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m u s e u d a<br />
e x i s t ê n c i a<br />
AMARELO SILVESTRE
<strong>Museu</strong><br />
<strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong><br />
Um homem, Senhor Melo, decidiu construir um<br />
<strong>Museu</strong> com objetos que as pessoas fazem existir.<br />
Objectos com memórias vivas.<br />
O chapéu salva-vi<strong>da</strong>, o pão torrado que alimentou<br />
um amor clandestino, a aliança <strong>da</strong> revolução<br />
que acabou com a guerra, a boneca que não se<br />
pode partir e tantos outros.<br />
É isso o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>.<br />
Os objectos e as histórias são <strong>da</strong>s pessoas que<br />
abriram a porta de casa ao Senhor Melo, um<br />
pouco por todo o país. Ele falou-lhes do <strong>Museu</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>Existência</strong> e elas decidiram fazer parte.<br />
Emprestaram e doaram as suas próprias memórias<br />
vivas. Os seus objectos.<br />
O futuro dos museus é dentro <strong>da</strong>s nossas casas.<br />
Quem o diz é Orhan Pamuk, Prémio Nobel <strong>da</strong><br />
Literatura 2006, autor do livro <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Inocência,<br />
que conta a história de Kemal, um homem<br />
que construiu um museu de objectos a partir<br />
do momento mais feliz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> dele próprio: o<br />
<strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Inocência, em Istambul, na Turquia.<br />
O Senhor Melo conheceu Kemal e decidiu construir<br />
o seu próprio museu de objectos, a partir<br />
dos momentos mais felizes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas.<br />
É isso o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>. Uma casa.<br />
A colecção do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> a apresentar<br />
nas diferentes locali<strong>da</strong>des inclui também objectos<br />
de pessoas desses municípios.<br />
<strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>
(O) MOMENTO (MAIS)<br />
FELIZ DA MINHA VIDA<br />
Respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s, não <strong>da</strong><strong>da</strong>s e <strong>da</strong><strong>da</strong>s mas não <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />
Valor do objecto: A facili<strong>da</strong>de/dificul<strong>da</strong>de/impossibili<strong>da</strong>de<br />
de falar sobre o momento mais feliz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e de<br />
associar um objecto a esse momento.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (colecção própria).<br />
Origem: Diversa.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Aquisição <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong><br />
(por mim próprio, de meu nome Melo), a 21 de<br />
Novembro de 2015.<br />
Na minha busca por objectos associados aos<br />
momentos mais felizes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pessoas,<br />
muitas têm sido as respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s, as respostas<br />
não <strong>da</strong><strong>da</strong>s e as respostas <strong>da</strong><strong>da</strong>s mas não <strong>da</strong><strong>da</strong>s.<br />
To<strong>da</strong>s legítimas em igual medi<strong>da</strong>. As respostas<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s estão representa<strong>da</strong>s um pouco por to<strong>da</strong>s<br />
as outras vitrinas do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>; as<br />
respostas não <strong>da</strong><strong>da</strong>s, não havendo sido <strong>da</strong><strong>da</strong>s,<br />
não estão representa<strong>da</strong>s; quanto às respostas<br />
<strong>da</strong><strong>da</strong>s mas não <strong>da</strong><strong>da</strong>s, há uma que, julgo eu,<br />
exemplifica to<strong>da</strong>s as outras e que serviu de<br />
inspiração à concretização desta vitrina. Esta:<br />
“A ideia seria que a vi<strong>da</strong>, em si, fosse feliz e, nesse<br />
sentido, o objecto seria a vi<strong>da</strong>. Mas, como a vi<strong>da</strong><br />
não é um objecto, fica isto sem efeito”. Foi o<br />
Henrique quem mo disse, em Coimbra.
9H17: CONHECI A SOFIA<br />
Relógios parados e com etiquetas<br />
Valor dos objectos: Momentos mais felizes assinalados<br />
com relógios parados.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação do Senhor<br />
Francisco).<br />
Origem: Oliveira de Frades.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 9 de Dezembro de 2015.<br />
O Senhor Francisco não tem um momento mais<br />
feliz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, tem momentos mais felizes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Todos estes relógios parados e com etiquetas<br />
são, um por um, esses momentos. Sempre que<br />
essa felici<strong>da</strong>de maior lhe acontece, ele pára<br />
um relógio e escreve uma etiqueta como esta:<br />
“14h10: Dei um beijo à Marlene. Ela deu-me um<br />
estalo. Os lábios dela sabiam a batom de cieiro”;<br />
ou esta: “12h05: A estas horas encontrei uma<br />
nota de 10 contos no chão”; ou esta: “13h58:<br />
Depois de almoço, a estas horas, lembrei-me<br />
<strong>da</strong> aletria <strong>da</strong> minha mãe. Ela fazia-a com leite”.<br />
Para o Senhor Francisco, o tempo a registar é o<br />
do relógio, não o do calendário. Ele decidiu doar<br />
os relógios parados e etiquetados ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>. Menos um, que ain<strong>da</strong> não foi parado:<br />
o relógio que ele traz no pulso. “Ain<strong>da</strong> falta entregar<br />
este que há-de ser parado quando eu morrer”<br />
– disse-me o Senhor Francisco. “O senhor ain<strong>da</strong><br />
vai parar muitos relógios” – respondi eu. O<br />
Senhor Francisco riu-se e deu cor<strong>da</strong> ao relógio.
