Chicos 59 - 22.12.2019
Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com
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Nº 59
22 de dezembro de 2019
e-zine de literatura e ideias de
Cataguases – MG
Um dedo de prosa
Esta é a nossa edição 59
Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.
Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar
nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta
página.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,
uma diversidade temática.
Neste número, o poeta da primeira página é Camilo Soares
um dos pioneiros da Revista Verde.
Por uma série de problemas neste fim de ano, estamos
circulando com alguns dias de atraso.
Desculpem-nos.
Uma agradável leitura para todos! E até o início do outono.
Os Chicos
Capa: Foto Vicente Costa
Quarta capa: O cortador de canas
Óleo s/tela de Vincent Mengeot
Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores:
Projeto gráfico - Gabriel Franco
Fotografia - Vicente Costa
Ady Resende por Altamir Soares
Esta edição é dedicada ao artista plástico e professor
Ady Resende falecido em 17.09.2019.
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
https://independent.academia.edu/ChicosCataletras
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras
http://chicoscataletras.blogspot.com/
01
Chicos
33 JOSÉ VECCHI DE
03 CAMILO SOARES
O “poeta peregrino” da Verde
14 RONALDO CAGIANO
Espólio
16 INEZ ANDRADE
PAES
Poema 1
18 PASCHOAL MOTTA
Mineirice
20 ACIR SIMÕES
Lamentos + 1 poema
22 GISELA GRACIAS
RAMOS ROSA
1 poema de O livro das mãos
23 HELEN MASSOTE
Estudando o gramado
25 FLAUSINA MÁRCIA
Uruguay
27 FERNANDO ABRITTA
2 - Reunião de deuses no Oceano
Atlântico
A menina da fotografia
CARVALHO
35 CASSIANA LIMA
As maravilhas do mundo
39 MARIA DO CÉU
NOGUEIRA
História com um maluco dentro,
ou fora, ou uma coisa parecida
42 JOSÉ ANTONIO
PEREIRA
Por que minha avó não está em
nenhum retrato?
45 RONALDO BRITO
Por um Brasil Global
ROQUE
48 EMERSON TEIXEIRA
Feliz homenagem
CARDOSO
50 JOSÉ ANTONIO
PEREIRA
Pelas mãos de Ady Resende
52 ANTÔNIO JAIME
Moléstia à parte
SOARES
54 VANDERLEI PEQUENO
Ady Resende, o Professor Artista
56 LUIZ RUFFATO
Lendo os clássicos: Um episódio
distante
58 ANDRESSA
Chegadas e partidas
BARICHELLO
61 RONALDO WERNECK
Chico “Duarte” & Essa Gente
65 RONALDO CAGIANO
Quando a morte dirige a vida
68 MARCOS VENÍCIOS
DE MELO
O grande Guimarães Rosa e minha
avó
75 CLIPS
02
Chicos
Camilo Soares
Poeta-peregrino
Camilo Soares de Figueiredo Junior nasceu em
1909, em Eugenópolis (MG). Por volta de
1926, já estava em Cataguases, estudando no
Ginásio Municipal. Em vida, só publicou um
livro: O soldado Nicolau; contudo, deixou obras
inéditas: Rio Tonto (contos); Ermida (romance);
As viagens, Diorama para Bueri, Teoremas para
Edmor (poesia). Residiu em vários lugares, inclusive
em Muriaé, com a família. Participante
do Movimento Verde principalmente
como poeta inovador. Casou
-se com Maria Melânia Amaral. O casal
teve uma filha: Lúcia Soares de Figueiredo
Chaves. Tem uma neta também
morando em Muriaé - Lúcia Helena.
Neste ano, comemora-se cento e dez
anos do nascimento de Camilo Soares
de Figueiredo Junior (1909-1982) que
nasceu a 13 de agosto em Eugenópolis
(MG) e é considerado um escritor cataguasense,
por haver participado do Movimento
Verde. Por volta de 1926, já estava estudando
no Ginásio de Cataguases, época em que assinou
poemas nos jornais O Estudante e Mercúrio.
Terminado o ginásio, Camilo, ainda em pleno
curso da revista Verde que ajudara a criar
em 1927, foi para o Rio de Janeiro para estudar
Direito. Em 1935, já formado, transferiu-se para
Manhumirim (MG), depois São Paulo, Rio, e
em Carangola (MG) conheceu Maria Melânia,
com quem teve a filha Lúcia.
Passou a residir em Belo Horizonte, em 1946,
onde trabalhava como inspetor de ensino superior.
Em 1951, transferiu-se para São Paulo, de onde
mantinha correspondência com intelectuais: como
João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Morais,
Bueno da Rivera, Emílio Moura e outros.
Lá trabalhava como redator de verbetes sobre
literatura na editora da Enciclopédia Jackson e
como repórter do jornal A Época. Escreveu
contos para a revista Manchete,
do Rio. Continuou acumulando as
funções de inspetor de escolas em São
Paulo, Paraná, Mato Grosso e Paraíba.
Sofria de enfizema pulmonar, e morreu
em São Paulo em 1982.
Sua primeira contribuição literária foi
publicada no Mercúrio, jornalzinho
dirigido por Guilhermino Cesar. É o
poema “Rua”, também o primeiro do
grupo Verde a sair naquela publicação
em 1926. Tem marcas do Modernismo,
antecipando-se aos demais membros do
movimento, pois trata-se de um trabalho inteiramente
fora dos padrões da época. Faz parte
da estética moderna, ao manter uma linha de
contenção lírica e de hábil exploração do cotidiano.
A temática da rua é uma das conquistas da
modernidade, preconizada por Baudelaire ainda
no século XIX, e estudada por muitos teóricos
do século XX.
Joaquim Branco
03
Chicos
Rua
Terça-feira
de confeti.
Na esquina
um moleque assobia a Gigolette.
Pela rua
deserta,
de luz incerta
passa um automóvel.
O vento
– telegrama do infinito
anuncia que a chuva
rompe no céu muralhas de granito.
Cismo
encostado na minha tristeza...
(... esta rua silenciosa
é a minha rua,
a rua da minha vida,
triste rua sem beleza...)
04
Chicos
Noturno
Eu passo pela vida
assim
como um trem noturno
nos subúrbios pobres...
soturnamente...
vertiginosamente...
na ânsia louca de chegar...
misteriosamente...
no mistério de destinos ignotos...
Os passageiros
são de todas as classes...
o maquinista é o velho Cérebro,
com um ordenado mesquinho...
Pobre Cérebro!
...os maquinistas
são tão dados ao vício da embriaguez...
05
Chicos
Meninazinha pobre
Meninazinha pobre
que os meus olhos vêem todo dia,
onde vais buscar para os teus olhos
esse doce sorriso de alegria.
Meninazinha pobre
que a pobreza dum vestidinho cobre,
para onde vais buscar esta alegria
para a deixares toda
na melancolia dos meus olhos?
Meninazinha pobre
anjo dos meus olhos de melancolia
se tu soubesses como eu te amo
nunca mais teus olhos me olhariam
com esse doce sorriso de alegria...
06
Chicos
Descoberta
O homem enfeitado
chegou debaixo do sapé seco
e olhou lá dentro da casa
Viu uma moça bonita
de seios maravilha
de carne carne
E ficou
e plantou na terra roxa
a bandeira irônica da conquista
tava descoberto o fim do mundo
07
Chicos
Soneto
Mocinhos não batam
no pobre do velho
que estendeu a mão trêmula
e pegou a menina.
No escuro o sabor
de carne tão tenra
comove a velhice
remoça pecados
Quem sabe, mocinhos
se o pobre do velho
um dia fêz versos?
E agora no escuro
sua mão de saudade
afagou a poesia?
08
Chicos
Variação sobre a origem
A Francisco Inácio Peixoto
Não era o tédio absconso
da guitarra do avô
que era vôo, ave triste
no vôo da migração
Não era o passo de manso
do outro avô, um puri
buscando nascente, marulho
ou caça em mata espessa.
Também não era mundo velho
de barbacã, guerreiro, canção
ou bichos, de puros, santinhos
inaugurando um ciclo.
Os livros nada diziam
que cada hora começa
aquilo que ninguém sabe
ou saberá definir.
O ponto dentro do círculo
ou lições de geografia
mundos finitos faziam
de notícia, palavra só.
09
Chicos
Ora, pois, que de-repente
a visão se me toldou
na primeira nebulosa
que precede a explicação.
E era miragem do mundo
bem criado e definido
com lua, sol e fonte
e muro de cemitério.
A aranha pastava a flor
que se nutre do estrume
que pacientemente o animal
fabrica em hora quêda.
Um promontório buscava
angra de ancoradouro
onde escondido ficou
um tesouro sem medida
Senhora, ninfa ou gazela
flor de morro, carnaval
batuque de negro na infância
ou flor de abstração,
sacudindo os frutos verdes
dos verdes turvos, vereda
que de longe são presentes
sincopando a incerteza,
10
Chicos
que tênue amadurece
na chapada fosca e breve
sem fímbria, borda abrupta
que acaba no buraco,
que, simples ciclo, mais nada,
depois recomeçará
em dúvida, receio, repasso
pausa, acalanto, magia
buscando, sempre buscando
em lente ou montanha de lua
a explicação, o princípio
o recomeço do fim.
11
Chicos
Encantamento
O sacy pererê do alto da serra
entrou na taba rasteiro
do pagé de pellle de cobre,
e roubou a filha do velho.
E levou ella para a matta verde
para a festa pagã das mães-dagua
que tavam dansando
no limo verde da lagôa parada
a dansa tapuya do véo encantado
E a moça começou a dansar
sobre o vidro verde da lagôa parada
e os olhos vidrilhos do anhanguéra
encantaram a moça morena.
E a tribu morena
perdeu a virgem de cabellos verdes.
E de noite as uyáras
cantaram na noite cinzenta
No limo verde da lagôa parada
Debaixo da sombra verde do jequitibá.
E mais uma uyára cantou.
Em: Revista de Antropofagia
12
13
Chicos
Chicos
Ronaldo Cagiano
Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília
de Produção Literária 2001), O sol nas feridas
(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom
2012) e Eles não moram mais aqui
(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente
em Portugal.
Espólio
Habitante de múltiplas geografias
percorro a existência no fio da lâmina
e no rumor dos lutos,
enquanto o mundo é pura dissipação
e quando o tempo me assedia
com seus trovões a relinchar
nesse relógio que me acena
com ponteiros
Predatórios
Mas a carne das palavras
me retroalimenta
em meio à fragilidade do caos
e ao tumulto das minhas insônias.
14
Chicos
No esquecimento do que sou, fui ou tive,
a nutrição da memória
se abastece no farnel das impossibilidades,
quando fui pastor de tempestades
conduzindo pavores e silêncios
insultando o percurso
com minhas dores.
Em meio aos meus fantasmas
nomeio minha precariedade
como saldo de inexistências.
Homem perdido entre as ruínas do desastre,
sou esse solitário cardume na escuridão
escrevendo para suportar os estatutos de Sísifo
atirando contra os túmulos
para afrontar suas bocas famintas.
De: O mundo sem explicação (2019)
15
Chicos
Inez Andrade Paes
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de O
Mar que Toca em Ti (Crônica de viagem - 2002);
Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011); Libreto em
três atos, constituindo a Cantoriana Marítima - Acto
I Mar falante, Acto II Transparente Luva de
Água, Acto III Flores de Acanto em Marfileno Lençol
; D Estrada Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna
vontade (Poesia 2015) : À Margem de Todos os Rostos
(2017). Coordena desde 2012 o Prêmio Literário
Glória de Sant”Anna.
Poema 1
quero só escrever
este
na toada
da noite que me quebra as pálpebras
a ficar
como espaço entre cada palavra
me leve a dar a mão a nada
em redor
olho de sobrolho pensando
olho de sobrolho fixo
a quase nada
16
Chicos
garanto que a palavra
escrita
é-me consentida porque me deixo
à paixão
ao amor
ao silencio
que perdura
nos lábios
e risca
mais aberto ou mais fechado
conforme o pensamento
me limita
De: Paredes abertas ao céu (2011)
17
Chicos
Paschoal Motta
Nascido em São Pedro dos Ferros (MG), mora em
Belo Horizonte (MG). Jornalista, Crítico de Literatura,
professor universitário de Literatura Brasileira e
Linguística, Teoria da Literatura, Didática de Literatura
Portuguesa. Editor do Suplumento Literário do
Minas Gerais.
Mineirice
Os caminhos mineiros são pedrentos
nestas montanhas de ouro, tão lascivas;
na altura e na baixada sopram ventos
de vozes apagadas, sempre vivas.
Pelos rios de outrora vogam entulhos
que os dias de ganância são perversos
e a música escutada são barulhos,
como batem de matraca estes versos.
No fogão, a verde couve (Deus acuda!)
com torresmo fritando na senzala
vai arroz branco, pimenta, angu, de ajuda
18
Chicos
na cachaça entornada com estalo;
com um queijo curado nem se fala
neste caso contado de intervalo.
19
Chicos
Acir Simões
Acir Simões, nasceu em Cataguases (MG), atualmente
mora em Belo Horizonte (MG). É poeta e
contista
Meus desejos são silenciosos
Para não espantar os duendes da sorte,
que serão embarcados em um dos cantos da mala de viagem.
Juntos, amontoados, o futuro e o passado
cada dia mais próximos,
enchem a metade da mala.
Aperte os cintos, aperte a mala
que muita coisa cabe ainda que entulhe,
cabe também a inextirpável culpa.
Na outra metade cabem os sentidos,
aqueles que nos persuadem superioridade,
que nos obrigam às omissões.
Vai no outro canto da mala
os que se alegram cativos da nossa ausência.
Agora pronta a mala, embarcados, a paisagem nos trás remorsos
dos esquecimentos, da solidariedade esquecida no banco da estação.
E segue a viagem nos cinzentos dias e nos ensolarados.
20
Chicos
Lamentos
Não se pode perder o que já não possui.
Por isso agora ando leve
lado a lado com o moderno e o antigo.
O medo, o gosto, o rosto
e outros pertencimentos se resvalam pelo esgoto.
É inútil enumerar as falsidades,
resta imaginariamente lamentá-las.
E o surdo vento
sequer trás uma notícia boa.
21
Chicos
Gisela Gracias
Ramos Rosa
Nasceu em Maputo (Moçambique). O seu primeiro
livro foi um diálogo de poesia com António Ramos
Rosa, Vasos Comunicantes (publicado em 2006).
Colaborou em várias Antologias e Revistas de poesia.
Publicou também entre outros As palavras
mais simples (2014) , O livro das mãos (2017) e A
pedra e o corpo (2018)
Somos sozinhos com tudo o que amamos
Novalis
Voltarei a cada página para colher
os indícios das tuas mãos
porque a palavra tempo se repete
e o silêncio continua nas minhas mãos
De: O livro das mãos (2017)
22
Chicos
Helen Massote
Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no
Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta e cronista
trabalha no Portal Fiocruz.
Estudando o gramado
Uma cabeça
Cinco sentenças
Como não vimos
Não percebemos
Essa escada rolante
Rolando ao contrário
No breve tempo
Em que sonhávamos
Avançar
Na boca! Na boca!
