr<br />
de lá. De vez em quando eu pago um<br />
rango, de dia, quando ele tá legal ainda. Aí<br />
ele é caladão. Come e vai sem encher o saco.<br />
Mas gosta mesmo de ganhar um money<br />
pra pedra e pra cachaça.<br />
Eu lembro dele de muito tempo, jogava<br />
fácil, mas fudeu o joelho, véio, já era. Isso<br />
aqui era uma vila, umas casinhas simples, ele<br />
morava depois do final da rua, num barraco<br />
no meio do pasto. O dono vendeu as terras e<br />
agora é shopping, padaria, escola, banco,<br />
prédio e mais prédio. Aquelas casinhas, já<br />
era. Os lotes vagos, também. Bicho andando<br />
na rua de noite, não tem mais isso, cara.<br />
50
<strong>Chicos</strong><br />
Agora é gente pra lá e pra cá, correria, ronco<br />
de carro, moto, sirene, e o caralho a<br />
quatro. Olha só a calçada, porta de banco,<br />
de loja, tudo lotado de gente pedindo, uma<br />
doideira. Fico pensando, mas não entendo<br />
essa porra. E ainda por cima tem a turma<br />
do Dentim. Tá foda. Eles tão dando mole<br />
porque tem uma galera aí barra pesada que<br />
tá de bronca, já viu, né, cê sabe como é.<br />
Eu não ligo, saio do banco no fim do dia,<br />
ajudo um ou outro. Fico em paz com Deus<br />
e com eles. Minha política, sacou?<br />
Mas olha só, não falei dos barra pesada?<br />
na mosca, naquele dia mesmo, cheguei<br />
em casa, tomei um banho, dei um tapa<br />
num beck e fiquei de boa na TV. Aí horrorizei,<br />
cara, o jornal mostrou que um carro<br />
passou lá na boca, cuspiu bala e saiu cantando<br />
pneu, dois no hospital, seis no chão.<br />
Foda, Dentim tava lá, cara, se fudeu, já era.<br />
Agora nem receita, nem birita, nem porra<br />
nenhuma. E eu dei dez reais pra ele no dia,<br />
cara, tô mal, é foda. Não é porque morreu,<br />
véio, mas o cara era gente boa, né não?<br />
51
José Antonio<br />
Pereira<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />
casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />
Ô Glória!<br />
Naquelas trilhas abertas, chão batido<br />
pelo ir e vir dos moradores, via-se o avermelhado<br />
da bauxita. Seguiam em tortuosas<br />
paralelas a estrada de ferro, cruzando aqui e<br />
ali seus trilhos. Caminhos que enveredavam<br />
para além da ferrovia. Subia até a pitangueira<br />
do alto do pasto do Zé de Barros; zanzava<br />
pela margem do fedorento rio Meia Pataca<br />
até a represa da fábrica de papel. Aqueles<br />
moleques conheciam tão bem aqueles estreitos<br />
e variados caminhos que mesmo no breu<br />
da noite e com o mato já na altura do peito<br />
andavam e, correriam se necessário fosse,<br />
com a desenvoltura de quem os percorria várias<br />
vezes ao dia. Os três amigos de estripulias,<br />
Japonês, Pedrão e o moleque Ivo, irmão<br />
de Pedrão, atravessavam o pontilhão sobre o<br />
rio. Ivo é quem interrompe as risadas dos<br />
dois mais velhos sobre o último dos malfeitos.<br />
– A luz da Glorinha está acesa. Pedrão<br />
retruca, – Tem visita! Ao que Japonês emenda.<br />
– Dou a bunda se não for o coroa lá da<br />
praça. – E alguém vai querer esta tua bunda<br />
magra, ô Japa! Retruca Pedrão. Japonês reage,<br />
metem-se numa discussão recheada de<br />
ofensas recíprocas, entremeada de empurrões<br />
e peitadas, parecem dois galinhos ensaiando<br />
uma briga pelo terreiro. Ivo é que os chama<br />
às falas. – Ô panacas! Estão se esfregando<br />
por quê? O que emputecera Japonês, era Pedrão,<br />
de forma chula, o lembra-lo que a mãe<br />
era amante de um goleiro afamado na cidade.<br />
Depois de trocarem desculpas, dão tudo<br />
por esquecido. Seguem em linha reta pelo<br />
meio dos trilhos na direção da estação, passam<br />
pela chave do desvio que faz a curva<br />
para a direita, onde fica a casa de luz acesa.<br />
Param, olham, o Chevrolet preto reluz por<br />
traz das amoreiras, – É, o veio taí. E Ivo rindo<br />
muito. – Então não vai ter que dar a bunda.<br />
Que alívio em Japô. E outro bate-boca<br />
segue pelos trilhos.<br />
– A filha da falecida dona Clementina é linda.<br />
Diziam todos os homens. Seu nome de<br />
pia era Maria da Glória. Mas na vizinhança<br />
só se ouvia, Glorinha é uma sem juízo... Glorinha<br />
é uma pecadora... um péssimo exemplo<br />
para as meninas mais novas. Muitas vezes de<br />
forma rude alguma velha carola e recalcada<br />
soltava o verbo, – A amante do velho endinheirado?<br />
Aquilo é uma puta, vagabunda,<br />
tinha que tá enfiada em alguma zona, não<br />
aqui perto de nós, gente de bem e temente<br />
52
<strong>Chicos</strong><br />
a Deus. Na casa de Ivo e Pedrão, eles eram<br />
os vizinhos mais próximos de Glorinha, não<br />
era diferente. A mãe, como as mães de seus<br />
amigos em suas catequeses, construía a fé<br />
no medo. E aí a moça era sempre citada ora<br />
como a maior pecadora do beira-linha, ora<br />
como a materialização do chifrudo encarnado.<br />
Apesar do medo, a molecada insistia na<br />
festiva cata de amoras para chupá-las trepados<br />
no muro da amante do doutor.<br />
Ivo, pirralho em que já surgia uma penugem<br />
pelo corpo, ainda conserva uma certa inocência,<br />
adorava catar amoras no quintal da<br />
vizinha, além do quintal ele estava, sempre<br />
que podia, enfiado na casa. Glorinha sempre<br />
atenciosa e sorridente. Generosa, oferecia<br />
uma farta mesa de biscoitos e alguns pedaços<br />
de bolo, coisa rara na casa de todos. Ela<br />
não tinha filhos e dava a atenção que nenhum<br />
deles tinha de seus pais. Delicada, ensinava-os<br />
a se portar na mesa, lavar as amoras<br />
e as mãos antes de comê-las. Até que,<br />
por volta das duas horas da tarde, educadamente<br />
convidava todos a sair. – Meninos,<br />
agora é hora de voltarem para casa, suas<br />
mães devem estar preocupadas com vocês e<br />
eu tenho que receber uma visita. Ivo estranhava<br />
aquilo tudo. Como uma pessoa tão<br />
chique, boa e bonita podia ser a encarnação<br />
do diabo. Aquilo roía a cabeça do moleque.<br />
Numa tarde de domingo, sol quente, ruas<br />
vazias, só se escutava os rádios ligados<br />
transmitindo algum jogo de futebol lá do Rio<br />
de Janeiro. Quem não estava interessado no<br />
jogo, tirava uma soneca depois de um pesado<br />
almoço de domingo. Outros, provavelmente<br />
estariam lá no campo do Flamenguinho<br />
ou no Manu assistindo ao estiloso goleiro<br />
da mãe do Japonês em ação. Solitário,<br />
Ivo catava amoras trepado no muro da casa<br />
de Glorinha. De lá vinha uma música, ... por<br />
isso esta força... estranha no ar... Ao puxar<br />
um galho, vê Glorinha completamente nua,<br />
através da janela aberta, secando seus longos<br />
cabelos. Nunca vira uma mulher nua, a excitação<br />
é imediata, sente algo até ali inimaginável,<br />
as reações do corpo estão fora de<br />
controle. Nervoso, sem entender aquela força<br />
estranha que sacudia seu corpo, não desgruda<br />
os olhos da mulher, nem consegue<br />
mais ouvir a voz do Roberto Carlos. De repente,<br />
explode o gozo.<br />
Recomposto, faz a volta ao redor do muro<br />
até chegar à cerca de arame farpado por onde<br />
sempre entrava no quintal da casa. A porta<br />
da cozinha, como sempre, encontra-se<br />
aberta, isto, só, quando o visitante não está.<br />
– Glória? Ô Glória, é o Ivo. E a voz vem lá<br />
de dentro, – Um instantinho, tô indo. É só<br />
acabar de me aprontar. Ivo senta no degrau<br />
da porta, ainda não tomou tino do que aconteceu<br />
com ele. Tenta entender aquele terremoto<br />
que lhe sacudiu, lembra da primeira<br />
vez que o peruzinho ficou retesado, outra<br />
ocasião um tantinho, quase uma gota, de um<br />
liquido feito óleo, mas agora veio tudo junto,<br />
muito doido. – Mas foi gostoso. – Uê<br />
Ivo, o que foi gostoso? Ele se assusta, – Ô<br />
Glória! Fica de pé e explode pela cara uma<br />
vermelhidão que arde como o sol do meio<br />
dia. Glorinha sorri, . – Te assustei né? Ela o<br />
abraça, a cabeça fervilhante entre os peitos<br />
sente a alfazema queimar as narinas. Ele<br />
pressente que a mesma força estranha vai<br />
incendiá-lo novamente. Ele se desvencilha<br />