MATEI O PAI<br />
Verniz cinzento para unhas<br />
Valor do objecto: Lembra a Cláudia os momentos mais<br />
(in)felizes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (colecção própria).<br />
Origem: Coimbra.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Aquisição <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong><br />
(por mim próprio, de meu nome Melo), a 23 de<br />
Novembro de 2015.<br />
O pai <strong>da</strong> Cláudia ofereceu à mãe um verniz<br />
cinzento nos dias em que o amor era mais forte<br />
do que a vontade de bater. Quando a Cláudia era<br />
criança brincava às mulheres adultas e pintava<br />
as unhas com o verniz cinzento. Foi esse verniz<br />
que a Cláudia guardou quando ela e a mãe saíram<br />
de casa para fugir do pai. É mais um momento<br />
de felici<strong>da</strong>de amarga representado no <strong>Museu</strong><br />
<strong>da</strong> <strong>Existência</strong>.<br />
O testemunho <strong>da</strong> Cláudia (assim como o testemunho<br />
<strong>da</strong> Ana - ver história “Papoila”, também<br />
<strong>da</strong> vitrina “Matei o Pai”) remeteu-me para a<br />
violência doméstica em Portugal, nomea<strong>da</strong>mente<br />
a exerci<strong>da</strong> por homens sobre mulheres.<br />
Entre 2004 e 2014 morreram 399 mulheres<br />
vítimas de violência doméstica, segundo relatório<br />
do Observatório de Mulheres Assassina<strong>da</strong>s<br />
<strong>da</strong> União Mulheres Alternativa e Resposta<br />
(UMAR). Em 2015, morreram 29 mulheres. Em<br />
2016, até ao mês de Novembro, morreram 22<br />
mulheres. Entre Janeiro e Novembro de 2017<br />
foram mortas 18 mulheres.
JÁ PODE SER MENINO<br />
Aliança do pai do menino<br />
Valor do objecto: A memória de um dia em que o bebé<br />
que vinha a caminho, mesmo se fosse menino, já não ia<br />
à guerra em adulto.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (colecção própria).<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Aquisição <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong><br />
(por mim próprio, de meu nome Melo), a 18 de<br />
Dezembro de 2015.<br />
O relato é do Senhor Américo: “A 25 de Abril<br />
de 1974, eu, estu<strong>da</strong>nte de medicina, estava a<br />
fazer uma história clínica nos velhos Hospitais<br />
<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Coimbra. A determina<strong>da</strong><br />
altura, diz-me uma amiga: ‘parece que houve<br />
uma revolução em Lisboa’. Eu perguntei: Uma<br />
revolução de esquer<strong>da</strong> ou de direita?” Mas ain<strong>da</strong><br />
não havia resposta. “Eu disse à minha amiga: a<br />
história clínica acabou aqui, eu vou tentar saber<br />
o que se passa. Com a excitação, desapartei os<br />
botões <strong>da</strong> bata, atirei-a e a aliança que estava no<br />
bolso... nunca mais a vi (mais tarde, a minha sogra<br />
teve a gentileza de me oferecer outra). Quando<br />
cheguei a casa...”- a esposa do Senhor Américo, a<br />
Dona Graça, continuou o relato: “Ele pegou-me<br />
ao colo - eu estava com um barrigão de grávi<strong>da</strong><br />
– e ele an<strong>da</strong>va comigo à ro<strong>da</strong> e dizia: ‘já pode<br />
ser menino, já pode ser menino’”. Ele para ela:<br />
“Já pode ser menino porque a revolução vai<br />
acabar com a guerra”. Disse-me a Dona Graça:<br />
“Até esse dia, ele queria uma menina. Só então<br />
percebi porquê.”<br />
O Senhor Américo e a Dona Graça são pais<br />
de três meninos. Durante a Guerra Colonial<br />
morreram mais de oito mil militares <strong>da</strong>s Forças<br />
Arma<strong>da</strong>s portuguesas.
NÃO ME PARTAM A BONECA<br />
Boneca <strong>da</strong> avó<br />
Valor do objecto: Objectos que nos ficam <strong>da</strong>s pessoas<br />
que nos vão.<br />
Proprietária: Dona Manuela (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 19 de Dezembro de 2015.<br />
Disse-me a Dona Manuela: “Esta boneca é uma<br />
relíquia que eu tenho. Deve ter mais de 100<br />
anos. Não me partam a boneca. Era <strong>da</strong> minha<br />
avó, de quem eu gostava muito. Ela era muito<br />
bonita, não tinha uma ruga. Tinha 99 anos e<br />
meio quando morreu. Os meus pais morreram<br />
muito antes. A minha mãe tinha 43 anos quando<br />
morreu. Não deixou na<strong>da</strong>. Deixou os filhos. Não<br />
me partam a boneca. Nós éramos muito pobres.<br />
Eu passei fome. Muitas vezes eu e os meus<br />
irmãos comemos feijões sem na<strong>da</strong>. Agora tenho<br />
uma casinha para mim. Custou-me 145 contos.<br />
Não me partam a boneca. A minha felici<strong>da</strong>de é<br />
esta: estou aqui sozinha, a olhar para as minhas<br />
coisinhas, a ver televisão. Não tenho história<br />
nenhuma. Não me partam a boneca. Não fui<br />
muito feliz.” A Dona Manuela emprestou esta<br />
boneca ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>, mas pediu-me<br />
encareci<strong>da</strong>mente para não a partir. Eu espero<br />
cumprir a promessa.