Dorinha, por penitência
Um esguicho de azul
De metileno
Para sairmos
Do predatório
Importa avançar
Em vez de perdermos
Mais devagar
23
Helen Massote
&
Chicos
Flausina Márcia
Parem
Minha reza
É forte
Jura corpo
Caído
Verso firme
De ser
Rebatido
Sôfrego
Em sangre
No chão
Paraísópolis
Não é
Noves fora.
24
Chicos
Flausina Márcia
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo
Horizonte (MG) onde trabalhou na Secretaria
de Cultura de Minas Gerais.
Publicou entre outros: Vagalume (2002), Sua
Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives
(2014).
Uruguay
Aqui faz frio
na beira do rio
que se quer mar
É água platina
ampla, divina
beira de oceano
Aqui latinos
ao sol e à lua
somos americanos
25
Chicos
É terra de fogo
também de gelo
centro de espelho
Não vi a lua
em Montevidéu
há tango nela
cheio véus.
26
Chicos
Fernando Abritta
Nascido na Serra da Onça, Cataguarino,
distrito de Cataguases-MG. Tem publicados
umÁrvore, O Caso da Menina Que Perdeu a
Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma
Verde História, além de um ebook, Relâmpago.
Mora em Juiz de Fora MG.
Talvez não entenda a lenda
silenciosa em mim
(Em mim, Luiz Ruffato)
27
2 - Reunião de deuses no oceano Atlântico
Chicos
No mar calmo, navio negreiro desliza sobre ondas longas empurrando poucas
espumas que pintam de branco ora as manchas azuis das águas mais profundas,
ora manchas verdes que mostram a pouca profundidade e a proximidade da costa
africana. Iemanjá, Oyá, Xangô e Oxum, despreocupados, conversam.
IEMANJÁ (passeando as mãos sobre superfície das águas, comenta) – Se me
agrada ver espumas saltando na violência das águas nas cristas das ondas,
também gosto da quietude desse azul manchado de verdes que nos cerca.
OYÁ (planando baixo sobre leve brisa, responde, tentando provocar Iemanjá) –
Deixa que eu agite essas águas e te balance com meus ventos e quero ver
se a bonitinha se aguenta nessa pasmaceira, ou vai sair aos saltos bailando
nas ondas, nas quebradas das cristas espumantes.
IEMANJÁ (dando de ombros, continua brincando com as águas, penteando ondas
com dedos)
– Calma, senhora, calma que agora é hora de descanso e povo apertado naquele
barquinho precisa dormir.
XANGÔ (num brilho de luz refletido das ondas, entra no assunto) – Que conversa é
essa? Onde já se viu parar tudo só para acariciar ondas do mar? A mim
agrada mais movimento que leva vida. Quero e prezo mais o agito de uma
boa tempestade.
OXUM (muito incomodada com calmaria patrocinada por Iemanjá, entra na
conversa) – Acaso vocês não ouviram no vento triste que Oyá trouxe os
lamentos dos que nesse barco vão? Ouviram nada de canto triste das
negras que ficaram sem filhos? Lamento de mulheres que perderam seus
machos? Desespero de avós chorando a própria fome, chamando netos que
não mais virão trabalhar os roçados?
28
Chicos
IEMANJÁ (virando de costas, acompanha uma espuma que escorre onda abaixo) –
Ora, que me importam essas choradeiras desses humanos arrogantes. Eles
se pensam senhores e constroem luxos sobre desgraça de irmãos. A mim
parecem muito falsas essas lamentações. Que me importam esses choros?
OXUM (emocionada, responde) – Nas águas do Rio Niger muitas lágrimas se
misturam. Em minhas cascatas tenho pulado muito choro. E gritos do
príncipe chamando a rainha-mãe.
IEMANJÁ (se virando) – Rainha? Onde? OXUM – Oyá traz a verdade.
OYÁ (mais calma com o apoio de Oxum, responde) – Um velho rei, mordido pela
ambição, fez guerra a povo vizinho em busca de fazer mais escravos, não
para suas lavouras, mas para entregar a brancos, em troca de armas e
bugigangas, quinquilharias para agradar suas mulheres.
OXUM – Mas esses povos já não se falavam há muito. Essa é uma guerra antiga. Já
não se encontravam, fazia tempo.
IEMANJÁ (mais atenta, mais interessada, fala) – Não, mesmo. Faz muito tempo
mesmo que esses aí se cruzam em guerras e fazem prisioneiros filhos de
uns e depois são os outros que roubam filhos daqueles. E criam esses
meninos como seus e dão a eles novas mães e novos irmãos e novos tios,
de forma que eles se esquecem da velha família. E junto com seus captores
vão para guerras matar irmãos que ficaram na antiga aldeia.
OYÁ (toda maternal, alisando a barriga) – Sim. Ainda ouço choro desses meninos.
Trago comigo lamentos das mães. E sinto o desespero dos pais ao
reconhecer no inimigo filho acalentado e apartado de seu calor.
IEMANJÁ (raivosa, responde) – Não te digo que esses humanos e seus lamentos
não merecem nossos ouvidos?
OYÁ (ainda esfregando o ventre) – Quando essa gente aprisiona alguém forte
bastante para aguentar trabalho duro na roça, trabalho de carregar
colheita, de arar chão, esses são usados como burros de carga até a morte.
São feitos escravos que nada podem: sem voz, sem vez, cujo único direito é
estar vivo.
29
Chicos
OXUM intervém – Bem, isso foi antes. Essas guerras eram mais difíceis de
acontecer. Havia respeito pelo inimigo. E tempo curava feridas. No fundo
das casas, nos terreiros das aldeias todos se encontravam e o equilíbrio da
vida se restabelecia. Nesse tempo longo, menino virava gente, achava sua
nova origem, nova linhagem, ganhava novos pais, irmãos, até mãe.
Construía seu oriki, sua história.
XANGÔ intervém – Agora é diferente. Essa é guerra muito maior. Atravessa África
inteira. Os escravizados nem ficam nas aldeias dos vitoriosos. Nem mesmo
ficam nas terras deste lado do oceano. Passam em volta da árvore do
esquecimento e nunca mais são vistos. Essa terra aqui fica vazia, sem ter
quem a cultive. Colheitas se perdem na roça por falta deles enquanto o
povo passa fome.
XANGÔ (aponta Osé, o seu machado, sua ferramenta, e diz) – E o que fica no lugar
desses que foram? Fica aguardente e rum para embebedar soberbos
vitoriosos. Ficam bugigangas, contas de vidro, para enfeitar rainhas. Ficam
armas de fogo e cavalos para ampliar a área de guerra, de busca, de
colheita de novos escravos, uma colheita de morte e dor. Ficam novos
nobres de mãos sujas de sangue negro.
IEMANJÁ (concluindo) – Daí vem esse velho rei e entende de se aproveitar disso e
se fazer soberano de tudo à sua volta.
OYÁ (de olhos fechados, sonhadora) – Mas, ambição, que era o velho rei, terminou
no gume de machado de cativo que preferiu a morte em vez da vida de
escravo que o velho rei oferecia.
OXUM – O grande rio Niger entristeceu suas águas no vermelho de tanto sangue
negro.
OYÁ (continuando) – Foi então que filho sanguinário do velho rei, esse que era a
própria inveja, assumiu a guerra e venceu a batalha trazendo a serpente
grande de muitos pés negros, pescoços amarrados com forte corda, os
mortos em pé, tangidos para dentro do barco do branco.
IEMANJÁ (ainda sem muito interesse) – E a tal rainha? Onde entra nessa história?
30
Chicos
OYÁ (segue a história fingindo não ouvir) – Navio branco já esperava na praia
quando a fila de cativos seguia até grande árvore, ao som do canto fúnebre
de despedida aos mortos em pé, aqueles que, ao entrarem no barco nunca
mais seriam vistos nem lembrados. Filho do rei, o vencedor, agora mordido
pela arrogância do trono e aconselhado pelo medo que altura do palanque
traz, empurrou Nã Agotimé para o final da fila, no final da última volta
que aquela fita negra de cativos fazia ao redor da grande árvore, na última
roda da serpente dos negros mortos em pé, ele colocou a rainha e suas
servas para que ao rodar o tronco da grande árvore, a Árvore do
Esquecimento, ela e suas servas e os cativos fossem e apagassem as
memórias do rei morto, o velho rei.
IEMANJÁ (ainda dando de ombros) – Choradeira humana. Também ela, rainha,
havia matado antiga família rival para plantar e preservar a sua. Também
ela cantou a morte quando inimigos foram entregues ao mercador.
Também ela vestiu miçangas de Portugal, se penteou mirando espelhos de
França, também ela costurou com agulhas inglesas, vestiu panos europeus
com que mercador branco pagou carne negra que levou.
OXUM (com impaciência contida, afirma) – Mas Olorum não deixou barato essa
conversa. Chamou eguns dos antepassados pra conferir a história. E não
gostou. Mandou Exu para confundir as coisas.
IEMANJÁ (surpresa) – Não me venha dizer que aquele moleque irresponsável está
dentro dessa confusão?
OYÁ (responde, enérgica) – E por que não? O que ele mais gosta é de encrenca. E
arranja confusão só pra dar risadas. (OYÁ respira e continua) E sabe o que
ele fez? Na fila dos mortos em pé, ele colocou um morto e depois outro
para embaralhar as coisas. Artimanha dele foi manter a memória dos
mortos em pé no cortejo dos que nunca voltariam.
IEMANJÁ – Hein? Como?
OYÁ (toda detalhista) – Colocou dois meninos na fila, mas quando a fila já havia
passado pela Árvore do Esquecimento. Assim, meninos não se esqueceram
de nada. E mais: o danado conseguiu colocar um na frente e outro atrás da
rainha. Ora, a rainha não é negra de pouca beleza e moleques escondem
encantos dela, os de frente e os de trás.
31
Chicos
IEMANJÁ (agora muito interessada) – E o sanguinário rei da arrogância, ele, que
tanto medo tem de perder o poder, não viu meninos rogando pragas para
os que ficaram pra trás?
OXUM (ajudando) – Exu esperto calou todos eles com o medo. Cegou cada um dos
que ficaram com lágrimas do choro. E ninguém viu quando os dois
meninos seguiram a rainha.
IEMANJÁ (incrédula) – Esses dois foram contados entre os mortos em pé e o
branco não deu grito, não avisou?
OXUM – Exu calou ele com ambição. Carne nova, forte, boa suficiente para
aguentar viagem, suportar a travessia das águas do Atlântico.
IEMANJÁ – Ah, que vontade de balançar esse barco... XANGÔ – Exu está lá
dentro fazendo traquinagens.
Continua...
32
José Vecchi de
Carvalho
Chicos
Nasceu em Cataguases, após morar por muito
tempo em Viçosa vive hoje em Paula Candido
todas cidades mineiras. Coautor de A casa da
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de
Duas Cruzes (contos 2018).
A menina da fotografia
Para Sebastião Salgado
Havia me esquecido de um tempo da
minha vida em que tudo era muito difícil.
Mas aquela imagem me transportou para o
passado, contra a minha vontade, claro, porque
voltar não fazia parte dos meus planos,
ainda mais a um período da minha vida que
sempre fiz questão de esquecer. Entrei na
galeria por causa da Luísa. Ela havia falado
da exposição durante toda a semana anterior,
e eu queria demonstrar alguma aproximação
com o que ela fazia.
Não entendia nem gostava de fotografias,
ainda por cima em preto e branco. Além
disso, tinha que ouvir gente de nariz empinado
falando um monte de bobagens e tirando
conclusões cada uma diferente da outra. Eu,
que já não entendia nada do assunto, ficava
ainda mais perdido. Nunca fui dado a esse
tipo de coisas, mas tinha adoração por Luísa.
Então fui lá me meter com aquela gente, fingindo
admirar aquelas coisas todas. Ficava
um bom tempo olhando, observando, como
os outros faziam. Mas eu ficava calado. Se
chegava um grupo perto de mim, me afastava
e procurava outra fotografia onde eu pudesse,
novamente, passar por entusiasmado
apreciador. No fundo, meus olhos circulavam
pelo salão à procura de Luísa.
Ela era estudante de Artes e trabalhava
com fotografia, vivia metida nesses lugares,
era parte do seu trabalho e também do curso.
Falava até em largar tudo e ir embora por
causa disso. Queria viajar, visitar países distantes,
lugares estranhos nos confins do
mundo. Eu pensava o tempo todo que ela ia
me deixar. Isso me transtornava e fazia eu
33
Chicos
me curvar diante dela.
Eu a vi de longe, com uma turma, mas
não quis me aproximar. Quando ela me
viu, abriu um sorriso e veio ao meu encontro,
me pegou pelo braço e me arrastou,
cabeça erguida, olhando para um e outro
lado, até chegarmos onde estavam seus
amigos. Foi logo me apresentando, coisa
que menos gosto. Aos poucos, o grupo foi
se dispersando e seguimos pelo salão parando
aqui e ali. Eu lá, ao lado dela, como
um cego, seguindo seus passos sem entender
nada, seus olhos como guia. Ela ia me
mostrando detalhes, explicando, mas aquilo
tudo entrava num ouvido e saía por outro
sem o menor efeito, a não ser o cansaço
e um indisfarçável mau humor. Luísa segurava
minha mão e me conduzia pela sala,
até que me deparei com um par de olhos
num rosto triste e com aparência de maus
tratos.
Era uma criança. Estanquei o passo como
se impedido por um obstáculo qualquer,
uma parede de vidro temperado, um
sinal vermelho. Luísa até se assustou. Parei
e fiquei olhando aquele rosto de criança
pobre. Manchas na pele, terra, carvão, graxa
ou óleo, resíduos de um trabalho qualquer.
Os cabelos desgrenhados e visivelmente
sem brilho. Mas os olhos, ah, aqueles
olhos eram de uma nitidez reveladora,
uma luz, uma força a me levar de volta a
um tempo de minha vida em que tudo era
muito difícil, e por isso eu insistia em esquecer.
Fiquei por um tempo fitando aqueles
olhos. Embora infantis, pareciam carregar
séculos de sofrimento. Luísa percebeu
meu espanto e veio me acudir “Gostou?”.
E antes que ela falasse mais alguma coisa,
levantei um pouco a mão e fiz um sinal para
esperar. Fiquei por mais alguns instantes
observando a fotografia daqueles olhos, ou
melhor, os olhos daquela fotografia. Foi o
tempo suficiente para uma viagem. Passei
por lugares e pessoas que já havia esquecido,
por situações incômodas que pensei
não rever nunca mais, nem em pensamento.
Mas aquele olhar foi me rasgando o corpo,
me expondo as vísceras e, como num
pesadelo, vi saltando de dentro de mim,
borbulhando como um sangue quente, os
olhos famintos da menina da fotografia.
34
Chicos
Cassiana Lima
Cassiana Lima Cardoso nasceu em São Bernardo
do Campo (SP), mas se considera mineira
de formação. É professora de Literatura. Hoje,
vive em Petrópolis e leciona no Rio de Janeiro.