dos braços dela, sai a galope, passa pela cerca<br />
e só para de correr no pontilhão. Entra no<br />
vão da estrutura metálica e vai até o pilar de<br />
pedras rejuntadas por cimento, onde em sua<br />
base correm as águas do Meia Pataca. Lá de<br />
cima fica olhando as águas em redemoinhos<br />
onde as margens se alargam, e em seguida<br />
se estreitam fazendo uma curva à esquerda<br />
para não trombar com o morro da pitangueira.<br />
Aquele movimento tranquilo das águas o<br />
acalma. Lembra das conversas do Pedrão<br />
com a molecada sobre sexo e mulheres, recheadas<br />
de machismos e um contarvantagem<br />
sem fim. Um tempão por ali, deulhe<br />
uma certeza. – Agora sou homem.<br />
53
<strong>Chicos</strong><br />
Durante alguns dias, atormentou-lhe um<br />
misto de euforia pelas possibilidades de prazeres,<br />
que tanto ouvia o Pedrão e o Japonês<br />
falarem e o medo das punições divinas apregoados<br />
pelos pais moralistas. Tentando pôr<br />
ordem naquela confusão em sua cabeça, começa<br />
a refutar o moralismo dos mais velhos.<br />
– Mais que merda! Tudo é pecado. Glorinha,<br />
nua, começa a tomar conta dos seus<br />
pensamentos. Por onde ele vai ela está presente,<br />
sempre nua com os dedos das duas<br />
mãos delicadamente percorrendo os cabelos<br />
e a imaginação criando outros movimentos.<br />
Uma noite sonha com ela entre as amoras,<br />
esfregando amoras pelo corpo e ele louco<br />
para abraçá-la e beijá-la. Bruscamente é<br />
acordado pelo irmão. – Vamo cara! Tá<br />
na hora, vai perder a aula. Levanta às pressas.<br />
O irmão caçoa. – Tesão de mijo? Se dá<br />
conta da ereção e sem graça atira o travesseiro<br />
no irmão, que está as gargalhadas. Por<br />
onde anda, não consegue se concentrar em<br />
nada. Na escola e até na igreja a mulher nua<br />
vai ocupando todos os cantos de sua mente.<br />
Com quem falar sobre aquilo? O pai, a mãe,<br />
um amigo, o irmão? Sabe que qualquer um<br />
deles vai tripudiar em cima dele. Os pais<br />
são conservadores, o pai então, seria capaz<br />
de uma surra se soubesse que ele insinuara<br />
uma conversa destas com a mãe. Os amigos<br />
e o irmão iriam gozá-los por um bom tempo.<br />
Acha que a solução é se abrir com alguém<br />
mais distante e respeitável.<br />
Com a inocência dos puros resolve se confessar.<br />
Impaciente, não dá nenhum tempo e<br />
dispara, – Tô apaixonado por uma mulher.<br />
– Você é uma criança. Está gostando de alguma<br />
menina, né? – Não! Já disse. É uma<br />
mulher. – Um moleque de calças curtas como<br />
você, não sabe nem o que está falando.<br />
– Ela não sai da minha cabeça. – Como não<br />
sai? O que aconteceu? Todo o ensaio para<br />
conseguir falar, desanda. A segurança das<br />
primeiras palavras desaparece. Não sabe<br />
mais o que falar. A pergunta insiste, – O que<br />
aconteceu? O medo o paralisa. Já sabe de<br />
cor e salteado qual será o conselho do padre<br />
velho e conservador. Não tem solução. Aquilo<br />
será seu segredo. Levanta do confessionário<br />
e sai correndo igreja afora. Atravessa a<br />
porta. Vira à esquerda e com o pé na rua escuta<br />
trovejar a voz do padre. – Ô menino,<br />
volta aqui!<br />
54
<strong>Chicos</strong><br />
Andressa Barichello<br />
Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora<br />
em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano<br />
e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora<br />
do projeto fotoverbe-se.com.<br />
Loucura<br />
Quebrei uma taça. Ou a taça foi<br />
quebrada por um saco de pão de forma.<br />
Não sei. O armário, alto, vive cheio de comida.<br />
E a preguiça, grande, faz da bancada<br />
o lugar das taças sujas. As xícaras e copos<br />
vão para a pia ou para a máquina de<br />
lavar. As taças ficam, como se o vinho, ao<br />
contrário do café, do leite e do refrigerante,<br />
pudesse esperar uns dias, fosse água.<br />
As coisas pesadas, como latas, nunca<br />
causam problemas - ao menos não esses,<br />
de queda. Alguns pacotes de bolacha, retângulos<br />
em quatro apoios, também não:<br />
ficam firmes. O perigo, mesmo, está no<br />
mais cotidiano: sacos de arroz, feijão e<br />
pão de forma estão sempre prontos a tombar.<br />
A instabilidade tem afinidade com o<br />
básico em qualquer circunstância.<br />
Prova disso é que se estivermos tristes<br />
ou aflitos a primeira coisa que acontece é:<br />
a gente não dorme, não come, não caga e<br />
não trepa direito. Dentro do meu armário<br />
tudo trepa: nozes em cima de sucrilhos,<br />
sucrilhos em cima de molho bechamel,<br />
chocolate em cima de macarrão. Às vezes<br />
é preciso empurrar, como as pessoas que<br />
ainda desejam entrar no vagão fazem<br />
quando o trem já está lotado. Como eu,<br />
hoje, tentando entrar numa calça P. Embora<br />
haja diferença entre a precariedade que<br />
nasce das pilhas e a unidade que nasce<br />
nos apertos de corpo contra corpo.<br />
Foi essa precariedade que já fez com<br />
que o arroz tombasse. Faz tempo. Nada<br />
grave. Não alçou vôo livre, tombou dentro<br />
dos limites seguros da prateleira mesmo,<br />
os grãos percurtindo ao tocar o chão. Era<br />
como se noivos tivessem passado. Varri<br />
um fim de festa.<br />
O feijão, se caísse, eu imaginei naquele<br />
dia, seria a sensação de um fio quando escapam<br />
contas, bolas de gude. Se pisados,<br />
nos pés uma cócega, estimulados pontos<br />
de acupuntura. A acupuntura, aliás, é ótima<br />
para evitar problemas com dormir, comer,<br />
cagar e trepar, porque é, como dizem,<br />
um tratamento holístico. Eu acredito<br />
muito no holístico mas nunca pude ter sobre<br />
o meu armário uma visão, digamos,<br />
integral. Senão talvez tivesse sabido que<br />
não bastava preencher a soma dos espaços<br />
vazios. Mas enquanto a gente fantasia que<br />
seria o feijão, quem tomba é o pão.<br />
Durante toda a minha adolescência vivi<br />
preocupada com a saúde da minha mãe,<br />
com medo que ela tivesse uma doença<br />
55
grave como a mãe de uma amiga teve.<br />
Mas quem ficou doente foi o meu pai,<br />
que não pegava nem gripe. O destino é<br />
sempre a viagem nunca feita pela fantasia.<br />
Um armário de cozinha é, aliás, como<br />
uma mala de viagem. E eu sempre soquei<br />
tudo nas malas de viagem, fiz do zíper<br />
um cabo de guerra, sentei em cima, forçando<br />
caber, como as pessoas atrasadas<br />
no vagão, como as minhas coxas nas pernas<br />
P da calça.<br />
Minha amiga, a da mãe que teve uma<br />
doença grave, sugeriu cortar o pão pra<br />
caber na calça. É tão estranho que o caber<br />
seja quase sempre alguma coisa que<br />
exige subtração e não soma. Cortei o pão<br />
e o saco ficou dentro do armário. O pão,<br />
se caísse, vinha abaixo fechado. Tombava<br />
e eu reerguia. Tombava e eu reerguia, assim,<br />
com a displicência de um abaixa e<br />
levanta. Se o saco de pão pensasse, talvez<br />
caísse de propósito em cima da taça, caísse<br />
hoje, bem hoje que eu não o quis. Mas<br />
não pensando, caiu do mesmo jeito. A<br />
maioria das coisas que acontecem é fruto<br />
de intenção nenhuma. A gente acha que<br />
as pessoas estão fazendo as coisas pensando<br />
na gente só porque elas nos acertam.em<br />
cheio e elas só estão caindo como<br />
um saco de pão cai sobre a única taça<br />
que havia, vingativo como quem ameaça:<br />
se eu cair levo alguém junto.<br />
Não ouvi a ameaça. Mas recebi uma<br />
ameaça.<br />
<strong>Chicos</strong><br />
É que desde que eu soube da história<br />
de uma mulher que enlouqueceu depois<br />
de quebrar sem querer alguma coisa de<br />
vidro dentro de casa, tomo cuidado redobrado,<br />
principalmente com o espelhinho<br />
de aumento que deixo no criado mudo<br />
com uma pinça em cima. Meu espelho<br />
fica sempre no centro, longe das pontas,<br />
mais à esquerda do pendente de teto que,<br />
se cair, não acerta o objeto onde vejo<br />
meus bigodes. Tenho a mania de me preocupar<br />
com coisas improváveis como um<br />
pendente de teto ou a possibilidade de<br />
enlouquecer com a quebra de objetos de<br />
