FEVEREIRO-2020 - Nº 261
Centro Lusitano de Zurique
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CULTURA
29
Falando de Felicidade
VALICE VIEIRA (*)
LI JÁ NÃO SEI ONDE que a Assembleia
Geral das Nações Unidas
decretou que o dia 20 de
Março vai ser o Dia Internacional
da Felicidade. A ideia partiu,
ao que parece, do minúsculo
reino do Butão que, em vez do
PIB (Produto Interno Bruto),
adopta como estatística oficial
a “Felicidade Nacional Bruta”.
Isto em português soa um bocado
mal, espero que em butanês
(ou na língua que lá se fala) soe
bastante melhor…
Que bom, num mundo com tanta
tragédia, haver um dia consagrado
à Felicidade. (E, já agora, um
pequeno parêntesis perfeitamente
pessoal: deixem-me felicitar
quem teve a ideia de o colocar
no dia 20 de Março, dia em que
eu faço anos, o que me vai dar, a
partir de agora, ainda muito mais
razões para o festejar... Adiante).
No dia 20 de Março, como todos
sabemos, acaba o inverno. O que
significa também que a Felicidade
vai ficar ligada à primavera.
E, em tempos de crise e de depressão,
como a que vivemos,
nunca é demais lembrá-lo.
Mas, deixem-me confessar, que
também não me agradava lá muito
uma felicidade como a que se vive
no Butão.
Há dias, zapando pelos canais do
cabo, vi um documentário sobre
o Butão. O Butão é um reino minúsculo,
completamente isolado e
fechado ao mundo (o que as montanhas
onde está instalado propiciam),
onde as pessoas vivem da
agricultura como na Idade Média,
dividindo o seu tempo entre o trabalho
na terra e as idas aos templos.
Preservam esse isolamento
para que, segundo afirmam, nada
possa alterar a tradição e os rituais.
Estrangeiro é bicho muito
raro por lá.
Tem, realmente, uma paisagem
deslumbrante, mosteiros magníficos
- e uma única estrada a
atravessar o país. Se calhar, a
felicidade também tem a ver com
um trânsito sem complicações, e
o completo desconhecimento do
que é hora de ponta. Praticamente
não se usa dinheiro, não há consumo.
No Butão é-se feliz porque - convenhamos
- também não se pode
ser outra coisa. E é isso que me
apavora.
Que mérito poderá ter a minha luta
pela felicidade se não tenho de
combater a infelicidade?
Que mérito terá a minha realização
pessoal e profissional se não
tenho muita coisa que me realize?
Como posso discutir ideias se não
há nada para discutir?
E de que falam as pessoas quando
se juntam — se não há dívidas do
Passos Coelho, prisão do Sócrates,
a Troika, a família Salgado a
amar-se apaixonadamente, o Belmiro
a ir para a reforma, o Porto
a ver se chega aos calcanhares
do Benfica, a canção que mandámos
para a Eurovisão e que nem
para ir ao Festival da Bandalhoeira
servia (com todo o meu respeito
pela Bandalhoeira, claro) - essas
coisas que fazem a felicidade das
pessoas à mesa do café.
Como se pode ser herói se não há
obstáculos para vencer?
Como poderíamos desejar tanto
a primavera, se não houvesse inverno?
É claro que é muito bom que se
encontre um dia no ano para se
questionar a nossa Felicidade (ou
a falta dela). Mas aflige-me muita a
felicidade por decreto.
Por isso, em vez de pensar no Butão
(apesar da nossa crise brava e
das aparentes maravilhas deles, a
meio do documentário eu já estava
completamente deprimida…), e no
sorriso permanente colado à boca
dos habitantes, prefiro, apesar de
tudo, voltar à terra, a esta nossa
terrível, desesperante, complicada
terra onde vivemos, a braços com
esta terrível, desesperante, complicada
crise que ninguém sabe
onde nos leva – e pensar antes na
minha amiga Helena Marujo que
acredita, contra ventos, troikas
, BES e marés, que todos fomos
feitos para a Felicidade.
A Helena Marujo é uma cientista
conceituada, não escreve livros
de auto-ajuda – e, com o marido,
Luís Miguel Neto, fundou há uns
dois anos, o Instituto da Felicidade.
E uma das suas acções mais
importantes foi a elaboração de
um estudo sobre a felicidade dos
portugueses – ideia que lhe veio
quando andava a estudar as causas
da depressão entre crianças e
adolescentes.
Eu sei que há dois anos ainda não
estávamos tão mal como agora,
mas a verdade — como de resto
ela salienta logo no início — é que
nunca estivemos bem… Fomos
sempre o povo da desgraça, do
fado, o “país cabisbaixo”, como
lhe chamou o poeta Alexandre
O’Neil. E o que é preciso — seja
em que tempo for – é procurarmos
novas perspectivas de realização,
novas maneiras de viver o dia a
dia, novos interesses, novas disponibilidades,
um novo olhar para
quem vive ao nosso lado.
Carlos Drummond de Andrade escreveu
uma vez que “há duas épocas
na vida, - a infância e a velhice
- em que a felicidade está numa
caixa de bombons”…
Pois é preciso saber encontrar,
também para outras idades, a respectiva
caixa de bombons…
Custa, eu sei - mas antes isso que
ser feliz por obrigação legal.
(*) escritora/jornalista
Ghttps://www.facebook.com/transportes.fernandes
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