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Quando passam os índios (Roteiro)_ Grossi (2020)_

Roteiro para curta metragem. Um filme de Grossi.

Roteiro para curta metragem. Um filme de Grossi.

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“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS”

ROTEIRO PARA CURTA METRAGEM

@ 2018 UM FILME DE GROSSI


“QUANDO PASSAM OS ÍNDIOS”


SEQUÊNCIA 1

MONTAGEM

A) Tela negra, meio minuto

VOZ FEMININA (V.O.)

Por enquanto não precisa som algum! É a oportunidade de

entendermos o porquê de estarmos aqui (...)

B) Algumas lufadas de vento e a tela é preenchida por uma mão

mexendo uma câmera

C) Passado isso, aos poucos a câmera vai se ajustando como se

estivesse sendo ligada e lentamente focaliza uma paisagem

árida.

VOZ FEMININA (V.O.) (cont.)

(...) em uma paisagem árida com seu desenho que agora é nossa

realidade.

D) A câmera se mantém em um ponto fixo:


EXT. PAISAGEM ÁRIDA – DIA – SOL FORTE

A seguir, a compenetrada voz feminina comenta enquanto os

primeiros créditos passam:

VOZ FEMININA (V.O.) (cont.)

O Estado moderno é resultado de várias conquistas que

resultaram na submissão dos mais fracos pelos mais fortes, na

dizimação de culturas e extinção de muitos povos.

INSERT – ESTÁTICA, RUÍDOS

Após a última palavra, há um corte provocado por algo similar

a uma estática; o áudio fica embolado, entre ruídos e picos

agudos.

VOZ FEMININA (V.O.) (cont.)

Seria a sintonia? Mesmo confusos ou surpresos, continuamos

escutando.


INSERT – MAIS ESTÁTICA E RUÍDOS

VOLTA À CENA

EXT. PAISAGEM ÁRIDA – DIA – SOL FORTE – OUTRO ÂNGULO

VOZ FEMININA (V.O.) (cont.)

Assim também aconteceu com a América descoberta por Cristóvão

Colombo. Os grandes navegantes encontraram às costas do vasto

oceano o que chamaram de Atlântico, imensas terras

transbordantes de leite e mel, de rios límpidos e solo fértil.

O novo continente urdia por ser explorado. Mas povos pagãos

que nessas terras habitavam eram providos de uma cultura

paralela, de deuses próprios e filosofia voltada para a

natureza, esses povos contrapunham aos desígnios dos

conquistadores europeus em tudo. Considerados ilidimos na sua

fé, aos poucos os americanos verdadeiros, chamados de ‘índios’

pelos europeus, e que habitavam a América do Alasca à Terra do

Fogo, foram conquistados, catequizados, aprisionados, mortos e

praticamente extintos, dando passagem para fronteiras

invisíveis de nações concretas (...)”


INSERT – UMA FORTE PISADA

Tum! Uma pisada corta a voz que antes narrava esse resumo e

troca a cena completamente.


SEQUÊNCIA 2

CENA 1 – EXT. HORIZONTE – PESSOAS SE APROXIMANDO – UMA CARAVANA

FADE IN – MUSICA DE FUNDO

Muitas pessoas acompanham a caravana se arrastando, crianças

cantarolam uma música enquanto a visão do grupo coeso abrange

toda um caminho de terra batida. A canção que chega aos ouvidos

é a seguinte: “E eu te disse que a caravana quando passa por

terra ganha razão”. Não é tampouco alegre ou monótona, mas

beira um coro de guerra, tende a ser como a vibração de uma

oração conjunta.

FADE OUT – MÚSICA DE FUNDO

FUSÃO PARA:

A câmera então diminui sua rotação! É como uma película velha

se esticando e retorcendo enquanto ressoam os sons finais da

melodia da música de fundo.


MATCH OUT:

Os pés de duas pessoas descalças. Dois homens adultos, um deles

é o CACIQUE, o orador daquele grupo em caravana. É um ancião.

CACIQUE

(fatigado)

(olhando os demais)

Agora temos o horizonte. E calor! É debaixo do forte sol a pino

que se aproxima a caravana composta hoje por três “etnias”

vistas como ‘indígenas’ – melhor não se envolver em discussões

contra ou a favor de tais designações miscigenarias! Contemplem

a diversidade, meus amigos. Logo vocês guiarão uns aos outros

(...)


