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EXAME Maio 2020

Na conjuntura desafiante que atravessamos todos temos que aprender a viver com o vírus. E de preferência com um sorriso na cara. Nesta edição apresentamos na área de inovação uma estratégia para o tele-trabalho e noutro artigo o seu enquadramento legal. Ao nível global reforçámos a nossa cobertura sobre o continente africano, sem esquecer o que se passa ao nível dos outros países. Na guerra contra o vírus, todas as experiências são relevantes.

Na conjuntura desafiante que atravessamos todos temos que aprender a viver com o vírus. E de preferência com um sorriso na cara. Nesta edição apresentamos na área de inovação uma estratégia para o tele-trabalho e noutro artigo o seu enquadramento legal. Ao nível global reforçámos a nossa cobertura sobre o continente africano, sem esquecer o que se passa ao nível dos outros países. Na guerra contra o vírus, todas as experiências são relevantes.

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ÁFRICA ● O impacto<br />

da pandemia no continente<br />

ESTRATÉGIAS ● Países mais atingidos<br />

experimentam “novo normal”<br />

Nº 88 v <strong>Maio</strong> <strong>2020</strong> v 200Mt v 5 Edição Moçambique<br />

PANDEMIA<br />

COMO VIVER<br />

COM O VÍRUS<br />

Vamos ter de habituar-nos a viver com um<br />

vírus que condiciona a sociedade, paralisa<br />

a economia, atira milhares para o desemprego<br />

e reacende ao rubro tensões geopolíticas.<br />

O mundo do COVID-19 não é o mesmo onde<br />

vivíamos ainda há poucas semanas.<br />

Um dossier especial<br />

e exclusivo.<br />

INOVAÇÃO<br />

A resposta<br />

do<br />

teletrabalho


REVISTA MENSAL — ANO 7 — N O 88 — MAIO <strong>2020</strong><br />

TIRAGEM: 10 000 EXEMPLARES — CAPA: GETTY<br />

32<br />

APLICAÇÃO:<br />

Moçambique desenvolve<br />

tecnologia para combater<br />

a pandemia<br />

TECNOLOGIA<br />

32 Autodiagnóstico Os serviços de saúde e a empresa UX<br />

criaram uma ferramenta digital que é uma aliada na prevenção<br />

da epidemia<br />

ÁFRICA<br />

40 Impacto Ainda com poucos casos, o continente já se confronta com<br />

perdas económicas avultadas e uma mais que provável recessão<br />

48 Acção A União Africana propõe conjunto de acções aos<br />

Estados-membros para mitigar os efeitos da pandemia na economia<br />

50 Amigos Várias empresas e personalidades estão a dar apoio<br />

financeiro ao combate à COVID-19 em África<br />

GLOBAL<br />

58 Contenção A estratégia mais utilizada pelos governos para conter<br />

o contágio é o confinamento da população<br />

61 China Adoptou a quarentena mais agressiva com recurso ao<br />

reconhecimento facial generalizado e aplicações assentes em<br />

inteligência artificial<br />

50<br />

BILL GATES:<br />

A sua fundação<br />

ajuda África<br />

a combater<br />

a COVID-19<br />

D.R.<br />

62 Rastreio O sucesso de Taiwan e da Coreia do Sul no combate<br />

ao vírus assenta no contact tracing<br />

64 Devastado O continente europeu foi severamente castigado pela<br />

pandemia, que deixa um rasto assustador em número de infectados<br />

e de mortos<br />

65 Testar Pequeno país europeu, a Islândia obteve bons resultados<br />

com a realização de testes gratuitos em larga escala<br />

66 Confiança A Alemanha é o único grande país do “Velho<br />

Continente” a enfrentar a pandemia com êxito<br />

DR<br />

70<br />

DONALD TRUMP:<br />

O Presidente dos<br />

EUA questiona<br />

o papel da China<br />

na origem do surto<br />

68 Contraste Apesar da vizinhança, Portugal consegue resultados<br />

muito melhores que Espanha no combate ao vírus<br />

69 Estados Unidos A COVID-19 implodiu em Nova Iorque com<br />

uma violência brutal, tornando-a a cidade do mundo mais atingida<br />

7O Tensão Os Estados Unidos e outros países querem investigar<br />

a origem do surto na China e aumenta a tensão internacional<br />

71 Maratona Só mais à frente se poderá avaliar se os países<br />

que evitaram o confinamento fizeram a opção correcta<br />

ESPECIAL<br />

72 Teletrabalho Com a pandemia, o recurso ao trabalho remoto<br />

inovou o funcionamento das organizações<br />

D.R.<br />

SECÇÕES<br />

Editorial 6<br />

Primeiro Lugar 8<br />

Grandes Números 14<br />

Bazarketing 38<br />

Oil&Gas 56<br />

Exame Final 82<br />

4 | Exame Moçambique


CAPA 1<br />

16 Pagar a crise<br />

Como serão financiados os estragos causados<br />

pela pandemia? Qual o rombo nas contas públicas e<br />

quanto haverá a receber de apoios e linhas de crédito<br />

disponibilizados por instituições internacionais?<br />

CAPA 2<br />

22 Economia adapta-se<br />

As empresas estão a reagir, adaptam-se e adoptam<br />

normas sanitárias e novos métodos, como o<br />

teletrabalho. A COVID-19 atinge em cheio o sector<br />

do turismo. A esperança reside na agricultura.<br />

GETTY


CARTADODIRECTOR<br />

IRIS DE BRITO<br />

DIRECTORA<br />

DECISÕES LOCAIS,<br />

EFEITOS GLOBAIS<br />

A<br />

boa governação e inerentes práticas governativas<br />

passam por uma prudente alocação<br />

dos recursos disponíveis, cujo racional<br />

deve acautelar a ocorrência de eventos e fenómenos<br />

inesperados, assim como os impactos<br />

que tais eventos possam causar no bem-estar<br />

das populações, não somente aos níveis económico<br />

e social, mas também em termos de saúde NEM AS<br />

pública e respectivos sistemas. Num mundo globalizado<br />

e com uma economia interdependente,<br />

ECONOMIAS COM<br />

tais impactos são afectados pelos fenómenos de MAIS RECURSOS<br />

spill over e spill into face às complexas redes económicas,<br />

políticas e sociais que tendem a esta-<br />

SE PREPARARAM<br />

DEVIDAMENTE<br />

belecer-se entre os diferentes países. Pelo que<br />

as decisões locais podem, rapidamente, assumir<br />

efeitos globais.<br />

PANDÉMICO<br />

PARA UM CENÁRIO<br />

A resposta europeia à pandemia causada pelo<br />

novo coronavírus demonstra não só a falta dos necessários meios de emergência<br />

para uma situação com este nível de exigência, mas também a ausência da<br />

necessária coesão para uma acção eficaz que se traduz (i) na falta de coordenação<br />

das políticas de saúde pública e (ii) na falta de solidariedade entre os países<br />

— numa Europa em franca desunião numa altura em que uma liderança<br />

sólida e coesa não só é necessária como também fundamental para garantir<br />

a superação da crise que advirá deste cenário global.<br />

Na Ásia é reconhecido que diversos países se encontram, ainda, numa fase<br />

embrionária de criação de sistemas de saúde pública, e Li Bin, vice-ministro<br />

da Comissão Nacional de Saúde da China, foi peremptório ao afirmar a necessidade<br />

de um maior investimento na área da saúde.<br />

Nos EUA, a pressão constante para a redução de impostos e do papel do<br />

Estado na economia, originou um sistema de saúde retalhado, em que os seguros<br />

de saúde são fundamentais no acesso aos serviços básicos de saúde num<br />

sistema em que os hospitais são, mormente, orientados para o lucro. Ainda<br />

assim, segundo Rick Pollack, CEO da Associação Americana de Hospitais,<br />

em 2019 a assistência gratuita às populações mais vulneráveis foi de 38 mil<br />

milhões de dólares. No Hemisfério Sul, Moçambique e outros países sofrerão<br />

as pesadas consequências de uma pandemia para a qual não estão devidamente<br />

preparados devido à escassez de recursos, mas que todos os esforços implementam<br />

para travar a sua propagação. No entanto, nem sequer as economias<br />

com mais recursos se prepararam devidamente para um cenário pandémico.<br />

E porque as decisões locais têm efeitos globais, os países em desenvolvimento<br />

têm toda a legitimidade de exigir aos países desenvolvidos que façam<br />

mais para travar as próximas. b<br />

Edifício Rovuma, Rua da Sé, n.º 114,<br />

Escritório 109<br />

MAPUTO, MOÇAMBIQUE<br />

geral@examemocambique.co.mz<br />

Directora: Iris de Brito<br />

Director Executivo: Luis Faria<br />

(luis.faria@luisfaria.com)<br />

Arte: Pedro Bénard<br />

Colaboradores Regulares:<br />

Valdo Mlhongo,<br />

Thiago Fonseca (crónica),<br />

Edilson Tomás (fotografia),<br />

Colaboraram nesta edição:<br />

Almerinda Romeira, Luís Fonseca, Ricardo David<br />

Lopes, Paula Duarte Rocha.<br />

Direitos Internacionais:<br />

<strong>EXAME</strong> Brasil (texto e imagens),<br />

AFP, Graphic News e IStockPhoto<br />

Coordenação Geral: Marta Cordeiro (projecto),<br />

Inês Reis (arte)<br />

Multimédia e Internet: Plot.<br />

www.examemocambique.co.mz<br />

PUBLICIDADE<br />

+258 843 107 660<br />

comercial@examemocambique.co.mz<br />

Comercial: Gerson dos Santos<br />

ASSINATURAS<br />

Moçambique: Nádia Pene, +258 845 757 478<br />

Portugal: Ana Rute Sousa, +351 213 804 010<br />

assinaturas@examemocambique.co.mz<br />

REDACÇÃO<br />

+ 258 21 322 183<br />

redaccao@examemocambique.co.mz<br />

Produção: Ana Miranda<br />

Número de registo: 09/GABINFO - DEC/2012<br />

Tiragem: 10 mil exemplares<br />

Distribuição:<br />

Moçambique: Flotsan, Bairro Patrice Lumumba,<br />

Rua “A” Casa 242, Matola<br />

Tel.: +258 84 492 2014; +258 82 301 3211.<br />

e-mail: mozadmin@africandistribution.net<br />

Portugal: VASP, MLP Quinta do Grajal, Venda Seca<br />

2739-511 Agualva Cacém Tel.: +351 214 337 000<br />

Impressão: Minerva Print<br />

Av. Mohamed Siad Barre, n.º 365<br />

Maputo<br />

A revista <strong>EXAME</strong> (Moçambique) é um<br />

licenciamento internacional da revista <strong>EXAME</strong><br />

(Brasil), propriedade da Editora Abril.<br />

Sociedade Moçambicana<br />

de Edições, Lda.<br />

Director-Geral<br />

Miguel Lemos<br />

Conselho de gerência<br />

Luís Penha e Costa<br />

Rui Borges<br />

António Domingues<br />

6 | Exame Moçambique


PRIMEIRO<br />

LUGAR<br />

MOÇAMBIQUE ESSENCIAL. PEQUENAS NOTÍCIAS SOBRE UM GRANDE PAÍS<br />

RELATÓRIO: A Economist Intelligence Unit reviu<br />

as suas projecções para a economia moçambicana<br />

D.R.<br />

PROJECÇÃO<br />

PANDEMIA QUEBRA CRESCIMENTO<br />

Os principais indicadores de evolução da economia moçambicana<br />

deverão deteriorar-se este ano, em resultado do impacto<br />

da pandemia do novo coronavírus na procura global de matérias-<br />

-primas e também da menor produção de carvão, de acordo com<br />

o último relatório da Economist Intelligence Unit (EIU), a unidade<br />

de análise do grupo da revista The Economist. O crescimento será<br />

negativo (menos 2,4%, quando, em 2019, também segundo a EIU,<br />

terá ficado em 1,9%), a inflação média vai subir dos 2,8%, registados<br />

o ano passado, para 6,8%, o défice orçamental acentuar-se-<br />

-á, de menos 8,4% do PIB para menos 13,3%, registando o saldo<br />

da conta corrente um ligeiro agravamento (de menos 19,6% do PIB<br />

para menos 20,4%). O metical irá depreciar contra o dólar norte-<br />

-americano, passando do valor médio de 62,5 meticais por cada<br />

dólar, verificado em 2019, para 65,66 meticais por dólar, prosseguindo<br />

a desvalorização até 2023, ano em que recupera valor face<br />

à moeda norte-americana. As estimativas para a trajectória da taxa<br />

de juro são positivas para este ano e o próximo, descendo, em termos<br />

médios, dos 13,5% apurados em 2019 para 10% este ano e 9%<br />

no próximo, voltando depois a subir. As estimativas para o crescimento<br />

da economia contidas no relatório são mais favoráveis<br />

para 2021, com o produto interno bruto (PIB) a crescer 2%, projectando-se<br />

até 2024 uma evolução muito favorável e que o PIB<br />

atinja neste último ano uma variação de 9%. Já a inflação, após<br />

uma inversão na sua curva de crescimento em 2021, deverá continuar<br />

a subir até ao último ano considerado nas previsões da EIU,<br />

2024. O défice fiscal, após o revés deste ano, melhorará até ao final<br />

do período, estimando-se que venha a situar-se em menos 5,7% do<br />

PIB em 2024, uma trajectória que se fica a dever ao crescimento<br />

económico e às receitas do gás natural. A EIU não espera que o<br />

Fundo Monetário Internacional (FMI) forneça, além da assistência<br />

técnica, assistência financeira a Moçambique enquanto não se chegar<br />

a um desfecho sobre a questão da resolução das dívidas pendentes.<br />

O relatório exceptua a “facilidade de crédito”, no valor de<br />

118 milhões de dólares, aberta em Abril de 2019, na sequência da<br />

devastação causada pelos ciclones Idai e Kenneth, e admite a concessão<br />

de financiamentos de emergência em resposta ao surto da<br />

COVID-19. A EIU acredita que o acesso limitado ao financiamento<br />

externo levará o governo a efectuar reformas e a privatizar activos<br />

estatais, embora a prioridade de mitigar a epidemia abrande<br />

o ritmo das reformas este ano.<br />

8 | Exame Moçambique


Em palavras simples, digo: vamos ficar em casa.<br />

Filipe Nyusi, Presidente da República.<br />

COVID-19<br />

VALE ENTREGA ATOMIZADORES<br />

A Vale ofereceu às autoridades de Tete<br />

e Moatize atomizadores que estão já<br />

a ser utilizados na desinfecção das<br />

vias públicas, mercados e transportes<br />

colectivos. A empresa pretende,<br />

desta forma, ajudar na prevenção da<br />

pandemia do novo coronavírus junto<br />

das comunidades, impedindo a propagação<br />

da doença. De acordo com o<br />

comunicado divulgado pela empresa,<br />

“o objectivo é prevenir o contacto com<br />

eventuais agentes infecciosos, impedindo<br />

o contágio e dando, ao mesmo<br />

tempo, confiança às pessoas”. Além dos<br />

atomizadores, a Vale ofereceu ainda<br />

materiais de higiene pública que estão<br />

a servir as populações. A entrega dos<br />

equipamentos às autoridades de Tete e<br />

Moatize insere-se no âmbito do memorando<br />

de entendimento que a empresa<br />

assinou com o governo moçambicano e<br />

que prevê ajuda no valor de 2 milhões<br />

de dólares americanos para combater<br />

a COVID-19. Em causa está a doação<br />

de diverso equipamento hospitalar e<br />

material de prevenção e protecção individual<br />

para os profissionais de saúde.<br />

Neste vasto pacote de ajuda humanitária<br />

que irá ser distribuído em várias<br />

províncias do país, serão também disponibilizados<br />

80 mil testes rápidos.<br />

O comunicado salienta que “desde<br />

que se iniciou o surto de pneumonia<br />

do novo coronavírus COVID-19, a Vale<br />

adoptou de forma proactiva todas as<br />

medidas de prevenção, no sentido de<br />

garantir a segurança dos seus colaboradores<br />

e comunidades onde opera”.<br />

Março<br />

66,37<br />

Março<br />

1,60<br />

Março<br />

23,36<br />

SALA DE<br />

MERCADOS<br />

MOEDA<br />

(Meticais por USD)<br />

-2%<br />

GÁS NATURAL<br />

(USD/MMBtu)*<br />

+21%<br />

CRUDE<br />

(USD/barril)<br />

-41%<br />

CARVÃO DE COQUE<br />

(USD/ton.)<br />

Abril<br />

67,46<br />

Abril<br />

1,94<br />

Abril<br />

13,78<br />

DESINFECÇÃO: A Vale ofereceu atomizadores que já estão a ser utilizados nas vias<br />

públicas, mercados e transportes colectivos<br />

Março<br />

139,89<br />

-18%<br />

MILHO<br />

(USD/Bushel)**<br />

Abril<br />

115,01<br />

Março<br />

343,50<br />

D.R.<br />

-5%<br />

Abril<br />

326,00<br />

Março<br />

1572,00<br />

OURO<br />

(USD/t oz)***<br />

+11%<br />

Abril<br />

1738,30<br />

COTAÇÕES A 22/03/<strong>2020</strong> E A 23/04/<strong>2020</strong><br />

* MMBtu = milhões de British Thermal Unit<br />

(medida da capacidade térmica)<br />

** 1 bushel de milho = 25,4 Kg<br />

*** t oz = onças troy = 31,21 g.<br />

FONTES: BM, Bloomberg, CME Group.<br />

D.R.<br />

maio <strong>2020</strong> | 9


PRIMEIRO LUGAR<br />

IMPACTO<br />

ÁFRICA SUBSARIANA<br />

PRECISA DE MAIS 75 MIL<br />

MILHÕES<br />

Os fundos necessários para a África Subsariana<br />

enfrentar o impacto da pandemia do novo<br />

coronavírus poderão aumentar 75 mil milhões<br />

de dólares, estima o banco Goldman Sachs.<br />

“Possivelmente, o impacto mais severo da crise<br />

será nos já sobrecarregados saldos orçamentais”,<br />

referiram os economistas Dylan Smith e<br />

Andrew Matheny, do banco, numa nota citada<br />

pela Bloomberg. A nota refere que “os défices<br />

orçamentais vão provavelmente aumentar<br />

numa média de cerca de 3,5%”, com alguns<br />

países a alcançarem os dois dígitos, “antes de<br />

qualquer alívio para suavizar os efeitos económicos<br />

da ‘corona-crise’”. Contudo, os dois<br />

economistas assinalam que se medidas como<br />

cortes orçamentais estiverem incluídas, o défice<br />

financeiro poderá acabar por ser maior. A nota<br />

acrescenta que o encerramento das fronteiras<br />

para a contenção do novo coronavírus e<br />

a redução das receitas do turismo representam<br />

uma combinação suficiente para provocar<br />

a primeira recessão anual da região desde<br />

1991. A previsão é semelhante à do Banco<br />

Mundial, que prevê uma quebra entre 2,1%<br />

e 5,1%. A Goldman estima que as economias<br />

de Angola e Zâmbia podem ser as mais afectadas,<br />

com recessões na ordem dos 9% este<br />

ano. Nos casos da África do Sul e Nigéria, as<br />

quebras deverão situar-se nos 6% e 4%, respectivamente.<br />

Gana, Moçambique e Senegal<br />

também poderão apresentar uma diminuição<br />

do produto interno bruto.<br />

RECESSÃO: O Goldman Sachs prevê a primeira<br />

contracção da economia africana<br />

D.R.<br />

MONTEPUEZ RUBY MINING:<br />

A mineradora é das maiores contribuintes para os cofres do Estado<br />

RECEITA FISCAL<br />

MRM É SEGUNDA CONTRIBUINTE NA MINERAÇÃO<br />

A Montepuez Ruby Mining (MRM) ocupa a posição da segunda empresa do sector<br />

mineiro que mais pagou ao Estado moçambicano, consecutivamente, nos anos<br />

de 2017 e 2018, indica o 8.º relatório da Iniciativa de Transparência na Indústria<br />

Extractiva (ITIE), citado pelo Macauhub. Segundo o documento, a MRM contribuiu,<br />

em 2017, com 2,06 mil milhões de meticais, e em 2018 com 2,3 mil milhões<br />

de meticais, totalizando cerca de 4,5 mil milhões de meticais entregues ao Estado<br />

moçambicano, segundo os dados reconciliados de todos os pagamentos feitos<br />

pela empresa nestes dois anos e oficialmente confirmados pelo Estado. Aumentaram<br />

as contribuições da MRM e, ao mesmo tempo, aumentaram os ganhos do<br />

Estado vindos da indústria extractiva, tendo a contribuição deste sector para o produto<br />

interno bruto sido de 6,86% e 7,35%, respectivamente, em 2017 e 2018. Para<br />

esta pesquisa, que é a base do relatório da ITIE, foram seleccionadas 29 empresas<br />

do sector da indústria extractiva, com contabilidade organizada e auditada,<br />

sendo 11 do sector de hidrocarbonetos e 18 do sector mineiro. Destaque-se que a<br />

posição de segundo maior contribuinte é referente ao país inteiro, pois, relativamente<br />

à província de Cabo Delgado, a MRM domina as contribuições, tendo sido<br />

distinguida de 2014 a 2018 como o maior contribuinte local. A realidade este ano<br />

deverá, no entanto, ser bem diferente, tendo o presidente-executivo da Gemfields,<br />

Sean Gilbertson, afirmado em Abril que o desempenho financeiro da empresa<br />

será este ano profundamente afectado pela pandemia de COVID-19, que obrigou<br />

à suspensão dos leilões de pedras preciosas responsáveis por 93% da facturação<br />

da empresa em 2019. A Montepuez Ruby Mining é detida em 75% pela<br />

Gemfields, empresa com sede em Guernsey, e nos restantes 25% pela empresa<br />

moçambicana Mwiriti Limitada.<br />

D.R.<br />

10 | Exame Moçambique


PRIMEIRO LUGAR<br />

NOSSO BANCO<br />

BANCO DE MOÇAMBIQUE<br />

PRORROGA PRAZO DE LIQUIDAÇÃO<br />

O Banco de Moçambique decidiu prorrogar, a título excepcional, o prazo de liquidação<br />

do Nosso Banco — Sociedade em Liquidação por um período de 90 dias a<br />

contar da data do fim do estado de emergência (30 de Abril). A medida, segundo<br />

um comunicado do banco central, foi tomada tendo em conta que o processo de<br />

liquidação da instituição financeira se encontra na sua fase final, que as medidas<br />

decorrentes do estado de emergência estão a condicionar o normal funcionamento<br />

das instituições públicas e privadas e que se mostra recomendável preservar<br />

os interesses dos credores. O Nosso Banco foi dissolvido por despacho<br />

do governador do Banco de Moçambique com data de 11 de Novembro de 2016,<br />

devido à degradação da situação financeira da instituição, afectando os principais<br />

indicadores prudenciais e de rendibilidade. O Nosso Banco nasceu em 1999<br />

como Banco Mercantil e de Investimentos (BMI), tendo alterado a sua designação<br />

em 2015. Apesar de se tratar de uma entidade privada, a maioria do capital<br />

pertence ao Instituto Nacional de Segurança Social (77,2%), sendo também<br />

accionistas a empresa pública Electricidade de Moçambique (16,13%) e a SPI —<br />

Gestão de Investimentos, com 4,09%.<br />

<strong>EXAME</strong><br />

MAIS DE 70 MIL VISUALIZAÇÕES<br />

A pandemia que atinge o mundo confere à comunicação social a responsabilidade<br />

de serviço público. Face à gravidade da situação e à avalanche de informações,<br />

nem sempre verdadeiras, que circulam sobre a epidemia, sobretudo nas<br />

redes sociais, a imprensa tem a obrigação de disponibilizar ao público informação<br />

relevante e rigorosa. Disponibilizámos a nossa anterior edição, e o mesmo<br />

fazemos com esta, gratuitamente on-line e adoptámos uma funcionalidade<br />

moderna e amigável para facilitar a consulta do utilizador. Já registámos mais<br />

de 70 mil visualizações, um número muito expressivo, em termos de audiência,<br />

em Moçambique. Agradecemos a confiança dos nossos leitores e o seu interesse<br />

numa edição feita “a quente” e na qual procurámos contar como se alastrou o<br />

vírus (em África já afecta 53 países) e fazer contas sobre o inesperado, rápido e<br />

brutal impacto que teve na economia global. Continuamos, nesta edição, a dar<br />

uma cobertura quase exclusiva à pandemia que parou parte do mundo, e com a<br />

qual teremos de coabitar enquanto não surgir vacina ou remédio eficaz.<br />

GÁS<br />

MOTA-ENGIL OBTÉM<br />

CONTRATO<br />

A Mota-Engil África assinou, no âmbito de uma<br />

parceria paritária com a BESIX, uma empresa<br />

belga especializada em trabalhos marítimos,<br />

um contrato no âmbito do projecto de extracção<br />

de gás natural em Moçambique, na província<br />

de Cabo Delgado, revela um comunicado<br />

do grupo português. O projecto, cujo cliente é<br />

a CCS JV, uma parceria entre os grupos norte-<br />

-americano McDermott, italiano Saipem e<br />

japonês Chiyoda, inclui a construção de uma<br />

ponte-cais e de uma plataforma de descarga<br />

no valor total de cerca de 365 milhões de dólares.<br />

As obras terão a duração de 32 meses, iniciando-se<br />

no primeiro semestre de <strong>2020</strong>, sendo<br />

este o primeiro contrato concedido pela CCS JV<br />

no âmbito do projecto de exploração do bloco<br />

Área 1 da bacia do Rovuma, Norte de Moçambique,<br />

liderado e operado pelo grupo francês<br />

Total. A CCS JV assinou em Junho de 2019 um<br />

contrato com o grupo Anadarko Petroleum Corporation<br />

(entretanto comprado pelo grupo Occidental<br />

Petroleum, que vendeu os interesses em<br />

África ao grupo Total) para o fornecimento de<br />

serviços no projecto de gás natural Área 1, no<br />

Norte de Moçambique. O bloco Área 1 é operado<br />

pelo grupo Total, com uma participação<br />

de 26,5%, a ENH Rovuma Área Um, subsidiária<br />

da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos,<br />

com 15%, Mitsui E&P Mozambique Area1 Ltd.<br />

(20%), ONGC Videsh Ltd. (10%), Beas Rovuma<br />

Energy Mozambique Limited (10%), BPRL Ventures<br />

Mozambique B.V. (10%) e PTTEP Mozambique<br />

Area 1 Limited (8,5%).<br />

LNG: A portuguesa Mota Engil e a belga BESIX<br />

ganharam contrato de construção na Área 1<br />

AUDIÊNCIA:<br />

A última <strong>EXAME</strong> superou<br />

os 70 mil leitores<br />

D.R.<br />

12 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 13


GRANDES<br />

NÚMEROS<br />

PARA SABER LER OS SINAIS DE UMA ECONOMIA EM MUDANÇA<br />

COVID-19<br />

O GRANDE<br />

CONFINAMENTO<br />

A COVID-19 causou impactos inimagináveis em todos os sectores de<br />

actividade, revelando as fragilidades da globalização e dos modelos<br />

económicos e sociais que, há dois meses, se aceitava que conduziam<br />

a um mundo mais próspero. A verdade é que os excessos na utilização<br />

dos recursos naturais, com efeito negativo nos próprios mercados,<br />

como é o caso do petróleo, os danos ambientais causados, precisamente<br />

em resultado do abuso na utilização dos recursos, o alongamento<br />

das cadeias de valor e a subestimação dos equipamentos<br />

sociais (nomeadamente na área da saúde) foram fortemente questionados<br />

pela pandemia. Esta trouxe ao de cima vulnerabilidades agudas<br />

do que, até há muito pouco tempo, se tomava por normal. A sua<br />

expressão numérica sobre a economia e a sociedade é avassaladora.<br />

Tomemos alguns exemplos da expressão da paralisação provocada,<br />

até agora, pelo coronavírus e das verbas avançadas para tentar evitar<br />

a severa depressão provocada pela pandemia, já baptizada como<br />

o Grande Confinamento:<br />

66%<br />

do PIB mundial está paralisado<br />

5%<br />

é a queda que os países do G20<br />

(mais desenvolvidos) registarão no seu PIB<br />

95% 60%<br />

do transporte aéreo está em terra<br />

80% 30%<br />

do transporte terrestre<br />

desapareceu das estradas<br />

das fábricas<br />

encontram-se paradas<br />

foi quanto caíram os índices<br />

bolsistas europeus desde<br />

o início do ano<br />

14 | Exame Moçambique


Impressiona-nos a forma com o mundo se uniu neste combate.<br />

Bill Gates, fundador da Microsoft.<br />

23%<br />

foi quanto caiu o Dow<br />

Jones em Wall Street<br />

desde o início do ano<br />

13%<br />

foi quanto caiu<br />

o preço do gás<br />

natural desde Janeiro<br />

50% 70%<br />

foi a queda do valor<br />

das acções da Renault,<br />

da Daimler e da Ford<br />

foi a queda do preço<br />

do petróleo tipo Brent<br />

desde o início do ano<br />

4,5 mil milhões de pessoas em 110 países, ou territórios, foram<br />

confinadas, 195 milhões de pessoas podem ficar sem emprego<br />

no mundo devido à pandemia,5 triliões de dólares serão<br />

desembolsados pelos países do G20 para evitar a recessão<br />

MENOS POLUIÇÃO<br />

Cardumes de peixes circulam nas águas de Veneza,<br />

o ar ficou mais respirável em Nova Iorque e noutras<br />

grandes metrópoles, o manto de dióxido de azoto<br />

que cobre a China abriu-se. A redução do tráfego<br />

automóvel, das viagens aéreas e da poluição industrial,<br />

das centrais a carvão e da actividade industrial<br />

tornou a atmosfera menos poluída e o céu mais límpido.<br />

Imagens do satélite Sentinel-5P mostram como<br />

os níveis de poluição do ar com dióxido de nitrogénio<br />

diminuíram em França e na Itália. Na China,<br />

de acordo com a Carbon Brief, as emissões de dióxido<br />

de carbono diminuíram 25% após o Novo Ano<br />

Chinês. Nos Estados Unidos, um estudo da Universidade<br />

de Columbia apurou que as emissões de<br />

monóxido de carbono sobre Manhattan caíram mais<br />

de 50% abaixo dos níveis normais. A nível mundial,<br />

as emissões de CO2 podem chegar a uma redução<br />

de 7% este ano. Menor emissão de gases com efeitos<br />

estufa? O fenómeno só deverá durar enquanto durar<br />

o confinamento e tem um reverso com o aumento<br />

do lixo hospitalar.<br />

7%<br />

pode ser a redução<br />

nas emissões de CO2<br />

este ano<br />

maio <strong>2020</strong> | 15


CAPA CRISE FINANCIAMENTO<br />

COVID-19:<br />

As autoridades preparam-se<br />

para os efeitos da pandemia<br />

na economia<br />

PREPAREM-SE PARA<br />

CONSEQUÊNCIAS<br />

“SEVERAS”<br />

Governo e Banco de Moçambique alertam para o duro impacto da COVID-19 na economia<br />

