Chicos 59 - 22.12.2019
Chicos é uma publicação de literatura e ideias de Cataguases - MG - Brasil. Fale conosco em cataletras.chicos@gmail.com
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Chicos
De volta, já pelo meio da tarde, a charrete
para no terreiro e a voz firme do marido,
– Ana! Ô Ana! Vem ver o que trouxe pra
você.
João, o filho mais velho de Martim, emburrado
desce da charrete e corre, numa pisada
dura, rumo ao barranco onde a touceira de
bananeiras se esconde. – Comeu porcaria na
rua! Emenda o pai com aspereza de sempre.
João nunca move um músculo diante do pai.
São tão iguais, rudes, duros e insensíveis, já
Luiz... Luiz é o primeiro que aparece correndo
lá dos lados da bica e para junto ao cavalo.
Vindo da cozinha limpando as mãos no
avental, eu olhava para Martim. – O que
aconteceu homem de Deus? Amarrada à
charrete, uma velha e empoeirada máquina
de costura. Fiquei sem fala. Luiz é que abriu
a boca, – Te ajudo a limpar Ana. Martim em
sua dureza com os filhos, – Isto não é trabalho
de homem, ô traste! Vai cuidar dos porcos,
não está ouvindo a gritaria deles?
Desde a viuvez tenta encontrar em algum
canto da memória algum fato, alguma palavra
dita por Martim que aplaque seu desejo
de saber qualquer coisa dos momentos vividos
pelo marido antes de conhecê-la. Ana
suspira e retira do baú um bornal de cretone
cru. De dentro, surge uma caixa rústica de
pinho de Riga. Coloca sobre as pernas a caixa
e abre. Começa a rever velhos retratos,
detêm-se em alguns, vai às lágrimas. Fecha
bruscamente a caixa ao ouvir um suspiro.
Vira e recompondo-se rapidamente, – Juliana
minha filha, é você que está aí? Chorosa a
jovem retruca, – Sim Vó, sou eu. – Mas menina,
você está chorando por quê? - Estou te
olhando mexer neste teu baú faz tempo. Ver
você mexendo nestes teus vestidos, te ouvir
falando de coisas do teu passado e o teu
choro me comoveu Vó. Desculpe-me! Não
queria.... e desaba no choro. Ana puxa a neta,
o braço esquerdo a acolhe e a mão direita
com firmeza segura a caixa de retratos. Caminham
até uma antiga namoradeira de caviúna
no fundo do quarto. Enquanto a caixa
repousa num canto da namoradeira as duas
já sentadas se abraçam e choram copiosamente.
– O choro, filha, faz com que a alma
não cultive o ódio. Por isso somos choronas.
Juliana olha detidamente a avó, seu olhar
carregado de raiva, encontra o olhar terno de
Ana. Para Juliana, aquele olhar a entristece,
vê nele a resignação. Depois de um longo
tempo em silêncio, – Posso olhar sua caixa
de retratos? Não houve tempo nem da avó
reagir. A avó, que parecia se sentir violada
em seus segredos, à medida que era indagada,
foi se submetendo à vontade da neta.
– Quem é este? Ana respondia e a neta reagia,
– O tio Luiz? Não acredito. A tarde se
vai com avó e neta revirando fotos e conversando
sobre elas. Anoitece, alguém bate à
porta do quarto. É Mariana, mãe de Juliana.
– Vamos jantar, gente, está ficando tarde.
Ela levanta a cabeça rumo a imagem de N S
Aparecida, sua santa de fé, e contendo o nó
na garganta, se persigna e com a voz sem o
embargo do choro, - Minha santinha, obrigada
pela neta que me destes. As duas saem
abraçadas pela casa e o contentamento de
Ana assusta a neta.
Juliana entra no quarto da mãe aconchega-se
junto a ela. Com o dedo encaracola ainda
mais um dos seus cachos de cabelo e permanece
pensativa. – Juliana... te conheço. Vai,
desembucha! – Sabe o que, é mãe? É a Vó.
Esta tarde, levei um choque. Estou pasma,
ela não tem passado, ela vive o passado do
meu avô. – O que é isso meu anjo? – Você
já viu a caixa de retratos dela? – Não,
nunca me mostrou. Ela sempre me disse que
papai nunca se deixou fotografar. E ela também
é arredia a fotos. Para mim ela só tem
fotos de filhos e netos. – Mãe, você está redondamente
enganada. Existem diversos retratos
feitos em Portugal, e vários na Itália.
Muitas fotos do tio João emburrado ao lado
do Vô e algumas do tio Luiz bebê, que a Vó
diz ser do batizado dele. Ele no colo do Vô.
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