EXAME Maio 2020
Na conjuntura desafiante que atravessamos todos temos que aprender a viver com o vírus. E de preferência com um sorriso na cara. Nesta edição apresentamos na área de inovação uma estratégia para o tele-trabalho e noutro artigo o seu enquadramento legal. Ao nível global reforçámos a nossa cobertura sobre o continente africano, sem esquecer o que se passa ao nível dos outros países. Na guerra contra o vírus, todas as experiências são relevantes.
Na conjuntura desafiante que atravessamos todos temos que aprender a viver com o vírus. E de preferência com um sorriso na cara. Nesta edição apresentamos na área de inovação uma estratégia para o tele-trabalho e noutro artigo o seu enquadramento legal. Ao nível global reforçámos a nossa cobertura sobre o continente africano, sem esquecer o que se passa ao nível dos outros países. Na guerra contra o vírus, todas as experiências são relevantes.
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ÁFRICA ● O impacto<br />
da pandemia no continente<br />
ESTRATÉGIAS ● Países mais atingidos<br />
experimentam “novo normal”<br />
Nº 88 v <strong>Maio</strong> <strong>2020</strong> v 200Mt v 5 Edição Moçambique<br />
PANDEMIA<br />
COMO VIVER<br />
COM O VÍRUS<br />
Vamos ter de habituar-nos a viver com um<br />
vírus que condiciona a sociedade, paralisa<br />
a economia, atira milhares para o desemprego<br />
e reacende ao rubro tensões geopolíticas.<br />
O mundo do COVID-19 não é o mesmo onde<br />
vivíamos ainda há poucas semanas.<br />
Um dossier especial<br />
e exclusivo.<br />
INOVAÇÃO<br />
A resposta<br />
do<br />
teletrabalho
REVISTA MENSAL — ANO 7 — N O 88 — MAIO <strong>2020</strong><br />
TIRAGEM: 10 000 EXEMPLARES — CAPA: GETTY<br />
32<br />
APLICAÇÃO:<br />
Moçambique desenvolve<br />
tecnologia para combater<br />
a pandemia<br />
TECNOLOGIA<br />
32 Autodiagnóstico Os serviços de saúde e a empresa UX<br />
criaram uma ferramenta digital que é uma aliada na prevenção<br />
da epidemia<br />
ÁFRICA<br />
40 Impacto Ainda com poucos casos, o continente já se confronta com<br />
perdas económicas avultadas e uma mais que provável recessão<br />
48 Acção A União Africana propõe conjunto de acções aos<br />
Estados-membros para mitigar os efeitos da pandemia na economia<br />
50 Amigos Várias empresas e personalidades estão a dar apoio<br />
financeiro ao combate à COVID-19 em África<br />
GLOBAL<br />
58 Contenção A estratégia mais utilizada pelos governos para conter<br />
o contágio é o confinamento da população<br />
61 China Adoptou a quarentena mais agressiva com recurso ao<br />
reconhecimento facial generalizado e aplicações assentes em<br />
inteligência artificial<br />
50<br />
BILL GATES:<br />
A sua fundação<br />
ajuda África<br />
a combater<br />
a COVID-19<br />
D.R.<br />
62 Rastreio O sucesso de Taiwan e da Coreia do Sul no combate<br />
ao vírus assenta no contact tracing<br />
64 Devastado O continente europeu foi severamente castigado pela<br />
pandemia, que deixa um rasto assustador em número de infectados<br />
e de mortos<br />
65 Testar Pequeno país europeu, a Islândia obteve bons resultados<br />
com a realização de testes gratuitos em larga escala<br />
66 Confiança A Alemanha é o único grande país do “Velho<br />
Continente” a enfrentar a pandemia com êxito<br />
DR<br />
70<br />
DONALD TRUMP:<br />
O Presidente dos<br />
EUA questiona<br />
o papel da China<br />
na origem do surto<br />
68 Contraste Apesar da vizinhança, Portugal consegue resultados<br />
muito melhores que Espanha no combate ao vírus<br />
69 Estados Unidos A COVID-19 implodiu em Nova Iorque com<br />
uma violência brutal, tornando-a a cidade do mundo mais atingida<br />
7O Tensão Os Estados Unidos e outros países querem investigar<br />
a origem do surto na China e aumenta a tensão internacional<br />
71 Maratona Só mais à frente se poderá avaliar se os países<br />
que evitaram o confinamento fizeram a opção correcta<br />
ESPECIAL<br />
72 Teletrabalho Com a pandemia, o recurso ao trabalho remoto<br />
inovou o funcionamento das organizações<br />
D.R.<br />
SECÇÕES<br />
Editorial 6<br />
Primeiro Lugar 8<br />
Grandes Números 14<br />
Bazarketing 38<br />
Oil&Gas 56<br />
Exame Final 82<br />
4 | Exame Moçambique
CAPA 1<br />
16 Pagar a crise<br />
Como serão financiados os estragos causados<br />
pela pandemia? Qual o rombo nas contas públicas e<br />
quanto haverá a receber de apoios e linhas de crédito<br />
disponibilizados por instituições internacionais?<br />
CAPA 2<br />
22 Economia adapta-se<br />
As empresas estão a reagir, adaptam-se e adoptam<br />
normas sanitárias e novos métodos, como o<br />
teletrabalho. A COVID-19 atinge em cheio o sector<br />
do turismo. A esperança reside na agricultura.<br />
GETTY
CARTADODIRECTOR<br />
IRIS DE BRITO<br />
DIRECTORA<br />
DECISÕES LOCAIS,<br />
EFEITOS GLOBAIS<br />
A<br />
boa governação e inerentes práticas governativas<br />
passam por uma prudente alocação<br />
dos recursos disponíveis, cujo racional<br />
deve acautelar a ocorrência de eventos e fenómenos<br />
inesperados, assim como os impactos<br />
que tais eventos possam causar no bem-estar<br />
das populações, não somente aos níveis económico<br />
e social, mas também em termos de saúde NEM AS<br />
pública e respectivos sistemas. Num mundo globalizado<br />
e com uma economia interdependente,<br />
ECONOMIAS COM<br />
tais impactos são afectados pelos fenómenos de MAIS RECURSOS<br />
spill over e spill into face às complexas redes económicas,<br />
políticas e sociais que tendem a esta-<br />
SE PREPARARAM<br />
DEVIDAMENTE<br />
belecer-se entre os diferentes países. Pelo que<br />
as decisões locais podem, rapidamente, assumir<br />
efeitos globais.<br />
PANDÉMICO<br />
PARA UM CENÁRIO<br />
A resposta europeia à pandemia causada pelo<br />
novo coronavírus demonstra não só a falta dos necessários meios de emergência<br />
para uma situação com este nível de exigência, mas também a ausência da<br />
necessária coesão para uma acção eficaz que se traduz (i) na falta de coordenação<br />
das políticas de saúde pública e (ii) na falta de solidariedade entre os países<br />
— numa Europa em franca desunião numa altura em que uma liderança<br />
sólida e coesa não só é necessária como também fundamental para garantir<br />
a superação da crise que advirá deste cenário global.<br />
Na Ásia é reconhecido que diversos países se encontram, ainda, numa fase<br />
embrionária de criação de sistemas de saúde pública, e Li Bin, vice-ministro<br />
da Comissão Nacional de Saúde da China, foi peremptório ao afirmar a necessidade<br />
de um maior investimento na área da saúde.<br />
Nos EUA, a pressão constante para a redução de impostos e do papel do<br />
Estado na economia, originou um sistema de saúde retalhado, em que os seguros<br />
de saúde são fundamentais no acesso aos serviços básicos de saúde num<br />
sistema em que os hospitais são, mormente, orientados para o lucro. Ainda<br />
assim, segundo Rick Pollack, CEO da Associação Americana de Hospitais,<br />
em 2019 a assistência gratuita às populações mais vulneráveis foi de 38 mil<br />
milhões de dólares. No Hemisfério Sul, Moçambique e outros países sofrerão<br />
as pesadas consequências de uma pandemia para a qual não estão devidamente<br />
preparados devido à escassez de recursos, mas que todos os esforços implementam<br />
para travar a sua propagação. No entanto, nem sequer as economias<br />
com mais recursos se prepararam devidamente para um cenário pandémico.<br />
E porque as decisões locais têm efeitos globais, os países em desenvolvimento<br />
têm toda a legitimidade de exigir aos países desenvolvidos que façam<br />
mais para travar as próximas. b<br />
Edifício Rovuma, Rua da Sé, n.º 114,<br />
Escritório 109<br />
MAPUTO, MOÇAMBIQUE<br />
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Directora: Iris de Brito<br />
Director Executivo: Luis Faria<br />
(luis.faria@luisfaria.com)<br />
Arte: Pedro Bénard<br />
Colaboradores Regulares:<br />
Valdo Mlhongo,<br />
Thiago Fonseca (crónica),<br />
Edilson Tomás (fotografia),<br />
Colaboraram nesta edição:<br />
Almerinda Romeira, Luís Fonseca, Ricardo David<br />
Lopes, Paula Duarte Rocha.<br />
Direitos Internacionais:<br />
<strong>EXAME</strong> Brasil (texto e imagens),<br />
AFP, Graphic News e IStockPhoto<br />
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Maputo<br />
A revista <strong>EXAME</strong> (Moçambique) é um<br />
licenciamento internacional da revista <strong>EXAME</strong><br />
(Brasil), propriedade da Editora Abril.<br />
Sociedade Moçambicana<br />
de Edições, Lda.<br />
Director-Geral<br />
Miguel Lemos<br />
Conselho de gerência<br />
Luís Penha e Costa<br />
Rui Borges<br />
António Domingues<br />
6 | Exame Moçambique
PRIMEIRO<br />
LUGAR<br />
MOÇAMBIQUE ESSENCIAL. PEQUENAS NOTÍCIAS SOBRE UM GRANDE PAÍS<br />
RELATÓRIO: A Economist Intelligence Unit reviu<br />
as suas projecções para a economia moçambicana<br />
D.R.<br />
PROJECÇÃO<br />
PANDEMIA QUEBRA CRESCIMENTO<br />
Os principais indicadores de evolução da economia moçambicana<br />
deverão deteriorar-se este ano, em resultado do impacto<br />
da pandemia do novo coronavírus na procura global de matérias-<br />
-primas e também da menor produção de carvão, de acordo com<br />
o último relatório da Economist Intelligence Unit (EIU), a unidade<br />
de análise do grupo da revista The Economist. O crescimento será<br />
negativo (menos 2,4%, quando, em 2019, também segundo a EIU,<br />
terá ficado em 1,9%), a inflação média vai subir dos 2,8%, registados<br />
o ano passado, para 6,8%, o défice orçamental acentuar-se-<br />
-á, de menos 8,4% do PIB para menos 13,3%, registando o saldo<br />
da conta corrente um ligeiro agravamento (de menos 19,6% do PIB<br />
para menos 20,4%). O metical irá depreciar contra o dólar norte-<br />
-americano, passando do valor médio de 62,5 meticais por cada<br />
dólar, verificado em 2019, para 65,66 meticais por dólar, prosseguindo<br />
a desvalorização até 2023, ano em que recupera valor face<br />
à moeda norte-americana. As estimativas para a trajectória da taxa<br />
de juro são positivas para este ano e o próximo, descendo, em termos<br />
médios, dos 13,5% apurados em 2019 para 10% este ano e 9%<br />
no próximo, voltando depois a subir. As estimativas para o crescimento<br />
da economia contidas no relatório são mais favoráveis<br />
para 2021, com o produto interno bruto (PIB) a crescer 2%, projectando-se<br />
até 2024 uma evolução muito favorável e que o PIB<br />
atinja neste último ano uma variação de 9%. Já a inflação, após<br />
uma inversão na sua curva de crescimento em 2021, deverá continuar<br />
a subir até ao último ano considerado nas previsões da EIU,<br />
2024. O défice fiscal, após o revés deste ano, melhorará até ao final<br />
do período, estimando-se que venha a situar-se em menos 5,7% do<br />
PIB em 2024, uma trajectória que se fica a dever ao crescimento<br />
económico e às receitas do gás natural. A EIU não espera que o<br />
Fundo Monetário Internacional (FMI) forneça, além da assistência<br />
técnica, assistência financeira a Moçambique enquanto não se chegar<br />
a um desfecho sobre a questão da resolução das dívidas pendentes.<br />
O relatório exceptua a “facilidade de crédito”, no valor de<br />
118 milhões de dólares, aberta em Abril de 2019, na sequência da<br />
devastação causada pelos ciclones Idai e Kenneth, e admite a concessão<br />
de financiamentos de emergência em resposta ao surto da<br />
COVID-19. A EIU acredita que o acesso limitado ao financiamento<br />
externo levará o governo a efectuar reformas e a privatizar activos<br />
estatais, embora a prioridade de mitigar a epidemia abrande<br />
o ritmo das reformas este ano.<br />
8 | Exame Moçambique
Em palavras simples, digo: vamos ficar em casa.<br />
Filipe Nyusi, Presidente da República.<br />
COVID-19<br />
VALE ENTREGA ATOMIZADORES<br />
A Vale ofereceu às autoridades de Tete<br />
e Moatize atomizadores que estão já<br />
a ser utilizados na desinfecção das<br />
vias públicas, mercados e transportes<br />
colectivos. A empresa pretende,<br />
desta forma, ajudar na prevenção da<br />
pandemia do novo coronavírus junto<br />
das comunidades, impedindo a propagação<br />
da doença. De acordo com o<br />
comunicado divulgado pela empresa,<br />
“o objectivo é prevenir o contacto com<br />
eventuais agentes infecciosos, impedindo<br />
o contágio e dando, ao mesmo<br />
tempo, confiança às pessoas”. Além dos<br />
atomizadores, a Vale ofereceu ainda<br />
materiais de higiene pública que estão<br />
a servir as populações. A entrega dos<br />
equipamentos às autoridades de Tete e<br />
Moatize insere-se no âmbito do memorando<br />
de entendimento que a empresa<br />
assinou com o governo moçambicano e<br />
que prevê ajuda no valor de 2 milhões<br />
de dólares americanos para combater<br />
a COVID-19. Em causa está a doação<br />
de diverso equipamento hospitalar e<br />
material de prevenção e protecção individual<br />
para os profissionais de saúde.<br />
Neste vasto pacote de ajuda humanitária<br />
que irá ser distribuído em várias<br />
províncias do país, serão também disponibilizados<br />
80 mil testes rápidos.<br />
O comunicado salienta que “desde<br />
que se iniciou o surto de pneumonia<br />
do novo coronavírus COVID-19, a Vale<br />
adoptou de forma proactiva todas as<br />
medidas de prevenção, no sentido de<br />
garantir a segurança dos seus colaboradores<br />
e comunidades onde opera”.<br />
Março<br />
66,37<br />
Março<br />
1,60<br />
Março<br />
23,36<br />
SALA DE<br />
MERCADOS<br />
MOEDA<br />
(Meticais por USD)<br />
-2%<br />
GÁS NATURAL<br />
(USD/MMBtu)*<br />
+21%<br />
CRUDE<br />
(USD/barril)<br />
-41%<br />
CARVÃO DE COQUE<br />
(USD/ton.)<br />
Abril<br />
67,46<br />
Abril<br />
1,94<br />
Abril<br />
13,78<br />
DESINFECÇÃO: A Vale ofereceu atomizadores que já estão a ser utilizados nas vias<br />
públicas, mercados e transportes colectivos<br />
Março<br />
139,89<br />
-18%<br />
MILHO<br />
(USD/Bushel)**<br />
Abril<br />
115,01<br />
Março<br />
343,50<br />
D.R.<br />
-5%<br />
Abril<br />
326,00<br />
Março<br />
1572,00<br />
OURO<br />
(USD/t oz)***<br />
+11%<br />
Abril<br />
1738,30<br />
COTAÇÕES A 22/03/<strong>2020</strong> E A 23/04/<strong>2020</strong><br />
* MMBtu = milhões de British Thermal Unit<br />
(medida da capacidade térmica)<br />
** 1 bushel de milho = 25,4 Kg<br />
*** t oz = onças troy = 31,21 g.<br />
FONTES: BM, Bloomberg, CME Group.<br />
D.R.<br />
maio <strong>2020</strong> | 9
PRIMEIRO LUGAR<br />
IMPACTO<br />
ÁFRICA SUBSARIANA<br />
PRECISA DE MAIS 75 MIL<br />
MILHÕES<br />
Os fundos necessários para a África Subsariana<br />
enfrentar o impacto da pandemia do novo<br />
coronavírus poderão aumentar 75 mil milhões<br />
de dólares, estima o banco Goldman Sachs.<br />
“Possivelmente, o impacto mais severo da crise<br />
será nos já sobrecarregados saldos orçamentais”,<br />
referiram os economistas Dylan Smith e<br />
Andrew Matheny, do banco, numa nota citada<br />
pela Bloomberg. A nota refere que “os défices<br />
orçamentais vão provavelmente aumentar<br />
numa média de cerca de 3,5%”, com alguns<br />
países a alcançarem os dois dígitos, “antes de<br />
qualquer alívio para suavizar os efeitos económicos<br />
da ‘corona-crise’”. Contudo, os dois<br />
economistas assinalam que se medidas como<br />
cortes orçamentais estiverem incluídas, o défice<br />
financeiro poderá acabar por ser maior. A nota<br />
acrescenta que o encerramento das fronteiras<br />
para a contenção do novo coronavírus e<br />
a redução das receitas do turismo representam<br />
uma combinação suficiente para provocar<br />
a primeira recessão anual da região desde<br />
1991. A previsão é semelhante à do Banco<br />
Mundial, que prevê uma quebra entre 2,1%<br />
e 5,1%. A Goldman estima que as economias<br />
de Angola e Zâmbia podem ser as mais afectadas,<br />
com recessões na ordem dos 9% este<br />
ano. Nos casos da África do Sul e Nigéria, as<br />
quebras deverão situar-se nos 6% e 4%, respectivamente.<br />
Gana, Moçambique e Senegal<br />
também poderão apresentar uma diminuição<br />
do produto interno bruto.<br />
RECESSÃO: O Goldman Sachs prevê a primeira<br />
contracção da economia africana<br />
D.R.<br />
MONTEPUEZ RUBY MINING:<br />
A mineradora é das maiores contribuintes para os cofres do Estado<br />
RECEITA FISCAL<br />
MRM É SEGUNDA CONTRIBUINTE NA MINERAÇÃO<br />
A Montepuez Ruby Mining (MRM) ocupa a posição da segunda empresa do sector<br />
mineiro que mais pagou ao Estado moçambicano, consecutivamente, nos anos<br />
de 2017 e 2018, indica o 8.º relatório da Iniciativa de Transparência na Indústria<br />
Extractiva (ITIE), citado pelo Macauhub. Segundo o documento, a MRM contribuiu,<br />
em 2017, com 2,06 mil milhões de meticais, e em 2018 com 2,3 mil milhões<br />
de meticais, totalizando cerca de 4,5 mil milhões de meticais entregues ao Estado<br />
moçambicano, segundo os dados reconciliados de todos os pagamentos feitos<br />
pela empresa nestes dois anos e oficialmente confirmados pelo Estado. Aumentaram<br />
as contribuições da MRM e, ao mesmo tempo, aumentaram os ganhos do<br />
Estado vindos da indústria extractiva, tendo a contribuição deste sector para o produto<br />
interno bruto sido de 6,86% e 7,35%, respectivamente, em 2017 e 2018. Para<br />
esta pesquisa, que é a base do relatório da ITIE, foram seleccionadas 29 empresas<br />
do sector da indústria extractiva, com contabilidade organizada e auditada,<br />
sendo 11 do sector de hidrocarbonetos e 18 do sector mineiro. Destaque-se que a<br />
posição de segundo maior contribuinte é referente ao país inteiro, pois, relativamente<br />
à província de Cabo Delgado, a MRM domina as contribuições, tendo sido<br />
distinguida de 2014 a 2018 como o maior contribuinte local. A realidade este ano<br />
deverá, no entanto, ser bem diferente, tendo o presidente-executivo da Gemfields,<br />
Sean Gilbertson, afirmado em Abril que o desempenho financeiro da empresa<br />
será este ano profundamente afectado pela pandemia de COVID-19, que obrigou<br />
à suspensão dos leilões de pedras preciosas responsáveis por 93% da facturação<br />
da empresa em 2019. A Montepuez Ruby Mining é detida em 75% pela<br />
Gemfields, empresa com sede em Guernsey, e nos restantes 25% pela empresa<br />
moçambicana Mwiriti Limitada.<br />
D.R.<br />
10 | Exame Moçambique
PRIMEIRO LUGAR<br />
NOSSO BANCO<br />
BANCO DE MOÇAMBIQUE<br />
PRORROGA PRAZO DE LIQUIDAÇÃO<br />
O Banco de Moçambique decidiu prorrogar, a título excepcional, o prazo de liquidação<br />
do Nosso Banco — Sociedade em Liquidação por um período de 90 dias a<br />
contar da data do fim do estado de emergência (30 de Abril). A medida, segundo<br />
um comunicado do banco central, foi tomada tendo em conta que o processo de<br />
liquidação da instituição financeira se encontra na sua fase final, que as medidas<br />
decorrentes do estado de emergência estão a condicionar o normal funcionamento<br />
das instituições públicas e privadas e que se mostra recomendável preservar<br />
os interesses dos credores. O Nosso Banco foi dissolvido por despacho<br />
do governador do Banco de Moçambique com data de 11 de Novembro de 2016,<br />
devido à degradação da situação financeira da instituição, afectando os principais<br />
indicadores prudenciais e de rendibilidade. O Nosso Banco nasceu em 1999<br />
como Banco Mercantil e de Investimentos (BMI), tendo alterado a sua designação<br />
em 2015. Apesar de se tratar de uma entidade privada, a maioria do capital<br />