moçambicana. Parceiros alinham resposta a pedido de 700 milhões de dólares e há alertas<br />

para a necessidade de fazer com que este dinheiro proteja uma população vulnerável<br />

e dependente da economia informal<br />

LUÍS FONSECA *<br />

16 | Exame Moçambique


GETTY<br />

D<br />

epois dos ciclones de 2019, Moçambique<br />

prepara-se para enfrentar uma tempestade<br />

global, desta vez com epicentro<br />

num vírus que ameaça deixar toda a<br />

economia de máscara posta durante<br />

muito tempo. Moçambique não será excepção e<br />

pode até estar especialmente vulnerável, segundo<br />

a análise do governo e do banco central. Então,<br />

qual o ponto de situação? “O impacto da pandemia<br />

na economia já é grave e prevê-se que os custos<br />

humanos cresçam significativamente”, lê-se<br />

na carta em que o governo moçambicano pediu<br />

ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI),<br />

a 17 de Abril. “Há um declínio dramático na produção<br />

da indústria extractiva, na exportação, e<br />

há disrupções nos sectores industrial, de serviços,<br />

transportes e comunicações.” A carta serviu<br />

para justificar o pedido de 700 milhões de dólares<br />

a parceiros internacionais, feito numa reunião em<br />

Maputo, a 23 de Março. São os milhões necessários<br />

para cobrir o buraco fiscal (245 milhões) provocado<br />

pela pandemia no Orçamento de Estado<br />

(OE) de <strong>2020</strong>, bem como para financiar a saúde<br />

(109 milhões), dar apoios às pequenas empresas<br />

(157 milhões) e aos mais pobres (157 milhões).<br />

O Comité de Política Monetária (CPMO) do<br />

Banco de Moçambique debruçou-se sobre o assunto<br />

a 16 de Abril, já em pleno estado de emergência<br />

em Moçambique e num mundo com a economia<br />

em ponto morto. Em suma, o órgão concluiu que<br />

“as perspectivas de crescimento económico para<br />

<strong>2020</strong> deterioram-se e os esforços de recuperação<br />

pós-ciclones retraem-se”. Assim, o CPMO prevê<br />

que “as consequências económicas da materialização<br />

da COVID-19 sejam severas”. Até que ponto?<br />

Ainda é incerto, mas o adjectivo escolhido pelo<br />

Banco de Moçambique permite que todos se preparem.<br />

A severidade espreita “num cenário em que<br />

a economia moçambicana já se encontra debilitada<br />

em virtude dos efeitos dos ciclones Idai e Kenneth<br />

e da instabilidade militar nas zonas Norte e Centro<br />

do país”, destaca.<br />

Ao todo, a contracção abarca “cerca de 58% do<br />

produto interno bruto (PIB)”, segundo cálculos<br />

do banco central. As perspectivas de um bom<br />

desempenho na agricultura, sector com um peso<br />

médio de 25% no PIB, “poderão não ser suficientes<br />

para amortecer os efeitos negativos nos restantes<br />

sectores da economia”.<br />

O Banco de Moçambique tem outra preocupação<br />

acrescida: “as elevadas necessidades da economia<br />

poderão implicar maior pressão sobre a despesa<br />

pública, num contexto de contracção acentuada<br />

da receita”. Desde a sessão do CPMO de Fevereiro,<br />

a dívida pública interna já vinha aumentando.<br />

Excluindo contratos de mútuo e de locação<br />

e as responsabilidades em mora, a dívida pública<br />

interna “aumentou de 155 256 milhões para 160 756<br />

milhões de meticais, reflectindo, essencialmente,<br />

a emissão de Obrigações do Tesouro”.<br />

NESTE CENÁRIO, O QUE É POSSÍVEL FAZER?<br />

Em Março, a inflação anual de Moçambique desacelerou<br />

para 3,09%, após ter ficado em 3,55% no<br />

mês anterior. Uma tendência que se deverá manter<br />

devido ao “declínio acentuado da procura interna”.<br />

Isto numa altura em que as reservas internacionais<br />

do país, no montante de cerca de 3900 milhões de<br />

dólares, se situam em níveis confortáveis para cobrir<br />

mais de seis meses de importações. O CPMO decidiu<br />

assim uma redução expressiva da taxa de juro<br />

de política monetária (taxa MIMO), em 150 pontos<br />

base (pb), para 11,25%. Decidiu igualmente reduzir<br />

as taxas da Facilidade Permanente de Depósitos<br />

(FPD) e da Facilidade Permanente de Cedência<br />

(FPC) em 150 pb, para 8,25% e 14,25%, respectivamente.<br />

Os coeficientes de Reservas Obrigatórias<br />

(RO) para os passivos em moeda nacional e<br />

maio <strong>2020</strong> | 17


CAPA CRISE FINANCIAMENTO<br />

“O IMPACTO DA PANDEMIA NA<br />

ECONOMIA JÁ É GRAVE E PREVÊ-<br />

-SE QUE OS CUSTOS HUMANOS<br />

CRESÇAM SIGNIFICATIVAMENTE”<br />

em moeda estrangeira já tinham sido reduzidos<br />

em Março para 11,5% e 34,5%, “visando libertar<br />

liquidez no sistema bancário”. Já em Março,<br />

o BM tinha decidido introduzir linhas de crédito<br />

em moeda estrangeira para os participantes do<br />

mercado cambial interbancário, no montante de<br />

500 milhões de dólares, por um período de nove<br />

meses — a par da dispensa de constituição de provisões<br />

adicionais para créditos de cobrança duvidosa<br />

pelos bancos comerciais, no caso de renegociação<br />

com clientes afectados pela COVID-19. A próxima<br />

reunião ordinária do CPMO está agendada para<br />

17 de Junho, mas o órgão admite tomar mais medidas<br />

antes, se necessário.<br />

E UMA BOLSA FAMÍLIA<br />

PARA A MAIORIA INFORMAL?<br />

A redução da taxa MIMO e de outras taxas<br />

de referência da política monetária mereceu o<br />

aplauso do Centro para a Democracia e Desenvolvimento<br />

(CDD), uma organização não-governamental<br />

(ONG) moçambicana que tem exercido<br />

um papel de watchdog das políticas públicas do<br />

país. Ao mesmo tempo, o CDD considera acertado<br />

o acordo alcançado em sede de concertação<br />

social (governo, trabalhadores e patrões) para<br />

o “congelamento” dos salários, em alternativa<br />

à suspensão dos mesmos, como proposto pela<br />

Confederação das Associações Económicas de<br />

Moçambique (CTA) — que tinha sugerido que<br />

o Estado os assumisse com o apoio de parceiros.<br />

Congelar salários “é uma solução anormal, mas<br />

completamente compreensível perante a situação<br />

atípica que afecta Moçambique e o mundo”, referiu<br />

a Organização dos Trabalhadores de Moçambique<br />

(OTM), uma central sindical.<br />

No entanto, as medidas ainda não chegam,<br />

refere o CDD. “O governo deve apoiar financeiramente<br />

as empresas (principalmente as pequenas e<br />

médias empresas) e criar uma ‘bolsa família’ para<br />

dar algum poder de compra às famílias moçambicanas<br />

que se dedicam a actividades económicas<br />

informais. A organização coloca a ênfase na<br />

necessidade. É que estes são os agregados financeiramente<br />

mais vulneráreis e a bolsa família será<br />

PROMESSAS DE TRANSPARÊNCIA<br />

O anúncio de apoio do FMI leva ainda em linha de conta as promessas<br />

do governo de publicar auditorias sobre a utilização das verbas.<br />

O documento confia ainda nos progressos do Banco de Moçambique<br />

em melhorar as capacidades de gestão e auditoria, de acordo com recomendações<br />

feitas por uma missão em Dezembro de 2019. Os compromissos<br />

contrastam com o passado recente, ensombrado pelas dívidas<br />

ocultas do Estado de cerca de 2 mil milhões de euros, que levaram o<br />

FMI e doadores a cortar a modalidade de apoio directo ao OE em 2016.<br />

“Garantimos estabilidade macroeconómica, desenvolver crescimento<br />

inclusivo, manter a dívida pública sustentável, eliminar o défice fiscal<br />

primário (após apoios) até 2023. Vamos realizar uma auditoria independente<br />

sobre a despesa na mitigação da crise e aquisições (procurement)<br />

relacionadas, auditoria que será publicada assim que a crise<br />

se desvaneça”, lê-se na carta do governo ao FMI.<br />

Milhões USD<br />

% do PIB<br />

Necessidades Fiscais 700 4,7<br />

Perda de Receita 267 1,8<br />

Imposto de rendimento 126 0,9<br />

IVA, direitos importação 141 1<br />

Despesa no Sector da Saúde 119 0,8<br />

Protecção Social 314 2,1<br />

Apoio às micro e PME 157 1,1<br />

Transferências para famílias de risco 157 1,1<br />

Fontes de Financiamento<br />

Apoio Orçamental 491 3,3<br />

Banco Mundial 100 0,7<br />

União Europeia 54 0,4<br />

FMI 337 2,3<br />

Facilidade de crédito 309 2,1<br />

Contenção da catástrofe 28 0,2<br />

Apoio a projectos<br />

Banco Mundial 70 0,5<br />

Banco de Desenvolvimento Islâmico 40 0,3<br />

Projecto Pró-Saúde 1 22 0,1<br />

Outras fontes 2 77 0,5<br />

1<br />

Irlanda, Canadá, Bélgica, Suíça, WB, WHO.<br />

2<br />

Não identificadas.<br />

Fonte: Investing.<br />

18 | Exame Moçambique


uma forma de assegurar que cumpram a ordem<br />

de distanciamento social.<br />

A Associação Moçambicana de Economistas também<br />

considera necessária alguma forma de protecção<br />

das famílias mais vulneráveis, num cenário<br />

em que prever o cumprimento do OE se torna um<br />

exercício difícil. “É um OE que surge numa situação<br />

de incerteza, num país que vem de uma crise<br />

e que tem muitas debilidades. Tudo isso somado<br />

torna a incerteza maior”, considera Naimo Faquirá,<br />

director-executivo da Associação Moçambicana de<br />

Economistas (AMECON). Se, por um lado, Naimo<br />

Faquirá defende que o Estado deve assegurar a protecção<br />

das famílias mais pobres, por outro reconhece<br />

que as restrições orçamentais vão impedir um<br />

apoio mais forte às áreas sociais. O líder da AME-<br />

CON considera imperiosa uma maior comparticipação<br />

e solidariedade, apontando, em particular,<br />

o dever de maior sacrifício por parte dos bancos,<br />

porque o sector financeiro é o que mais tem beneficiado<br />

em momentos de expansão da economia.<br />

* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique. b<br />

OS APOIOS AO ORÇAMENTO<br />

(em milhões USD)<br />

491<br />

Total<br />

DINHEIRO PARA PROJECTOS<br />

(em milhões USD)<br />

Fonte: FMI.<br />

70<br />

Banco Mundial<br />

100 54<br />

Banco Mundial União Europeia FMI<br />

40<br />

Banco de Desenvolvimento<br />

Islâmico<br />

22<br />

337<br />

Projecto Pró-Saúde<br />

“É UM OE QUE<br />

SURGE NUMA<br />

SITUAÇÃO DE<br />

INCERTEZA,<br />

NUM PAÍS QUE<br />

VEM DE UMA<br />

CRISE E QUE<br />

TEM MUITAS<br />

DEBILIDADES”<br />

PEDIDO DE AJUDA: 700<br />

MILHÕES DE DÓLARES<br />

O governo moçambicano viu já anunciada a<br />

atribuição de mais de metade da verba de<br />

que diz precisar para enfrentar a COVID-19.<br />

O Fundo Monetário Internacional (FMI) empresta<br />

309 milhões de dólares através da linha de crédito<br />

rápido (RCF) e 28 milhões de dólares numa<br />

linha para alívio e contenção de catástrofes.<br />

O fundo esclarece que “os recursos da RCF<br />

serão devidos só depois de a produção, exportação<br />

e receitas fiscais do gás natural liquefeito<br />

arrancarem”, o quê se prevê para 2022-2023,<br />

lê-se numa nota de rodapé do último relatório<br />

do fundo sobre Moçambique.<br />

Prevê-se que o Banco Mundial (BM) desembolse<br />

100 milhões de dólares e que a União Europeia<br />

(UE) desbloqueie 54 milhões de dólares<br />

para a resposta em <strong>2020</strong>. Além da ajuda orçamental,<br />

há 132 milhões de dólares em apoio a<br />

projectos, pelo Banco Mundial, Banco Islâmico<br />

de Desenvolvimento e parceiros da iniciativa<br />

Pró-Saúde. Haverá ainda 77 milhões de dólares<br />

(70 milhões de euros) de outras fontes.<br />

A UE já fez saber que o apoio a conceder deverá<br />

ascender a 110 milhões de euros em dois anos<br />

(<strong>2020</strong>-2021), mas sublinhou que não se trata de<br />

um regresso aos programas de apoio directo<br />

ao Orçamento de Estado, algo que “não está<br />

em cima da mesa” — apesar de admitir que<br />

o país vai beneficiar de dinheiro que, na prática,<br />

será entregue ao governo para tapar uma<br />

quebra fiscal no OE. O apoio que agora será<br />

entregue a Moçambique trata-se de uma resposta<br />

de emergência cujas modalidades concretas<br />

de execução “estão ainda em discussão”.<br />

O FMI considera que a dívida pública moçambicana<br />

“vai continuar em dificuldades, mas é<br />

sustentável em termos futuros”, mesmo após<br />

o impacto da pandemia de COVID-19. “A maior<br />

fatia dos empréstimos futuros e garantias<br />

estatais reflecte a participação do Estado nos<br />

projectos de grande dimensão de gás natural<br />

liquefeito (GNL). Apesar de algum atraso, os<br />

projectos vão avançar”, considera a instituição,<br />

prevendo o arranque em 2023, ao justificar<br />

a sua apreciação.


CAPA 1 CRISE FINANCIAMENTO<br />

ESTAMOS PREPARADOS?<br />

A <strong>EXAME</strong> Moçambique desafiou algumas figuras e instituições com a pergunta,<br />

na altura em que a Confederação das Associações Económicas (CTA) renovou alertas<br />

com dados actualizados<br />

LUÍS FONSECA<br />

“<br />

Não há esperança que alimente as<br />

nossas almas se o governo não<br />

for dotado de maior capacidade<br />

do que tem demonstrado até hoje<br />

para intervir, com acções concretas”,<br />

alerta João Figueiredo, PCA do Moza Banco. Há<br />

muito que fazer, diz: “famílias desempregadas, PME<br />

falidas ou à beira desta situação, grandes empresas<br />

em desespero, sector empresarial sob domínio do<br />

Estado falido ou destruído”. Considera que esta é a<br />

hora “em que os políticos e a burocracia precisam de<br />

se intensificar e garantir que a maioria dos cidadãos<br />

seja ajudada, fornecendo o essencial”. “A maioria<br />

dos países está a enfrentar esta crise com seriedade e<br />

serenidade. Também nós podemos fazê-lo”, acredita,<br />

considerando que pode ser “um tempo de oportunidade”.<br />

“Revejo-me nas teorias de que o mundo vai<br />

mudar”, acrescenta João Figueiredo. “Iremos assistir<br />

a um modelo económico muito menos assente<br />

no consumismo desenfreado e numa hierarquização<br />

muito assente na agricultura, saúde e tecnologia<br />

digital.” Neste novo mundo, a localização estratégica<br />

de Moçambique é importante: “Alavancada por um<br />

custo de mão-de-obra acessível, quando aliada a um<br />

investimento na sua formação e um regime fiscal atractivo,<br />

poderá posicionar-nos como palco alternativo<br />

para a deslocalização de muitas agro-indústrias cujo<br />

capital internacional está hoje posicionado na China.”<br />

Entretanto, a pandemia continua e “o governo terá<br />

de encontrar um balanço muito difícil” entre “segurança<br />

da saúde pública e a vida económica das populações,<br />

não vá o velho ditado imperar: não morremos<br />

da doença, mas morremos da cura”. E conclui: “Distanciamento<br />

social sim, confinamento não!”<br />

RESOLVER O PROBLEMA DE LIQUIDEZ<br />

“A instabilidade em Cabo Delgado, o adiamento do<br />

investimento da ExxonMobil, o lockdown (confinamento<br />

obrigatório) na África do Sul, a redução de<br />

preços das principais matérias-primas de exportação<br />

e as restrições de acesso aos mercados de financiamento<br />

aumentam significativamente os desafios<br />

macroeconómicos de Moçambique”, considera o<br />

Millennium Bim em resposta às questões colocadas<br />

pela <strong>EXAME</strong>. O ambiente externo é “adverso” e há<br />

uma “elevada dívida pública resultante do efeito de<br />

desaceleração do PIB e valorização do dólar, bem<br />

como redução do fluxo de investimento privado e<br />

comércio externo”.<br />

O banco destaca pela positiva o apoio de 309 milhões<br />

de dólares anunciado pelo FMI. Mas perspectiva<br />

“uma depreciação do metical devido à redução das<br />

receitas de exportação e as reservas internacionais<br />

do banco central deverão sofrer algum desgaste”,<br />

20 | Exame Moçambique


apontando para uma “elevada procura de importações<br />

(bens de consumo, medicamentos e combustíveis)”.<br />

Assim, o banco espera “uma ligeira aceleração<br />

da pressão inflacionária”.<br />

O Millennium Bim considera que a falta de liquidez<br />

é o principal problema, pelo que entre as medidas<br />

prioritárias destaca “moratórias de obrigações<br />

fiscais e encargos sociais”, “moratórias de crédito,<br />

para colmatar gaps (falhas) de tesouraria” — além de<br />

se introduzirem “planos alternativos de pagamento<br />

de dívidas financeiras, sem agravamento do custo<br />

de provisionamento e consumo de capital dos bancos<br />

comerciais, parte dessas medidas já implementadas<br />

pelo BdM”.<br />

MILHÕES PERDIDOS,<br />

ALERTAM EMPRESÁRIOS<br />

A Confederação das Associações Económicas de Moçambique<br />

(CTA) fez no final de Abril um balanço dos primeiros trinta dias do<br />

estado de emergência em Moçambique. Apesar de terem servido<br />

“para minimizar e conter a propagação da pandemia”, por outro lado<br />

trouxeram “impactos negativos no ambiente de negócios”. Estima-<br />

-se que o sector empresarial moçambicano registou perdas de facturação<br />

estimadas em cerca de 87 milhões de dólares. No período,<br />

“cerca de 1175 empresas, a nível nacional, suspenderam as suas actividades,<br />