CENA 2 – EXT. HORIZONTE – O OLHAR DO CACIQUE

Dessa vez o corte fora menos brusco, apenas como uma virada de

pescoço. A narração do Cacique é lenta, ele é o mais velho do

grupo. Aparece o Cacique de corpo inteiro, apenas ele. Tem não

só a idade avançada, mas também uma fala que se desenrola a

partir de um longo suspiro. Um suspiro e ele fala! Usa um tom

de desabafo para uma sentença seguida da outra.

CACIQUE

(compenetrado)

Fico sendo nosso orador por mais esse momento, venho com essas

palavras, alguém tem que dizer; meu rosto marcado é de todo

jeito amigável. Vimos o cenário paralisante de nossa gente

pouco a pouco passando mais perto da comentada área da

‘civilização’; essa é a minha fonte energética. Uma energia

acima da idade. Alguma respiração a mais para falar de nosso

povo. Temos tanto lirismo, muitas sociedades também, mas hoje

vamos contá-las. São antiquíssimas poesias das travessias

indígenas, sempre relembradas através das gerações. Isso não é

apenas um novo alerta, não é um choramingo, aqui (cont.)


(cont.) assistimos uma cerimônia. Eu estendo meus braços, eu

aconchego essa gente e a elas mostro meu respeito. Nossa

gente... Humana!

CACIQUE (cont.)

(caridoso, estendendo os braços)

No local onde a água se divide, nós nos pusemos em movimento,

chegamos desse campo de batalha... nos dispersamos. Sou um

ancião, rogo não haver mais muito o que salvar para mim, pensem

então nas próximas vidas. Prestem atenção, é o mínimo que

podemos fazer; algumas pessoas se refugiaram nas margens; então

essas águas estão repletas de homens, repletos de homens estão

os caminhos.

(pausa) Somos fugitivos? Em nosso próprio planeta? Aqui

fugimos, e assim muitos se acabaram. Nas saídas das cidades os

conquistadores vasculhavam e inspecionavam todos os nossos

farrapos, foi assim que o povo se dispersou, quando não se

escondendo nos recantos, aos soluços. Quando iremos nos reunir

de novo lá onde a água se divide? Quando estaremos sem escudos

e não mais sofrendo pelo que comer?

(tom) Tudo isso contemplamos com nossos olhos, tudo isso

querendo nos sobrecarregar! (cont.)


(cont.) Algumas pessoas chegam com punhados de madeira, ganhos

secos, capim e outros materiais, incluindo restos inflamáveis

de utensílios modernos. Entregam nas mãos do cacique e ele

arruma no solo gasto daquele lugar. Vem alguém com uma tocha

nas mãos e atira no local que o ancião indica. Uma fogueira

rapidamente se faz, a chama se propaga de forma espantosa. Mais

pessoas jogam restos na fogueira. Por cima disso o Cacique se

prepara para falar, seus gestos denunciam alguma apreensão,

indicando com as mãos o movimento do fogo.

CACIQUE (cont.)

(solene, mãos para o alto novamente)

Pai-Céu, Mãe-Terra, somos vossos filhos, e nas costas cansadas

trazemos as dádivas. Por favor, ouçam nossas súplicas! Venho

recontando a canção do tear dos Tewas, mas bem que estas letras

poderiam ser Astecas, Maias, Quíchuas, Guaranis, Tupis.

Para nós mesmos trazemos as vestes esplendorosas. Que seja a

urdidura a luz branca da aurora, que a trama seja a luz vermelha

da tarde, que sejam as franjas a chuva que tomba, que a orla

seja o arco-íris que se levanta. (cont.)


(cont.)(tom) Para nós mesmos tecemos as vestes esplendorosas.

Para poder caminhar por onde cantam os pássaros, para poder

caminhar por onde é verde a erva, Pai-Céu, Mãe-Terra.

O calor se propaga. O ancião caminha ao redor da fogueira, ele

olha para cada um daqueles seres de pé. As pessoas estão

concentradas, muitas olhando para o céu.

MONTAGEM

A) Pessoas suando, corpos em alerta

B) A fogueira trepidando

C) Fumaça subindo mais alto, flashes contínuos.

CACIQUE

(rodeando a fogueira)

Há suor, é como se de seus poros estivesse sendo expelido anos

de impurezas e tratamentos hostis.


CACIQUE (cont.)

(sorridente)

A terra inteira é uma só alma, somos parte dela.