pertence ao Instituto Nacional de Segurança Social (77,2%), sendo também<br />
accionistas a empresa pública Electricidade de Moçambique (16,13%) e a SPI —<br />
Gestão de Investimentos, com 4,09%.<br />
<strong>EXAME</strong><br />
MAIS DE 70 MIL VISUALIZAÇÕES<br />
A pandemia que atinge o mundo confere à comunicação social a responsabilidade<br />
de serviço público. Face à gravidade da situação e à avalanche de informações,<br />
nem sempre verdadeiras, que circulam sobre a epidemia, sobretudo nas<br />
redes sociais, a imprensa tem a obrigação de disponibilizar ao público informação<br />
relevante e rigorosa. Disponibilizámos a nossa anterior edição, e o mesmo<br />
fazemos com esta, gratuitamente on-line e adoptámos uma funcionalidade<br />
moderna e amigável para facilitar a consulta do utilizador. Já registámos mais<br />
de 70 mil visualizações, um número muito expressivo, em termos de audiência,<br />
em Moçambique. Agradecemos a confiança dos nossos leitores e o seu interesse<br />
numa edição feita “a quente” e na qual procurámos contar como se alastrou o<br />
vírus (em África já afecta 53 países) e fazer contas sobre o inesperado, rápido e<br />
brutal impacto que teve na economia global. Continuamos, nesta edição, a dar<br />
uma cobertura quase exclusiva à pandemia que parou parte do mundo, e com a<br />
qual teremos de coabitar enquanto não surgir vacina ou remédio eficaz.<br />
GÁS<br />
MOTA-ENGIL OBTÉM<br />
CONTRATO<br />
A Mota-Engil África assinou, no âmbito de uma<br />
parceria paritária com a BESIX, uma empresa<br />
belga especializada em trabalhos marítimos,<br />
um contrato no âmbito do projecto de extracção<br />
de gás natural em Moçambique, na província<br />
de Cabo Delgado, revela um comunicado<br />
do grupo português. O projecto, cujo cliente é<br />
a CCS JV, uma parceria entre os grupos norte-<br />
-americano McDermott, italiano Saipem e<br />
japonês Chiyoda, inclui a construção de uma<br />
ponte-cais e de uma plataforma de descarga<br />
no valor total de cerca de 365 milhões de dólares.<br />
As obras terão a duração de 32 meses, iniciando-se<br />
no primeiro semestre de <strong>2020</strong>, sendo<br />
este o primeiro contrato concedido pela CCS JV<br />
no âmbito do projecto de exploração do bloco<br />
Área 1 da bacia do Rovuma, Norte de Moçambique,<br />
liderado e operado pelo grupo francês<br />
Total. A CCS JV assinou em Junho de 2019 um<br />
contrato com o grupo Anadarko Petroleum Corporation<br />
(entretanto comprado pelo grupo Occidental<br />
Petroleum, que vendeu os interesses em<br />
África ao grupo Total) para o fornecimento de<br />
serviços no projecto de gás natural Área 1, no<br />
Norte de Moçambique. O bloco Área 1 é operado<br />
pelo grupo Total, com uma participação<br />
de 26,5%, a ENH Rovuma Área Um, subsidiária<br />
da Empresa Nacional de Hidrocarbonetos,<br />
com 15%, Mitsui E&P Mozambique Area1 Ltd.<br />
(20%), ONGC Videsh Ltd. (10%), Beas Rovuma<br />
Energy Mozambique Limited (10%), BPRL Ventures<br />
Mozambique B.V. (10%) e PTTEP Mozambique<br />
Area 1 Limited (8,5%).<br />
LNG: A portuguesa Mota Engil e a belga BESIX<br />
ganharam contrato de construção na Área 1<br />
AUDIÊNCIA:<br />
A última <strong>EXAME</strong> superou<br />
os 70 mil leitores<br />
D.R.<br />
12 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 13
GRANDES<br />
NÚMEROS<br />
PARA SABER LER OS SINAIS DE UMA ECONOMIA EM MUDANÇA<br />
COVID-19<br />
O GRANDE<br />
CONFINAMENTO<br />
A COVID-19 causou impactos inimagináveis em todos os sectores de<br />
actividade, revelando as fragilidades da globalização e dos modelos<br />
económicos e sociais que, há dois meses, se aceitava que conduziam<br />
a um mundo mais próspero. A verdade é que os excessos na utilização<br />
dos recursos naturais, com efeito negativo nos próprios mercados,<br />
como é o caso do petróleo, os danos ambientais causados, precisamente<br />
em resultado do abuso na utilização dos recursos, o alongamento<br />
das cadeias de valor e a subestimação dos equipamentos<br />
sociais (nomeadamente na área da saúde) foram fortemente questionados<br />
pela pandemia. Esta trouxe ao de cima vulnerabilidades agudas<br />
do que, até há muito pouco tempo, se tomava por normal. A sua<br />
expressão numérica sobre a economia e a sociedade é avassaladora.<br />
Tomemos alguns exemplos da expressão da paralisação provocada,<br />
até agora, pelo coronavírus e das verbas avançadas para tentar evitar<br />
a severa depressão provocada pela pandemia, já baptizada como<br />
o Grande Confinamento:<br />
66%<br />
do PIB mundial está paralisado<br />
5%<br />
é a queda que os países do G20<br />
(mais desenvolvidos) registarão no seu PIB<br />
95% 60%<br />
do transporte aéreo está em terra<br />
80% 30%<br />
do transporte terrestre<br />
desapareceu das estradas<br />
das fábricas<br />
encontram-se paradas<br />
foi quanto caíram os índices<br />
bolsistas europeus desde<br />
o início do ano<br />
14 | Exame Moçambique
Impressiona-nos a forma com o mundo se uniu neste combate.<br />
Bill Gates, fundador da Microsoft.<br />
23%<br />
foi quanto caiu o Dow<br />
Jones em Wall Street<br />
desde o início do ano<br />
13%<br />
foi quanto caiu<br />
o preço do gás<br />
natural desde Janeiro<br />
50% 70%<br />
foi a queda do valor<br />
das acções da Renault,<br />
da Daimler e da Ford<br />
foi a queda do preço<br />
do petróleo tipo Brent<br />
desde o início do ano<br />
4,5 mil milhões de pessoas em 110 países, ou territórios, foram<br />
confinadas, 195 milhões de pessoas podem ficar sem emprego<br />
no mundo devido à pandemia,5 triliões de dólares serão<br />
desembolsados pelos países do G20 para evitar a recessão<br />
MENOS POLUIÇÃO<br />
Cardumes de peixes circulam nas águas de Veneza,<br />
o ar ficou mais respirável em Nova Iorque e noutras<br />
grandes metrópoles, o manto de dióxido de azoto<br />
que cobre a China abriu-se. A redução do tráfego<br />
automóvel, das viagens aéreas e da poluição industrial,<br />
das centrais a carvão e da actividade industrial<br />
tornou a atmosfera menos poluída e o céu mais límpido.<br />
Imagens do satélite Sentinel-5P mostram como<br />
os níveis de poluição do ar com dióxido de nitrogénio<br />
diminuíram em França e na Itália. Na China,<br />
de acordo com a Carbon Brief, as emissões de dióxido<br />
de carbono diminuíram 25% após o Novo Ano<br />
Chinês. Nos Estados Unidos, um estudo da Universidade<br />
de Columbia apurou que as emissões de<br />
monóxido de carbono sobre Manhattan caíram mais<br />
de 50% abaixo dos níveis normais. A nível mundial,<br />
as emissões de CO2 podem chegar a uma redução<br />
de 7% este ano. Menor emissão de gases com efeitos<br />
estufa? O fenómeno só deverá durar enquanto durar<br />
o confinamento e tem um reverso com o aumento<br />
do lixo hospitalar.<br />
7%<br />
pode ser a redução<br />
nas emissões de CO2<br />
este ano<br />
maio <strong>2020</strong> | 15
CAPA CRISE FINANCIAMENTO<br />
COVID-19:<br />
As autoridades preparam-se<br />
para os efeitos da pandemia<br />
na economia<br />
PREPAREM-SE PARA<br />
CONSEQUÊNCIAS<br />
“SEVERAS”<br />
Governo e Banco de Moçambique alertam para o duro impacto da COVID-19 na economia<br />
moçambicana. Parceiros alinham resposta a pedido de 700 milhões de dólares e há alertas<br />
para a necessidade de fazer com que este dinheiro proteja uma população vulnerável<br />
e dependente da economia informal<br />
LUÍS FONSECA *<br />
16 | Exame Moçambique
GETTY<br />
D<br />
epois dos ciclones de 2019, Moçambique<br />
prepara-se para enfrentar uma tempestade<br />
global, desta vez com epicentro<br />
num vírus que ameaça deixar toda a<br />
economia de máscara posta durante<br />
muito tempo. Moçambique não será excepção e<br />
pode até estar especialmente vulnerável, segundo<br />
a análise do governo e do banco central. Então,<br />
qual o ponto de situação? “O impacto da pandemia<br />
na economia já é grave e prevê-se que os custos<br />
humanos cresçam significativamente”, lê-se<br />
na carta em que o governo moçambicano pediu<br />
ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI),<br />
a 17 de Abril. “Há um declínio dramático na produção<br />
da indústria extractiva, na exportação, e<br />
há disrupções nos sectores industrial, de serviços,<br />
transportes e comunicações.” A carta serviu<br />
para justificar o pedido de 700 milhões de dólares<br />
a parceiros internacionais, feito numa reunião em<br />
Maputo, a 23 de Março. São os milhões necessários<br />
para cobrir o buraco fiscal (245 milhões) provocado<br />
pela pandemia no Orçamento de Estado<br />
(OE) de <strong>2020</strong>, bem como para financiar a saúde<br />
(109 milhões), dar apoios às pequenas empresas<br />
(157 milhões) e aos mais pobres (157 milhões).<br />
O Comité de Política Monetária (CPMO) do<br />
Banco de Moçambique debruçou-se sobre o assunto<br />
a 16 de Abril, já em pleno estado de emergência<br />
em Moçambique e num mundo com a economia<br />
em ponto morto. Em suma, o órgão concluiu que<br />
“as perspectivas de crescimento económico para<br />
<strong>2020</strong> deterioram-se e os esforços de recuperação<br />
pós-ciclones retraem-se”. Assim, o CPMO prevê<br />
que “as consequências económicas da materialização<br />
da COVID-19 sejam severas”. Até que ponto?<br />
Ainda é incerto, mas o adjectivo escolhido pelo<br />
Banco de Moçambique permite que todos se preparem.<br />
A severidade espreita “num cenário em que<br />
a economia moçambicana já se encontra debilitada<br />
em virtude dos efeitos dos ciclones Idai e Kenneth<br />
e da instabilidade militar nas zonas Norte e Centro<br />
do país”, destaca.<br />
Ao todo, a contracção abarca “cerca de 58% do<br />
produto interno bruto (PIB)”, segundo cálculos<br />
do banco central. As perspectivas de um bom<br />
desempenho na agricultura, sector com um peso<br />
médio de 25% no PIB, “poderão não ser suficientes<br />
para amortecer os efeitos negativos nos restantes<br />
sectores da economia”.<br />
O Banco de Moçambique tem outra preocupação<br />
acrescida: “as elevadas necessidades da economia<br />
poderão implicar maior pressão sobre a despesa<br />
pública, num contexto de contracção acentuada<br />
da receita”. Desde a sessão do CPMO de Fevereiro,<br />
a dívida pública interna já vinha aumentando.<br />
Excluindo contratos de mútuo e de locação<br />
e as responsabilidades em mora, a dívida pública<br />
interna “aumentou de 155 256 milhões para 160 756<br />
milhões de meticais, reflectindo, essencialmente,<br />
a emissão de Obrigações do Tesouro”.<br />
NESTE CENÁRIO, O QUE É POSSÍVEL FAZER?<br />
Em Março, a inflação anual de Moçambique desacelerou<br />
para 3,09%, após ter ficado em 3,55% no<br />
mês anterior. Uma tendência que se deverá manter<br />
devido ao “declínio acentuado da procura interna”.<br />
Isto numa altura em que as reservas internacionais<br />
do país, no montante de cerca de 3900 milhões de<br />
dólares, se situam em níveis confortáveis para cobrir<br />
mais de seis meses de importações. O CPMO decidiu<br />
assim uma redução expressiva da taxa de juro<br />
de política monetária (taxa MIMO), em 150 pontos<br />
base (pb), para 11,25%. Decidiu igualmente reduzir<br />
as taxas da Facilidade Permanente de Depósitos<br />
(FPD) e da Facilidade Permanente de Cedência<br />
(FPC) em 150 pb, para 8,25% e 14,25%, respectivamente.<br />
Os coeficientes de Reservas Obrigatórias<br />
(RO) para os passivos em moeda nacional e<br />
maio <strong>2020</strong> | 17
CAPA CRISE FINANCIAMENTO<br />
“O IMPACTO DA PANDEMIA NA<br />
ECONOMIA JÁ É GRAVE E PREVÊ-<br />
-SE QUE OS CUSTOS HUMANOS<br />
CRESÇAM SIGNIFICATIVAMENTE”<br />
em moeda estrangeira já tinham sido reduzidos<br />
em Março para 11,5% e 34,5%, “visando libertar<br />
liquidez no sistema bancário”. Já em Março,<br />
o BM tinha decidido introduzir linhas de crédito<br />
em moeda estrangeira para os participantes do<br />
mercado cambial interbancário, no montante de<br />
500 milhões de dólares, por um período de nove<br />
meses — a par da dispensa de constituição de provisões<br />
adicionais para créditos de cobrança duvidosa<br />
pelos bancos comerciais, no caso de renegociação<br />
com clientes afectados pela COVID-19. A próxima<br />
reunião ordinária do CPMO está agendada para<br />
17 de Junho, mas o órgão admite tomar mais medidas<br />
antes, se necessário.<br />
E UMA BOLSA FAMÍLIA<br />
PARA A MAIORIA INFORMAL?<br />
A redução da taxa MIMO e de outras taxas<br />
de referência da política monetária mereceu o<br />
aplauso do Centro para a Democracia e Desenvolvimento<br />
(CDD), uma organização não-governamental<br />
(ONG) moçambicana que tem exercido<br />
um papel de watchdog das políticas públicas do<br />
país. Ao mesmo tempo, o CDD considera acertado<br />
o acordo alcançado em sede de concertação<br />
social (governo, trabalhadores e patrões) para<br />
o “congelamento” dos salários, em alternativa<br />
à suspensão dos mesmos, como proposto pela<br />
Confederação das Associações Económicas de<br />
Moçambique (CTA) — que tinha sugerido que<br />
o Estado os assumisse com o apoio de parceiros.<br />
Congelar salários “é uma solução anormal, mas<br />
completamente compreensível perante a situação<br />
atípica que afecta Moçambique e o mundo”, referiu<br />
a Organização dos Trabalhadores de Moçambique<br />
(OTM), uma central sindical.<br />
No entanto, as medidas ainda não chegam,<br />
refere o CDD. “O governo deve apoiar financeiramente<br />
as empresas (principalmente as pequenas e<br />
médias empresas) e criar uma ‘bolsa família’ para<br />
dar algum poder de compra às famílias moçambicanas<br />
que se dedicam a actividades económicas<br />
informais. A organização coloca a ênfase na<br />
necessidade. É que estes são os agregados financeiramente<br />
mais vulneráreis e a bolsa família será<br />
PROMESSAS DE TRANSPARÊNCIA<br />
O anúncio de apoio do FMI leva ainda em linha de conta as promessas<br />
do governo de publicar auditorias sobre a utilização das verbas.<br />
O documento confia ainda nos progressos do Banco de Moçambique<br />
em melhorar as capacidades de gestão e auditoria, de acordo com recomendações<br />
feitas por uma missão em Dezembro de 2019. Os compromissos<br />
contrastam com o passado recente, ensombrado pelas dívidas<br />
ocultas do Estado de cerca de 2 mil milhões de euros, que levaram o<br />
FMI e doadores a cortar a modalidade de apoio directo ao OE em 2016.<br />
“Garantimos estabilidade macroeconómica, desenvolver crescimento<br />
inclusivo, manter a dívida pública sustentável, eliminar o défice fiscal<br />
primário (após apoios) até 2023. Vamos realizar uma auditoria independente<br />
sobre a despesa na mitigação da crise e aquisições (procurement)<br />
relacionadas, auditoria que será publicada assim que a crise<br />
se desvaneça”, lê-se na carta do governo ao FMI.<br />
Milhões USD<br />
% do PIB<br />
Necessidades Fiscais 700 4,7<br />
Perda de Receita 267 1,8<br />
Imposto de rendimento 126 0,9<br />
IVA, direitos importação 141 1<br />
Despesa no Sector da Saúde 119 0,8<br />
Protecção Social 314 2,1<br />
Apoio às micro e PME 157 1,1<br />
Transferências para famílias de risco 157 1,1<br />
Fontes de Financiamento<br />
Apoio Orçamental 491 3,3<br />
Banco Mundial 100 0,7<br />
União Europeia 54 0,4<br />
FMI 337 2,3<br />
Facilidade de crédito 309 2,1<br />
Contenção da catástrofe 28 0,2<br />
Apoio a projectos<br />
Banco Mundial 70 0,5<br />
Banco de Desenvolvimento Islâmico 40 0,3<br />
Projecto Pró-Saúde 1 22 0,1<br />
Outras fontes 2 77 0,5<br />
1<br />
Irlanda, Canadá, Bélgica, Suíça, WB, WHO.<br />
2<br />
Não identificadas.<br />
Fonte: Investing.<br />
18 | Exame Moçambique
uma forma de assegurar que cumpram a ordem<br />
de distanciamento social.<br />
A Associação Moçambicana de Economistas também<br />
considera necessária alguma forma de protecção<br />
das famílias mais vulneráveis, num cenário<br />
em que prever o cumprimento do OE se torna um<br />
exercício difícil. “É um OE que surge numa situação<br />
de incerteza, num país que vem de uma crise<br />
e que tem muitas debilidades. Tudo isso somado<br />
torna a incerteza maior”, considera Naimo Faquirá,<br />
director-executivo da Associação Moçambicana de<br />
Economistas (AMECON). Se, por um lado, Naimo<br />
Faquirá defende que o Estado deve assegurar a protecção<br />
das famílias mais pobres, por outro reconhece<br />
que as restrições orçamentais vão impedir um<br />
apoio mais forte às áreas sociais. O líder da AME-<br />
CON considera imperiosa uma maior comparticipação<br />
e solidariedade, apontando, em particular,<br />
o dever de maior sacrifício por parte dos bancos,<br />
porque o sector financeiro é o que mais tem beneficiado<br />
em momentos de expansão da economia.<br />
* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique. b<br />
OS APOIOS AO ORÇAMENTO<br />
(em milhões USD)<br />
491<br />
Total<br />
DINHEIRO PARA PROJECTOS<br />
(em milhões USD)<br />
Fonte: FMI.<br />
70<br />
Banco Mundial<br />
100 54<br />
Banco Mundial União Europeia FMI<br />
40<br />
Banco de Desenvolvimento<br />
Islâmico<br />
22<br />
337<br />
Projecto Pró-Saúde<br />
“É UM OE QUE<br />
SURGE NUMA<br />
SITUAÇÃO DE<br />
INCERTEZA,<br />
NUM PAÍS QUE<br />
VEM DE UMA<br />
CRISE E QUE<br />
TEM MUITAS<br />
DEBILIDADES”<br />
PEDIDO DE AJUDA: 700<br />
MILHÕES DE DÓLARES<br />
O governo moçambicano viu já anunciada a<br />
atribuição de mais de metade da verba de<br />
que diz precisar para enfrentar a COVID-19.<br />
O Fundo Monetário Internacional (FMI) empresta<br />
309 milhões de dólares através da linha de crédito<br />
rápido (RCF) e 28 milhões de dólares numa<br />
linha para alívio e contenção de catástrofes.<br />
O fundo esclarece que “os recursos da RCF<br />
serão devidos só depois de a produção, exportação<br />
e receitas fiscais do gás natural liquefeito<br />
arrancarem”, o quê se prevê para 2022-2023,<br />
lê-se numa nota de rodapé do último relatório<br />
do fundo sobre Moçambique.<br />
Prevê-se que o Banco Mundial (BM) desembolse<br />
100 milhões de dólares e que a União Europeia<br />
(UE) desbloqueie 54 milhões de dólares<br />
para a resposta em <strong>2020</strong>. Além da ajuda orçamental,<br />
há 132 milhões de dólares em apoio a<br />
projectos, pelo Banco Mundial, Banco Islâmico<br />
de Desenvolvimento e parceiros da iniciativa<br />
Pró-Saúde. Haverá ainda 77 milhões de dólares<br />
(70 milhões de euros) de outras fontes.<br />
A UE já fez saber que o apoio a conceder deverá<br />
ascender a 110 milhões de euros em dois anos<br />
(<strong>2020</strong>-2021), mas sublinhou que não se trata de<br />
um regresso aos programas de apoio directo<br />
ao Orçamento de Estado, algo que “não está<br />
em cima da mesa” — apesar de admitir que<br />
o país vai beneficiar de dinheiro que, na prática,<br />
será entregue ao governo para tapar uma<br />
quebra fiscal no OE. O apoio que agora será<br />
entregue a Moçambique trata-se de uma resposta<br />
de emergência cujas modalidades concretas<br />
de execução “estão ainda em discussão”.<br />
O FMI considera que a dívida pública moçambicana<br />
“vai continuar em dificuldades, mas é<br />
sustentável em termos futuros”, mesmo após<br />
o impacto da pandemia de COVID-19. “A maior<br />
fatia dos empréstimos futuros e garantias<br />
estatais reflecte a participação do Estado nos<br />
projectos de grande dimensão de gás natural<br />
liquefeito (GNL). Apesar de algum atraso, os<br />
projectos vão avançar”, considera a instituição,<br />
prevendo o arranque em 2023, ao justificar<br />
a sua apreciação.