vidro. Por isso deixo o pão a perigo, deixo<br />
a taça a perigo. E coisas caem e quebram<br />
debaixo dos meus bigodes. E o medo<br />
continua a ser horror e fascínio.<br />
O som da taça no chão é como o de<br />
uma janela atingida por uma pedra. Mas<br />
nada de novo invade a minha cozinha.<br />
Esses cacos são fruto do que já estava. E<br />
o mocinho dorme no quarto. Varro, recolho,<br />
ajoelho. No silêncio confesso baixinho<br />
os meus pecados, os meus descasos,<br />
a minha displicência. Mas ele desperta,<br />
surge na porta coçando os olhos e<br />
diz: Isso acontece, não adianta se crucificar.<br />
Pão e vinho. Não tem coisa mais profana<br />
que transubstanciar a loucura no<br />
corpo e no sangue das palavras.<br />
56
<strong>Chicos</strong><br />
Vanderlei Pequeno<br />
Nascido em Cataguases MG, músico, compositor,<br />
escritor e ativista cultural Autor da Lei Ascânio<br />
Lopes (Lei de incentivo a cultura de Cataguases)<br />
Escreveu entre outros: 50 Casos do nosso<br />
futebol, Casos e acasos e coautor de A Casa<br />
da Rua Alferes<br />
A Fina Flor de Noel<br />
“Mas você é mesmo artigo que não se imita<br />
Quando a fábrica apita faz reclame de você”.<br />
Tenho comigo a edição do Jornal Cataguases<br />
de 14 de novembro de 2004. A página<br />
3 traz uma matéria dando conta do falecimento<br />
da senhora Josefina Teles Nunes, a<br />
Fina, 90 anos. O texto, embora não esteja<br />
assinado, sei, é de autoria da jornalista Vera<br />
Maciel e faz o registro desse acontecimento<br />
ímpar em nossa cidade. Fina era mãe do<br />
Marchand Cairu Teles que, já há algum tempo,<br />
aportou em Cataguases e por aqui ficou.<br />
É nosso velho conhecido. Josefina foi –<br />
Ave! – musa inspiradora de Noel Rosa, o genial<br />
compositor brasileiro dos anos trinta do<br />
século passado.<br />
Rememoro agora o dia primeiro do<br />
mesmo mês quando Cairu, atabalhoado, parou<br />
seu carro no meio da rua e me informou<br />
da morte de sua mãe. Estava visivelmente<br />
abatido e em pranto. Situação constrangedora<br />
e comovente. Fiquei de repassar a notícia<br />
e o horário do sepultamento aos escritores<br />
Emerson Cardoso e José Antonio Pereira.<br />
Nada mais a dizer naquele momento.<br />
Fui depois à capela contígua ao cemitério<br />
e encontrei Fina pela primeira vez. Estava<br />
composta, tez maquiada e de batom, como<br />
se preparada para algum momento especial:<br />
uma viagem, um encontro, um aniversário,<br />
um casamento. Parecia resistir à submissão<br />
da morte. Havia poesia no ar, mais sugestão<br />
de vida do que expectativa de partida, tristeza,<br />
despedida. Aquela viagem sugeria realização,<br />
acabamento fino, brilho. Ali estava a<br />
inspiradora de pelo menos uma composição<br />
do Poeta da Vila: “Três Apitos”, uma pérola<br />
do nosso cancioneiro popular. Questioneime:<br />
Por que pesar, lágrimas, compressões<br />
emocionais?<br />
57
<strong>Chicos</strong><br />
Num volteio pelo centro da cidade,<br />
convenci-me de que ninguém ainda havia se<br />
apercebido da importância desse fato histórico,<br />
poético, quase idílico. Nossa atenção para<br />
as questões culturais precisa sair do limbo;<br />
a flor de que necessitamos para compor melhor<br />
o nosso jardim ainda não brotou. Por<br />
outro lado, purgamos o nosso ócio nas esquinas,<br />
praças e cafés, dando conta do comportamento<br />
alheio, mascando infortúnios,<br />
indignando-nos com a mesmice pública,<br />
num flagrante e bestial processo de transferência<br />
psicológica coletiva que só mesmo<br />
Freud explica. Fico imaginando quão longe<br />
está a cidade que almejamos construir. Recorro<br />
a Guimarães Rosa: “Mais que momentos,<br />
precisamos de eternidades”.<br />
Retornei à capela ainda antes do sepultamento.<br />
Risquei num papel alguns versos da<br />
canção de Noel (Sou do sereno, poeta muito<br />
soturno / vou virar guarda noturno e você<br />
sabe por que / Mas você não sabe que enquanto<br />
você faz pano / faço junto do piano<br />
esses versos pra você.) e pedi a Cairu que os<br />
depositasse no ataúde, ao lado do corpo da<br />
mãe. Dei-me por realizado. Fina que levasse<br />
consigo aqueles versos que, em verdade,<br />
eram seus.<br />
Uma chuva, traspassada pelos raios de<br />
sol daquele primeiro de novembro de dois<br />
mil e quatro, parecia jorrar minúsculos cristais<br />
sobre a tarde. Breve estio, grave caminhada<br />
entre sepulturas. Dois trabalhadores<br />
municipais, abstraídos, deitaram na campa o<br />
esquife da “Beatriz” de Noel, numa cena patética,<br />
mas cheia de dignidade aos nossos<br />
olhos. Chorando feito uma criança, Cairu,<br />
“O Menino da sua Mãe”, agradeceu a nossa<br />
presença e acolhida em Cataguases.<br />
-Imagine!<br />
<strong>58</strong>
Antônio Jaime<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Soares<br />
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.<br />
Participou de um dos movimentos culturais<br />
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC.<br />
Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,<br />
onde entre outras foi redator de publicidade.<br />
Retornou a Cataguases direto para a Vila.<br />
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra<br />
(crônicas - 2011)<br />
Presença espírita e lembrança de índios<br />
Como parte das comemorações pelos<br />
110 anos do Centro Espírita Paz, Luz<br />
e Amor foi lançado o livro Movimento<br />
Espírita de Cataguases, autoria conjunta<br />
de Alcides Gomes Oliveira e Marlene Rodrigues<br />
de Lima, com prefácio de Luciano<br />
Alencar, de Barbacena.<br />
Obra que resume a história do espiritismo,<br />
com maior destaque para sua<br />
atuação em Cataguases e arredores. Valiosa<br />
documentação, mesmo para quem<br />
não professa a crença espírita. Um exemplo:<br />
não há como não ficar indignado ao<br />
tomar conhecimento da intolerância à prática<br />
do espiritismo, nas primeiras décadas<br />
do século vinte, em nossa cidade. A polícia<br />
invadia as casas onde realizavam as<br />
reuniões, o que levou os espíritas a adotarem<br />
uma estratégia: alguém ficava do lado<br />
de fora e dava o sinal, caso os policiais<br />
se aproximassem. Então, a reunião era<br />
interrompida e os participantes punhamse<br />
a jogar baralho.<br />
Algumas pessoas se benziam ao<br />
cruzar com um espírita, até ensinavam as<br />
crianças a cuspir, ao passar pelo Centro.<br />
Bem mais tarde, em 1941, ainda havia<br />
perseguição, a ponto de o ditador Getúlio<br />
Vargas ter proibido o espiritismo no Rio<br />
de Janeiro, então capital federal. Depois,<br />
voltou atrás e permitiu as reuniões, desde<br />
que na presença de um agente da polícia.<br />
Entre outros contratempos, um grande<br />
desafio, em Cataguases, foi a criação do<br />
albergue noturno, por uma única razão: a<br />
ideia partiu dos espíritas, e isso era inconcebível.<br />
Por fim, houve entendimento, a<br />
Indústria Irmãos Peixoto doou o terreno,<br />
os ânimos arrefeceram e hoje o albergue<br />
continua a cumprir seu papel humanitário,<br />
mantido pela prefeitura.<br />
Entre muitas histórias, o livro lembra<br />
os desmandos dos primeiros desbravadores<br />
da região, que incluíam a perseguição<br />
implacável aos índios, e muitos deles,<br />
os que escaparam, refugiavam-se nas redondezas.<br />
Informação que me levou a entender,<br />
finalmente, o trecho do Hino Cataguasense,<br />
que diz: “Vai longe o tempo<br />
nefário...”. Tempo das febres, castigos<br />
para escravos e matança de índios. Não<br />
por acaso, há no livro um caso narrado<br />
59
<strong>Chicos</strong><br />
por Eva Vital Ruzze, de Guidoval, que co<br />
nheceu índios, por volta de 1950, ontem<br />
mesmo, do ponto de vista da História:<br />
“Havia índios puris que moravam na<br />
serra e, nos fins de semana, passavam<br />
em nossa casa, trazendo café, em lombos<br />
de burros, pra trocar por outros mantimentos.<br />
Andavam descalços, com roupas<br />
mal feitas, muito malvestidos, era de dar<br />
pena. Morenos de olhos claros e cabelos<br />