NÃO ME PARTAM A BONECA<br />
Fotografia amplia<strong>da</strong> que fez chorar<br />
Valor do objecto: Uma imagem que diz quase tudo de<br />
uma vi<strong>da</strong>.<br />
Proprietária: Dona Manuela (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 19 de Dezembro de 2015.<br />
A Dona Manuela é a <strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>, em baixo.<br />
Vendo bem a camisola está mesmo um bocadinho<br />
rasga<strong>da</strong>. “Devia ter uns seis, sete anos”. A<br />
mãe é a que está senta<strong>da</strong>. Ao colo <strong>da</strong> mãe não<br />
está, mas devia estar, o irmão mais novo <strong>da</strong> Dona<br />
Manuela. “Teve medo do fotógrafo à la minuta<br />
e não ficou na fotografia”. O tamanho original<br />
desta imagem não era este, era mais pequeno.<br />
A Dona Manuela mandou ampliar a fotografia<br />
e, quando a foi buscar ao fotógrafo, as memórias<br />
- não ter mais que feijões para comer, ter de<br />
dormir de guar<strong>da</strong>-chuva na cama porque chovia<br />
dentro de casa, ter de seguir em frente depois<br />
<strong>da</strong> morte dos pais tão antes do tempo – ficaram<br />
mais vivas e fizeram-na chorar. “Chorei, chorei,<br />
chorei até me consolar. Foi uma vergonha estar<br />
ali a chorar em frente ao fotógrafo, mas fiquei<br />
consoladinha”. A Dona Manuela tem 74 anos.
ISTO NÃO É MEU<br />
Frasquinho com ar expirado por uma mulher<br />
Valor do objecto: Lembra-me a relação feliz com a<br />
Emília (o que não é, necessariamente, bom).<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação minha, de<br />
meu nome Melo).<br />
Origem: Vila Nova de Gaia.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 31 de Agosto de 2015.<br />
ERA A BRINCAR<br />
Forno de brincar a sério<br />
Valor do objecto: Forno de brincar que dá para cozinhar<br />
a sério.<br />
Proprietária: Dona Graça (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 18 de Dezembro de 2015.<br />
Esta é uma história minha que me custa partilhar<br />
de viva voz com as visitas do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>.<br />
Por escrito dói menos. Este frasquinho foi-me<br />
oferecido pela Emília. Ela subiu a um telhado sem<br />
medo de cair, inspirou o ar alto, deixou-o transmutar-se<br />
pelo corpo cheio de amor e de felici<strong>da</strong>de e<br />
expirou-o para dentro deste frasquinho. Quando<br />
ela foi, digamos, respirar outros ares que não os<br />
respirados por mim, não reclamou devolução do<br />
frasquinho. Eu ain<strong>da</strong> hoje tenho dúvi<strong>da</strong>s sobre<br />
a ver<strong>da</strong>deira proprie<strong>da</strong>de deste objecto. Será<br />
mesmo meu? Ou <strong>da</strong> Emília? Ou dos dois? Eu<br />
sempre fui incapaz de deitar fora o frasquinho ou<br />
de o devolver à Emília. Ou, até, de devolver apenas<br />
o ar à Emília e ficar com o frasquinho, como sugeriu,<br />
jocoso, um amigo meu. Este objecto tornou-se<br />
num embaraço para mim, sobretudo quando novas<br />
relações se sucederam na minha vi<strong>da</strong>.<br />
“Este forno deve ter uns 65 anos” – disse-me a<br />
Dona Graça que tem pouco mais anos de i<strong>da</strong>de.<br />
“Foi-me oferecido por um tio que tem 92 anos.<br />
Eu era criança e vi o forno numa montra, em<br />
Viseu. Fiquei completamente apaixona<strong>da</strong>. Mas<br />
era domingo, a loja estava fecha<strong>da</strong>. Naquele<br />
tempo não era fácil ir a Viseu [a partir de Canas<br />
de Senhorim] e poucas pessoas tinham carro.<br />
Mas o meu tio tinha. Então, durante a semana,<br />
ele saiu do emprego e foi a Viseu comprar o<br />
brinquedo. Para mim. Eu cozinhava neste fogão,<br />
que funciona a lenha como os fogões a lenha em<br />
tamanho de adulto. Punha-lhe umas panelinhas<br />
em cima e cozinhava. Fiz bolachas e maçã assa<strong>da</strong>,<br />
por exemplo. Mandei restaurá-lo há pouco<br />
tempo, porque o fogão estava todo ferrugento.”