CAPA 1 CRISE FINANCIAMENTO<br />
ESTAMOS PREPARADOS?<br />
A <strong>EXAME</strong> Moçambique desafiou algumas figuras e instituições com a pergunta,<br />
na altura em que a Confederação das Associações Económicas (CTA) renovou alertas<br />
com dados actualizados<br />
LUÍS FONSECA<br />
“<br />
Não há esperança que alimente as<br />
nossas almas se o governo não<br />
for dotado de maior capacidade<br />
do que tem demonstrado até hoje<br />
para intervir, com acções concretas”,<br />
alerta João Figueiredo, PCA do Moza Banco. Há<br />
muito que fazer, diz: “famílias desempregadas, PME<br />
falidas ou à beira desta situação, grandes empresas<br />
em desespero, sector empresarial sob domínio do<br />
Estado falido ou destruído”. Considera que esta é a<br />
hora “em que os políticos e a burocracia precisam de<br />
se intensificar e garantir que a maioria dos cidadãos<br />
seja ajudada, fornecendo o essencial”. “A maioria<br />
dos países está a enfrentar esta crise com seriedade e<br />
serenidade. Também nós podemos fazê-lo”, acredita,<br />
considerando que pode ser “um tempo de oportunidade”.<br />
“Revejo-me nas teorias de que o mundo vai<br />
mudar”, acrescenta João Figueiredo. “Iremos assistir<br />
a um modelo económico muito menos assente<br />
no consumismo desenfreado e numa hierarquização<br />
muito assente na agricultura, saúde e tecnologia<br />
digital.” Neste novo mundo, a localização estratégica<br />
de Moçambique é importante: “Alavancada por um<br />
custo de mão-de-obra acessível, quando aliada a um<br />
investimento na sua formação e um regime fiscal atractivo,<br />
poderá posicionar-nos como palco alternativo<br />
para a deslocalização de muitas agro-indústrias cujo<br />
capital internacional está hoje posicionado na China.”<br />
Entretanto, a pandemia continua e “o governo terá<br />
de encontrar um balanço muito difícil” entre “segurança<br />
da saúde pública e a vida económica das populações,<br />
não vá o velho ditado imperar: não morremos<br />
da doença, mas morremos da cura”. E conclui: “Distanciamento<br />
social sim, confinamento não!”<br />
RESOLVER O PROBLEMA DE LIQUIDEZ<br />
“A instabilidade em Cabo Delgado, o adiamento do<br />
investimento da ExxonMobil, o lockdown (confinamento<br />
obrigatório) na África do Sul, a redução de<br />
preços das principais matérias-primas de exportação<br />
e as restrições de acesso aos mercados de financiamento<br />
aumentam significativamente os desafios<br />
macroeconómicos de Moçambique”, considera o<br />
Millennium Bim em resposta às questões colocadas<br />
pela <strong>EXAME</strong>. O ambiente externo é “adverso” e há<br />
uma “elevada dívida pública resultante do efeito de<br />
desaceleração do PIB e valorização do dólar, bem<br />
como redução do fluxo de investimento privado e<br />
comércio externo”.<br />
O banco destaca pela positiva o apoio de 309 milhões<br />
de dólares anunciado pelo FMI. Mas perspectiva<br />
“uma depreciação do metical devido à redução das<br />
receitas de exportação e as reservas internacionais<br />
do banco central deverão sofrer algum desgaste”,<br />
20 | Exame Moçambique
apontando para uma “elevada procura de importações<br />
(bens de consumo, medicamentos e combustíveis)”.<br />
Assim, o banco espera “uma ligeira aceleração<br />
da pressão inflacionária”.<br />
O Millennium Bim considera que a falta de liquidez<br />
é o principal problema, pelo que entre as medidas<br />
prioritárias destaca “moratórias de obrigações<br />
fiscais e encargos sociais”, “moratórias de crédito,<br />
para colmatar gaps (falhas) de tesouraria” — além de<br />
se introduzirem “planos alternativos de pagamento<br />
de dívidas financeiras, sem agravamento do custo<br />
de provisionamento e consumo de capital dos bancos<br />
comerciais, parte dessas medidas já implementadas<br />
pelo BdM”.<br />
MILHÕES PERDIDOS,<br />
ALERTAM EMPRESÁRIOS<br />
A Confederação das Associações Económicas de Moçambique<br />
(CTA) fez no final de Abril um balanço dos primeiros trinta dias do<br />
estado de emergência em Moçambique. Apesar de terem servido<br />
“para minimizar e conter a propagação da pandemia”, por outro lado<br />
trouxeram “impactos negativos no ambiente de negócios”. Estima-<br />
-se que o sector empresarial moçambicano registou perdas de facturação<br />
estimadas em cerca de 87 milhões de dólares. No período,<br />
“cerca de 1175 empresas, a nível nacional, suspenderam as suas actividades,<br />
afectando mais de 12 160 postos de trabalho”. Do total de<br />
empresas encerradas, 756 empresas são do sector de hotelaria e<br />
turismo e empregam um total de 5 mil trabalhadores. As empresas<br />
que ainda se mantêm em funcionamento reduziram o seu nível<br />
de actividade para menos de 25%. A CTA reitera a necessidade de<br />
adopção de “medidas excepcionais” para apoiar a tesouraria das<br />
empresas, tais como “o relaxamento de alguns custos operacionais,<br />
nomeadamente, a redução em 50% das facturas de água e energia<br />
e o adiamento de pagamento de impostos, bem como contribuições<br />
para a segurança social”.<br />
JOÃO FIGUEIREDO:<br />
O PCA do Moza Banco acredita que<br />
podemos enfrentar a crise com seriedade<br />
e serenidade<br />
AJUDAR O CONSUMO INTERNO<br />
“Depois da crise da dívida e dos ciclones, era esperado<br />
que <strong>2020</strong> fosse o ano da retoma e a rampa de<br />
lançamento para uma performance semelhante à da<br />
primeira metade da década passada”, refere Bernardo<br />
Aparício, membro da Comissão Executiva e director<br />
da Banca Corporativa e Investimentos, do Absa<br />
Bank Moçambique. Considera prioritário criar linhas<br />
de financiamento para apoio à economia, além das<br />
medidas já implementadas pelo banco central para<br />
financiamentos existentes. “Nesta altura, os bancos<br />
irão tendencialmente reduzir o seu apetite de risco<br />
para proteger o seu capital, tendo em conta que as<br />
perdas irão aumentar”, acrescenta, numa alusão aos<br />
resultados dos bancos globais no primeiro trimestre.<br />
A nível regional e global, “os governos estão a disponibilizar<br />
garantias aos bancos” para darem crédito<br />
à economia ou a determinados sectores, “similar ao<br />
que já acontece para alguns sectores em Moçambique,<br />
de forma a fazer fluir crédito à economia”.<br />
É IMPORTANTE NÃO PARAR<br />
O BCI realça que a situação em Moçambique beneficiou<br />
da “tempestiva tomada de medidas” para reduzir<br />
a propagação do contágio, permitindo “manter a<br />
economia a funcionar parcialmente, evitando-se, até<br />
ao momento, o lockdown total. Este facto é importante”,<br />
dado o peso da economia informal e do auto-<br />
-emprego. Olhando ao peso da dívida pública no PIB,<br />
“a capacidade de intervenção do Estado fica dependente<br />
da obtenção de novos apoios” ou da “suspensão<br />
por parte dos credores de pagamentos da dívida<br />
actual”. “Importa referir que o sector bancário está<br />
bem capitalizado e com liquidez, o que lhe permitirá<br />
suportar no curto prazo o impacto resultante<br />
deste choque económico”, realça a instituição. O BCI<br />
aplaude “tanto o Estado como o BdM”, porque “têm<br />
sido céleres na tomada de medidas”. O banco coloca<br />
entre as prioridades “apoiar a economia informal e<br />
os trabalhadores independentes”, apoiar a liquidez<br />
das empresas, igualmente através de moratórias,<br />
garantias ou “aceleração do pagamento de facturas<br />
aos pequenos fornecedores de serviços e bens<br />
ao Estado. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 21
CAPA 2 CRISE SECTORES<br />
INDÚSTRIA<br />
EM RISCO<br />
No sector industrial já há empresas<br />
paralisadas e milhares de empregos<br />
em risco. Para Rogério Samo Gudo,<br />
presidente da Associação Industrial<br />
de Moçambique, as medidas<br />
implementadas pelo governo são<br />
insuficientes para garantir o emprego<br />
e o funcionamento das empresas<br />
VALDO MLHONGO<br />
ROGÉRIO SAMO GUDO: O presidente da AIMO<br />
avisa que as empresas se debatem com problemas<br />
de tesouraria<br />
EDILSON TOMÁS<br />
Em tempos de isolamento social ditado<br />
pela COVID-19, Rogério Samo Gudo,<br />
presidente da Associação Industrial de<br />
Moçambique (AIMO), admite que o trabalho<br />
remoto é uma opção para o sector,<br />
mas avança que poucas empresas estão em condições<br />
de o fazer pois “o distanciamento social, para<br />
a sua eficiência e segurança, nas indústrias requer<br />
um conjunto de investimentos que poucas empresas<br />
industriais têm a capacidade de realizar devido ao<br />
custo de investimento associado”. Destaca ainda a<br />
“fraca capacidade de absorção das tecnologias que<br />
requererem capital humano preparado para tal”.<br />
Samo Gudo diz ainda que as indústrias se debatem<br />
com insuficiência de tesouraria para o pagamento<br />
“SE AS CONDIÇÕES CONTINUAREM<br />
A DETERIORAR-SE NÃO HAVERÁ<br />
OUTRA SAÍDA QUE NÃO O<br />
DESPEDIMENTO”<br />
dos compromissos, tanto com trabalhadores como<br />
com a banca, fornecedores e o fisco.<br />
Em que é que a nova situação (COVID-19)<br />
altera a actividade das empresas do sector<br />
industrial nas relações com o cliente e<br />
fornecedor?<br />
Ainda é cedo para conclusões, dado que são des-<br />
22 | Exame Moçambique
APESAR DA MITIGAÇÃO É<br />
INCALCULÁVEL O IMPACTO DA<br />
PANDEMIA NA NOSSA INDÚSTRIA<br />
conhecidos até onde irão os efeitos do impacto da<br />
COVID-19 na indústria no momento em quase todas<br />
as economias no mundo ainda se debatem com o<br />
combate à pandemia, sobretudo as que dominam o<br />
mercado global. No caso de Moçambique, em particular,<br />
podemos cogitar ou prever duas perspectivas,<br />
a negativa e a positiva. Por um lado, assistimos<br />
à paralisação da nossa indústria devido à COVID-<br />
-19, estando em risco milhares de empregos e a<br />
sua própria sobrevivência, num momento em que<br />
se acreditava que as sinergias entre os diferentes<br />
sectores industriais poderiam trazer uma economia<br />
de escala que viabilizasse o ressurgimento da<br />
indústria moçambicana. Apesar das medidas de<br />
mitigação, é hoje incalculável o impacto da pandemia<br />
na nossa indústria. Por outro lado, a adopção<br />
massiva de tecnologias de informação decorrentes<br />
das medidas de isolamento social permitem<br />
uma incubação tecnológica nos diversos sectores,<br />
o que vai certamente constituir uma oportunidade<br />
de inovação e evolução na indústria.<br />
O isolamento em que a economia moçambicana se<br />
encontra desperta até nos mais cépticos a importância<br />
da produção local, o que acredito ser um<br />
contributo para um pensamento mais consensual<br />
quanto ao desenvolvimento da produção local no<br />
pós-COVID-19.<br />
A questão de teletrabalho tem sido uma opção<br />
para as empresas do sector industrial nesta<br />
fase da COVID-19?<br />
É claramente uma opção para os grupos que podem<br />
trabalhar remotamente, como é o caso do pessoal<br />
das áreas de planificação, vendas/marketing<br />
e administrativas.<br />
Até que ponto esta opção pode interferir no<br />
nível de produtividade das empresas?<br />
O distanciamento social, para a sua eficiência e<br />
segurança, ao nível da indústria requer um conjunto<br />
de investimentos que poucas empresas têm<br />
capacidade para fazer devido ao custo do investimento<br />
associado e à fraca capacidade de absorção<br />
das tecnologias que requerem capital humano preparado,<br />
além de representar um novo processo de<br />
negócio que varia para cada tipo de indústria. Nos<br />
casos em que as empresas industriais já possuem<br />
AS MEDIDAS IMPLEMENTADAS<br />
SÃO INSUFICIENTES PARA A<br />
MANUTENÇÃO DO EMPREGO<br />
NA INDÚSTRIA<br />
sistemas de gestão de informação pode, em certos<br />
casos, representar uma duplicação do investimento<br />
num momento em que as receitas estão a reduzir<br />
drasticamente.<br />
A nova situação contribuiu para a produção de<br />
novos produtos?<br />
As empresas industriais estão neste momento a dar<br />
resposta às necessidades em termos de material de<br />
protecção e de combate aos efeitos da COVID-19.<br />
Certamente que as mudanças que se estão a verificar<br />
em alguns processos de produção representam<br />
oportunidades para que as empresas encontrem<br />
novos produtos e novos nichos de mercado, e nesse<br />
sentido há desenvolvimento das nossas cadeias de<br />
valor com o uso de tecnologias de informação.<br />
É de considerar o despedimento devido à<br />
retracção da actividade?<br />
Se as condições continuarem a deteriorar-se, não<br />
haverá outra saída a não ser o despedimento.<br />
A falta de receitas, e também de matérias-primas,<br />
coloca as indústrias sem qualquer saída por si só,<br />
havendo a necessidade de o Estado fazer o seu<br />
papel social, contribuindo para salvaguardar os<br />
empregos através da contribuição no pagamento<br />
dos salários mediante o fundo do INSS.<br />
Face ao momento actual, espera-se algum<br />
apoio da parte do governo para que o sector<br />
industrial continue a operar?<br />
As medidas até agora implementadas são insuficientes<br />
para a manutenção dos empregos e o funcionamento<br />
das empresas industriais. Estas debatem-se<br />
com insuficiência de tesouraria para pagamento<br />
dos compromissos, tanto com os trabalhadores,<br />
como com a banca, fornecedores e impostos.<br />
O que o sector industrial está a fazer quanto a<br />
medidas de higienização e protecção da saúde<br />
dos trabalhadores e da sociedade em geral?<br />
O governo emitiu o Decreto Presidencial com<br />
medidas para a prevenção e combate à COVID-<br />
-19, que as empresas industriais estão a seguir,<br />
assim como outras medidas recomendadas pelo<br />
MISAU e a OMS. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 23
CAPA 2 CRISE SECTORES<br />
INDÚSTRIA<br />
ADAPTA-SE<br />
A Técnica Industrial, do grupo moçambicano JFS<br />
e representante da FCA, alterou a dinâmica do trabalho em todas<br />
as frentes, como explica Rui Narcy o seu director-geral<br />
VALDO MLHONGO<br />
Rui Narcy, director-geral da Técnica Industrial,<br />
representante do grupo automóvel<br />
FCA em Moçambique, diz que face<br />
à pandemia da COVID-19 foram tomadas<br />
medidas para garantir a segurança e<br />
saúde dos seus colaboradores, clientes, fornecedores<br />
e demais parceiros. “Estas medidas devem ser tomadas<br />
por todos os representantes a nível mundial e<br />
Moçambique (Técnica Industrial) não é excepção”,<br />
referiu Rui Narcy. Para isso, explica, foi impulsionado<br />
o trabalho remoto em quase todas as áreas<br />
da empresa. “Penso que, como consequência desta<br />
pandemia, a forma de trabalhar e fazer negócio<br />
mudou.” Narcy assegura ainda que todas as projecções<br />
financeiras e de volume de produção estão fortemente<br />
comprometidas com esta paragem de mais<br />
de dois meses. “São avultados prejuízos que mesmo<br />
para os grupos de grande dimensão serão difíceis de<br />
superar a curto e médio prazo.” Prejuízos que já se<br />
fazem sentir ao nível de volume de venda de viaturas<br />
em Moçambique, pois no mês de Março o mercado<br />
teve uma redução de 14,39% face ao ano anterior.<br />
A nova situação (COVID-19) alterou a dinâmica<br />
do trabalho do grupo FCA?<br />
A dinâmica do grupo foi alterada em todas as frentes.<br />
Sendo um grupo grande com ramificações pelo<br />
mundo todo e com directrizes muito claras em relação<br />
a saúde e segurança no trabalho, foram tomadas<br />
medidas para garantir a segurança e saúde dos seus<br />
colaboradores, clientes, fornecedores e demais parceiros.<br />
Estas medidas devem ser tomadas por todos<br />
os seus representantes a nível mundial e Moçambique<br />
(Técnica Industrial, SA) não é excepção. Com<br />
isto foi impulsionado o trabalho remoto em quase<br />
todas as áreas da empresa. E entramos assim para<br />
uma nova dinâmica laboral, onde é possível manter<br />
os níveis de serviço em várias áreas e sectores de<br />
forma remota. Penso que como consequência desta<br />
pandemia a forma de trabalhar e fazer negócio mudou.<br />
Tem-se dito que este é o momento de as<br />
empresas se reinventarem para ultrapassarem<br />
esta crise da melhor maneira possível. Acha<br />
que há espaço para isso acontecer? Que acções<br />
24 | Exame Moçambique
RUI NARCY:<br />
A forma de<br />
trabalhar e de<br />
fazer negócio<br />
mudou<br />
o grupo tem desenvolvido nesse sentido?<br />
Não há outra alternativa senão evoluir nesse sentido.<br />
Já temos algumas medidas e iniciativas implementadas.<br />
Fomos a primeira empresa do ramo automóvel a<br />
oferecer aos clientes a recolha e entrega das viaturas<br />
ao domicílio, fazemos uma higienização de acordo<br />
com as normas internacionais, oferecemos serviços<br />
de assistência em estrada (por exemplo, reboque).<br />
Para estes serviços foram criados meios de comunicação<br />
dedicados. Aumentámos o contacto e interacção<br />
pelos canais electrónicos com os nossos clientes e<br />
potenciais clientes para evitar os encontros presenciais.<br />
Oferecemos mais e melhor informação dos nossos<br />
produtos e serviços através dos canais electrónicos.<br />
Neste momento de quarentena o teletrabalho<br />
tem sido opção para o grupo? Isso tem sido<br />
produtivo?<br />
O grupo FCA globalmente adoptou este procedimento<br />
do teletrabalho. Contudo, nem todos os países<br />
têm a mesma realidade económica e para o caso de<br />
Moçambique a Técnica Industrial adoptou o mesmo<br />
procedimento, mas com algumas adaptações à realidade<br />
local e à legislação do estado de emergência.<br />
Temos para os serviços administrativos um processo<br />
de rotação de quinze dias e uma redução de efectivo<br />
para um terço nas áreas onde não conseguimos<br />
fazer a rotatividade dos quinze dias.<br />
Houve alguma redução de colaboradores<br />
devido à pandemia do COVID -19?<br />
Está em curso o processo de rotatividade de colaboradores<br />
para cumprir as normas decretadas pelo<br />
governo. Até ao momento não tivemos de realizar<br />
despedimentos e procuraremos sempre preservar<br />
as pessoas e os seus postos de trabalho.<br />
EDILSON TOMÁS<br />
Como surgiu o projecto Viseira?<br />
Surgiu de um grupo de voluntários do grupo JFS,<br />
que se intitula ATITUDE. O nosso grupo tem como<br />
visão ser uma referência no mundo empresarial,<br />
comprometido a promover e a inspirar impacto<br />
em todas as frentes. Ou seja, não é apenas o negócio<br />
pelo negócio, mas um negócio justo, ao serviço<br />
do desenvolvimento. Procuramos sempre integrar<br />
as nossas actividades com outras áreas de interesse<br />
da sociedade. Existindo uma enorme falta de EPI<br />
especialmente para o sector da saúde, julgámos<br />
muito relevante pôr algumas equipas e ver como<br />
poderíamos produzir viseiras com o material disponível<br />
localmente. Conseguimos chegar a uma solução<br />
muito prática e acessível. Uma solução de recurso<br />
para épocas de crise. Mas, não tenhamos dúvidas, é<br />
maio <strong>2020</strong> | 25
CAPA 2 CRISE SECTORES<br />
SUMOL COMPAL REINVENTA-SE<br />
VISEIRAS: Um projecto de solidariedade<br />
que pode salvar vidas<br />
um equipamento que pode salvar vidas. O material<br />
de cada viseira custa cerca de 30 meticais. Decidimos<br />
então colocar no mercado a 60 meticais, para<br />
com isso conseguir uma unidade para o sector da<br />
saúde por cada unidade vendida. É, portanto, um<br />
projecto social, sem fins lucrativos, e toda a mão-de-<br />
-obra é voluntária. O projecto tem sido igualmente<br />
muito importante para promover o espírito de solidariedade<br />
entre os colaboradores e a sociedade em<br />
geral, que é muito importante nestes momentos de<br />
crise. Temos recebido mensagens de apoio de muitas<br />
pessoas e entidades, o que nos motiva a continuar,<br />
ainda com mais força.<br />
Qual tem sido o nível de adesão?<br />
Foi realmente uma avalanche que não esperávamos.<br />
Em poucos dias tínhamos encomendas para mais<br />
de 50 mil viseiras, incluindo a parte a doar ao sector<br />
da saúde. De tal forma que tivemos de suspender<br />
as encomendas até que pudéssemos estruturar<br />
a operação para dar resposta à procura.<br />
Nem todas as histórias são de todo negativas na luta contra os efeitos<br />
da COVID-19 ao nível do sector empresarial. A Sumol Compal,<br />
uma unidade fabril de referência na produção de bebidas não alcoólicas,<br />
localizada em Boane, província de Maputo, é disso o exemplo.<br />
Fernando Oliveira, administrador-delegado da Sumol Compal,<br />
refere que a empresa teve de se adaptar a novos hábitos para fazer<br />
face a conjuntura actual. “Passámos a limitar as visitas externas à<br />