escuros e lisos, envergonhados, nem sequer<br />
olhavam pra nós. Se lhes oferecia<br />
algo, aceitavam, e ficavam longe, de tanta<br />
timidez. Suas terras só produziam café.<br />
Em frente à nossa casa tinha uma<br />
cruz. Conta-se que um índio morreu de<br />
febre preta e o padre não deixou que fosse<br />
enterrado no cemitério, foi então enterrado<br />
ali na beira da estrada. Também<br />
conheci Maria Mirna, índia puri. Meu pai<br />
dizia que tinha várias mangueiras e vendia<br />
mangas ainda verdes e ela mesma as<br />
colhia. Andava sempre a cavalo e diziase<br />
que morreu com 104 anos”.<br />
Sobre a timidez de que fala Eva,<br />
pode-se interpretar como um ato instintivo<br />
de defesa, levando em conta o massacre,<br />
quase extinção, da raça, pela ganância<br />
do homem branco. Quanto a mim, só<br />
conheci dois, tendo sido apresentado, no<br />
Rio, ao cacique Raoni. E no Mato Grosso<br />
do Sul, morei próximo à rodoviária de<br />
Campo Grande, onde vez ou outra tomava<br />
uma cerveja. Numa delas, um índio<br />
sentou perto. Pediu laranjada e um pedaço<br />
de bolo, comida de branco que, para<br />
ele, deveria ter um sabor todo especial.<br />
Perguntei se a tribo ficava perto. Sim. Se<br />
era possível visitá-la. Sim. Para onde estava<br />
indo? Brasília. Chegou seu ônibus,<br />
pagou a conta e me deu as costas.<br />
Achei divertido, lembrando que<br />
algumas crianças, na sua pureza de espírito,<br />
também agem dessa maneira.<br />
60
<strong>Chicos</strong><br />
De Bucéfalo ao Acéfalo<br />
Bucéfalo, o cavalo de Alexandre, suportava<br />
seu destemido dono nas frenéticas<br />
investidas de conquistador mundo afora.<br />
Não reclamava. Tinha curiosidade sobre os<br />
diferentes tipos de pasto que ia conhecendo<br />
ao longo das planícies e estepes helenizadas.<br />
As éguas persas eram interessantes. Já as<br />
hindus eram matreiras: ao perceberem o interesse<br />
do macho, aguardavam ele se posicionar<br />
para então darem coice. Mas Bucéfalo<br />
entendia, pois ele mesmo havia dado certo<br />
trabalho. Não queria ser montado ou domado<br />
de jeito maneira. Aquele cavalo das estepes<br />
dos Urais, presente de Filipe II da Macedônia<br />
ao filho, era presente de grego. Reza<br />
a lenda que tinha medo de sua própria sombra.<br />
Quem viu o filme do Oliver Stone sabe<br />
como Alexandre fez para o domar. Quem<br />
não viu pode ler no verbete da Wikipedia.<br />
Depois de morrer em batalha, Bucéfalo foi<br />
imortalizado por Alexandre na cidade de Bucéfala,<br />
no atual Paquistão.<br />
De tantas andanças, a montaria de Alexandre<br />
disseminou seu material genético de<br />
garanhão reprodutor. Sempre foi raça difícil<br />
de domar e adestrar, mas com um pendor<br />
por chefes de estado. Os generais que repartiram<br />
o império após a morte de Alexandre<br />
também se encarregaram de manter os quadrúpedes<br />
ativos nas diversas guerras intestinas<br />
e nas fronteiras de cada domínio. Herdeiros<br />
da estirpe imperial chegaram a colônias<br />
helênicas na Itália, e de lá para regiões<br />
do império agora romano, como a Hispânia.<br />
Genitor, cavalo de César na conquista da Gália,<br />
era descendente daquele que temia sua<br />
própria sombra. Incitatus, nomeado senador<br />
por Calígula, havia sido trazido da Hispânia.<br />
O impetuoso quadrúpede chegou a ser considerado<br />
para o cargo de cônsul pelo não menos<br />
impetuoso imperador.<br />
61
<strong>Chicos</strong><br />
A raça perdurou, apreciada por conquistadores,<br />
como Carlos Magno e Carlos V.<br />
Uma das vertentes foi levada à América por<br />
Cortez, e a prole se espalhou pelas pradarias.<br />
O general Custer os adorava, pois eram fortes<br />
e velozes. Os Cheyenne também, pelas<br />
mesmas razões. Quando as tribos lideradas<br />
por Crazy Horse trucidaram Custer e seu regimento<br />
em Little Bighorn, o único sobrevivente<br />
da cavalaria foi um equino chamado<br />
Comanche. O exército o aposentou com todas<br />
as honrarias. Nunca mais foi montado, e<br />
adorava beber cerveja. Seu funeral foi repleto<br />
de pompa e hoje Comanche está empalhado<br />
num museu.<br />
Destino menos feliz teve Hans, o cavalo<br />
esperto. Seu professor, o alemão Von Osten,<br />
dedicara-se a ensiná-lo a realizar operações<br />
aritméticas. Hans na verdade aprendera a ler<br />
a linguagem corporal do dono para saber<br />
quando tinha de parar de bater a pata ou inclinar<br />
a cabeça e assim dar a resposta esperada.<br />
Apesar do sucesso, o exército do império<br />
alemão, talvez por não prezar tanta esperteza<br />
num equino, acaba por alistar Hans para<br />
a I Guerra Mundial, e este morre em combate<br />
em 1916. Seu fim foi um pouco diferente<br />
do de Comanche, sua carne tendo sido consumida<br />
pela tropa faminta nas trincheiras.<br />
Hans talvez tenha sido o último descendente<br />
direto da linhagem de Bucéfalo, que chegou<br />
muito alterada a nossas paragens verdejantes.<br />
O alazão tupiniquim suspeita-se seja um<br />
cruzamento do cavalo imperial com a linhagem<br />
de Rocinante, o cavalo de Don Quixote,<br />
trazido por camponeses espanhóis para a Plata<br />
e depois cruzado com raças aculturadas<br />
pelos portugueses. Ainda assim, o pangaré<br />
traz o mesmo traço genético do seu nobre<br />
ancestral, de ter medo da própria sombra, e<br />
detestar ser montado, exceto por gente bélica.<br />
É muito apreciado pelos militares brasileiros,<br />
que apaziguam a fobia do quadrúpede<br />
instalando viseiras. Dado o terreno vastamente<br />
irregular do ambiente local, o cavalo<br />
exacerbou alguns dos traços do ancestral.<br />
Chucro, duro para galopar, não trota, relincha<br />
à bel prazer, dá coice à torto e a direito,<br />
morde, e adora empinar para derrubar seu<br />
cavaleiro. A fobia de sombra fez de sua<br />
mente um matagal de conspirações e paranoias.<br />
Parece até que viu a mula sem cabeça.<br />
Atesta-se que um expoente atual da raça,<br />
Roçonalbo, possui três rebentos que não<br />
fogem às características do progenitor. Juntos,<br />
se cooptados pelos quatro cavaleiros do<br />
apocalipse, não fariam feio: cumpririam a<br />
missão com louvor. Eles eram muitos cavalos,<br />
mas esta cavalgadura é nossa.<br />
62
Luiz Ruffato<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, mora em São Paulo<br />
SP. Entre tantas obras de sua autoria destacam-se:<br />
Eles eram muitos cavalos, de 2001,<br />
ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação<br />
Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio<br />
Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional.<br />
Esse livro o tornou um escritor reconhecido<br />
no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno<br />
Provisório, com a publicação do romance<br />
Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma,<br />
son tanto Felice em 2005, composto por cinco<br />
livros sobre o operariado brasileiro.<br />
Lendo os Clássicos<br />
Short cuts - Cenas da vida<br />
Raymond Carver (1938-1988) - Estados Unidos<br />
Tradução: : Rubens Figueiredo<br />
Rio de Janeiro: Rocco, 1994, 179 páginas<br />
63
<strong>Chicos</strong><br />
Este volume, que reúne 10 contos, escolhidos<br />
pelo cineasta Robert Altman, retrata excelentemente<br />
bem o universo típico do Autor e<br />
sua visão de mundo. As histórias contemplam,<br />
na maioria das vezes, famílias de classe média,<br />
preocupadas com questões bastante concretas,<br />
ligadas à sobrevivência mais comezinha. As<br />
narrativas flagram momentos singulares de<br />
suas vidas cinzentas, ou seja, situações em<br />
que a precária estabilidade - financeira, emocional<br />
- parece desmoronar. O curioso é que,<br />
para o Autor, esses instantes - que James<br />
Joyce (1882-1941) chamava de epifanias, termo<br />
tomado do vocabulário religioso - não são<br />
iluminações que transformam o sujeito, como<br />
compreendido pelo Autor irlandês, mas, ao<br />
contrário, apenas evidenciam a terrível armadilha<br />
ontológica na qual o ser humano está preso.<br />