É doutora em Literatura Comparada e Mestre
em Poética pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
As maravilhas do mundo
Sim, é aqui que vivo. Em uma pequena cidade
do interior de um lugar chamado Minas
Gerais. Em frente a minha casa há uma estrada
de ferro, coberta por pedregulhos cinza
azulados, na qual de vez em quando passa
um trem carregado de bauxita. Quando criança,
meu grande prazer consistia em colocar
pedras ou moedas nos trilhos e observar
como ficavam depois da passagem do trem.
As pedras viravam um pozinho miúdo e as
moedas pareciam uma bolacha, uma grande
lua cheia. Havia um homem que estava sempre
lá, à beira da linha do trem, com um relógio
de bolso à mão. Era o Manoel, que se
dizia funcionário da rede ferroviária. A gente
acreditava, posto que éramos crianças, (e toda
criança é meio crédula, até mesmo as mineiras)-
que ele tinha mesmo uma grande
tarefa a cumprir ali, devido à gravidade com
que encenava sua função. Depois, minha avó
me disse, que ele, coitado, não era supervisor
de nada não, era aposentado por invalidez
por problemas de cabeça, morava com a
mãe, que morria de dó do filho, tão mal das
ideias.
Eu, por minha vez, munida de minha crueldade
infantil, ria à beça conversando com o
Manuel a respeito de suas obrigações; eu alimentava
sua fantasia, perguntando sobre os
acontecimentos do dia e ele com toda empáfia
os narrava a mim e às outras crianças que
se aproximavam para rirem dele também.
Mas ele nos olhava com um certo desprezo,
pois éramos apenas crianças, e, ele sim, fazia
algo de útil para agradar a Deus. Outra coisa
que me divertia era um álbum de figurinhas
chamado As Maravilhas do Mundo. Aquecia
meu coração pensar que o mundo não era só
aquilo ali que eu via diante de meus olhos
ainda inexperimentados, retinas de imagens
primeiras, não fatigadas, apesar de. O álbum
havia pertencido à minha mãe e aos meus
tios quando crianças, datava de 1958 e era
constituído não de fotos, mas de figuras coloridas,
pintadas à mão, das maravilhas do
35
Chicos
mundo, guardadas em uma gaveta por minha
avó, que só de vez em quando deixa-me
manuseá-lo, sempre sob sua inspeção.
Minha vó dizia que ele já era meu, mas seria
definitivamente quando eu já fosse uma mocinha
e soubesse ter cuidado com as coisas.
Ela sempre falava isso como uma jaculatória
enquanto pegava a chave e girava a fechadura
da gaveta. Aquela fala me irritava um
pouco, mas misturava-se à sensação de ansiedade
de que em segundos eu estaria com
as coisas mais lindas do planeta nas mãos.
Então lá ia eu a cada passar de página Para a
Grande Muralha da China, os Jardins Suspensos
da Babilônia, para Taj Mahal, o Coliseu,
o Santuário de Machu Pichhu.... Eu flutuava.
Vivíamos numa casa de dois andares com
um grande quintal, cheio de frutas: carambola,
manga, goiaba, jamelão, amora, coco,
abiu, jambo. Além disso, havia um pé de café
que minha avó cultivava para matar saudades
da roça. E um pé de mamona, do qual
minha vó extraia uma pequena semente e
fazia óleo de rícino. Eu adorava ajudá-la,
gostava de ver a panela no fogão à lenha
borbulhando. Aquele azeite era para colocar
nos machucados das pessoas e umbigos de
bebês. Posso sentir ainda hoje o aroma daquele
remédio cheiroso que minha avó fazia
como num ritual para simplesmente distribuí
-lo entre as pessoas conhecidas que precisassem
dele. Assim, fazíamos o azeite e depois
dávamos de presente de acordo com a demanda.
Havia também a horta com várias
verduras e legumes. Minha vó explicava o
que era bom para quê: cenoura pra vista,
agrião pra gripe, salsa pro coração. Isso me
foi de grande valia. Às vezes, quando sentia
meu coração apertado; ia lá e mascava uma
salsinha. Melhorava bem e eu ia correr de
novo. Gostava de ficar trepada o dia inteiro,
se não tivesse aula, no pé de goiaba. Deitava
no galho e comia a goiaba sem tirá-la do galho.
Achava legal. Além disso, gostava de
comer abiu e ficar com os lábios colando.
Era bom.
No meu quintal havia um rio de água preta e
sem peixes que exalava um cheiro de soda
cáustica que vinha da fábrica de papel.
Era um rio feio, pachorrento, moribundo
chamado Meia-Pataca. Ainda assim eu gostava
de ficar na sua margem vendo a água
passar. Era um rio sem peixes, muito diferente
dos rios que eu conhecia dos livros de
escola, com peixes coloridos e de diversas
espécies. Ainda bem que eu tinha meu álbum
de figurinhas com as maravilhas do
mundo guardado.
Eu olhava para aquele rio feio de meiatigela,
e falava aqui óóó! Quando aquele
álbum for meu, vou visitar todos aqueles lugares.
O primeiro lugar quando for grande
será o Cristo Redentor, que é no Brasil mesmo.
Mas depois, ah....Vou sair por aí por
esse mundo todo... (Nesse momento eu me
levantava e gesticulava, começava a falar as
coisas cantando. E mexia o corpo para
acompanhar). Meus irmãos e primos me viam
de longe e começavam a zombar e eu
investia uma corrida atrás deles. Logo em
seguida esquecia daquilo e íamos brincar de
outra coisa, brincadeira que eu logo abandonava,
preferia brincar sozinha, pois achava
os meninos muito violentos e grosseiros.
Bom, assim se passavam os dias. Escola, casa,
Igreja. Nessa época as rezas eram para
mim bálsamo precioso, com efeito imediato.
Eu tinha um quadrinho de duas crianças
atravessando uma ponte e um anjo da guarda
as protegendo. Eu confiava piamente no
meu e quando saíamos eu e meu irmão andando
por aí, eu sempre achava que nada
nos ia acontecer em virtude da exímia atenção
que meu anjo dispensava sobre mim.
Pois eis que sobreveio o golpe. Dezembro
chegara e as chuvas não cessavam. Notava
minha avó preocupada, rezando baixinho.
36
Chicos
Eu estava entediada com os desenhos animados,
queria brincar, folhear o “meu” álbum e
minha vó não deixava, eu só olhando pela
janela, vendo a chuva cair, com um olhar
meio perdido. Prisão chata que só.
De repente o rio começou a encher, encher,
encher. Veio a enchente. Meu tio falou que
tínhamos que tirar os móveis de casa senão
perderíamos tudo. Eu era criança e ainda menina,
não ia carregar nada. Só me cabia esvaziar
a cristaleira, os guarda-roupas, embrulhar
algumas coisas. Senti um estranho pressentimento
quando tirei As maravilhas do
mundo para fora da gaveta. Resolvi envolvêlo
em um papel de pão para protegê-lo melhor.
Falei com minha avó sobre a gravidade
do álbum desprotegido, minha avó parecia
que não me escutava, de repente aquela relíquia
havia perdido o valor?
Embrulhei o álbum assim mesmo e de repente
me mandaram para fora, parecia que a
água ia mesmo subir. Meu tio, meu pai e até
minha mãe que estava grávida, mesmo com
as zangas da minha vó, carregando móveis e
tirando tudo para fora. Eu aproveitei a falta
de vigilância para dar um giro: as águas, as
águas. Meus primos nadavam na enchente,
Eu entrei na água até o joelho.
Vi uma cobra morta, coloquei num graveto,
e ficava andando com ela, todo mundo queria
ver. Fiquei olhando as copas das árvores e
nossa casa já quase toda submersa. Nesse
momento, tudo que eu queria ter era uma
roupa de mergulho para saber o que se passava
lá embaixo. Ah, mas faltava também
saber nadar, os adultos me deixarem... Quantas
impossibilidades! Fui até o botequim do
Ananias, tinha uns homens bebendo cachaça
na porta, comprei um doce de abóbora fiado.
Ele perguntou se minha mãe havia deixado,
eu balancei a cabeça que sim, sempre tive
dificuldade de mentir com as palavras.
Saí e tinha um homem bêbado, nadando na
enchente, o pessoal ia lá e tirava e ele voltava.
O pessoal em volta dizendo que ele queria
se matar por causa de mulher. Êta gente
pra gostar de falar da vida dos outros! Saí
dali. Voltei para perto da minha casa. Meu
tio nadando na enchente para salvar as galinhas.
Aquilo para mim era divertimento. Para
onde iríamos pouco me importava. Eu gostava
do movimento. Ficava sentada no trilho
do trem jogando umas pedras na água. Minha
prima Paulinha veio se juntar a mim. Já
estava tudo no caminhão. Eu e meu irmão
queríamos ir atrás, junto com os móveis, como
na carreata de São Cristóvão. Minha mãe
não deixou. E chamou minha atenção, falando
sobre meu mau comportamento. Fiquei
contrariada. Uns parentes vinham nos buscar
de carro.
O caminhão levou nossos móveis para a escola
que eu estudava, o Guido Marlière. As
aulas foram suspensas. Eu fui passar uns
tempos na casa dos meus avós paternos, onde
comíamos muitas coisas gostosas e brincávamos
com outras crianças. Os adultos falavam
pouco, calados. Eu os evitava, brincando
com os novos amigos da vizinhança.
Não sei exatamente o quanto isso durou,
mas as águas baixaram e voltamos para a casa.
As paredes estavam com marcas da água
da enchente quase até o teto. Começamos a
arrumar tudo, todos preocupados, a casa deveria
ser novamente pintada, perdemos galinhas,
etc etc etc... E... Meu álbum? Perguntei
a minha avó, procuramos, ela simplesmente
não sabia, pediu para eu não amolar não. Eu
senti um desespero imenso, um ódio da desgraçada
da enchente que levara meu albinho...
Eu xinguei o rio e minha avó me bateu,
não se admitia palavrões em minha casa.
Eu fiquei ainda mais colérica. Suava, tinha
minha tez vermelha e um desespero inexplicável
tomou conta de mim. De repente comecei
a chorar e minha avó ficou com pena.
Nos dias que seguiram, rezei pedindo o álbum
de volta.
37
Chicos
Implorava em minhas orações para ele aparecer
de repente. Eu me comportava, mudava,
seria boa menina. Nada, porém, aconteceu.
Aquele maldito rio preto, feio, sem peixes
havia se vingado de mim. Levando meus sonhos,
minhas maravilhas do mundo, pro mar,
pra não sei pra onde, pra todo o sempre. Fiquei
um tempo como ele. Minha vida por
uns dias foi um fluxo escuro, vazio e opaco.
Por causa da visita da enchente eu conheci
uma tristeza que até então não sabia existir.
As águas do rio Meia–Pataca não são como
antes.
Apesar de um lamentável acidente ecológico
em 2003, as substâncias químicas que eram
descarregadas pela fábrica de papel não habitam
mais suas águas, são descarregadas em
um depositório, no entorno da cidade. Continua
um rio modorrento, sua sina, apesar de
hoje não ser vítima da poluição dos homens.
Inspirou já muita poesia, na sua recalcitrante
existência. Eu, hoje, moro no Rio de Janeiro
e já visitei o Cristo Redentor.
38
Maria do Céu
Nogueira
Nasceu em São Martinho de Escariz, Vila Verde, Portugal
Licenciada na Faculdade de Filosofia de Braga.
Entre 1990/2005 fez parte da Associação Cultural e
Literária "Autores de Braga". Como escritora, colabora
em várias publicações com crítica literária e
social, opinião, contos, crónicas e poemas. Entre suas
obras: Histórias Doces de Missangas (1992), Duas
mãos. Um Conto. Dois olhos (1998), Um Ponto, Artifícios
de Fogo Preso (2001), Contos na Diferença
(2003), Histórias, Memórias e Contos Tontos
(2009), A ilha da promissão (2015) e Um conto
policial (2018)."
História com um maluco dentro,
ou fora, ou uma coisa parecida
Era uma vez um maluco, ou melhor,
era uma vez um homem que foi considerado
maluco por todos os Chefes da comunidade em
que estava inserido. E por quê? Ora, porque
tinha a mania de escrever e contar histórias a
torto e a direito. Histórias que ele inventava ou
que sonhava, ou de que ouvira falar ou contar e
quando lhe perguntavam se aquilo que ele
contava era verdade, ele, ou afirmava de
imediato que sim, que era verdade, ou, outras
vezes, punha-se a pensar, a pensar e acabava
por dizer que talvez sim ou talvez não. Ora, foi
precisamente por este ”talvez sim ou talvez
não” que um dia os Grandes Chefes acharam
que ele era exactamente igual a todos os outros
que já estavam no manicómio e que também
tinham sido lá postos por causa deste género de
vida indecisa que ele apregoava nos seus
escritos. Um dia foi chamado a prestar
declarações. Um dos chefes, um dos mais
novos, mas que era muito importante por ser
neto de chefes desde a quinta geração, de dedo
em riste, disparou-lhe:
- Oiça lá, senhor escrevedor, aquilo que
escreve é sim, é não ou é talvez?
O pobre coitado não estava à espera de
uma pergunta tão inteligente e...claro,
engasgou, ficou a pensar algum tempo e,
depois respondeu:
- Olhe, sinceramente, não sei responder
como, se calhar, o senhor gostava que eu
respondesse. Mas devo dizer-lhe que...é tudo
isso!
- Como assim? Uma coisa ou é sim, ou
é não ou é talvez. Tudo ao mesmo tempo não
pode ser! – avisa o chefe, de novo com o dedo
em riste.
E foi assim que tudo aconteceu. E no
grande livro das sentenças dos grandes chefes,
para justificar o internamento deste escrevedor
no manicómio, ficou registada esta frase
lapidar, logo a seguir ao nome:
39
Chicos
“Tanto aprontou que um dia foi parar ao
Manicómio. – dixit” (era sempre com esta
palavrinha latina que os Grandes Chefes
encerravam todas as suas decisões. Diziam eles
que o latim dava credibilidade e infalibilidade a
todas as suas decisões.)
O maluco, como foi apanhado de
surpresa e não conhecia a existência de tal
instituição, ficou admirado porque todos quantos
aí encontrou eram tão malucos quanto ele:
médicos, enfermeiros, psicólogos, psiquiatras e
psicoterapeutas, telefonistas, jardineiros e
cozinheiros, cabeleireiros e barbeiros, todo o
pessoal da limpeza. Até um papagaio que
passeava pelos ares dos corredores e um porco
que chapinhava por cima da roupa que estava a
corar e meia dúzia de patos que dormiam de dia
e só de noite tinham as suas interessantes
conversas. Todos malucos, mas atenção,
malucos sábios e muito felizes. O Hospital tinha
excelente funcionamento, ninguém reclamava de
coisa nenhuma, todos sabiam exactamente o que
deveriam fazer e todos cumpriam. Então, estar
neste Manicómio, era uma perfeita e
permanente festa. Ah, e todos, exceptuando os
animais, gostavam de ler e escreviam
interessantes narrativas sobre assuntos das suas
diversas especialidades.
E neste paraíso o nosso Maluco sentiu-se
muito feliz.