fábrica, a medir a temperatura de todos os que entram nas instalações,<br />
a usar máscaras, viseiras, dispensadores de álcool-gel”, explica<br />
o administrador à <strong>EXAME</strong>. “Procurámos fazer com que os nossos<br />
colaboradores se sentissem seguros e apoiados. Distribuímos um<br />
termómetro de uso individual a cada um, para poderem monitorar<br />
as suas famílias, disponibilizámos transportes próprios, apoiámos<br />
com bens essenciais”, esclarece. Outra explicação para manter os<br />
níveis de produtividade da fábrica é a relação com os clientes, que<br />
também teve de sofrer alterações. “As visitas e reuniões com os<br />
clientes passaram a ser virtuais. Posso afirmar que criámos novos<br />
hábitos de trabalho, mas continuamos a produzir com ritmo, uma<br />
vez que o sector alimentar é considerado essencial.” Ainda sobre a<br />
conjuntura actual, Oliveira diz que os impactos ainda não se fazem<br />
sentir de um modo significativo na empresa. “Sentimos a redução<br />
de actividade em algumas áreas e sectores, mas a empresa tem-se<br />
adaptado sem grandes constrangimentos.” O administrador-delegado<br />
da Sumol Compal diz ainda que o trabalho é feito em regime<br />
de turnos, o que permite reduzir o número de pessoas na unidade<br />
fabril, e cumprem-se algumas tarefas em regime remoto. Oliveira<br />
referiu que a Sumol Compal vive um momento muito favorável do<br />
ponto de vista do aumento das vendas, muito baseado em inovação,<br />
mas reconhece que a conjuntura actual pode comprometer este<br />
momento. “Recentemente sentimos uma quebra de consumo acentuada<br />
devido à quebra da procura, quer por fecho de alguns clientes,<br />
quer por alocação do orçamento familiar a novas prioridades.”<br />
FERNANDO OLIVEIRA: A Sumol Compal adoptou medidas sanitárias<br />
Quantas já produziram?<br />
De uma pequena iniciativa de voluntários JFS, tivemos<br />
de montar em poucos dias uma linha de produção<br />
e já estamos com uma capacidade interna de<br />
cerca de 4 mil viseiras por semana. Desde que começámos<br />
a iniciativa temos mais de 5 mil viseiras produzidas<br />
(até ao dia 4 de <strong>Maio</strong>) e entregues. O grupo<br />
conseguiu, com esforço, provisionar material para as<br />
50 mil viseiras e, para se dar resposta à procura em<br />
tempo útil, está neste momento a transformar a iniciativa<br />
numa plataforma de voluntários, incluindo<br />
individuais, empresas ou instituições que se queiram<br />
juntar ao movimento. A adesão tem sido fantástica<br />
e vamos muito em breve comunicar sobre os<br />
diversos parceiros que estão connosco. b<br />
26 | Exame Moçambique
CAPA 2 CRISE SECTORES<br />
CORONAVÍRUS<br />
AFUNDA O TURISMO<br />
Os resultados do estudo da Confederação das Associações Económicas<br />
de Moçambique (CTA) sobre o impacto do COVID 19 no sector empresarial revelam<br />
que o sector do turismo terá perdas estimadas entre 53 e 71 milhões de dólares,<br />
mas no terreno o cenário mostra-se pior<br />
VALDO MLHONGO<br />
Oturismo tem sido, de longe, o sector<br />
mais afectado pelos efeitos do novo<br />
coronavírus, com os serviços de hotelaria,<br />
agências de viagens e restauração<br />
praticamente encerrados, colocando o<br />
sector na iminência clara de um verdadeiro colapso,<br />
com elevadas somas de prejuízos nunca vistas. Aliás,<br />
se nada for feito, é cada vez mais evidente o encerramento<br />
total da indústria do turismo, pelo menos é<br />
para aí que os números apontam. “O turismo, neste<br />
momento, ao nível do país está numa situação realmente<br />
caótica”, referiu Vasco Manhiça, presidente das<br />
Associações dos Hotéis do Sul e membro do pelouro<br />
do turismo da Confederação das Associações Económicas<br />
de Moçambique (CTA). Num sector que<br />
depende exclusivamente de circulação de pessoas,<br />
e sem margens para a reinvenção, nem mesmo os<br />
grandes hotéis conseguem manter-se perante uma<br />
crise causada por um vírus violento e imprevisível.<br />
“Devo dizer que até os principais hotéis que registavam<br />
taxas de ocupação acima de 80% a 90%, agora<br />
encontram-se reduzidos a 1% ou 0%. Isto quer dizer<br />
que o turismo está realmente numa situação desastrosa”,<br />
salientou Manhiça, durante uma conferência<br />
de imprensa organizada pela CTA. Também João das<br />
Neves, secretário-geral das Agências de Viagens e<br />
Operadores Turísticos de Moçambique (AVITUM),<br />
salienta que a situação é desoladora. “Todos nós conseguimos<br />
sentir o impacto mas, quando aprofundamos<br />
aquilo que são os números, a situação real das<br />
empresas, vemos que é preocupante.” Confirmou<br />
ainda a existência de vários estabelecimentos hotelei-<br />
28 | Exame Moçambique
os encerrados um pouco por todo o país. “Os hotéis<br />
em Maputo estão a fechar. Já não falo ao nível das<br />
províncias”, referiu o secretário-geral da AVITUM.<br />
AS PERDAS<br />
NO SECTOR<br />
DO TURISMO<br />
ATINGEM<br />
CERCA<br />
DE 95% DA<br />
FACTURAÇÃO<br />
ABHISHEK NEGI:<br />
O director-geral do<br />
Polana garante que<br />
não haverá redução<br />
de trabalhadores<br />
OS FACTOS<br />
O grupo Visabeira é um dos exemplos mais flagrantes<br />
do impacto do novo coronavírus no sector do<br />
turismo. Fechou toda a sua cadeia pelo país fora, com<br />
excepção de Indy Village, em Maputo, informou-<br />
-nos João das Neves. Na província de Inhambane,<br />
que tem sido um dos destinos preferidos do turismo,<br />
cerca de 8 estâncias turísticas também encerraram a<br />
actividade devido ao impacto da COVID-19. Yassine<br />
Amugi, presidente do Turismo de Inhambane, disse<br />
que a crise pode impactar entre 4 e 5 mil empregos<br />
directos. “É uma cadeia de valor enorme. Se calhar,<br />
duas vezes maior do que o próprio emprego directo”,<br />
referiu Amugi. Ao nível da cidade de Maputo vive-<br />
-se o mesmo sufoco. Numa ronda efectuada pela<br />
<strong>EXAME</strong> foi possível testemunhar o encerramento<br />
de vários hotéis com os parques de estacionamento<br />
literalmente vazios, um cenário jamais visto na história<br />
do país. “Não há nenhuma actividade de hotelaria.<br />
Estamos aqui apenas para garantir os serviços<br />
mínimos e administrativos”, afirmou um funcionário<br />
do hotel VIP, uma estância de cinco estrelas localizada<br />
no centro da cidade. O Hotel Cardozo, também<br />
um dos mais frequentados na cidade capital, encerrou<br />
as suas actividades por conta da crise causada<br />
pela pandemia. “O hotel encontra-se encerrado até<br />
nova ordem”, diz uma fonte ligada à unidade hoteleira<br />
sem dar pormenores sobre o assunto. A <strong>EXAME</strong><br />
soube também que o Gloria Hotel, que possui o maior<br />
número de quartos em Maputo, neste momento funciona<br />
a meio gás. O problema é generalizado. Sem<br />
movimentação de pessoas também não há agências<br />
de viagens que funcionem. “Com todas as fronteiras<br />
fechadas é impossível sair de um ponto para o outro.<br />
E o turismo depende muito dessa movimentação de<br />
bens e pessoas”, disse Mateus Tembe, director-executivo<br />
da Federação Moçambicana de Turismo e Hotelaria<br />
(FEMOTUR). Neste momento, refere Tembe,<br />
“o nosso esforço será garantir que os colaboradores<br />
conservem os seus postos de trabalho”. Leandra<br />
de Amaral, responsável pela Travel Agency, referiu<br />
que em termos de negócios já não há nada a fazer.<br />
“Estamos a trabalhar de forma remota no sentido de<br />
melhorarmos os nossos serviços. Actualizações dos<br />
nossos produtos e um pouco mais de pesquisas de<br />
outros serviços... mas, em termos de negócios, não há<br />
nada”, esclarece. “Todos os dias lidamos com questões<br />
de cancelamentos e obtenção de reembolsos.<br />
As viagens foram canceladas, mas ainda não recebemos<br />
os reembolsos por parte das companhias”,<br />
adianta. Martins diz que com a crise viu-se obrigada<br />
a reduzir mais de metade dos seus colaboradores.<br />
“Para as agências de viagens vai ser um momento<br />
muito difícil porque não se sabe ao certo quando é<br />
que as pessoas vão poder viajar.”<br />
POLANA RESISTE<br />
O Hotel Polana, um dos mais históricos e prestigiados<br />
hotéis de Moçambique, não está à margem da crise.<br />
Embora seja dos poucos em actividade, o hotel viu<br />
canceladas muitas das reservas de hospedagens que<br />
tinham sido feitas. Abhishek Negi, director-geral da<br />
unidade hoteleira, explica que, em termos de taxa de<br />
ocupação, as projecções já apontavam para um crescimento<br />
acima de 60% no mês de Março, mas “acabámos<br />
por fechar o mês com cerca de 3%”. “Todas<br />
as reservas foram canceladas. O negócio está muito<br />
baixo”, confessa o director-geral do Polana, frisando<br />
que se trata do pior momento em mais de vinte anos<br />
da sua carreira como gestor. “O hotel não tem tido<br />
hóspedes desde as últimas três semanas. Os únicos<br />
que temos estão connosco já faz tempo. São praticamente<br />
residentes nossos”, acrescenta. O Polana conta<br />
com cerca de 320 colaboradores e, apesar do cenário<br />
actual, Negi garante que não haverá redução de trabalhadores.<br />
“Devido à conjuntura actual decidimos<br />
dar férias colectivas a grande parte dos nossos colaboradores.<br />
Achamos que eles estão muito mais seguros<br />
e protegidos estando nas suas casas e com as suas<br />
famílias.” Elsa Santos, dona de uma guest house na<br />
província de Maputo, diz que o momento exige uma<br />
reinvenção por parte dos operadores para fazer face<br />
ao momento actual. Mas avisa que ninguém aguentará<br />
mais de um mês. “Estamos a tentar descobrir<br />
outras situações que nos possam dar um mínimo<br />
maio <strong>2020</strong> | 29
CAPA 2 CRISE SECTORES<br />
possível de rendimento. Estamos a fazer comida para<br />
fora, take-away, para garantir os empregos, mas não<br />
sabemos por quanto tempo iremos aguentar a crise.<br />
Uma das alternativas é eventualmente também usarmos<br />
os nossos quartos para quem venha fazer a quarentena.<br />
Para isso, temos estado a fazer treinamento<br />
dos nossos colaboradores para evitar possíveis contaminações.”<br />
O aparecimento do novo coronavírus<br />
teve impactos enormes, até mesmo para os pequenos<br />
investidores. Derço Tomás trabalha na área de restauração.<br />
Há um ano e meio que preparava a inauguração<br />
de um novo espaço de restauração, depois<br />
de ter investido cerca de um milhão de meticais. Mas<br />
com a actual conjuntura ficou tudo em banho-maria.<br />
“A nossa ideia era inaugurarmos o restaurante em<br />
Março passado, mas devido à pandemia tudo ficou<br />
cancelado.” Derço diz que, por agora, só lhe resta<br />
esperar por boas notícias. “Nada mais podemos fazer<br />
a não ser esperar por dias melhores.”<br />
NÚMEROS ASSOMBROSOS<br />
Até à conclusão deste texto, Moçambique contava<br />
com 79 casos de pessoas infectadas com o novo coronavírus,<br />
havendo 10 recuperados e nenhum óbito.<br />
O TURISMO EMPREGA<br />
61 MIL TRABALHADORES<br />
EM TODO O PAÍS<br />
Segundo o estudo da (CTA), sem a COVID-19 as<br />
projecções indicavam que o turismo atingiria um<br />
crescimento de 7% em <strong>2020</strong>, muito acima dos 2,1%<br />
verificados em 2019. Em termos globais, o sector do<br />
turismo emprega em Moçambique cerca de 61 mil trabalhadores<br />
formais. Antes da eclosão da COVID-19,<br />
referiu o secretário-geral da AVITUM, a média estimada<br />
de receita de todo o sector andava na ordem dos<br />
30 milhões de dólares por mês. Mas com a conjuntura<br />
actual os números desceram para cerca de 5%.<br />
“Só no mês de Março tivemos uma perda de 90% a<br />
95% desta receita” projectada, salientou João das Neves.<br />
Situação que coloca o despedimento como algo inevitável.<br />
“As empresas não têm como aguentar mais<br />
do que um mês sem receita.” Agora, explica João das<br />
Neves, “o passo seguinte é a redução significativa da<br />
massa laboral, 75% do salário, depois 50%, 25% e, no<br />
fim, o despedimento”. Para se evitar o colapso no sector<br />
do turismo, João das Neves entende que há um<br />
leque de acções que o Estado deveria tomar. Desde<br />
o protelamento do pagamento dos impostos à criação<br />
de um financiamento de emergência, sem juros,<br />
destinado aos empresários que consigam prosseguir<br />
MATEUS TEMBE:<br />
Para o director-<br />
-executivo da FEMOTUR<br />
o apoio do governo é<br />
determinante<br />
os negócios. “É fundamental que o Estado crie uma<br />
fonte de financiamento sem juros que os empresários<br />
terão necessariamente de pagar, mas que lhes dê<br />
acesso a um fundo para neste momento fazer frente<br />
a situações concretas”, esclarece. Sendo o Estado o<br />
maior devedor do sector privado, João das Neves<br />
entende também que este seria o momento oportuno<br />
para o Estado pagar as suas dívidas para com<br />
as empresas privadas. “Se o Estado conseguisse pagar<br />
as suas dívidas para com as empresas do sector do<br />
turismo, daria um grande alívio para que as empresas<br />
consigam operar.”<br />
EVITAR O COLAPSO<br />
Mateus Tembe diz que, ao nível interno, a indústria<br />
do turismo precisa de se organizar rapidamente<br />
para poder salvaguardar a actividade, evitando<br />
uma asfixia económica nas organizações. “Este é o<br />
maior desafio”, assinalou. Tembe salienta também<br />
que o apoio do governo é determinante para que se<br />
possam adoptar medidas que permitam mitigar os<br />
riscos do sector e evitar que haja um colapso económico.<br />
“O maior esforço que estamos a fazer é tentar<br />
com o governo criar condições para que as empresas<br />
possam sobreviver e sobreviver a este período<br />
de quarentena. Para já o nosso foco principal é<br />
minimizar o impacto secundário da COVID-19<br />
no trabalhador, enquanto ao mesmo tempo tentamos<br />
utilizar os instrumentos do nosso relacionamento<br />
com o governo no que respeita a situações<br />
futuras de crise.” b<br />
EDILSON TOMÁS<br />
30 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 31
CRISE TECNOLOGIA<br />
APLICAÇÃO:<br />
Disponibilizada<br />
pelo Misau, é uma<br />
aliada no combate<br />
à pandemia<br />
MOÇAMBIQUE CRIA<br />
AUTODIAGNÓSTICO<br />
DE COVID-19<br />
NA NET<br />
A ferramenta digital de autodiagnóstico é só uma<br />
das faces visíveis do trabalho dos serviços de saúde<br />
com a empresa UX para as novas tecnologias<br />
desenvolvidas em Moçambique serem aliadas<br />
no combate à pandemia que está a parar o mundo<br />
LUÍS FONSECA*<br />
OMinistério da Saúde de Moçambique<br />
(Misau) disponibiliza uma aplicação<br />
numa página da Internet que permite<br />
a qualquer pessoa, em qualquer<br />
local, realizar um autodiagnóstico da<br />
doença respiratória provocada pelo novo coronavírus.<br />
A ferramenta está disponível directamente através<br />
do endereço riscocovid19.misau.gov.mz ou no portal<br />
dedicado à COVID-19, em covid19.ins.gov.mz<br />
e na opção “auto-avaliação”. Uma vez que é carregada<br />
a partir de uma página web, pode ser acedida<br />
a partir de qualquer aparelho que permita navegar<br />
na Internet, sem necessidade de passar pelas app<br />
stores. Esta aplicação recebeu 22 mil visitas só no<br />
primeiro dia, 8 de Abril, e regista desde então uma<br />
média de mil visitas por dia. “O número demonstra<br />
como as pessoas estavam sedentas” de um instrumento<br />
que as tranquilizasse e que é, ao mesmo<br />
tempo, um aliado na prevenção da pandemia”, diz<br />
Tiago Borges Coelho, co-fundador da UX Information,<br />
empresa moçambicana que criou a aplicação.<br />
Como é que tudo se processa? De uma forma<br />
simples: a empresa de tecnologias de informação,<br />
com sete anos de experiência na criação de plataformas<br />
com impacto social — sobretudo ao nível<br />
32 | Exame Moçambique
FERRAMENTA RECEBEU 22 MIL VISITAS NO PRIMEIRO DIA<br />
Quem usa a ferramenta?<br />
A grande maioria (86%) são de Moçambique, seguindo-<br />
-se depois o Brasil, Portugal e África do Sul como principais<br />
utilizadores do autodiagnóstico.<br />
Privacidade “garantida”<br />
A privacidade está assegurada para quem usar a nova<br />
ferramenta de autodiagnóstico da COVID-19, refere<br />
Tiago Borges Coelho. O género e a idade são os únicos<br />
dados recolhidos logo no início, aos quais o utilizador<br />
pode adicionar a província e o distrito onde se encontra,<br />
se o pretender, quando é classificado com risco médio<br />
ou alto de infeção. Essa informação que pode ser opcionalmente<br />
entregue pode vir a ajudar o Misau “a prever<br />
quais os distritos de risco” de infeção da COVID-19, acrescenta.<br />
Nenhuma outra informação é recolhida, pelo que<br />
é impossível identificar quem quer que seja, conclui.<br />
“Impacto social positivo”<br />
A UX Information, empresa de novas tecnologias moçambicana,<br />
aponta como meta para os seus projectos ter<br />
“impacto social positivo”, refere Tiago Borges Coelho,<br />
co-fundador. Foi nesse contexto que nasceu, há sete<br />
anos, depois de criar o portal Emprego.co.mz, uma das<br />
principais criações da UX. Trata-se do maior portal de<br />
recrutamento em Moçambique. A UX criou também a<br />
plataforma Biscate.co.mz onde é possível requisitar os<br />
serviços de 18 profissões, de electricistas a manicures.<br />
O impacto foi recentemente comprovado pelo Banco<br />
Mundial, que tem acompanhado o projecto: os trabalhadores<br />
que integraram a plataforma têm mais trabalho<br />
e aumentaram o seu rendimento. A ferramenta<br />
permite que profissionais, mesmo que com um telemóvel<br />
mais antigo, possam, através de um conjunto<br />
de códigos, interagir com a plataforma, receber pedidos<br />
de trabalho e dar respostas. Do lado do utilizador,<br />
o grafismo da aplicação ou do portal Biscate na Internet<br />
permite escolher um profissional para determinada<br />
tarefa, listando-os de acordo com a pontuação recebida<br />
pelos trabalhos anteriores. Hoje, o Biscate tem mais de<br />
35 mil utilizadores. No top 5 das ocupações com mais<br />
profissionais registados estão electricista (22%), trabalhador<br />
de cozinha (13%), trabalhador da construção<br />
(12%), cabeleireiro (10%) e canalizador (6%).<br />
do recrutamento profissional e prestação de serviços<br />
—, criou um questionário “sim-não” no portal<br />
do Misau. Este questionário avalia a probabilidade<br />
de cada utilizador estar infetado. Consoante o grau<br />
de risco, são prestadas recomendações e pode ser<br />
indicada uma morada e contacto das autoridades<br />
de saúde para dar seguimento ao caso. Passadas três<br />
semanas, já somava 70 mil visitas e já tinha ultrapassado<br />
as fronteiras de Moçambique, somando<br />
um total de 113 países entre as visitas registadas.<br />
TORNAR A FERRAMENTA<br />
AINDA MAIS ACESSÍVEL<br />
Um dos objetivos de desenvolvimento passa por<br />
transportar o autodiagnóstico para a tecnologia<br />
USSD, usada em telemóveis mais antigos, através da<br />
qual se consultam serviços com códigos (usando as<br />
teclas asterisco e cardinal para navegar em menus)<br />
transmitidos pela rede móvel, sem Internet. A sigla é<br />
inglesa: Unstructured Supplementary Service Data<br />
(USSD), muitas vezes referida apenas como “códigos<br />
rápidos” — tal como os que são usados para<br />
A APLICAÇÃO<br />
É UM DOS<br />
INSTRUMENTOS<br />
DIGITAIS<br />
DISPONÍVEIS<br />
NO PORTAL<br />
COVID19.INS.<br />
GOV.MZ<br />
activar recargas móveis de crédito das operadoras<br />
ou para activar serviços especiais destas. Poder-se-<br />
-ia pensar que o sucesso depende do recurso às tecnologias<br />
de última geração, mas isso nem sempre<br />
é verdade — sobretudo se o objectivo é chegar ao<br />
máximo de população possível. No caso, os smartphones<br />
representam uma minoria dos telemóveis<br />
usados em Moçambique.<br />
Com a pandemia longe de terminada, a UX, em<br />
parceria com o Misau, continua a desenvolver o<br />
autodiagnóstico, nomeadamente encontrando novas<br />
formas de usar os dados disponíveis. A empresa está<br />
também a analisar as consultas à informação disponibilizada<br />
pelo portal do Ministério criado sobre a<br />
COVID-19 para descobrir os artigos mais procurados<br />
e articular respostas de forma adequada. Tiago<br />
Borges Coelho antevê também uma oportunidade<br />
para, com base nesta experiência, poder ser criado<br />
o mesmo tipo de aplicação “para outras doenças,<br />
como a malária ou a tuberculose”, que têm ainda<br />
grande incidência em Moçambique.<br />
* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 33
LEGISLAÇÃO<br />
IMPACTOS<br />
DO COVID-19<br />
NO ACTUAL<br />
PARADIGMA<br />
DA PRESTAÇÃO<br />
DO TRABALHO<br />
PAULA DUARTE ROCHA<br />
No que respeita à pandemia<br />
do COVID-19, parece ser<br />
unanimemente entendido<br />