CHAPÉU SALVA-VIDA<br />
Chapéu Salva-Vi<strong>da</strong><br />
Valor do objecto: Salvou a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Susana.<br />
Proprietária: Susana (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Porto.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 4 de Dezembro de 2015.<br />
AVÔ<br />
Não é o Telefone, avô<br />
Valor do objecto: Memória de brincar com o avô como<br />
se ele fosse uma criança.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (colecção própria).<br />
Origem: Vila Nova de Gaia.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Aquisição <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong><br />
(por mim próprio, de meu nome Melo), a 15 de<br />
Setembro de 2015.<br />
“Eu tinha uns cinco anos. Estava a passear à<br />
beira-mar com o meu pai. Era inverno. O meu<br />
pai ia à minha frente. Uma on<strong>da</strong> apanhou-me e<br />
eu fui enrola<strong>da</strong> pelo mar. Eu fui enrola<strong>da</strong> e não<br />
conseguia gritar. Estava a ir, embrulha<strong>da</strong> no<br />
turbilhão <strong>da</strong> água. O meu pai não se apercebeu<br />
de na<strong>da</strong> e seguia o seu caminho. Eu estava a ir.<br />
Até que o chapéu que eu trazia, este chapéu, foi<br />
levado pelo mar até aos pés do meu pai. Ele viu<br />
o chapéu e olhou para trás. Para mim. Eu estava<br />
a ir mas o meu pai arrancou-me ao mar”. Eu para<br />
a Susana, depois de a ouvir contar esta história:<br />
“Este chapéu salvou-te a vi<strong>da</strong>?”<br />
O chapéu <strong>da</strong> Susana é um dos objectos mais<br />
heróicos do <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>.<br />
Por vezes eu e o meu irmão tocávamos à campainha<br />
que havia ao lado <strong>da</strong> cama do avô. Por vezes<br />
eu e o meu irmão ficávamos a espreitar o avô.<br />
Por vezes o avô precipitava-se para atender o<br />
telefone quando ouvia a campainha. Por vezes<br />
o avô pegava no auscultador e invertia a lógica<br />
do aparelho, punha o bocal no ouvido e o altifalante<br />
na boca. Por vezes o avô dizia “tou, tou” Por<br />
vezes o avô irritava-se com a falta de resposta<br />
do outro lado <strong>da</strong> linha. Por vezes gritava “TOU,<br />
TOU”. Por vezes o avô desligava o telefone<br />
enfurecido e com estrondo. Por vezes eu e o<br />
meu irmão quase-morríamos a rir do avô, atrás<br />
<strong>da</strong> porta.
ADELAIDE<br />
Torra<strong>da</strong>s que alimentaram um amor clandestino<br />
Valor dos objectos: Uma história de amor com torra<strong>da</strong>s<br />
e mensagens subliminares.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação <strong>da</strong> Dona<br />
Adelaide).<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 18 de Dezembro de 2015.<br />
Eu fui a casa <strong>da</strong> Dona Adelaide para lhe falar do<br />
amor proibido de Kemal e de Füsun e do que <strong>da</strong>í<br />
resultou: o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> Inocência, em Istambul, na<br />
Turquia. Depois de me ouvir, a Dona Adelaide<br />
disse-me: “Não pense que também não tenho<br />
uma história de amor secreto, Senhor Melo.<br />
Não pense que essas histórias só acontecem em<br />
Istambul. Eu tive um grande amor clandestino.<br />
Poucos conhecem a minha história, porque as<br />
pessoas não a compreendem. Quando se tem<br />
força aguenta-se tudo. O meu amor não era <strong>da</strong><br />
minha socie<strong>da</strong>de, era um intelectual casado e<br />
com filhos. E digo-lhe: houve momentos felizes<br />
e momentos de amargura. Se eu lhe disser que<br />
tenho ali pão torrado em memória do meu amor<br />
não lhe minto”. A Dona Adelaide mostrou-me<br />
uma caixa de plástico antiga, <strong>da</strong>s que se vêem em<br />
muitas cozinhas portuguesas. É lá que ela guar<strong>da</strong><br />
o pão torrado. O cheiro, o sabor, a textura do pão,<br />
tudo isso é memória viva para ela. “Eu enchia um<br />
saquinho de linho com pão torrado, escrevia<br />
‘Beijinhos <strong>da</strong> Tia’ num pequeno bilhete, escondia<br />
o bilhete na costura do saquinho e levava-o<br />
à cadeia de Caxias. O meu amor estava preso<br />
por lutar pelos seus ideais. Política. Quando<br />
ele morreu, eu liguei para a casa <strong>da</strong> família e<br />
um dos filhos disse-me: ‘o meu pai acabou’. Eu<br />
tenho comigo o recorte do jornal com a notícia<br />
<strong>da</strong> morte dele. E fui ao funeral. E aguentei. Eu<br />
aguentei tudo”.
FÓSSEIS CONTEMPORÂNEOS<br />
Cordões Umbilicais, Dentes, Cabelo, Teste de gravidez,<br />
Ecografia<br />
Valor dos objectos: O que fica por causa de nós.<br />
Proprietários: Amélia, Tiago, Fernando, Rafaela e João<br />
(empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Espinho, Canas de Senhorim, Monte Abraão,<br />
Lisboa.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 24 de Setembro e a 19 de Outubro<br />
de 2015.<br />
O que fazer com a matéria morta dos nossos<br />
corpos? Deitar fora pe<strong>da</strong>ços de nós? Guar<strong>da</strong>r<br />
pe<strong>da</strong>ços mortos de nós? O que fazer com o teste<br />
de gravidez que deu positivo? Deitar fora a notícia<br />
<strong>da</strong> nossa existência? Guar<strong>da</strong>r um objecto de<br />
plástico no qual foi verti<strong>da</strong> urina? No entretanto<br />
dos pontos de interrogação, os objectos vão<br />
ficando connosco. E, provavelmente, ficarão<br />
para além de nós. Uma referência particular<br />
para a ecografia do João: em 1980 já havia destas<br />
“fotografias de embrião”, em Portugal; dois anos<br />
antes, quando nasceu o irmão, ain<strong>da</strong> não havia. O<br />
Fernando, irmão do João, ficou sem “fotografia<br />
de embrião”.