Ou, como afirma Claire, protagonista de<br />
"Tanta água tão perto de casa": "(...) certas<br />
coisas à nossa volta vão modificar-se, ficar<br />
mais fáceis ou mais difíceis (...), mas nada vai<br />
ser realmente diferente, nunca mais. (...) Tomamos<br />
nossas decisões, pusemos nossas vidas<br />
em movimento, e elas vão seguir e seguir adiante<br />
até parar. (...) até que um dia acontece<br />
uma coisa que deveria modificar alguma coisa,<br />
mas aí a gente vê que no final nada vai mudar"<br />
(p. 88). Essa verdade, talvez, seja ainda<br />
mais terrível, porque, vista desta maneira - e<br />
todos os contos projetam esse ponto de vista -<br />
é como se estivéssemos vivendo uma vida<br />
inautêntica, como se fôssemos meros atores<br />
representando papéis previamente escritos<br />
por outro - Deus? O Destino? Assim, o que<br />
resta de felicidade é a idealização de um passado,<br />
como no conto "Jerry, Molly e Sam":<br />
"Al gostaria de poder ir em frente, dirigindo o<br />
carro sem parar, a noite inteira, até que fosse<br />
sair nos paralelepípedos da velha rua principal<br />
de Toppenish, virar à esquerda no primeiro<br />
sinal, depois virar à esquerda de novo, parar<br />
quando chegasse ao lugar onde sua mãe vivia,<br />
e nunca, nunca mais, por nenhuma razão no<br />
mundo, sair de lá outra vez" (p. 144). As soluções<br />
dadas para essas vidas apagadas podem<br />
parecer, numa primeira visada, positivas, pois<br />
à exceção de um conto - "Diga às mulheres<br />
que a gente já vai" - ocorre, após a crise, uma<br />
rearrumação das coisas, portanto, não há rupturas.<br />
Mas trata-se de uma falsa premissa - é<br />
como numa tempestade: depois que passa,<br />
constatamos que a paisagem permanece a<br />
mesma, mas no fundo sabemos que não é verdade.<br />
Houve mudanças substantivas na essência,<br />
embora a aparência continue a mesma. E,<br />
neste caso, nem mesmo a morte é solução, já<br />
que, como afirma Howard Sears, de<br />
"Limonada": "(...) morrer é para os puros<br />
(...)" (p. 177).<br />
Avaliação: OBRA-PRIMA<br />
64
<strong>Chicos</strong><br />
Clara Arreguy<br />
Nasceu em Belo Horizonte MG, mora em Brasília<br />
DF. Escritora e jornalista Entre outros publicou:<br />
Segunda divisão (2005), Fafich (2005)<br />
Tempo Seco (2009) Rádio Beatles (2012) Dia de<br />
sol em tempo de chuva (2015).<br />
Mecanismos do mal descortinados<br />
Depois da obra-prima que foi "O indizível<br />
sentido do amor", o novo trabalho de Rosângela<br />
Vieira Rocha vinha revestido de responsabilidade.<br />
E "Nenhum espelho reflete seu rosto"<br />
(Editora Arribaçã) deu conta do recado à<br />
altura da autora e de seus antecessores. Romance<br />
calcado num tipo de personagem doentio,<br />
requereu da escritora pesquisa, mergulho profundo<br />
no tema, ao mesmo tempo espinhoso e<br />
necessário.<br />
O grande barato da melhor literatura contemporânea,<br />
de Rosângela Vieira Rocha, inclusive, é<br />
justamente a mescla de memória, pesquisa e ficção.<br />
A autora já havia feito isso brilhantemente<br />
em "O indizível". Agora, com "Nenhum espelho",<br />
isso se reforça no distanciamento entre<br />
protagonista e autora. A joalheira Helen, ou melhor,<br />
designer de joias, pode não ter nada a ver<br />
com a escritora, jornalista, professora e advogada,<br />
mas é inevitável comparar, por exemplo, o<br />
lançamento da coleção de peças que a protagonista<br />
prepara ao longo da narrativa ao do livro<br />
"O indizível sentido do amor", obra mais preciosa,<br />
no meu entender, da coleção de joias da escritora.<br />
Quanto à urgência do tema, é impressionante<br />
como Rosângela consegue, ao contar a história<br />
de Helen e sua relação tóxica com o "príncipe<br />
encantado" que encontrou na internet, falar de<br />
uma realidade vivida por milhares de mulheres<br />
(e inclusive homens) que até então não se davam<br />
conta do grau doentio dessas relações. Não<br />
está nas redes sociais o problema, mas na teia<br />
tão bem urdida por personalidades identificadas,<br />
freudianamente, pelo narcisismo perverso. Sua<br />
capacidade de envolvimento, sedução, dominação.<br />
Sua inteligência brilhante casada à ausência<br />
de empatia. Sua incapacidade de perceber o outro<br />
senão como objeto a ser usado, controlado e<br />
descartado de acordo com seus interesses.<br />
A narrativa de Rosângela desvenda os mecanismos<br />
por meio dos quais isso se dá. A partir da<br />
experiência relatada por Helen ao médico de<br />
uma paciente que se saiu pior que ela, os fatos,<br />
casos, diálogos, "detalhes tão pequenos", mas<br />
tão significativos, descortinam o que, à vítima,<br />
muitas vezes parece um delírio persecutório,<br />
uma paranoia injustificada. Não é. Esse tipo de<br />
figura circula por aí, no dia a dia de qualquer<br />
pessoa, e é preciso estar alerta para entender<br />
que é possível não se deixar cativo da própria<br />
carência.<br />
"Nenhum espelho reflete seu rosto" contribui<br />
para jogar luz sobre tema tão delicado, e Rosângela<br />
Vieira Rocha o faz com a maestria de sua<br />
escrita direta, seca, sem arroubos de adjetivação.<br />
A aula de joalheria serve de contraponto ao universo<br />
do mal visitado pela protagonista e alivia<br />
o leitor do mal-estar. Há saída.<br />
65
<strong>Chicos</strong><br />
Emerson Teixeira<br />
Cardoso<br />
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles<br />
(2001) poesia, coautor de A casa da Rua Alferes<br />
e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno<br />
do nativo de Thomas Herdy. Sempre ativo<br />
em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete<br />
(1967), mimeografado, editor/fundador do Delirium<br />
Tremens (1983) e Trem Azul (1997).<br />
Gaiola de vidro, de Gleison Dornellas<br />
[...] só no coração sempre<br />
ferido do poeta é que não<br />
vão depressa os que se vão...<br />
Para começar peço que reparem na<br />
epígrafe; foi o autor que a escolheu para<br />
abrir o seu livro. O autor do livro é Gleison<br />
Dornelas, da epígrafe não me lembra quem<br />
é o autor. É o Carpe Diem horaciano, preceito<br />
sempre presente na obra deste artista<br />
que fez sua estreia na literatura com o volume,<br />
Um minuto na eternidade. Gleison acaba<br />
de diplomar-se em letras, mas é professor<br />
de história da Secretaria de Estado da Educação,<br />
o que constitui apenas um detalhe,<br />
vou falar só do homem de letras.<br />
No seu discurso poético, o autor de Gaiola<br />
de vidro deixa transparecer o predomínio<br />
das questões da vida e da morte sem nunca<br />
perder as marcas que a meu ver lhe são próprias:<br />
a da poesia amorosa que tantas vezes<br />
visitou. O posicionamento do poeta é antes<br />
de tudo o do sonhador.<br />
“Eu tenho um sonho que excede o tempo<br />
Não jogaremos fora a aurora, nem tomaremos<br />
ventos comprimidos. Vamos ser o que<br />
sempre fomos, eternos sonhadores”.<br />
E aqui e ali, brotam sempre estas questões<br />
que são, afinal, as indagações de todo<br />
ser diante da vida e de seus mistérios e entre<br />
os mistérios, o maior deles: a morte. Para o<br />
poeta, “estranha luz, hieróglifo irregular que<br />
paira no céu”.<br />
Eu disse poesia amorosa como poderia dizer,<br />
ideal romântico. As duas afirmações são<br />
equivalentes. Mas sem esquecer de dizer que<br />
nos versos deste Gaiola de vidro mais que<br />
no primeiro livro seus versos vêm carregados<br />
de um lirismo, meio que - só para empregar<br />
expressão em voga - clássico nos moldes de<br />
um Camões, como neste “Idolatria à Musa”<br />
do qual destaco estes versos: “É outono, ó<br />
musa bela! / E os teus pomos de Cinderela /<br />
Intensificam esta estação. ”<br />
Ou estes: “No inverno a neve buscastes / E<br />
como se não a encontrastes / Mentira com<br />
grande persuasão”.<br />
66
<strong>Chicos</strong><br />
Também em “Ontem, hoje, amanhã e sempre”:<br />
“Ontem, hoje, amanhã e sempre / Verei<br />
com o olhar jamais obtuso / Um louco<br />
amando um pensador confuso”.<br />
Ou noutro belo soneto; “Renúncia à Ninfa”:<br />