que, mesmo no pós-crise e<br />
a par do levantamento do<br />
confinamento e restrições impostas pelo<br />
mundo fora, os hábitos sociais vão alterar-<br />
-se profundamente enquanto o vírus não<br />
for considerado controlado. Para alguns,<br />
poderá vir a ser necessário um novo Plano<br />
Marshall, semelhante àquele que permitiu<br />
a reconstrução da Europa a seguir à<br />
II Guerra Mundial.<br />
Mas, agora, o inimigo não destruiu infra-<br />
-estruturas, antes dizimou economias e postos<br />
de trabalho. Esta diferença é brutal na<br />
forma como os estímulos e a recuperação<br />
podem ser feitos. Muito pela necessidade<br />
de apoio ao emprego, já que se prevê que,<br />
em muitos países, o desemprego no sector<br />
privado possa chegar a 50%.<br />
Nada será como dantes e ficará claro que<br />
ganhará esta “guerra” quem tiver melhores<br />
sistemas de saúde, capacidade tecnológica<br />
e capacidade de estimular a economia<br />
suportando uma despesa pública enorme<br />
e, acima de tudo, o trabalho.<br />
A vida do homem e a sustentabilidade do<br />
planeta ganharam uma nova dinâmica, porque<br />
poderão mudar por completo as atitudes<br />
e as prioridades de todos. Haverá, sem<br />
dúvida, uma mudança de consciência colectiva,<br />
e é esta a grande esperança e, quiçá, a<br />
maior oportunidade para a humanidade.<br />
QUAIS OS BENEFÍCIOS IMEDIATOS<br />
DO TELETRABALHO?<br />
A legislação que aprova as medidas administrativas<br />
para a prevenção e contenção<br />
da COVID-19 — em concreto, o Decreto<br />
n.º 12/<strong>2020</strong>, de 2 de Abril, e o Decreto n.º<br />
14/<strong>2020</strong>, de 9 de Abril de <strong>2020</strong> — trouxe<br />
consigo medidas que impõem às empresas a<br />
redução do efectivo laboral presencial para<br />
uma quantidade não superior a um terço<br />
(salvo algumas excepções), com rotatividade<br />
das equipas de serviço de quinze em<br />
quinze dias, e o teletrabalho, como forma de<br />
reduzir a exposição do seu efectivo laboral.<br />
Esta medida — o teletrabalho — suscitou<br />
muitas dúvidas ao longo dos útimos dois<br />
anos, também no contexto da discussão e<br />
revisão da Lei do Trabalho. Tornou-se, nos<br />
dias de hoje, uma realidade em Moçambique,<br />
com excepção dos sectores de actividade<br />
e dos segmentos das empresas em<br />
que é impossível implementar correspondentes<br />
àqueles em que a presença humana<br />
é impreterível.<br />
Concretizado que está o teletrabalho<br />
em Moçambique — ainda que não legislado<br />
—, temos mudanças nos nossos hábitos<br />
de trabalho.<br />
Muitos devem ter visto um vídeo que circulou<br />
na Internet (e até em alguns telejornais)<br />
o ano passado, onde um especialista<br />
comenta uma matéria de relevo e com algum<br />
grau de seriedade, sendo, de repente, surpreendido<br />
com a entrada dos filhos no compartimento<br />
em que se encontrava, vendo-se<br />
depois surgir a mãe das crianças, quase de<br />
gatas, a tentar retirá-las e assim permitir<br />
que o especialista conseguisse prosseguir<br />
o seu trabalho em directo. Foi hilariante!<br />
Quantos de nós não vivenciaram experiências<br />
semelhantes no último mês? Quantas<br />
vezes temos estado, ultimamente, numa<br />
chamada ou videoconferência, sendo interrompidos<br />
pelos gritos das crianças devido a<br />
uma qualquer altercação, excitação ou reclamação,<br />
ou pelo cão que começa a ladrar, ou<br />
pelo gato que salta para cima do teclado?<br />
Nos termos do anteprojecto de revisão<br />
da Lei do Trabalho, “entende-se por teletrabalho<br />
a prestação da actividade laboral<br />
34 | Exame Moçambique
PAULA DUARTE<br />
ROCHA: O inimigo<br />
não destruiu<br />
infra-estruturas,<br />
dizimou economia<br />
e postos de trabalho<br />
que é realizada sob autoridade e direcção do<br />
empregador, habitualmente fora do estabelecimento<br />
do empregador e com o recurso<br />
a meios de tecnologias de informação e<br />
comunicação mediante o pagamento de<br />
remuneração”.<br />
Assumindo a concretização de um equilíbrio<br />
entre a vida pessoal e profissional em<br />
casa, com uma gestão e planeamento das<br />
tarefas domésticas e do tempo, o trabalhar<br />
a partir de casa traz, para já, uma redução<br />
nos custos com as deslocações e transporte<br />
dos trabalhadores.<br />
Sem prejuízo de “alguns distúrbios” causados<br />
pela vida familiar, a redução (ou a<br />
inexistência) do tempo perdido em deslocações<br />
pode trazer maior produtividade.<br />
Com efeito, se, por um lado, é possível ao<br />
trabalhador trabalhar no computador a partir<br />
do momento em que acorda, não existe,<br />
também, a preocupação de parar a sua prestação<br />
laboral às 17h30 para enfrentar duas<br />
horas (ou mais) de trânsito a conduzir ou<br />
estar na fila à espera para apanhar o transporte<br />
para casa.<br />
Para as empresas, se, por um lado, houve<br />
necessidade de investimento (inicial) na disponibilização<br />
aos trabalhadores dos meios<br />
para a concretização do trabalho à distância,<br />
por outro lado, a implementação desta<br />
medida pode trazer consigo uma redução<br />
de custos fixos — designadamente em electricidade,<br />
meios de comunicação e até em<br />
instalações —, sem perigar com os objectivos<br />
de produtividade, sendo que, com o<br />
recurso à rotatividade e ao teletrabalho, é<br />
ainda possível reduzir os espaços e áreas de<br />
trabalho permanentes.<br />
No contexto legislativo em vigor — artigos<br />
54, 70, 71 e 73 da Lei do Trabalho —,<br />
ultrapassado que esteja o estado de emergência,<br />
o recurso “mais frequente” pelas<br />
empresas ao teletrabalho trará consigo<br />
modificações às actuais relações jurídicas<br />
de trabalho, acarretando, também, linhas<br />
hierárquicas mais flexíveis.<br />
COMO CONTROLAR O USO DOS MEIOS<br />
DA EMPRESA FORA DO LOCAL DE<br />
TRABALHO?<br />
Tal como acontece nas situações de qualquer<br />
contrato de trabalho em regime “normal”<br />
(i.e., presencial), e assim como aconteceu<br />
quando foi decretado o estado de emergência,<br />
com a inerente massificação do teletrabalho,<br />
caberá sempre aos empregadores<br />
assegurar a instalação, manutenção e des-<br />
maio <strong>2020</strong> | 35
LEGISLAÇÃO<br />
pesas inerentes à utilização dos meios para<br />
o teletrabalho, em particular o computador<br />
e a Internet. Será, no entanto, fundamental,<br />
a implementação de uma política de teletrabalho<br />
pelas empresas, com regras específicas<br />
de utilização dos meios disponibilizados<br />
para o teletrabalho e salvaguarda dos direitos<br />
e deveres dos trabalhadores, incluindo<br />
os horários de trabalho.<br />
Conforme sucede já com os plafonds estabelecidos<br />
por várias empresas para a utilização<br />
do telemóvel, tornar-se-á necessário<br />
atribuir e garantir a utilização mensurada<br />
de modems para o acesso regular à Internet<br />
pelos trabalhadores em teletrabalho<br />
ou assumir parte dos custos relacionados.<br />
Ao mesmo tempo, as plataformas Zoom,<br />
Microsoft Teams, Skype e WhatsApp têm<br />
sido as mais utilizadas pelos trabalhadores<br />
e empresas, neste período de estado de<br />
emergência e teletrabalho, a fim de assegurar<br />
em tempo real a comunicação com<br />
colegas e clientes.<br />
Mais, várias são as famílias com crianças<br />
em idade estudantil, com necessidade<br />
de recurso ao ensino virtual, mas com<br />
recurso apenas ao computador (de trabalho)<br />
da mãe ou do pai.<br />
Porém, algumas destas plataformas não<br />
garantem segurança nas comunicações,<br />
existindo o risco da sua intercepção por terceiros,<br />
bem como a exposição a vírus informáticos<br />
— entre outros constrangimentos<br />
—, o que, tudo somado, poderá concitar a<br />
partilha indesejada de informação, com<br />
inestimável prejuízo das empresas, seus<br />
colaboradores e respectivos clientes. Por<br />
essa razão, os departamentos de TI têm<br />
sido devotados a uma maior monitoria e<br />
controlo das comunicações dos sobreditos<br />
trabalhadores em regime de teletrabalho.<br />
Contudo, esta atitude e intervenção<br />
dos departamentos de TI pode trazer consigo<br />
uma violação do direito à privacidade<br />
e protecção dos dados pessoais do trabalhador,<br />
consagrada nos artigos 5 e 6 da Lei<br />
do Trabalho.<br />
Ao mesmo tempo, o artigo 9 da Lei do<br />
Trabalho estabelece que a correspondência<br />
do trabalhador, de natureza pessoal,<br />
efectuada por qualquer meio de comunicação<br />
privada, designadamente (…) mensagens<br />
electrónicas, é inviolável, podendo<br />
O TELETRABALHO PODE<br />
TRAZER UMA REDUÇÃO<br />
DE CUSTOS FIXOS<br />
o empregador estabelecer regras e limites<br />
de utilização das tecnologias de informação<br />
na empresa, nomeadamente do correio<br />
electrónico e acesso à Internet, ou vedar<br />
por completo o seu uso para fins pessoais.<br />
Pelo que se impõe uma urgente e melhor<br />
regulamentação, ainda que, para já, através<br />
dos instrumentos de regulamentação colectiva<br />
do trabalho (IRCT).<br />
E O IMPACTO NA PROTECÇÃO DA DIG-<br />
NIDADE DO TRABALHADOR?<br />
O uso de máscaras e, em determinados contextos,<br />
de luvas, é hoje uma realidade nas<br />
empresas e em quaisquer locais públicos ou<br />
com aglomerados de pessoas. A par destas<br />
medidas, a medição da temperatura para o<br />
acesso de pessoas a determinados espaços,<br />
incluindo ao local de trabalho, poderá também<br />
vir a tornar-se realidade num futuro<br />
próximo e mesmo depois de levantado o<br />
estado de emergência.<br />
Detectando-se que um trabalhador se<br />
apresenta febril, sentir-nos-emos, definitivamente,<br />
mais seguros no local de trabalho,<br />
sendo tal trabalhador submetido a exames<br />
médicos; e a confirmação que os sintomas<br />
que “aquele colega” trabalhador apresenta se<br />
relacionam com alguma doença de “reduzido<br />
contágio” trará, no contexto de uma pandemia<br />
causada por uma doença sem cura,<br />
um certo alívio a todos os colaboradores.<br />
Mas, no contexto legislativo actual, ainda<br />
que seja permitido à empresa realizar testes<br />
médicos ao trabalhador (ou solicitar-lhe a<br />
apresentação de testes ou exames médicos)<br />
para comprovação da sua condição física ou<br />
psíquica, o médico responsável pelos testes<br />
ou exames médicos não pode comunicar ao<br />
empregador qualquer outra informação a<br />
não ser a que disser respeito à capacidade<br />
ou falta desta para o trabalho — artigo 7 da<br />
Lei do Trabalho.<br />
Ao mesmo tempo, poderá a utilização de<br />
um termómetro para simples medição da<br />
temperatura corporal do trabalhador enquadrar-se<br />
no contexto de um exame médico?<br />
Para já, diria que sim, na medida em que<br />
a simples medição da temperatura poderá<br />
vir a ditar a incapacidade do trabalhador<br />
para trabalhar ou para, simplesmente, ter<br />
acesso ao local de trabalho.<br />
Torna-se, portanto, oportuno avaliar e<br />
aproveitar, no âmbito do processo de revisão<br />
da Lei do Trabalho, novos moldes para a<br />
protecção da dignidade do trabalhador, no<br />
pós-COVID-19, no que diz respeito à realização<br />
e ao conceito de exames médicos.<br />
Outrossim, será de avaliar-se em que<br />
medida a impossibilidade do trabalhador<br />
para estar no local de trabalho por determinação<br />
da empresa em resultado de apresentar-se<br />
com temperatura corporal acima<br />
do “normal” constitui falta justificada por<br />
doença, implicando, para o trabalhador, o<br />
não pagamento de qualquer remuneração,<br />
sem prejuízo das disposições de segurança<br />
social — nos termos das disposições conjugadas<br />
dos artigos 105 n.º 3 e alínea d) do<br />
n.º 3 do artigo 103 da Lei do Trabalho.<br />
Sem pretender entrar na discussão sobre<br />
os moldes em que o trabalhador poderá<br />
recorrer à segurança social pelo facto de,<br />
tendo-lhe sido medida a temperatura (e,<br />
apresentando-se com temperatura acima<br />
do “normal”), ter sido impedido de aceder<br />
ao local de trabalho, parece-me que a alternativa<br />
do recurso ao teletrabalho poderá ser<br />
a solução mais eficiente, tanto para o trabalhador<br />
como para empresa.<br />
Mas estarão as seguradoras preparadas<br />
e existe já quadro legal para acomodar, no<br />
âmbito do seguro colectivo de trabalho, acidentes<br />
de trabalho ocorridos no regime do<br />
teletrabalho?b<br />
36 | Exame Moçambique
BAZARKETING<br />
THIAGO FONSECA<br />
Sócio e director de Criação da Agência GOLO.<br />
PCA Grupo LOCAL de Comunicação SGPS, Lda<br />
ERA UMA VEZ<br />
ERA UMA VEZ O<br />
MARKETING COMO<br />
O CONHECÍAMOS<br />
Era uma vez uma era que já era.<br />
Era uma vez uma outra que está<br />
a começar. “Era uma vez”, no storytelling,<br />
é a forma clássica de como se começam<br />
a escrever e a contar estórias.<br />
E há uma nova que está a ser escrita neste<br />
momento tão especial que estamos a<br />
viver na História da Humanidade e do<br />
nosso planeta.<br />
O mais importante para as marcas é a<br />
estória que elas nos vão contar.<br />
Tudo já está a mudar. E o que está a<br />
acontecer vai moldar por gerações o<br />
mundo e a forma como fazíamos as coisas.<br />
Como vivíamos. E, claro, vai mudar<br />
o marketing, a comunicação e as marcas.<br />
Era uma vez as certezas.<br />
Era uma vez as fórmulas.<br />
Era uma vez tudo o que se dava por<br />
garantido.<br />
Era uma vez os produtos supérfluos.<br />
Era uma vez quem achava que as coisas<br />
se faziam apenas de certa maneira.<br />
Espero que possamos todos aprender<br />
grandes lições com tudo o que se está a<br />
passar neste momento.<br />
Espero que as próximas gerações falem<br />
da nossa com orgulho.<br />
Espero que se faça o que está certo e, se<br />
agirmos agora, era uma vez tudo o que<br />
estava errado.<br />
ERA UMA VENDA<br />
Era uma vez as empresas cujo único propósito<br />
das suas marcas é vender.<br />
Novas estórias surgirão e as marcas<br />
que vão vencer nesta fase e no futuro<br />
são as que tiverem o propósito de fazer<br />
o bem maior. E exercerem esse propósito<br />
com acções.<br />
Não se devem tomar decisões baseadas<br />
no valor em queda das acções das<br />
empresas nas bolsas de valores, mas nos<br />
valores mais importantes para a raça humana<br />
e o planeta.<br />
O mundo inteiro está a assistir a tudo<br />
como nunca. A ver quem é quem. E a<br />
colocar um grande desafio, que consiste<br />
em questionar o verdadeiro propósito<br />
das marcas.<br />
Muitas marcas têm a componente de<br />
responsabilidade social como uma pequena<br />
parte da sua actividade. Agora,<br />
esta será a componente mais importante<br />
para todas as marcas que quiserem ser<br />
admiradas e líderes pois terão laços mais<br />
fortes e emocionais com os consumidores.<br />
No fundo, era uma vez o marketing<br />
como o conhecíamos.<br />
Enquanto estamos todos de cara tapada,<br />
mas com os olhos bem abertos, é o<br />
momento de as marcas mostrarem a sua<br />
verdadeira cara e se reinventarem para<br />
praticar o bem maior. São essas que crescerão<br />
e se posicionarão sólidas a longo<br />
prazo.<br />
A Coca-Cola, a maior marca do século<br />
xx, já lançou a sua campanha global.<br />
“A message to the human race.” E lançou<br />
bem. A sua mensagem de prevenção<br />
emociona e cria laços emocionais com a<br />
marca independente da forma que o seu<br />
produto vier a ser no futuro.<br />
Estudos recentes mostram que a televisão<br />
de sinal aberto atingiu o seu pico<br />
maior de sempre.<br />
As pessoas estão atentas aos telejornais<br />
globais, mas sobretudo aos locais.<br />
As gerações mais novas, na casa dos vinte<br />
anos, não viam o telejornal. Era coisa<br />
dos mais velhos essa rotina. Esse hábito.<br />
Neste momento, fechados em casa,<br />
os jovens estão a ver. Querem saber o<br />
desenvolvimento da pandemia. Estão<br />
sedentos de informação. E, ao fazê-lo,<br />
criarão esse hábito que fica para o futuro.<br />
E teremos uma geração de novos telespectadores<br />
que não existia.<br />
ERA UMA VEZ A FORMA COMO CON-<br />
SUMIMOS OS MEDIA<br />
Segue-se à televisão, localmente em Moçambique,<br />
a rádio, as redes sociais e os<br />
38 | Exame Moçambique
conteúdos de informação e entretenimento<br />
que nos chegam pelo digital.<br />
Era uma vez os eventos. Que terão<br />
de ser reinventados enquanto o mundo<br />
aguarda por uma vacina em 2021 ou<br />
2022.<br />
E, mesmo depois disso, quem nos garante<br />
que novas pandemias não possam<br />
surgir?<br />
Era uma vez as marcas que não virem a<br />
oportunidade de criar os conteúdos relevantes<br />
e os veicularem nos meios certos.<br />
A informação credível está a ser mais<br />
procurada do que nunca.<br />
É O MOMENTO DE AS<br />
MARCAS MOSTRAREM A<br />
SUA VERDADEIRA CARA<br />
Os consumidores de media optam<br />
pelo que confiam. E sabem o que é um<br />
WhatsApp com um conteúdo duvidoso.<br />
O digital, que antes era uma opção,<br />
nunca foi tanto usado como agora. E por<br />
isso é expectável, como em outras grandes<br />
guerras, vermos grandes evoluções<br />
tecnológicas nessa área.<br />
O on-line neste momento é a plataforma<br />
mais importante para comunicarmos<br />
e fazermos as coisas. E isso muda<br />
o jogo e cria novas oportunidades para<br />
as marcas.<br />
Era uma vez a maneira como vivíamos.<br />
Este vírus virou o mundo do avesso.<br />
Já contagiou o marketing e o modo<br />
como as marcas vão viver e sobreviver.<br />
O melhor é adaptar-se rapidamente a<br />
esta nova realidade.<br />
Caso contrário, era uma vez a sua<br />
marca.b<br />
maio <strong>2020</strong> | 39
ÁFRICA PANDEMIA<br />
PANDEMIA:<br />
Há que evitar que<br />
o novo coronavírus<br />
alastre em África<br />
COVID-19:<br />
UM MAL QUE<br />
VEIO POR BEM?<br />
A pandemia do novo coronavírus é uma tragédia para<br />
o mundo e muda a forma de os países, as pessoas e<br />
as empresas se organizarem, conviverem e produzirem.<br />
Com o mundo em suspenso, à beira do abismo da recessão<br />
económica, África, com “poucos” casos para a sua<br />
dimensão, está à beira de um ataque de nervos com o que<br />
já perdeu e vai perder na economia. Mas esta pode ser uma<br />
oportunidade para lançar sementes de resiliência futura.<br />
Seremos capazes, desta vez?<br />
RICARDO DAVID LOPES<br />
Mais do que um provérbio,<br />
fazer das fraquezas forças<br />
é um modo de estar para a<br />
maioria dos africanos. Até<br />
nos países mais “ricos”, a<br />
generalidade da população vive perto, ou<br />
abaixo, do limiar de pobreza. Sofrer privações,<br />
incluindo fome, e enfrentar dificuldades,<br />
como doenças diversas, sem<br />
que os sistemas de saúde públicos ofereçam<br />
assistência condigna, são, infelizmente,<br />
situações “normais”. Mas, como<br />
diz a canção de Chico Buarque, “a gente<br />
vai levando”. E vai mesmo. No entanto,<br />
agora custa mais — e pode mesmo piorar<br />
por causa de algo que nem está sequer ao<br />
alcance da vista.<br />
EM ÁFRICA, O VÍRUS TEM<br />
TERRENO PRÓSPERO<br />
PARA AVANÇAR<br />
O novo coronavírus é esse novo factor<br />
que não vemos — a não ser que usemos<br />
potentes e dispendiosos microscópios electrónicos.<br />
Não o vemos, mas os seus efeitos<br />
na saúde humana e a pressão que exerce<br />
na economia global já eram evidentes até<br />
antes de a Organização Mundial de Saúde<br />
(OMS) ter declarado a COVID-19 — a<br />
doença que o vírus causa — uma pandemia,<br />
a 11 de Março passado.<br />
Na altura, havia pouco mais de 118 mil<br />
casos confirmados, em 114 países, e 4300<br />
mortes. A doença já havia chegado a África:<br />
o primeiro caso foi detectado no Egipto,<br />
no Dia de São Valentim, ou “dos Namorados”,<br />
14 de Fevereiro. De então para cá, este<br />
invasor indesejado, de uma família de vírus<br />
que pode causar graves problemas respiratórios,<br />
já infectou mais de 3 milhões de<br />
pessoas e matou mais de 200 mil.<br />
Em África, o vírus, com origem num<br />
mercado de animais vivos em Whuan, na<br />
China, tinha desde início (e tem) terreno<br />
próspero para avançar. Por isso, os alertas<br />
também se fizeram ouvir cedo. Três<br />
semanas antes de declarar a pandemia,<br />
no dia 22 de Fevereiro, o director-geral<br />
40 | Exame Moçambique
da OMS, Tedros Ghebreyesus, destacou na<br />
sua conta do Twitter a “necessidade imperativa<br />
de evitar que o vírus chegue a países<br />
com sistemas de saúde frágeis, como<br />
os das economias mais pobres”. E pediu<br />
à comunidade internacional doações de<br />
675 milhões de dólares para apoiar os países<br />
mais vulneráveis.<br />
África, ainda a lidar com os efeitos do<br />
ébola e outras doenças que periodicamente<br />