ERA A BRINCAR<br />
Boneca de borracha com cabelo ver<strong>da</strong>deiro<br />
Valor do objecto: A primeira boneca de borracha <strong>da</strong><br />
Dona Laura (e o que ela passou para tê-la).<br />
Proprietária: Dona Laura (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Torres Novas.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 16 de Março de 2016.<br />
A história foi-me conta<strong>da</strong> pela Dona Laura: “Eu<br />
tinha oito anos e nunca havia tido uma boneca<br />
como deve ser. Uma amiga <strong>da</strong> escola tinha<br />
muitas. Ela disse-me: ‘se quiseres ir a minha casa,<br />
eu dou-te uma boneca de borracha. A mais velha<br />
que eu lá tiver’. Eu fui, mas não sabia qual era o<br />
caminho de regresso <strong>da</strong> casa dela e ela prometeu<br />
que depois vinha comigo para me dizer qual era.<br />
A minha amiga deu-me a boneca e disse à mãe<br />
que me vinha trazer. Mas a mãe não deixou. Eu<br />
voltei sozinha. Vim todo o caminho a chorar, sem<br />
saber por onde ir. Perdi-me e cheguei uma hora<br />
atrasa<strong>da</strong> ao ponto de encontro com a minha tia.<br />
Quando eu cheguei e vi a minha tia fiquei to<strong>da</strong><br />
contente. Disse-lhe: ‘Tia, uma boneca’. E já não<br />
fui a tempo de dizer mais na<strong>da</strong>. Levei uma tareia.<br />
Ela bateu-me tanto na minha cara... Eu fiquei<br />
triste, não entendia porque é que ela me estava<br />
a bater. Eu vinha tão feliz, tão feliz. Isto foi há 52<br />
anos e eu conservo esta boneca. É uma boneca<br />
de borracha e tem cabelos ver<strong>da</strong>deiros. Não<br />
tem jeito nenhum, não é na<strong>da</strong> bonita, a minha<br />
irmã rasgou-lhe a boca com uma faca para lhe<br />
<strong>da</strong>r água, mas eu conservo-a comigo. Enquanto<br />
eu for viva nunca vou destruir a alegria de ter a<br />
minha primeira boneca de borracha”.
CUECAS-LENÇOL<br />
Máquina de costura para fazer cuecas a partir de lençóis<br />
Valor do objecto: Lembra à neta a “independência<br />
precoce” <strong>da</strong> avó.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação <strong>da</strong> Rafaela).<br />
Origem: Leiria.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 29 de Outubro de 2015.<br />
A Dona Rafaela, contou-me a neta Rafaela,<br />
começou muito cedo a trilhar um caminho<br />
independente. Um dos episódios <strong>da</strong> “independência<br />
precoce” remonta à infância <strong>da</strong> Dona<br />
Rafaela, quando, tendo aprendido por si própria<br />
a utilizar a máquina de costura, foi aos lençóis<br />
guar<strong>da</strong>dos na arca lá de casa e tirou tecido suficiente<br />
para fazer as próprias cuecas. Ficaram as<br />
cuecas, perderam-se os lençóis. A Rafaela doou<br />
a máquina <strong>da</strong> avó Rafaela ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>,<br />
depois de pedi<strong>da</strong> devi<strong>da</strong> autorização à tia<br />
Rafaela, herdeira legítima <strong>da</strong> máquina de costura.
CUIDADO COM O CÃO<br />
Cão (que já foi)<br />
Valor do objecto: Faz-nos pensar nos nossos fantasmas.<br />
Proprietário: Henrique (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Lisboa.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 2 de Dezembro de 2015.<br />
“Isto foi um caniche que eu comprei na Feira <strong>da</strong><br />
Ladra e desmanchei para a minha primeira cenografia.<br />
Ficou assim reduzido a um esqueleto de<br />
caniche. Acabei por não usá-lo no espectáculo,<br />
mas gostava muito de pô-lo a trabalhar. Era uma<br />
espécie de fantasma de cão que an<strong>da</strong>va. Fiz as<br />
minhas experiências, as pilhas gastaram-se e<br />
ficaram cá dentro. Mais de dez anos depois,<br />
estava eu na minha casa nova – onde, gosto de<br />
acreditar, existe o fantasma do antigo dono, o<br />
Senhor Carlos, que morreu nessa casa - quando,<br />
de repente, comecei a ouvir um barulho no<br />
escritório. Era este cãozinho que estava a an<strong>da</strong>r<br />
obsessivamente contra a parede. Tinha desatado<br />
a trabalhar com as pilhas que ain<strong>da</strong> estão cá<br />
dentro, já rebenta<strong>da</strong>s. Seria o fantasma do senhor<br />
Carlos a manifestar-se?” – sorriu-me o Henrique.<br />
O que mais importa: isto foi um caniche.