“O ímpeto ardente que em mim velas / Tanto<br />
quanto vos sois bonita / em trêmulo estampo<br />
na face. / A indubitável perene e certa<br />
denúncia / Sereis a gênese de nosso enlace /<br />
Não fosse minha breve renúncia”.<br />
Uma leitura apressada desse volume sintomaticamente<br />
intitulado Gaiola de vidro poderia<br />
levar a uma impressão errada, precipitada<br />
de que seu autor faz uso de linguagem<br />
derramada e nos levaria a crer que se trata<br />
de estilo de exagerado descabelamento lírico,<br />
enfim de uma excessiva retórica romântica,<br />
o que definitivamente não acontece. É o<br />
tipo de trabalho que exige de nós leitores<br />
uma observação mais cuidada, uma atenção<br />
mais demorada.<br />
No poema que abre o livro: Gaiola de vidro,<br />
pela boca do peixe, o poeta aborda a<br />
questão da liberdade humana – confinado<br />
em seu aquário (a gaiola de vidro) que o limita,<br />
o eu lírico conclui filosoficamente que<br />
a nossa vontade é ilusão. Mais do que nunca<br />
o poeta em Gleison Dornellas se afirma do<br />
que no poema o morceguinho que voa de<br />
mansinho, bicho mais feinho pretinho como<br />
carvão; ave mamífera que voa e ama (é claro)<br />
e que “dorme não na cama”. Novamente<br />
para usar uma palavra da moda: Show!<br />
Nem faltará neste singelo volume o olhar<br />
do autor para sua Princesinha da Mata, noutro<br />
belo e expressivo soneto “O Soneto à<br />
Cataguases”, sua ternura é expressa pela terrinha<br />
que evoca como na sextina: “Uma fábrica<br />
velha, fábricas belas / poesias que desaguam<br />
tudo / próxima à ponte nova do verso<br />
/ Tudo isso, céus, é Cataguases / De Santa<br />
Rita, à Santa Maria, ó noite! / Como explicam<br />
numa só vida. ”<br />
Não seria despropositado afirmar que Gleison<br />
seja por precipitação, seja por indiferença<br />
a essas convenções – quem já publicou<br />
sabe o que é sentir a dor do parto – desincumbiu-se<br />
de um prefaciador à guisa de explicação<br />
para o seu voo no Pégaso – talvez<br />
reclamando para si, o criador, a responsabilidade<br />
que enfim, em princípio é dele.<br />
A única restrição que faria a este curioso<br />
livro que nos dá Gleison Dornellas é quanto<br />
à quantidade de poemas contidos nele que<br />
pela profusão poderiam estar numa outra<br />
edição e ocasião e com outro título.<br />
Mas isso é lá com ele, que acredito sabe<br />
bem o que está fazendo. Eu por minha vez<br />
sou-lhe imensamente grato por nos prover<br />
de novo com o sabor peculiar de sua forte e<br />
essencial arte poética.<br />
O poeta cataguasense Francisco Marcelo<br />
Cabral ao autografar lhe um livro seu disse:<br />
“Espero que você vá mais longe na arte que<br />
me apresso”.<br />
A mim só compete dizer que com este<br />
livro confirma-se a intenção do autor de dar<br />
continuidade a seu projeto literário que começou<br />
em 2016 com Um minuto na eternidade,<br />
e que segundo ele, eu mesmo confirmo,<br />
mostra sua evolução.<br />
Para o alto, poeta, que o tempo passa<br />
quer o queiramos, quer não.<br />
67
<strong>Chicos</strong><br />
Ronaldo Cagiano<br />
Nasceu em Cataguases, autor, dentre outros,<br />
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília<br />
de Produção Literária 2001), O sol nas feridas<br />
(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom<br />
2012) e Eles não moram mais aqui<br />
(Contos, Prêmio Jabuti 2016), mora atualmente<br />
em Portugal.<br />
Uma escritura demiúrgica<br />
Desde seu primeiro romance “Mentiras” (Ed.<br />
Nós, SP, 2016), lançado aos vinte e seis anos,<br />
Felipe Franco Munhoz, paranaense radicado em<br />
São Paulo, chamou a atenção por apresentar<br />
uma narrativa em que originalidade e ousadia<br />
pontuaram seu début literário. Com a segurança,<br />
maturidade e domínio raros num estreante,<br />
o autor realizou um sofisticado diálogo com a<br />
obra de Philip Roth, na expressão de um personagem<br />
que flertava com as histórias do escritor<br />
americano em interlocução primorosa em que a<br />
experiência do duplo em literatura foi levada,<br />
com habilidade, ao extremo<br />
Essa via intertextual e metalinguística encontra<br />
novas ressonâncias e atualização em seu<br />
segundo livro, “Identidades” (Ed. Nós, SP,<br />
2018), obra recepcionada com entusiasmo pela<br />
crítica. Se naquela primeira tentativa de exploração<br />
de universos temáticos e semânticos de um<br />
autor que é sua referência e inspiração, Munhoz<br />
conseguiu projetar sua própria voz e autenticidade,<br />
sem derrapar para o pastiche ou no paralelismo,<br />
construindo uma esmerada dicção, em<br />
“Identidades” esse processo se aperfeiçoa e<br />
agudiza, realçando a peculiaridade e sofisticação<br />
de um estilo narrativo que não encontra<br />
similar na literatura contemporânea brasileira.<br />
Nessa nova incursão ficcional sua prosa<br />
incorpora a inegável herança de suas leituras,<br />
influências e gurus literários , pois que bebe em<br />
muitas fontes e percorre outros territórios linguísticos.<br />
Felipe recorre a muitas vertentes literárias<br />
e processos de construção, sofisticadas<br />
associações e alusões, da palavra à imagem, do<br />
verso lírico aos domínios do drama teatral, da<br />
inflexão filosófica e do acento crítico às experimentações,<br />
da pauta musical às rupturas formais.<br />
Um sólido pout pourri ficcional de confecção<br />
híbrida, explorando com desenvoltura todas<br />
as possibilidades de comunicação e metamorfoses<br />
da palavra, fugindo à costumeira e tradicional<br />
estilística. A luz dessa linguagem deriva-se<br />
de uma percepção clara das suas tênues fronteiras,<br />
espectro da sociedade multissensorial, num<br />
mundo em permanente disfunção, com suas dicotomias<br />
e ausência de linearidade, tão bem<br />
representados nessa assinatura artística.<br />
68
<strong>Chicos</strong><br />
O leitor depara-se com uma escrita versátil e<br />
vertiginosa, nada ortodoxa, em que os diversos<br />
gêneros se alternam nos planos do romance,<br />
criando uma obra de inusitada arquitetura e<br />
plasticidade verbal e visual dadas as inserções<br />
gráficas, partituras musicais, grafismos e evocações<br />
imagéticas e outras sutilezas estilísticas<br />
de sua oficina.<br />
Se não é fácil definir a matriz dominante<br />
nesse trabalho com essa pluralidade de enfoques,<br />
por conta da ampliação do espectro estrutural<br />
do romance (aqui pontuado em clave<br />
poética na sua configuração espacial), no fundo<br />
há um chacoalhar ou uma desconstrução do<br />
próprio gênero - vai da prosa à música; da pintura<br />
ao teatro - também não é difícil perceber<br />
que tais elementos nascem de uma íntima relação<br />
do autor com o universo dos signos. Evidentes<br />
a sua articulação e manejo de uma sintaxe<br />
variada e sua familiaridade com a cultura<br />
clássica, principalmente com as mitologias greco-romanas,<br />
pois autor e obra parecem viver<br />
em plena conexão epifânica, numa linguagem<br />
que culmina no êxtase da palavra, esta se cosangrando<br />
como personagem intrínseca.<br />
“Identidades” lê-se como uma sequência<br />
de palimpsestos, percebe-se que o autor vai<br />
retirando de suas camadas criativas a pátina do<br />
tempo e isso traduz-se num mosaico de sensações<br />
e experimentações ao longo do texto, como<br />
numa procura obsessiva por essa(s) identidades(s)<br />
submersas, escondidas nos múltiplos<br />
eus dos protagonistas, Camila/Margarida, ou<br />
próprio Mefistófeles nelas redivivo. Essa linha<br />
de argumentação de que se utiliza o autor para<br />
fazer a transcriação desses mitos é fruto de um<br />
estreito convívio com uma miríade de personagens<br />
e nelas é que se inquire no palco de seu<br />
íntimo teatro de representações: “Suposto Mefistófeles<br />
pergunta-se Quem eu sou? Quem eu<br />
sou? Quem eu sou? O carro sai. Apagam-se as<br />
luzes – mas desta vez o palco não desaparece<br />
na escuridão porque fulgura o globo luminoso.<br />
Com a função de sugerir que a cena (a memória)<br />