afectando mais de 12 160 postos de trabalho”. Do total de<br />

empresas encerradas, 756 empresas são do sector de hotelaria e<br />

turismo e empregam um total de 5 mil trabalhadores. As empresas<br />

que ainda se mantêm em funcionamento reduziram o seu nível<br />

de actividade para menos de 25%. A CTA reitera a necessidade de<br />

adopção de “medidas excepcionais” para apoiar a tesouraria das<br />

empresas, tais como “o relaxamento de alguns custos operacionais,<br />

nomeadamente, a redução em 50% das facturas de água e energia<br />

e o adiamento de pagamento de impostos, bem como contribuições<br />

para a segurança social”.<br />

JOÃO FIGUEIREDO:<br />

O PCA do Moza Banco acredita que<br />

podemos enfrentar a crise com seriedade<br />

e serenidade<br />

AJUDAR O CONSUMO INTERNO<br />

“Depois da crise da dívida e dos ciclones, era esperado<br />

que <strong>2020</strong> fosse o ano da retoma e a rampa de<br />

lançamento para uma performance semelhante à da<br />

primeira metade da década passada”, refere Bernardo<br />

Aparício, membro da Comissão Executiva e director<br />

da Banca Corporativa e Investimentos, do Absa<br />

Bank Moçambique. Considera prioritário criar linhas<br />

de financiamento para apoio à economia, além das<br />

medidas já implementadas pelo banco central para<br />

financiamentos existentes. “Nesta altura, os bancos<br />

irão tendencialmente reduzir o seu apetite de risco<br />

para proteger o seu capital, tendo em conta que as<br />

perdas irão aumentar”, acrescenta, numa alusão aos<br />

resultados dos bancos globais no primeiro trimestre.<br />

A nível regional e global, “os governos estão a disponibilizar<br />

garantias aos bancos” para darem crédito<br />

à economia ou a determinados sectores, “similar ao<br />

que já acontece para alguns sectores em Moçambique,<br />

de forma a fazer fluir crédito à economia”.<br />

É IMPORTANTE NÃO PARAR<br />

O BCI realça que a situação em Moçambique beneficiou<br />

da “tempestiva tomada de medidas” para reduzir<br />

a propagação do contágio, permitindo “manter a<br />

economia a funcionar parcialmente, evitando-se, até<br />

ao momento, o lockdown total. Este facto é importante”,<br />

dado o peso da economia informal e do auto-<br />

-emprego. Olhando ao peso da dívida pública no PIB,<br />

“a capacidade de intervenção do Estado fica dependente<br />

da obtenção de novos apoios” ou da “suspensão<br />

por parte dos credores de pagamentos da dívida<br />

actual”. “Importa referir que o sector bancário está<br />

bem capitalizado e com liquidez, o que lhe permitirá<br />

suportar no curto prazo o impacto resultante<br />

deste choque económico”, realça a instituição. O BCI<br />

aplaude “tanto o Estado como o BdM”, porque “têm<br />

sido céleres na tomada de medidas”. O banco coloca<br />

entre as prioridades “apoiar a economia informal e<br />

os trabalhadores independentes”, apoiar a liquidez<br />

das empresas, igualmente através de moratórias,<br />

garantias ou “aceleração do pagamento de facturas<br />

aos pequenos fornecedores de serviços e bens<br />

ao Estado. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 21


CAPA 2 CRISE SECTORES<br />

INDÚSTRIA<br />

EM RISCO<br />

No sector industrial já há empresas<br />

paralisadas e milhares de empregos<br />

em risco. Para Rogério Samo Gudo,<br />

presidente da Associação Industrial<br />

de Moçambique, as medidas<br />

implementadas pelo governo são<br />

insuficientes para garantir o emprego<br />

e o funcionamento das empresas<br />

VALDO MLHONGO<br />

ROGÉRIO SAMO GUDO: O presidente da AIMO<br />

avisa que as empresas se debatem com problemas<br />

de tesouraria<br />

EDILSON TOMÁS<br />

Em tempos de isolamento social ditado<br />

pela COVID-19, Rogério Samo Gudo,<br />

presidente da Associação Industrial de<br />

Moçambique (AIMO), admite que o trabalho<br />

remoto é uma opção para o sector,<br />

mas avança que poucas empresas estão em condições<br />

de o fazer pois “o distanciamento social, para<br />

a sua eficiência e segurança, nas indústrias requer<br />

um conjunto de investimentos que poucas empresas<br />

industriais têm a capacidade de realizar devido ao<br />

custo de investimento associado”. Destaca ainda a<br />

“fraca capacidade de absorção das tecnologias que<br />

requererem capital humano preparado para tal”.<br />

Samo Gudo diz ainda que as indústrias se debatem<br />

com insuficiência de tesouraria para o pagamento<br />

“SE AS CONDIÇÕES CONTINUAREM<br />

A DETERIORAR-SE NÃO HAVERÁ<br />

OUTRA SAÍDA QUE NÃO O<br />

DESPEDIMENTO”<br />

dos compromissos, tanto com trabalhadores como<br />

com a banca, fornecedores e o fisco.<br />

Em que é que a nova situação (COVID-19)<br />

altera a actividade das empresas do sector<br />

industrial nas relações com o cliente e<br />

fornecedor?<br />

Ainda é cedo para conclusões, dado que são des-<br />

22 | Exame Moçambique


APESAR DA MITIGAÇÃO É<br />

INCALCULÁVEL O IMPACTO DA<br />

PANDEMIA NA NOSSA INDÚSTRIA<br />

conhecidos até onde irão os efeitos do impacto da<br />

COVID-19 na indústria no momento em quase todas<br />

as economias no mundo ainda se debatem com o<br />

combate à pandemia, sobretudo as que dominam o<br />

mercado global. No caso de Moçambique, em particular,<br />

podemos cogitar ou prever duas perspectivas,<br />

a negativa e a positiva. Por um lado, assistimos<br />

à paralisação da nossa indústria devido à COVID-<br />

-19, estando em risco milhares de empregos e a<br />

sua própria sobrevivência, num momento em que<br />

se acreditava que as sinergias entre os diferentes<br />

sectores industriais poderiam trazer uma economia<br />

de escala que viabilizasse o ressurgimento da<br />

indústria moçambicana. Apesar das medidas de<br />

mitigação, é hoje incalculável o impacto da pandemia<br />

na nossa indústria. Por outro lado, a adopção<br />

massiva de tecnologias de informação decorrentes<br />

das medidas de isolamento social permitem<br />

uma incubação tecnológica nos diversos sectores,<br />

o que vai certamente constituir uma oportunidade<br />

de inovação e evolução na indústria.<br />

O isolamento em que a economia moçambicana se<br />

encontra desperta até nos mais cépticos a importância<br />

da produção local, o que acredito ser um<br />

contributo para um pensamento mais consensual<br />

quanto ao desenvolvimento da produção local no<br />

pós-COVID-19.<br />

A questão de teletrabalho tem sido uma opção<br />

para as empresas do sector industrial nesta<br />

fase da COVID-19?<br />

É claramente uma opção para os grupos que podem<br />

trabalhar remotamente, como é o caso do pessoal<br />

das áreas de planificação, vendas/marketing<br />

e administrativas.<br />

Até que ponto esta opção pode interferir no<br />

nível de produtividade das empresas?<br />

O distanciamento social, para a sua eficiência e<br />

segurança, ao nível da indústria requer um conjunto<br />

de investimentos que poucas empresas têm<br />

capacidade para fazer devido ao custo do investimento<br />

associado e à fraca capacidade de absorção<br />

das tecnologias que requerem capital humano preparado,<br />

além de representar um novo processo de<br />

negócio que varia para cada tipo de indústria. Nos<br />

casos em que as empresas industriais já possuem<br />

AS MEDIDAS IMPLEMENTADAS<br />

SÃO INSUFICIENTES PARA A<br />

MANUTENÇÃO DO EMPREGO<br />

NA INDÚSTRIA<br />

sistemas de gestão de informação pode, em certos<br />

casos, representar uma duplicação do investimento<br />

num momento em que as receitas estão a reduzir<br />

drasticamente.<br />

A nova situação contribuiu para a produção de<br />

novos produtos?<br />

As empresas industriais estão neste momento a dar<br />

resposta às necessidades em termos de material de<br />

protecção e de combate aos efeitos da COVID-19.<br />

Certamente que as mudanças que se estão a verificar<br />

em alguns processos de produção representam<br />

oportunidades para que as empresas encontrem<br />

novos produtos e novos nichos de mercado, e nesse<br />

sentido há desenvolvimento das nossas cadeias de<br />

valor com o uso de tecnologias de informação.<br />

É de considerar o despedimento devido à<br />

retracção da actividade?<br />

Se as condições continuarem a deteriorar-se, não<br />

haverá outra saída a não ser o despedimento.<br />

A falta de receitas, e também de matérias-primas,<br />

coloca as indústrias sem qualquer saída por si só,<br />

havendo a necessidade de o Estado fazer o seu<br />

papel social, contribuindo para salvaguardar os<br />

empregos através da contribuição no pagamento<br />

dos salários mediante o fundo do INSS.<br />

Face ao momento actual, espera-se algum<br />

apoio da parte do governo para que o sector<br />

industrial continue a operar?<br />

As medidas até agora implementadas são insuficientes<br />

para a manutenção dos empregos e o funcionamento<br />

das empresas industriais. Estas debatem-se<br />

com insuficiência de tesouraria para pagamento<br />

dos compromissos, tanto com os trabalhadores,<br />

como com a banca, fornecedores e impostos.<br />

O que o sector industrial está a fazer quanto a<br />

medidas de higienização e protecção da saúde<br />

dos trabalhadores e da sociedade em geral?<br />

O governo emitiu o Decreto Presidencial com<br />

medidas para a prevenção e combate à COVID-<br />

-19, que as empresas industriais estão a seguir,<br />

assim como outras medidas recomendadas pelo<br />

MISAU e a OMS. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 23


CAPA 2 CRISE SECTORES<br />

INDÚSTRIA<br />

ADAPTA-SE<br />

A Técnica Industrial, do grupo moçambicano JFS<br />

e representante da FCA, alterou a dinâmica do trabalho em todas<br />

as frentes, como explica Rui Narcy o seu director-geral<br />

VALDO MLHONGO<br />

Rui Narcy, director-geral da Técnica Industrial,<br />

representante do grupo automóvel<br />

FCA em Moçambique, diz que face<br />

à pandemia da COVID-19 foram tomadas<br />

medidas para garantir a segurança e<br />

saúde dos seus colaboradores, clientes, fornecedores<br />

e demais parceiros. “Estas medidas devem ser tomadas<br />

por todos os representantes a nível mundial e<br />

Moçambique (Técnica Industrial) não é excepção”,<br />

referiu Rui Narcy. Para isso, explica, foi impulsionado<br />

o trabalho remoto em quase todas as áreas<br />

da empresa. “Penso que, como consequência desta<br />

pandemia, a forma de trabalhar e fazer negócio<br />

mudou.” Narcy assegura ainda que todas as projecções<br />

financeiras e de volume de produção estão fortemente<br />

comprometidas com esta paragem de mais<br />

de dois meses. “São avultados prejuízos que mesmo<br />

para os grupos de grande dimensão serão difíceis de<br />

superar a curto e médio prazo.” Prejuízos que já se<br />

fazem sentir ao nível de volume de venda de viaturas<br />

em Moçambique, pois no mês de Março o mercado<br />

teve uma redução de 14,39% face ao ano anterior.<br />

A nova situação (COVID-19) alterou a dinâmica<br />

do trabalho do grupo FCA?<br />

A dinâmica do grupo foi alterada em todas as frentes.<br />

Sendo um grupo grande com ramificações pelo<br />

mundo todo e com directrizes muito claras em relação<br />

a saúde e segurança no trabalho, foram tomadas<br />

medidas para garantir a segurança e saúde dos seus<br />

colaboradores, clientes, fornecedores e demais parceiros.<br />

Estas medidas devem ser tomadas por todos<br />

os seus representantes a nível mundial e Moçambique<br />

(Técnica Industrial, SA) não é excepção. Com<br />

isto foi impulsionado o trabalho remoto em quase<br />

todas as áreas da empresa. E entramos assim para<br />

uma nova dinâmica laboral, onde é possível manter<br />

os níveis de serviço em várias áreas e sectores de<br />

forma remota. Penso que como consequência desta<br />

pandemia a forma de trabalhar e fazer negócio mudou.<br />

Tem-se dito que este é o momento de as<br />

empresas se reinventarem para ultrapassarem<br />

esta crise da melhor maneira possível. Acha<br />

que há espaço para isso acontecer? Que acções<br />

24 | Exame Moçambique


RUI NARCY:<br />

A forma de<br />

trabalhar e de<br />

fazer negócio<br />

mudou<br />

o grupo tem desenvolvido nesse sentido?<br />

Não há outra alternativa senão evoluir nesse sentido.<br />

Já temos algumas medidas e iniciativas implementadas.<br />

Fomos a primeira empresa do ramo automóvel a<br />

oferecer aos clientes a recolha e entrega das viaturas<br />

ao domicílio, fazemos uma higienização de acordo<br />

com as normas internacionais, oferecemos serviços<br />

de assistência em estrada (por exemplo, reboque).<br />

Para estes serviços foram criados meios de comunicação<br />

dedicados. Aumentámos o contacto e interacção<br />

pelos canais electrónicos com os nossos clientes e<br />

potenciais clientes para evitar os encontros presenciais.<br />

Oferecemos mais e melhor informação dos nossos<br />

produtos e serviços através dos canais electrónicos.<br />

Neste momento de quarentena o teletrabalho<br />

tem sido opção para o grupo? Isso tem sido<br />

produtivo?<br />

O grupo FCA globalmente adoptou este procedimento<br />

do teletrabalho. Contudo, nem todos os países<br />

têm a mesma realidade económica e para o caso de<br />

Moçambique a Técnica Industrial adoptou o mesmo<br />

procedimento, mas com algumas adaptações à realidade<br />

local e à legislação do estado de emergência.<br />

Temos para os serviços administrativos um processo<br />

de rotação de quinze dias e uma redução de efectivo<br />

para um terço nas áreas onde não conseguimos<br />

fazer a rotatividade dos quinze dias.<br />

Houve alguma redução de colaboradores<br />

devido à pandemia do COVID -19?<br />

Está em curso o processo de rotatividade de colaboradores<br />

para cumprir as normas decretadas pelo<br />

governo. Até ao momento não tivemos de realizar<br />

despedimentos e procuraremos sempre preservar<br />

as pessoas e os seus postos de trabalho.<br />

EDILSON TOMÁS<br />

Como surgiu o projecto Viseira?<br />

Surgiu de um grupo de voluntários do grupo JFS,<br />

que se intitula ATITUDE. O nosso grupo tem como<br />

visão ser uma referência no mundo empresarial,<br />

comprometido a promover e a inspirar impacto<br />

em todas as frentes. Ou seja, não é apenas o negócio<br />

pelo negócio, mas um negócio justo, ao serviço<br />

do desenvolvimento. Procuramos sempre integrar<br />

as nossas actividades com outras áreas de interesse<br />

da sociedade. Existindo uma enorme falta de EPI<br />

especialmente para o sector da saúde, julgámos<br />

muito relevante pôr algumas equipas e ver como<br />

poderíamos produzir viseiras com o material disponível<br />

localmente. Conseguimos chegar a uma solução<br />

muito prática e acessível. Uma solução de recurso<br />

para épocas de crise. Mas, não tenhamos dúvidas, é<br />

maio <strong>2020</strong> | 25


CAPA 2 CRISE SECTORES<br />

SUMOL COMPAL REINVENTA-SE<br />

VISEIRAS: Um projecto de solidariedade<br />

que pode salvar vidas<br />

um equipamento que pode salvar vidas. O material<br />

de cada viseira custa cerca de 30 meticais. Decidimos<br />

então colocar no mercado a 60 meticais, para<br />

com isso conseguir uma unidade para o sector da<br />

saúde por cada unidade vendida. É, portanto, um<br />

projecto social, sem fins lucrativos, e toda a mão-de-<br />

-obra é voluntária. O projecto tem sido igualmente<br />

muito importante para promover o espírito de solidariedade<br />

entre os colaboradores e a sociedade em<br />

geral, que é muito importante nestes momentos de<br />

crise. Temos recebido mensagens de apoio de muitas<br />

pessoas e entidades, o que nos motiva a continuar,<br />

ainda com mais força.<br />

Qual tem sido o nível de adesão?<br />

Foi realmente uma avalanche que não esperávamos.<br />

Em poucos dias tínhamos encomendas para mais<br />

de 50 mil viseiras, incluindo a parte a doar ao sector<br />

da saúde. De tal forma que tivemos de suspender<br />

as encomendas até que pudéssemos estruturar<br />

a operação para dar resposta à procura.<br />

Nem todas as histórias são de todo negativas na luta contra os efeitos<br />

da COVID-19 ao nível do sector empresarial. A Sumol Compal,<br />

uma unidade fabril de referência na produção de bebidas não alcoólicas,<br />

localizada em Boane, província de Maputo, é disso o exemplo.<br />

Fernando Oliveira, administrador-delegado da Sumol Compal,<br />

refere que a empresa teve de se adaptar a novos hábitos para fazer<br />

face a conjuntura actual. “Passámos a limitar as visitas externas à<br />

fábrica, a medir a temperatura de todos os que entram nas instalações,<br />

a usar máscaras, viseiras, dispensadores de álcool-gel”, explica<br />

o administrador à <strong>EXAME</strong>. “Procurámos fazer com que os nossos<br />

colaboradores se sentissem seguros e apoiados. Distribuímos um<br />

termómetro de uso individual a cada um, para poderem monitorar<br />

as suas famílias, disponibilizámos transportes próprios, apoiámos<br />

com bens essenciais”, esclarece. Outra explicação para manter os<br />

níveis de produtividade da fábrica é a relação com os clientes, que<br />

também teve de sofrer alterações. “As visitas e reuniões com os<br />

clientes passaram a ser virtuais. Posso afirmar que criámos novos<br />

hábitos de trabalho, mas continuamos a produzir com ritmo, uma<br />

vez que o sector alimentar é considerado essencial.” Ainda sobre a<br />

conjuntura actual, Oliveira diz que os impactos ainda não se fazem<br />

sentir de um modo significativo na empresa. “Sentimos a redução<br />

de actividade em algumas áreas e sectores, mas a empresa tem-se<br />

adaptado sem grandes constrangimentos.” O administrador-delegado<br />

da Sumol Compal diz ainda que o trabalho é feito em regime<br />

de turnos, o que permite reduzir o número de pessoas na unidade<br />

fabril, e cumprem-se algumas tarefas em regime remoto. Oliveira<br />

referiu que a Sumol Compal vive um momento muito favorável do<br />

ponto de vista do aumento das vendas, muito baseado em inovação,<br />

mas reconhece que a conjuntura actual pode comprometer este<br />

momento. “Recentemente sentimos uma quebra de consumo acentuada<br />

devido à quebra da procura, quer por fecho de alguns clientes,<br />

quer por alocação do orçamento familiar a novas prioridades.”<br />

FERNANDO OLIVEIRA: A Sumol Compal adoptou medidas sanitárias<br />

Quantas já produziram?<br />

De uma pequena iniciativa de voluntários JFS, tivemos<br />

de montar em poucos dias uma linha de produção<br />

e já estamos com uma capacidade interna de<br />

cerca de 4 mil viseiras por semana. Desde que começámos<br />

a iniciativa temos mais de 5 mil viseiras produzidas<br />

(até ao dia 4 de <strong>Maio</strong>) e entregues. O grupo<br />

conseguiu, com esforço, provisionar material para as<br />

50 mil viseiras e, para se dar resposta à procura em<br />

tempo útil, está neste momento a transformar a iniciativa<br />

numa plataforma de voluntários, incluindo<br />

individuais, empresas ou instituições que se queiram<br />

juntar ao movimento. A adesão tem sido fantástica<br />

e vamos muito em breve comunicar sobre os<br />

diversos parceiros que estão connosco. b<br />

26 | Exame Moçambique


CAPA 2 CRISE SECTORES<br />

CORONAVÍRUS<br />

AFUNDA O TURISMO<br />

Os resultados do estudo da Confederação das Associações Económicas<br />

de Moçambique (CTA) sobre o impacto do COVID 19 no sector empresarial revelam<br />

que o sector do turismo terá perdas estimadas entre 53 e 71 milhões de dólares,<br />