(pausa) Mudar, sim, mudarão as nossas cascas, mas não morrerão

nunca as nossas almas. Somos uma alma única como única é a

Terra.

FADE IN – MUSICA DE FUNDO

CACIQUE (cont.)

(gesticulando)

Cobre a Terra, minha Mãe, quatro vezes de flores inumeráveis.

Que os céus se cubram de nuvens acumuladas. Que a Terra se

cubra de névoa; cobre a Terra de chuvas. Grandes águas, chuvas,

cubram a Terra. Relâmpago, cobre a Terra. Que se ouça o trovão

por cima de toda a Terra; que se ouça o trovão. Que se ouça o

trovão por cima das seis regiões da Terra.

FADE OUT – MUSICA DE FUNDO


CENA 3 EXT. PLANALTO – CABANAS E TENDAS MONTADAS – HOMEM,

MENINO E CACIQUE

A caravana está fixada em cabanas e tendas. Seu descanso é um

local de sombra, parece ser um vale. Muitos conversam, o som é

rico neste cenário. Um HOMEM está falando para o Cacique e um

MENINO, é como uma confissão entre eles.

HOMEM

(cansado)

Cada parcela deste solo é sagrada, no modo de ver do povo. Meu

povo é este mundo! Cada encosta, cada vale, cada planície e

bosque foi santificado através de algum acontecimento triste

ou alegre em dias há muito desaparecidos. O pajé sabe, eu disse

para os brancos, minha consciência não mente. Falei para muitos

que a própria poeira sobre a qual eles agora se erguem responde

mais amorosamente aos seus passos do que aos outros, porque

foi enriquecida com o sangue dos nossos antepassados e os

nossos pés nus estão conscientes da empatia do contato. Até as

criancinhas que aqui viveram e se divertiram durante uma breve

estação irão amar estas solidões sombrias e, ao cair da noite,

saudarão os assombrados espíritos que regressam. (cont.)


(cont.)(tom) E quando o último Pele-Vermelha tiver perecido e

a memória das tribos se tiver tornado um mito entre o homem

branco, os mortos invisíveis das tribos irão pulular por suas

praias; e quando os filhos dos nossos filhos se julgarem sós

no campo, no armazém, na loja, na estrada ou no silêncio das

florestas sem caminhos, não estarão sós. Pela noite, quando as

ruas das vilas e das cidades brancas estão silenciosas e os

homens as supõem desertas, estarão apinhadas com as hostes que

regressam e que outrora encheram e ainda amam esta bela terra.

Acabada a narração do Homem, o Cacique se cala enquanto

contempla sua gente seguindo, indo ou vindo; muitos passam por

perto. O Cacique olha e olha ao redor, então ele por fim se

detém em um ponto longínquo. Bem ao lado, o Homem que falava

também olha para o que o Cacique vê. O MENINO chega mais perto

e questiona:

MENINO

(curioso)

Velho, por que dizem isso do nosso povo? Chamam nossa gente de

índios bêbados... da Amazônia?


O Cacique então responde para o menino e para o homem ali ao

lado. Não é nem sério nem triste, é realista:

CACIQUE

(maneando o rosto)

Eles não entendem; nunca entenderam e tampouco querem tentar.

Representamos o passado; e isso quer dizer que devemos ser

sepultados. Somente nossas terras e o interessante do que podem

furtar da maneira que lidamos com as curas e medicamentos pode

se salvar disso.

(tom) “É uma corrida’, eles dizem. No fundo já entenderam que

o tempo passa para as sociedades deles, e seu tempo se estreita

também... a ponto de ruir e voltar ao estágio zero; para eles

quer dizer estágio primitivo. Mas tudo acaba mesmo, não quer

dizer que devemos acabar uns com os outros. O mundo é um

aprendizado temporário; as eras são suplantadas umas pelas

outras, e as extinções são um fato comprovado. Os humanos então

retornam ao natural e forçosamente se deparam e convivem com a

Mãe Natureza. Lendas relatam, em termos quase idênticos e

utilizando as mesmas imagens, o grande naufrágio, a queda da

estrela, o desaparecimento de muitas nações, outrora possantes

e soberanas, isso tudo indo para o fundo das águas. (cont.)


(cont.) Assim aprendemos a lição da tribo dos brancos, entre

sangue, lágrimas, entre memórias!

HOMEM

(esperançoso)

Que pena, Velho, vamos rezar por suas almas, pedir ao Pai

Celestial que tenha piedade dos erros dos socializados.