Quando os outros malucos lhe
perguntaram o que fazia e por que estava ali, ele
respondeu que era escritor e tinha uma história
dentro de si. Ou era ele que estava dentro da
história, hesitava, não sabia bem, mas era mais
ou menos isso. Os outros malucos não quiseram
saber mais pormenores, acolheram-no muito
bem e o chefe dos malucos, que era um
bombeiro que ali viera parar porque um dia
decidiu apagar o fogo numa mata que estava
programada para arder, mesmo, disse-lhe,
acolhendo-o afavelmente e indicando-lhe logo o
seu quarto:
- Vem, estamos muito felizes por te
termos na nossa companhia. Aqui serás muito
feliz, tenhas a história dentro ou fora de ti.
Todos nós gostamos muito de histórias, das de
dentro e das de fora de nós.
E o maluco ali ficou, passando o tempo a
escrever, como ele sempre fizera no mundo de
lá de fora, onde era um escritor aprimorado,
requintado, cuidadoso e atento com tudo que
escrevia. E muito e variado era. Fazia contos,
crónicas, versos, romances e até novelas. E foi
precisamente porque tanto escreveu, sempre,
teimosamente, apesar dos avisos dos Altos
Chefes do mundo de lá de fora que não
entendiam o que ele escrevia que, zás, foi
apanhado e engaiolado ali mesmo naquele
Manicómio onde, finalmente, era feliz. Fazia o
que mais gostava, escrever, mas também tinha
muitas horas de lazer em grandes conversas com
todos os outros malucos. E foi assim que
descobriu que quase todos eram letrados e
tinham ido ali parar por isso mesmo.
- Onde já se viu, haver tanta gente a
escrever num mundo em que ninguém lê?! –
gritavam os Altos Chefes de lá de fora, todos
abespinhados e de dedo em riste. Pura perda de
tempo! Não podemos sustentar gente que não
trabalhe! É preciso trabalhar! – e continuavam
de dedo em riste quase a tocar-lhe a ponta do
nariz.
Os desgraçados bem protestavam,
dizendo que escrever era importante e ler
também. Que eles escreviam e os Altos Chefes
que desenvolvessem mecanismos para que todos
lessem os seus escritos e mais sábios ficariam e
melhor governariam.
Que nada! Tudo quanto diziam ia caindo
em saco roto, quer dizer, não eram ouvidos por
ninguém e, a pouco e pouco, foram sendo
engaiolados no Manicómio. Tudo isto o nosso
Maluco foi aprendendo e registando na sua
memória.
40
Chicos
Todos os malucos, nas horas de lazer,
liam e escreviam. Textos da sua autoria ou uns
dos outros e as horas de lazer naquele
Manicómio, eram uma autêntica festa!
Havia uma jovem escritora, muito jovem,
mas com uma escrita muito madura e
amadurecida em aturado trabalho, que
simpatizou de imediato com o nosso Maluco e
com ele tinha conversas interessantíssimas sobre
tudo que viesse a talho de foice.
Ah, esquecia-me de dizer uma coisa
muito importante: é que no Manicómio havia
uma excelente biblioteca atacadinha de livros,
não ordenados em estantes como se via no
mundo de cá de fora, em que as pessoas
gostavam de mostrar que tinham livros de capas
muito bonitas, douradas e tudo. Os livros do
Manicómio encontravam-se em cima de mesas
de tampo redondo e giratório, para que os
malucos tivessem sempre à mão aquilo de que
precisavam, sem perderem muito tempo na
procura.
Pois era nessa sala que o nosso Maluco e
a Jovem Maluca se encontravam frequentemente
e em breve começaram a descobrir gostos
comuns. Foi ela um dia que falou de um dos
maiores malucos do século, um tal Fernando
Pessoa que foi um dos primeiros habitantes do
Manicómio, senão o seu fundador. Tinha sido
posto ali depois de, em julgamento sumário,
concluírem que não percebiam nada do que ele
escrevia e foi condenado com pena mais grave
por certa mania que tinha de inventar pessoas,
de imaginar que elas escreviam por ele, ou ele
por elas. Enfim, aquela gente de lá de fora ficou
tão baralhada que não teve outro remédio senão
interná-lo. O nosso Maluco e a Jovem Maluca
adoravam esse Pessoa maluco, bem como todos
quantos ele inventou e era uma maravilha
quando decidiam torná-lo vivo e liam em voz
alta tudo que ele escreveu. Todos paravam para
os ouvir: o porco deitava-se em cima da roupa
lavada, de boca fechada, mas ouvido atento, os
patos acordavam e ouviam regalados, e até o
papagaio, alterava o seu bailado ao som de
inaudível música.
Um dia, a Jovem Maluca perguntou ao
nosso Maluco pela tal história que ele dizia ter
dentro de si, ou ele dentro dela, ou uma coisa
assim parecida.
O nosso Maluco disse-lhe que já a tinha
acabado e que a trazia sempre com ele no bolso.
Então ela pediu-lhe que lha deixasse ler.
Ele olhou-a com hesitação, ficou algum tempo à
espera e por fim disse:
- Lê, há muito que andava dentro de mim
ou eu dentro dela, tanto faz, mas só aqui, depois
de te conhecer, consegui acabá-la.
A Jovem Maluca pegou no papel,
desdobrou e começou a ler. Ia-se ruborizando,
dava conta o nosso Maluco, mas quando
acabou, devolveu-lha, aproximou-se dele,
abraçou-o e ofereceu-lhe o rosto para que fosse
beijado, ao mesmo tempo que dizia: -Aceito!
Eclodiram palmas de todos os lados e
aquele Manicómio, certo deste enlace, viu de
repente um futuro risonho, promissor e
interminável...
Cá fora, até onde chega a memória dos
tempos, continuou a grassar a santa ignorância,
apanágio dos Grandes Chefes e de todos
quantos com eles dizem: Amém!
41
José Antonio
Pereira
Chicos
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A
casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
Por que minha avó não está em nenhum retrato?
Revirando um velho baú, Ana
Rosa não se dá conta do olhar curioso a espreitá-la
naquele momento, que é de uma
sagrada intimidade. Ali estão pedaços de vida,
uns vividos por ela outros não, os vividos
brotam com os flashes da memória, já os outros...
Remexendo antigos vestidos de chita e de
outros tecidos baratos, corre os dedos sobre
remendos feitos a mão. O riso brota, – Era
menina ainda quando aprendi a alinhavar,
chulear.... Olha para os dedos, – Foi espetando
os dedos que aprendi a usar a agulha certa
para o tecido certo. Tenho orgulho da destreza
com agulha e linha. Tempos depois de
casada, Martim me deu de presente uma velha
máquina de costura.
Ana Rosa ri do espanto dos netos quando
explica o significado do “ir à rua”. Naqueles
tempos de roça, era algo festivo. – Martim,
de véspera prendia o cavalo, no outro dia,
como de costume, acordava ao lumiar do dia.
Enquanto atrelava o cavalo à charrete, emprestada
pelo irmão, eu forrava uma cesta de
taquara com um morim em várias dobras e aí
arranjava os queijos. Queijo meia-cura ao
fundo e curado por cima, forrando tudo com
vários panos dobrados para não pegarem poeira
pela estrada.
Luiz, filho mais novo de Martim, ajudava
carregando os queijos de um quartinho pegado
à cozinha onde eram guardados; o menino
gostava da lida com os queijos. – Luiz é
um queijeiro de mão cheia. Nem sei quantas
vezes repeti isto na lida dos queijos, quando
Martim ralhava com o menino naquele seu
jeito rude. “– O peste ruim, larga isto aí e vai
caçar o que fazer. Tem muito serviço pra ser
feito por aí.” E sapecava um monte de tarefas
ao pobre Luiz. Corre o dedo, aquele onde
sempre usou o dedal, pela mancha do
vestido. O primeiro que fez, – Martim, não
está levando arroz demais para limpar? –
Ana! Este arroz ainda é da colheita do ano
passado. O compadre Malaquino disse que
lá na rua só tem arroz novo. De repente vendo
na máquina de limpar arroz ou faço alguma
barganha com alguém.
42
Chicos
De volta, já pelo meio da tarde, a charrete
para no terreiro e a voz firme do marido,
– Ana! Ô Ana! Vem ver o que trouxe pra
você.
João, o filho mais velho de Martim, emburrado
desce da charrete e corre, numa pisada
dura, rumo ao barranco onde a touceira de
bananeiras se esconde. – Comeu porcaria na
rua! Emenda o pai com aspereza de sempre.
João nunca move um músculo diante do pai.
São tão iguais, rudes, duros e insensíveis, já
Luiz... Luiz é o primeiro que aparece correndo
lá dos lados da bica e para junto ao cavalo.
Vindo da cozinha limpando as mãos no
avental, eu olhava para Martim. – O que
aconteceu homem de Deus? Amarrada à
charrete, uma velha e empoeirada máquina
de costura. Fiquei sem fala. Luiz é que abriu
a boca, – Te ajudo a limpar Ana. Martim em
sua dureza com os filhos, – Isto não é trabalho
de homem, ô traste! Vai cuidar dos porcos,
não está ouvindo a gritaria deles?
Desde a viuvez tenta encontrar em algum
canto da memória algum fato, alguma palavra
dita por Martim que aplaque seu desejo
de saber qualquer coisa dos momentos vividos
pelo marido antes de conhecê-la. Ana
suspira e retira do baú um bornal de cretone
cru. De dentro, surge uma caixa rústica de
pinho de Riga. Coloca sobre as pernas a caixa
e abre. Começa a rever velhos retratos,
detêm-se em alguns, vai às lágrimas. Fecha
bruscamente a caixa ao ouvir um suspiro.
Vira e recompondo-se rapidamente, – Juliana
minha filha, é você que está aí? Chorosa a
jovem retruca, – Sim Vó, sou eu. – Mas menina,
você está chorando por quê? - Estou te
olhando mexer neste teu baú faz tempo. Ver
você mexendo nestes teus vestidos, te ouvir
falando de coisas do teu passado e o teu
choro me comoveu Vó. Desculpe-me! Não
queria.... e desaba no choro. Ana puxa a neta,
o braço esquerdo a acolhe e a mão direita
com firmeza segura a caixa de retratos. Caminham
até uma antiga namoradeira de caviúna
no fundo do quarto. Enquanto a caixa
repousa num canto da namoradeira as duas
já sentadas se abraçam e choram copiosamente.
– O choro, filha, faz com que a alma
não cultive o ódio. Por isso somos choronas.
Juliana olha detidamente a avó, seu olhar
carregado de raiva, encontra o olhar terno de
Ana. Para Juliana, aquele olhar a entristece,
vê nele a resignação. Depois de um longo
tempo em silêncio, – Posso olhar sua caixa
de retratos? Não houve tempo nem da avó
reagir. A avó, que parecia se sentir violada
em seus segredos, à medida que era indagada,
foi se submetendo à vontade da neta.
– Quem é este? Ana respondia e a neta reagia,
– O tio Luiz? Não acredito. A tarde se
vai com avó e neta revirando fotos e conversando
sobre elas. Anoitece, alguém bate à
porta do quarto. É Mariana, mãe de Juliana.
– Vamos jantar, gente, está ficando tarde.
Ela levanta a cabeça rumo a imagem de N S
Aparecida, sua santa de fé, e contendo o nó
na garganta, se persigna e com a voz sem o
embargo do choro, - Minha santinha, obrigada
pela neta que me destes. As duas saem
abraçadas pela casa e o contentamento de
Ana assusta a neta.
Juliana entra no quarto da mãe aconchega-se
junto a ela. Com o dedo encaracola ainda
mais um dos seus cachos de cabelo e permanece
pensativa. – Juliana... te conheço. Vai,
desembucha! – Sabe o que, é mãe? É a Vó.
Esta tarde, levei um choque. Estou pasma,
ela não tem passado, ela vive o passado do
meu avô. – O que é isso meu anjo? – Você
já viu a caixa de retratos dela? – Não,
nunca me mostrou. Ela sempre me disse que
papai nunca se deixou fotografar. E ela também
é arredia a fotos. Para mim ela só tem
fotos de filhos e netos. – Mãe, você está redondamente
enganada. Existem diversos retratos
feitos em Portugal, e vários na Itália.
Muitas fotos do tio João emburrado ao lado
do Vô e algumas do tio Luiz bebê, que a Vó
diz ser do batizado dele. Ele no colo do Vô.
43
Chicos
– Menina não vejo nada demais. Ela guardou
algumas fotos do primeiro casamento de
papai. – O que é isto, mãe? Acorde! Eu
olhei todas as fotos, aquele mundo não é o
mundo da minha avó. Por que minha avó
não está em nenhum retrato?
Mariana abaixa a cabeça e numa voz resignada.
– Filha, não sei. – Mãe, isto não está
certo. A minha avó e seus avós maternos estão
sendo apagados da minha história. Isto é
inaceitável para mim. – Menina, te conheço.
Você vai infernizar a família inteira com isto.
Deixa isto para lá. Isto é uma questão resolvida
na família. – Resolvida mãe! Como?
Você não sabe nem os nomes de seu bisavô
e sua bisavó. Aquela caixa contém a história
de imigrantes portugueses e italianos até o
casamento do teu pai com a minha avó, a
preta que provavelmente era criada de alguma
família. Nem ela sabe quem são vários
que ali estão. Não descanso enquanto não
entender essa história que só registra os
branquelos da família e não registra nada de
minha avó. Não desisto mãe!
44
Chicos
Ronaldo Brito
Roque
Nasceu em Cataguases MG, é escritor, autor
entre outros do livro infantil A Menina do País
das Ruivas
Por um Brasil Global
Ultimamente tenho me sentido tão sozinho
que dá vontade de ir a qualquer lugar
onde haja mais de quatro pessoas, qualquer
muvuca que ofereça a remota possibilidade
de conhecer gente nova, trocar telefones,
fazer umas fotos maneiras.
Já fiz cursos de cerâmica e percussão. Já estive
em missas e em bailes-fanque. Já acompanhei
funerais de gente que eu não conhecia.
Tudo pelo desejo de trocar alguns olhares
e sorrisos, talvez palavras, sentir um
pouco de contato humano, de simpatia, de
remissão. Se alguém pedir meu telefone, talvez
eu chegue a ter um pequeno orgasmo.
Para evitar esse vexame, procuro não me
demorar em nenhum assunto. Tento dizer
tudo que penso em cinco ou seis palavras.
Ninguém me estranha. Afinal, vivemos num
mundo de cinco ou seis palavras. Mais que
isso é discurso, é tagarelice, é tese de mestrado.
Moro numa cidade grande que, como toda
cidade grande, está cheia de protestos e manifestações
populares. Um dia me toquei
que protestos são ótimos refúgios contra a
solidão. Você fica cercado de gente, grita as
mesmas frases, troca alguns olhares, depois
sempre rola um convite para um chope ou
para outro protesto, supostamente mais eficaz
e interessante.
Num protesto é mais fácil puxar assunto.
Você lê os cartazes e sabe mais ou menos o
que as pessoas querem que se diga. Assim
sobra menos chance para decepção. Protesto
é uma forma de codificar e ordenar o comportamento
humano, que, se deixado ao
acaso, acaba sendo apenas barulho, desentendimento,
caos, e o que pode ser pior: solidão.