assolam o continente (e que se juntam às<br />
habituais), contava então com 13 casos,<br />
longe dos cerca de 31 400 registados no dia<br />
de fecho deste texto, 28 de Abril, quando<br />
havia a lamentar 1419 mortes pela doença<br />
que lançou o caos em todo o mundo, gerou<br />
a maior recessão desde a Grande Depressão,<br />
nos anos 30 do século passado, e obrigou<br />
todos a mudarem a forma de viver.<br />
Mas o vírus não demorou a ganhar terreno<br />
no Continente Berço, e o mais certo<br />
é que o número de casos seja superior ao<br />
oficial devido à falta de capacidade de<br />
detecção e de testagem a casos suspeitos<br />
por manifesta falta de meios.<br />
“PREPAREM-SE PARA O PIOR”<br />
Poucos dias depois de declarar a pandemia,<br />
Tedros Ghebreyesus apelou a África<br />
para que se preparasse para o pior no combate<br />
à doença, que na altura já estava em<br />
33 países da região, com mais de 600 casos.<br />
Então, Moçambique ainda não estava<br />
neste “mapa”. “Noutros países vimos como<br />
REUTERS<br />
o vírus acelerou a partir de um certo limiar.<br />
O melhor conselho para África é que deve<br />
preparar-se para o pior desde já”, disse o<br />
director-geral da OMS em teleconferência<br />
de imprensa. No mesmo registo falou,<br />
pela mesma altura, o chefe do Centro Africano<br />
de Controlo e Prevenção de Doenças<br />
(CDC), John Nkengasong. “África<br />
deve preparar-se para um sério desafio”,<br />
disse. “Ainda acredito que a contenção é<br />
possível, mas apenas com testes e vigilância<br />
extensos”, acrescentou. Não foi apenas<br />
por ser africano e conhecer o terreno que o<br />
etíope que lidera a agência das Nações para<br />
a Saúde se referiu ao problema dos países<br />
mais pobres e vulneráveis, sendo que muitos<br />
estão precisamente em África. O continente<br />
tem as condições certas para que<br />
uma tempestade perfeita de factores abra<br />
as portas à rápida transmissão da doença.<br />
A elevada abertura ao comércio e migrações,<br />
a fragilidade dos sistemas de saúde<br />
e de controlo epidemiológico, a escassez<br />
de água potável para a lavagem frequente<br />
das mãos, a forte dependência do exterior<br />
para produtos alimentares, o elevado peso<br />
da exportação de matérias-primas nalguns<br />
dos países do continente , o avançado grau<br />
de informalidade da economia, os inúmeros<br />
aglomerados populacionais nas cidades<br />
e nos subúrbios, onde vivem milhões<br />
de pessoas sem que seja tecnicamente possível<br />
haver distanciamento social, são, em<br />
resumo, os principais factores de risco.<br />
RECESSÃO A CAMINHO<br />
No início de Abril, um documento da<br />
União Africana (UA), designado “Impacto<br />
do Coronavírus (COVID-19) na Economia<br />
Africana”, dava já como certa a recessão<br />
no continente — e no mundo —, que<br />
viria a ser confirmada pelo Fundo Monetário<br />
Internacional (FMI) e outras instituições<br />
pouco depois.<br />
A doença, indica o documento, “chegou<br />
a 50 Estados da União Africana (…) e não<br />
dá sinais de abrandar”. África, acrescenta,<br />
devido à sua abertura ao comércio internacional<br />
e a fluxos migratórios, “não está<br />
imune aos efeitos negativos da COVID-19”,<br />
quer endógenos, quer exógenos.<br />
Os efeitos exógenos, explica a UA, derivam<br />
das ligações comerciais entre África<br />
maio <strong>2020</strong> | 41
ÁFRICA PANDEMIA<br />
e os parceiros afectados, como a Ásia,<br />
Europa ou EUA. A China, por exemplo,<br />
cujo crescimento para este ano foi “cortado”<br />
em Abril pelo FMI para 1,2% (face<br />
aos 5,8% estimados em Outubro de 2019),<br />
que pesa 16% no PIB mundial, é o principal<br />
parceiro de vários países africanos,<br />
incluindo os mais frágeis, na região subsariana.<br />
Na prática, África leva por tabela,<br />
porque muito do seu comércio depende do<br />
estado de saúde das economias com que se<br />
relaciona, com a China à cabeça.<br />
Dentro desta categoria de efeitos estão<br />
a queda nas remessas da Diáspora Africana<br />
e nas receitas do turismo, o recuo<br />
do investimento directo estrangeiro (IDE)<br />
e da assistência ao desenvolvimento, ou<br />
fluxos de financiamento ilícitos e o aperto<br />
do mercado financeiro local.<br />
No caso das remessas, as contas viriam<br />
a ser feitas pelo Banco Mundial, dando<br />
nota do rombo nas contas públicas de muitos<br />
países: o seu valor deve afundar 32,1%<br />
este ano, face a 2019, para 37 mil milhões<br />
de dólares, devido a “uma combinação de<br />
factores alimentada pela propagação da<br />
COVID-19 nos principais destinos onde<br />
residem os emigrantes africanos na Europa,<br />
EUA, Médio Oriente e China”, que valem<br />
25% de todas estas remessas.<br />
O relatório “Africa Pulse”, do Banco<br />
Mundial, assinala que “as remessas são<br />
uma das principais fontes de receita em<br />
moeda externa para a região e servem como<br />
importante canal de partilha de risco no<br />
mundo em desenvolvimento”.<br />
O Banco Mundial prevê uma quebra do<br />
PIB na África Subsariana de 2,1% a 5%,<br />
face à anterior estimativa de crescimento<br />
médio de 2,4%, e uma perda de receitas entre<br />
37 mil milhões de dólares e 79 mil milhões<br />
de dólares, em função da duração da pandemia<br />
e das medidas adoptadas pelos países<br />
para conter a sua progressão.<br />
PERDAS AFRICANAS<br />
Por causa da pandemia o<br />
continente poderá perder:<br />
50 MIL MILHÕES DE DÓLARES<br />
em receitas do turismo<br />
2 MILHÕES DE EMPREGOS<br />
directos e indirectos<br />
30% DA RECEITA FISCAL<br />
estimada em 500 mil milhões<br />
de dólares em 2019<br />
1,1%<br />
é quanto o PIB africano poderá<br />
cair<br />
65 MIL MILHÕES DE DÓLARES<br />
só em Angola e na Nigéria<br />
devido ao colapso dos preços<br />
do petróleo<br />
90 MIL MILHÕES DE DÓLARES<br />
retirados dos mercados<br />
africanos por investidores<br />
internacionais com receio<br />
do que possa suceder no<br />
continente<br />
ANDAR PARA TRÁS<br />
As contas do Banco Mundial não diferem<br />
muito das divulgadas, também em Abril,<br />
pelo FMI (Previsões da Primavera), onde<br />
se estima que a região entre em recessão<br />
pela primeira vez na sua história, com o<br />
PIB a recuar, em média, 1,6%, e de forma<br />
mais agravada nos países petro-dependentes,<br />
como Angola ou a Nigéria. A UA, por<br />
seu turno, aponta para uma quebra de -0,8<br />
a 1,1 do PIB. Quanto à economia mundial,<br />
o FMI aponta para uma recessão de 3%<br />
(ver gráficos e projecções nestas páginas).<br />
Os efeitos endógenos da COVID-19 na<br />
economia do continente, indica o “África<br />
Pulse”, resultam “da rápida propagação<br />
do vírus em muitos países” africanos. “Por<br />
um lado, estão associados à mortalidade<br />
e morbilidade. Por outro, conduzem à ruptura<br />
das actividades económicas, podendo<br />
causar uma queda da procura interna e de<br />
receitas fiscais devido à quebra do preço<br />
de commodities, associada ao aumento dos<br />
gastos públicos em saúde e apoio às economias”,<br />
explica.<br />
Na verdade, em países como Angola ou<br />
a Nigéria, a queda do preço do petróleo é<br />
um quebra-cabeças. E não parece haver<br />
solução à vista, dado que o valor do barril,<br />
que negociou pela primeira vez em terreno<br />
negativo (cerca de 37 dólares) em Abril,<br />
mantém-se em baixa e o corte anunciado<br />
pela OPEP+ não convenceu os mercados.<br />
O abrandamento da China e da economia<br />
global, à medida que as medidas de confinamento<br />
foram adoptadas pelos países,<br />
causou uma queda súbita, mas prolongada,<br />
da procura, que está cerca de 30 milhões<br />
de barris abaixo da oferta — e levou ao<br />
problema inédito de falta de capacidade<br />
de armazenamento, levando os preços ao<br />
“tapete”. O petróleo ficou mais do que em<br />
saldos: houve quem pagasse para o vender.<br />
“A pandemia de COVID-19 atingiu quase<br />
todos os países africanos e parece poder<br />
evoluir dramaticamente. A ruptura na economia<br />
mundial, por via das cadeias de valor<br />
globais, a queda abrupta do preço das commodities<br />
e das receitas fiscais, e o reforço das<br />
restrições às viagens e [contactos] sociais<br />
em muitos países africanos são as principais<br />
causas para o crescimento negativo”,<br />
lê-se no documento da UA.<br />
“A instituição estima que as exportações<br />
e importações dos países africanos<br />
caiam pelo menos 35%, face a 2019,<br />
com uma perda em valor estimada em<br />
270 mil milhões USD.” E mais: “A luta contra<br />
a propagação do vírus e em tratamentos<br />
médicos irá conduzir a um aumento dos<br />
gastos públicos em África em, no mínimo,<br />
130 mil milhões de dólares.”<br />
TURISMO DOENTE<br />
Além do petróleo, a aviação comercial e o<br />
turismo são dois dos sectores mais afectados<br />
em África — e no mundo. “O turismo,<br />
sector importante em muitos países em<br />
África, será pesadamente afectado pela<br />
COVID-19, com a generalização das restrições<br />
a viagens, encerramento de fronteiras<br />
e distanciamento social”, destaca.<br />
A IATA [associação que agrega as companhias<br />
aéreas mundiais] estima que o contributo<br />
da indústria de transporte aéreo<br />
para África é de 55,8 mil milhões de dólares,<br />
garantindo 6,2 milhões de empregos<br />
e constituindo 2,6% do PIB. O sector<br />
garante o transporte, em condições normais,<br />
de 35% do comércio mundial, e cada<br />
emprego assegura outros 24 na cadeia<br />
42 | Exame Moçambique
MERCADOS<br />
INTERNACIONAIS:<br />
O recurso aos<br />
empréstimos externos<br />
aumentará o nível<br />
de dívida dos países<br />
GETTY<br />
PANDEMIA FAZ DESCER O PIB<br />
O novo coronavírus faz estragos na economia<br />
moçambicana, agravando mais a já débil situação<br />
das contas públicas O crescimento do PIB, em<br />
percentagem, foi revisto em forte baixa pelo FMI<br />
em Abril de <strong>2020</strong>, face a Outubro de 2019…<br />
Crescimento do PIB (em %)<br />
6%<br />
… E O SALDO FISCAL É AGRAVADO…<br />
(valores em % do PIB)<br />
-4,8%<br />
WEO Out 2019<br />
… ASSIM COMO A DÍVIDA GOVERNAMENTAL<br />
que fica a valer um PIB e três quartos<br />
(valores em % do PIB)<br />
106,8%<br />
125,4%<br />
2,2%<br />
-14%<br />
WEO Out 2019 WEO Abr <strong>2020</strong><br />
WEO Abr <strong>2020</strong> WEO Out 2019<br />
WEO Abr <strong>2020</strong><br />
Fonte: WEO Out. 2019 e Abril <strong>2020</strong>.<br />
de valor das viagens e turismo, sendo responsável,<br />
segundo a IATA, por 70 milhões<br />
de postos de trabalho no mundo.<br />
Segundo a mesma fonte, à data do documento<br />
as companhias aéreas africanas já<br />
haviam perdido receitas de venda de bilhetes<br />
de 4,4 mil milhões de dólares até 11 de<br />
Março. Tendo as viagens e turismo, no conjunto,<br />
um contributo de 8,5% para o PIB<br />
da região (dados de 2019 da Organização<br />
Mundial de Turismo), não é difícil a antecipar<br />
que os efeitos venham a ser piores do<br />
que o previsto. “O turismo emprega mais<br />
de um milhão de pessoas na Nigéria, Etiópia,<br />
África do Sul, Quénia e Tanzânia, e tem<br />
um peso de 20% no emprego nas Seychelles,<br />
Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Maurícias.<br />
Nas crises anteriores, incluindo 2008<br />
e 2014, o turismo africano sofreu perdas de<br />
7,2 mil milhões de dólares”, assinala a UA.<br />
Contas feitas, num cenário médio o sector<br />
das viagens e turismo africano poderá<br />
perder, no mínimo, 50 mil milhões de dólares<br />
por causa da COVID-19, além de dois<br />
milhões de empregos directos e indirectos.<br />
CHOQUE COMERCIAL<br />
O comércio é mais um dos elos mais fracos<br />
de África no contexto COVID-19, baseando-<br />
-se sobretudo na venda de matérias-primas<br />
maio <strong>2020</strong> | 43
ÁFRICA PANDEMIA<br />
para a Europa, China e EUA. A queda dos<br />
preços é, por isso, um golpe severo para<br />
estes países, muito sujeitos a choques externos,<br />
com fraca industrialização, carência de<br />
infra-estruturas e de know-how, e com sistemas<br />
financeiros muitas vezes fracos. Com<br />
um peso de 29% no PIB da região, o acumulado<br />
das trocas comerciais com o exterior,<br />
entre 2015 e 2019, ascendeu a 760 mil<br />
milhões de dólares, mas o comércio intra-<br />
-regional pesa apenas cerca de 17% do total.<br />
Ainda antes de ser confirmado pelo FMI<br />
que a recessão mundial não iria passar ao<br />
lado de África, já a Comissão Económica<br />
das Nações Unidas para África (UNECA)<br />
alertara para o risco de, por causa da pandemia,<br />
o continente poder perder até 30%<br />
da receita fiscal, estimada em 500 mil<br />
milhões de dólares em 2019. “Os governos<br />
não vão ter outra opção que não seja<br />
depender dos mercados internacionais, o<br />
que pode aumentar o nível de dívida dos<br />
países, que deve ser usada para investimentos<br />
produtivos ou investimentos que<br />
aumentem o conhecimento, e não manterem<br />
os seus planos de despesa”, alertou<br />
TEDROS GHEBREYESUS:<br />
O melhor conselho<br />
para África, para o<br />
director-geral da OMS,<br />
é preparar-se para<br />
o pior desde já<br />
APESAR DOS APOIOS<br />
JÁ RECEBIDOS, ÁFRICA<br />
PRECISA DE MAIS MEIOS<br />
PARA ESTA LUTA<br />
a entidade a 6 de Abril, de acordo com a<br />
Lusa. “Existe uma alta probabilidade de<br />
muitos países enfrentarem uma implosão<br />
no volume de dívida externa e nos custos<br />
de servir a dívida devido à subida dos<br />
défices orçamentais, já que vão precisar de<br />
colocar mais ênfase nas despesas sociais,<br />
incluindo os sistemas de saúde, estímulos<br />
económicos aos agregados familiares e às<br />
pequenas e médias empresas”, acrescentavam,<br />
estimando uma queda do PIB africano<br />
de 0,8% a 1,1% e a perda de 30 milhões de<br />
empregos formais e informais.<br />
“Quando às perdas ligadas ao colapso dos<br />
preços do petróleo, valem 65 mil milhões<br />
de dólares para Angola e Nigéria, o que<br />
resulta numa redução das reservas em<br />
D.R.<br />
moeda externa e na capacidade de implementar<br />
os seus programas de desenvolvimento”,<br />
concluía o documento. Só que,<br />
na altura, o petróleo estava a 30 dólares o<br />
barril... de então para cá, o mundo mudou.<br />
DINHEIRO A FUGIR<br />
Os efeitos são quase intermináveis. As<br />
organizações internacionais apontam para<br />
uma quebra no IDE global até 15% este<br />
ano, face a 2019, incluindo em África, uma<br />
região onde a maioria do emprego (mais<br />
de 90% em muitos países) é ainda informal<br />
— o que se irá agravar com a suspensão,<br />
ou não, da decisão de investimentos<br />
e com os efeitos de contenção e mitigação<br />
da doença (destruição de cadeias de<br />
valor, confinamento da população, encerramento<br />
de restaurantes, bares, comércio,<br />
etc.). Acresce que, segundo o FMI, desde o<br />
início do ano, cerca de 90 mil milhões de<br />
dólares foram retirados dos mercados africanos<br />
por investidores internacionais com<br />
receio do que possa suceder no continente.<br />
Nalguns países, com apoios públicos ou<br />
de associações, como na África do Sul, os<br />
governos garantem algum suporte a trabalhadores<br />
cuja actividade foi afectada<br />
pela pandemia. E há, ainda, medidas de<br />
natureza fiscal, como o adiamento ou suspensão<br />
da cobrança de impostos, sobre os<br />
sistemas bancários, para torná-los menos<br />
expostos, de despesa pública (reforço dos<br />
orçamentos da saúde), monetárias ou sobre<br />
taxas de juro — desgravando-as nalguns<br />
países. O problema é que, na maior parte<br />
dos casos, não há dinheiro que aguente.<br />
Por isso, os apelos ao apoio directo e ao<br />
perdão da dívida africana têm sido muitos...<br />
e já com alguns resultados.<br />
PERDOA-ME QUE DEPOIS EU PAGO<br />
Quando caímos em desgraça é que vemos<br />
quem são os nossos amigos, diz o ditado.<br />
E, a avaliar pelos apoios entretanto surgidos<br />
para o combate aos efeitos sanitários<br />
e económicos da COVID-19, África tem<br />
hoje mais amigos do que nunca, pelo menos<br />
se traduzirmos a amizade em dinheiro —<br />
dado ou, na maior parte dos casos, emprestado,<br />
mas a bom preço.<br />
Para já, ainda assim, o dinheiro não chega,<br />
havendo um défice de 44 mil milhões de<br />
44 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 45
ÁFRICA PANDEMIA<br />
dólares que o apoio de outros “amigos” —<br />
pessoas e empresas — não conseguirá cobrir.<br />
O alerta surgiu em meados do mês passado,<br />
com FMI e o Banco Mundial a dizerem<br />
ter contribuído para os 57 mil milhões<br />
de dólares mobilizados pelos credores oficiais<br />
para apoiar os cuidados de saúde e a<br />
recuperação económica no continente, e<br />
que 13 mil milhões de dólares provinham<br />
de fundos privados. “É um começo importante,<br />
mas o continente precisa de cerca<br />
de 114 mil milhões de dólares em <strong>2020</strong> na<br />
sua luta contra a COVID-19, deixando um<br />
défice de financiamento de cerca de 44 mil<br />
milhões de dólares”, lê-se na declaração.<br />
Também Cyril Ramaphosa, o Presidente<br />
sul-africano e presidente em exercício da<br />
UA, destacou que a pandemia “já teve um<br />
impacto devastador em África e os seus efeitos<br />
irão agravar-se à medida que a taxa de<br />
infecção aumentar”. A COVID-19, alertou,<br />
é “um revés para os progressos que fizemos<br />
para erradicar a pobreza, a desigualdade<br />
e o subdesenvolvimento”.<br />
Os apelos ao perdão da dívida acabaram<br />
por surtir efeito também junto do G20, a<br />
quem o Presidente francês pediu para que<br />
África fosse ajudada também com mais<br />
linhas de crédito. Macron queria um perdão<br />
total, mas saiu “vencido” da decisão,<br />
que o G7 já tinha defendido, desde que<br />
também fosse assumida pelo... G20.<br />
No dia 15 de Abril, os países deste grupo<br />
aprovaram uma moratória de um ano no<br />
pagamento das dívidas dos países mais<br />
pobres, incluindo muitos Estados em<br />
África, com efeitos a partir de 1 de <strong>Maio</strong>,<br />
libertando recursos no valor de cerca de<br />
20 mil milhões de dólares para o combate<br />
à doença e medidas de apoio à economia.<br />
O perdão foi em geral bem recebido, mas<br />
nem todos concordaram com o seu modelo,<br />
incluindo o economista guineense Carlos<br />
Lopes, professor na Universidade sul-africana<br />
do Cabo, para quem a medida não é<br />
suficiente para fazer face ao problema. Em<br />
entrevista à RFi, o também antigo secretário-executivo<br />
da UNECA defendeu ser<br />
necessário um dispositivo mais alargado<br />
para dar margem aos Estados africanos<br />
para fazerem face à pandemia. Para o economista,<br />
o modelo deveria abranger não só<br />
os 19 países menos avançados de África,<br />
O TURISMO ESTÁ A<br />
SOFRER QUEBRAS QUE<br />
AMEAÇAM O FUTURO<br />
DE EMPRESAS<br />
mas também países de desenvolvimento<br />
médio, a braços, nomeadamente, com a<br />
queda dos preços das matérias-primas e<br />
a desvalorização das respectivas moedas.<br />
Antes, o FMI anunciara o perdão do serviço<br />
da dívida durante seis meses a 25 dos<br />
países mais pobres do mundo, para permitir<br />
a libertação de recursos para o combate<br />
à pandemia, sendo a maioria em África.<br />
Moçambique, recorde-se, foi um dos beneficiados,<br />
com um perdão de 15 milhões de<br />
dólares, que Maputo anunciou ir aplicar no<br />
combate à doença. Entretanto, no passado<br />
24 de Abril, o FMI aprovou um desembolso<br />
de 309 milhões de dólares, no âmbito da<br />
Facilidade Rápida de Crédito, para ajudar<br />
o país a suprir as necessidades urgentes da<br />
balança de pagamentos e fiscais decorrentes<br />
da pandemia na economia, que sofreu<br />
“um impacto significativo (…), interrompendo<br />
uma recuperação nascente após dois<br />
poderosos ciclones tropicais que ocorreram<br />
em 2019”. De acordo com a Lusa, que cita<br />
o comunicado do FMI, este apoio financeiro<br />
de emergência surge “em conjunto<br />
com o financiamento adicional em donativos<br />
que ajudará a catalisar, contribuirá<br />
para atender as necessidades urgentes da<br />
balança de pagamentos de Moçambique<br />
geradas pela pandemia”, disse o director-<br />
-executivo adjunto do FMI, Tao Zhang,<br />
referindo o apoio adicional que advém da<br />
decisão do G20. E é bem-vinda a ajuda. No<br />
caso de Moçambique, um estudo da Equipa<br />
de Resposta à COVID19 do Imperial College,<br />
em Londres, alertou para o risco de<br />
haver 61 mil a 65 mil mortos no país se o<br />
governo não tomasse acções concretas, e<br />
disse que 94% da população poderia contrair<br />
a doença.<br />