mas no terreno o cenário mostra-se pior<br />

VALDO MLHONGO<br />

Oturismo tem sido, de longe, o sector<br />

mais afectado pelos efeitos do novo<br />

coronavírus, com os serviços de hotelaria,<br />

agências de viagens e restauração<br />

praticamente encerrados, colocando o<br />

sector na iminência clara de um verdadeiro colapso,<br />

com elevadas somas de prejuízos nunca vistas. Aliás,<br />

se nada for feito, é cada vez mais evidente o encerramento<br />

total da indústria do turismo, pelo menos é<br />

para aí que os números apontam. “O turismo, neste<br />

momento, ao nível do país está numa situação realmente<br />

caótica”, referiu Vasco Manhiça, presidente das<br />

Associações dos Hotéis do Sul e membro do pelouro<br />

do turismo da Confederação das Associações Económicas<br />

de Moçambique (CTA). Num sector que<br />

depende exclusivamente de circulação de pessoas,<br />

e sem margens para a reinvenção, nem mesmo os<br />

grandes hotéis conseguem manter-se perante uma<br />

crise causada por um vírus violento e imprevisível.<br />

“Devo dizer que até os principais hotéis que registavam<br />

taxas de ocupação acima de 80% a 90%, agora<br />

encontram-se reduzidos a 1% ou 0%. Isto quer dizer<br />

que o turismo está realmente numa situação desastrosa”,<br />

salientou Manhiça, durante uma conferência<br />

de imprensa organizada pela CTA. Também João das<br />

Neves, secretário-geral das Agências de Viagens e<br />

Operadores Turísticos de Moçambique (AVITUM),<br />

salienta que a situação é desoladora. “Todos nós conseguimos<br />

sentir o impacto mas, quando aprofundamos<br />

aquilo que são os números, a situação real das<br />

empresas, vemos que é preocupante.” Confirmou<br />

ainda a existência de vários estabelecimentos hotelei-<br />

28 | Exame Moçambique


os encerrados um pouco por todo o país. “Os hotéis<br />

em Maputo estão a fechar. Já não falo ao nível das<br />

províncias”, referiu o secretário-geral da AVITUM.<br />

AS PERDAS<br />

NO SECTOR<br />

DO TURISMO<br />

ATINGEM<br />

CERCA<br />

DE 95% DA<br />

FACTURAÇÃO<br />

ABHISHEK NEGI:<br />

O director-geral do<br />

Polana garante que<br />

não haverá redução<br />

de trabalhadores<br />

OS FACTOS<br />

O grupo Visabeira é um dos exemplos mais flagrantes<br />

do impacto do novo coronavírus no sector do<br />

turismo. Fechou toda a sua cadeia pelo país fora, com<br />

excepção de Indy Village, em Maputo, informou-<br />

-nos João das Neves. Na província de Inhambane,<br />

que tem sido um dos destinos preferidos do turismo,<br />

cerca de 8 estâncias turísticas também encerraram a<br />

actividade devido ao impacto da COVID-19. Yassine<br />

Amugi, presidente do Turismo de Inhambane, disse<br />

que a crise pode impactar entre 4 e 5 mil empregos<br />

directos. “É uma cadeia de valor enorme. Se calhar,<br />

duas vezes maior do que o próprio emprego directo”,<br />

referiu Amugi. Ao nível da cidade de Maputo vive-<br />

-se o mesmo sufoco. Numa ronda efectuada pela<br />

<strong>EXAME</strong> foi possível testemunhar o encerramento<br />

de vários hotéis com os parques de estacionamento<br />

literalmente vazios, um cenário jamais visto na história<br />

do país. “Não há nenhuma actividade de hotelaria.<br />

Estamos aqui apenas para garantir os serviços<br />

mínimos e administrativos”, afirmou um funcionário<br />

do hotel VIP, uma estância de cinco estrelas localizada<br />

no centro da cidade. O Hotel Cardozo, também<br />

um dos mais frequentados na cidade capital, encerrou<br />

as suas actividades por conta da crise causada<br />

pela pandemia. “O hotel encontra-se encerrado até<br />

nova ordem”, diz uma fonte ligada à unidade hoteleira<br />

sem dar pormenores sobre o assunto. A <strong>EXAME</strong><br />

soube também que o Gloria Hotel, que possui o maior<br />

número de quartos em Maputo, neste momento funciona<br />

a meio gás. O problema é generalizado. Sem<br />

movimentação de pessoas também não há agências<br />

de viagens que funcionem. “Com todas as fronteiras<br />

fechadas é impossível sair de um ponto para o outro.<br />

E o turismo depende muito dessa movimentação de<br />

bens e pessoas”, disse Mateus Tembe, director-executivo<br />

da Federação Moçambicana de Turismo e Hotelaria<br />

(FEMOTUR). Neste momento, refere Tembe,<br />

“o nosso esforço será garantir que os colaboradores<br />

conservem os seus postos de trabalho”. Leandra<br />

de Amaral, responsável pela Travel Agency, referiu<br />

que em termos de negócios já não há nada a fazer.<br />

“Estamos a trabalhar de forma remota no sentido de<br />

melhorarmos os nossos serviços. Actualizações dos<br />

nossos produtos e um pouco mais de pesquisas de<br />

outros serviços... mas, em termos de negócios, não há<br />

nada”, esclarece. “Todos os dias lidamos com questões<br />

de cancelamentos e obtenção de reembolsos.<br />

As viagens foram canceladas, mas ainda não recebemos<br />

os reembolsos por parte das companhias”,<br />

adianta. Martins diz que com a crise viu-se obrigada<br />

a reduzir mais de metade dos seus colaboradores.<br />

“Para as agências de viagens vai ser um momento<br />

muito difícil porque não se sabe ao certo quando é<br />

que as pessoas vão poder viajar.”<br />

POLANA RESISTE<br />

O Hotel Polana, um dos mais históricos e prestigiados<br />

hotéis de Moçambique, não está à margem da crise.<br />

Embora seja dos poucos em actividade, o hotel viu<br />

canceladas muitas das reservas de hospedagens que<br />

tinham sido feitas. Abhishek Negi, director-geral da<br />

unidade hoteleira, explica que, em termos de taxa de<br />

ocupação, as projecções já apontavam para um crescimento<br />

acima de 60% no mês de Março, mas “acabámos<br />

por fechar o mês com cerca de 3%”. “Todas<br />

as reservas foram canceladas. O negócio está muito<br />

baixo”, confessa o director-geral do Polana, frisando<br />

que se trata do pior momento em mais de vinte anos<br />

da sua carreira como gestor. “O hotel não tem tido<br />

hóspedes desde as últimas três semanas. Os únicos<br />

que temos estão connosco já faz tempo. São praticamente<br />

residentes nossos”, acrescenta. O Polana conta<br />

com cerca de 320 colaboradores e, apesar do cenário<br />

actual, Negi garante que não haverá redução de trabalhadores.<br />

“Devido à conjuntura actual decidimos<br />

dar férias colectivas a grande parte dos nossos colaboradores.<br />

Achamos que eles estão muito mais seguros<br />

e protegidos estando nas suas casas e com as suas<br />

famílias.” Elsa Santos, dona de uma guest house na<br />

província de Maputo, diz que o momento exige uma<br />

reinvenção por parte dos operadores para fazer face<br />

ao momento actual. Mas avisa que ninguém aguentará<br />

mais de um mês. “Estamos a tentar descobrir<br />

outras situações que nos possam dar um mínimo<br />

maio <strong>2020</strong> | 29


CAPA 2 CRISE SECTORES<br />

possível de rendimento. Estamos a fazer comida para<br />

fora, take-away, para garantir os empregos, mas não<br />

sabemos por quanto tempo iremos aguentar a crise.<br />

Uma das alternativas é eventualmente também usarmos<br />

os nossos quartos para quem venha fazer a quarentena.<br />

Para isso, temos estado a fazer treinamento<br />

dos nossos colaboradores para evitar possíveis contaminações.”<br />

O aparecimento do novo coronavírus<br />

teve impactos enormes, até mesmo para os pequenos<br />

investidores. Derço Tomás trabalha na área de restauração.<br />

Há um ano e meio que preparava a inauguração<br />

de um novo espaço de restauração, depois<br />

de ter investido cerca de um milhão de meticais. Mas<br />

com a actual conjuntura ficou tudo em banho-maria.<br />

“A nossa ideia era inaugurarmos o restaurante em<br />

Março passado, mas devido à pandemia tudo ficou<br />

cancelado.” Derço diz que, por agora, só lhe resta<br />

esperar por boas notícias. “Nada mais podemos fazer<br />

a não ser esperar por dias melhores.”<br />

NÚMEROS ASSOMBROSOS<br />

Até à conclusão deste texto, Moçambique contava<br />

com 79 casos de pessoas infectadas com o novo coronavírus,<br />

havendo 10 recuperados e nenhum óbito.<br />

O TURISMO EMPREGA<br />

61 MIL TRABALHADORES<br />

EM TODO O PAÍS<br />

Segundo o estudo da (CTA), sem a COVID-19 as<br />

projecções indicavam que o turismo atingiria um<br />

crescimento de 7% em <strong>2020</strong>, muito acima dos 2,1%<br />

verificados em 2019. Em termos globais, o sector do<br />

turismo emprega em Moçambique cerca de 61 mil trabalhadores<br />

formais. Antes da eclosão da COVID-19,<br />

referiu o secretário-geral da AVITUM, a média estimada<br />

de receita de todo o sector andava na ordem dos<br />

30 milhões de dólares por mês. Mas com a conjuntura<br />

actual os números desceram para cerca de 5%.<br />

“Só no mês de Março tivemos uma perda de 90% a<br />

95% desta receita” projectada, salientou João das Neves.<br />

Situação que coloca o despedimento como algo inevitável.<br />

“As empresas não têm como aguentar mais<br />

do que um mês sem receita.” Agora, explica João das<br />

Neves, “o passo seguinte é a redução significativa da<br />

massa laboral, 75% do salário, depois 50%, 25% e, no<br />

fim, o despedimento”. Para se evitar o colapso no sector<br />

do turismo, João das Neves entende que há um<br />

leque de acções que o Estado deveria tomar. Desde<br />

o protelamento do pagamento dos impostos à criação<br />

de um financiamento de emergência, sem juros,<br />

destinado aos empresários que consigam prosseguir<br />

MATEUS TEMBE:<br />

Para o director-<br />

-executivo da FEMOTUR<br />

o apoio do governo é<br />

determinante<br />

os negócios. “É fundamental que o Estado crie uma<br />

fonte de financiamento sem juros que os empresários<br />

terão necessariamente de pagar, mas que lhes dê<br />

acesso a um fundo para neste momento fazer frente<br />

a situações concretas”, esclarece. Sendo o Estado o<br />

maior devedor do sector privado, João das Neves<br />

entende também que este seria o momento oportuno<br />

para o Estado pagar as suas dívidas para com<br />

as empresas privadas. “Se o Estado conseguisse pagar<br />

as suas dívidas para com as empresas do sector do<br />

turismo, daria um grande alívio para que as empresas<br />

consigam operar.”<br />

EVITAR O COLAPSO<br />

Mateus Tembe diz que, ao nível interno, a indústria<br />

do turismo precisa de se organizar rapidamente<br />

para poder salvaguardar a actividade, evitando<br />

uma asfixia económica nas organizações. “Este é o<br />

maior desafio”, assinalou. Tembe salienta também<br />

que o apoio do governo é determinante para que se<br />

possam adoptar medidas que permitam mitigar os<br />

riscos do sector e evitar que haja um colapso económico.<br />

“O maior esforço que estamos a fazer é tentar<br />

com o governo criar condições para que as empresas<br />

possam sobreviver e sobreviver a este período<br />

de quarentena. Para já o nosso foco principal é<br />

minimizar o impacto secundário da COVID-19<br />

no trabalhador, enquanto ao mesmo tempo tentamos<br />

utilizar os instrumentos do nosso relacionamento<br />

com o governo no que respeita a situações<br />

futuras de crise.” b<br />

EDILSON TOMÁS<br />

30 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 31


CRISE TECNOLOGIA<br />

APLICAÇÃO:<br />

Disponibilizada<br />

pelo Misau, é uma<br />

aliada no combate<br />

à pandemia<br />

MOÇAMBIQUE CRIA<br />

AUTODIAGNÓSTICO<br />

DE COVID-19<br />

NA NET<br />

A ferramenta digital de autodiagnóstico é só uma<br />

das faces visíveis do trabalho dos serviços de saúde<br />

com a empresa UX para as novas tecnologias<br />

desenvolvidas em Moçambique serem aliadas<br />

no combate à pandemia que está a parar o mundo<br />

LUÍS FONSECA*<br />

OMinistério da Saúde de Moçambique<br />

(Misau) disponibiliza uma aplicação<br />

numa página da Internet que permite<br />

a qualquer pessoa, em qualquer<br />

local, realizar um autodiagnóstico da<br />

doença respiratória provocada pelo novo coronavírus.<br />

A ferramenta está disponível directamente através<br />

do endereço riscocovid19.misau.gov.mz ou no portal<br />

dedicado à COVID-19, em covid19.ins.gov.mz<br />

e na opção “auto-avaliação”. Uma vez que é carregada<br />

a partir de uma página web, pode ser acedida<br />

a partir de qualquer aparelho que permita navegar<br />

na Internet, sem necessidade de passar pelas app<br />

stores. Esta aplicação recebeu 22 mil visitas só no<br />

primeiro dia, 8 de Abril, e regista desde então uma<br />

média de mil visitas por dia. “O número demonstra<br />

como as pessoas estavam sedentas” de um instrumento<br />

que as tranquilizasse e que é, ao mesmo<br />

tempo, um aliado na prevenção da pandemia”, diz<br />

Tiago Borges Coelho, co-fundador da UX Information,<br />

empresa moçambicana que criou a aplicação.<br />

Como é que tudo se processa? De uma forma<br />

simples: a empresa de tecnologias de informação,<br />

com sete anos de experiência na criação de plataformas<br />

com impacto social — sobretudo ao nível<br />

32 | Exame Moçambique


FERRAMENTA RECEBEU 22 MIL VISITAS NO PRIMEIRO DIA<br />

Quem usa a ferramenta?<br />

A grande maioria (86%) são de Moçambique, seguindo-<br />

-se depois o Brasil, Portugal e África do Sul como principais<br />

utilizadores do autodiagnóstico.<br />

Privacidade “garantida”<br />

A privacidade está assegurada para quem usar a nova<br />

ferramenta de autodiagnóstico da COVID-19, refere<br />

Tiago Borges Coelho. O género e a idade são os únicos<br />

dados recolhidos logo no início, aos quais o utilizador<br />

pode adicionar a província e o distrito onde se encontra,<br />

se o pretender, quando é classificado com risco médio<br />

ou alto de infeção. Essa informação que pode ser opcionalmente<br />

entregue pode vir a ajudar o Misau “a prever<br />

quais os distritos de risco” de infeção da COVID-19, acrescenta.<br />

Nenhuma outra informação é recolhida, pelo que<br />

é impossível identificar quem quer que seja, conclui.<br />

“Impacto social positivo”<br />

A UX Information, empresa de novas tecnologias moçambicana,<br />

aponta como meta para os seus projectos ter<br />

“impacto social positivo”, refere Tiago Borges Coelho,<br />

co-fundador. Foi nesse contexto que nasceu, há sete<br />

anos, depois de criar o portal Emprego.co.mz, uma das<br />

principais criações da UX. Trata-se do maior portal de<br />

recrutamento em Moçambique. A UX criou também a<br />

plataforma Biscate.co.mz onde é possível requisitar os<br />

serviços de 18 profissões, de electricistas a manicures.<br />

O impacto foi recentemente comprovado pelo Banco<br />

Mundial, que tem acompanhado o projecto: os trabalhadores<br />

que integraram a plataforma têm mais trabalho<br />

e aumentaram o seu rendimento. A ferramenta<br />

permite que profissionais, mesmo que com um telemóvel<br />

mais antigo, possam, através de um conjunto<br />

de códigos, interagir com a plataforma, receber pedidos<br />

de trabalho e dar respostas. Do lado do utilizador,<br />

o grafismo da aplicação ou do portal Biscate na Internet<br />

permite escolher um profissional para determinada<br />

tarefa, listando-os de acordo com a pontuação recebida<br />

pelos trabalhos anteriores. Hoje, o Biscate tem mais de<br />

35 mil utilizadores. No top 5 das ocupações com mais<br />

profissionais registados estão electricista (22%), trabalhador<br />

de cozinha (13%), trabalhador da construção<br />

(12%), cabeleireiro (10%) e canalizador (6%).<br />

do recrutamento profissional e prestação de serviços<br />

—, criou um questionário “sim-não” no portal<br />

do Misau. Este questionário avalia a probabilidade<br />

de cada utilizador estar infetado. Consoante o grau<br />

de risco, são prestadas recomendações e pode ser<br />

indicada uma morada e contacto das autoridades<br />

de saúde para dar seguimento ao caso. Passadas três<br />

semanas, já somava 70 mil visitas e já tinha ultrapassado<br />

as fronteiras de Moçambique, somando<br />

um total de 113 países entre as visitas registadas.<br />

TORNAR A FERRAMENTA<br />

AINDA MAIS ACESSÍVEL<br />

Um dos objetivos de desenvolvimento passa por<br />

transportar o autodiagnóstico para a tecnologia<br />

USSD, usada em telemóveis mais antigos, através da<br />

qual se consultam serviços com códigos (usando as<br />

teclas asterisco e cardinal para navegar em menus)<br />

transmitidos pela rede móvel, sem Internet. A sigla é<br />

inglesa: Unstructured Supplementary Service Data<br />

(USSD), muitas vezes referida apenas como “códigos<br />

rápidos” — tal como os que são usados para<br />

A APLICAÇÃO<br />

É UM DOS<br />

INSTRUMENTOS<br />

DIGITAIS<br />

DISPONÍVEIS<br />

NO PORTAL<br />

COVID19.INS.<br />

GOV.MZ<br />

activar recargas móveis de crédito das operadoras<br />

ou para activar serviços especiais destas. Poder-se-<br />

-ia pensar que o sucesso depende do recurso às tecnologias<br />

de última geração, mas isso nem sempre<br />

é verdade — sobretudo se o objectivo é chegar ao<br />

máximo de população possível. No caso, os smartphones<br />

representam uma minoria dos telemóveis<br />

usados em Moçambique.<br />

Com a pandemia longe de terminada, a UX, em<br />

parceria com o Misau, continua a desenvolver o<br />

autodiagnóstico, nomeadamente encontrando novas<br />

formas de usar os dados disponíveis. A empresa está<br />

também a analisar as consultas à informação disponibilizada<br />

pelo portal do Ministério criado sobre a<br />

COVID-19 para descobrir os artigos mais procurados<br />

e articular respostas de forma adequada. Tiago<br />

Borges Coelho antevê também uma oportunidade<br />

para, com base nesta experiência, poder ser criado<br />

o mesmo tipo de aplicação “para outras doenças,<br />

como a malária ou a tuberculose”, que têm ainda<br />

grande incidência em Moçambique.<br />

* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 33


LEGISLAÇÃO<br />

IMPACTOS<br />

DO COVID-19<br />

NO ACTUAL<br />

PARADIGMA<br />

DA PRESTAÇÃO<br />

DO TRABALHO<br />

PAULA DUARTE ROCHA<br />

No que respeita à pandemia<br />

do COVID-19, parece ser<br />

unanimemente entendido<br />

que, mesmo no pós-crise e<br />

a par do levantamento do<br />

confinamento e restrições impostas pelo<br />

mundo fora, os hábitos sociais vão alterar-<br />

-se profundamente enquanto o vírus não<br />

for considerado controlado. Para alguns,<br />

poderá vir a ser necessário um novo Plano<br />

Marshall, semelhante àquele que permitiu<br />

a reconstrução da Europa a seguir à<br />

II Guerra Mundial.<br />

Mas, agora, o inimigo não destruiu infra-<br />

-estruturas, antes dizimou economias e postos<br />

de trabalho. Esta diferença é brutal na<br />

forma como os estímulos e a recuperação<br />

podem ser feitos. Muito pela necessidade<br />

de apoio ao emprego, já que se prevê que,<br />

em muitos países, o desemprego no sector<br />

privado possa chegar a 50%.<br />

Nada será como dantes e ficará claro que<br />

ganhará esta “guerra” quem tiver melhores<br />

sistemas de saúde, capacidade tecnológica<br />

e capacidade de estimular a economia<br />

suportando uma despesa pública enorme<br />

e, acima de tudo, o trabalho.<br />

A vida do homem e a sustentabilidade do<br />

planeta ganharam uma nova dinâmica, porque<br />

poderão mudar por completo as atitudes<br />

e as prioridades de todos. Haverá, sem<br />

dúvida, uma mudança de consciência colectiva,<br />

e é esta a grande esperança e, quiçá, a<br />

maior oportunidade para a humanidade.<br />

QUAIS OS BENEFÍCIOS IMEDIATOS<br />

DO TELETRABALHO?<br />

A legislação que aprova as medidas administrativas<br />

para a prevenção e contenção<br />

da COVID-19 — em concreto, o Decreto<br />

n.º 12/<strong>2020</strong>, de 2 de Abril, e o Decreto n.º<br />

14/<strong>2020</strong>, de 9 de Abril de <strong>2020</strong> — trouxe<br />

consigo medidas que impõem às empresas a<br />

redução do efectivo laboral presencial para<br />

uma quantidade não superior a um terço<br />

(salvo algumas excepções), com rotatividade<br />

das equipas de serviço de quinze em<br />

quinze dias, e o teletrabalho, como forma de<br />

reduzir a exposição do seu efectivo laboral.<br />

Esta medida — o teletrabalho — suscitou<br />

muitas dúvidas ao longo dos útimos dois<br />

anos, também no contexto da discussão e<br />

revisão da Lei do Trabalho. Tornou-se, nos<br />

dias de hoje, uma realidade em Moçambique,<br />

com excepção dos sectores de actividade<br />

e dos segmentos das empresas em<br />

que é impossível implementar correspondentes<br />

àqueles em que a presença humana<br />

é impreterível.<br />

Concretizado que está o teletrabalho<br />

em Moçambique — ainda que não legislado<br />

—, temos mudanças nos nossos hábitos<br />

de trabalho.<br />

Muitos devem ter visto um vídeo que circulou<br />

na Internet (e até em alguns telejornais)<br />

o ano passado, onde um especialista<br />

comenta uma matéria de relevo e com algum<br />

grau de seriedade, sendo, de repente, surpreendido<br />

com a entrada dos filhos no compartimento<br />

em que se encontrava, vendo-se<br />

depois surgir a mãe das crianças, quase de<br />

gatas, a tentar retirá-las e assim permitir<br />

que o especialista conseguisse prosseguir<br />

o seu trabalho em directo. Foi hilariante!<br />

Quantos de nós não vivenciaram experiências<br />

semelhantes no último mês? Quantas<br />

vezes temos estado, ultimamente, numa<br />

chamada ou videoconferência, sendo interrompidos<br />

pelos gritos das crianças devido a<br />

uma qualquer altercação, excitação ou reclamação,<br />

ou pelo cão que começa a ladrar, ou<br />

pelo gato que salta para cima do teclado?<br />

Nos termos do anteprojecto de revisão<br />

da Lei do Trabalho, “entende-se por teletrabalho<br />

a prestação da actividade laboral<br />

34 | Exame Moçambique


PAULA DUARTE<br />

ROCHA: O inimigo<br />

não destruiu<br />

infra-estruturas,<br />

dizimou economia<br />

e postos de trabalho<br />

que é realizada sob autoridade e direcção do<br />

empregador, habitualmente fora do estabelecimento<br />

do empregador e com o recurso<br />

a meios de tecnologias de informação e<br />

comunicação mediante o pagamento de<br />

remuneração”.<br />

Assumindo a concretização de um equilíbrio<br />

entre a vida pessoal e profissional em<br />

casa, com uma gestão e planeamento das<br />

tarefas domésticas e do tempo, o trabalhar<br />

a partir de casa traz, para já, uma redução<br />

nos custos com as deslocações e transporte<br />

dos trabalhadores.<br />

Sem prejuízo de “alguns distúrbios” causados<br />

pela vida familiar, a redução (ou a<br />

inexistência) do tempo perdido em deslocações<br />

pode trazer maior produtividade.<br />

Com efeito, se, por um lado, é possível ao<br />

trabalhador trabalhar no computador a partir<br />

do momento em que acorda, não existe,<br />

também, a preocupação de parar a sua prestação<br />

laboral às 17h30 para enfrentar duas<br />

horas (ou mais) de trânsito a conduzir ou<br />

estar na fila à espera para apanhar o transporte<br />

para casa.<br />

Para as empresas, se, por um lado, houve<br />

necessidade de investimento (inicial) na disponibilização<br />

aos trabalhadores dos meios<br />

para a concretização do trabalho à distância,<br />

por outro lado, a implementação desta<br />

medida pode trazer consigo uma redução<br />

de custos fixos — designadamente em electricidade,<br />

meios de comunicação e até em<br />

instalações —, sem perigar com os objectivos<br />

de produtividade, sendo que, com o<br />

recurso à rotatividade e ao teletrabalho, é<br />

ainda possível reduzir os espaços e áreas de<br />

trabalho permanentes.<br />

No contexto legislativo em vigor — artigos<br />

54, 70, 71 e 73 da Lei do Trabalho —,<br />

ultrapassado que esteja o estado de emergência,<br />

o recurso “mais frequente” pelas<br />

empresas ao teletrabalho trará consigo<br />

modificações às actuais relações jurídicas<br />

de trabalho, acarretando, também, linhas<br />

hierárquicas mais flexíveis.<br />

COMO CONTROLAR O USO DOS MEIOS<br />

DA EMPRESA FORA DO LOCAL DE<br />

TRABALHO?<br />

Tal como acontece nas situações de qualquer<br />

contrato de trabalho em regime “normal”<br />

(i.e., presencial), e assim como aconteceu<br />

quando foi decretado o estado de emergência,<br />

com a inerente massificação do teletrabalho,<br />

caberá sempre aos empregadores<br />

assegurar a instalação, manutenção e des-<br />

maio <strong>2020</strong> | 35


LEGISLAÇÃO<br />

pesas inerentes à utilização dos meios para<br />

o teletrabalho, em particular o computador<br />

e a Internet. Será, no entanto, fundamental,<br />

a implementação de uma política de teletrabalho<br />

pelas empresas, com regras específicas<br />

de utilização dos meios disponibilizados<br />

para o teletrabalho e salvaguarda dos direitos<br />

e deveres dos trabalhadores, incluindo<br />

os horários de trabalho.<br />

Conforme sucede já com os plafonds estabelecidos<br />

por várias empresas para a utilização<br />

do telemóvel, tornar-se-á necessário<br />

atribuir e garantir a utilização mensurada<br />

de modems para o acesso regular à Internet<br />

pelos trabalhadores em teletrabalho<br />

ou assumir parte dos custos relacionados.<br />

Ao mesmo tempo, as plataformas Zoom,<br />

Microsoft Teams, Skype e WhatsApp têm<br />

sido as mais utilizadas pelos trabalhadores<br />

e empresas, neste período de estado de<br />

emergência e teletrabalho, a fim de assegurar<br />

em tempo real a comunicação com<br />

colegas e clientes.<br />

Mais, várias são as famílias com crianças<br />

em idade estudantil, com necessidade<br />

de recurso ao ensino virtual, mas com<br />

recurso apenas ao computador (de trabalho)<br />

da mãe ou do pai.<br />

Porém, algumas destas plataformas não<br />

garantem segurança nas comunicações,<br />

existindo o risco da sua intercepção por terceiros,<br />

bem como a exposição a vírus informáticos<br />

— entre outros constrangimentos<br />

—, o que, tudo somado, poderá concitar a<br />

partilha indesejada de informação, com<br />

inestimável prejuízo das empresas, seus<br />

colaboradores e respectivos clientes. Por<br />

essa razão, os departamentos de TI têm<br />

sido devotados a uma maior monitoria e<br />

controlo das comunicações dos sobreditos<br />

trabalhadores em regime de teletrabalho.<br />

Contudo, esta atitude e intervenção<br />

dos departamentos de TI pode trazer consigo<br />

uma violação do direito à privacidade<br />

e protecção dos dados pessoais do trabalhador,<br />

consagrada nos artigos 5 e 6 da Lei<br />

do Trabalho.<br />

Ao mesmo tempo, o artigo 9 da Lei do<br />

Trabalho estabelece que a correspondência<br />

do trabalhador, de natureza pessoal,<br />

efectuada por qualquer meio de comunicação<br />

privada, designadamente (…) mensagens<br />

electrónicas, é inviolável, podendo<br />

O TELETRABALHO PODE<br />

TRAZER UMA REDUÇÃO<br />

DE CUSTOS FIXOS<br />

o empregador estabelecer regras e limites<br />

de utilização das tecnologias de informação<br />

na empresa, nomeadamente do correio<br />

electrónico e acesso à Internet, ou vedar<br />

por completo o seu uso para fins pessoais.<br />

Pelo que se impõe uma urgente e melhor<br />

regulamentação, ainda que, para já, através<br />

dos instrumentos de regulamentação colectiva<br />

do trabalho (IRCT).<br />

E O IMPACTO NA PROTECÇÃO DA DIG-<br />

NIDADE DO TRABALHADOR?<br />

O uso de máscaras e, em determinados contextos,<br />

de luvas, é hoje uma realidade nas<br />

empresas e em quaisquer locais públicos ou<br />

com aglomerados de pessoas. A par destas<br />

medidas, a medição da temperatura para o<br />

acesso de pessoas a determinados espaços,<br />

incluindo ao local de trabalho, poderá também<br />

vir a tornar-se realidade num futuro<br />

próximo e mesmo depois de levantado o<br />

estado de emergência.<br />

Detectando-se que um trabalhador se<br />

apresenta febril, sentir-nos-emos, definitivamente,<br />

mais seguros no local de trabalho,<br />

sendo tal trabalhador submetido a exames<br />

médicos; e a confirmação que os sintomas<br />

que “aquele colega” trabalhador apresenta se<br />

relacionam com alguma doença de “reduzido<br />

contágio” trará, no contexto de uma pandemia<br />

causada por uma doença sem cura,<br />

um certo alívio a todos os colaboradores.<br />

Mas, no contexto legislativo actual, ainda<br />

que seja permitido à empresa realizar testes<br />

médicos ao trabalhador (ou solicitar-lhe a<br />

apresentação de testes ou exames médicos)<br />

para comprovação da sua condição física ou<br />

psíquica, o médico responsável pelos testes<br />

ou exames médicos não pode comunicar ao<br />

empregador qualquer outra informação a<br />

não ser a que disser respeito à capacidade<br />

ou falta desta para o trabalho — artigo 7 da<br />

Lei do Trabalho.<br />

Ao mesmo tempo, poderá a utilização de<br />

um termómetro para simples medição da<br />

temperatura corporal do trabalhador enquadrar-se<br />

no contexto de um exame médico?<br />

Para já, diria que sim, na medida em que<br />

a simples medição da temperatura poderá<br />

vir a ditar a incapacidade do trabalhador<br />

para trabalhar ou para, simplesmente, ter<br />

acesso ao local de trabalho.<br />

Torna-se, portanto, oportuno avaliar e<br />

aproveitar, no âmbito do processo de revisão<br />

da Lei do Trabalho, novos moldes para a<br />

protecção da dignidade do trabalhador, no<br />

pós-COVID-19, no que diz respeito à realização<br />

e ao conceito de exames médicos.<br />

Outrossim, será de avaliar-se em que<br />

medida a impossibilidade do trabalhador<br />

para estar no local de trabalho por determinação<br />

da empresa em resultado de apresentar-se<br />

com temperatura corporal acima<br />

do “normal” constitui falta justificada por<br />

doença, implicando, para o trabalhador, o<br />

não pagamento de qualquer remuneração,<br />

sem prejuízo das disposições de segurança<br />

social — nos termos das disposições conjugadas<br />

dos artigos 105 n.º 3 e alínea d) do<br />

n.º 3 do artigo 103 da Lei do Trabalho.<br />

Sem pretender entrar na discussão sobre<br />

os moldes em que o trabalhador poderá<br />

recorrer à segurança social pelo facto de,<br />

tendo-lhe sido medida a temperatura (e,<br />

apresentando-se com temperatura acima<br />

do “normal”), ter sido impedido de aceder<br />

ao local de trabalho, parece-me que a alternativa<br />

do recurso ao teletrabalho poderá ser<br />

a solução mais eficiente, tanto para o trabalhador<br />

como para empresa.<br />

Mas estarão as seguradoras preparadas<br />

e existe já quadro legal para acomodar, no<br />

âmbito do seguro colectivo de trabalho, acidentes<br />

de trabalho ocorridos no regime do<br />

teletrabalho?b<br />

36 | Exame Moçambique


BAZARKETING<br />

THIAGO FONSECA<br />

Sócio e director de Criação da Agência GOLO.<br />

PCA Grupo LOCAL de Comunicação SGPS, Lda<br />

ERA UMA VEZ<br />

ERA UMA VEZ O<br />

MARKETING COMO<br />

O CONHECÍAMOS<br />

Era uma vez uma era que já era.<br />

Era uma vez uma outra que está<br />

a começar. “Era uma vez”, no storytelling,<br />

é a forma clássica de como se começam<br />

a escrever e a contar estórias.<br />

E há uma nova que está a ser escrita neste<br />

momento tão especial que estamos a<br />

viver na História da Humanidade e do<br />

nosso planeta.<br />

O mais importante para as marcas é a<br />

estória que elas nos vão contar.<br />

Tudo já está a mudar. E o que está a<br />

acontecer vai moldar por gerações o<br />

mundo e a forma como fazíamos as coisas.<br />

Como vivíamos. E, claro, vai mudar<br />

o marketing, a comunicação e as marcas.<br />

Era uma vez as certezas.<br />

Era uma vez as fórmulas.<br />

Era uma vez tudo o que se dava por<br />

garantido.<br />

Era uma vez os produtos supérfluos.<br />

Era uma vez quem achava que as coisas<br />

se faziam apenas de certa maneira.<br />

Espero que possamos todos aprender<br />

grandes lições com tudo o que se está a<br />

passar neste momento.<br />

Espero que as próximas gerações falem<br />

da nossa com orgulho.<br />

Espero que se faça o que está certo e, se<br />

agirmos agora, era uma vez tudo o que<br />

estava errado.<br />

ERA UMA VENDA<br />

Era uma vez as empresas cujo único propósito<br />

das suas marcas é vender.<br />

Novas estórias surgirão e as marcas<br />

que vão vencer nesta fase e no futuro<br />

são as que tiverem o propósito de fazer<br />

o bem maior. E exercerem esse propósito<br />

com acções.<br />

Não se devem tomar decisões baseadas<br />

no valor em queda das acções das<br />

empresas nas bolsas de valores, mas nos<br />

valores mais importantes para a raça humana<br />

e o planeta.<br />

O mundo inteiro está a assistir a tudo<br />

como nunca. A ver quem é quem. E a<br />

colocar um grande desafio, que consiste<br />

em questionar o verdadeiro propósito<br />

das marcas.<br />

Muitas marcas têm a componente de<br />

responsabilidade social como uma pequena<br />

parte da sua actividade. Agora,<br />

esta será a componente mais importante<br />

para todas as marcas que quiserem ser<br />

admiradas e líderes pois terão laços mais<br />

fortes e emocionais com os consumidores.<br />

No fundo, era uma vez o marketing<br />

como o conhecíamos.<br />

Enquanto estamos todos de cara tapada,<br />

mas com os olhos bem abertos, é o<br />

momento de as marcas mostrarem a sua<br />

verdadeira cara e se reinventarem para<br />

praticar o bem maior. São essas que crescerão<br />

e se posicionarão sólidas a longo<br />

prazo.<br />

A Coca-Cola, a maior marca do século<br />