Certo sábado me bateu aquela angústia enjoada,
e vasculhei a internet em busca de
um protesto para preencher o dia. Havia um
pelos direitos dos homossexuais, o que acho
súper legal, claro, dou a maior força, mas
acabei deixando passar, porque prefiro não
dar a impressão de ser um deles. Outro era
pelos direitos dos negros, o que também
acho muito justo, concordo, claro que
45
Chicos
concordo, mas a maioria dos negros mora
na zona norte e não dá para marcar nada depois
do protesto. Além disso, eles costumam
gostar de pagode, e eu tenho medo de chegar
num protesto desses e ter que ouvir pagode
ou regue ou algum tipo de música que
não tenha nada a ver comigo.
Continuei procurando, e achei uma coisa
interessante. Uma manifestação pelos direitos
dos estudantes de medicina. Eles são de
classe alta e costumam gostar de uma música
mais sensata. O problema é que as meninas
de medicina não dão muito papo para
mim. Elas estão atrás de caras mais ricos, e
eu sou só um programador, moro num quarto-e-sala
e tenho um Celta 2010. Não sou
mais nenhum moleque, sei o que as mulheres
procuraram.
Eu já estava desistindo quando uma manchete
me surpreendeu.
Imigrantes portugueses lutam contra o
preconceito dos brasileiros. Protesto
ocorrerá na praça Fernanda Montenegro,
hora tal, etc.
Eu não sabia que portugueses também faziam
protesto. Eles são muito pacatos, não
costumam entrar em briga nem para salvar a
mãe. Fiquei me perguntando se a manifestação
ia ter gente suficiente, se ia encher pelo
menos uma rua, se ia haver problema com a
polícia ou coisa parecida. E as jovens portuguesas?
Será que elas dariam atenção a um
pobre programador, que morava de aluguel
e dirigia um Celta 2010?
Eu precisava arriscar. Peguei o carango e fui.
No caminho lembrei que eu não gostava de
fado. Mas os portugueses costumam migrar
sem sua música, e essa lembrança me aliviou.
Já li em algum lugar que eles são os
grandes consumidores de música brasileira.
Os brasileiros preferem o roque, e deixam os
gêneros nacionais para portugueses e turistas,
não me perguntem por quê.
Chegando na praça, fiquei simplesmente encantado.
A maioria era de jovens, e eles já
dominavam as gírias brasileiras. As garotas
eram bonitinhas, apesar de magrelas, e não
tinham buço, como eu havia pensado. Buço
talvez seja coisa de espanhola. Os cartazes
eram fáceis de compreender. As frases, fáceis
de repetir, exatamente como eu gosto.
Para meu alívio, estavam ouvindo Jorge Benjor.
Cheguei num grupinho e falei:
— Sou brasileiro, mas apoio a causa de vocês.
Quero participar do protesto.
Fui recebido com palavras calorosas. Alguns
bateram palmas que logo se multiplicaram
pelo resto do grupo. Entusiasmado, bradei
algumas frases que eu tinha lido nos cartazes.
Ganhei mais palmas e gritos de aprovação.
Me senti acolhido. Tive a impressão, ou
esperança, de que logo faria amigos. Uma
loira me deu um cartaz e me explicou o trajeto
que o grupo faria até a praça Cármen
Miranda. Fiquei feliz em descobrir que também
havia loiras portuguesas. Nas calçadas
laterais, algumas garotas tinham tirado as
camisas e deixavam os garotos escreverem
em suas barrigas. Pelo tamanho dos quadris,
eram brasileiras que tinham aderido ao protesto
por simpatia. Os jovens portugueses,
agitados como crianças, acabaram escrevendo
frases confusas, como “Portugal é aqui”
46
Chicos
e “A língua é nossa pátria”.
Enquanto eu caminhava, com cartaz em punho,
algumas pessoas vieram me abraçar e
tirar fotos. Pelo jeito de falar, percebi que
também eram brasileiros. Posei gentilmente,
mas não fiquei muito tempo com eles. Eu
precisava conhecer pelo menos uma gaja autêntica.
Tinha que haver um par de seios europeus
naquela salada humana. Perambulei
atento, até avistar uma morena franzina,
com um vestido longo e meias cobrindo as
canelas. Só podia ser estrangeira. Me aproximei
lentamente, falei em voz alta a frase que
estava no cartaz dela: “Por um Brasil global!”
Ela me olhou com simpatia, sorriu. Apesar
do barulho, conseguimos trocar algumas palavras.
Portugal já desaparecia do seu sotaque,
embora resistisse bravamente nas sobrancelhas
e narinas. Ela comentou que gostava
muito de Ivete Sangalo. Para não comprometer
aqueles primeiros momentos, fingi
saber o que era Ivete Sangalo. Perto da praça
de destino, falei que eu adorava comidas
portuguesas, como palmito e queijo parmesão.
Ela perguntou o que era palmito. Adorei
seu senso de humor. Pedi para tirar uma foto,
e esperei que ela dissesse algo como
“compartilha no meu Facebook.” Mas ela
não disse nada. Era das tímidas. “Não quer
que eu publique no seu Facebook?”, perguntei,
ansioso. “Pois, claro. Eu estava a ponto
de lho dizer”, respondeu minha bisavó. E,
enquanto ela soletrava seu nome, cheguei a
sentir uma pequena vertigem. Naquele turbilhão
de som e fúria, alguma coisa subitamente
fez sentido. A impertinente realidade
finalmente se pareceu com um dos meus sonhos,
e isso a tornou mais fantástica e mais
real.
Naquele mesmo dia, a portuguesinha conheceu
meu Celta 2010. Semanas depois, foi a
vez do meu quarto-e-sala, de onde pedimos
uma pitsa de palmito. Descobri que palmito
nunca foi uma iguaria portuguesa. Descobri
que a cerveja brasileira podia deixar uma rapariga
intimamente tropical. Só meses mais
tarde fui descobrir que ela não precisava casar
comigo para ter um visto de permanência.
Fiquei confuso e decepcionado. No fundo
nunca entendi contra quê os portugueses
realmente protestavam. Mas claro que isso
não tem a menor importância.
Eu protestava contra a solidão. Por um momento
venci.
47
Chicos
Emerson Teixeira
Cardoso
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles
(2001) poesia, coautor de A casa da Rua
Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O
retorno do nativo de Thomas Herdy. Sempre
ativo em publicações literárias. Iniciou-se em
Estilete (1967), mimeografado, editor/fundador
do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul (1997).
Feliz homenagem
“– Seu Peixoto não está prestando
atenção, não é? Adiante! Já não falei que
não quero conversa aqui dentro? Ascânio
lá na cadeira dele fungava segurando o riso
com o lenço, gozando como um perdido a
bruta chamada.”
Assim termina o artigo que ele assinava para
Verde nº 1 – Segunda edição especial em
homenagem a Ascânio Lopes, seu companheiro
morto “verdolengo” ainda no dizer
de Mário de Andrade. Nome que segundo
ele mesmo parecia de firma comercial.
Para nós que viríamos a conhecê-lo algumas
décadas depois – umas três décadas nas
poucas visitas que fazia ao colégio onde estudávamos
e onde foi diretor de 1943 a
1963- nos aportamos por lá em 65 – era
doutor Francisco, o Chicão Peixoto ou simplesmente
Chicão.
Assim enfim, terminava o artigo desse jeito
um tanto maroto, destoando daquela forma
tristonha, protocolar. Salta aos olhos o tom
nada cerimonioso, lacrimoso com que os outros
companheiros neste número da revista o
homenageavam e que o escritor paulista criador
de Macunaíma classificou de verde nova.
Naturalmente que a esta altura do campeonato
a lembrança do amigo muito recentemente
desaparecido ainda causava comoção.
Como não? Mas menos intencionalmente
ou morbidamente sombrio talvez condizente
com o espírito moderno.
Francisco Ignácio Peixoto preferiu não ir ao
muro das lamentações descrevendo-o nas
suas lembranças de um modo bem descontraído,
quase alegre: “Ria muito, que ele
gostava de rir”.
Detalhe que observei lendo a biografia Ascânio
Lopes, todos os caminhos possíveis, de
luiz Ruffato. Compreendi haver entre ele e
os demais companheiros este contraponto
interessante, esta visão contrastante que se
distancia do senso comum que determina
que um samba, ou no caso em questão uma
homenagem a alguém que estimamos ou
48
admiramos intelectualmente tem que ser triste.
Inconsciente ou intencionalmente o companheiro
da Verde de Ascânio talvez nos quisesse
dizer isso.
Vale lembrar o que disse outro poeta de nosso
cancioneiro popular: ” Louvando o que
bem merece deixando o ruim de lado”.
Mas ainda deve-se acrescentar acerca da peixotal
figura que a uma rua vizinha daqui
também dá seu nome e que esta escola homenageia.
Por obra e graça suas, a cidade
encheu-se de projetos de arquitetura com
propostas modernas. Nas suas ruas e praças
apareceram obras de pintores e escultores
celebres depois que nos finais da década de
40 ergueu-se esta instituição modelar de ensino
que foi o ginásio de Cataguases, não
por acaso iniciativa sua unida ao espírito empreendedor
dos irmãos. O projeto arquitetônico
foi entregue a Oscar Niemeyer, o mesmo
que traçou as linhas de sua residência na
Rua do Pomba. E vieram Portinari, Bruno
Giorgi, Bologna, Medeiros, Tenreiro, Djanira,
Brecheret, Di Cavalcante. Mercier trouxe
da Grécia a inspiração para o painel que
deixou sem a sua assinatura.
Por ali circularam mais de uma dezena de
intelectuais do naipe de Lúcio Cardoso, Vinícius
de Morais, Aldary Toledo, Marques Rebelo,
Fernando Sabino e outros de seu grande
e seleto círculo de amizades.
E o que mais fez Francisco Ignácio Peixoto?
Chicos
Fez de Cataguases uma referência obrigatória
para aqueles que almejam conhecer toda
a história do modernismo no Brasil. Fincou
os alicerces e de maneira continuada permitiu
a sua evolução na consolidação do edifício
de sua aventura cultural.
Faria mais sentido perguntar o que não fez.
Escreveu pouco, mas deixou um capital literário
admirável que passa pela poesia, o conto,
impressões de viagem, tradução e ainda
exerceu a docência na sua inesgotável paixão
humanística.
Aqui Francisco Ignácio morou até morrer em
1986.
Na sua metade do livro que com Guilhermino
escreveu lá nos anos 20 dizia traduzido
do francês.
Bercense
Há uma carícia sutil
No meu quarto
A chuva indiscreta
Vai contando
Na melancolia ingênua de uma goteira
A tristeza que há lá fora
“Alegria de pensar que a vida é boa”
Talvez se sentisse assim ao se despedir da
cidade onde nasceu e que fez crescer fecunda
abrindo os braços para o futuro e para
todos e tudo que era novo. E como o novo,
o amor às coisas belas.
49
Chicos
José Antonio
Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A
casa da Rua Alferes e outras crônicas (2006) e
autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
Pelas mãos de Ady Resende
Início dos 70, quase no apagar das
luzes do segundo milênio. Eu e meus até hoje
amigos ginasianos estudávamos no Colégio
Cataguases, frequentávamos uma sala
enorme, onde no tempo do internato fora o
refeitório. Aquele espaço ficava à direita da
entrada principal do prédio. Foi lá que aconteceram
meus primeiros contatos com a escola.
Assisti, antes de me tornar aluno, o primeiro
filme de Humberto Mauro. Também
ali fiz a prova de admissão ao ginásio. Já aluno,
em alguns intervalos, zanzávamos pela
porta do imenso salão, perturbando a vida do
João Cordovil, o homem que tocava o sino.
Sino substituído por uma maldita sirene que
apelidamos de Alarme de Alcatraz. Naquele
espaço conhecemos o mestre Ady Resende.
Pelas mãos do professor, começamos nossas
aulas de desenho, primeiro à mão livre para
aprender a segurar o lápis, coisa que achava
já saber, e firmar o traço; depois o geométrico;
mais adiante as barras gregas. Um dia o
mestre mandou as gregas para as calendas e
mergulhamos na artesania popular. Aprendemos
a confecção de peças de piaçava, palha,
cestaria de taquaruçu; descobrimos no observar
de suas mãos que a esperta além de forquilha
para fazer atiradeira, era ótima para se
entalhar pequenos objetos.
Ainda pelas palavras do pintor, aprendi que o
amarelo não era apenas a cor da fome e da
nossa seleção de futebol, o vermelho não era
somente o da raiva e da vergonha, o azul não
era só o da piscina nem o de metileno, eram
(acho que ainda são) as cores primárias. Com
ele descobri que olhar uma obra de arte é um
mergulho para dentro de si mesmo, imersão,
observação de cores e formas que o artista
usa para expressar suas emoções. Se não
conseguimos ver além da tela e da moldura,
ou não estamos diante de uma obra de arte
ou mandamos às favas a nossa sensibilidade,
retornamos ao tosco.
Naqueles tempos, em que nas aulas de português
com Nilton Rossi e Márcia Carrano ainda
predominava a gramática, foi olhando para
Rembrant, Matisse, Van Gogh e Toulouse
Lautrec na sala de aula, Candido Portinari,
Paulo Werneck nas paredes, Jan Zach nos
jardins e para aquela singela coleção de arte
popular do colégio, me encontrei com a poesia
por meio das imagens.
50
Chicos
Recentemente, para minha surpresa, uma
exposição individual do nosso mestre aconteceu
lá no Chica. Fiquei feliz em ver pela
primeira vez parte da obra do pintor Ady Resende.
Tinha visto seus trabalhos apenas em
algumas coletivas e em duas visitas
(separadas por quase duas décadas) à sua
residência, e encontrei ali suas figuras humanas
sem rosto, o que as tornam angelicalmente
assexuadas, quase em uma antevisão
do mundo contemporâneo em que tanto se
discutem a questão e a quantidade de gêneros.
Vi figuras populares que se agigantam
contra o preconceito dos que os querem inferiores
como se fossem dalits das castas indianas.
Vi figuras que flutuam a transmitir
ideias em praças e ruas indiferentes.
Pelas mãos do professor e artista plástico
Ady Resende, humanista de convicções firmes,
continuamos a aprender e compreender
arte por meio de suas metáforas visuais ou
sua conversa franca pelas ruas de Cataguases.
De: Fantasias de Meia Pataca (2013)
Nota do autor: Na rua em que moro, na fachada da
Sede dos Vicentinos, encontra-se este mosaico de
autoria de Ady Resende
51
Antônio Jaime
Chicos
Soares
Nasceu em Cataguases - MG, lá na Chave.
Participou de um dos movimentos culturais
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC.
Depois de morar um longo tempo no Rio de Janeiro,
onde entre outras foi redator de publicidade.
Retornou a Cataguases direto para a Vila.
Poeta e cronista publicou Pedra que não quebra
(crônicas - 2011)
Moléstia à parte
52
‘Moléstia à parte’ é trocadilho
que cometi e depois li em Millôr Fernandes.
Coincidência, mas... logo ele, que
bradou em entrevista ao Pasquim que
trocadilho é a forma mais indigente de
humor, ainda que tenha perpetrado uns
bem razoáveis. E um cataguasense que
conviveu com Millôr e todos aqueles craques
editou livro 100% trocadilhesco,
nenhum sequer razoável. Em poesia, inclusive
na terra de Francisco Marcelo Cabral,
uns e outros abusam desse recurso.