A CARTA NO FT<br />
O Presidente francês não foi o único a<br />
pedir um perdão fiscal, além de líderes<br />
africanos. E a causa do perdão, ou moratória,<br />
atingiu o expoente no mesmo dia<br />
em que o G20 decidiu dar apoio, por via<br />
da moratória, através de uma carta aberta<br />
publicada no Financial Times assinada por<br />
18 presidentes e chefes de governo europeus<br />
e africanos, apelando a uma redução<br />
da dívida dos países africanos e a um<br />
plano de relançamento económico de cerca<br />
de 100 mil milhões de dólares. “Só uma<br />
vitória mundial que inclua inteiramente<br />
a África pode pôr fim a esta pandemia”,<br />
escreveram os signatários no seu “Apelo<br />
à Acção”, incluindo Emmanuel Macron,<br />
o Presidente angolano, João Lourenço, ou<br />
o primeiro-ministro português, António<br />
Costa. Na carta, onde também constam os<br />
nomes dos presidentes do Quénia e Etiópia,<br />
os políticos afirmam que “devemos<br />
instaurar uma moratória imediata sobre<br />
todos os pagamentos de dívidas bilateral<br />
ou multilateral, pública e privada, até ao<br />
desaparecimento desta pandemia”.<br />
“A crise mostrou o quão estamos interligados.<br />
Nenhuma região pode vencer a<br />
COVID-19 sozinha. Se não for derrotada<br />
em África, voltará a perseguir todos nós.<br />
Vamos trabalhar com os parceiros do G7 e<br />
do G20 para acabar com a pandemia onde<br />
TURISMO AFRICANO:<br />
Poderá perder, no<br />
mínimo, 50 mil milhões<br />
de dólares por causa<br />
da COVID-19<br />
46 | Exame Moçambique
ela se encontrar e construir sistemas de<br />
saúde resilientes para manter as pessoas<br />
seguras no futuro”, dizem. “O tempo não<br />
é para divisões ou política, mas sim unidade<br />
e cooperação”, refere o texto, que<br />
tem ainda como subscritores os presidentes<br />
da Comissão Europeia, Ursula Von der<br />
Leyen, e do Conselho Europeu, Charles<br />
Michel, além do primeiro-ministro espanhol,<br />
Pedro Sánchez, italiano, Giuseppe<br />
Conte, e o holandês, Mark Rute. Do lado<br />
africano, assinaram igualmente os presidentes<br />
do Ruanda, Paul Kagamé, Senegal,<br />
Macky Sall, África do Sul, República<br />
Democrática do Congo, Félix Tshisekedi,<br />
Etiópia, Abyi Ahmed Ali, Mali, Ibrahim<br />
Boubacar Keita, e Egipto, Abdul Fatah<br />
Khalil Al-Sisi, bem como o ex-primeiro-<br />
-ministro do Chade, Moussa Faki.<br />
CAIR PARA SE<br />
REERGUER MAIS FORTE<br />
A questão da resiliência, sublinhada na<br />
carta, é também uma das ideias fortes do<br />
texto das previsões da Primavera do FMI<br />
para a África Subsariana, assim como do<br />
“Africa Pulse”, do Banco Mundial, que<br />
aponta para riscos de quebra da cadeia<br />
de distribuição alimentar e fortes perdas<br />
nos rendimentos das pessoas e empresas<br />
da região. “Lançar as sementes de resiliência<br />
futura”, diz o documento, é aquilo que<br />
se impõe neste momento como “condição<br />
sine qua non para evitar mais uma década<br />
perdida no desenvolvimento de África”.<br />
“A resposta política deve considerar estratégias<br />
que melhorem as questões ligadas à<br />
água e saneamento básico, que resolvam o<br />
problema da crise de capital humano, especialmente<br />
no sector da saúde, que reforcem<br />
as tecnologias digitais para o comércio e<br />
governação durante e após o confinamento,<br />
devem manter um nível de investimento<br />
saudável em energia e estimular as cadeias<br />
de valor africanas ao abrigo do Acordo<br />
de Comércio Livre Continental Africano<br />
(AfCFTA, no acrónimo inglês)”, defende<br />
o Banco Mundial. “Os políticos e os parceiros<br />
de desenvolvimento devem pensar a<br />
longo prazo e criarem políticas que gerem<br />
maior resiliência e aumentem a produtividade,<br />
permitindo assim que as economias<br />
africanas recuperem mais depressa e<br />
prosperem após a COVID-19”, acrescenta.<br />
E será seguramente necessária esta visão<br />
de longo prazo, até porque, como alertou<br />
D.R.<br />
Michel Yao, líder do programa de resposta<br />
a emergências para África da OMS, no dia<br />
9 de Abril passado, ainda antes de ser conhecido<br />
o apoio do G20 (e a disponibilidade<br />
chinesa para encontrar as melhores soluções<br />
para os seus parceiros africanos), “sem<br />
ajuda e acções imediatas, os países pobres e<br />
as comunidades vulneráveis podem sofrer<br />
uma devastação em massa”. “O número<br />
de infecções em África é relativamente<br />
baixo, mas está a subir de forma rápida”,<br />
acrescentou o director-geral da OMS, que<br />
rapidamente foi apoiado pelos presidentes<br />
da África do Sul, Nigéria e Ruanda.<br />
O pior pode estar para vir, mas vai passar,<br />
e por isso é preciso pensar desde já<br />
em medidas pós-COVID, como lembra<br />
a UA. Por isso, avança com um conjunto<br />
de recomendações, com a necessidade de<br />
diversificação da economia e reforço da<br />
produtividade à cabeça, para aumentar os<br />
recursos internos e reduzir a dependência<br />
de fluxos do exterior. É preciso aumentar<br />
a produção agrícola e melhorar as cadeias<br />
de valor alimentares para que haja resposta<br />
ao consumo doméstico, no caso dos países,<br />
e continental. A região subsariana, lembra<br />
o documento, gastou quase 48,7 mil<br />
milhões USD na importação de alimentos<br />
o ano passado, dinheiro que poderia, em<br />
parte, ser investido na agricultura.<br />
A UA recomenda que os Estados completem<br />
a ratificação da criação da Agência<br />
Africana de Medicina e estabeleçam parcerias<br />
público-privadas para produzir medicamentos<br />
e material médico, reduzindo<br />
a dependência do exterior. Apela ainda a<br />
que sejam feitos investimentos na saúde,<br />
com o reforço dos orçamentos públicos, e<br />
que se aposte na digitalização, até como<br />
forma de criação de emprego paras novas<br />
gerações. E sugere que se acelere a implementação<br />
da AfCFTA.<br />
Boas ideias, mas “velhas”, como é sabido.<br />
Até aqui, na maioria dos países não se<br />
implementou como devia estas medidas<br />
— e outras. Será que a COVID-19 vai ter<br />
a força que outras doenças e carências persistentes<br />
não tiveram no continente? A resposta<br />
que todos desejamos é que sim, que<br />
seja desta. Se tal suceder, confirma-se que<br />
afinal é — ou pode ser — verdade que há<br />
“males que vêm por bem”. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 47
ÁFRICA PANDEMIA<br />
O QUE FAZER QUANDO<br />
TUDO ARDE?<br />
Em meados de Abril passado, a União Africana divulgou um documento sobre o impacto<br />
económico da COVID-19 na região, propondo um conjunto de acções aos Estados-membros<br />
para mitigar os efeitos da pandemia na economia, as populações e os seus rendimentos.<br />
Na altura, o número de casos aproximava-se dos 30 mil e já havia mais<br />
de mil mortes no continente. Eis as acções:<br />
GETTY<br />
TESTAGEM:<br />
A detecção precoce da infecção é<br />
prioritária no combate ao vírus<br />
48 | Exame Moçambique
,Testar sistematicamente todos<br />
os casos suspeitos para assegurar<br />
a detecção precoce da infecção<br />
e localizar novos focos, impedir<br />
o contacto entre pessoas afectadas<br />
e restante população.<br />
,Confinamento das populações<br />
infectadas e impedimento de<br />
atravessamento de fronteiras para<br />
conter a propagação da doença.<br />
,Avaliação periódica da necessidade<br />
de implementação de medidas de<br />
contenção e confinamento adicionais.<br />
,Divulgar as estatísticas de saúde<br />
e trabalhar em conjunto com<br />
a Organização Mundial de Saúde<br />
e o Centro de Controlo e Prevenção<br />
de Doenças Africano para contribuir<br />
para uma monitorização transparente<br />
da crise e estimular a confiança das<br />
populações nos sistemas públicos<br />
de saúde da região.<br />
ORÇAMENTOS DOS<br />
ESTADOS DEVEM<br />
PRIORIZAR A SAÚDE<br />
,Rever os orçamentos no sentido<br />
de priorizar gastos em sistema<br />
de saúde, incluindo na necessárias<br />
infra-estruturas e logística,<br />
adquirindo produtos médicos<br />
e farmacêuticos, equipamentos,<br />
materiais consumíveis, etc.<br />
,Criar financiamentos de<br />
emergência para reforçar a protecção<br />
social, tendo como principais alvos os<br />
trabalhadores informais que não<br />
usufruem de protecção e podem<br />
ser especialmente afectados por<br />
esta crise.<br />
,Reforçar o financiamento para<br />
pesquisa e investigação médicas. Há<br />
estudos que demonstram que, nos<br />
períodos entre pandemias, os fundos<br />
alocados à pesquisa e desenvolvimento<br />
de vacinas é quase inexistente,<br />
afectando a capacidade de os países<br />
reagirem quando surge uma nova.<br />
,Trabalhar com as comunidades<br />
e autoridades locais e com os<br />
empresários para desenvolver uma<br />
abordagem governamental de<br />
conjunto e que vá para além da crise,<br />
e criar soluções de contenção e<br />
tratamento em contexto local.<br />
DIVULGAÇÃO DE<br />
INFORMAÇÃO DEVE SER<br />
TRANSPARENTE<br />
,Proporcionar financiamento, acesso<br />
a informação e suporte regulatório<br />
para amplificar soluções inovadoras.<br />
,Promover uma partilha<br />
transparente de informação com os<br />
cidadãos e limitar a disseminação de<br />
notícias falsas (fake news).<br />
,Preparar as instituições de saúde<br />
para o tratamento de diferentes<br />
comunidades de infectados, incluindo<br />
mulheres, jovens e idosos.<br />
,Ponderar a captação de fundos<br />
de emergência nos mercados<br />
internacionais para apoiar o<br />
financiamento, tirando partido de<br />
taxas de juro mais reduzidas, numa<br />
altura em que muitos países poderão<br />
sofrer de saldos fiscais negativos<br />
devido ao aumento dos gastos<br />
e quebra de receitas.<br />
,Avançar com medidas económicas<br />
e financeiras, como garantias de<br />
dívida a privados, por exemplo, para<br />
apoiar empresas, incluindo pequenas<br />
e médias, e famílias, em resposta aos<br />
cortes de pessoal, para salvaguardar<br />
as actividades económicas.<br />
,Solicitar aos bancos centrais que<br />
baixem as taxas de juro, aumentem a<br />
concessão de crédito e proporcionem<br />
mais liquidez aos bancos comerciais,<br />
para que estes possam apoiar as<br />
actividades económicas.<br />
,Suspender o pagamento de taxas<br />
sobre créditos ao comércio, emissões<br />
corporativas, alugueres, activar linhas<br />
de liquidez dos bancos centrais para<br />
apoiarem a actividade económica<br />
e garantirem a capacidade de<br />
importação de commodities<br />
essenciais sem enfraquecer o sector<br />
bancário.<br />
,Avançar com pacotes de incentivos<br />
fiscais para minimizar o impacto da<br />
pandemia nas economias nacionais;<br />
preparar incentivos fiscais dedicados<br />
a contribuintes afectados pela<br />
COVID-19 e ponderar a suspensão<br />
de pagamento de impostos.<br />
,Suspender o pagamento de<br />
impostos em sectores críticos.<br />
,Renegociar planos e condições de<br />
pagamento de empréstimos externos<br />
para assegurar o cumprimento do<br />
serviço de dívida, incluindo suspender<br />
o pagamento de juros durante a crise,<br />
o que tem um impacto estimado de<br />
44 mil milhões de dólares neste ano,<br />
podendo estender-se.<br />
,Apelar a cessar-fogos com grupos<br />
rebeldes e armados para garantir que<br />
não há dispersão de esforços na<br />
contenção da doença em regiões<br />
onde haja conflitos no terreno.<br />
maio <strong>2020</strong> | 49
ÁFRICA PANDEMIA<br />
OS AMIGOS<br />
SÃO PARA<br />
AS OCASIÕES<br />
Um pouco por todo o mundo, várias têm sido as<br />
personalidades e empresas que anunciam donativos<br />
para apoiar a investigação de uma vacina contra o novo<br />
coronavírus e o combate à doença, sobretudo em países<br />
desfavorecidos, como a maioria dos africanos. Bill Gates<br />
está na linha da frente em África — mais uma vez<br />
RICARDO DAVID LOPES<br />
BILL E MELINDA GATES:<br />
A fundação com os seus<br />
nomes doou 150 milhões<br />
de dólares para detecção<br />
e controlo da COVID-19<br />
D.R.<br />
Fundação Bill & Melinda Gates,<br />
TikTok, Heineken, Gucci, fundações<br />
Jack Ma e Alibaba, Google,<br />
Facebook ou Netflix são<br />
apenas algumas das entidades<br />
que entregaram ou ajudaram a mobilizar<br />
donativos destinados a organizações internacionais<br />
para que estas possam apoiar<br />
no terreno os governos e populações de<br />
países africanos em tempo de pandemia.<br />
O co-fundador da Microsoft e a esposa<br />
são, aliás, apoiantes habituais de causas<br />
ligadas à saúde, e outras, em países da<br />
região, em especial a subsariana. Ainda<br />
nos primeiros dias de Fevereiro, quando<br />
a COVID-19 estava a semanas de ser<br />
declarada uma pandemia e a China era<br />
o centro das preocupações, com relatos<br />
de cerca de 700 mortes devido à doença,<br />
a Fundação do casal anunciou que iria<br />
doar 100 milhões de dólares destinados<br />
a apoiar entidades como os Centros de<br />
Controlo e Prevenção de Doenças dos<br />
EUA e a Organização Mundial de Saúde<br />
(OMS) a combaterem o vírus. Deste total,<br />
ficou decidido que 20 milhões de dólares<br />
seriam direccionados para a detecção,<br />
isolamento e tratamento do novo coronavírus,<br />
e 60 milhões de dólares para o<br />
desenvolvimento de uma vacina, mas uma<br />
“fatia”’ de 20 milhões de dólares foi distribuída<br />
a autoridades de saúde do Sul da<br />
Ásia e África Subsariana para combater<br />
FUNDAÇÃO BILL &<br />
MELINDA GATES JÁ<br />
ANUNCIOU DONATIVOS<br />
DE 250 MILHÕES DE<br />
DÓLARES, PARTE PARA<br />
ÁFRICA<br />
outras epidemias — até porque não havia<br />
ainda registo de nenhum caso positivo<br />
no continente.<br />
O avanço da doença, que a OMS declarou<br />
uma pandemia a 11 de Março, numa<br />
altura em que o total de casos conhecidos<br />
a nível mundial era de cerca de 118 mil, em<br />
114 países, e havia menos de 4300 mortes<br />
50 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 51
ÁFRICA PANDEMIA<br />
a lamentar, levou o antigo homem mais<br />
rico do mundo a reforçar, em Abril passado,<br />
o apoio ao combate à doença através<br />
do anúncio de mais 150 milhões de<br />
dólares, também via fundação, para a<br />
mesma causa.<br />
Com o reforço, duplicaram as linhas a<br />
aplicar em tratamento e diagnóstico e no<br />
apoio a países do Sul da Ásia e de África a<br />
lidar com esta crise. O dinheiro provém<br />
do fundo de investimento estratégico da<br />
fundação, que vale 2,5 mil milhões de<br />
dólares. O anúncio do donativo surgiu<br />
pouco depois de o Presidente norte-americano,<br />
Donald Trump, ter anunciado a<br />
suspensão do financiamento do seu país<br />
à OMS, alegando “má gestão” da pandemia<br />
de COVID-19, entre críticas a uma<br />
alegada proximidade da entidade das<br />
Nações Unidas e a China.<br />
A Fundação Bill & Melinda Gates é o<br />
segundo maior contribuidor em valor<br />
absoluto, atrás dos EUA, e o maior doador<br />
privado da OMS — e corre agora o risco<br />
de vir a ser o principal, incluindo entre<br />
todos os países que integram a instituição.<br />
A “RENDIÇÃO” DE MADONNA<br />
Warren Buffet, o bilionário norte-americano,<br />
fundador e líder da Berkshire<br />
Hathaway, é um dos mecenas da Fundação<br />
Gates, que com a pandemia conquistou<br />
uma nova fã, ou apoiante: Madonna.<br />
A cantora anunciou nos primeiros dias de<br />
Abril ter contribuído com um milhão de<br />
dólares para a entidade, para ajudar nos<br />
esforços de investigação para a descoberta<br />
de uma vacina contra o novo coronavírus.<br />
Num vídeo publicado no Instagram,<br />
a artista explica que o seu apoio à fundação<br />
visa ajudar a “encontrar um medicamento<br />
que evite ou trate a COVID-19”,<br />
uma doença para a qual a cantora de “Like<br />
a Virgin” admitiu ter “acordado” tarde.<br />
“Devo admitir que demorei tempo a aceitar,<br />
processar e modificar o meu estilo de<br />
vida”, disse.<br />
Tão generoso quanto o de Bill Gates, mas<br />
assumido de uma assentada, foi o contributo<br />
anunciado pela TikTok, ainda que<br />
não dirigido, no todo ou em parte, pelo<br />
menos de forma explícita, ao continente<br />
africano. A rede social detida pela Byte-<br />
Dance, fundada em 2012, em Pequim, decidiu<br />
doar 250 milhões de dólares, numa<br />
altura (10 de Abril) em que a pandemia já<br />
afectava mais de 1,5 milhões de pessoas e<br />
tinha conduzido à morte quase 100 mil.<br />
O grupo, cuja rede social ganhou popularidade<br />
no confinamento, explicou que<br />
iria atribuir 150 milhões ao seu Fundo<br />
de Apoio aos Heróis da Saúde, para que<br />
este o distribuísse a organizações como<br />
a Cruz Vermelha, que actua em todo o<br />
mundo. “Generoso” para com os seus<br />
TIKTOK ANUNCIOU<br />
CONTRIBUTO DE 250<br />
MILHÕES DE USD PARA<br />
O COMBATE À DOENÇA<br />
utilizadores, o TikTok atribuiu outros<br />
50 milhões de dólares a grupos “representativos<br />
de comunidades que utilizam<br />
a aplicação” (artistas, enfermeiros e educadores)<br />
e o restante, explicou a empresa<br />
através de comunicado, seria destinado<br />
a “professores, técnicos e associações que<br />
colocam os seus talentos e experiências<br />
ao serviço da educação”, para apoiar o<br />
ensino à distância.<br />
As tecnológicas têm sido, de resto, empresas<br />
“amigas” da causa do combate à pandemia<br />
nos países mais desfavorecidos,<br />
quer fazendo donativos a organizações<br />
não governamentais (ONG) que depois<br />
actuam no terreno, quer associando-<br />
-se a iniciativas de financiamento global<br />
de medidas de combate à doença promovidas<br />
por entidades oficiais. Google<br />
e Facebook, por exemplo, associaram-<br />
-se ao Fundo Social Solidário lançado<br />
pela OMS, desenvolvendo plataformas<br />
de crowdfunding globais. A iniciativa —<br />
Solidarity Responde Fund —, criada em<br />
parceria com a ONU e a Swiss Philanthropic<br />
Foundation, está aberta a todas<br />
as pessoas, empresas ou organizações<br />
que queiram contribuir para a investigação<br />
do vírus, os esforços para desenvolver<br />
vacinas, o tratamento de doentes<br />
(incluindo a compra de máscaras, batas<br />
e óculos de protecção) e a formação de<br />
profissionais de saúde.<br />
UNITED BANK<br />
FOR AFRICA:<br />
Já entregou<br />
100 mil dólares<br />
a Moçambique<br />
para o combate<br />
à pandemia<br />
FACEBOOK QUER CAPTAR<br />
10 MILHÕES DE DÓLARES<br />
No caso do Facebook, a meta é atingir<br />
donativos até 10 milhões de dólares, sendo<br />
que, no início da última semana de Abril,<br />
mais de metade (5,5, milhões de dólares)<br />
já havia sido alcançada. A Gucci, famosa<br />
marca italiana de roupa e malas de luxo,<br />
entre outros, foi um dos contribuidores,<br />
com nada menos do que um milhão de<br />
euros para o fundo, via Facebook.<br />
Da área das bebidas, também surgem<br />
apoios. A Heineken doou 15 milhões de<br />
dólares à Federação Internacional das<br />
Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente<br />
Vermelho (CICV), verba destinada<br />
ao apoio aos mais carenciados afectados<br />
52 | Exame Moçambique
pela pandemia, sobretudo em África, Ásia<br />
e América Latina.<br />
Do Oriente, além da TikTok têm chegado<br />
mais apoios, neste caso específicos<br />
para África. As fundações Jack Ma e Alibaba<br />
anunciaram em Março que iriam<br />
doar 100 mil máscaras cirúrgicas, 20 mil<br />
kits de teste e mil batas e escudos de proteção<br />
para cada uma das 54 nações do continente<br />
africano. As duas organizações,<br />
fundadas por Jack Ma, o milionário chinês<br />
que lançou que fundou o Grupo Alibaba,<br />
tecnológica multinacional de e-commerce<br />
conhecida como a Amazon da China, ou<br />
Amazon do Oriente, viriam, entretanto,<br />
a anunciar uma segunda vaga de recolha<br />
de donativos.<br />
D.R.<br />
Jack Ma, o homem mais rico da China<br />
e o 17.º mais rico do mundo, segundo a Forbes,<br />
espalhou aos sete ventos o seu apoio a<br />
esta causa numa conta que criou no Twitter.<br />
Esta atitude tem levado alguns analistas<br />
a questionarem se não estará em conluio<br />
com as autoridades de Pequim para ajudar<br />
a “limpar” a imagem da China, que<br />
saiu fortemente beliscada em todo este<br />
processo, por alegadamente ter perdido<br />
tempo precioso a admitir o problema que<br />
tinha dentro de portas, com origem no<br />
entretanto famoso mercado de animais<br />
vivos de Whuan. Numa publicação a<br />
21 de Abril, diz estarem em causa donativos<br />
entregues à OMS destinados a mais<br />
de 150 países e regiões — incluindo 100<br />
milhões de máscaras cirúrgicas, um milhão<br />
de máscaras tipo N95 e um milhão de testes.<br />