xx, já lançou a sua campanha global.<br />

“A message to the human race.” E lançou<br />

bem. A sua mensagem de prevenção<br />

emociona e cria laços emocionais com a<br />

marca independente da forma que o seu<br />

produto vier a ser no futuro.<br />

Estudos recentes mostram que a televisão<br />

de sinal aberto atingiu o seu pico<br />

maior de sempre.<br />

As pessoas estão atentas aos telejornais<br />

globais, mas sobretudo aos locais.<br />

As gerações mais novas, na casa dos vinte<br />

anos, não viam o telejornal. Era coisa<br />

dos mais velhos essa rotina. Esse hábito.<br />

Neste momento, fechados em casa,<br />

os jovens estão a ver. Querem saber o<br />

desenvolvimento da pandemia. Estão<br />

sedentos de informação. E, ao fazê-lo,<br />

criarão esse hábito que fica para o futuro.<br />

E teremos uma geração de novos telespectadores<br />

que não existia.<br />

ERA UMA VEZ A FORMA COMO CON-<br />

SUMIMOS OS MEDIA<br />

Segue-se à televisão, localmente em Moçambique,<br />

a rádio, as redes sociais e os<br />

38 | Exame Moçambique


conteúdos de informação e entretenimento<br />

que nos chegam pelo digital.<br />

Era uma vez os eventos. Que terão<br />

de ser reinventados enquanto o mundo<br />

aguarda por uma vacina em 2021 ou<br />

2022.<br />

E, mesmo depois disso, quem nos garante<br />

que novas pandemias não possam<br />

surgir?<br />

Era uma vez as marcas que não virem a<br />

oportunidade de criar os conteúdos relevantes<br />

e os veicularem nos meios certos.<br />

A informação credível está a ser mais<br />

procurada do que nunca.<br />

É O MOMENTO DE AS<br />

MARCAS MOSTRAREM A<br />

SUA VERDADEIRA CARA<br />

Os consumidores de media optam<br />

pelo que confiam. E sabem o que é um<br />

WhatsApp com um conteúdo duvidoso.<br />

O digital, que antes era uma opção,<br />

nunca foi tanto usado como agora. E por<br />

isso é expectável, como em outras grandes<br />

guerras, vermos grandes evoluções<br />

tecnológicas nessa área.<br />

O on-line neste momento é a plataforma<br />

mais importante para comunicarmos<br />

e fazermos as coisas. E isso muda<br />

o jogo e cria novas oportunidades para<br />

as marcas.<br />

Era uma vez a maneira como vivíamos.<br />

Este vírus virou o mundo do avesso.<br />

Já contagiou o marketing e o modo<br />

como as marcas vão viver e sobreviver.<br />

O melhor é adaptar-se rapidamente a<br />

esta nova realidade.<br />

Caso contrário, era uma vez a sua<br />

marca.b<br />

maio <strong>2020</strong> | 39


ÁFRICA PANDEMIA<br />

PANDEMIA:<br />

Há que evitar que<br />

o novo coronavírus<br />

alastre em África<br />

COVID-19:<br />

UM MAL QUE<br />

VEIO POR BEM?<br />

A pandemia do novo coronavírus é uma tragédia para<br />

o mundo e muda a forma de os países, as pessoas e<br />

as empresas se organizarem, conviverem e produzirem.<br />

Com o mundo em suspenso, à beira do abismo da recessão<br />

económica, África, com “poucos” casos para a sua<br />

dimensão, está à beira de um ataque de nervos com o que<br />

já perdeu e vai perder na economia. Mas esta pode ser uma<br />

oportunidade para lançar sementes de resiliência futura.<br />

Seremos capazes, desta vez?<br />

RICARDO DAVID LOPES<br />

Mais do que um provérbio,<br />

fazer das fraquezas forças<br />

é um modo de estar para a<br />

maioria dos africanos. Até<br />

nos países mais “ricos”, a<br />

generalidade da população vive perto, ou<br />

abaixo, do limiar de pobreza. Sofrer privações,<br />

incluindo fome, e enfrentar dificuldades,<br />

como doenças diversas, sem<br />

que os sistemas de saúde públicos ofereçam<br />

assistência condigna, são, infelizmente,<br />

situações “normais”. Mas, como<br />

diz a canção de Chico Buarque, “a gente<br />

vai levando”. E vai mesmo. No entanto,<br />

agora custa mais — e pode mesmo piorar<br />

por causa de algo que nem está sequer ao<br />

alcance da vista.<br />

EM ÁFRICA, O VÍRUS TEM<br />

TERRENO PRÓSPERO<br />

PARA AVANÇAR<br />

O novo coronavírus é esse novo factor<br />

que não vemos — a não ser que usemos<br />

potentes e dispendiosos microscópios electrónicos.<br />

Não o vemos, mas os seus efeitos<br />

na saúde humana e a pressão que exerce<br />

na economia global já eram evidentes até<br />

antes de a Organização Mundial de Saúde<br />

(OMS) ter declarado a COVID-19 — a<br />

doença que o vírus causa — uma pandemia,<br />

a 11 de Março passado.<br />

Na altura, havia pouco mais de 118 mil<br />

casos confirmados, em 114 países, e 4300<br />

mortes. A doença já havia chegado a África:<br />

o primeiro caso foi detectado no Egipto,<br />

no Dia de São Valentim, ou “dos Namorados”,<br />

14 de Fevereiro. De então para cá, este<br />

invasor indesejado, de uma família de vírus<br />

que pode causar graves problemas respiratórios,<br />

já infectou mais de 3 milhões de<br />

pessoas e matou mais de 200 mil.<br />

Em África, o vírus, com origem num<br />

mercado de animais vivos em Whuan, na<br />

China, tinha desde início (e tem) terreno<br />

próspero para avançar. Por isso, os alertas<br />

também se fizeram ouvir cedo. Três<br />

semanas antes de declarar a pandemia,<br />

no dia 22 de Fevereiro, o director-geral<br />

40 | Exame Moçambique


da OMS, Tedros Ghebreyesus, destacou na<br />

sua conta do Twitter a “necessidade imperativa<br />

de evitar que o vírus chegue a países<br />

com sistemas de saúde frágeis, como<br />

os das economias mais pobres”. E pediu<br />

à comunidade internacional doações de<br />

675 milhões de dólares para apoiar os países<br />

mais vulneráveis.<br />

África, ainda a lidar com os efeitos do<br />

ébola e outras doenças que periodicamente<br />

assolam o continente (e que se juntam às<br />

habituais), contava então com 13 casos,<br />

longe dos cerca de 31 400 registados no dia<br />

de fecho deste texto, 28 de Abril, quando<br />

havia a lamentar 1419 mortes pela doença<br />

que lançou o caos em todo o mundo, gerou<br />

a maior recessão desde a Grande Depressão,<br />

nos anos 30 do século passado, e obrigou<br />

todos a mudarem a forma de viver.<br />

Mas o vírus não demorou a ganhar terreno<br />

no Continente Berço, e o mais certo<br />

é que o número de casos seja superior ao<br />

oficial devido à falta de capacidade de<br />

detecção e de testagem a casos suspeitos<br />

por manifesta falta de meios.<br />

“PREPAREM-SE PARA O PIOR”<br />

Poucos dias depois de declarar a pandemia,<br />

Tedros Ghebreyesus apelou a África<br />

para que se preparasse para o pior no combate<br />

à doença, que na altura já estava em<br />

33 países da região, com mais de 600 casos.<br />

Então, Moçambique ainda não estava<br />

neste “mapa”. “Noutros países vimos como<br />

REUTERS<br />

o vírus acelerou a partir de um certo limiar.<br />

O melhor conselho para África é que deve<br />

preparar-se para o pior desde já”, disse o<br />

director-geral da OMS em teleconferência<br />

de imprensa. No mesmo registo falou,<br />

pela mesma altura, o chefe do Centro Africano<br />

de Controlo e Prevenção de Doenças<br />

(CDC), John Nkengasong. “África<br />

deve preparar-se para um sério desafio”,<br />

disse. “Ainda acredito que a contenção é<br />

possível, mas apenas com testes e vigilância<br />

extensos”, acrescentou. Não foi apenas<br />

por ser africano e conhecer o terreno que o<br />

etíope que lidera a agência das Nações para<br />

a Saúde se referiu ao problema dos países<br />

mais pobres e vulneráveis, sendo que muitos<br />

estão precisamente em África. O continente<br />

tem as condições certas para que<br />

uma tempestade perfeita de factores abra<br />

as portas à rápida transmissão da doença.<br />

A elevada abertura ao comércio e migrações,<br />

a fragilidade dos sistemas de saúde<br />

e de controlo epidemiológico, a escassez<br />

de água potável para a lavagem frequente<br />

das mãos, a forte dependência do exterior<br />

para produtos alimentares, o elevado peso<br />

da exportação de matérias-primas nalguns<br />

dos países do continente , o avançado grau<br />

de informalidade da economia, os inúmeros<br />

aglomerados populacionais nas cidades<br />

e nos subúrbios, onde vivem milhões<br />

de pessoas sem que seja tecnicamente possível<br />

haver distanciamento social, são, em<br />

resumo, os principais factores de risco.<br />

RECESSÃO A CAMINHO<br />

No início de Abril, um documento da<br />

União Africana (UA), designado “Impacto<br />

do Coronavírus (COVID-19) na Economia<br />

Africana”, dava já como certa a recessão<br />

no continente — e no mundo —, que<br />

viria a ser confirmada pelo Fundo Monetário<br />

Internacional (FMI) e outras instituições<br />

pouco depois.<br />

A doença, indica o documento, “chegou<br />

a 50 Estados da União Africana (…) e não<br />

dá sinais de abrandar”. África, acrescenta,<br />

devido à sua abertura ao comércio internacional<br />

e a fluxos migratórios, “não está<br />

imune aos efeitos negativos da COVID-19”,<br />

quer endógenos, quer exógenos.<br />

Os efeitos exógenos, explica a UA, derivam<br />

das ligações comerciais entre África<br />

maio <strong>2020</strong> | 41


ÁFRICA PANDEMIA<br />

e os parceiros afectados, como a Ásia,<br />

Europa ou EUA. A China, por exemplo,<br />

cujo crescimento para este ano foi “cortado”<br />

em Abril pelo FMI para 1,2% (face<br />

aos 5,8% estimados em Outubro de 2019),<br />

que pesa 16% no PIB mundial, é o principal<br />

parceiro de vários países africanos,<br />

incluindo os mais frágeis, na região subsariana.<br />

Na prática, África leva por tabela,<br />

porque muito do seu comércio depende do<br />

estado de saúde das economias com que se<br />

relaciona, com a China à cabeça.<br />

Dentro desta categoria de efeitos estão<br />

a queda nas remessas da Diáspora Africana<br />

e nas receitas do turismo, o recuo<br />

do investimento directo estrangeiro (IDE)<br />

e da assistência ao desenvolvimento, ou<br />

fluxos de financiamento ilícitos e o aperto<br />

do mercado financeiro local.<br />

No caso das remessas, as contas viriam<br />

a ser feitas pelo Banco Mundial, dando<br />

nota do rombo nas contas públicas de muitos<br />

países: o seu valor deve afundar 32,1%<br />

este ano, face a 2019, para 37 mil milhões<br />

de dólares, devido a “uma combinação de<br />

factores alimentada pela propagação da<br />

COVID-19 nos principais destinos onde<br />

residem os emigrantes africanos na Europa,<br />

EUA, Médio Oriente e China”, que valem<br />

25% de todas estas remessas.<br />

O relatório “Africa Pulse”, do Banco<br />

Mundial, assinala que “as remessas são<br />

uma das principais fontes de receita em<br />

moeda externa para a região e servem como<br />

importante canal de partilha de risco no<br />

mundo em desenvolvimento”.<br />

O Banco Mundial prevê uma quebra do<br />

PIB na África Subsariana de 2,1% a 5%,<br />

face à anterior estimativa de crescimento<br />

médio de 2,4%, e uma perda de receitas entre<br />

37 mil milhões de dólares e 79 mil milhões<br />

de dólares, em função da duração da pandemia<br />

e das medidas adoptadas pelos países<br />

para conter a sua progressão.<br />

PERDAS AFRICANAS<br />

Por causa da pandemia o<br />

continente poderá perder:<br />

50 MIL MILHÕES DE DÓLARES<br />

em receitas do turismo<br />

2 MILHÕES DE EMPREGOS<br />

directos e indirectos<br />

30% DA RECEITA FISCAL<br />

estimada em 500 mil milhões<br />

de dólares em 2019<br />

1,1%<br />

é quanto o PIB africano poderá<br />

cair<br />

65 MIL MILHÕES DE DÓLARES<br />

só em Angola e na Nigéria<br />

devido ao colapso dos preços<br />

do petróleo<br />

90 MIL MILHÕES DE DÓLARES<br />

retirados dos mercados<br />

africanos por investidores<br />

internacionais com receio<br />

do que possa suceder no<br />

continente<br />

ANDAR PARA TRÁS<br />

As contas do Banco Mundial não diferem<br />

muito das divulgadas, também em Abril,<br />

pelo FMI (Previsões da Primavera), onde<br />

se estima que a região entre em recessão<br />

pela primeira vez na sua história, com o<br />

PIB a recuar, em média, 1,6%, e de forma<br />

mais agravada nos países petro-dependentes,<br />

como Angola ou a Nigéria. A UA, por<br />

seu turno, aponta para uma quebra de -0,8<br />

a 1,1 do PIB. Quanto à economia mundial,<br />

o FMI aponta para uma recessão de 3%<br />

(ver gráficos e projecções nestas páginas).<br />

Os efeitos endógenos da COVID-19 na<br />

economia do continente, indica o “África<br />

Pulse”, resultam “da rápida propagação<br />

do vírus em muitos países” africanos. “Por<br />

um lado, estão associados à mortalidade<br />

e morbilidade. Por outro, conduzem à ruptura<br />

das actividades económicas, podendo<br />

causar uma queda da procura interna e de<br />

receitas fiscais devido à quebra do preço<br />

de commodities, associada ao aumento dos<br />

gastos públicos em saúde e apoio às economias”,<br />

explica.<br />

Na verdade, em países como Angola ou<br />

a Nigéria, a queda do preço do petróleo é<br />

um quebra-cabeças. E não parece haver<br />

solução à vista, dado que o valor do barril,<br />

que negociou pela primeira vez em terreno<br />

negativo (cerca de 37 dólares) em Abril,<br />

mantém-se em baixa e o corte anunciado<br />

pela OPEP+ não convenceu os mercados.<br />

O abrandamento da China e da economia<br />

global, à medida que as medidas de confinamento<br />

foram adoptadas pelos países,<br />

causou uma queda súbita, mas prolongada,<br />

da procura, que está cerca de 30 milhões<br />

de barris abaixo da oferta — e levou ao<br />

problema inédito de falta de capacidade<br />

de armazenamento, levando os preços ao<br />

“tapete”. O petróleo ficou mais do que em<br />

saldos: houve quem pagasse para o vender.<br />

“A pandemia de COVID-19 atingiu quase<br />

todos os países africanos e parece poder<br />

evoluir dramaticamente. A ruptura na economia<br />

mundial, por via das cadeias de valor<br />

globais, a queda abrupta do preço das commodities<br />

e das receitas fiscais, e o reforço das<br />

restrições às viagens e [contactos] sociais<br />

em muitos países africanos são as principais<br />

causas para o crescimento negativo”,<br />

lê-se no documento da UA.<br />

“A instituição estima que as exportações<br />

e importações dos países africanos<br />

caiam pelo menos 35%, face a 2019,<br />

com uma perda em valor estimada em<br />

270 mil milhões USD.” E mais: “A luta contra<br />

a propagação do vírus e em tratamentos<br />

médicos irá conduzir a um aumento dos<br />

gastos públicos em África em, no mínimo,<br />

130 mil milhões de dólares.”<br />

TURISMO DOENTE<br />

Além do petróleo, a aviação comercial e o<br />

turismo são dois dos sectores mais afectados<br />

em África — e no mundo. “O turismo,<br />

sector importante em muitos países em<br />

África, será pesadamente afectado pela<br />

COVID-19, com a generalização das restrições<br />

a viagens, encerramento de fronteiras<br />

e distanciamento social”, destaca.<br />

A IATA [associação que agrega as companhias<br />

aéreas mundiais] estima que o contributo<br />

da indústria de transporte aéreo<br />

para África é de 55,8 mil milhões de dólares,<br />

garantindo 6,2 milhões de empregos<br />

e constituindo 2,6% do PIB. O sector<br />

garante o transporte, em condições normais,<br />

de 35% do comércio mundial, e cada<br />

emprego assegura outros 24 na cadeia<br />

42 | Exame Moçambique


MERCADOS<br />

INTERNACIONAIS:<br />

O recurso aos<br />

empréstimos externos<br />

aumentará o nível<br />

de dívida dos países<br />

GETTY<br />

PANDEMIA FAZ DESCER O PIB<br />

O novo coronavírus faz estragos na economia<br />

moçambicana, agravando mais a já débil situação<br />

das contas públicas O crescimento do PIB, em<br />

percentagem, foi revisto em forte baixa pelo FMI<br />

em Abril de <strong>2020</strong>, face a Outubro de 2019…<br />

Crescimento do PIB (em %)<br />

6%<br />

… E O SALDO FISCAL É AGRAVADO…<br />

(valores em % do PIB)<br />

-4,8%<br />

WEO Out 2019<br />

… ASSIM COMO A DÍVIDA GOVERNAMENTAL<br />

que fica a valer um PIB e três quartos<br />

(valores em % do PIB)<br />

106,8%<br />

125,4%<br />

2,2%<br />

-14%<br />

WEO Out 2019 WEO Abr <strong>2020</strong><br />

WEO Abr <strong>2020</strong> WEO Out 2019<br />

WEO Abr <strong>2020</strong><br />

Fonte: WEO Out. 2019 e Abril <strong>2020</strong>.<br />

de valor das viagens e turismo, sendo responsável,<br />

segundo a IATA, por 70 milhões<br />

de postos de trabalho no mundo.<br />

Segundo a mesma fonte, à data do documento<br />

as companhias aéreas africanas já<br />

haviam perdido receitas de venda de bilhetes<br />

de 4,4 mil milhões de dólares até 11 de<br />

Março. Tendo as viagens e turismo, no conjunto,<br />

um contributo de 8,5% para o PIB<br />

da região (dados de 2019 da Organização<br />

Mundial de Turismo), não é difícil a antecipar<br />

que os efeitos venham a ser piores do<br />

que o previsto. “O turismo emprega mais<br />

de um milhão de pessoas na Nigéria, Etiópia,<br />

África do Sul, Quénia e Tanzânia, e tem<br />

um peso de 20% no emprego nas Seychelles,<br />

Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Maurícias.<br />

Nas crises anteriores, incluindo 2008<br />

e 2014, o turismo africano sofreu perdas de<br />

7,2 mil milhões de dólares”, assinala a UA.<br />

Contas feitas, num cenário médio o sector<br />

das viagens e turismo africano poderá<br />

perder, no mínimo, 50 mil milhões de dólares<br />

por causa da COVID-19, além de dois<br />

milhões de empregos directos e indirectos.<br />

CHOQUE COMERCIAL<br />

O comércio é mais um dos elos mais fracos<br />

de África no contexto COVID-19, baseando-<br />

-se sobretudo na venda de matérias-primas<br />

maio <strong>2020</strong> | 43


ÁFRICA PANDEMIA<br />

para a Europa, China e EUA. A queda dos<br />

preços é, por isso, um golpe severo para<br />

estes países, muito sujeitos a choques externos,<br />

com fraca industrialização, carência de<br />

infra-estruturas e de know-how, e com sistemas<br />

financeiros muitas vezes fracos. Com<br />

um peso de 29% no PIB da região, o acumulado<br />

das trocas comerciais com o exterior,<br />

entre 2015 e 2019, ascendeu a 760 mil<br />

milhões de dólares, mas o comércio intra-<br />

-regional pesa apenas cerca de 17% do total.<br />

Ainda antes de ser confirmado pelo FMI<br />

que a recessão mundial não iria passar ao<br />

lado de África, já a Comissão Económica<br />

das Nações Unidas para África (UNECA)<br />

alertara para o risco de, por causa da pandemia,<br />

o continente poder perder até 30%<br />

da receita fiscal, estimada em 500 mil<br />

milhões de dólares em 2019. “Os governos<br />

não vão ter outra opção que não seja<br />

depender dos mercados internacionais, o<br />

que pode aumentar o nível de dívida dos<br />

países, que deve ser usada para investimentos<br />

produtivos ou investimentos que<br />

aumentem o conhecimento, e não manterem<br />

os seus planos de despesa”, alertou<br />

TEDROS GHEBREYESUS:<br />

O melhor conselho<br />

para África, para o<br />

director-geral da OMS,<br />

é preparar-se para<br />

o pior desde já<br />

APESAR DOS APOIOS<br />

JÁ RECEBIDOS, ÁFRICA<br />

PRECISA DE MAIS MEIOS<br />

PARA ESTA LUTA<br />

a entidade a 6 de Abril, de acordo com a<br />

Lusa. “Existe uma alta probabilidade de<br />

muitos países enfrentarem uma implosão<br />

no volume de dívida externa e nos custos<br />

de servir a dívida devido à subida dos<br />

défices orçamentais, já que vão precisar de<br />

colocar mais ênfase nas despesas sociais,<br />

incluindo os sistemas de saúde, estímulos<br />

económicos aos agregados familiares e às<br />

pequenas e médias empresas”, acrescentavam,<br />

estimando uma queda do PIB africano<br />

de 0,8% a 1,1% e a perda de 30 milhões de<br />

empregos formais e informais.<br />

“Quando às perdas ligadas ao colapso dos<br />

preços do petróleo, valem 65 mil milhões<br />

de dólares para Angola e Nigéria, o que<br />

resulta numa redução das reservas em<br />

D.R.<br />

moeda externa e na capacidade de implementar<br />

os seus programas de desenvolvimento”,<br />

concluía o documento. Só que,<br />

na altura, o petróleo estava a 30 dólares o<br />

barril... de então para cá, o mundo mudou.<br />

DINHEIRO A FUGIR<br />

Os efeitos são quase intermináveis. As<br />

organizações internacionais apontam para<br />

uma quebra no IDE global até 15% este<br />

ano, face a 2019, incluindo em África, uma<br />

região onde a maioria do emprego (mais<br />

de 90% em muitos países) é ainda informal<br />

— o que se irá agravar com a suspensão,<br />

ou não, da decisão de investimentos<br />

e com os efeitos de contenção e mitigação<br />

da doença (destruição de cadeias de<br />

valor, confinamento da população, encerramento<br />

de restaurantes, bares, comércio,<br />

etc.). Acresce que, segundo o FMI, desde o<br />

início do ano, cerca de 90 mil milhões de<br />

dólares foram retirados dos mercados africanos<br />

por investidores internacionais com<br />

receio do que possa suceder no continente.<br />

Nalguns países, com apoios públicos ou<br />

de associações, como na África do Sul, os<br />

governos garantem algum suporte a trabalhadores<br />

cuja actividade foi afectada<br />

pela pandemia. E há, ainda, medidas de<br />

natureza fiscal, como o adiamento ou suspensão<br />

da cobrança de impostos, sobre os<br />

sistemas bancários, para torná-los menos<br />

expostos, de despesa pública (reforço dos<br />

orçamentos da saúde), monetárias ou sobre<br />

taxas de juro — desgravando-as nalguns<br />

países. O problema é que, na maior parte<br />

dos casos, não há dinheiro que aguente.<br />

Por isso, os apelos ao apoio directo e ao<br />

perdão da dívida africana têm sido muitos...<br />

e já com alguns resultados.<br />

PERDOA-ME QUE DEPOIS EU PAGO<br />

Quando caímos em desgraça é que vemos<br />

quem são os nossos amigos, diz o ditado.<br />

E, a avaliar pelos apoios entretanto surgidos<br />

para o combate aos efeitos sanitários<br />

e económicos da COVID-19, África tem<br />

hoje mais amigos do que nunca, pelo menos<br />

se traduzirmos a amizade em dinheiro —<br />

dado ou, na maior parte dos casos, emprestado,<br />

mas a bom preço.<br />

Para já, ainda assim, o dinheiro não chega,<br />

havendo um défice de 44 mil milhões de<br />

44 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 45


ÁFRICA PANDEMIA<br />

dólares que o apoio de outros “amigos” —<br />

pessoas e empresas — não conseguirá cobrir.<br />

O alerta surgiu em meados do mês passado,<br />

com FMI e o Banco Mundial a dizerem<br />

ter contribuído para os 57 mil milhões<br />

de dólares mobilizados pelos credores oficiais<br />

para apoiar os cuidados de saúde e a<br />

recuperação económica no continente, e<br />

que 13 mil milhões de dólares provinham<br />

de fundos privados. “É um começo importante,<br />

mas o continente precisa de cerca<br />

de 114 mil milhões de dólares em <strong>2020</strong> na<br />

sua luta contra a COVID-19, deixando um<br />

défice de financiamento de cerca de 44 mil<br />

milhões de dólares”, lê-se na declaração.<br />

Também Cyril Ramaphosa, o Presidente<br />

sul-africano e presidente em exercício da<br />

UA, destacou que a pandemia “já teve um<br />

impacto devastador em África e os seus efeitos<br />

irão agravar-se à medida que a taxa de<br />

infecção aumentar”. A COVID-19, alertou,<br />

é “um revés para os progressos que fizemos<br />

para erradicar a pobreza, a desigualdade<br />

e o subdesenvolvimento”.<br />

Os apelos ao perdão da dívida acabaram<br />

por surtir efeito também junto do G20, a<br />

quem o Presidente francês pediu para que<br />

África fosse ajudada também com mais<br />

linhas de crédito. Macron queria um perdão<br />

total, mas saiu “vencido” da decisão,<br />

que o G7 já tinha defendido, desde que<br />

também fosse assumida pelo... G20.<br />

No dia 15 de Abril, os países deste grupo<br />

aprovaram uma moratória de um ano no<br />

pagamento das dívidas dos países mais<br />

pobres, incluindo muitos Estados em<br />

África, com efeitos a partir de 1 de <strong>Maio</strong>,<br />

libertando recursos no valor de cerca de<br />

20 mil milhões de dólares para o combate<br />

à doença e medidas de apoio à economia.<br />

O perdão foi em geral bem recebido, mas<br />

nem todos concordaram com o seu modelo,<br />

incluindo o economista guineense Carlos<br />

Lopes, professor na Universidade sul-africana<br />

do Cabo, para quem a medida não é<br />

suficiente para fazer face ao problema. Em<br />

entrevista à RFi, o também antigo secretário-executivo<br />

da UNECA defendeu ser<br />

necessário um dispositivo mais alargado<br />

para dar margem aos Estados africanos<br />

para fazerem face à pandemia. Para o economista,<br />

o modelo deveria abranger não só<br />

os 19 países menos avançados de África,<br />

O TURISMO ESTÁ A<br />

SOFRER QUEBRAS QUE<br />

AMEAÇAM O FUTURO<br />

DE EMPRESAS<br />

mas também países de desenvolvimento<br />

médio, a braços, nomeadamente, com a<br />

queda dos preços das matérias-primas e<br />

a desvalorização das respectivas moedas.<br />

Antes, o FMI anunciara o perdão do serviço<br />

da dívida durante seis meses a 25 dos<br />

países mais pobres do mundo, para permitir<br />

a libertação de recursos para o combate<br />

à pandemia, sendo a maioria em África.<br />

Moçambique, recorde-se, foi um dos beneficiados,<br />

com um perdão de 15 milhões de<br />

dólares, que Maputo anunciou ir aplicar no<br />

combate à doença. Entretanto, no passado<br />

24 de Abril, o FMI aprovou um desembolso<br />

de 309 milhões de dólares, no âmbito da<br />

Facilidade Rápida de Crédito, para ajudar<br />

o país a suprir as necessidades urgentes da<br />

balança de pagamentos e fiscais decorrentes<br />

da pandemia na economia, que sofreu<br />

“um impacto significativo (…), interrompendo<br />

uma recuperação nascente após dois<br />

poderosos ciclones tropicais que ocorreram<br />

em 2019”. De acordo com a Lusa, que cita<br />

o comunicado do FMI, este apoio financeiro<br />

de emergência surge “em conjunto<br />

com o financiamento adicional em donativos<br />

que ajudará a catalisar, contribuirá<br />

para atender as necessidades urgentes da<br />

balança de pagamentos de Moçambique<br />

geradas pela pandemia”, disse o director-<br />

-executivo adjunto do FMI, Tao Zhang,<br />

referindo o apoio adicional que advém da<br />

decisão do G20. E é bem-vinda a ajuda. No<br />

caso de Moçambique, um estudo da Equipa<br />

de Resposta à COVID19 do Imperial College,<br />

em Londres, alertou para o risco de<br />

haver 61 mil a 65 mil mortos no país se o<br />

governo não tomasse acções concretas, e<br />

disse que 94% da população poderia contrair<br />

a doença.<br />

A CARTA NO FT<br />

O Presidente francês não foi o único a<br />

pedir um perdão fiscal, além de líderes<br />

africanos. E a causa do perdão, ou moratória,<br />

atingiu o expoente no mesmo dia<br />

em que o G20 decidiu dar apoio, por via<br />

da moratória, através de uma carta aberta<br />

publicada no Financial Times assinada por<br />

18 presidentes e chefes de governo europeus<br />

e africanos, apelando a uma redução<br />

da dívida dos países africanos e a um<br />

plano de relançamento económico de cerca<br />

de 100 mil milhões de dólares. “Só uma<br />

vitória mundial que inclua inteiramente<br />

a África pode pôr fim a esta pandemia”,<br />

escreveram os signatários no seu “Apelo<br />

à Acção”, incluindo Emmanuel Macron,<br />

o Presidente angolano, João Lourenço, ou<br />

o primeiro-ministro português, António<br />

Costa. Na carta, onde também constam os<br />

nomes dos presidentes do Quénia e Etiópia,<br />

os políticos afirmam que “devemos<br />

instaurar uma moratória imediata sobre<br />

todos os pagamentos de dívidas bilateral<br />

ou multilateral, pública e privada, até ao<br />

desaparecimento desta pandemia”.<br />

“A crise mostrou o quão estamos interligados.<br />

Nenhuma região pode vencer a<br />

COVID-19 sozinha. Se não for derrotada<br />

em África, voltará a perseguir todos nós.<br />

Vamos trabalhar com os parceiros do G7 e<br />

do G20 para acabar com a pandemia onde<br />

TURISMO AFRICANO:<br />

Poderá perder, no<br />

mínimo, 50 mil milhões<br />

de dólares por causa<br />

da COVID-19<br />

46 | Exame Moçambique


ela se encontrar e construir sistemas de<br />

saúde resilientes para manter as pessoas<br />

seguras no futuro”, dizem. “O tempo não<br />

é para divisões ou política, mas sim unidade<br />

e cooperação”, refere o texto, que<br />

tem ainda como subscritores os presidentes<br />

da Comissão Europeia, Ursula Von der<br />

Leyen, e do Conselho Europeu, Charles<br />

Michel, além do primeiro-ministro espanhol,<br />

Pedro Sánchez, italiano, Giuseppe<br />

Conte, e o holandês, Mark Rute. Do lado<br />

africano, assinaram igualmente os presidentes<br />

do Ruanda, Paul Kagamé, Senegal,<br />

Macky Sall, África do Sul, República<br />

Democrática do Congo, Félix Tshisekedi,<br />

Etiópia, Abyi Ahmed Ali, Mali, Ibrahim<br />

Boubacar Keita, e Egipto, Abdul Fatah<br />

Khalil Al-Sisi, bem como o ex-primeiro-<br />

-ministro do Chade, Moussa Faki.<br />

CAIR PARA SE<br />

REERGUER MAIS FORTE<br />

A questão da resiliência, sublinhada na<br />

carta, é também uma das ideias fortes do<br />

texto das previsões da Primavera do FMI<br />

para a África Subsariana, assim como do<br />

“Africa Pulse”, do Banco Mundial, que<br />

aponta para riscos de quebra da cadeia<br />

de distribuição alimentar e fortes perdas<br />

nos rendimentos das pessoas e empresas<br />

da região. “Lançar as sementes de resiliência<br />

futura”, diz o documento, é aquilo que<br />

se impõe neste momento como “condição<br />

sine qua non para evitar mais uma década<br />

perdida no desenvolvimento de África”.<br />

“A resposta política deve considerar estratégias<br />

que melhorem as questões ligadas à<br />

água e saneamento básico, que resolvam o<br />

problema da crise de capital humano, especialmente<br />

no sector da saúde, que reforcem<br />

as tecnologias digitais para o comércio e<br />

governação durante e após o confinamento,<br />

devem manter um nível de investimento<br />

saudável em energia e estimular as cadeias<br />

de valor africanas ao abrigo do Acordo<br />

de Comércio Livre Continental Africano<br />

(AfCFTA, no acrónimo inglês)”, defende<br />

o Banco Mundial. “Os políticos e os parceiros<br />

de desenvolvimento devem pensar a<br />

longo prazo e criarem políticas que gerem<br />

maior resiliência e aumentem a produtividade,<br />

permitindo assim que as economias<br />

africanas recuperem mais depressa e<br />

prosperem após a COVID-19”, acrescenta.<br />

E será seguramente necessária esta visão<br />

de longo prazo, até porque, como alertou<br />

D.R.<br />

Michel Yao, líder do programa de resposta<br />

a emergências para África da OMS, no dia<br />

9 de Abril passado, ainda antes de ser conhecido<br />

o apoio do G20 (e a disponibilidade<br />

chinesa para encontrar as melhores soluções<br />

para os seus parceiros africanos), “sem<br />

ajuda e acções imediatas, os países pobres e<br />

as comunidades vulneráveis podem sofrer<br />

uma devastação em massa”. “O número<br />

de infecções em África é relativamente<br />

baixo, mas está a subir de forma rápida”,<br />

acrescentou o director-geral da OMS, que<br />

rapidamente foi apoiado pelos presidentes<br />

da África do Sul, Nigéria e Ruanda.<br />

O pior pode estar para vir, mas vai passar,<br />

e por isso é preciso pensar desde já<br />

em medidas pós-COVID, como lembra<br />

a UA. Por isso, avança com um conjunto<br />

de recomendações, com a necessidade de<br />

diversificação da economia e reforço da<br />

produtividade à cabeça, para aumentar os<br />

recursos internos e reduzir a dependência<br />

de fluxos do exterior. É preciso aumentar<br />

a produção agrícola e melhorar as cadeias<br />

de valor alimentares para que haja resposta<br />

ao consumo doméstico, no caso dos países,<br />

e continental. A região subsariana, lembra<br />

o documento, gastou quase 48,7 mil<br />

milhões USD na importação de alimentos<br />

o ano passado, dinheiro que poderia, em<br />

parte, ser investido na agricultura.<br />

A UA recomenda que os Estados completem<br />

a ratificação da criação da Agência<br />

Africana de Medicina e estabeleçam parcerias<br />

público-privadas para produzir medicamentos<br />

e material médico, reduzindo<br />

a dependência do exterior. Apela ainda a<br />

que sejam feitos investimentos na saúde,<br />

com o reforço dos orçamentos públicos, e<br />

que se aposte na digitalização, até como<br />

forma de criação de emprego paras novas<br />

gerações. E sugere que se acelere a implementação<br />

da AfCFTA.<br />

Boas ideias, mas “velhas”, como é sabido.<br />

Até aqui, na maioria dos países não se<br />

implementou como devia estas medidas<br />

— e outras. Será que a COVID-19 vai ter<br />

a força que outras doenças e carências persistentes<br />

não tiveram no continente? A resposta<br />

que todos desejamos é que sim, que<br />

seja desta. Se tal suceder, confirma-se que<br />

afinal é — ou pode ser — verdade que há<br />

“males que vêm por bem”. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 47


ÁFRICA PANDEMIA<br />

O QUE FAZER QUANDO<br />

TUDO ARDE?<br />

Em meados de Abril passado, a União Africana divulgou um documento sobre o impacto<br />

económico da COVID-19 na região, propondo um conjunto de acções aos Estados-membros<br />

para mitigar os efeitos da pandemia na economia, as populações e os seus rendimentos.<br />