O menino olha para o homem com admiração também. Todos ali se

conhecem, todos são pais e filhos.

Sim, isso podemos rogar!

CACIQUE

(leve sorriso para o menino)

MENINO

(entusiasmado)

Foi meu Pai! Ouve, meu Velho! Peço que sim, eu lembrei!!

(tom) Ele me fez ver que se me ponho a cantar, se faço como a

trepadeira vermelha meu canto se entrelaça; igual à (cont.)


(cont.) flor que cheira a milho torrado, onde se ergue a Árvore;

que perfume de flor de cacau, dança junto ao tambor, dança

libertando o teu perfume. Ergue-se além o Sol num vaso de

esmeralda coberto de Quetzal; cinge ele um colar de turquesas,

e as flores caem entre todas as cores.

Sim, sim, a fé!

CACIQUE

(sorrindo melhor)

Depois o homem fica com a vista mais corada também, e coloca a

mão no ombro do menino. Os dois olham para os lados. O Cacique

fica contente com o carinho entre eles.


CENA 4 EXT. CENTRO DA CARAVANA – MOVIMENTAÇÃO DE PESSOAS –

MENINO, CACIQUE E HOMEM FALAM

Crianças correm, mulheres falam umas com as outras, pássaros

sobrevoam por sobre as cabeças das pessoas; tudo isso as

câmeras enfatizam em tomadas alternadas. Então o Cacique, o

menino e o homem se falam outra vez.

MENINO

(alegre)

(se adiantando para frente)

Como desejaria vaguear na noite. Contra os ventos. Vaguear na

noite quando a coruja ulula. Como desejaria vaguear como antes.

Como desejaria vaguear na alba contra os ventos e sem pressa

nem fuga.

Vaguear na alba quando a gralha grita. Como desejaria vaguear,

ah, e respirar fundo.


CACIQUE

(para o menino)

Era digno de se ver, esse mundo novamente criado. Sobre toda a

largura e amplidão da Terra, a nossa, estendia-se o reflexo

verde da sua cobertura e os perfumes que ascendiam eram doces

de respirar. A consciência estava ligada à Natureza, os mundos

sutis eram percebidos por nossos espíritos de forma normal,

tudo era simples. Ainda tivemos algo disso, mas agora a era é

outra; esta é a era da desconexão, como dizem, a expiração após

tão longa e bela inspiração. As pessoas é que complicaram o

mundo para nada, e para nada serviu. Vivemos uma transição, e

em uma transição impera o inesperado.

A transição.

MENINO

(repete para o Cacique)

HOMEM

(ansioso)

(para o Cacique)

Até eu estou curioso por mais revelações. Por favor, adiante!


CACIQUE

(agitado)

E morte inevitável! Aonde iremos que não haja morte? Por isso,

chora meu coração. Tenha coragem, menino, ninguém vai viver

aqui! Mesmo os príncipes são levados pela morte: assim,

desolado está meu coração. Oh! Meus amigos, onde é a terra em

que não se morre? Mais coragem: ninguém vai viver aqui! Leia,

leia em meus olhos, você que deve descobrir nos tempos futuros,

isso se seus deuses lhe tiverem dado o poder de ler. Leia, oh

filho do futuro, aprenda os segredos do passado, para você é

longínquo mas na verdade tão próximo.

Os homens não vivem somente uma vez para em seguida

desaparecerem para sempre; eles vivem várias vidas em lugares

diferentes, mas sempre neste mundo. E entre cada vida, há um

véu de trevas.

(pausa) Vamos na transição, é uma passagem.

(sussurrando) Logo chegaremos ao limite entre nossos

territórios, e pode ser que vejamos a gente branca.

O menino meio que sorri. O homem se movimenta, completando

tardiamente o que o Cacique falara.


HOMEM

(olhando o horizonte)

Ver

(pausa) de novo. Só por breve tempo viveremos nesta terra; mas

não será sempre assim, já que nos espera a região do mistério.

O Cacique se agita, levanta as mãos e canta de olhos fechados.

O homem e o menino abaixam suas cabeças em respeito.

CACIQUE

(tenso)

Ali onde o morro se acaba; lá em cima, nem eu mesmo sei aonde,

vagueei por ali, por onde a minha cabeça e o meu coração

pareciam perdidos. Vagueei lá longe. Vagamos todos! A minha

casa lá longe, lá mesmo! A minha casa lá longe, agora me

recordo! E quando vejo esse morro lá longe, pois bem, choro.

