Chicos 59 - 22.12.2019
Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com
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Chicos
Eu estava entediada com os desenhos animados,
queria brincar, folhear o “meu” álbum e
minha vó não deixava, eu só olhando pela
janela, vendo a chuva cair, com um olhar
meio perdido. Prisão chata que só.
De repente o rio começou a encher, encher,
encher. Veio a enchente. Meu tio falou que
tínhamos que tirar os móveis de casa senão
perderíamos tudo. Eu era criança e ainda menina,
não ia carregar nada. Só me cabia esvaziar
a cristaleira, os guarda-roupas, embrulhar
algumas coisas. Senti um estranho pressentimento
quando tirei As maravilhas do
mundo para fora da gaveta. Resolvi envolvêlo
em um papel de pão para protegê-lo melhor.
Falei com minha avó sobre a gravidade
do álbum desprotegido, minha avó parecia
que não me escutava, de repente aquela relíquia
havia perdido o valor?
Embrulhei o álbum assim mesmo e de repente
me mandaram para fora, parecia que a
água ia mesmo subir. Meu tio, meu pai e até
minha mãe que estava grávida, mesmo com
as zangas da minha vó, carregando móveis e
tirando tudo para fora. Eu aproveitei a falta
de vigilância para dar um giro: as águas, as
águas. Meus primos nadavam na enchente,
Eu entrei na água até o joelho.
Vi uma cobra morta, coloquei num graveto,
e ficava andando com ela, todo mundo queria
ver. Fiquei olhando as copas das árvores e
nossa casa já quase toda submersa. Nesse
momento, tudo que eu queria ter era uma
roupa de mergulho para saber o que se passava
lá embaixo. Ah, mas faltava também
saber nadar, os adultos me deixarem... Quantas
impossibilidades! Fui até o botequim do
Ananias, tinha uns homens bebendo cachaça
na porta, comprei um doce de abóbora fiado.
Ele perguntou se minha mãe havia deixado,
eu balancei a cabeça que sim, sempre tive
dificuldade de mentir com as palavras.
Saí e tinha um homem bêbado, nadando na
enchente, o pessoal ia lá e tirava e ele voltava.
O pessoal em volta dizendo que ele queria
se matar por causa de mulher. Êta gente
pra gostar de falar da vida dos outros! Saí
dali. Voltei para perto da minha casa. Meu
tio nadando na enchente para salvar as galinhas.
Aquilo para mim era divertimento. Para
onde iríamos pouco me importava. Eu gostava
do movimento. Ficava sentada no trilho
do trem jogando umas pedras na água. Minha
prima Paulinha veio se juntar a mim. Já
estava tudo no caminhão. Eu e meu irmão
queríamos ir atrás, junto com os móveis, como
na carreata de São Cristóvão. Minha mãe
não deixou. E chamou minha atenção, falando
sobre meu mau comportamento. Fiquei
contrariada. Uns parentes vinham nos buscar
de carro.
O caminhão levou nossos móveis para a escola
que eu estudava, o Guido Marlière. As
aulas foram suspensas. Eu fui passar uns
tempos na casa dos meus avós paternos, onde
comíamos muitas coisas gostosas e brincávamos
com outras crianças. Os adultos falavam
pouco, calados. Eu os evitava, brincando
com os novos amigos da vizinhança.
Não sei exatamente o quanto isso durou,
mas as águas baixaram e voltamos para a casa.
As paredes estavam com marcas da água
da enchente quase até o teto. Começamos a
arrumar tudo, todos preocupados, a casa deveria
ser novamente pintada, perdemos galinhas,
etc etc etc... E... Meu álbum? Perguntei
a minha avó, procuramos, ela simplesmente
não sabia, pediu para eu não amolar não. Eu
senti um desespero imenso, um ódio da desgraçada
da enchente que levara meu albinho...
Eu xinguei o rio e minha avó me bateu,
não se admitia palavrões em minha casa.
Eu fiquei ainda mais colérica. Suava, tinha
minha tez vermelha e um desespero inexplicável
tomou conta de mim. De repente comecei
a chorar e minha avó ficou com pena.
Nos dias que seguiram, rezei pedindo o álbum
de volta.
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