Na altura, o número de casos aproximava-se dos 30 mil e já havia mais<br />

de mil mortes no continente. Eis as acções:<br />

GETTY<br />

TESTAGEM:<br />

A detecção precoce da infecção é<br />

prioritária no combate ao vírus<br />

48 | Exame Moçambique


,Testar sistematicamente todos<br />

os casos suspeitos para assegurar<br />

a detecção precoce da infecção<br />

e localizar novos focos, impedir<br />

o contacto entre pessoas afectadas<br />

e restante população.<br />

,Confinamento das populações<br />

infectadas e impedimento de<br />

atravessamento de fronteiras para<br />

conter a propagação da doença.<br />

,Avaliação periódica da necessidade<br />

de implementação de medidas de<br />

contenção e confinamento adicionais.<br />

,Divulgar as estatísticas de saúde<br />

e trabalhar em conjunto com<br />

a Organização Mundial de Saúde<br />

e o Centro de Controlo e Prevenção<br />

de Doenças Africano para contribuir<br />

para uma monitorização transparente<br />

da crise e estimular a confiança das<br />

populações nos sistemas públicos<br />

de saúde da região.<br />

ORÇAMENTOS DOS<br />

ESTADOS DEVEM<br />

PRIORIZAR A SAÚDE<br />

,Rever os orçamentos no sentido<br />

de priorizar gastos em sistema<br />

de saúde, incluindo na necessárias<br />

infra-estruturas e logística,<br />

adquirindo produtos médicos<br />

e farmacêuticos, equipamentos,<br />

materiais consumíveis, etc.<br />

,Criar financiamentos de<br />

emergência para reforçar a protecção<br />

social, tendo como principais alvos os<br />

trabalhadores informais que não<br />

usufruem de protecção e podem<br />

ser especialmente afectados por<br />

esta crise.<br />

,Reforçar o financiamento para<br />

pesquisa e investigação médicas. Há<br />

estudos que demonstram que, nos<br />

períodos entre pandemias, os fundos<br />

alocados à pesquisa e desenvolvimento<br />

de vacinas é quase inexistente,<br />

afectando a capacidade de os países<br />

reagirem quando surge uma nova.<br />

,Trabalhar com as comunidades<br />

e autoridades locais e com os<br />

empresários para desenvolver uma<br />

abordagem governamental de<br />

conjunto e que vá para além da crise,<br />

e criar soluções de contenção e<br />

tratamento em contexto local.<br />

DIVULGAÇÃO DE<br />

INFORMAÇÃO DEVE SER<br />

TRANSPARENTE<br />

,Proporcionar financiamento, acesso<br />

a informação e suporte regulatório<br />

para amplificar soluções inovadoras.<br />

,Promover uma partilha<br />

transparente de informação com os<br />

cidadãos e limitar a disseminação de<br />

notícias falsas (fake news).<br />

,Preparar as instituições de saúde<br />

para o tratamento de diferentes<br />

comunidades de infectados, incluindo<br />

mulheres, jovens e idosos.<br />

,Ponderar a captação de fundos<br />

de emergência nos mercados<br />

internacionais para apoiar o<br />

financiamento, tirando partido de<br />

taxas de juro mais reduzidas, numa<br />

altura em que muitos países poderão<br />

sofrer de saldos fiscais negativos<br />

devido ao aumento dos gastos<br />

e quebra de receitas.<br />

,Avançar com medidas económicas<br />

e financeiras, como garantias de<br />

dívida a privados, por exemplo, para<br />

apoiar empresas, incluindo pequenas<br />

e médias, e famílias, em resposta aos<br />

cortes de pessoal, para salvaguardar<br />

as actividades económicas.<br />

,Solicitar aos bancos centrais que<br />

baixem as taxas de juro, aumentem a<br />

concessão de crédito e proporcionem<br />

mais liquidez aos bancos comerciais,<br />

para que estes possam apoiar as<br />

actividades económicas.<br />

,Suspender o pagamento de taxas<br />

sobre créditos ao comércio, emissões<br />

corporativas, alugueres, activar linhas<br />

de liquidez dos bancos centrais para<br />

apoiarem a actividade económica<br />

e garantirem a capacidade de<br />

importação de commodities<br />

essenciais sem enfraquecer o sector<br />

bancário.<br />

,Avançar com pacotes de incentivos<br />

fiscais para minimizar o impacto da<br />

pandemia nas economias nacionais;<br />

preparar incentivos fiscais dedicados<br />

a contribuintes afectados pela<br />

COVID-19 e ponderar a suspensão<br />

de pagamento de impostos.<br />

,Suspender o pagamento de<br />

impostos em sectores críticos.<br />

,Renegociar planos e condições de<br />

pagamento de empréstimos externos<br />

para assegurar o cumprimento do<br />

serviço de dívida, incluindo suspender<br />

o pagamento de juros durante a crise,<br />

o que tem um impacto estimado de<br />

44 mil milhões de dólares neste ano,<br />

podendo estender-se.<br />

,Apelar a cessar-fogos com grupos<br />

rebeldes e armados para garantir que<br />

não há dispersão de esforços na<br />

contenção da doença em regiões<br />

onde haja conflitos no terreno.<br />

maio <strong>2020</strong> | 49


ÁFRICA PANDEMIA<br />

OS AMIGOS<br />

SÃO PARA<br />

AS OCASIÕES<br />

Um pouco por todo o mundo, várias têm sido as<br />

personalidades e empresas que anunciam donativos<br />

para apoiar a investigação de uma vacina contra o novo<br />

coronavírus e o combate à doença, sobretudo em países<br />

desfavorecidos, como a maioria dos africanos. Bill Gates<br />

está na linha da frente em África — mais uma vez<br />

RICARDO DAVID LOPES<br />

BILL E MELINDA GATES:<br />

A fundação com os seus<br />

nomes doou 150 milhões<br />

de dólares para detecção<br />

e controlo da COVID-19<br />

D.R.<br />

Fundação Bill & Melinda Gates,<br />

TikTok, Heineken, Gucci, fundações<br />

Jack Ma e Alibaba, Google,<br />

Facebook ou Netflix são<br />

apenas algumas das entidades<br />

que entregaram ou ajudaram a mobilizar<br />

donativos destinados a organizações internacionais<br />

para que estas possam apoiar<br />

no terreno os governos e populações de<br />

países africanos em tempo de pandemia.<br />

O co-fundador da Microsoft e a esposa<br />

são, aliás, apoiantes habituais de causas<br />

ligadas à saúde, e outras, em países da<br />

região, em especial a subsariana. Ainda<br />

nos primeiros dias de Fevereiro, quando<br />

a COVID-19 estava a semanas de ser<br />

declarada uma pandemia e a China era<br />

o centro das preocupações, com relatos<br />

de cerca de 700 mortes devido à doença,<br />

a Fundação do casal anunciou que iria<br />

doar 100 milhões de dólares destinados<br />

a apoiar entidades como os Centros de<br />

Controlo e Prevenção de Doenças dos<br />

EUA e a Organização Mundial de Saúde<br />

(OMS) a combaterem o vírus. Deste total,<br />

ficou decidido que 20 milhões de dólares<br />

seriam direccionados para a detecção,<br />

isolamento e tratamento do novo coronavírus,<br />

e 60 milhões de dólares para o<br />

desenvolvimento de uma vacina, mas uma<br />

“fatia”’ de 20 milhões de dólares foi distribuída<br />

a autoridades de saúde do Sul da<br />

Ásia e África Subsariana para combater<br />

FUNDAÇÃO BILL &<br />

MELINDA GATES JÁ<br />

ANUNCIOU DONATIVOS<br />

DE 250 MILHÕES DE<br />

DÓLARES, PARTE PARA<br />

ÁFRICA<br />

outras epidemias — até porque não havia<br />

ainda registo de nenhum caso positivo<br />

no continente.<br />

O avanço da doença, que a OMS declarou<br />

uma pandemia a 11 de Março, numa<br />

altura em que o total de casos conhecidos<br />

a nível mundial era de cerca de 118 mil, em<br />

114 países, e havia menos de 4300 mortes<br />

50 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 51


ÁFRICA PANDEMIA<br />

a lamentar, levou o antigo homem mais<br />

rico do mundo a reforçar, em Abril passado,<br />

o apoio ao combate à doença através<br />

do anúncio de mais 150 milhões de<br />

dólares, também via fundação, para a<br />

mesma causa.<br />

Com o reforço, duplicaram as linhas a<br />

aplicar em tratamento e diagnóstico e no<br />

apoio a países do Sul da Ásia e de África a<br />

lidar com esta crise. O dinheiro provém<br />

do fundo de investimento estratégico da<br />

fundação, que vale 2,5 mil milhões de<br />

dólares. O anúncio do donativo surgiu<br />

pouco depois de o Presidente norte-americano,<br />

Donald Trump, ter anunciado a<br />

suspensão do financiamento do seu país<br />

à OMS, alegando “má gestão” da pandemia<br />

de COVID-19, entre críticas a uma<br />

alegada proximidade da entidade das<br />

Nações Unidas e a China.<br />

A Fundação Bill & Melinda Gates é o<br />

segundo maior contribuidor em valor<br />

absoluto, atrás dos EUA, e o maior doador<br />

privado da OMS — e corre agora o risco<br />

de vir a ser o principal, incluindo entre<br />

todos os países que integram a instituição.<br />

A “RENDIÇÃO” DE MADONNA<br />

Warren Buffet, o bilionário norte-americano,<br />

fundador e líder da Berkshire<br />

Hathaway, é um dos mecenas da Fundação<br />

Gates, que com a pandemia conquistou<br />

uma nova fã, ou apoiante: Madonna.<br />

A cantora anunciou nos primeiros dias de<br />

Abril ter contribuído com um milhão de<br />

dólares para a entidade, para ajudar nos<br />

esforços de investigação para a descoberta<br />

de uma vacina contra o novo coronavírus.<br />

Num vídeo publicado no Instagram,<br />

a artista explica que o seu apoio à fundação<br />

visa ajudar a “encontrar um medicamento<br />

que evite ou trate a COVID-19”,<br />

uma doença para a qual a cantora de “Like<br />

a Virgin” admitiu ter “acordado” tarde.<br />

“Devo admitir que demorei tempo a aceitar,<br />

processar e modificar o meu estilo de<br />

vida”, disse.<br />

Tão generoso quanto o de Bill Gates, mas<br />

assumido de uma assentada, foi o contributo<br />

anunciado pela TikTok, ainda que<br />

não dirigido, no todo ou em parte, pelo<br />

menos de forma explícita, ao continente<br />

africano. A rede social detida pela Byte-<br />

Dance, fundada em 2012, em Pequim, decidiu<br />

doar 250 milhões de dólares, numa<br />

altura (10 de Abril) em que a pandemia já<br />

afectava mais de 1,5 milhões de pessoas e<br />

tinha conduzido à morte quase 100 mil.<br />

O grupo, cuja rede social ganhou popularidade<br />

no confinamento, explicou que<br />

iria atribuir 150 milhões ao seu Fundo<br />

de Apoio aos Heróis da Saúde, para que<br />

este o distribuísse a organizações como<br />

a Cruz Vermelha, que actua em todo o<br />

mundo. “Generoso” para com os seus<br />

TIKTOK ANUNCIOU<br />

CONTRIBUTO DE 250<br />

MILHÕES DE USD PARA<br />

O COMBATE À DOENÇA<br />

utilizadores, o TikTok atribuiu outros<br />

50 milhões de dólares a grupos “representativos<br />

de comunidades que utilizam<br />

a aplicação” (artistas, enfermeiros e educadores)<br />

e o restante, explicou a empresa<br />

através de comunicado, seria destinado<br />

a “professores, técnicos e associações que<br />

colocam os seus talentos e experiências<br />

ao serviço da educação”, para apoiar o<br />

ensino à distância.<br />

As tecnológicas têm sido, de resto, empresas<br />

“amigas” da causa do combate à pandemia<br />

nos países mais desfavorecidos,<br />

quer fazendo donativos a organizações<br />

não governamentais (ONG) que depois<br />

actuam no terreno, quer associando-<br />

-se a iniciativas de financiamento global<br />

de medidas de combate à doença promovidas<br />

por entidades oficiais. Google<br />

e Facebook, por exemplo, associaram-<br />

-se ao Fundo Social Solidário lançado<br />

pela OMS, desenvolvendo plataformas<br />

de crowdfunding globais. A iniciativa —<br />

Solidarity Responde Fund —, criada em<br />

parceria com a ONU e a Swiss Philanthropic<br />

Foundation, está aberta a todas<br />

as pessoas, empresas ou organizações<br />

que queiram contribuir para a investigação<br />

do vírus, os esforços para desenvolver<br />

vacinas, o tratamento de doentes<br />

(incluindo a compra de máscaras, batas<br />

e óculos de protecção) e a formação de<br />

profissionais de saúde.<br />

UNITED BANK<br />

FOR AFRICA:<br />

Já entregou<br />

100 mil dólares<br />

a Moçambique<br />

para o combate<br />

à pandemia<br />

FACEBOOK QUER CAPTAR<br />

10 MILHÕES DE DÓLARES<br />

No caso do Facebook, a meta é atingir<br />

donativos até 10 milhões de dólares, sendo<br />

que, no início da última semana de Abril,<br />

mais de metade (5,5, milhões de dólares)<br />

já havia sido alcançada. A Gucci, famosa<br />

marca italiana de roupa e malas de luxo,<br />

entre outros, foi um dos contribuidores,<br />

com nada menos do que um milhão de<br />

euros para o fundo, via Facebook.<br />

Da área das bebidas, também surgem<br />

apoios. A Heineken doou 15 milhões de<br />

dólares à Federação Internacional das<br />

Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente<br />

Vermelho (CICV), verba destinada<br />

ao apoio aos mais carenciados afectados<br />

52 | Exame Moçambique


pela pandemia, sobretudo em África, Ásia<br />

e América Latina.<br />

Do Oriente, além da TikTok têm chegado<br />

mais apoios, neste caso específicos<br />

para África. As fundações Jack Ma e Alibaba<br />

anunciaram em Março que iriam<br />

doar 100 mil máscaras cirúrgicas, 20 mil<br />

kits de teste e mil batas e escudos de proteção<br />

para cada uma das 54 nações do continente<br />

africano. As duas organizações,<br />

fundadas por Jack Ma, o milionário chinês<br />

que lançou que fundou o Grupo Alibaba,<br />

tecnológica multinacional de e-commerce<br />

conhecida como a Amazon da China, ou<br />

Amazon do Oriente, viriam, entretanto,<br />

a anunciar uma segunda vaga de recolha<br />

de donativos.<br />

D.R.<br />

Jack Ma, o homem mais rico da China<br />

e o 17.º mais rico do mundo, segundo a Forbes,<br />

espalhou aos sete ventos o seu apoio a<br />

esta causa numa conta que criou no Twitter.<br />

Esta atitude tem levado alguns analistas<br />

a questionarem se não estará em conluio<br />

com as autoridades de Pequim para ajudar<br />

a “limpar” a imagem da China, que<br />

saiu fortemente beliscada em todo este<br />

processo, por alegadamente ter perdido<br />

tempo precioso a admitir o problema que<br />

tinha dentro de portas, com origem no<br />

entretanto famoso mercado de animais<br />

vivos de Whuan. Numa publicação a<br />

21 de Abril, diz estarem em causa donativos<br />

entregues à OMS destinados a mais<br />

de 150 países e regiões — incluindo 100<br />

milhões de máscaras cirúrgicas, um milhão<br />

de máscaras tipo N95 e um milhão de testes.<br />

“Este material será fornecido a quem<br />

mais deles precisa”, explica o antigo professor<br />

de Inglês, hoje dedicado às fundações,<br />

depois de ter deixado a liderança<br />

executiva do Alibaba.<br />

Outras empresas, entidades e personalidades<br />

têm dado apoios, em dinheiro<br />

ou material, a nível local ou global, associando-se<br />

a uma causa global que conquista<br />

cada vez mais adeptos, com microiniciativas<br />

de captação de fundos para a compra<br />

de material médico.<br />

VATICANO AVANÇA<br />

COM 750 MIL DÓLARES<br />

E nem o Vaticano ficou de fora. A 6 de Abril,<br />

o Papa Francisco anunciou a criação de<br />

um fundo de emergência para áreas missionárias<br />

afectadas pela pandemia, como<br />

regiões da Ásia, América Latina e África,<br />

onde a escassez de meios e as insuficiências<br />

dos serviços de saúde e saneamento<br />

básico, combinadas com a COVID-19,<br />

podem criar situações de gestão complexa.<br />

No comunicado em que anunciou a iniciativa,<br />

o Vaticano referiu que o Papa fez<br />

uma primeira doação de 750 mil dólares e<br />

está “a convidar toda a vasta rede da Igreja<br />

a enfrentar os desafios futuros”, apelando<br />

assim aos diferentes organismos da Igreja<br />

a contribuírem para esse fundo por meio<br />

das Pontifícias Obras Missionárias.<br />

De acordo com o Vaticano, só em África<br />

há mais de 74 mil religiosas e mais de<br />

46 mil padres que administram 7274 hospitais<br />

e clínicas, 2346 lares para idosos e<br />

vulneráveis e educam mais de 19 milhões<br />

de crianças em 45 088 escolas primárias<br />

e em muitas áreas rurais.<br />

FACEBOOK E GOOGLE<br />

ASSOCIARAM-SE À<br />

RECOLHA DE DONATIVOS<br />

PARA FUNDO DA OMS<br />

MOÇAMBIQUE RECEBE APOIOS<br />

Também em Moçambique já houve manifestações<br />

de solidariedade por parte de<br />

instituições, nomeadamente do United<br />

Bank for Africa (UBA) e Letsego. No primeiro<br />

caso, o país beneficiou já de 100<br />

mil dólares entregues ao gabinete da primeira-dama,<br />

Isaura Nyusi, a serem usados<br />

em acções de combate à pandemia.<br />

O UBA, com sede na Nigéria e presente<br />

em 23 países do continente, lançou um<br />

fundo de 13,8 milhões de dólares a distribuir<br />

por 20 subsidiárias do grupo.<br />

A ajuda será “em forma de financiamento<br />

aos governos locais ou doação de equipamentos<br />

críticos para a prevenção e protecção<br />

contra a pandemia”, explicou o<br />

grupo em comunicado. Já o banco Letsego<br />

disponibilizou cerca de 25 mil dólares<br />

ao Ministério da Saúde para a mesma<br />

finalidade.<br />

Contas feitas, há muitas centenas de<br />

milhões de “dólares solidários” a caminho<br />

ou chegados a África por causa da<br />

pandemia. A soma é bem superior à que,<br />

em 1985, o Live Aid — focado no apoio<br />

ao combate à fome na Etiópia — viria a<br />

captar, sobretudo em direitos associados<br />

ao evento e não tanto em donativos:<br />

cerca de 150 milhões de dólares. Tomando<br />

a inflação que desde então se fez sentir,<br />

hoje seriam 357,8 milhões de dólares.<br />

O desafio é de uma dimensão incomparável.<br />

A globalização — de que o Live Aid foi<br />

um dos primeiros marcos, transmitido<br />

para mil milhões de pessoas em todo o<br />

mundo — tornou o mundo mais perigoso<br />

no que diz respeito a doenças. Mas, felizmente,<br />

também o tornou mais solidário. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 53


ÁFRICA PANDEMIA<br />

SAÚDE REFORÇADA, BANCA<br />

E EMPRESAS EM STRESS<br />

O<br />

governo adoptou medidas<br />

fiscais, monetárias e<br />

de política financeira para<br />

tentar conter os danos na<br />

economia e na população.<br />

A elevada dependência das trocas<br />

comerciais com a China e países da União<br />

Europeia, agora muito dificultadas pelas<br />

medidas de confinamento e o cenário<br />

macroeconómico, a debilidade do sistema<br />

de saúde e o peso da dívida no PIB, associado<br />

a riscos de incumprimento, são as<br />

principais vulnerabilidades da economia<br />

moçambicana, alerta o Fundo Monetário<br />

Internacional (FMI).<br />

No “Outlook Regional para a África<br />

Subsariana”, referente a Abril passado, a<br />

instituição revê em baixa o crescimento<br />

do PIB este ano, para 2,2%, face aos 6%<br />

que haviam sido estimados na previsão<br />

de Outubro de 2019, em linha com a estimativa<br />

do governo.<br />

Apesar de a pandemia não ter atingido<br />

Moçambique com a intensidade com que<br />

se abateu noutros países da região (havia<br />

46 casos, dos quais 12 recuperados, e zero<br />

mortes à data de fecho deste artigo, 24 de<br />

Abril), as consequências económicas e<br />

financeiras são devastadoras, atingindo<br />

em cheio as já débeis contas públicas.<br />

ADRIANO<br />

MALEIANE:<br />

O ministro da<br />

Economia e<br />

Finanças recorreu<br />

aos parceiros do<br />

país no combate<br />

à COVID-19<br />

D.R.<br />

O governo, como noutros países, tomou<br />

medidas para conter estes efeitos e evitar<br />

a paralisia completa da actividade económica<br />

em tempo de confinamento.<br />

Do ponto de vista fiscal, reforçou o<br />

orçamento da saúde, de 2 mil milhões<br />

(29,6 milhões de dólares) para 3,3 mil<br />

milhões de meticais (48,8 milhões de dólares),<br />

e o ministro da Economia e Finanças,<br />

Adriano Maleiane, pediu, ainda em<br />

Março, 700 milhões de dólares aos parceiros<br />

do país para enfrentar a pandemia.<br />

O FMI perdoou, entretanto, 15 milhões<br />

de dólares de dívida, canalizados para o<br />

combate à doença, numa altura em que<br />

já era sabido que Moçambique viu “evaporarem-se”<br />

da sua economia 26,4 mil<br />

milhões de meticais (cera de 390 milhões<br />

de dólares), fruto do ajustamento orçamental<br />

após a revisão em baixa do crescimento.<br />

Para procurar levar mais liquidez à economia,<br />

o banco central baixou o nível de<br />

reservas obrigatórias da banca comercial<br />

em 150 pontos base para depósitos<br />

em moeda nacional ou estrangeira, para<br />

11,5% e 34,5%, respectivamente. Também<br />

anunciou medidas para apoiar os mercados<br />

financeiros, incluindo uma linha de<br />

500 milhões de dólares por nove meses, e<br />

a suspensão até ao final do ano da obrigatoriedade<br />

de constituição, pelas instituições<br />

financeiras, de provisões relativas a<br />

risco de crédito de clientes afectados pela<br />

pandemia com os quais estejam a decorrer<br />

negociações de reestruturação, destaca<br />

o “Africa Pulse” de Abril, uma publicação<br />

do Banco Mundial.<br />

Do ponto de vista de política cambial a<br />

opção foi manter o regime flutuante, deixando<br />

o metical desvalorizar desde Março. b<br />

54 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 55


OIL<br />

& GAS<br />

LUÍS FARIA<br />

PROCURA AFUNDA:<br />

A crise provocada<br />

pela pandemia<br />

COVID-19 faz<br />

com que sobrem<br />

30 milhões de barris<br />

de petróleo no<br />

mercado<br />

PETRÓLEO<br />

PAGAR PARA VENDER<br />

GETTY<br />

O WTI (West Texas Intermediate), o petróleo<br />

comercializado nas praças norte-americanas,<br />

caiu a pique para valores negativos<br />

no dia 20 de Março (menos 37 dólares), um<br />

acontecimento sem precedentes históricos,<br />

com a data dos vencimentos dos contratos<br />

a concretizarem-se e os depósitos de<br />

crude à beira de deitar por fora. A capacidade<br />

de armazenamento norte-americana<br />

esgotou-se e o prazo de entrega também, e<br />

quem tinha petróleo para vender teve pagar<br />

ao comprador os custos com o armazenamento.<br />

A confirmação de que é impossível<br />

prever até que ponto a pandemia do<br />

novo coronavírus pode arrasar a economia<br />

mundial. Na sequência da queda do<br />

WTI, o preço do barril de Brent caiu, pela<br />

primeira vez em dezoito anos, para menos<br />

de 20 dólares por barril.<br />

Suspeitava-se que o corte operado pela<br />

OPEP e seus aliados, e que contou com a bênção<br />

norte-americana, de mais de 10 milhões<br />

de barris de petróleo diários (o equivalente<br />

a 10% da oferta), não chegasse para suprir<br />

a diferença, enorme, entre a oferta e a procura<br />

da matéria-prima energética. Refira-se,<br />

contudo, que este novo tombo no preço do<br />

petróleo ainda reflectiu o desentendimento<br />

entre a Arábia Saudita e a Rússia, que precedeu<br />

a decisão de retirar ao mercado<br />

10 milhões de barris de crude diariamente,<br />

traduzindo a estratégia então seguida por<br />

Riade de entornar petróleo no mercado.<br />

O modelo de contrato de futuros do petróleo<br />

adoptado na praça norte-americana é diferente<br />

do aplicado ao petróleo Brent negociado<br />

na plataforma da ICE Europe e que constitui<br />

a referência para as compras globais.<br />

WTI<br />

(USD/Barril-futuros)<br />

63,05 50,11 47,18 28,34 -37,08<br />

3Jan 3Fev 3Mar 3Abr 20Abr<br />

Fonte: Investing.<br />

56 | Exame Moçambique


ACORDO<br />

OPEP FAZ MAIOR CORTE DE SEMPRE<br />

D.R.<br />

Na semana que precedeu a queda<br />

aparatosa do WTI, a OPEP e os<br />

produtores aliados, um conjunto já<br />

conhecido como OPEP Plus, celebraram<br />

um acordo inédito, sem<br />

precedentes na história da indústria<br />

petrolífera, que estabelece que<br />

sejam retirados diariamente do mercado<br />

quase 10 milhões de barris de<br />

petróleo, o equivalente a 10% da<br />

oferta global da matéria-prima. Um<br />

valor que pode, segundo afirmou<br />

o Presidente dos Estados Unidos,<br />

Donald Trump, duplicar. O aval formal<br />

dos Estados Unidos ao acordo<br />

é outra grande novidade. Enquanto<br />

grande produtor, primeiro com o<br />

óleo extraído no Texas e, posteriormente,<br />

com a fracturação de<br />

xisto, os Estados Unidos, na verdade,<br />

nunca estiveram realmente<br />

ausentes dos acordos petrolíferos.<br />

Mas, desta vez, a sua presença<br />

explícita e o voluntarismo demonstrado<br />

para que se chegasse a um<br />

acordo reflecte os estragos brutais<br />

do tsunami pandémico na procura<br />

de petróleo. “O grande acordo de<br />

petróleo com a OPEP Plus está concluído.<br />

Tal economizará centenas<br />

de milhar de empregos em energia<br />

nos Estados Unidos. Gostaria<br />

de agradecer e dar os parabéns ao<br />

Presidente Putin, da Rússia, e ao rei<br />

Salman, da Arábia Saudita. Acabei<br />

de falar com eles da Sala Oval.<br />

Um grande negócio para todos!”,<br />

escreveu ontem Trump no Twitter.<br />

DONALD TRUMP: O Presidente tenta salvar<br />

a indústria norte-americana do óleo de xisto<br />

Produção dos EUA<br />

(Milhares de barris por dia)<br />

8 787<br />

Fonte: EIA.<br />

9 439<br />

8 839<br />

9 532<br />

10 990<br />

12 232<br />

2014 2015 2016 2017 2018 2019<br />

BRENT<br />

(USD/Barril-futuros)<br />

68,6 54,45 51,56 34,11 21,44<br />

APOIO<br />

TRUMP ADMITE ENTRAR<br />

EM EMPRESAS DE OIL&GAS<br />

3Jan 3Fev 3Mar 3Abr 24Abr<br />

DR<br />

Fonte: Investing.<br />

COVID-19<br />

DERRUBA PREÇO:<br />

Membro do exército<br />

austríaco frente<br />

à sede da OPEP<br />

em Viena, Áustria<br />

O governo dos Estados Unidos está a ponderar assumir participações<br />

em empresas de energia norte-americanas no<br />

quadro do apoio que procura dar ao sector do oil&gas do<br />

país, severamente atingido pela pandemia de coronavírus.<br />

A hipótese foi admitida pelo secretário do Tesouro norte-<br />

-americano, Steven Mnuchin.<br />

O Presidente Donald Trump, que interveio, tal como Mnuchin,<br />

num evento na Casa Branca, afirmou que deseja ajudar<br />

a indústria de petróleo e gás, e sugeriu que o governo<br />

federal pode antecipar compras de combustível para o país,<br />

bem como adquirir passagens aéreas.<br />

“Estamos a analisar uma série de alternativas”, disse Mnuchin.<br />

Trump afirmou ainda que a Rússia e a Arábia Saudita<br />

podem efectuar novos cortes à produção de petróleo, face<br />

ao excesso de oferta verificado no mercado da matéria-prima<br />

devido à pandemia, acrescentando que Texas, Oklahoma e<br />

Dakota do Norte, assim como o Canadá, estão a reduzir os<br />

ritmos de extracção. “Vai ser algo natural”, adiantou Trump<br />

sobre os cortes. O Presidente norte-americano patrocinou<br />

abertamente o corte de quase 10 milhões de barris diários<br />

acordado pela OPEP e os seus aliados, após um diferendo<br />

entre a Arábia Saudita e a Rússia ter conduzido o preço da<br />

matéria-prima para o precipício.<br />

maio <strong>2020</strong> | 57


GLOBAL PANDEMIA<br />

COMO<br />

CONTER A<br />

PANDEMIA<br />

A estratégia mais usada pelos governos para conter a<br />

propagação acelerada do vírus SARS-CoV-2 é o confinamento<br />

das populações. Na Europa, onde a pandemia, vinda da Ásia,<br />

se abateu sem piedade, sobretudo no Sul, os serviços de saúde<br />

estouraram. Face à realidade assustadora que chegava de Itália,<br />

Portugal jogou na antecipação e Espanha na reacção, duas<br />

faces da mesma moeda com resultados diferentes. Alemanha<br />

e Islândia apostaram cedo nos testes de detecção, tal como<br />

agora nos testes serológicos. O Reino Unido viu-se obrigado a<br />

abandonar a imunidade de grupo quando o número de mortos<br />

disparou, mas a Suécia resiste na “maratona”. China, Taiwan e<br />

Coreia do Sul recorreram ao trunfo das tecnologias intrusivas,<br />

nomeadamente GPS e contact tracing, com custos em termos<br />

da liberdade individual, sagrada nas democracias ocidentais.<br />

Actualmente, na Alemanha desenvolve-se uma app que permite<br />

a coabitação entre informação e protecção de dados. Estados<br />

Unidos e Europa dão os primeiros passos de saída do<br />

confinamento. Objectivo? Recuperar a vida social e a economia<br />

aos poucos e de máscara. O mundo mudou com a pandemia,<br />

que, até agora, tem poupado África. Como se prepararam<br />

os países mais castigados para viver com a pandemia? Esta<br />

intensificou a tensão entre EUA e China, o que apanha a OMS.<br />

ALMERINDA ROMEIRA<br />

58 | Exame Moçambique


MÁSCARAS:<br />

O novo adereço de vestuário<br />

obrigatório enquanto o vírus<br />

permanecer nas comunidades<br />

GETTY<br />

M<br />

aio significa para muitos<br />

países o primeiro passo<br />

do regresso à vida social<br />

e económica, após cerca<br />

de mês e meio de confinamento.<br />

Não será o regresso à forma<br />

como se vivia, trabalhava e fazia negócios<br />

antes da pandemia, mas o início daquilo<br />

que, já, é definido como um “novo normal”.<br />

No meio da incerteza generalizada,<br />

uma coisa parece certa: a Humanidade<br />

vai ter de conviver com o vírus SARS-<br />

-CoV-2, pelo menos, até existir a cura<br />

ou uma vacina para a doença COVID-19,<br />

que, neste momento, apesar dos esforços<br />

intensos da comunidade científica internacional,<br />

não se vislumbra.<br />

Aligeirar em demasia as medidas de<br />

isolamento social que puseram em casa<br />

cerca de metade da população mundial,<br />

acarreta riscos e pode levar a novos casos<br />

de infecção, mas é inevitável numa altura<br />

em que, generalizadamente, todas as economias<br />

estão de rastos com o lay-off e o<br />

desemprego a dispararem para níveis<br />

impensáveis — só nos EUA, cerca de 30<br />

milhões terão ficado sem trabalho — e os<br />

países a injectarem dinheiro nas empresas<br />

e na economia para tentar estancar<br />

a hecatombe a uma escala várias vezes<br />

superior à crise de 2008.<br />

Cada país terá de encontrar o seu ritmo<br />

de adaptação ao “novo normal”, bem como<br />

instrumentos que lhe permitam gerir a<br />

economia sem prejudicar a saúde pública.<br />

Uma nova tipologia de testes — sorológicos<br />

— vem dar um forte input às estratégias<br />

dos países nesta fase do combate à<br />

pandemia. Os testes serológicos detectam<br />

quem já esteve em contacto com o novo<br />

coronavírus. São extremamente importantes<br />

para descobrir os assintomáticos,<br />

maio <strong>2020</strong> | 59


GLOBAL PANDEMIA<br />

RUA EM SEUL, COREIA DO SUL:<br />

As pequenas lojas começam a reabrir<br />

ou seja, aqueles por quem a doença passa<br />

sem fazer mossa, e medir a imunidade da<br />

população. “A capacidade de realizar testes<br />

para a presença do vírus vai ser muito<br />

importante no futuro próximo, e estão<br />

em cursos várias linhas de investigação,<br />

incluindo algumas nacionais, para melhorar<br />

os testes — seja na rapidez dos resultados,<br />

seja na sua precisão, seja na facilidade<br />

da sua aplicação. Será um elemento crucial<br />

para se poder recuperar alguma normalidade<br />

de vida até se ter uma vacina”,<br />

explica o português Pedro Pitta Barros,<br />

professor na Faculdade de Economia da<br />

Universidade Nova de Lisboa, especializado<br />

em Economia da Saúde e autor do<br />

blogue “Momentos Económicos… e não<br />

só”. Na mesma linha vai a análise do virologista<br />

Pedro Simas que, ao semanário português<br />

Expresso, explica a necessidade de<br />

conceber “estratégias inteligentes e selectivas<br />

de distanciamento social, apoiadas<br />

por testes serológicos para saber o que está<br />

a acontecer. Sem saber que percentagem<br />

da população foi infectada, estamos cegos.<br />

É preciso testar uma amostra representativa<br />

da população”.<br />

Portugal lançou o primeiro estudo serológico<br />

no início de <strong>Maio</strong>, tem a duração<br />

de três semanas e abrange cerca de 2 mil<br />

pessoas seleccionadas entre os utentes que<br />

façam análises de rotina em laboratórios e<br />

hospitais associados. A partir do dia 4 do<br />

mesmo mês, a Itália avançou igualmente<br />

com a realização de testes de anticorpos<br />

a 150 mil pessoas. Neste capítulo, a Alemanha<br />

já começou. Segundo a Federação<br />

de Laboratórios Associados foram realizados,<br />

até à data, cerca de 70 mil testes sorológicos<br />

em 54 laboratórios. Em concreto,<br />

um estudo apurou que 14% dos habitantes<br />

de Gangelt, na região de Heinsberg,<br />

onde floresceu o primeiro grande foco de<br />

COVID-19, foram infectados. Beneficiarão<br />

agora de alguma imunidade, embora<br />

não esteja ainda comprovada a sua existência,<br />

nem o nível e duração da mesma.<br />

Os alemães vão deixar o confinamento<br />

protegidos por máscaras, de uso obrigatório<br />

em espaços públicos como transportes ou<br />

D.R.<br />

supermercados. No início de <strong>Maio</strong>, o país<br />

mais populoso da Europa reabriu algum<br />

retalho, a restauração e as escolas, consoante<br />

a região, mas mantém a proibição<br />

de grandes eventos e festas. O uso generalizado<br />

de máscara aplica-se a todos os países<br />

europeus que se preparam para dar o<br />

mesmo passo, caso de Portugal e Espanha,<br />

e aos que já o fizeram. Áustria, Dinamarca,<br />

República Checa e Noruega foram os primeiros<br />

a diminuir as restrições. O calendário<br />

é gradual. Veja-se a Áustria. A 14 de<br />

Abril reabriu as lojas mais pequenas, dia<br />

1 de <strong>Maio</strong> foi a vez das maiores e a partir<br />

de meados de <strong>Maio</strong> e ao longo de Junho<br />

NÃO SE REGRESSA À<br />

FORMA COMO SE VIVIA,<br />

TRABALHAVA E FAZIA<br />

NEGÓCIOS ANTES<br />

DA PANDEMIA,<br />

EXPERIMENTA-SE O QUE<br />

JÁ É DEFINIDO COMO<br />

O “NOVO NORMAL”<br />

será a vez de restaurantes, ginásios, cabeleireiros<br />

e hotéis. A Dinamarca deu prioridade<br />

a escolas e centros de dia, mantendo a<br />

proibição de encontros entre, pelo menos,<br />

10 pessoas até 10 de <strong>Maio</strong> e de grandes eventos<br />

até Agosto. A República Checa, único<br />

país da Europa que tornou obrigatório o<br />

uso de máscara logo no início da pandemia,<br />

começou por suavizar as regras nas<br />

actividades de desporto ao ar livre, como<br />

corrida e ciclismo. Na Noruega os jardins-<br />

-de-infância voltaram a receber crianças<br />

a 20 de Abril, tal como as restantes escolas<br />

na semana seguinte. Na generalidade<br />

dos países prevêem-se avanços e recuos<br />

ao ritmo da evolução da situação epidemiológica<br />

que irá sendo avaliada periodicamente.<br />

b<br />

60 | Exame Moçambique


O “BIG BROTHER” CHINÊS<br />

A China, onde a pandemia teve origem, adoptou a quarentena mais agressiva, recorrendo,<br />

por exemplo, a reconhecimento facial generalizado e a aplicações assentes em inteligência<br />

artificial para rastrear passos, ligações telefónicas e distância entre as pessoas<br />

A<br />

redução dos contactos individuais<br />

através do confinamento<br />

social generalizado<br />

revelou-se a estratégia mais<br />

eficaz para deter a propagação<br />

do novo coronavírus. Adoptada por<br />

muitos governos no mundo inteiro, da Ásia,<br />

à Europa, da África e América à Oceania,<br />

teve como consequência o encerramento<br />

de todo o comércio não essencial, a paragem<br />

de aviões e cadeias de logística e a paralisação<br />

de sectores inteiros da economia.<br />

A quarentena mais agressiva desenrolou-se<br />

em Wuhan, cidade de 11 milhões<br />

de habitantes, berço do vírus SARS-CoV-2,<br />

e na província de Hubei onde se insere. Um<br />

total de 60 milhões de pessoas, praticamente<br />

o dobro da população de Moçambique,<br />

viram os seus movimentos restringidos<br />

ao máximo, as estradas bloqueadas, controlos<br />

policiais e sanitários em todo o lado,<br />

suspensão de transportes e encerramento<br />

de bairros residenciais. O isolamento de<br />

Wuhan, decretado a 23 de Janeiro, só terminou<br />

a 8 de Abril. Não foi a única arma<br />

usada pela China.<br />

O estado autoritário, que conta com um<br />

número estimado de 400 milhões de câmaras<br />

de segurança por todo o país, o que<br />

lhe permite fazer reconhecimento facial<br />

no meio de uma multidão, por exemplo,<br />

recorreu a outras tecnologias do “Big Brother”,<br />

impensáveis numa França, Alemanha<br />

ou nos Estados Unidos, cujos pilares<br />

assentam no primado da liberdade individual.<br />

Logo em Janeiro, com o número<br />

de infectados a disparar, gigantes como<br />

o Alibaba e Tencent criaram aplicações<br />

que usam inteligência artificial para rastrear<br />

passos, ligações telefónicas e distância<br />

entre as pessoas.<br />

D.R.<br />

A inovação mais popular pertence à China<br />

Electronics Technology Group, que a lançou<br />

em conjunto com as autoridades. Chama-se<br />

“China’s Health Check” e gera um “QR Code”<br />

no telemóvel do utilizador com cores, tal como<br />

num semáforo, em que o verde indica que a<br />

pessoa não sofre do vírus. Segundo noticiou<br />

a revista inglesa The Economist, mais de 200<br />

cidades aderiram a esta app, que se tornou<br />

obrigatória, na medida em que para entrar<br />

num qualquer transporte público um indivíduo<br />

tem de fazer prova de cor. Se não acusasse<br />

verde, ficava do lado de fora.<br />

A China deu por controlada a primeira<br />

vaga da pandemia em Abril, começando,<br />

aos poucos, a abraçar o “novo normal”, à<br />

medida que a grande máquina industrial<br />

dá mostras de movimento. No entanto,<br />

a bitola mantém-se apertada. Distanciamento<br />

social e máscara são obrigatórios<br />

para todos. Já quem pisa o solo vindo do<br />

estrangeiro, seja nacional ou não, enfrenta<br />

a quarentena em casa, munido de um dispositivo,<br />

que funciona como uma tranca<br />

na porta, accionando directamente a polícia<br />

à mínima tentativa de saída.<br />

Com 1,4 mil milhões de pessoas, o país<br />

mais populoso do planeta regista 82 830<br />

RETOMA CHINESA:<br />

Distanciamento social e máscara<br />

são obrigatórios para todos<br />

Desde 17 de Abril, quando se verificou um<br />

acréscimo significativo de mortes, que a China<br />

não regista novos casos nem qualquer morte<br />

por COVID-19<br />

100 000<br />

80 000<br />

60 000<br />

40 000<br />

20 000<br />

0<br />

88 423<br />

Confirmados<br />

Fatais<br />

4 632<br />

22 Jan 30 Abr<br />

infecções, a 27 de Abril, o equivalente a 58<br />

casos por milhão de habitantes e 3 mortos<br />

por milhão. O número poderá estar muito<br />

subestimado face à realidade, mas continuaria<br />

a ser ínfimo (para a dimensão) mesmo<br />

que duplicasse ou triplicasse. Espelha uma<br />

estratégia de combate, talvez impossível<br />

de aplicar noutro lugar mas eficaz. A.R. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 61