Uma vez em Marte, outra na morte, vá
lá, até tolera-se, faute de mieux. E Edmund
Wilson disse que naquela requintada
mesa do Hotel Algonkin não havia
tanto requinte assim, pois seus membros
trocadilhavam em excesso. Em boteco,
fico com Carlim Moura, quando Nikinha,
um cachaceiro, acariciou seus cabelos
dizendo que ele era bonito. Falei:
‘Arrumou pra hoje, hein, Moura’. E este:
‘Quem não come o Nika, se trumbica’.
Mas quero falar de outra coisa.
Rapazote, guardei na memória frase de
trailer de filme com Frank Sinatra levando
porrada de uma gangue e, no que
abre os olhos, se depara com toda aquela
exuberância de Gina Lollobrigida. E o
locutor diz: ‘Sinatra encontra a Lollobrigida...
Quando Explodem as Paixões’. A
conclusão da frase é o título do filme,
que aparece em letras gigantes. De cara,
levou o espectador a intuir que Gina é
motivo mais que suficiente pro mocinho
liquidar aquela bandidada, custe o que
custar. E levar família & amigos & vizinhos
pra ver, tudo pagando ingresso.
Moléstia à parte, repito, mais tarde escreveria
centenas de locuções, roteiros de
trailers e comerciais de rádio e TV, sempre
naquela de criar um gancho pra atingir
a sensibilidade do espectador.
Gimmick é o nome técnico desse
‘gancho’, e texto literário também pede
tal artifício. Vide Ana Karenina, que inicia
com uma sacada que ficou famosa:
“Todas as famílias felizes são iguais. As
infelizes o são cada uma à sua maneira”.
Tolstoi, autor do livro, foi acusado de
plagiar Madame Bovary, não discuto,
lembrei dele apenas pra dar exemplo de
um livro bem começado.
Chicos
Quis o destino que meu último trabalho
em propaganda, quando re-voltado a Cataguais,
fosse a locução do trailer e comercial
de um filme. Diante de cena absurda
(em meio ao enterro o defunto levanta-se
no caixão), veio-me uma frase
que contém uma promessa que tem sua
força: Tudo pode acontecer quando soar
O Toque do Oboé, sendo a conclusão da
frase também o título da fita. Um oboísta
chega ao lugar e este sai do marasmo: a
zona volta a funcionar, assim como o cineminha,
até lances cruéis, do tipo: o
ressuscitado se apaixona por prostituta
idosa que fica paralítica e quando a outra
diz ‘levanta-te e anda’, ela se estabaca
escada abaixo.
Fita brasileira rodada no Paraguai, elenco
de paraguaios, argentinos e Paulo Betti.
Médio, mas ganhou prêmios no Canadá
e Estados Unidos, lá chamado de
‘neorrealismo fantástico’. E, moléstia à
parte, trepito (cortesia de Álvaro A. Antunes),
eu, que escrevia pra multidões do
Brasil inteiro, hoje edito este jornaleco
que, acho, só tem dois leitores: José Antonio
Pereira e Fernando Abritta, os únicos
que deram retorno. Em tempo: este
número sai três meses antes pra compensar
um semestre em que não circulou.
Daqui a três meses sai outro e fica o dito
pelo não dito.
Em Sapeca n° 10
53
Chicos
Vanderlei Pequeno
Nascido em Cataguases MG, músico, compositor,
escritor e ativista cultural Autor da Lei Ascânio
Lopes (Lei de incentivo a cultura de Cataguases)
Escreveu entre outros: 50 Casos do nosso
futebol, Casos e acasos e coautor de A Casa
da Rua Alferes
Ady Resende, o Professor Artista
Há poucos instantes, assisti uma breve
entrevista com o artista plástico Altamir
Soares, falando do seu apreço pela figura do
nosso admirável Ady Resende, ido recentemente.
Altamir revela, no seu depoimento a
Emanuel Messias que, nos encontros com o
professor, fazia questão de dizer alto e em
bom tom: “Mestre Ady Resende! ”
Imagino a cena: um ex-aluno, agora conhecido
artista plástico, expressando no seu
cumprimento, de forma franca e aberta, o
reconhecimento da contribuição recebida do
professor. E é isso mesmo que nos acontece.
Professores e ensinamentos ficam em nós,
indissociáveis. Educador e sua obra amalgamados,
ajudando a formar uma nova pessoa,
quiçá um novo artista, para viver, sofrer e
quem sabe, explicar aos mortais as dores e
delícias do mundo, esse mundo que continua
girando em torno do sol.…e nos transformando.
O poeta Manuel Bandeira, no seu poema “A
Morte Absoluta” diz: “Morrer mais completamente
ainda, - Sem deixar sequer esse nome.
” Não há dúvida, essas palavras calam
fundo no peito de muitos artistas, vítimas do
não-pensamento, da insensibilidade, e muitas
vezes, das ações despropositadas, intempestivas,
abjetas, da chamada raça humana.
Digo isso porque – desgraçadamente – eu
via no professor Ady um homem, de certa
forma, decepcionado, descrente do mundo,
da vida presente que se lhe apresentava,
com todo o seu viés de crueldade e injustiça.
Sentia isso pessoalmente. Muitas vezes, num
sorriso incrédulo, ele manifestou sua indignação
com o costumeiro subsalário pago por
aqueles que sua classe ajudara a colocar no
poder. “Criamos feras para nos morder. O
Professor acende a luz, o ex-aluno devolve
as trevas. Salários aviltantes e ainda pago
em parcelas. Uma humilhação. ”, reclamava.
54
Chicos
Essa decepção com o Estado Brasileiro,
sentimento comum a muitos neste país excludente
e injusto, por vezes tomava o coração
do mestre. É o preço que pagam aqueles
que optam de cuidar da formação das pessoas,
através do exercício de sua profissão.
Cuidassem eles de fazer negócios, acompanhar
as taxas de juros, o Movimento da Bolsa
de Valores, o mercado imobiliário e as
melhores aplicações no mercado financeiro,
certamente, estariam menos comprimidos e
desejosos de apear desse mundo..., mas, não
mereceriam uma crônica...
Do lado de cá, e indignação à parte, posso
afirmar, sem medo de errar que nosso Mestre
recebeu da comunidade cataguasense o
carinho e reconhecimento pelo que construiu
no campo da educação. O nome Ady Resende
está cravado no imaginário dos que os
conheceram ou viveram o Colégio Cataguases,
nas décadas de 1950, 1960 e
1970.Como bem pontuou seu ex-aluno, José
Tarcísio Lima, "Ele era a face lúdica de nossos
primeiros passos lá no Colégio". Foi ali,
subindo e descendo a pé o morro e ministrando
suas aulas que o franzino professor
entrou para a história do nosso município
como um grande homem. Era o professor
artista e o artista professor. Pintava, produzia
tapeçarias, artesanatos e, mais importante,
convencia os mais sensíveis de que o mundo
só é possível com arte. Arte, arte, arte, da
cabeças aos pés; do primeiro dia do ano ao
Réveillon; do primário ao último conhecimento
adquirido.
Professor Ady pode descansar em paz! É
certo que o senhor ajudou a revelar, com o
poder de suas aulas, centenas de artistas em
nossa cidade. Naturalmente, “muitos se perderam
no caminho”, mas outros aprenderam
que arte não é natureza, é transformação,
construção de significados novos para coisas
existentes, reais ou abstratas. Assim, os escultores,
pintores, músicos, cineastas, os fotógrafos,
escritores, - obras suas - estão por
aí, vivos, criando, revelando através da arte,
o filme da existência humana. Correto, professor,
não existiria humanidade sem arte.
Banzai nas estrelas!
(Fica essa modesta crônica dedicada aos professores
e professoras do município e que
continuem levando consigo a certeza de que
o trabalho do educador é complicado, estafante
e não tem o merecido reconhecimento,
mas a obra completada é divina: Gente.)
55
Luiz Ruffato
Chicos
Nasceu em Cataguases MG, reside em
São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria
destacam-se: Eles eram muitos cavalos,
de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido
pela Associação Paulista de Críticos de Arte e
o Prêmio Machado de Assis da Fundação
Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou
um escritor reconhecido no país. Em 2011
concluiu o projeto Inferno Provisório, com a
publicação do romance Domingos Sem Deus,
iniciado com Mamma, son tanto Felice em
2005, composto por cinco livros sobre o operariado
brasileiro.
Lendo os Clássicos
Um episódio distante (1946-1993)
Paul Bowles (1910-1999) - ESTADOS UNIDOS
Tradução: : José Rubens Siqueira
Rio de Janeiro: Alfaguara, 2010, 230 páginas
56
Chicos
Este volume reúne 13 contos, publicados
entre 1946 e 1993, que se passam nas mais
diversas partes do planeta. Este fato, que poderia
ser simplesmente um capricho, a procura
de cenários exóticos para emoldurar as histórias,
torna-se, nas mãos do Autor, um elemento
fundamental para a consubstanciação das
narrativas. Isso porque, em sete dos contos, os
protagonistas são norte-americanos imersos
em culturas que não dominam, e, portanto,
submetem-nas ao escrutínio de um olhar estrangeiro,
ignorante. Assim é com o professor
universitário sequestrado por tribos berberes
("Um episódio distante") ou com o casal
de irmãos isolados à beira do rio Níger
("Muito longe de casa"), ambos tendo como
cenário o deserto do Saara, no Mali; e ainda
com a melancólica escritora que se deixa levar
para uma aventura adolescente nas montanhas
do Marrocos ("Chá na montanha"), os três de
boa fatura. Ou então nos excelentes "Parada
em Corazón" (descrição do fim de uma relação
amorosa em plena lua-de-mel no meio da
selva do extremo norte da Colômbia);
"Páginas de Cold Point" (relato da descoberta
pelo pai da homossexualidade do filho, durante
um período de residência num lugar isolado
do litoral de Belize); "O pastor Dowe em Tacaté"
(o confronto de um pastor pentecostal
com nativos das florestas sul-americanas, a
quem tenta impingir, sem sucesso, sua religião);
e "No quarto vermelho" (o contato com
um homem, no Sri Lanka, que guarda no passado
um crime terrível). Dos outros seis contos,
que não são protagonizados por norteamericanos,
destaco ainda dois ótimos: "Em
Paso Rojo", uma aproximação à crueldade e
ao preconceito de brancos contra não brancos
no interior do México, e "A presa delicada",
uma narrativa de violência e vingança entre
tribos nômades do deserto, no interior de Marrocos.
Os outros quatro, todos passados no
Marrocos e protagonizados por personagens
árabes ou berberes, são apenas bons: três são
relatos de histórias vivenciadas em estado de
embriaguez provocado pelo consumo de kif
(um narcótico parecido com o haxixe): "Ele da
Assembléia", "Allal" e "À beira da água"; o
quarto conto é uma pungente história de
abandono, "O escorpião".
Curiosidade:
À página 116 o Brasil é citado, quando o pastor Dowe "(do conto "O pastor Dowe
em Tacaté") relembra sua vida: "(...) a tarde ensolarada em que o tinha comprado [um estojo de
óculos] em uma ruazinha do centro de Havana; os anos agitados nos montes do sul do Brasil (...)".
Embora, sinceramente, não seja possível, pelo menos para mim, imaginar o que seriam esses
"montes do sul do Brasil"...
Avaliação: OBRA-PRIMA
Dezembro, 2019
57
Chicos
Andressa Barichello
Nasceu em São Paulo - SP, atualmente mora
em Portugal. É autora do livro Crônicas do Cotidiano
e outras mais (Scortecci, 2014). É cofundadora
do projeto fotoverbe-se.com.
Chegadas e partidas
Na semana da minha chegada a
Portugal (ou seria do meu retorno a Portugal?),
recebi o convite de Ronaldo para
fazer a apresentação do seu novo livro.
Quando se trata de livros e de leitores
não acredito seja possível separar obra e
contextos de leitura. Então, a pergunta
com que ingressei no texto foi: onde estará
nesse livro o ponto de convergência
que Ronaldo intuiu que houvesse entre
esse momento do meu percurso e o percurso
feito por ele enquanto autor para
entregar-nos esse trabalho com o qual
sou convidada a dialogar? Por que é que
eu, nesse exato momento, sou a pessoa
que seu desejo aponta como, digamos,
leitora privilegiada?
Sento-me num café no bairro Saldanha
(ainda não tenho casa ou mesa de
trabalho). O ficheiro recebido chama-se
“Anexo sem nome” e o título com que
me deparo é: O mundo sem explicação.
Tomo consciência do título da obra
dessa forma visual; porque o convite feito
por Ronaldo não teve, também ele,
grandes explicações. Pergunto-me: será
que o acaso que batiza o sem nome do
ficheiro serve também ao sem explicação
do mundo, contido no título da obra
e na própria forma como a construção
dessa apresentação agora se faz?
Os poemas de Ronaldo em O mundo
sem explicação colhem o acaso para
transformá-lo em poemas de afronta.
Afronta a tudo isso que insiste em querer
tirar homem e mulher do seu prumo.
O prumo pode ser a barra que serve
de anteparo, mas também diz da graça,
da elegância e do juízo. Ronaldo escreve
sem barras: contra e a favor das coisas
que nos fazem enlouquecer, como quem
sabe que a loucura, em tempos de absurdo,
pode equivaler a mais fina sensatez.
Leio um trecho do poema TEMPUS
FUGIT, que está na página 21:
Tudo inóspito
como a vida
enquanto a memória,
essa anfíbia criatura
visitando passado e presente,
rege a sinfonia
do caos
58
Chicos
Os poemas escolhidos para compor o
livro transitam entre o passado e o futuro,
mas situam-se no presente, com os
dois pés. Por isso, arrisco dizer que
O Mundo sem explicação é, lá pelas
tantas, assemelhado ao nosso próprio
corpo; ele também é em partes, avança
e vai sendo talhado e consumido pelo
tempo, pela matéria.
No poema PASSAGEIRO DA VÉS-
PERA o autor diz-nos que “a velhice,
com as garras afiadas, é um país de
muitas incertezas”.
De que velhice quer tratar o poeta?
Seria a do corpo? Ou apenas essa?
Ou será que pode ser a velhice de
um país? Um país que quanto mais envelhece
mais incertezas traz; um país
cujas garras de um passado sombrio teimam
em tentar nos alcançar?
A palavra, assim, vai fazendo uma
jornada pelos valores que norteiam a
vida íntima de cada um e a falta de valores
que norteia o mundo onde restaram
só os valores como sinónimo de
cifrões, e onde caberia aos poetas o
exercício de tentar decifrar as cifras, tomando
partido dos trocadilhos, das rimas,
da sonoridade. Intimidade e política
se misturam e sublinham que a nossa
existência possível é sempre o resultado
daquilo que somos e do meio onde estamos.
A linguagem, assim, é transformada
em estratégia política e, mais do que
isso: em estratégia de guerra; as guerras
que, assim como o mundo, são também
coisa sem explicação.