desenrola-se fora de São Paulo. Na metade<br />
do poema Passados 3. Paris, Camila deixará<br />
seu esconderijo para juntar-se magoada?, enciumada?,<br />
a Suposto Mefistófeles; observando<br />
o jovem casal.”<br />
A passagem estética (ou também ética)<br />
por essas vivências de um passado cultural e<br />
ancestral da História da literatura e da humanidade<br />
vai construindo um caleidoscópio de registros<br />
e referencialidades, sobretudo funcionando<br />
como metáfora da vida e da sociedade<br />
contemporâneas, quando as crises identitárias<br />
estão na ordem do dia.<br />
Em “Identidades” o mito de Fausto e Mefistófeles<br />
ganha dimensão numa releitura atulizada<br />
diante dessas questões emergentes de gênero e<br />
num protagonismo associado aos nossos dilemas,<br />
instabilidades e distopias tão acentuados<br />
e prenhes na vida social, política, econômica e<br />
afetiva, seja nas instâncias pessoais, seja no<br />
paradoxal universo coletivo.<br />
Em cada página temos simbolizado um<br />
mundo abrupto, com suas assimetrias e descontinuidades,<br />
com seus fenômenos de dissonância<br />
e caos; e isso é preferencialmente uma<br />
tática da própria linguagem de Munhoz, ao<br />
ricochetear o desconforto da civilização e os<br />
atalhos da modernidade. Isso pode ser aferido<br />
no embalo de sua escrita, nos movimentos e<br />
sinuosidades que o texto sugere, levando o leitor<br />
a uma espécie de transe, tanto que de uma<br />
linha para outra pode mudar de idioma, de<br />
voz, de ritmo, de encadeamento frasal (por<br />
exemplo versos escritos ao contrário, notas de<br />
rodapé que se insinuam como o próprio capítulo),<br />
numa alternância de palcos, notas, cenas,<br />
cenários, fotografias e miragens.<br />
Os totens culturais, intelectuais e literários<br />
do autor vão emergindo numa intensa<br />
simbiose artística: Borges, Goethe, Antonioni,<br />
Van Gogh, Boticelli, Dostoiévski, Blake, Miles<br />
Davis, Hermeto Pascoal, Pollock, Faulkner,<br />
Milton Nascimento etc). Autoprojeções que se<br />
escalonam para reverberar a inquietação que<br />
marca a essência do livro, construído como se<br />
fosse um puzzle temático, dado o caráter multifacético,<br />
polifônico e polissêmico que projeta,<br />
transitando entre São Paulo, Macau, Berlim,<br />
Paris e outros recortes geográficos e psicológi-<br />
69
<strong>Chicos</strong><br />
cos, reais ou imaginários, oferecendo ao leitor<br />
o verdadeiro prazer de uma obra impactante.<br />
“Identidades” converte-se numa escritura<br />
visceral que vem, em boa hora, profanar o lugar<br />
bem comportado da literatura brasileira,<br />
sempre povoada pelo mais do mesmo, arejando<br />
esse cenário editorial e literário tão contaminado<br />
pelos fetiches do deus mercado, permeado<br />
de indulgências e camuflagens. O radicalismo<br />
formal e a riqueza de seu conteúdo<br />
deflagram um mergulho escrutinador nos dilemas<br />
existenciais, vem decodificar nossas perplexidades<br />
por meio de uma linguagem acentuadamente<br />
desmanteladora, mas profética em<br />
sua carga crítica que desafia e provoca nossas<br />
zonas de conforto, para expor a instabilidade<br />
geradora da arte, alcançando uma estatura demiúrgica<br />
com o sopro de seu tenso e denso<br />
repertório criativo.<br />
Trecho:<br />
AutoAuschwitz<br />
Outrora uma perna, a direita; um trem, outrora<br />
veloz – e foi tão repentino, o trem Cargueiro:<br />
meus passos arrastam caixões de ratos, chumbo.<br />
A perna direita, uma âncora, concreto:<br />
farpados arames em árvore neural<br />
(os ramos internos são galhos putrefatos,<br />
são fartos de ganchos com frutos venenosos),<br />
sem folhas, acácia de outono, a qual transcrevo<br />
no ritmo das sílabas tônicas: agulhas,<br />
faca!das em ca!da cruel! exclamação!<br />
A perna direita, um poleiro de aves mortas:<br />
o gato de Poe, confinado, que respira<br />
agônicos últimos sorvos rarefeitos –<br />
o bicho aproveita ridículos suspiros.<br />
Por dentro, penumbra, constante funeral;<br />
por dentro, esta perna pendura estearina<br />
(os nervos da perna são velas derretidas) –<br />
ao fim, condenada, cavando a própria vala,<br />
incônscia: o meu corpo, o meu campo de<br />
extermínio.<br />
70
José Antonio<br />
Pereira<br />
<strong>Chicos</strong><br />
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A<br />
casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e<br />
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).<br />
Em agosto de 2007<br />
Revirando alguns papéis na gaveta,<br />
achei o esboço do texto que foi a ancoragem<br />
de ideias e conversas quando a <strong>Chicos</strong> era<br />
um punhado de folhas soltas que circulavam<br />
entre nós e amigos. Desengavetei e trago a<br />
vocês, em estado bruto. Desculpem as incorreções<br />
e imperfeiçoes. Acrescento apenas o<br />
poema de Sadako que fez parte dos poemas<br />
daquelas folhas.<br />
Sinto que o agosto de 2019 foi muito mais<br />
desalentador do que o de 2007.<br />
Apesar de inútil, a poesia<br />
é nossa arma de combate<br />
Neste agosto, em que se faz vinte anos<br />
da morte de Carlos Drummond, decidimos<br />
fazer na <strong>Chicos</strong> uma homenagem à poesia.<br />
Pedimos a licença e a benção ao maior poeta<br />
de Cataguases: Francisco Marcelo Cabral.<br />
Mas agosto é também o mês onde ocorreu o<br />
uso da mais pura e genuína burrice humana:<br />
A bomba de Hiroshima. Por isso vos oferecemos<br />
a poesia de Sadako. Mestre João Cabral<br />
nos disse em seu poema Anti-char:<br />
“Poesia intransitiva, /sem mira e pontaria: /<br />
sua luta com a língua acaba / dizendo que a<br />
língua diz nada. / É uma luta fantasma, / vazia,<br />
contra nada; / não diz a coisa, diz vazio;<br />
/ nem diz coisas, é balbucio. ” Mesmo<br />
sem mira, disparamos a poesia contra a estupidez<br />
atômica. Sabemos ser apenas o<br />
“balbuciar” das palavras, fruto da sensibilidade<br />
e emoção de nossos poetas. Por isso a<br />
poesia de Sadako.<br />
Durante o primeiro semestre deste ano,<br />
Emerson Teixeira Cardoso, Ronaldo Cagiano<br />
quando em Cataguases estava, Vanderlei<br />
Teixeira Cardoso, Altamir Soares, Vicente<br />
Costa, eu e outros amigos passamos trocando<br />
ideias entre cafés e cervejas nas esquinas<br />
da cidade. Tudo começou com a estúpida<br />
morte, lá no Rio, do menino João. Que João?<br />
Aquele que arrastaram pelas ruas do<br />
Rio de Janeiro como um boneco de Judas.<br />
Caminhou pela poesia do Paul Celan, nos<br />
chocamos com um kamikaze coreano em<br />
mais uma matança escolar norte-americana,<br />
até chegarmos a poesia de Kurihara Sadako.<br />
71
<strong>Chicos</strong><br />
O poeta romeno Paul Celan (1920-1970),<br />
judeu de expressão alemã e sobrevivente do<br />
Holocausto, ao falar do motivo de sua escrita:<br />
“No meio de tantas perdas, uma coisa<br />
permaneceu acessível, próxima e salva – a<br />
língua. Sim, apesar de tudo, ela, a língua,<br />
permaneceu a salvo. (...) nesses anos e nos<br />
seguintes tentei escrever poemas nesta língua:<br />
para falar, para me orientar, para saber<br />
onde me encontrava e aonde isso me iria levar,<br />
para fazer o meu projeto de realidade. ”<br />
Celan é um dos poetas mais importantes do<br />
pós-guerra alemão.<br />
“A rosa de Hiroshima” de Vinícius de Moraes<br />
é, para nós, das poucas se não única expressão<br />
poética feita sobre a bomba atômica.<br />
Fala-se muito no Brasil da literatura de Auschwitz.<br />
Mas e a produção japonesa pós<br />
Hiroshima?<br />
Kurihara Sadako (1913-2005), poetisa<br />
hibakusha (vítima da bomba atômica) nascida<br />
em Hiroshima e sobrevivente da bomba,<br />
produziu sua poesia a partir da traumática<br />
morte instantânea de milhares de seres humanos<br />
e sobreviventes com sequelas hereditárias<br />
provocadas pela exposição à radioatividade.<br />
Nas palavras de Kurihara Sadako, em<br />
artigo de 1985, “A poesia e a prosa da bomba<br />
atômica começaram a ser escritas por<br />
anônimos que experimentaram, em primeiro<br />
lugar, a impossibilidade da fala, e só podiam<br />