GLOBAL PANDEMIA<br />

ASIÁTICOS ADEREM<br />

AO CONTACT TRACING<br />

A utilização de artilharia tecnológica está por detrás dos sucessos de Taiwan e Coreia do Sul,<br />

vizinhos da China, no combate ao vírus<br />

Coreia do Sul<br />

(Entre 21 de Janeiro e 30 de Abril)<br />

10 780<br />

Confirmados<br />

Activos<br />

9 123<br />

Taiwan<br />

(Entre 31 de Janeiro e 30 de Abril)<br />

1 407 250 6<br />

Recuperados<br />

RASTREAR:<br />

O sucesso de Taiwan e Coreia do Sul<br />

assenta no contact tracing<br />

Fatais<br />

D.R.<br />

432<br />

Confirmados<br />

102<br />

Activos<br />

324<br />

Recuperados<br />

Fatais<br />

O<br />

s vizinhos Taiwan e Coreia<br />

do Sul também conseguiram<br />

conter o primeiro surto<br />

da pandemia com medidas<br />

agressivas, como o controlo<br />

por GPS e a utilização de dados pessoais<br />

pelas autoridades. Nenhum dos dois foi<br />

pelo confinamento total da população,<br />

usado como estratégia na maior parte dos<br />

países e, em concreto, em Hubei.<br />

O “tigre” Taiwan, arqui-rival da República<br />

Popular da China, jogou forte a cartada<br />

dos testes ao primeiro sinal da nova<br />

doença. Isolou os infectados e usou “artilharia”<br />

tecnológica pesada para controlar<br />

o rasto da infecção. Logo em Janeiro,<br />

Tsai Ing-wen, a Presidente recentemente<br />

reeleita pelo Partido Democrático Progressista,<br />

pró-independência, assinou um<br />

pacote com mais de uma centena de medidas<br />

visando bloquear a propagação do<br />

vírus sem parar a economia. Ainda que<br />

de máscara, a vida continuou. Em nome<br />

da saúde pública e da segurança nacional,<br />

o governo passou, por exemplo, a ter acesso<br />

a todos os dados telefónicos dos cidadãos,<br />

cujos aparelhos devem estar com geolocalização<br />

activada. Isto permite à polícia e<br />

às autoridades de Saúde receberem informação<br />

sobre o paradeiro das pessoas em<br />

tempo real. O não cumprimento das regras<br />

está sujeito a multas de milhares de dólares<br />

e pena de prisão.<br />

A Coreia do Sul, outro país apontado<br />

como exemplo na gestão da propagação da<br />

COVID-19, também utilizou a tecnologia<br />

e a inovação como armas. Esta democracia<br />

oriental, com 52 milhões de pessoas,<br />

foi ao limite de aprovar legislação especial<br />

de forma a permitir o acesso a dados de<br />

telemóveis e de cartões de crédito, redes<br />

sociais e câmaras de vigilância por apps de<br />

contact tracing. Aos media, o vice-ministro<br />

da Saúde, Kim Gang-lip, justificou assim:<br />

“Há dois princípios que consideramos<br />

fundamentais na acção governamental.<br />

No primeiro, que respeita à participação<br />

dos cidadãos, deve prevalecer a abertura<br />

e a transparência. No segundo, trata-se<br />

de empregar recursos criativos e tecnologia<br />

de ponta para desenvolver os métodos<br />

e respostas mais eficazes.” A Coreia do<br />

Sul coadjuvou a criatividade e tecnologia<br />

com uma política eficaz de testes de diagnóstico<br />

em massa no início da pandemia,<br />

aplicou a quarentena a quem testou positivo<br />

e acompanhou quem tinha estado em<br />

contacto com a infecção. A.R. b<br />

62 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 63


GLOBAL PANDEMIA<br />

EUROPA<br />

ATINGIDA<br />

EM CHEIO<br />

Foi o continente onde a pandemia deixou, até agora, um<br />

rasto mais assustador, tanto em número de infectados<br />

como em número de mortos. Apesar de a Europa<br />

apresentar, à partida, os melhores sistemas de saúde<br />

do mundo, os de Itália e Espanha colapsaram<br />

D<br />

ia 27 de Abril de <strong>2020</strong>.<br />

O mapa mundo da Johns<br />

Hopkins University, que<br />

actualiza diariamente os<br />

dados da COVID-19, mostra<br />

3 milhões de infectados em 210 países<br />

e territórios, 878 813 recuperados e<br />

208 131 mortos. A União Europeia carrega<br />

ITÁLIA: O país viveu<br />

dias aterradores, sem<br />

espaço para doentes<br />

e mortos<br />

D.R.<br />

A UNIÃO EUROPEIA<br />

CARREGA O MAIOR<br />

NÚMERO DE ÓBITOS<br />

CAUSADOS PELA<br />

COVID-19, COM<br />

DESTAQUE PARA TRÊS<br />

PAÍSES — ESPANHA,<br />

ITÁLIA E FRANÇA<br />

o maior número de óbitos, com destaque<br />

para três países — Espanha (23 521), Itália<br />

(26 977) e França (22 856).<br />

A comunidade de 27 Estados-membros<br />

(o Reino Unido abandonou-a recentemente)<br />

e 513 milhões de pessoas está equipada<br />

com alguns dos melhores sistemas<br />

de saúde do planeta. No início da pandemia,<br />

todos os governos assumiram como<br />

linha vermelha impedir a sua ruptura.<br />

Objectivo? Garantir a todos os cidadãos<br />

as mesmas oportunidades de tratamento,<br />

i.e., internamentos e ventiladores.<br />

Com os números em crescendum, os países<br />

tentaram tudo para achatar a curva de<br />

crescimento da infecção, de modo a espalhar<br />

o número de doentes ao longo dos<br />

meses. Num combate em que o inimigo<br />

aparece de repente e se multiplica de forma<br />

exponencial, nem todos o conseguiram.<br />

À entrada do mês de <strong>Maio</strong>, Espanha ainda<br />

não normalizou, nem França, que, a 27 de<br />

Abril, apresentava uma taxa de mortalidade<br />

de 350/milhão. Que dizer de Itália? Com<br />

441 óbitos/milhão de habitantes, à data, a<br />

porta de entrada do surto na Europa foi o<br />

primeiro país a ver colapsar o sistema de<br />

saúde, com os médicos a serem obrigados, a<br />

dada altura, a priorizar quem socorrer por<br />

falta de capacidade para responder a todos<br />

os pacientes mais graves. Ainda assim, é a<br />

Bélgica, um país com uma dimensão semelhante<br />

à de Portugal (11,5 milhões de habitantes)<br />

que lidera a mortalidade na Europa<br />

e no mundo, com uma taxa de 503 mortos/<br />

milhão de habitantes, apesar das medidas<br />

adoptadas. Transparência nos dados fornecidos,<br />

dizem as autoridades para justificar<br />

tão elevado número.<br />

De referir que as estatísticas são elaboradas<br />

a partir dos casos conhecidos,<br />

identificados pelas autoridades de Saúde<br />

dos países, mas nem sempre comunicadas<br />

segundo a mesma metodologia.<br />

Os números reais, quer de infecções quer<br />

de óbitos, serão muito superiores no mundo<br />

inteiro. A.R. b<br />

64 | Exame Moçambique


ISLÂNDIA,<br />

TESTES EM MASSA<br />

A Islândia apostou na realização de testes gratuitos em larga escala para controlar<br />

a velocidade e o nível de propagação do vírus. Obteve bons resultados<br />

S<br />

em testes, não há como entender<br />

a forma como se espalha<br />

a pandemia. Há uma relação<br />

directa entre os testes realizados<br />

e o número de casos confirmados.<br />

O país que mais testa, é aquele<br />

que mais informação tem sobre o estado<br />

da sua população. A OMS continua a<br />

alertar para esta necessidade. “No início<br />

da epidemia, quando há poucos casos,<br />

é importante saber quem está infectado<br />

para poder interromper a cadeia de contágios.<br />

Para isso, é preciso fazer testes de<br />

forma muito agressiva em todos os contactos<br />

de uma pessoa infectada. Quando<br />

o vírus já está muito disseminado, isso<br />

não ajuda tanto. Se, por exemplo, 1% da<br />

A ISLÂNDIA, BEM-<br />

-SUCEDIDA NO COMBATE<br />

AO VÍRUS, REALIZOU<br />

TESTES GRATUITOS<br />

EM LARGA ESCALA<br />

população tiver o vírus, muitos casos escaparão.<br />

Por esta altura, o importante é o<br />

isolamento social, para prevenir os contágios.”<br />

A explicação dada por Adolfo<br />

García-Sastre, professor catedrático de<br />

Medicina e Microbiologia no The Mount<br />

Sinai Hospital, em Nova Iorque, EUA, ao<br />

jornal espanhol El País, mostra a importância<br />

de testar as populações no início e<br />

de confinar a seguir. Justamente a estratégia<br />

seguida pela Alemanha.<br />

A Islândia, pequeno país do Norte da<br />

Europa com 364 mil habitantes, é, no<br />

capítulo testes, outro nome a fixar. Um<br />

caso de estudo. A estratégia da primeira-<br />

-ministra, Katrín Jakobsdóttir, assenta<br />

na realização de testes gratuitos em larga<br />

escala. A meados de Abril tinham sido<br />

realizadas, já, duas grandes vagas abrangendo<br />

mais de 10% da população, o que,<br />

em termos proporcionais, é o valor mais<br />

alto do mundo.<br />

O elevado número de testes ajuda a traçar<br />

a velocidade e propagação do vírus, quer<br />

entre quem apresenta sintomas ligeiros quer<br />

entre os assintomáticos. “É possível reduzir<br />

a velocidade do vírus, é possível controlá-<br />

-lo em sociedade”, afirma Kari Stefansson,<br />

CEO da deCode Genetics, empresa que<br />

TESTES:<br />

A Islândia testou<br />

massivamente<br />

e saiu-se bem<br />

ISLÂNDIA<br />

(Entre 2 Mar e 1 Mai)<br />

1 798<br />

99<br />

1 689<br />

Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />

gere o processo com o governo. Com um<br />

rastreamento completo, a Islândia apresenta<br />

5251 casos por milhão e 29 óbitos<br />

por milhão. A.R. b<br />

10<br />

maio <strong>2020</strong> | 65


GLOBAL PANDEMIA<br />

O SUCESSO<br />

ALEMÃO<br />

Com uma taxa de letalidade baixíssima face ao número<br />

de infectados, a Alemanha fez valer a superior qualidade<br />

do seu sistema de saúde, a capacidade de organização<br />

e a confiança na liderança política e nas instituições<br />

A<br />

Alemanha é o único grande<br />

país da Europa que está a<br />

enfrentar a pandemia com<br />

êxito. Com 83 milhões de<br />

pessoas, apresenta um elevado<br />

número de infectados: 158 142, ao<br />

dia 27 de Abril, o que lhe confere o quinto<br />

lugar no ranking mundial de casos, mas<br />

os óbitos estão muitíssimo abaixo dos<br />

seus vizinhos: 71 por milhão de habitantes.<br />

Quais as armas de combate? Também<br />

aqui a resposta foge ao cânone e resultará<br />

de um conjunto de ingredientes. Seriedade<br />

da liderança política na abordagem<br />

ao problema, organização — o país é um<br />

todo e o cidadão confia no outro e nas instituições<br />

—, dispor daquele que é considerado<br />

o melhor sistema de saúde do mundo<br />

e identificação precoce através de testes.<br />

Angela Merkel, a chanceler, que antes<br />

de se tornar uma grande política era<br />

cientista, acordou cedo para o problema<br />

e soube mobilizar os alemães. Num discurso<br />

através da televisão, coisa rara no<br />

país, alertou que o vírus poderia infectar<br />

até 70% da população. “A situação<br />

é séria. Levem-na a sério”, apelou. “Desde<br />

a reunificação da Alemanha, aliás, desde a<br />

Segunda Guerra Mundial que não há um<br />

desafio que exija à nossa Nação um nível<br />

de acção comum e união como o actual”,<br />

declarou. Que mais poderia dizer?<br />

Desde o início do surto, a Alemanha<br />

apostou forte no diagnóstico, tendo criado<br />

Alemanha<br />

(Entre 30 Jan e 1 Mai)<br />

164 603<br />

36 837<br />

121 014<br />

6 752<br />

Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />

inclusivamente testes drive through, o que<br />

permitiu testar pessoas, sem custos, dentro<br />

do próprio carro. A identificação precoce<br />

de portadores de vírus retardou a<br />

propagação. De acordo com o site Worldometers,<br />

até 15 de Abril tinham sido<br />

realizados mais de 1,7 milhões de testes,<br />

isto é, 20 629 por milhão de habitantes.<br />

“É uma questão de capacidade e a capacidade<br />

da Alemanha é muito, muito significativa”,<br />

afirmou Lothar Wieler, director<br />

do Robert Koch Institute, o Instituto de<br />

Saúde Pública do país.<br />

A implementação da política de testes foi<br />

facilitada pelo elevado e bem distribuído<br />

número de laboratórios por todo o território.<br />

No Bundestag, a 23 de Abril, a chanceler<br />

salientou a existência de uma rede de<br />

400 delegações de saúde para seguir “cada<br />

cadeia de infecção e cada infectado”, mas<br />

assumiu, com humildade, que isso exige<br />

“concentração e resiliência” e só resultará<br />

se houver “consciência de que não<br />

estamos a chegar ao fim da crise, estamos<br />

no início”.<br />

Se é verdade que poucos países levaram<br />

tão a sério a recomendação da Organização<br />

Mundial de Saúde (OMS) de “testar,<br />

testar, testar”, também é verdade que, na<br />

rectaguarda, a Alemanha conta com aquele<br />

que é considerado o melhor sistema de<br />

saúde do mundo. As 28 mil camas de cuidados<br />

intensivos que equipavam os hospitais<br />

alemães, um rácio de 30 por cada<br />

100 mil habitantes, rapidamente aumentaram<br />

para 48 mil, tendo sido fixado o<br />

objectivo de atingir as 60 mil num curto<br />

espaço de tempo. Resultado? À entrada<br />

de <strong>Maio</strong>, os hospitais alemães não só não<br />

tinham esgotado a sua capacidade, como<br />

nas regiões fronteiriças acudiam a tratar<br />

cidadãos franceses, italianos e holandeses.<br />

Ainda assim, a vida económica e social<br />

parou quando foi altura. Em meados de<br />

Março, Angela Merkel mandou encerrar<br />

o que podia e jogou mão da quarentena.<br />

A própria deu o exemplo depois de manter<br />

contacto com um médico, mais tarde,<br />

diagnosticado com COVID-19. O limite<br />

foi atingido com a proibição de encontros<br />

de mais de duas pessoas com excepção de<br />

famílias ou pessoas a viverem na mesma<br />

casa e o cancelamento de um acontecimento<br />

sagrado — as cerimónias presenciais dos<br />

75 anos da libertação dos campos de concentração<br />

de Sachsenhausen, Ravensbrück<br />

e Bergen-Belsen. Em Berlim, no Bundestag,<br />

Câmara Baixa do Parlamento, Angela<br />

Merkel admitiu que as restrições às liberdades<br />

dos cidadãos foram “a lei que até<br />

hoje mais” lhe “custou a assinar”.<br />

O confinamento social aplicado inicialmente<br />

durante duas semanas foi repetido,<br />

mas viu a luz ao fundo do túnel, com a<br />

taxa de reprodução do vírus a cair para<br />

0,7% em meados de Abril. A vida económica<br />

alemã encetou no início de <strong>Maio</strong><br />

uma retoma gradual, mas toda a atenção<br />

continua posta no índice de contágio que<br />

não deverá exceder 1, caso contrário o sistema<br />

de saúde entra em sobrecarga.A.R. b<br />

66 | Exame Moçambique


maio <strong>2020</strong> | 67


GLOBAL PANDEMIA<br />

PORTUGAL MUITO<br />

MELHOR QUE ESPANHA<br />

No Ocidente europeu, Portugal obteve resultados francamente melhores que a vizinha<br />

Espanha, único país com o qual tem fronteira. Exceptuando o exemplo português, o saldo<br />

ibérico no combate ao vírus foi catastrófico<br />

A<br />

ponte de tirantes múltiplos<br />

sobre o Guadiana é um dos<br />

nove pontos abertos entre<br />

Portugal e Espanha neste<br />

início de <strong>Maio</strong>. Controlado<br />

com mão de ferro pelas forças da ordem,<br />

o vão de betão com 666 metros sobre o rio<br />

internacional apenas pode ser transposto<br />

por viaturas com alimentos e trabalhadores<br />

fronteiriços. Aqui, como em muitos<br />

outros lugares, a normalidade está suspensa<br />

há mês e meio.<br />

O emblemático rio que liga o Algarve e a<br />

Andaluzia, as duas províncias meridionais<br />

da Península Ibérica, no extremo ocidental<br />

da Europa, ganha, neste tempo de pandemia,<br />

um novo simbolismo. Na margem de<br />

cá, Portugal resiste às investidas do novo<br />

coronavírus com taxas de infecção e letalidade<br />

muitíssimo inferiores às de Espanha.<br />

O que explica isso? O que há assim de tão<br />

diferente na estratégia de dois países com<br />

hábitos culturais semelhantes para que<br />

um seja considerado um sucesso e o outro<br />

registe o segundo maior número de mortos<br />

por milhão de habitantes do mundo?<br />

Não existe uma resposta óbvia, mas a geografia<br />

e a rapidez da decisão terão sido factores<br />

fundamentais numa equação onde<br />

também pesa — e muito — o comportamento<br />

da sociedade civil.<br />

Encostado a ocidente ao oceano Atlântico,<br />

com uma única fronteira terrestre, Portugal<br />

integrou a lista de países com SARS-CoV-2,<br />

o vírus que causa a doença COVID-19, no<br />

segundo dia de Março de <strong>2020</strong>. Nessa altura,<br />

já o novo coronavírus tinha atingido mais<br />

de 60 países, entre os quais Espanha, infectado<br />

89 mil pessoas e morto mais de 3 mil.<br />

Um dos dois primeiros casos rastreados<br />

pelas autoridades sanitárias revelou, aliás,<br />

ligações ao país vizinho. No lado oriental<br />

da fronteira mais antiga da Europa, Espanha<br />

tinha detectado o paciente zero a 31 de<br />

D.R.<br />

CONFINAMENTO:<br />

Valeu a Portugal não<br />

ter seguido o mau<br />

exemplo de Itália<br />

e Espanha<br />

PORTUGAL<br />

(Entre 3 Mar e 30 Abr)<br />

25 351<br />

22 657<br />

1 671<br />

1 023<br />

Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />

Janeiro, nas ilhas Canárias, começando o<br />

território continental a somar casos a partir<br />

de 25 de Fevereiro.<br />

Hoje, parece claro que as autoridades deste<br />

país com 46,9 milhões de pessoas subestimaram<br />

a violência do surto, uma vez que<br />

só 43 dias depois de ter sido conhecida a<br />

primeira infecção declararam o estado de<br />

emergência, que trouxe a quarentena obrigatória,<br />

o encerramento das escolas e a<br />

circulação da população limitada ao estritamente<br />

necessário.<br />

É certo que a fraca coordenação entre<br />

as regiões e o governo central liderado<br />

pelo socialista Pedro Sánchez, recém-<br />

-empossado e com apoios parlamentares<br />

fragmentados, dificultou a tomada de<br />

medidas, mas a falta de testes de detecção<br />

para o vírus e a sociedade civil também<br />

não ajudaram. A.R. b<br />

68 | Exame Moçambique


NOVA IORQUE<br />

NO CENTRO<br />

DO “FURACÃO”<br />

Na Big Apple emergiu a figura do seu governador, Mario<br />

Cuomo, que, face à força com que a epidemia se abateu,<br />

assentou a sua estratégia no distanciamento social e no<br />

encerramento de escolas e negócios não essenciais,<br />

recusando precipitações quanto à reabertura da economia<br />

O<br />

novo coronavírus segue o<br />

seu percurso devastador pela<br />

geografia. Em Abril, Nova<br />

Iorque afirmou-se o epicentro<br />

da pandemia, sendo a<br />

cidade do mundo mais atingida e o Estado<br />

com o mesmo nome, onde se localiza, o<br />

mais sacrificado dos Estados Unidos, com<br />

18 076 mortos e mais de 65 mil hospitalizados<br />

no último dia do mês. Um primeiro<br />

estudo serológico aqui realizado revela,<br />

segundo a cadeia de televisão CNBC, que<br />

2,7 milhões podem ter sido já infectados<br />

com o novo coronavírus, isto é, mais de<br />

dez vezes o número de casos confirmados.<br />

Nova Iorque é governada por um democrata,<br />

Andrew Cuomo, filho do antigo<br />

governador Mario Cuomo, um político que<br />

mostrou ter coração e rumo e tornou-se um<br />

osso duro de roer para o Presidente Donald<br />

Trump. “O cavalo já tinha saído do celeiro”<br />

quando o país fechou as portas, denunciou,<br />

fundamentando com os voos que deram<br />

entrada nos aeroportos do Estado, Nova<br />

Iorque e Nova Jersey, entre Janeiro e Março<br />

— 13 mil, transportando mais de 2 milhões<br />

de pessoas da Europa, a segunda zona mais<br />

afectada, naquela altura, depois da China.<br />

Nova Iorque<br />

(Entre 29 Fev e 1 de Mai)<br />

Estados Unidos<br />

(Entre 24 Jan e 1 de Mai)<br />

1 146 870<br />

312 977<br />

Confirmados<br />

937 758<br />

18 909<br />

Fatais<br />

142 694 66 418<br />

Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />

Cuomo adoptou uma estratégia assente em<br />

medidas de distanciamento social e encerramento<br />

das escolas e dos negócios não essenciais<br />

e recusa acelerar o regresso ao “novo<br />

normal” antes de tempo. “Compreendo a<br />

ideia da reabertura da economia, mas peço<br />

que se concentrem na crise que temos entre<br />

mãos. Concentrem-se na onda iminente de<br />

casos que está para chegar daqui a catorze<br />

dias. As comunidades em todo o país têm<br />

de perceber que Nova Iorque é apenas um<br />

teste, o ponto onde estamos hoje, é onde<br />

vocês vão estar daqui a três, quatro ou seis<br />

semanas. Nós somos o vosso futuro”, afirmou<br />

Cuomo no início de Abril, apelando<br />

à contenção nos outros estados e atirando<br />

directamente em Donald Trump.<br />

Em contraponto, o Presidente da maior<br />

potência do mundo tem sido errático e atabalhoado,<br />

evidenciando falhas de estratégia<br />

e fazendo muita navegação à vista. Nunca<br />

tirou o pé da máxima the cure cannot be<br />

worse than the problem, o que traduzido<br />

à letra significa que os custos económicos<br />

por causa do confinamento não podem ser<br />

superiores aos custos humanos da pandemia.<br />

Ultrapassado pelas circunstâncias, foi<br />

obrigado a rever decisões e datas e a tomar<br />

medidas mais duras à medida que os infectados<br />

e os óbitos aumentavam.<br />

Os Estados Unidos têm o tamanho de um<br />

continente e uma população de 330 milhões,<br />

igual ao somatório da Alemanha, França,<br />

Reino Unido, Itália, Espanha e Croácia.<br />

No último dia de Abril, de acordo com as<br />

estatísticas do Johns Hopkins, os seus números<br />

são maiores do que os de qualquer outro<br />

país: 1 040 488 casos de infecção, 124 023<br />

recuperados e 60 999 mortos. No entanto,<br />

e proporcionalmente à população, a situação<br />

é melhor do que na Europa vista como<br />

um todo, com a mortalidade norte-americana<br />

a situar-se nos 186/milhão de habitantes.Ainda<br />

assim, a cidade que nunca dorme,<br />

Nova Iorque, fez estremecer o mundo com<br />

imagens do cemitério de Hart Island, uma<br />

ilha ao largo de Bronx, onde se enterram<br />

os que não têm ninguém e que foi a última<br />

morada das vítimas da gripe espanhola<br />

de 1918. A média de corpos não reclamados<br />

enterrados em valas comuns passou<br />

de 25 por semana para 25 por dia devido<br />

à COVID-19. A.R. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 69


GLOBAL PANDEMIA<br />

EUA (E NÃO SÓ)<br />

RESPONSABILIZAM CHINA<br />

As relações entre as duas principais potências mundiais azedaram com a pandemia,<br />

com acusações recíprocas e os Estados Unidos a responsabilizarem a China pela ocultação<br />

de informação que terá estado na origem da pandemia. Os processos judiciais já avançam<br />

O<br />

Missouri atirou a primeira<br />

pedra. Com mais de 5800<br />

pessoas infectadas e 177 mortos<br />

contabilizados ao dia 22<br />

de Abril, este Estado norte-<br />

-americano do Centro-Oeste avançou com<br />

um processo judicial contra a República<br />

Popular da China pela forma como geriu<br />

a crise do novo coronavírus. “O governo<br />

chinês mentiu ao mundo sobre o perigo e<br />

a natureza contagiosa da COVID-19, silenciou<br />

pessoas que alertaram para o vírus e fez<br />

pouco para travar a propagação da doença”,<br />

justificou o procurador-geral republicano<br />

Eric Schmitt, responsável pelo processo<br />

que deu entrada num Tribunal Federal dos<br />

EUA, em Abril. O Missouri, que simbolicamente<br />

assume o papel do inocente a quem<br />

o mundo caiu em cima devido à actuação<br />

das autoridades de Pequim, é o primeiro de<br />

uma lista que conta também com o Estado<br />

sulista do Mississipi, onde a procuradora-<br />

-geral, Lynn Fitch, igualmente republicana,<br />

anunciou que vai agir judicialmente contra<br />

aquele país por “danos económicos e<br />

humanos irreparáveis”. A demanda judicial<br />

contra a República Popular da China<br />

poderá estar a crescer, adianta o jornal on-<br />

-line português Observador, segundo o qual<br />

“vários países estudam a hipótese de pedirem<br />

indemnizações — ou apresentarem a<br />

conta — a Pequim por a China ter violado<br />

o dever de comunicar devidamente o risco<br />

do surto epidémico”.<br />

Especialistas em direito internacional, entre<br />

os quais a think thank britânica de política<br />

externa Henry Jackson Society, defendem<br />

que o mundo deve pedir à China não apenas<br />

responsabilidade moral, mas indemnizações<br />

de facto. O fundamento é de que<br />

a República Popular violou explicitamente<br />

os regulamentos sanitários internacionais<br />

— International Health Regulations (IHR),<br />

no original em inglês —, legislação respaldada<br />

pela Organização Mundial de Saúde<br />

(OMS) e Organização das Nações Unidas,<br />

que obriga os signatários a envidarem todos<br />

os esforços ao mínimo sinal de um surto,<br />

reunindo e transmitindo toda e qualquer<br />

informação que possa ajudar a compreender<br />

e combater uma possível ameaça sanitária<br />

com implicações internacionais. Acontece<br />

que as autoridades chinesas informaram<br />

a OMS da existência do vírus no dia 31 de<br />

DONALD TRUMP<br />

E XI JINPING:<br />

As relações entre os<br />

presidentes das duas<br />

maiores potências<br />

voltou a deteriorar-se<br />

Dezembro de 2019, ao que tudo indica muito<br />

depois de o terem descoberto. Segundo uma<br />

investigação do jornal de Hong Kong South<br />

China Morning Post, a primeira infecção<br />

terá sido identificada ainda em Novembro<br />

de 2019, sabendo as autoridades desde meados<br />

de Dezembro que o vírus é transmissível<br />

entre humanos. O alegado conhecimento<br />

deste facto — fundamental na propagação<br />

acelerada do vírus — por parte das autoridades<br />

de Pequim é encoberto nessa primeira<br />

comunicação, que, na sequência, a<br />

OMS transmite ao mundo. Além disso,<br />

a Henry Jackson Society lembra que só em<br />

meados de Janeiro a China partilhou com<br />

a comunidade internacional informação<br />

sobre o genoma do vírus, que teria identificado<br />

antes. A.R. b<br />

70 | Exame Moçambique


CORRER A MARATONA<br />

Sem outras armas contra o vírus, o confinamento revelou-se a resposta mais eficaz.<br />

Os países que adoptaram uma estratégia diferente, ou tiveram de arrepiar caminho<br />