Ai! Que posso fazer? Que posso fazer?

(tom) Ai! Quê? A minha casa lá longe, agora me recordo. Lá

existe alegria, amizade?


CACIQUE (cont.)

(já mais calmo)

Já eu que sou velho, nasci qual planta que no deserto irrompe

sem seiva e sem calor: no caule que sobe, ríspido, hirto,

abrolha um germe, não abre a flor. Que não vi estrela assim

tão áspera: fechada nas trevas, nunca arder. E sobre o meu

berço agras lágrimas: porque eu nasci só para morrer. Acabará

minha estéril história que a si própria se liga por dentro: a

vida, o nome, a minha memória, gravados fundo no esquecimento.

Glória ao Criador! Eu me zero por Ti!!!

FADE IN – MÚSICA DE FUNDO – SUAVE

Novamente a movimentação das pessoas que compõem a caravana,

alguns estão comendo, outros cuidando de animais, outros

confeccionando utensílios. Uma extensa série de imagens até

que a longa música seja tocada.

FADE OUT – MÚSICA DE FUNDO


SEQUÊNCIA 3

CENA 1 INT. VARANDA – GRANJEIRO SENTADO – RÁDIO LIGADO

A ultima parte do filme se inicia à distância, de forma

compassada. Aos poucos uma rua de terra batida e uma varanda

ficam cada vez mais nítidas; folhas são dispersas pelo vento,

o clima é seco e o som ambiente calmo. Alguém está ouvindo um

rádio na beira estrada, seu rosto quase não é visto atrás do

chapéu. Mas seguramente é um homem comum, um GRANJEIRO

recostado em uma parede da varanda de sua modesta casa. Ele se

mexe. A fisionomia bem morena contrasta com feições europeias,

como o nariz e a cor clara dos olhos; seguramente nascera de

uma união de pais indígenas e brancos. Sentado, o granjeiro

busca estações, sintoniza uma delas para melhor entender a

narração feminina que vem pelas ondas radiofônicas. O aparelho

está longe e ele se levanta e regula até definir aquela estação.

A voz que se faz ouvir é pausada, algo monótona e distante,

quase um lamento.


VOZ FEMININA (V.O.)

(...) e agora falamos novamente da aculturação, da perda de

identidade, da utilização de um produto comercial e turístico

de nossos bens naturais; podemos comentar sobre monetarismos,

futilidades. Nosso país fornece uma estranha gama de

explicações étnicas que se intercalam ao meio ambiente. Uma

prova disso é a superação dos povos ameríndios. Atualmente, a

moda das passarelas até tenta reproduzir sua pintura corporal;

nas músicas populares imitam seus tambores e até mesmo a

linguagem dos seus corpos; imitam sua expressão de vivacidade,

cores, natureza das danças e manifestações artísticas. Tudo

isso é um desafio para a compreensão moderna se notarmos a

situação real dessa gente!

(pausa) Será mesmo que a população indígena não passa de mero

zoológico a céu aberto perante a sociedade imbecil e

consumista? Que estão todos bêbados, vagabundeando

estigmatizados? Ou que são dizimados, roubados em suas posses

cada vez mais? Como se dará a transmissão de valores em um

contexto de apenas sobrevivência? Generalizando

(pausa) toda uma cultura

(tom) incalculável, brutalizada pelo riso e desleixo cultural.

Dessa forma. Olha, qual o teu passado? Esquece não. Você veio

da cultura antiga, é a evolução natural dos teus antepassados!

Que triste saber que fazem isso com a população (cont.)


(cont.) indígena, esta por demais pega na tal da ‘defasagem de

raciocínio e compreensão’, relegada às tais comunidades

autossustentáveis toleradas apenas com fins lucrativos,

eleitorais ou humanitários para postagens em redes sociais. O

ritual está esvaziando

(pausa) as flautas vendidas para comprar alimentos às crianças

(...)


CENA 2 INT. VARANDA – GRANJEIRO SENTADO – OUTRO ÂNGULO – RÁDIO

LIGADO

O granjeiro vira um pouco o rosto ao se recostar mais na

cadeira, encostando na parede. Ele então estica um pouco os

pés se espreguiçando. Um rápido corte nos mostra a visão dele

ao enxergar os campos à sua frente, detrás da rua. A narração

flui enquanto a câmera estática apresenta uma plantação de cana

balançando ao vento.