FAZER POR LER<br />
Bíblia<br />
Valor do objecto: Foi por causa <strong>da</strong> Bíblia que a Dona<br />
Eugénia foi aprender a ler, aos 48 anos.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação <strong>da</strong> Dona<br />
Eugénia).<br />
Origem: Nelas.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 17 de Dezembro de 2015.<br />
Aos 48 anos, a Dona Eugénia não sabia ler nem<br />
escrever. “A minha história foi muito bonita”<br />
- disse-me a própria. Ela recebeu duas testemunhas<br />
de Jeová, em casa, que tinham um propósito:<br />
ler excertos “<strong>da</strong> Bíblia” - ou Tradução do Novo<br />
Mundo <strong>da</strong>s Escrituras Sagra<strong>da</strong>s, na versão <strong>da</strong>s<br />
Testemunhas de Jeová. A Dona Eugénia ouviu,<br />
mas queria saber mais. Para isso, foi aprender<br />
a ler. Foi para a escola, para o ensino nocturno.<br />
“Éramos oito alunos, no início do ano. No fim só<br />
restava eu. Lá na aldeia cultivam e nos meses<br />
de Maio, Junho, já ninguém ia para a escola, iam<br />
para as terras. Mas eu continuei e fiz o exame <strong>da</strong><br />
quarta classe. A Bíblia foi o livro que me incentivou<br />
a estu<strong>da</strong>r.” A Dona Eugénia aprendeu a ler<br />
aos 48 anos. Hoje tem 76 anos. “A Bíblia” que a<br />
fez aprender a ler é mesmo esta, uma doação <strong>da</strong><br />
Dona Eugénia ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>. “Posso<br />
doá-la ao <strong>Museu</strong> porque eu comprei outra que<br />
tem letras maiores. Esta Bíblia tem letras pequeninas<br />
e é mais difícil de ler.”
EU SOU O MEU PAI<br />
Arame de espumante<br />
Valor do objecto: Faz-me lembrar o meu pai.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação de mim<br />
próprio, de meu nome Melo).<br />
Origem: Vila Nova de Gaia.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 31 de Agosto de 2015.<br />
Este é um objecto meu. É um simples arame.<br />
Lembrei-me dele porque me lembrei do meu pai.<br />
Nas festas, quando todos já estavam a arrumar<br />
tudo, o meu pai ficava à mesa a brincar com o<br />
arame que envolve a rolha do espumante. Ia<br />
deslin<strong>da</strong>ndo o arame até pô-lo direitinho. Passava<br />
ali imenso tempo a deslin<strong>da</strong>r, a deslin<strong>da</strong>r, ia<br />
bebendo um bocadinho, às vezes fazia figuras com<br />
o arame e noutras vezes guar<strong>da</strong>va-o. Há pouco<br />
tempo dei por mim a deslin<strong>da</strong>r um arame de um<br />
caderno em espiral. Estive três quartos de hora<br />
a deslin<strong>da</strong>r o arame sem perceber porque é que<br />
estava a fazer aquilo. Só quando consegui esticar<br />
o arame todo é que percebi: eu sou o meu pai.
MÃE<br />
Me<strong>da</strong>lha Agnus Dei<br />
Valor do objecto: Encontro com a Mãe aos 40 anos.<br />
Proprietário: Senhor Carlos (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Coimbra.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 21 de Agosto de 2015.<br />
Eu estava em Coimbra a visitar um museu,<br />
a Sala <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de, quando fui abor<strong>da</strong>do pelo<br />
Senhor Carlos, de 83 anos. O Senhor Carlos<br />
queria falar, queria falar muito. E, sem que eu lhe<br />
tivesse falado <strong>da</strong> minha intenção em concretizar<br />
o <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>, ele perguntou-me: “Sabe<br />
qual foi o momento mais feliz <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong>? Foi<br />
o momento em que conheci a minha mãe, aos 40<br />
anos”. O Senhor Carlos cresceu sem mãe e sem<br />
pai e foi informado de que a mãe estava numa<br />
instituição em Viana do Castelo. Quando chegou<br />
à instituição, o Senhor Carlos não precisou que<br />
lhe dissessem quem era a mãe que ele não<br />
tinha e passou a ter. Ele conheceu-a. O Senhor<br />
Carlos abraçou-a. A mãe aceitou o abraço mas<br />
não reconheceu o filho. Ela estava demente. O<br />
Senhor Carlos disse que deu pulos de alegria.<br />
“Dei pulos de alegria, acreditem ou não”. Ele<br />
tinha acabado de conhecer a mãe e estava feliz<br />
por ela ser uma mulher sem memória. O Senhor<br />
Carlos disse que, assim, entre eles, não havia<br />
quês nem porquês. Havia o abraço, apenas.<br />
Desse momento, o Senhor Carlos guar<strong>da</strong> uma<br />
pequeníssima me<strong>da</strong>lha, um Agnus Dei, que a mãe<br />
tinha com ela no dia em que eles se abraçaram.