ou apresentam resultados que só o balanço final da pandemia poderá julgar<br />

M<br />

eter as pessoas em casa salvou<br />

milhares de vidas, porventura<br />

milhões, em todo o<br />

mundo. Sem vacina contra<br />

o vírus SARS-CoV-2, sem<br />

cura nem tratamento eficaz para a COVID-<br />

-19 e muito longe da denominada imunidade<br />

de grupo, que só se atinge quando o<br />

número de pessoas imunes devido ao contacto<br />

prévio com o vírus é tão elevado que<br />

impede que este se propague de forma epidémica,<br />

o confinamento revelou-se a arma<br />

mais eficaz para controlar a infecção. Que o<br />

diga o Reino Unido. Na fase inicial da pandemia,<br />

o primeiro-ministro, Boris Johnson,<br />

apostou na chamada imunidade pelo rebanho<br />

ou imunidade de grupo, mas foi obrigado<br />

a inverter o caminho antes mesmo de<br />

sucumbir a um teste positivo e ser internado<br />

nos cuidados intensivos do Hospital<br />

de St. Thomas, em Londres, onde chegou a<br />

ser assistido por ventilador. Mais sorte teve<br />

o ministro da Saúde, Matt Hancock, também<br />

infectado, mas numa dimensão que<br />

lhe permitiu continuar a trabalhar a partir<br />

de casa. A estratégia assente nas recomendações<br />

do principal conselheiro científico<br />

do governo, Sir Patrick Vallance, partia do<br />

pressuposto de deixar infectar 60% para<br />

se conseguir gerar defesas para a generalidade<br />

da população, o que acontece com<br />

as crianças quando são vacinadas.<br />

O plano de deixar a vida social e a economia<br />

seguirem o seu curso normal revelou-<br />

-se desastroso, com o número de mortos a<br />

disparar a uma velocidade que assustou os<br />

britânicos. A opção política foi revertida.<br />

De medida em medida — Boris Johnson<br />

começou por proibir eventos com multidões,<br />

depois passou ao fecho de escolas e<br />

serviços públicos e por aí fora —, os 66,6<br />

SÓ QUANDO A EPIDEMIA<br />

TIVER TERMINADO<br />

SE SABERÁ QUANTAS<br />

VIDAS HUMANAS<br />

FORAM CEIFADAS PELO<br />

SARS-COV-2 E SE<br />

PERCEBERÁ QUEM<br />

MELHOR O COMBATEU<br />

milhões de britânicos entraram de quarentena<br />

como a generalidade dos europeus.<br />

A Suécia, país desenvolvido do Norte da<br />

Europa, apontado como exemplo em muitas<br />

áreas sociais, é uma excepção na resistência<br />

ao confinamento total, em contracorrente<br />

com o resto do mundo e também sem bons<br />

resultados. O plano de ataque ao novo coronavírus<br />

elaborado por cientistas e adoptado<br />

pelo governo tem estado na mira de outros<br />

cientistas. “A abordagem deve ser alterada<br />

radical e rapidamente”, escreveram vinte<br />

gurus da ciência e investigadores, alguns<br />

dos quais do prestigiado Instituto Karolinska,<br />

numa carta aberta ao primeiro-<br />

-ministro, Stefan Löfven.<br />

A estratégia da Agência de Saúde Pública,<br />

liderada por Anders Tegnell, parte do pressuposto<br />

de que o mundo enfrenta não uma<br />

corrida de 100 metros, mas uma maratona,<br />

e que esta não se percorre com medidas<br />

excepcionais. Assim o explicou a ministra<br />

das Relações Exteriores, Ann Linde,<br />

ao jornal britânico Financial Times. “Não<br />

acreditamos num bloqueio se não for sustentável<br />

ao longo do tempo. Não acreditamos<br />

que possamos trancar as pessoas nas<br />

suas casas durante vários meses e ter um<br />

alto grau a acatá-lo. Mas é um mito que os<br />

negócios estejam a fluir como sempre, pois<br />

não estão.” A.R. b<br />

maio <strong>2020</strong> | 71


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

72 | Exame Moçambique


COM O APOIO DE:<br />

TRABALHO<br />

REMOTO<br />

Trabalhar a partir de casa não é uma<br />

novidade proporcionada pelas tecnologias<br />

de comunicação. Mas com a emergência<br />

da COVID-19 passou a representar um<br />

desafio para todas as organizações<br />

e também uma oportunidade para<br />

reformular a organização do trabalho.<br />

O teletrabalho representa um novo<br />

padrão, inovador, de organizar<br />

os colaboradores, e constitui um forte<br />

impulso para elevar o nível<br />

de digitalização<br />

79<br />

81<br />

RESPOSTA DAS EMPRESAS<br />

Como reagir aos novos desafios<br />

LINHA DA FRENTE<br />

Soluções inovadoras combatem o vírus<br />

GETTY<br />

maio <strong>2020</strong> | 73


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

AGENDA PARA<br />

O TELETRABALHO<br />

A EY apresenta a sua visão para<br />

o desenvolvimento do trabalho remoto,<br />

propondo cinco blocos de construção para<br />

difundir “formas inteligentes de trabalho”<br />

UMA VISÃO COMUM<br />

*Propósito*<br />

Liderança Inteligente<br />

UMA NOVA MENTALIDADE<br />

*Pessoas*<br />

Foco interior &<br />

Pensamento positivo<br />

… COM NOVAS APTIDÕES<br />

*Plataformas*<br />

Digitalmente<br />

pessoas experientes<br />

E REGRAS CLARAS<br />

*Práticas*<br />

Legal & Regulatório<br />

… PARA CONSTRUIR UM MELHOR<br />

MUNDO DE TRABALHO<br />

*Locais*<br />

Flexibilidade como é “usual”<br />

Apandemia do novo coronavírus<br />

colocou uma boa<br />

parte do mundo em casa.<br />

Como evitar que a vida pare<br />

completamente quando a<br />

população está confinada? A solução foi<br />

recorrer, com base nas tecnologias disponíveis,<br />

ao trabalho à distância. O teletrabalho<br />

já existia antes do vírus devorar o<br />

mundo, mas era encarado apenas como<br />

algo a ter em conta no futuro. Até agora,<br />

quase que se resumia a um privilégio<br />

reservado a uns poucos eleitos, normalmente<br />

quadros superiores. Só que, o que<br />

até agora era visto como “futurista”, experimental<br />

ou elitista, tornou-se, com a pandemia,<br />

vital, o único modo de continuar<br />

a assegurar o fluxo normal de trabalho.<br />

Mas como conciliar, dentro do mesmo<br />

espaço, trabalho e outras tarefas da vida<br />

doméstica? Em várias reportagens e debates<br />

na televisão e na Internet surgiram<br />

pais, quase desesperados, queixando-<br />

-se da dificuldade em conjugar, dentro<br />

de portas, o trabalho, a atenção exigida<br />

pelos filhos, as tarefas domésticas e ainda<br />

arranjar tempo para falar com os amigos<br />

na Internet e relaxar. Acontece que este<br />

inesperado empurrão para dentro de casa<br />

dado às pessoas pelo vírus reveste-se de<br />

um dramatismo único. Não se vive habitualmente<br />

sob o espectro de se ser contagiado<br />

por uma doença desconhecida<br />

que pode ter uma evolução terrível e que<br />

submete a vida à incerteza. Mas quando<br />

o surto de contágio for debelado, o modo<br />

como trabalhamos, aprendemos e desenvolvemos<br />

outras actividades será outro.<br />

Ainda trabalhávamos e aprendíamos, assinalam<br />

alguns autores, de forma analógica<br />

num mundo cada vez mais digitalizado.<br />

Na verdade, as soluções encontradas<br />

para o distanciamento ditado pela pandemia<br />

que causou disrupções fazem com<br />

que as coisas não voltem a ser como antes.<br />

As empresas não mais largarão a possibilidade<br />

do teletrabalho, em inglês home<br />

office. Já em 2016, um estudo da Universidade<br />

Stanford mostrava que trabalhar<br />

em casa pode aumentar em 13% a produtividade<br />

de determinados grupos de trabalhadores.<br />

A análise tinha como base a<br />

experiência de uma agência chinesa de<br />

turismo, a Ctrip, que testou durante nove<br />

meses o home office com 249 funcionários<br />

da área de atendimento, com resultados<br />

surpreendentes: aumentou o número de<br />

minutos trabalhados e o número de chamadas<br />

atendidas, o que se traduziu numa<br />

economia de 2 mil dólares por colaborador.<br />

Os ganhos foram óbvios, mas dois<br />

terços dos funcionários que participaram<br />

no ensaio pediram para voltar ao escritório<br />

por sentirem saudades dos colegas.<br />

A adopção do teletrabalho não é linear,<br />

as empresas têm de seguir uma estratégia<br />

para interiorizar esta disrupção laboral<br />

que está, seguramente, inscrita no futuro<br />

pós-pandémico. Por outro lado, não se<br />

trata de um modelo generalizável a toda a<br />

actividade empresarial. Há muitos trabalhadores<br />

que, devido à natureza das suas<br />

funções, quer na área industrial como na<br />

dos serviços, não as podem exercer fora<br />

da empresa. A oportunidade inovadora<br />

do trabalho à distância ultrapassará a<br />

ansiedade da pandemia e tornar-se-á uma<br />

importante peça do puzzle da organização<br />

empresarial. Grandes empresas dão<br />

exemplos de que assim acontecerá. O Facebook<br />

deu aos 45 mil empregados que tem<br />

espalhados pelo mundo um bónus de mil<br />

dólares para que equipem as suas casas<br />

para trabalharem remotamente. Também<br />

a Apple, Google, Amazon e Microsoft<br />

estão a apoiar financeiramente os<br />

seus colaboradores na montagem do seu<br />

posto de trabalho residencial.<br />

A consultora EY concebeu uma nova<br />

abordagem ao trabalho desenvolvido<br />

remotamente, ajudando os clientes a lidarem<br />

com a crise e a impulsionarem a<br />

“rápida transformação digital”. Para a<br />

EY, só conseguiremos lidar com o sentimento<br />

invulgar de isolamento se acelerarmos<br />

a revolução digital. Trata-se,<br />

74 | Exame Moçambique


acima de tudo, de capacitar as pessoas,<br />

o bem mais valioso das organizações,<br />

para a transformação digital e as novas<br />

formas de trabalho e de interacção com<br />

a empresa, parceiros externos e clientes,<br />

e de agir sobre a mentalidade das empresas<br />

“construindo consciência cultural e<br />

remodelando competências sociais e de<br />

gestão para facilitar um estilo de liderança<br />

digital”.<br />

A EY enuncia os cinco pilares das “formas<br />

inteligentes de trabalhar”, os quais<br />

foram transformados em blocos de construção<br />

complementares que, com base em<br />

necessidades específicas, também podem<br />

ser abordados individualmente. São eles<br />

que permitem difundir “formas inteligentes<br />

de trabalho”: o propósito, compreendido<br />

numa visão comum, as pessoas, imbuídas<br />

de uma nova mentalidade, as plataformas,<br />

que viabilizam novas aptidões, as<br />

práticas, assentes em regras claras, e, finalmente,<br />

os locais, que permitem construir<br />

um melhor mundo laboral. Fixado um<br />

propósito, a equipa de liderança é encorajada<br />

a discutir a direcção estratégica,<br />

repensar prioridades e avaliar os principais<br />

atributos dos seus papéis, passos<br />

fundamentais para enfrentar a contingência<br />

e agir proactivamente. Por outro<br />

lado, é necessário fomentar a consciencialização<br />

sobre a auto-eficácia das pessoas<br />

com vista a moldar as mentalidades<br />

e competências particulares necessárias<br />

ao aumento da motivação e do desempenho<br />

durante um momento caracterizado<br />

pela prevalência de um grande stress<br />

colectivo. As pessoas terão de possuir<br />

maior experiência digital, o que implica<br />

o aumento da consciencialização sobre as<br />

potencialidades das ferramentas digitais,<br />

explorando as suas capacidades e funcionalidades<br />

avançadas, as quais são úteis na<br />

gestão remota de equipas e na manutenção<br />

do contacto com parceiros externos<br />

e clientes. É também necessário, no plano<br />

legal e regulatório, tendo presente a resposta<br />

das autoridades à pandemia, avaliar<br />

a eficácia das medidas de segurança<br />

implementadas e identificar as áreas de<br />

grandes riscos relativos aos indicadores<br />

de desempenho preestabelecidos. Finalmente,<br />

há que explorar as alavancas da<br />

mudança que promovem as novas e inteligentes<br />

formas de trabalhar orientadas<br />

para a confiança e a responsabilização,<br />

proporcionando quadros contextuais, de<br />

aptidões e culturais.<br />

Estes “blocos” correspondem a outros<br />

tantos módulos que a EY propõe na sua<br />

agenda para a transformação digital das<br />

formas de trabalho.<br />

POSTOS DE<br />

TRABALHO:<br />

Grandes empresas<br />

já forneceram<br />

equipamento de<br />

trabalho remoto aos<br />

seus colaboradores<br />

PROPÓSITO<br />

Qual a evolução das expectativas, tarefas e<br />

responsabilidades do gestor num contexto<br />

de gestão de crise? É que este deverá estar<br />

preparado para orientar, liderar e motivar as<br />

pessoas num contexto remoto e complexo.<br />

A EY propõe a definição de um roteiro com<br />

base na identificação das prioridades estratégicas<br />

e tácticas, a qual permite a criação<br />

de um plano de acção partilhado. O gestor<br />

terá ainda de ter uma percepção clara das<br />

razões que o levam a envolver-se e mudar o<br />

estilo de liderança, a agenda de negócios e<br />

as prioridades num contexto de mudança,<br />

sendo capaz de envolver e motivar a sua<br />

equipa, ao mesmo tempo que promove<br />

comportamentos resilientes. De acordo<br />

com a consultora, o módulo dedicado à<br />

“liderança inteligente” animada por um<br />

propósito tem, em resumo, como finalidade<br />

“compreender os impactos e a prioridade<br />

das pessoas”.<br />

PESSOAS<br />

O objectivo do segundo módulo é “proteger<br />

as pessoas” agindo sobre os valores e<br />

mentalidades a alavancar para enfrentar<br />

a contingência actual com “pensamento<br />

positivo, foco e clareza”. O objectivo é conseguir<br />

transmitir a percepção de “segurança<br />

psicológica” e uma atitude positiva,<br />

maio <strong>2020</strong> | 75


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

fornecendo ferramentas concretas para<br />

superar a sensação de se estar isolado<br />

através da comparação com especialistas<br />

externos. Para isso, importa igualmente<br />

identificar competências transversais,<br />

treinando-as para que sejam eficazes em<br />

situações de crise (por exemplo, premeditação,<br />

resiliência dinâmica, gestão de<br />

emoções, auto-eficácia, colaboração real<br />

e virtual, resolução dinâmica de problemas,<br />

pró-sociabilidade, determinação<br />

ágil, capacidade de enfrentar a ambiguidade,<br />

aprendizagem pela experiência, fazer<br />

sentido, prestação de contas). Um passo<br />

seguinte é a acção, que passa por definir<br />

um roteiro de vitórias rápidas para pôr<br />

em prática as competências transversais<br />

e estimular a conexão social.<br />

PLATAFORMAS<br />

Há que tornar as pessoas experientes no<br />

domínio digital, permitindo-lhes que executem<br />

o seu trabalho do dia-a-dia da melhor<br />

forma possível, evitando frustrações e encorajando<br />

a motivação e a produtividade graças<br />

aos novos instrumentos tecnológicos.<br />

Neste âmbito, a EY propõe quatro tópicos<br />

para discussão: o brainstorming e quadros<br />

partilhados (como organizar e gerir remotamente<br />

sessões de brainstorming e actividades<br />

de co-criação), a gestão de projectos<br />

(gestão eficaz das equipas e a correcta avaliação<br />

do seu desempenho), a automação<br />

dos fluxos de trabalho (como automatizar<br />

actividades de rotina, aumentando a produtividade)<br />

e a criação de apps (PowerApps<br />

para prototipagem).<br />

PRÁTICAS<br />

A compreensão dos impactos e riscos<br />

legais ajuda as pessoas a trabalharem<br />

melhor, com a segurança de estarem a<br />

cumprir o que lhes é legalmente exigido<br />

e dado como direito. Para que aquela seja<br />

conseguida deve ser posto em prática o<br />

trabalho inteligente, envolvendo as práticas,<br />

procedimentos e notas legais que<br />

incentivem comportamentos correctos<br />

LONGE DO ESCRITÓRIO<br />

Muitas empresas, mesmo antes da actual<br />

pandemia já adoptavam o teletrabalho<br />

44%<br />

durante a prestação de trabalho remoto,<br />

como, por exemplo, a protecção de dados,<br />

observando regras, disposições legais e<br />

boas práticas comportamentais com vista<br />

a uma gestão segura da informação e a<br />

evolução para formas inteligentes de trabalho,<br />

tendo presente a resposta do legislador<br />

e analisando a legislação em vigor<br />

que favorece o trabalho remoto.<br />

LOCAL VIRTUAL:<br />

A cultura corporativa<br />

deve continuar<br />

presente<br />

56%<br />

empresas do mundo com trabalho remoto<br />

empresas do mundo sem trabalho remoto<br />

LOCAIS<br />

O último “bloco” a construir na fórmula<br />

de mudança da EY assenta na manutenção<br />

da flexibilidade, explorando as alavancas<br />

da mudança e facilitando a colaboração<br />

digital. Trata-se de assegurar a flexibilidade<br />

que permite utilizar o típico local de trabalho<br />

em conjunto com o “local virtual”.<br />

Este módulo tem em conta o ambiente (a<br />

evolução das organizações e as formas de<br />

trabalhar a favor de uma cultura corporativa<br />

baseada na confiança e na responsabilidade<br />

individual), as prioridades de<br />

negócio (um olhar sobre as prioridades<br />

organizacionais e de gestão para alinhar<br />

e sustentar o negócio principal), a cultura<br />

e valores, bem como os comportamentos<br />

(como colaborar remotamente e que bons<br />

“hábitos” há que ter para ganhar eficácia).<br />

Ao mudar a forma de colaborar e comunicar,<br />

as regras de colaboração social numa<br />

via totalmente digital e ainda a forma de<br />

gerir recursos e parceiros externos graças<br />

a dispositivos tecnológicos, a EY propõe-se<br />

“transformar um constrangimento numa<br />

oportunidade, aproveitando ao máximo<br />

as tecnologias disponíveis”.b<br />

76 | Exame Moçambique


A RESPOSTA DAS EMPRESAS<br />

A<br />

pandemia<br />

ameaça sérias disrupções<br />

nas cadeias de fornecimentos,<br />

cada vez mais<br />

disseminadas por diferentes<br />

pontos do planeta, colocando<br />

às empresas, designadamente às<br />

que actuam globalmente, desafios para os<br />

quais não estão especialmente preparadas.<br />

As empresas globais dispõem, há muito, de<br />

planos de contingência destinados a assegurar<br />

a continuidade dos negócios no caso<br />

de ocorrência de desastres, mas uma pandemia<br />

é uma catástrofe com uma dimensão<br />

e implicações dificilmente coberta por<br />

aqueles planos. Existem diferenças significativas<br />

entre as disrupções causadas por<br />

eventos naturais, erros humanos, falhas<br />

tecnológicas ou problemas operacionais e<br />

aquelas que resultam de um evento pandémico,<br />

que apresenta uma escala, gravidade<br />

e duração muito superior. Mesmo no caso<br />

dos desastres naturais (ciclones, tsunamis,<br />

terramotos), embora o seu impacto seja<br />

semelhante ao causado por uma pandemia,<br />

DIFERENTES DISRUPÇÕES<br />

esta não afecta apenas uma determinada<br />

área geográfica, alastrando-se a todo o planeta.<br />

É, pois, necessário adoptar respostas<br />

inovadoras ajustadas a uma crise com uma<br />

dimensão muito perturbante. A EY considera<br />

que devem ser desenvolvidos planos<br />

suplementares nos quais são contemplados<br />

os riscos específicos e de larga escala que a<br />

epidemia comporta. Além disso, estes planos<br />

complementares permitem às empresas<br />

coordenarem a resposta à crise com as<br />

autoridades nacionais e locais. b<br />

A EY compara os efeitos das disrupções tradicionais no fluxo de negócios com o impacto sobre a actividade<br />

das empresas das disrupções de origem pandémica<br />

Dimensão Disrupções tradicionais Disrupções de origem pandémica<br />

Escala<br />

Velocidade<br />

Duração<br />

Escassez<br />

de mão-de-obra<br />

Coordenação<br />

externa<br />

Infra-estruturas<br />

Localizadas: impactam uma empresa, geografia,<br />

instalação, parceiros, força de trabalho específicos<br />

Normalmente são contidas e rapidamente isoladas<br />

assim que é identificada a causa da falha<br />

Geralmente curtas, por exemplo menos de uma semana<br />

Podem resultar em escassez temporária ou<br />

reposicionamento do contingente laboral<br />

Podem exigir alguma coordenação com o público,<br />

governo, autoridades de segurança e sanitárias<br />

Requerem confiança na disponibilidade de<br />

infra-estruturas públicas (energia, transportes,<br />

comunicações, Internet, por exemplo) para<br />

complementar as principais estratégias de negócio<br />

Sistémicas: têm um impacto generalizado, incluindo<br />

força força de trabalho, clientes, fornecedores<br />

Espalham-se rapidamente num mercado contagiado<br />

em toda uma geografia ou mesmo globalmente<br />

Estendem-se por um período mais longo, podendo durar<br />

vários meses<br />

Podem depressa traduzir-se em crescente e significativa<br />

escassez (mais de metade) da força de trabalho<br />

Exigem um elevado grau de coordenação com o público,<br />

governo, autoridades sanitárias, forças de segurança<br />

e envolver mais do que uma jurisdição<br />

Podem constranger ou restringir a disponibilidade<br />

de infra-estruturas públicas à medida que a escala<br />

e gravidade do evento aumentam, sobretudo porque<br />

outras empresas são afectadas pelo mesmo problema<br />

maio <strong>2020</strong> | 77


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

1<br />

Comunicar com os colaboradores<br />

para aumentar a consciencialização,<br />

aplicando políticas (por exemplo,<br />

restrições de viajar) e familiarizá-los<br />

com as ferramentas e os recursos<br />

disponíveis<br />

2<br />

Se as considerações de planeamento<br />

pandémico não tiverem sido<br />

incorporadas ou actualizadas nas<br />

estratégias de continuidade de negócios<br />

e de recuperação de desastres, devem<br />

iniciar rapidamente o planeamento<br />

ou actualização de estratégias<br />

e acções dirigidas à pandemia<br />

3<br />

Realizar uma avaliação imediata<br />

dos processos e funções com elevada<br />

intervenção manual ou dependência<br />

de terceiros, especialmente em locais<br />

de elevada vulnerabilidade ao impacto,<br />

com vista a identificar os principais<br />

riscos, incluindo possíveis pontos<br />

de falha<br />

O QUE DEVEM FAZER AS ORGANIZAÇÕES<br />

4<br />

Analisar o plano de comunicação de<br />

crise, designando pontos de contacto<br />

para facilitar o envolvimento contínuo<br />

com autoridades locais, nacionais<br />

e globais e outros stakeholders<br />

essenciais, internos e externos<br />

5<br />

Identificar possíveis políticas de<br />

excepção e instituir um processo de<br />

aprovação de gestão de crise com vista<br />

a gerir essas políticas de excepção<br />

de forma acelerada em cada jurisdição<br />

6<br />

Confirmar se os funcionários dispõem<br />

dos recursos necessários, incluindo<br />

o acesso às unidades de<br />

compartilhamento, documentos e outras<br />

ferramentas críticas, para executarem<br />

remotamente tarefas críticas<br />

7<br />

Rever os procedimentos operacionais<br />

padrão relevantes e respectivos<br />

manuais, actualizando-os se necessário<br />

8<br />

Monitorizar a situação e fornecer<br />

instruções regulares aos dirigentes<br />

sobre quaisquer ameaças e problemas<br />

emergentes<br />

9<br />

Solicitar aos colaboradores a<br />

confirmação e actualização dos<br />

respectivos contactos (primários e<br />

secundários) nos registos da empresa<br />

10<br />

Dar uma breve formação pandémica<br />

aos colaboradores com vista a melhorar<br />

a sua preparação, bem como da<br />

organização, para que as respostas<br />

dadas sejam efectivas<br />

78 | Exame Moçambique


INOVAÇÃO NA<br />

LINHA DA FRENTE<br />

A<br />

s tecnologias inovadoras<br />

facultam as ferramentas<br />

mais eficazes no combate à<br />

pandemia COVID-19. Permitem<br />

identificar os infectados,<br />

diagnosticar de um modo muito mais<br />

rápido, seguro e eficiente, ligar hospitais<br />

de grandes cidades com hospitais de áreas<br />

remotas em diagnósticos on-line, sequenciar<br />

os genes virais através de inteligência<br />

artificial, utilizar robots na desinfecção de<br />

instalações, entre outros exemplos.<br />

CÓDIGO QR<br />

Na China, os cidadãos passaram a exibir<br />

nos seus smartphones um código QR pessoal<br />

de saúde quando viajam de transporte<br />

público, entram em supermercados ou<br />

regressam ao trabalho. “A utilização deste<br />

método digital origina um novo caminho,<br />

poupando às pessoas o incómodo de<br />

preencherem repetidos formulários, economizando<br />

uma grande quantidade de mão-<br />

-de-obra e recursos materiais, ajudando a<br />

reduzir os custos sociais da batalha contra<br />

epidemia”, escrevem Yu Sinan e Jiang<br />

Nan, no Diário do Povo.<br />

hospitais em áreas remotas para realizar<br />

diagnósticos on-line.<br />

IA NA BATALHA<br />

A startup canadiana BlueDot fornece o serviço<br />

de identificação de riscos de doenças<br />

infecciosas recorrendo a inteligência artificial<br />

(IA). A IA da BlueDot alertou para a<br />

ameaça do novo coronavírus vários dias<br />

antes de os Centros de Controlo e Prevenção<br />

de Doenças — ou até mesmo a Organização<br />

Mundial da Saúde (OMS) — terem<br />

começado a emitir alertas. A empresa<br />

de inteligência artificial Infervision desenvolveu<br />

uma solução a pensar na COVID-<br />

-19 que ajuda os profissionais de saúde na<br />

linha da frente a detectarem e monitorizarem<br />

a doença com eficácia. A IA é ainda<br />

aplicada, através de algoritmos optimizados,<br />

no sequenciamento de genes virais.b<br />

RASTREIO TECNOLÓGICO: Na China, as<br />

pessoas mostram um código que indica<br />

que não estão infectadas<br />

IMAGENS MÉDICAS<br />

O sistema de diagnóstico assistido por<br />

imagens médicas reduz radicalmente o<br />

tempo necessário para avaliar a condição<br />

do paciente, de algumas horas para poucos<br />

segundos, diminuindo o risco de infecção<br />

dos profissionais de saúde. O sistema<br />

de consulta remota, apoiado pela comunicação<br />

5G e outras tecnologias, liga especialistas<br />

e hospitais em grandes cidades com<br />

maio <strong>2020</strong> | 79


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

TÊNDENCIAS GLOBAIS<br />

Nos países mais atingidos pela pandemia as mais<br />

diferentes empresas industriais converteram-se<br />

rapidamente, passando a produzir as procuradas<br />

máscaras inibidoras da propagação do vírus<br />

LUÍS FARIA<br />

Director Executivo Exame Moçambique<br />

CONVERTIDA ÀS MÁSCARAS<br />

A francesa Porcher Industries, situada perto de Lyon, que fabricava<br />

materiais para automóveis, aviação e construção, reconverteu-se e está<br />

agora a fabricar máscaras. Há apenas um mês, os responsáveis desta<br />

empresa pouco sabiam sobre máscaras. Aqui, fabricavam-se coisas<br />

como parapentes ou materiais para o interior dos aviões. As ferramentas<br />

tiveram de ser actualizadas.<br />

116<br />

milhões unidades<br />

é o número de máscaras que a China produz diariamente desde a<br />

emergência do surto pandémico. Anteriormente produzia 20 milhões<br />

de unidades por dia. A China destina 70% da sua produção, a maior<br />

do mundo, à exportação.<br />

DO TÊXTIL À PROTECÇÃO<br />

Em Portugal, mais de 200 empresas do sector têxtil pediram ajuda<br />

governamental para passarem a fabricar máscaras comunitárias,<br />

cujo uso é agora obrigatório no país em transportes públicos e<br />

supermercados, por exemplo. O centro tecnológico português<br />

do sector testou dezenas de materiais susceptíveis de serem utilizados<br />

no fabrico do produto. Além das máscaras sociais também há empresas<br />

portuguesas a produzirem máscaras clínicas e máscaras destinadas<br />

a profissionais que contactam com o público.<br />

MÁSCARAS<br />

CLÍNICAS (Tipo 1)<br />

mais de 98%<br />

de capacidade<br />

de filtragem de<br />

partículas<br />

MÁSCARAS<br />

PROFISSIONAIS<br />

(Tipo 2)<br />

90% de capacidade<br />

de filtragem de<br />

partículas<br />

MÁSCARAS<br />

COMUNITÁRIAS<br />

(Tipo 3)<br />

70% de capacidade<br />

de filtragem de<br />

partículas<br />

NADA NA VIDA<br />

DEVE SER TEMIDO,<br />

TUDO DEVE SER<br />

COMPREENDIDO.<br />

ESTE É O MOMENTO<br />

DE ENTENDER<br />

MAIS, PARA QUE<br />

POSSAMOS TER<br />

MENOS MEDO."<br />

Madame Curie<br />

a primeira mulher<br />

laureada com um Prémio<br />

Nobel<br />

O QUE MUDA<br />

Diz-se que, depois da pandemia, nada ficará<br />

como dantes. Mesmo quando tudo quanto se<br />

sabe, quanto ao futuro, é que muito pouco se<br />

sabe, é fraca a probabilidade de que à recessão<br />

causada pelo Grande Confinamento se siga<br />

uma nova alvorada disruptora. O que não significa<br />

que muita coisa não mude, a digitalização<br />

sofreu uma forte aceleração e dificilmente<br />

muitas das suas aplicações farão marcha-<br />

-atrás. É interessante verificar como o comércio<br />

electrónico atrasou as suas entregas face à<br />

imprevisível avalanche de encomendas. Como<br />

professores e alunos se entregaram de repente<br />

ao ensino à distância. Ou como o teletrabalho<br />

manteve pessoas confinadas ligadas às suas<br />

tarefas diárias. Na verdade, o teletrabalho não<br />

pode, ou, pelo menos, não deve ser resumido<br />

a um recurso que permitiu às empresas, em<br />

tempo de emergência, continuarem a funcionar.<br />

Deve ser interiorizado pelas organizações<br />

como uma forma de reinventar a prestação da<br />

força laboral. A actual pandemia mostrou muitas<br />

das suas vantagens e também os problemas<br />

que envolve e que há que superar, com programas<br />

de implementação adequados. Afinal de<br />

contas, não é preciso perder preciosas horas<br />

em engarrafamentos que têm um pesado custo<br />

ambiental. Muito possivelmente as organizações<br />

irão reajustar o seu modelo de funcionamento,<br />

e mesmo a sua cultura, incorporando<br />

o trabalho remoto, ganhando maior flexibilidade<br />

e aumentando a produtividade dos seus<br />

colaboradores. Todas as organizações, não apenas<br />

as empresas.b<br />

80 | Exame Moçambique


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maio <strong>2020</strong> | 81


<strong>EXAME</strong> FINAL<br />

ÁFRICA NÃO DEVE<br />

PAGAR<br />

A pandemia que vai atirar a economia mundial<br />

para uma funda recessão é produto<br />

da incompetência dos países mais avançados<br />

em conter a sua génese e propagação,<br />

perdendo o seu controlo. África não deve<br />

pagar esta factura<br />

LUÍS FARIA<br />

O<br />

novo coronavírus, destroçou as economias mais desenvolvidas<br />

do Ocidente e fez colapsar alguns dos seus sistemas<br />

de saúde. A governação mostrou, nestes países,<br />

uma impreparação e incompetência absolutas. Daí que<br />

a COVID-19 se tenha transformado em pandemia. A oriente, e<br />

designadamente na China, onde a epidemia teve origem, foi claramente<br />

maior a eficácia na contenção do surto. Aliás, em geral,<br />

na Ásia as autoridades recorreram às mais avançadas tecnologias<br />

para conter a doença. Além disso, dispuseram dos equipamentos<br />

de protecção que escassearam na Europa e nos Estados<br />

Unidos, por imprevidência e lentidão na resposta dos governos<br />

dos diferentes países, que, de repente, se aperceberam que todo<br />

o material de protecção das populações e pessoal hospitalar e<br />

tratamento da doença quando atinge as situações mais críticas<br />

era fabricado na China. Cerca de 80 países competiram no mercado<br />

chinês pela aquisição de equipamento, fosse a que preço<br />

fosse. Faltou tudo: máscaras individuais, luvas, fatos de protecção<br />

hospitalar, ventiladores para as áreas de cuidados intensivos.<br />

Não houve nada, no combate à pandemia, que os Estados Unidos<br />

e a Europa não tivessem de importar da China. Uma verdadeira<br />

“rota sanitária”.<br />

As medidas preventivas, as únicas capazes de moderar a propagação<br />

meteórica do vírus, foram sistematicamente tomadas<br />

com atraso, o que teve consequências catastróficas face a uma<br />

doença que se caracteriza pela fulminante rapidez de contágio.<br />

Em resultado, a economia global contraiu-se dramaticamente,<br />

com o Fundo Monetário Internacional (FMI) a prever uma das<br />

maiores recessões de que há memória para este ano.<br />

Se a pandemia da doença COVID-19 ganhar em África a mesma<br />

força devastadora com que se abateu no Hemisfério Norte, o continente<br />

irá confrontar-se com uma “tempestade perfeita”, em que<br />

se conjugarão a dificuldade de confinar a economia informal,<br />

a fragilidade da resposta hospitalar, a quebra abrupta do preço<br />

das matérias-primas e o peso da dívida nos orçamentos nacionais,<br />

que condicionará despesas necessárias no combate à recessão<br />

económica e emissão de nova dívida em moeda externa.<br />

O contágio tem avançado lentamente no continente, o que se fica<br />

muito a dever às medidas de contenção prontamente tomadas pelas<br />

autoridades (Moçambique é um exemplo). Avança devagar, mas,<br />

ainda assim, a ameaça não se extingue. Os estragos provocados<br />

nas economias africanas já são dramáticos. O valor das matérias-<br />

-primas, cuja venda é essencial para a receita e o equilíbrio externo<br />

da grande maioria dos países africanos, continua a cair. O preço<br />

do gás natural quebrou mais de 30% e o do barril de petróleo chegou<br />

a passar para valores negativos no mercado norte-americano<br />

face às dificuldades de armazenamento. O Brent, referência dos<br />

mercados internacionais, caiu para perto de 20 dólares. A cotação<br />

dos metais também recuou significativamente, com excepção<br />

do ouro, como é comum em situações de crise.<br />

Quem paga a pandemia? Os países africanos que adoptaram<br />

a tempo as medidas correctas e que continuam a suportar<br />

uma dívida asfixiante? A China que, com a ocultação da<br />

irrupção do vírus, fez que este se transformasse em pandemia?<br />

Os países europeus desenvolvidos que tiveram uma reacção<br />

lenta, desnorteada e tardia? Os Estados Unidos que, à semelhança<br />

da Europa, acordaram tarde, deixaram a infecção propagar-se<br />

e estilhaçar alguns sistemas de saúde, como foi o caso<br />

de Nova Iorque? África, devido à manifesta incompetência dos<br />

países mais industrializados, poderá confrontar-se com a quebra<br />

do valor das exportações, suportar, nas suas economias, o<br />

impacto de uma depressão global sem precedentes, não se afastando<br />

ainda a possibilidade de vir também a enfrentar, numa<br />

escala assustadora, a pandemia? Esta é uma factura que não deve<br />

ser apresentada ao continente.b<br />

D.R.<br />

82 | Exame Moçambique

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