VOZ FEMININA (V.O.)

(mais nítida)

‘Os costumes vão se dissolvendo’, dizem, ‘perdendo seus

significados e usos tradicionais’, mas muita gente ainda

precisa dos remedinhos e plantas das florestas que a burguesia

renomeou, sim, esses fitoterápicos ou essas receitas de

manipulação! As grandes corporações sugam o conhecimento

indígena enquanto há tempo, enquanto existe uma mistura ou

outra para patentear!! Tal é o ‘capitalismo’ e a mania de

(pausa) souvenires! Tamanha analgesia da mente. (cont.)


(cont.) Este país imediatista virou as costas para o lado do

pulmão do mundo, suas belas matas foram devastadas, todo um

passado sepultado; que será das próximas gerações? Não

conhecerão suas raízes além do que está nos livros?

Serão

meros manuais reorganizados cada vez mais para atender às

necessidades econômico-sociais de blocos mundiais, e para

você... mediante rápidas conclusões. Não teremos mais anciões

contadores de histórias, só gente caquética atrás de pílulas!

(pausa) A destruição de antigas culturas não é um problema

atual, vem sendo um processo sem dó nem piedade; parece até

que há um medo desse relembrar das próprias origens. Fica

também a impressão de que a onda continua sendo a de

‘apartamentar’ o Ser Humano, fazer com que decaia nessa visão

horrível sob a égide de cidades abarrotadas. Vistas do alto,

são semelhantes a formigueiros. (tom) E vocês pertencem às

formigas!! Essa imagem já está batida. Formigas trabalhadoras

da ‘rainha’ do pedaço… Quem é tua

(tom) rainha? Anda difícil descobrir ou está à espera das

férias após aquele ano sofrido?? Sua cabeça pende, cai aos

poucos.

(pausa) Mas contra os espíritos maus há aqui e ali os cânticos,

vestuários, utensílios, arte plumária (cont.)


(cont.) (pausa) a realidade que fora idealizada nos megatotens,

pensada para gerações após gerações, ela reside no sangue de

cada um de nós. Você sabe o que é patrimônio? O que disseminar?

Não como o disseminar de educação e amor pelo próximo?

(pausa) Não é igual ao concreto que esfarela com os anos.

Mesmo sendo a população indígena efêmera, transitória, grupal;

mesmo sendo vistos como nômades ou seminômades, tudo ali está

correlacionado harmonicamente... porque vivem do planeta!

Até o sentido artístico

(tom) que não é o mesmo entre os diversos povos indígenas

(gracejo) nem sempre quer dizer o mesmo que para nós,

urbanizados cheios de padrões que sobrepõem padrões; o normal

seria achar ‘belo’ aquilo que em sua utilidade atinja o ápice.

E, ainda assim, variando de tribo para tribo! São artes

indígenas, não há uma só definição, há uma gama.

Elegância, majestade; o meio, sua valorização, seu lugar e

funções específicas. No meio natural, por exemplo, e de maneira

muito singular, o indígena desconhece esse conceito de

(riso) inveja; quem criou esse defeito!?

O futuro dará sua sentença; a Terra julga o que dela nasce.

(cont.)


(cont.) (pausa) Um bom argumento sempre salva do sufoco do

inesperado. Quem puder acreditar em si, aprender com o passado,

continue a falar sem interrupção. Seguramente uma arte!

(pausa) Muito bem, agora vamos para nossos comerciais e (...)

INSERT – RUÍDO DE DESLIGAMENTO

Chunk! O granjeiro desliga o rádio.

VOLTA À CENA

O granjeiro comenta em voz alta com seu sotaque acentuado. Ele

fala e sorri.

GRANJEIRO

(divertido)

Eu é que não vou assistir desmoronando, não demora a chegar

por aqui.


O granjeiro suspira, continua olhando para o horizonte. Uma

leve brisa perpassa a varanda em que ele está.

GRANJEIRO (cont.)

(calmo)

O sol forte da estrada enfim atrai algo.

INSERT – PESSOAS, UMA CARAVANA

VOLTA À CENA

POV DO GRANJEIRO

Lá longe o granjeiro começa a discernir algumas pessoas

caminhando em sua direção.


VOLTA À CENA

CLOSE SHOT – ROSTO DO GRANJEIRO

Ele aperta os olhos, sorri mais abertamente e se recosta

preguiçosamente em sua cadeira, a cabeça agora na parede.