permanecer emudecidos em meio àquela<br />
morte em massa; foram escritas porque eles,<br />
seres humanos, não poderiam não falar disso”<br />
No Japão, Kurihara Sadako surge como uma<br />
das vozes poéticas mais expressivas da literatura<br />
pós-bomba. Dedicou sua vida à memória<br />
do dia 6 de agosto. Sua poesia não é somente<br />
literatura da bomba atômica, é também<br />
poesia do pacifismo. Sadako foi não<br />
somente escritora como também incentivadora<br />
da literatura de Hiroshima, o que o fazia<br />
por meio de edições de antologias poéticas<br />
relativas ao tema, como por exemplo O<br />
Rio da Corrente em Chamas no Japão<br />
(1960).<br />
Além de poetisa, Sadako foi ensaísta, ativista<br />
e líder do movimento antinuclear. Tinha fortes<br />
convicções políticas, o que a levou a protestar<br />
contra ações do governo japonês durante<br />
a Segunda Guerra, contra o tratado de<br />
segurança entre Japão e Estados Unidos<br />
(1960), além de fazer parte de um grupo de<br />
mulheres que se manifestavam publicamente<br />
contra os testes nucleares em todo o mundo.<br />
– Ela escreveu cerca de 400 poemas e 100<br />
ensaios sobre a experiência de Hiroshima<br />
Seu livro de poemas de maior repercussão,<br />
Ovos Negros (em japonês, Kuroi tamago, de<br />
1946), lançado imediatamente após a bomba<br />
de Hiroshima, teve poemas censurados, pelo<br />
órgão censor da Ocupação Americana no Japão.<br />
O poema “Respeito pela humanidade” clarifica<br />
a imagem dos “ovos negros” do título,<br />
quando a poetisa protesta contra a política<br />
demográfica estipulada em 1941 pelo Ministério<br />
do Bem-Estar Social para o período da<br />
guerra, que proibia o aborto e a contracepção:<br />
No pós-guerra, com a escassez de moradias<br />
e de alimentos, o ministério suspendeu a<br />
proibição do aborto. Esse controle populacional,<br />
baseado nas ideias nazistas de eugenia, é<br />
alvo de ataque no poema. A sistematização<br />
da vida e da morte – os que são enviados<br />
para a morte nos campos de batalha, e os<br />
que são convocados a procriar – é denunciada<br />
como desrespeito à humanidade.<br />
As mulheres são convocadas a não terem filhos<br />
até que se extinga o militarismo, pois a<br />
maternidade não deve estar vinculada à política,<br />
pois, afinal de contas, ter filhos não deve<br />
ser comparável às galinhas que precisam<br />
botar mais ovos.<br />
A metáfora “ovos negros” se assemelha à<br />
imagem de “leite negro” do poema “Fuga da<br />
morte” de Paul Celan: “Leite negro da<br />
madrugada / bebemo-lo ao entardecer / be-<br />
72
<strong>Chicos</strong><br />
bebemos ao meio-dia e / pela manhã bebemo-lo<br />
de / noite / bebemos e bebemos /(...) a<br />
morte é um mestre / que veio da Alemanha/<br />
azuis são os seus olhos /(...) os teus cabelos<br />
de oiro Margarete...”<br />
A própria postura de Sadako sinaliza seu<br />
amor à vida. Diversos escritores sobreviventes<br />
da bomba atômica e do Holocausto europeu<br />
se suicidaram, entre eles Celan, aos 50<br />
anos de idade. Até pouco antes de sua morte<br />
natural, aos 92 anos, Sadako se empenhava<br />
em agir a favor da paz, da conscientização<br />
antinuclear, do não esquecimento de Hiroshima,<br />
pois, conforme afirma, “Hiroshima não<br />
é, de modo algum, algo que ocorreu no passado.<br />
(...) Hiroshima é um lugar no futuro<br />
onde podemos ver até onde pode nos levar o<br />
militarismo, a corrida armamentista, sua destinação;<br />
é o maior ponto cego da espécie humana,<br />
que serve como referência para o<br />
mundo”. Vocês verão, muitos outros poetas<br />
tratando com indignação da violência humana.<br />
Pensem nesta poesia como nestes versos<br />
do Drummond: “É feia. Mas é uma flor.<br />
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. ”<br />
Eu vi Hiroshima<br />
Nada se vê em Hiroshima.<br />
Hiroshima: cidade de prédios e carros.<br />
Casais de blue jeans cochilam<br />
em bancos situados nos parques<br />
uma criancinha corre atrás dos pombos sobre a relva.<br />
O cogumelo atômico,<br />
o cenotáfio -<br />
São apenas gotas para instantâneos.<br />
Não, isto é o que eu vi.<br />
Pessoas sentadas em grupos como ascetas<br />
sobre o meio-fio defronte ao cenotáfio.<br />
Movendo-se lenta<br />
e silenciosamente,<br />
ligados em testes nucleares subterrâneos<br />
no deserto de longínquos países<br />
e no silencioso ruído das cinzas mortíferas<br />
que explodem no ar,<br />
gente que já viram o inferno atômico.<br />
73
<strong>Chicos</strong><br />
Pessoas sentadas no meio-fio<br />
que conversam com mortos,<br />
reúnem-se aos mortos<br />
para clamar pela paz.<br />
Isto foi o que vi.<br />
Gente em Hiroshima<br />
sentados nos meios-fios<br />
clamando pela paz.<br />
Tradução: Emerson Teixeira Cardoso<br />
Altamir Soares<br />
74
<strong>Chicos</strong><br />
Clips<br />
cronicabrasileira.org.br<br />
Graças ao Instituto Moreira Salles em associação<br />
com a Casa de Rui Barbosa, criou-se um site da<br />
crônica brasileira. Um formidável acervo à disposição<br />
do grande público. Estão lá as crônicas de Rubem<br />
Braga, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector,<br />
e tantos outros grandes nomes publicadas<br />
pelos jornais.<br />
Rubem Braga 1913 — 1990<br />
Nenhum espelho reflete seu rosto<br />
Rosângela Vieira Rocha<br />
Editora Arribaçã<br />
ano de edição: 2019<br />
www.arribacaeditora.com.br<br />
Clarice Lispector 1920 — 1977<br />
Helen é dona de uma joalheria. Um psiquiatra de<br />
uma cidade distante, que atende uma mulher internada<br />
em estado grave, vê na joalheira sua última<br />
possibilidade de ajuda à paciente. Convida-a<br />
para dividir, com ele, sua história vivida com<br />
Ivan, na expectativa de que, através dos detalhes,<br />
possa acessar sua paciente e retirá-la de seu torpor.<br />
75
<strong>Chicos</strong><br />
momento vivo – 71 poemas favoritos &<br />
21 novos<br />
Ronaldo Werneck<br />
Editora Tipografia Musical<br />
ano de edição: 2019<br />
Ronaldo Werneck é poeta de décadas e livros. Suas<br />
obras amalgamam cidades, rios, amores, mares,<br />
sóis e poetas com a tipografia da letra, o branco da<br />
página, o estilhaçamento do verso. Tudo levado à<br />
plasticidade máxima do encontro do eu-lírico com<br />
o signo-significante-significado. Neste momento<br />
vivo é com este encontro que nos (re)<br />
encontramos. De selva selvaggia (1976), seu primeiro<br />
livro de poesia, a o mar de outrora & poemas<br />
de agora, de 2014, Werneck, num processo<br />
cabralino de catar seus feijões, revisita aqui toda<br />
sua obra poética, com um plus de 21 novos poemas.<br />
Brasileiro vence o mais importante prêmio<br />
literário da Lusofonia<br />
Itamar Vieira Junior, baiano<br />
de Salvador, é o vencedor<br />
do Prémio Leya 2018<br />
com o romance inédito Torto<br />
Arado. O juri composto por<br />
Manuel Alegre (presidente),<br />
Isabel Lucas, José Carlos Seabra e Nuno Júdice<br />
(Portugal), Ana Paula Tavares (Angola), Lourenço<br />
do Rosário (Moçambique) e Paulo Werneck<br />
(Brasil), premiou pela segunda vez, depois de<br />
dez anos, um autor brasileiro. O mesmo prêmio<br />
havia sido concedido em 2008 ao mineiro Murilo<br />
Carvalho, pelo romance "O rastro do jaguar".<br />
O prêmio de 100 mil euros foi atribuído, por<br />
unanimidade, à obra "pela solidez da construção,<br />
o equilíbrio da narrativa e a forma como<br />
aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase<br />
nas figuras femininas, na sua liberdade e na<br />
violência exercida sobre o corpo num contexto<br />
dominado pela sociedade patriarcal”. O vencedor<br />
concorreu com outros 347 candidatos, tendo<br />
sido escolhido entre os 7 finalistas.<br />
Itamar é autor de dois livros de contos:<br />
"Dias” (vencedor do XI Projeto de Arte e Cultura)<br />
e “A oração do carrasco” (que conquistou o<br />
Prêmio Humberto de Campos da UBE/RJ em<br />
2016, obteve o 2º lugar no Prêmio Bunkyo de<br />
Literatura 2018, sendo ainda finalista do Prêmio<br />
Jabuti 2018).<br />
76