Se o ler poesia é uma batalha por colecionar
o sem explicação, é por meio
de uma quantidade generosa de epígrafes
que Ronaldo partilha com o leitor
alguns dos poetas com quem conversa;
vozes, vozes e vozes e o que pode nascer
como desdobramento da palavra
empenhada num verso ou num ato; seja
ele concreto ou simbólico.
Evocar poetas, tocar em seus nomes
como quem toca em nomes amigos ou
numa pedra filosofal! Um livro generoso
em epígrafes, sim, talvez porque seja
preciso relembrar que o labor do poeta
é solitário, mas não se faz sozinho, ainda
que as tecnologias nos isolem sempre
e mais do contato com o outro e
também com as páginas físicas do objeto
que hoje celebramos, o livro.
E por falar em celebrar, os poemas
de "O mundo sem explicação" parecem
cadenciados no compasso de uma vida
que é, em si mesma, um mundo: intervalos
de normalidade entrecortados ora
pelo horror e ora pela epifania, sem que
muito se possa fazer além de apresentar
o que se vê e o que se pensou daquilo
que se viu.
Quanto às tais tecnologias que nos
apartam, quero destacar que na página
146 encontro no poema "Nesses tempos
de Fakenews" um verso que dá nome
ao título da obra e isso, estranhamente,
faz-me sentir satisfação semelhante a de
quem encontra uma palavra num caçapalavras.
O meu prazer talvez provenha
do fato de que, na minha fantasia leitora,
esse poema confirma que o pulso do
livro tem muito que ver com o Brasil de
agora. E como fazer da distância uma
lanterna que ajude a iluminar aquilo que
o torpor disfarça. Buscar os rastros do
próprio país será condição comum a todo
estrangeiro, a todo emigrado?
59
A poesia de Ronaldo, em O mundo
sem explicação, é uma poesia de migrações
e uma poesia de “mostragem” e
de amostragem: enquanto provoca o leitor
navegando em mares revoltos, o comandante
de alguma forma já dá a ideia
de que aquilo para o que seu dedo
aponta não é tudo que nos cerca. As
águas, aliás, são abundantes no livro:
quantos rios brotam na poesia de Ronaldo?
Ou, quantas veias e veios se ramificam,
sem sabermos se o que corre ali é
sangue, lama, lágrima ou apenas água
cristalina?
"Existir é desatino", vai Ronaldo dizer
noutro momento.
Chicos
Temos um poeta descrente do poder
de Deus e da pacificação dos seres humanos.
Que não pode acreditar noutra
coisa senão na palavra, no convite, naquilo
que chega de estrangeiro.
Ou do estrangeiro, quem sabe?
Pois bem: talvez passe um pouco por
aí por qual motivo eu, recém-chegada a
Portugal, fui a escolhida para a escrita
deste texto de apresentação. Apresentação
desse que é um livro recémchegado
ao papel. E aos leitores e leitoras.
"A poesia recolhe os paradoxos", é o
que Ronaldo nos diz, e fico a pensar se
acaso enquanto houver viagem ou possibilidade
de viagem seria possível pararmos,
seria possível dizer:
“cheguei”. Talvez mais valha o “chega”
que é imperativo, o chega que é BAS-
TA! Um basta que só precisa ser escutado,
que não precisa de explicação; como
o mundo, a literatura e a potência
da poesia.
60
Chicos
Ronaldo Werneck
Nasceu em Cataguases, onde mora atualmente. Poeta
e jornalista, colaborou em vários jornais e revistas
cariocas. Publicou entre outros os livros: Poesia -
Selva Selvaggia (1976), Pomba Poema (1977), Minas
em mim e o mar este trem azul (1999) Minerar o
Branco (2008), Cataminas Pomba e outros Rios
(2012) e O Mar de Outrora e Poemas de Agora
(2014). Prosa - Há Controvérsias 1 (2009) , Há Controvérsias
2 (2011), Rosário Fusco por Ronaldo Werneck/
Sob o signo do imprevisto (2017) e o ensaio
biográfico “Kiryrí Rendáua Toribóca Opé” Humberto
Mauro Revisto por Ronaldo Werneck
Chico “Duarte” & Essa Gente
Pois eu, com a devida licença, o li de lê-lo em
três sentadas. Literalmente: minhas melhores
leituras, as mais atentas, são no banheiro,
onde tenho uma pequena biblioteca: livros,
jornais, dicionários, canetas, moleskine.
Qualquer dia levo o laptop e não mais
saio.
Você já viu Bacurau? Essa a pergunta recorrente
que volta-e-meia volta e volta novamente
de forma joco-séria a cada apresentação
do Greg News, o impagável seated down
show de Gregório Duvivier. Você ainda não
viu? Nem o programa e nem o excelente filme
de Kléber Mendonça Filho?
Kléber é um nome de destaque no cinema
novo de Pernambuco, agora já internacional,
de quem aprendi a gostar, e muito, desde
o imperdível O Som ao Redor, visto há
vários anos no Recife, com direito ao meu
amigo, o multimídia artista W.J. Solha, em
brilhante atuação. Bacurau é o máximo e repito
aqui a pergunta-obsessão de Duvivier:
você já viu Bacurau?
E Essa Gente, o último e ótimo livro de
Chico Buarque? Você ainda não leu Essa
Gente? Puxa, nem Bacurau nem Essa Gente?
Hábito antigo, ali habito desde os idos de
minha mocidade. O que me deixou/deixa
marcas até mesmo cirúrgicas e para sempre
ao sul e por detrás do Equador: mazelas hemorroidárias
(evoé, Rosário Fusco!) hoje já
devidamente incorporadas ao cotidiano. Ali
habito, repito, cerca de hora e meia a cada
dia. Lembro de uma namorada das antigas
que me dizia sempre: “A melhor hora do dia
é quando você sai do banheiro”. Há Controvérsias.
61
Chicos
Um híbrido
Mas vamos a Essa Gente, que é um híbrido
onde poções de realidade invadem o texto
ficcional. E de repente camadas de ficção costuram
o tecido da realidade. “Há pontos de
contato entre Chico Buarque e o protagonista
de Essa Gente. Além de escritor, Manuel Duarte
tem esse sobrenome de perfil vocálico
idêntico e gosta de bater pernas atrás de inspiração
pelos arredores do Leblon”, diz Sérgio
Rodrigues no texto das orelhas.
Mas a coisa para por aí. Essa Gente é e
não é um roman-à-clef, pois nele personagens
e fatos são alternadamente reais e inventados.
Muitas vezes a trama, centrada na homofonia
Duarte/Buarque, resvala para um tom aqui e
ali bem-humorado, aqui e ali policialesco –
retratando não só conflitos internos como a
brutal realidade do Rio de Janeiro (do país?)
de hoje em dia.
Exatamente de hoje em dia, pois se o livro
abre com uma carta de Duarte para o seu editor,
datada de 30 de novembro de 2018, ele
fecha com uma reportagem “policialesca” de
um jornal, datada do futuro 29 de novembro
de 2019. Quer dizer, de ontem, de anteontem,
de agora mesmo, de hoje-amanhã. E é nessa
curta defasagem de um ano que vamos acompanhar
as desventuras do escritor, suas dúvidas,
suas dívidas, seus impasses, mulher, mulheres,
filho. Como pano de fundo, um Rio
onde Essa Gente passa pelo diabo, quer dizer,
por onde nem sempre o diabo quer passar.
Entrecortado por entretítulos relativamente
curtos, de pouco mais de uma página, às vezes
nem isso, a partir das datas que situam a narrativa,
Essa Gente é de leitura fácil e envolvente.
Fácil em termos, pois Duarte/Buarque
tem a escrita fina e afinada e de repente saltam
do texto coisas como “A fim de emagrecer,
começou um tratamento com enzimas, e
me pergunta se notei que está falando em rimas”.
E, logo à frente: “Como na época do
nosso namoro, ela se diverte, saltita, ri que ri,
faz trocadilhos, me desafia com palíndromos
assim: sonsa Maria Clara vê: de varal caíram
asnos”.
Quando Duarte sai a perambular pelas ladeiras
do Leblon para tentar jogar fora o revólver
– que sua ex-mulher Maria Clara, suicida
em potencial, guardava – a narrativa, impregnada
da mais pura realidade, capta o desvario,
a raiva ensandecida, o ódio, a violência que
assola um Rio (um país?) assomado por armas
e mendacidade:
“Na calçada estreita e escura, sigo meu
caminho com o revólver na mão, sem perigo
de topar com pedestres a esta hora da madrugada.
Sinto-me invisível até que o segurança
da casa do cônsul japonês me saúda:
– É isso aí, mestre! Tem que acabar com a
raça desses bandidos!
O vozeirão ecoa, e logo surgem vultos nas
janelas, gente que ergue o polegar e aclama:
–Estamos juntos, guerreiro! Contamos contigo,
campeão!”
Mas logo depois Duarte “dormia, dormia
noite e dia, sonhava com o presidente da República,
só tinha sonhos mórbidos”.
O sim e o desagrado
O Chico de fina estampa surge assim como
quem não quer nada, jogando erudição quando
em carta para um dos editores cita um dos
poemas do “poeta mais caro” dele (do editor
ou dele mesmo, Duarte?), aquela “faca só lâmina”
de João Cabral (in “A Willy Lewin,
morto”): “você ainda é o fantasma de quem
busco o sim e o desagrado”. Na verdade, a
estrofe que fecha o metapoema cabralino é
“foste ainda o fantasma/ que prelê o que faço/
e de quem busco tanto/ o sim e o desagrado”.
62
Chicos
Mas, bom leitor, Chico sacou dela o essencial,
a palo seco.
Pausa para um pequeno orgulho: em 1988,
João Cabral me autografou da seguinte forma
o seu “Museu de Tudo e depois (onde se encontra
o poema para Willy Lewin): “Para Ronaldo
Werneck, poeta de Cataguases, terra de
tantos poetas, o abraço de João Cabral de Melo
Neto”.
dívidas assim como nós... Através da precária
caixa de som, a voz lamentosa do padre parece
me corrigir: perdoai as nossas ofensas assim
como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido. Mudou o padre-nosso, mudou a liturgia,
mas todas as igrejas que conheço têm
desde sempre o mesmo cheiro”.
Bingo! Minha irmã Rosa que é catequista
e, se tivesse nascido Ronaldo, seria com certeza
o pároco de Cataguases, me diz que agora
é assim mesmo que reza o padre-nosso de
meus tempos de coroinha da igreja-matriz de
Santa Rita. “Perdoai as nossas dívidas, perdoai
nossos devedores”? Isso não se faz, devem ter
reclamado banqueiros e agiotas. E deu no que
Deus. E Deus dará: E não vou me indignar e
chega.
Zelo de mãe
De repente, Chico faz uma observação cortante,
como se Duarte falasse dos cacoetes do
telejornalismo da GloboNews & adjacências:
“– Por que na praia?”
O rábula adota a velha retórica doutoral de
fazer pergunta a si mesmo, tendo as respostas
na ponta da língua:
–Porque nossos telefones estão grampeados...”
Parece coisa déjá-vu, artifícios dos nossos
telejornais, ou aquele macete recorrente quando
o âncora faz uma pergunta com a resposta
já embutida sobre qualquer assunto e o repórter
abre a sua resposta com aquele esperado
“exatamente, fulano/a...”.
Dívidas ou ofensas?
Há horas em que me vejo nas indagações
de Duarte, quando observa: “Perdoai as nossas
Espero não estar dando spoiler, essa palavrinha
incensada, que viralizou na mídia – e
nada mais é que uma extensão das famosas
dicas criadas por minha amiga, a poeta Olga
Savary, no Pasquim dos anos 60. Mas eis que
lá pelas tantas, filosofa Chico Duarte:
“Com certeza minha literatura seria outra
se, em vez de gastar sola de sapato por caminhos
já trilhados, eu permanecesse imóvel feito
um boneco, a observar o movimento das
ondas, o mar encarneirado, jubartes, golfinhos,
a agitação na praia sob o sol outonal.
Seria quase como se, ao invés de impor minha
escrita ao papel, eu visse o papel deslizar sob
a ponta de meus dedos”.
63
Chicos
O papel deslizar sob a ponta de meus dedos:
o livro tem muito desses insights, que saltam
súbito das entrelinhas, assim como quem
não quer nada. Ou coisas como “deslizando
bolhas alfabéticas que não tardo a decifrar”. E
Chico Duarte se emociona e nos comove nessa
cena onde vê o filho adormecido antes mesmo
do terceiro verso de “Manhã, tão bonita manhã/
Na vida uma nova canção” que cantava
para ele:
“Ainda escuto umas ligeiras batidas de
funk, e só então percebo os fones, que retiro
de seus ouvidos com zelo de mãe. Reprimo a
vontade de passar os dedos entre seus cabelos,
como mamãe passava entre os meus, igualmente
encaracolados: meu filho”. Esse “meu
filho”, como diria Drummond, bota a gente
comovido pra diabo.
Até aqui, meu Chico preferido era o de
Budapeste. Agora, Essa Gente perambula comigo.
E aí, gente, vocês ainda não leram Essa
Gente?
64
Chicos
Ronaldo Cagiano
Nascido em Cataguases, autor, dentre outros,
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília
de Produção Literária 2001), O sol nas feridas
(Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom
2012) e Eles não moram mais aqui
(Contos, Prêmio Jabuti 2016), vive atualmente
em Portugal.
Quando a morte dirige a vida
É preciso matar os mortos,
outra vez,
os mortos.
Herberto Helder
Em O privilégio dos mortos (Ed. Patuá,
SP, 2019), Whisner Fraga contabiliza os passivos
emocionais, as inquietações existenciais e
os questionamentos filosóficos de um personagem
emaranhado no cipoal de suas perplexidades,
ao mesmo tempo em que faz o registro
contundente das mazelas, déficits e contradições
da história recente do País.
Tendo como pano de fundo a visita ao túmulo
de Heitor, o amigo q3ue conheceu nos
tempos da faculdade e que morreu precocemente
vitimado por um insidioso câncer pulmonar,
esse personagem que não se identifica, mas nomeia
um repertório de angústias e pequenos
dramas, enceta um denso e 3tenso diálogo com
Helena. Numa interlocução visceral e reflexiva,
desnuda-se não apenas o percurso que o levará
a uma ancestral Tejuco, onde ele está sepultado,
mas toda uma trajetória de vida que atravessa
os diversos tempos e ocorrências da cidade, da
família, dos convívios e das mudanças de um
Brasil que viveu rápido escalonamento de valores
e sofre os rescaldos pós-ditadura.
Em um mergulho profundo que emerge de
sua relação conflituosa com o meio e seus contrastes,
um narrador angustiado vai deslindando
perfis, escarafunchando segredos, especulando
dilemas, dissecando crises, analisando momentos
distintos da vida pessoal e coletiva, sempre
com um tom de escrutínio do desconforto e do
deslocamento que sempre o perseguiram, seja
no cerne familiar, na ambiência escolar ou nas
relações sociais e afetivas.
Ao chacoalhar o passado e remover os entulhos
e contingências de um presente cada vez
mais consumido pela fumaça de seu desalento,
em que os mortos governam os vivos, o narrador
expõe as fragilidades, fissuras, desencontros
e desencantos do ser que ao longo do tempo
vem presenciando um contínuo digladiar com
seus contenciosos. No rol labiríntico das lembranças,
os miasmas dos cadáveres psicológicos
e os esqueletos dos desmoronamentos íntimos
trazem à tona um tempo de perdas & danos.