GRANJEIRO (O.S.)

A caravana que se aproxima, é.

GRANJEIRO (O.S.) (cont.)

A gente um dia foi simples, tomara que isso volte. Penso alto.

Nesse ponto algo diferente ocorre, pois se somando à voz do

granjeiro, as vozes de todos os atores deste drama narram em

uníssono. Cada vez mais pessoas se somam à narração ao mesmo

tempo que a câmera segue os passos da caravana se movimentando.


GRANJEIRO E DEMAIS ATORES (V.O.)

Oh, irmão, veio a um lugar semeado de numerosos perigos, muitas

penas e horrores.

(pausa) Veio a um

(respiração profunda) lugar em que os nós e as malhas estamos

interligados e superpostos, de forma que ninguém possa passar

sem cair.

(pausa) Teus pecados são os nós e malhas, os poços onde pode

cair, mas além deles também existem animais ferozes que matam

e despedaçam o corpo e a alma.

(pausa) Quando você foi criado e enviado por Ele, teu Pai e

Mãe, nosso Deus, te moldou como uma pedra preciosa.

(pausa) Mas você se sujou por tua própria vontade.

GRANJEIRO (cont.)

(sozinho, sorriso amarelo)

E, agora, confessa!


GRANJEIRO E DEMAIS ATORES (V.O.) (cont.)

Descobrindo e manifestando todos os teus pecados a nosso

Senhor, que é o protetor e purificador de todos os pecados.

Não considera isso com superficialidade, pois, na verdade, você

entrou na fonte da misericórdia, que possui aquela água muito

clara com a qual nosso Deus, protetor de todos, lava as

impurezas da alma (...)

GRANJEIRO (cont.)

(sozinho, olhando para cima)

Deus, protetor de todos, lava as impurezas dessas almas.


CENA 3 EXT. RUA DE TERRA BATIDA – CARAVANA EM MOVIMENTO –

CRIANÇAS

Aqui o foco se estreita ainda mais na direção das crianças do

grupo. Por um tempo apenas elas são vistas. Após algum tempo,

chega o Cacique caminhando devagar, ele ao chegar é rodeado

pelas felizes crianças.

CACIQUE

(sorridente)

Agora vocês nasceram de novo, aqui, de novo começam a viver e,

neste mesmo momento, nosso Deus nos ilumina com um novo Sol.

Vocês estão então a florir e brotar como umas outras pedras

preciosas, muito puras, saindo do ventre da suas mães.

Depois dessas últimas palavras, o Cacique fica junto das

crianças e uma delas entrega a ele um cajado de bambu.


CACIQUE (V.O.) (cont.)

(tranquilo)

Convém que façamos nosso trabalho, é a casa de Deus! Para que

enfim sejam perdoadas as falhas cometidas, as palavras e

injúrias pelas quais más línguas nos feriram; o homem branco,

tão próximo mas também tão injusto pela sua ingratidão que já

mostrou em relação às bondades de nosso Senhor, e pela

inumanidade que um dia demonstrou em relação a eles mesmos

(suspiro) não partilhando com os pobres os bens temporais que

nos foram dados, bem, o homem branco percebe suas ofensas, está

confuso. Cabe a nós dizer. Vocês terão que oferecer aos que

têm fome, os que têm sede, aos que não têm para vestir, mesmo

que precisem retirar de suas bocas parte do que será dado. Não

esqueçam que a carne deles é como as tuas, e que eles são, tal

como vocês, humanos.

SÉRIE DE PLANOS

A) As crianças do grupo que compõe a caravana se divertem.

B) Os sorrisos das mesmas crianças de vários ângulos.


C) Uns meninos correm e quase esbarram na figura dócil do

Cacique.

INSERT – ROSTO DE UMA MENINA

FADE IN – MÚSICA DE FUNDO

Termina o curta-metragem com a visão do rosto de uma menina

aos poucos sorrindo de forma doce.

FADE OUT – MÚSICA DE FUNDO

A tela fica branca.

FIM


Tags: índios, indígena, crítica, social, universo indígena,

identidade, sociologia, cultura, américa, povo latino,

passado, histórico, antiguidade, reportagem, terras,

agropecuária, emigração, caravana, grupos, humano, humanidade


Atos I Quando passam os índios & Editorial Presente. Ano de 2020

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