DE TANTO PEDALAR, CASEI-ME<br />
Partes de bicicleta<br />
Valor do objecto: Com a bicicleta, o Senhor António<br />
encontrou pretendentes mil e conquistou a esposa.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>.<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 17 de Dezembro de 2015.<br />
O Senhor António, 65 anos, contou-me: “Quando<br />
eu fiz 13 anos, os meus pais deram-me uma<br />
bicicleta nova, pareci<strong>da</strong> com uma pasteleira,<br />
com mu<strong>da</strong>nças, luz e tudo. Era uma loucura.<br />
Naquela altura, só tinha bicicleta quem podia e<br />
havia muitos ricos que não tinham. Eu vinha de<br />
Nelas para aqui [Canas de Senhorim] todos os<br />
domingos.” Para tentar “falar” com a Dona Céu,<br />
futura esposa. “Vinha por Algeraz, Vilar Seco,<br />
Santar, Carvalhal [Redondo], Canas [de Senhorim].<br />
De bicicleta.” Perto de 20 quilómetros<br />
para cá e outros tantos para lá. “Aquilo era uma<br />
alegria enorme. Vinha, estava aqui um bocado<br />
[em Canas de Senhorim], às vezes falávamos<br />
[Senhor António e Dona Céu], outras vezes não<br />
chegávamos a falar e eu voltava para Nelas”. Ao<br />
fim de muitas voltas, o Senhor António e a Dona<br />
Céu começaram a namorar. “Estamos casados<br />
há 44 anos”.
PARACOMERBEBERCORRER<br />
Fotografia do Alentejo tira<strong>da</strong> no meio <strong>da</strong> estra<strong>da</strong><br />
Valor do objecto: A felici<strong>da</strong>de aos 40 anos: correr<br />
Alentejo dentro.<br />
Proprietário: <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong> (doação <strong>da</strong> Sandra).<br />
Origem: Canas de Senhorim.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio, de<br />
meu nome Melo, a 17 de Dezembro de 2015.<br />
“Eu tenho uma fotografia do sítio onde, até hoje,<br />
me senti feliz de facto. É do Alentejo, onde passei<br />
um ano com as minhas filhas. Num dia, eu parei<br />
o carro no meio <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> - e só depois de fazer<br />
isto é que eu pensei: meu deus, eu parei no meio<br />
<strong>da</strong> estra<strong>da</strong> - porque ia maravilha<strong>da</strong> com o que<br />
estava a ver. Eu olhava para a paisagem e a sensação<br />
que tinha era a de uma criança a correr no<br />
meio dos campos. E era a minha infância, de certa<br />
forma, que eu estava a reviver, quando corria<br />
pelos campos do meu avô. Eu parei e fotografei<br />
tudo com o meu telemóvel. A vontade que eu<br />
tinha era a de ir correr para dentro <strong>da</strong>quela<br />
paisagem que estava a ver. Uns tempos mais<br />
tarde, fomos festejar o aniversário de uma<br />
pessoa amiga num sítio com uma paisagem<br />
igual à que me fez parar o carro para fotografar.<br />
Eu disse para as minhas filhas: sabem o que me<br />
apetecia? E as minhas filhas: ‘Sabemos. O mesmo<br />
que nos apetece a nós: correr por estes campos’.”<br />
E foi o que fizeram a Sandra e as duas filhas.<br />
Garrafa de laranja<strong>da</strong> Rumaria<br />
Valor do objecto: A primeira laranja<strong>da</strong> que o Senhor<br />
João bebeu foi a que o pai fabricava.<br />
Proprietário: Senhor João (empréstimo ao <strong>Museu</strong> <strong>da</strong><br />
<strong>Existência</strong>).<br />
Origem: Torres Novas.<br />
Método e <strong>da</strong>ta de recolha: Em mão, por mim próprio,<br />
de meu nome Melo, a 6 de Janeiro de 2016.<br />
“Quando eu bebi laranja<strong>da</strong> pela primeira vez,<br />
em criança (1960), foi <strong>da</strong> que o meu pai fabricava:<br />
Rumaria. A laranja<strong>da</strong> chamava-se assim<br />
porque os meus irmãos mais velhos chamam-se<br />
Rui e Maria. Então, o meu pai chamou Rumaria à<br />
laranja<strong>da</strong>: Rui + Maria. A laranja<strong>da</strong> era feita com<br />
água do Rio Alviela”. Isto contou-me o Senhor<br />
João.
Ficha Artística <strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong><br />
Direção artística Fernando Giestas e Rafaela Santos<br />
Dramaturgia Fernando Giestas<br />
Encenação Rafaela Santos<br />
Interpretação Ricardo Vaz Trin<strong>da</strong>de<br />
Cocriação e interpretação Viseu, Ovar, Sever do Vouga e Guimarães João Melo<br />
Interpretação Torres Novas e Coimbra Ricardo Correia<br />
Conceção plástica, cenografia e figurinos Ana Seia de Matos<br />
Conceção plástica digressão e Fotografia Carolina Reis<br />
Concepção e design dispositivo cénico Henrique Ralheta<br />
Desenho de luz Jorge Ribeiro<br />
Apoio espaço sonoro Ana Bento<br />
Design gráfico Luís Belo<br />
Registo e Edição Vídeo Tomás Pereira<br />
Consultoria museológica Susana Medina<br />
Produção executiva Paula Trepado e Susana Rocha<br />
<strong>Criação</strong> <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong><br />
Co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>, Teatro Viriato e Centro Cultural Vila Flor<br />
Projecto co-financiado pela Direcção-Geral <strong>da</strong>s Artes (Apoio Pontual 2015)<br />
Parceria As Casas do Visconde<br />
Apoio Câmara Municipal de Nelas, Lusofinsa, Borgstena, Patinter<br />
Agradecimentos<br />
Chapelaria Confiança, Sapataria Custódio Domingos, Ourivesaria Lifon e Relojoaria<br />
Suíça (Viseu), Ourivesaria Joyarte, A Velocipédica, Ernesto Augusto dos<br />
Santos e Residencial Rossio (Canas de Senhorim); a todos os que contribuíram<br />
para este projecto com histórias e objectos.<br />
Duração 90 min. (aprox.) • Público-Alvo M/12 anos • Lotação limita<strong>da</strong><br />
4.ª edição deste catálogo, Maio 2018.
<strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong><br />
Constituí<strong>da</strong> em 2009, a companhia de teatro <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong> concretiza as suas activi<strong>da</strong>des a partir de Canas<br />
de Senhorim, Município de Nelas. Teatro contemporâneo criado em contexto semi-urbano, atento ao mundo e à<br />
vi<strong>da</strong>. Destaque para a dramaturgia em língua portuguesa e para o corpo coreográfico do actor em cena. Palavra e<br />
corpo: dois pilares do propósito artístico <strong>da</strong> <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>.<br />
A direcção artística é assegura<strong>da</strong> por Fernando Giestas e Rafaela Santos. A gestão administrativa e a produção<br />
executiva são <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de de Paula Trepado e Susana Rocha.<br />
Projectos em preparação<br />
- “Guar<strong>da</strong>r Segredo”, espectáculo de teatro dentro de um guar<strong>da</strong>-fatos, colocado no espaço público, para 1 espectador;<br />
estreia em 2018;<br />
- “Sementes”, espectáculo de teatro a propósito <strong>da</strong> prática milenar dos agricultores de colher e guar<strong>da</strong>r sementes<br />
para posteriores sementeiras; co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong> e Comédias do Minho; estreia em 2018;<br />
- “Engolir Sapos”, reflexão artística, em forma de espectáculo de teatro, sobre preconceito e sapos de loiça colocados<br />
em espaços públicos e privados para afastar ciganos; co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>, Teatro Municipal do Porto,<br />
Teatro Viriato e Centro de Arte de Ovar; residências de criação em 2018 e estreia em 2019;<br />
- “O Hotel dos Nossos Sonhos” permitir-nos-á ir ao encontro <strong>da</strong> história do Hotel Urgeiriça, no Município de Nelas,<br />
relaciona<strong>da</strong> com a II Guerra Mundial e o movimento de refugiados <strong>da</strong>í decorrente, com rotas que passaram pelo<br />
Hotel. Por essa altura, nos terrenos que circun<strong>da</strong>m o Hotel, a exploração mineira <strong>da</strong>s Minas <strong>da</strong> Urgeiriça “alimentava”<br />
a mesma Guerra de que fugiam alguns dos hóspedes; estreia em 2019.<br />
Espectáculos mais recentes<br />
- “Canas 44”, co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>, Nome Próprio, Teatro Nacional D. Maria II, Centro de Arte de Ovar e<br />
Câmara Municipal de Nelas, com direcção de Victor Hugo Pontes; estreia Outubro 2017 no Auditório dos Bombeiros<br />
Voluntários de Canas de Senhorim; projecto co-financiado pela Direcção-Geral <strong>da</strong>s Artes;<br />
- “Mina”, co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>, Fun<strong>da</strong>ção Lapa do Lobo e Câmara Municipal de Nelas; estreia Dezembro<br />
2016 nas Minas <strong>da</strong> Urgeiriça, Canas de Senhorim; espectáculo com a comuni<strong>da</strong>de do Município de Nelas; projecto<br />
co-financiado pela Direcção-Geral <strong>da</strong>s Artes;<br />
- “<strong>Museu</strong> <strong>da</strong> <strong>Existência</strong>”, co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>, Teatro Viriato e Centro Cultural Vila Flor; estreia Abril<br />
2016 no Clube de Viseu – Teatro Viriato (Viseu); projecto co-financiado pela Direcção-Geral <strong>da</strong>s Artes;<br />
- “o que é que o pai não te contou <strong>da</strong> guerra?”, co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong> e Teatro Nacional São João, encenação<br />
de Rogério de Carvalho, estreia Março 2015 no Teatro Carlos Alberto (Porto); residência artística co-financia<strong>da</strong><br />
pela Direcção-Geral <strong>da</strong>s Artes, em 2014;<br />
- “Sangue na Guelra”, co-produção <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong> e Teatro Viriato, encenação de Rogério de Carvalho, estreia<br />
Outubro 2013 no Teatro Viriato (Viseu); projecto co-financiado pela Direcção-Geral <strong>da</strong>s Artes, no âmbito de Apoio<br />
Anual (2013) à <strong>Amarelo</strong> <strong>Silvestre</strong>;<br />
– texto do espectáculo, intitulado Sangue na Guerra/Guelra/Guerra, publicado na colectânea “Oficina de Escrita<br />
Odisseia: textos escolhidos”, coordenação de Jean-Pierre Sarrazac e Alexandra Moreira <strong>da</strong> Silva, edição do Teatro<br />
Nacional São João (2011).