65
Chicos
Estigmas vão sendo clarificados pelo farol das
próprias experiências e num movimento alternante
entre o ontem e o agora, o embate é
contra a inegável transitoriedade (ou finitude)
de tudo, a violência do tempo e a inexorabilidade
da morte.
Eis uma obra, em todos os sentidos, que
esmera os ritos de passagem num contexto catártico
de deambulações com a confidente Helena,
essa que se converte no receptáculo do
estranhamento de um narrador deduzindo seus
trajetos e percalços, numa autêntica prosa sobre
os dilaceramentos do próprio indivíduo, da
sociedade e do mundo de que é testemunha.
Sob a tutela de um defunto com o qual se quer
reconciliar, removem-se camadas que revelam
a vida modorrenta do interior, com seus mitos,
totens e figuras indeléveis numa arquetípica
Tejuco marcada pelo provincianismo, a mediocridade
e a alienação, com seus seres insularizados,
um retrato crucial e rodrigueano da vida
como ela é, a exemplo da varredora de rua,
motivo de chacota e execração dos transeuntes.
Nesse périplo de vivências atalham-se tantos
(e improváveis) caminhos, inscrevendo essa
obra num autêntico bildungsroman, que pormenoriza
as etapas de desenvolvimento, em
todos os seus aspectos, de um personagem
que denuncia os rastros de destruição física,
mental e moral, no transcurso de suas traumáticas
metamorfoses.
Helena exerce no romance dupla funcionalidade:
mais do que entidade dialógica por onde
flui uma intimidade desveladora, impõe-se
verdadeiramente como o sustentáculo do narrador
(esse que aspira a um não-lugar no universo).
Na medida em que seu nome e atenção
vão sendo evocados – como se fora um vocativo-mantra
a induzir o leitor a um clímax final
–, um gatilho emocional dispara um monólogo
interior e exerce o poder de um rio caudaloso,
uma espécie de terceira margem do leito metafísico
de um personagem onisciente e submerso
em suas memórias. É por ele que e(s)coa
um discurso povoado de referências pessoais e
coletivas, onde vai-se construindo um flerte
enigmático, simbólico, muitas vezes delirante e
permeado de idiossincrasias, em que os flashbacks,
a fusão de tempos cronológico e psicológico,
a interpolação de territórios físicos e
interiores, os recursos da intertextualidade e da
metalinguagem, o monólogo interior e o fluxo
de consciência agigantam a potência emulatória
e crítica do texto. Essa atmosfera conduz a
uma expansão multifacética de um olhar sobre
tantas fatalidades que transcorrem íntima ou
exteriormente, no terreno pantanoso de realidades
que não se revogam.
A morte de Heitor metaforiza um certo desejo
de resgate daquela vida (ou de sonhos e
utopias) não alcançados, de déficits morais e
políticos, pois nos confrontos com um mundo
distópico – e essa desordem reflete-se na própria
estrutura formal da obra, em sua arquitetura
ousada e impactante – autor, narrador,
personagens e cenários se interpenetram como
num sistema de vasos comunicantes. Um trânsito
em que predomina a tênue fronteira entre
o delírio e a lucidez, a fantasia e a realidade, o
tangível e o onírico, percebendo-se uma dicotômica
simbiose entre o que se vive com o que
se (re)inventa, como se o suprarreal viesse acudir
cada um de seu naufrágio nesse tempo e
nesse mundo cão em que o que importa não é
exumar o cadáver de Heitor, mas a matéria putrefata
que denuncia a decomposição dos tantos
tecidos de um ser em permanente desassossego,
numa constante refrega com suas
sombras e obsessões e dolorosa convivência
com litígios.
Muitos são os referenciais estéticos, culturais
e históricos do próprio autor que ganham
força na comunicação que narrador e personagens
vão desfiando nesse novelo de inquirições:
da música à política, da literatura à cultura
pop, do teatro aos universos científicos, ambientes,
geografias, territórios, sensações e outros
reflexos de uma multifacética bagagem
comparecem nesse romance de elevada carga
semântica e sofisticados recursos estilísticos,
revelando a sintaxe peculiar de um autor no
pleno domínio de seu ofício.
O privilégio dos mortos é um livro intimista,
escatológico e humano, pois aborda o que
66
Chicos
sempre desafia e atormenta o homem desde o
primeiro sopro: as nossas fragilidade e impotência
diante do vazio, do mistério e do insondável.
Por isso, talvez tenham mais sorte (ou
privilégio) os mortos, que não precisam passar
novamente pelo corredor derradeiro das provações.
Whisner incita-nos com seu olhar cirúrgico a
penetrar a carne débil de nossas convicções, e
essa prosa refinada e inventiva, que abdicou de
qualquer linearidade ou convencionalismo, optando
por uma linguagem desconcertante, espelho
do próprio desatino dos que protagonizam
a história.
Escrito sem maiúsculas, como a sugerir as
minúsculas vivências que retrata, mas pontuado
de requintes formais, vasto repertório verbal
e um harmônico jogo de palavras e adjetivações
que culminam numa prosa poética, O
privilégio dos mortos lança farol sobre a vida,
para poder purgar suas chagas e exorcizar fantasmas
acumulados, na esteira do que já nos
disseram os poetas portugueses Rui Nunes
(“Escrevo para continuar a morrer, para não
acabar de morrer: eis a eternidade: a da voz
que me usa e se distancia de mim”) e Zetho
Cunha Gonçalves (“Os meus mortos deramme
versos, assombros – um rio acampado na
memória!”).
Trecho:
“... uma perturbação se achega novamente, helena,
quando heitor revela que não teme a morte,
que está preparado para ela, como helena? como?,
como uma pessoa pode ficar assim passiva
diante da própria desgraça, mesmo que aparentemente
inevitável?, então, ele cita novamente o
eclesiastes, talvez porque fosse o único livro sagrado
pelo qual eu até mesmo conservava certa
admiração: pois os vivos sabem que morrerão,
mas os mortos não sabem coisa nenhuma....”
67
Chicos
Marcos Venícios de
Melo
Nasceu em Cataguases (MG), mora em Juiz de Fora
(MG). Poeta é autor de Chuvas e luas (2018)
O grande Guimarães Rosa e minha avó
Já comentei num outro texto que minha
avó gostava de contar histórias, até me lembrei,
na verdade nunca esqueci, de uma das histórias
e tomei o cuidado de fazer aquele texto a partir
daquela história. Também falei de outra história
que ela contava e que vi reproduzida em série
de televisão. Citada por Caetano Veloso e
Manuel Bandeira, sinal de que também eles e
muitos outros nesse país tomavam conhecimento
dessas histórias e elas os influenciaram como
também a nós, os netos de minha avó.
Eu vinha procurando um livro que havia adquirido
e não encontrava mais, não sei se perdido
num caixa de mudança como tantos outros, ou
se emprestado e não recebido de volta, como
outros tantos. O que me fascina nesse livro é
ser o único livro de poemas de João Guimarães
Rosa. Embora tenha dado um prêmio ao seu
autor, não foi suficiente para convencê-lo a
continuar escrevendo, ou pelo menos publicando
livros em versos. Eu apenas me lembrava de
um dos poemas, o que retrata a descida de um
passageiro de um trem próximo a um leprosário,
e o busquei em vários sebos, até conseguir
pela internet adquirir um outro exemplar. Qual
não foi a minha alegria e surpresa quando lendo,
encontrei, transformada em versos escritos
pelo grande escritor outra das muitas histórias
que minha avó contava, A história da Zabelinha.
Reproduzo abaixo os poemas, o do leprosário e
da história, em homenagem ao grande João e à
memória da minha avó.
Reportagem
‘ O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
A parada do Leprosário...
Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...
Todos os passageiros olharam ao redor,
Com medo de que o homem que saltara
Tivesse viajado ao lado deles...
68
Chicos
Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro...
O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...
Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele já ia longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem
costas... ’
A Terrível Parábola
A Mãe-Preta contava:
uma meninazinha
morava num sobrado
com uma cachorrinha.
E no meio da noite bateram na porta
E cantou lá fora
O Kibungo- Gerê.
___ “Kibungo – Gerê!... Kibungo – Gerê!...
Cadê Zabelinha, que eu quero comê...”
Mas a cachorrinha, acordada,
Cantou para o bicho
Kibungo-Gerê:
__ “Zabelinha já lavou
Já deitou,
Já dormiu...”
E pela noite afora
Foi andando embora
O Kibungo-Gerê.
A menina, com raiva
Matou a cachorrinha.
Mas na outra noite,
Quando o bicho voltou,
A cachorrinha morta cantou no quintal...
A menina, de raiva, enterrou a cachorrinha,
A menina, de raiva, queimou a cachorrinha,
A menina, de raiva, jogou no rio a cinza
Da brava cachorrinha,
Que cantava morta,
Que cantava enterrada,
Que cantava nas cinzas,
E parou de cantar...
E a menina acendeu todas as luzes do sobrado,
Para esperar o bicho
Kibungo-Gerê.
E o bicho voltou
Kibungo-Gerê!...
E o bicho cantou,
Kibungo-Gerê!...
E foi abrindo a porta,
Kibungo-Gerê!...
E foi subindo a escada,
Kibungo-Gerê!... Kibungo-Gerê!...
Kibungo-Gerê!...”
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Chicos
Clips
Desastrada e outros contos breves
Cassiana Lima
Editora Venas Abiertas
Coleção Mulherio das letras
ano de edição: 2019
editoravenasabiertas@gmail.com
Em Desastrada, forma e conteúdo são dignos de
nota. No aspecto formal, a brevidade da narrativa;
no plano do conteúdo, a imagem emblemática
do rinoceronte. É impossível não lembrar
dos “instantes ficcionais” de João Gilberto Noll
(1946-2017), em Mínimos, Múltiplos, Comuns
(2003), definidos pelo próprio autor como
“microcontos poemáticos em que você suspende
por agudos momentos o fluxo normal de
uma narrativa, a princípio mais extensa e que
parece correr pelo livro todo”. A escrita de Cassiana
Lima Cardoso é feita de prosa e poesia,
hibridismo literário que dialoga com os microcontos
poemáticos de Noll e se insere em longa
tradição de minimalistas. A escrita breve e poética
da escritora é feita de leveza e humor, de
imaginação e sonho, de situações do cotidiano
não ordinárias, pois acolhem o imprevisível, o
inexplicável, e, por que não, o absurdo. A imagem
do rinoceronte insinua o que está por vir.
Há uma inevitável relação com a peça emblemática
do teatro do absurdo O rinoceronte, de
Eugène Ionesco (1909- 1994). Se em Ionesco é
evidente a destruição da lógica, de Non a O rinoceronte,
em Cardoso predomina o sonho, o
sono, o inconsciente e o non-sense em eventos
do cotidiano nada convencionais, como a
“amizade improvável” entre um gato e um rinoceronte,
vivenciadas com naturalidade pela narradora,
numa quebra surpreendente de expectativa.
Outros aspectos são vívidos em Desastrada: narrativas
não tão breves, elogio da imaginação,
tempo dos sonhos, memória da infância, intimidade
com a natureza, deleite dos caminhos para
o desconhecido – “gosto dos caminhos e não
preciso, em absoluto, de saber para onde levam”
–, caminhos que nos guiam pelo Rio de
Janeiro, em especial por Santa Teresa, lembrado
com afeto pela narradora, por Petrópolis, marco
de uma nova etapa de sua vida, e pelo interior
de Minas Gerais. Neste percurso geográfico, há
rastros autobiográficos que inspiram um espaço
intimista de leitura, tudo muito espontâneo, leve
e prazeroso.
Anna Faedrich
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Chicos
O mundo sem explicação
Ronaldo Cagiano
Editora Coisas de Ler
Coordenação | Gisela G. Ramos Rosa
Colecção de Poesia Clepsydra
ano de edição: 2019
http://www.coisasdeler.pt
“(...)As oposições são postas: de um lado, a barbárie,
a perda da alma num mundo digitalizado
(Ronaldo se encontra com a crítica à digitalização
literal, isto é, ao império dos dedos sem
mão no uso do smartphone feita pelo pensador
germano-coreano Byung-Chul Han); do outro,
coração e linguagem, num compósito que, à sua
maneira, sem nada pretender definir, define o
que seja a poesia − sim, um encontro entre coração
e linguagem, afim ao António Ramos Rosa
que escreveu “Não posso adiar o coração”. Portanto,
mundo, para Ronaldo, é falta, luta e lamento,
palavra que já foi título de um livro de
Luís Quintais, justo o autor de onde vem a epígrafe
de O mundo sem explicação; escreveu
Quintais, em Angst: “Num mundo sem explicação,
escreverás/ depois”(..)”
Luís Maffei, in Prefácio )
O livro das mãos
Gisela G. Ramos Rosa
Editora Moinhos
ano de edição: 2019
www.editoramoinhos.com.br
Pelas mãos da poeta Gisela Ramos Rosa, versos
nascem certeiros, contam sobre o passado e o
silêncio. Neles, a precisão das palavras, colocações
poéticas que, mesmo em um tom etéreo,
faz o leitor se ver ou se ler no poema.
Por isso, acredito que gostar de poesia é algo
bastante pessoal. É possível encontrar qualidade
nos versos, mas a identificação é de cada um.
Gisela fala não apenas por ela mesma, mas expressa
sentimentos universais, usando a figura
das mãos. As mãos que tocam, que seguram,
que cumprimentam, que exploram. As mãos que
evocam a nostalgia de um passado distante, as
mãos que agarram o silêncio e não soltam.
As mãos que constroem o mundo são também
aquelas que tecem as palavras, unindo retalhos
numa longa colcha que retoma a memória, a
ancestralidade e encurta o espaço entre duas
pessoas.
Michelle Henriques
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Chicos
Via
Luiz Maffei
Editora Coisas de Ler
Coordenação | Gisela G. Ramos Rosa
Colecção de Poesia Clepsydra
ano de edição: 2019
http://www.coisasdeler.pt
“(...)Pela “VIA” dolorosa e sintomática de uma
poesia- lâmina, entre vertigens e contrapesos,
“lá vai o Maffei agarrar as palavras se pegar/
com elas dar pra ela dar-se” em confissão-libelo
servindo-(se)(nos) o cálice de nenhuma salvação.
Nesse milênio ainda tão novo e já tão fugaz, onde
giocondas e coca-colas, arte e consumismo,
pão e circo, dividem a hóstia consagrada com o
mercado e pagam duro pedágio na alfândega de
um “claro pânico’, a moderna e indesviável solidão,
num temp(l)o difuso onde a crença malbaratada
ambiciona a eternidade.”
Desocupado y otros poemas
Eduardo Dalter
Ediciones del Nuevo Cántaro
ano de edição: 2019
www.eduardodalter.com
Eduardo Dalter nasceu em Buenos Aires em
1947. É autor de uma vasta obra poética, incluída
em revistas culturais conhecidas e publicada
em vários livros.
Este é seu último livro.
Ronaldo Cagiano, in Prefácio
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