“Este material será fornecido a quem<br />
mais deles precisa”, explica o antigo professor<br />
de Inglês, hoje dedicado às fundações,<br />
depois de ter deixado a liderança<br />
executiva do Alibaba.<br />
Outras empresas, entidades e personalidades<br />
têm dado apoios, em dinheiro<br />
ou material, a nível local ou global, associando-se<br />
a uma causa global que conquista<br />
cada vez mais adeptos, com microiniciativas<br />
de captação de fundos para a compra<br />
de material médico.<br />
VATICANO AVANÇA<br />
COM 750 MIL DÓLARES<br />
E nem o Vaticano ficou de fora. A 6 de Abril,<br />
o Papa Francisco anunciou a criação de<br />
um fundo de emergência para áreas missionárias<br />
afectadas pela pandemia, como<br />
regiões da Ásia, América Latina e África,<br />
onde a escassez de meios e as insuficiências<br />
dos serviços de saúde e saneamento<br />
básico, combinadas com a COVID-19,<br />
podem criar situações de gestão complexa.<br />
No comunicado em que anunciou a iniciativa,<br />
o Vaticano referiu que o Papa fez<br />
uma primeira doação de 750 mil dólares e<br />
está “a convidar toda a vasta rede da Igreja<br />
a enfrentar os desafios futuros”, apelando<br />
assim aos diferentes organismos da Igreja<br />
a contribuírem para esse fundo por meio<br />
das Pontifícias Obras Missionárias.<br />
De acordo com o Vaticano, só em África<br />
há mais de 74 mil religiosas e mais de<br />
46 mil padres que administram 7274 hospitais<br />
e clínicas, 2346 lares para idosos e<br />
vulneráveis e educam mais de 19 milhões<br />
de crianças em 45 088 escolas primárias<br />
e em muitas áreas rurais.<br />
FACEBOOK E GOOGLE<br />
ASSOCIARAM-SE À<br />
RECOLHA DE DONATIVOS<br />
PARA FUNDO DA OMS<br />
MOÇAMBIQUE RECEBE APOIOS<br />
Também em Moçambique já houve manifestações<br />
de solidariedade por parte de<br />
instituições, nomeadamente do United<br />
Bank for Africa (UBA) e Letsego. No primeiro<br />
caso, o país beneficiou já de 100<br />
mil dólares entregues ao gabinete da primeira-dama,<br />
Isaura Nyusi, a serem usados<br />
em acções de combate à pandemia.<br />
O UBA, com sede na Nigéria e presente<br />
em 23 países do continente, lançou um<br />
fundo de 13,8 milhões de dólares a distribuir<br />
por 20 subsidiárias do grupo.<br />
A ajuda será “em forma de financiamento<br />
aos governos locais ou doação de equipamentos<br />
críticos para a prevenção e protecção<br />
contra a pandemia”, explicou o<br />
grupo em comunicado. Já o banco Letsego<br />
disponibilizou cerca de 25 mil dólares<br />
ao Ministério da Saúde para a mesma<br />
finalidade.<br />
Contas feitas, há muitas centenas de<br />
milhões de “dólares solidários” a caminho<br />
ou chegados a África por causa da<br />
pandemia. A soma é bem superior à que,<br />
em 1985, o Live Aid — focado no apoio<br />
ao combate à fome na Etiópia — viria a<br />
captar, sobretudo em direitos associados<br />
ao evento e não tanto em donativos:<br />
cerca de 150 milhões de dólares. Tomando<br />
a inflação que desde então se fez sentir,<br />
hoje seriam 357,8 milhões de dólares.<br />
O desafio é de uma dimensão incomparável.<br />
A globalização — de que o Live Aid foi<br />
um dos primeiros marcos, transmitido<br />
para mil milhões de pessoas em todo o<br />
mundo — tornou o mundo mais perigoso<br />
no que diz respeito a doenças. Mas, felizmente,<br />
também o tornou mais solidário. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 53
ÁFRICA PANDEMIA<br />
SAÚDE REFORÇADA, BANCA<br />
E EMPRESAS EM STRESS<br />
O<br />
governo adoptou medidas<br />
fiscais, monetárias e<br />
de política financeira para<br />
tentar conter os danos na<br />
economia e na população.<br />
A elevada dependência das trocas<br />
comerciais com a China e países da União<br />
Europeia, agora muito dificultadas pelas<br />
medidas de confinamento e o cenário<br />
macroeconómico, a debilidade do sistema<br />
de saúde e o peso da dívida no PIB, associado<br />
a riscos de incumprimento, são as<br />
principais vulnerabilidades da economia<br />
moçambicana, alerta o Fundo Monetário<br />
Internacional (FMI).<br />
No “Outlook Regional para a África<br />
Subsariana”, referente a Abril passado, a<br />
instituição revê em baixa o crescimento<br />
do PIB este ano, para 2,2%, face aos 6%<br />
que haviam sido estimados na previsão<br />
de Outubro de 2019, em linha com a estimativa<br />
do governo.<br />
Apesar de a pandemia não ter atingido<br />
Moçambique com a intensidade com que<br />
se abateu noutros países da região (havia<br />
46 casos, dos quais 12 recuperados, e zero<br />
mortes à data de fecho deste artigo, 24 de<br />
Abril), as consequências económicas e<br />
financeiras são devastadoras, atingindo<br />
em cheio as já débeis contas públicas.<br />
ADRIANO<br />
MALEIANE:<br />
O ministro da<br />
Economia e<br />
Finanças recorreu<br />
aos parceiros do<br />
país no combate<br />
à COVID-19<br />
D.R.<br />
O governo, como noutros países, tomou<br />
medidas para conter estes efeitos e evitar<br />
a paralisia completa da actividade económica<br />
em tempo de confinamento.<br />
Do ponto de vista fiscal, reforçou o<br />
orçamento da saúde, de 2 mil milhões<br />
(29,6 milhões de dólares) para 3,3 mil<br />
milhões de meticais (48,8 milhões de dólares),<br />
e o ministro da Economia e Finanças,<br />
Adriano Maleiane, pediu, ainda em<br />
Março, 700 milhões de dólares aos parceiros<br />
do país para enfrentar a pandemia.<br />
O FMI perdoou, entretanto, 15 milhões<br />
de dólares de dívida, canalizados para o<br />
combate à doença, numa altura em que<br />
já era sabido que Moçambique viu “evaporarem-se”<br />
da sua economia 26,4 mil<br />
milhões de meticais (cera de 390 milhões<br />
de dólares), fruto do ajustamento orçamental<br />
após a revisão em baixa do crescimento.<br />
Para procurar levar mais liquidez à economia,<br />
o banco central baixou o nível de<br />
reservas obrigatórias da banca comercial<br />
em 150 pontos base para depósitos<br />
em moeda nacional ou estrangeira, para<br />
11,5% e 34,5%, respectivamente. Também<br />
anunciou medidas para apoiar os mercados<br />
financeiros, incluindo uma linha de<br />
500 milhões de dólares por nove meses, e<br />
a suspensão até ao final do ano da obrigatoriedade<br />
de constituição, pelas instituições<br />
financeiras, de provisões relativas a<br />
risco de crédito de clientes afectados pela<br />
pandemia com os quais estejam a decorrer<br />
negociações de reestruturação, destaca<br />
o “Africa Pulse” de Abril, uma publicação<br />
do Banco Mundial.<br />
Do ponto de vista de política cambial a<br />
opção foi manter o regime flutuante, deixando<br />
o metical desvalorizar desde Março. b<br />
54 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 55
OIL<br />
& GAS<br />
LUÍS FARIA<br />
PROCURA AFUNDA:<br />
A crise provocada<br />
pela pandemia<br />
COVID-19 faz<br />
com que sobrem<br />
30 milhões de barris<br />
de petróleo no<br />
mercado<br />
PETRÓLEO<br />
PAGAR PARA VENDER<br />
GETTY<br />
O WTI (West Texas Intermediate), o petróleo<br />
comercializado nas praças norte-americanas,<br />
caiu a pique para valores negativos<br />
no dia 20 de Março (menos 37 dólares), um<br />
acontecimento sem precedentes históricos,<br />
com a data dos vencimentos dos contratos<br />
a concretizarem-se e os depósitos de<br />
crude à beira de deitar por fora. A capacidade<br />
de armazenamento norte-americana<br />
esgotou-se e o prazo de entrega também, e<br />
quem tinha petróleo para vender teve pagar<br />
ao comprador os custos com o armazenamento.<br />
A confirmação de que é impossível<br />
prever até que ponto a pandemia do<br />
novo coronavírus pode arrasar a economia<br />
mundial. Na sequência da queda do<br />
WTI, o preço do barril de Brent caiu, pela<br />
primeira vez em dezoito anos, para menos<br />
de 20 dólares por barril.<br />
Suspeitava-se que o corte operado pela<br />
OPEP e seus aliados, e que contou com a bênção<br />
norte-americana, de mais de 10 milhões<br />
de barris de petróleo diários (o equivalente<br />
a 10% da oferta), não chegasse para suprir<br />
a diferença, enorme, entre a oferta e a procura<br />
da matéria-prima energética. Refira-se,<br />
contudo, que este novo tombo no preço do<br />
petróleo ainda reflectiu o desentendimento<br />
entre a Arábia Saudita e a Rússia, que precedeu<br />
a decisão de retirar ao mercado<br />
10 milhões de barris de crude diariamente,<br />
traduzindo a estratégia então seguida por<br />
Riade de entornar petróleo no mercado.<br />
O modelo de contrato de futuros do petróleo<br />
adoptado na praça norte-americana é diferente<br />
do aplicado ao petróleo Brent negociado<br />
na plataforma da ICE Europe e que constitui<br />
a referência para as compras globais.<br />
WTI<br />
(USD/Barril-futuros)<br />
63,05 50,11 47,18 28,34 -37,08<br />
3Jan 3Fev 3Mar 3Abr 20Abr<br />
Fonte: Investing.<br />
56 | Exame Moçambique
ACORDO<br />
OPEP FAZ MAIOR CORTE DE SEMPRE<br />
D.R.<br />
Na semana que precedeu a queda<br />
aparatosa do WTI, a OPEP e os<br />
produtores aliados, um conjunto já<br />
conhecido como OPEP Plus, celebraram<br />
um acordo inédito, sem<br />
precedentes na história da indústria<br />
petrolífera, que estabelece que<br />
sejam retirados diariamente do mercado<br />
quase 10 milhões de barris de<br />
petróleo, o equivalente a 10% da<br />
oferta global da matéria-prima. Um<br />
valor que pode, segundo afirmou<br />
o Presidente dos Estados Unidos,<br />
Donald Trump, duplicar. O aval formal<br />
dos Estados Unidos ao acordo<br />
é outra grande novidade. Enquanto<br />
grande produtor, primeiro com o<br />
óleo extraído no Texas e, posteriormente,<br />
com a fracturação de<br />
xisto, os Estados Unidos, na verdade,<br />
nunca estiveram realmente<br />
ausentes dos acordos petrolíferos.<br />
Mas, desta vez, a sua presença<br />
explícita e o voluntarismo demonstrado<br />
para que se chegasse a um<br />
acordo reflecte os estragos brutais<br />
do tsunami pandémico na procura<br />
de petróleo. “O grande acordo de<br />
petróleo com a OPEP Plus está concluído.<br />
Tal economizará centenas<br />
de milhar de empregos em energia<br />
nos Estados Unidos. Gostaria<br />
de agradecer e dar os parabéns ao<br />
Presidente Putin, da Rússia, e ao rei<br />
Salman, da Arábia Saudita. Acabei<br />
de falar com eles da Sala Oval.<br />
Um grande negócio para todos!”,<br />
escreveu ontem Trump no Twitter.<br />
DONALD TRUMP: O Presidente tenta salvar<br />
a indústria norte-americana do óleo de xisto<br />
Produção dos EUA<br />
(Milhares de barris por dia)<br />
8 787<br />
Fonte: EIA.<br />
9 439<br />
8 839<br />
9 532<br />
10 990<br />
12 232<br />
2014 2015 2016 2017 2018 2019<br />
BRENT<br />
(USD/Barril-futuros)<br />
68,6 54,45 51,56 34,11 21,44<br />
APOIO<br />
TRUMP ADMITE ENTRAR<br />
EM EMPRESAS DE OIL&GAS<br />
3Jan 3Fev 3Mar 3Abr 24Abr<br />
DR<br />
Fonte: Investing.<br />
COVID-19<br />
DERRUBA PREÇO:<br />
Membro do exército<br />
austríaco frente<br />
à sede da OPEP<br />
em Viena, Áustria<br />
O governo dos Estados Unidos está a ponderar assumir participações<br />
em empresas de energia norte-americanas no<br />
quadro do apoio que procura dar ao sector do oil&gas do<br />
país, severamente atingido pela pandemia de coronavírus.<br />
A hipótese foi admitida pelo secretário do Tesouro norte-<br />
-americano, Steven Mnuchin.<br />
O Presidente Donald Trump, que interveio, tal como Mnuchin,<br />
num evento na Casa Branca, afirmou que deseja ajudar<br />
a indústria de petróleo e gás, e sugeriu que o governo<br />
federal pode antecipar compras de combustível para o país,<br />
bem como adquirir passagens aéreas.<br />
“Estamos a analisar uma série de alternativas”, disse Mnuchin.<br />
Trump afirmou ainda que a Rússia e a Arábia Saudita<br />
podem efectuar novos cortes à produção de petróleo, face<br />
ao excesso de oferta verificado no mercado da matéria-prima<br />
devido à pandemia, acrescentando que Texas, Oklahoma e<br />
Dakota do Norte, assim como o Canadá, estão a reduzir os<br />
ritmos de extracção. “Vai ser algo natural”, adiantou Trump<br />
sobre os cortes. O Presidente norte-americano patrocinou<br />
abertamente o corte de quase 10 milhões de barris diários<br />
acordado pela OPEP e os seus aliados, após um diferendo<br />
entre a Arábia Saudita e a Rússia ter conduzido o preço da<br />
matéria-prima para o precipício.<br />
maio <strong>2020</strong> | 57
GLOBAL PANDEMIA<br />
COMO<br />
CONTER A<br />
PANDEMIA<br />
A estratégia mais usada pelos governos para conter a<br />
propagação acelerada do vírus SARS-CoV-2 é o confinamento<br />
das populações. Na Europa, onde a pandemia, vinda da Ásia,<br />
se abateu sem piedade, sobretudo no Sul, os serviços de saúde<br />
estouraram. Face à realidade assustadora que chegava de Itália,<br />
Portugal jogou na antecipação e Espanha na reacção, duas<br />
faces da mesma moeda com resultados diferentes. Alemanha<br />
e Islândia apostaram cedo nos testes de detecção, tal como<br />
agora nos testes serológicos. O Reino Unido viu-se obrigado a<br />
abandonar a imunidade de grupo quando o número de mortos<br />
disparou, mas a Suécia resiste na “maratona”. China, Taiwan e<br />
Coreia do Sul recorreram ao trunfo das tecnologias intrusivas,<br />
nomeadamente GPS e contact tracing, com custos em termos<br />
da liberdade individual, sagrada nas democracias ocidentais.<br />
Actualmente, na Alemanha desenvolve-se uma app que permite<br />
a coabitação entre informação e protecção de dados. Estados<br />
Unidos e Europa dão os primeiros passos de saída do<br />
confinamento. Objectivo? Recuperar a vida social e a economia<br />
aos poucos e de máscara. O mundo mudou com a pandemia,<br />
que, até agora, tem poupado África. Como se prepararam<br />
os países mais castigados para viver com a pandemia? Esta<br />
intensificou a tensão entre EUA e China, o que apanha a OMS.<br />
ALMERINDA ROMEIRA<br />
58 | Exame Moçambique
MÁSCARAS:<br />
O novo adereço de vestuário<br />
obrigatório enquanto o vírus<br />
permanecer nas comunidades<br />
GETTY<br />
M<br />
aio significa para muitos<br />
países o primeiro passo<br />
do regresso à vida social<br />
e económica, após cerca<br />
de mês e meio de confinamento.<br />
Não será o regresso à forma<br />
como se vivia, trabalhava e fazia negócios<br />
antes da pandemia, mas o início daquilo<br />
que, já, é definido como um “novo normal”.<br />
No meio da incerteza generalizada,<br />
uma coisa parece certa: a Humanidade<br />
vai ter de conviver com o vírus SARS-<br />
-CoV-2, pelo menos, até existir a cura<br />
ou uma vacina para a doença COVID-19,<br />
que, neste momento, apesar dos esforços<br />
intensos da comunidade científica internacional,<br />
não se vislumbra.<br />
Aligeirar em demasia as medidas de<br />
isolamento social que puseram em casa<br />
cerca de metade da população mundial,<br />
acarreta riscos e pode levar a novos casos<br />
de infecção, mas é inevitável numa altura<br />
em que, generalizadamente, todas as economias<br />
estão de rastos com o lay-off e o<br />
desemprego a dispararem para níveis<br />
impensáveis — só nos EUA, cerca de 30<br />
milhões terão ficado sem trabalho — e os<br />
países a injectarem dinheiro nas empresas<br />
e na economia para tentar estancar<br />
a hecatombe a uma escala várias vezes<br />
superior à crise de 2008.<br />
Cada país terá de encontrar o seu ritmo<br />
de adaptação ao “novo normal”, bem como<br />
instrumentos que lhe permitam gerir a<br />
economia sem prejudicar a saúde pública.<br />
Uma nova tipologia de testes — sorológicos<br />
— vem dar um forte input às estratégias<br />
dos países nesta fase do combate à<br />
pandemia. Os testes serológicos detectam<br />
quem já esteve em contacto com o novo<br />
coronavírus. São extremamente importantes<br />
para descobrir os assintomáticos,<br />
maio <strong>2020</strong> | 59
GLOBAL PANDEMIA<br />
RUA EM SEUL, COREIA DO SUL:<br />
As pequenas lojas começam a reabrir<br />
ou seja, aqueles por quem a doença passa<br />
sem fazer mossa, e medir a imunidade da<br />
população. “A capacidade de realizar testes<br />
para a presença do vírus vai ser muito<br />
importante no futuro próximo, e estão<br />
em cursos várias linhas de investigação,<br />
incluindo algumas nacionais, para melhorar<br />
os testes — seja na rapidez dos resultados,<br />
seja na sua precisão, seja na facilidade<br />
da sua aplicação. Será um elemento crucial<br />
para se poder recuperar alguma normalidade<br />
de vida até se ter uma vacina”,<br />
explica o português Pedro Pitta Barros,<br />
professor na Faculdade de Economia da<br />
Universidade Nova de Lisboa, especializado<br />
em Economia da Saúde e autor do<br />
blogue “Momentos Económicos… e não<br />
só”. Na mesma linha vai a análise do virologista<br />
Pedro Simas que, ao semanário português<br />
Expresso, explica a necessidade de<br />
conceber “estratégias inteligentes e selectivas<br />
de distanciamento social, apoiadas<br />
por testes serológicos para saber o que está<br />
a acontecer. Sem saber que percentagem<br />
da população foi infectada, estamos cegos.<br />
É preciso testar uma amostra representativa<br />
da população”.<br />
Portugal lançou o primeiro estudo serológico<br />
no início de <strong>Maio</strong>, tem a duração<br />
de três semanas e abrange cerca de 2 mil<br />
pessoas seleccionadas entre os utentes que<br />
façam análises de rotina em laboratórios e<br />
hospitais associados. A partir do dia 4 do<br />
mesmo mês, a Itália avançou igualmente<br />
com a realização de testes de anticorpos<br />
a 150 mil pessoas. Neste capítulo, a Alemanha<br />
já começou. Segundo a Federação<br />
de Laboratórios Associados foram realizados,<br />
até à data, cerca de 70 mil testes sorológicos<br />
em 54 laboratórios. Em concreto,<br />
um estudo apurou que 14% dos habitantes<br />
de Gangelt, na região de Heinsberg,<br />
onde floresceu o primeiro grande foco de<br />
COVID-19, foram infectados. Beneficiarão<br />
agora de alguma imunidade, embora<br />
não esteja ainda comprovada a sua existência,<br />
nem o nível e duração da mesma.<br />
Os alemães vão deixar o confinamento<br />
protegidos por máscaras, de uso obrigatório<br />
em espaços públicos como transportes ou<br />
D.R.<br />
supermercados. No início de <strong>Maio</strong>, o país<br />
mais populoso da Europa reabriu algum<br />
retalho, a restauração e as escolas, consoante<br />
a região, mas mantém a proibição<br />
de grandes eventos e festas. O uso generalizado<br />
de máscara aplica-se a todos os países<br />
europeus que se preparam para dar o<br />
mesmo passo, caso de Portugal e Espanha,<br />
e aos que já o fizeram. Áustria, Dinamarca,<br />
República Checa e Noruega foram os primeiros<br />
a diminuir as restrições. O calendário<br />
é gradual. Veja-se a Áustria. A 14 de<br />
Abril reabriu as lojas mais pequenas, dia<br />
1 de <strong>Maio</strong> foi a vez das maiores e a partir<br />
de meados de <strong>Maio</strong> e ao longo de Junho<br />
NÃO SE REGRESSA À<br />
FORMA COMO SE VIVIA,<br />
TRABALHAVA E FAZIA<br />
NEGÓCIOS ANTES<br />
DA PANDEMIA,<br />
EXPERIMENTA-SE O QUE<br />
JÁ É DEFINIDO COMO<br />
O “NOVO NORMAL”<br />
será a vez de restaurantes, ginásios, cabeleireiros<br />
e hotéis. A Dinamarca deu prioridade<br />
a escolas e centros de dia, mantendo a<br />
proibição de encontros entre, pelo menos,<br />
10 pessoas até 10 de <strong>Maio</strong> e de grandes eventos<br />
até Agosto. A República Checa, único<br />
país da Europa que tornou obrigatório o<br />
uso de máscara logo no início da pandemia,<br />
começou por suavizar as regras nas<br />
actividades de desporto ao ar livre, como<br />
corrida e ciclismo. Na Noruega os jardins-<br />
-de-infância voltaram a receber crianças<br />
a 20 de Abril, tal como as restantes escolas<br />
na semana seguinte. Na generalidade<br />
dos países prevêem-se avanços e recuos<br />
ao ritmo da evolução da situação epidemiológica<br />
que irá sendo avaliada periodicamente.<br />
b<br />
60 | Exame Moçambique
O “BIG BROTHER” CHINÊS<br />
A China, onde a pandemia teve origem, adoptou a quarentena mais agressiva, recorrendo,<br />
por exemplo, a reconhecimento facial generalizado e a aplicações assentes em inteligência<br />
artificial para rastrear passos, ligações telefónicas e distância entre as pessoas<br />
A<br />
redução dos contactos individuais<br />
através do confinamento<br />
social generalizado<br />
revelou-se a estratégia mais<br />
eficaz para deter a propagação<br />
do novo coronavírus. Adoptada por<br />
muitos governos no mundo inteiro, da Ásia,<br />
à Europa, da África e América à Oceania,<br />
teve como consequência o encerramento<br />
de todo o comércio não essencial, a paragem<br />
de aviões e cadeias de logística e a paralisação<br />
de sectores inteiros da economia.<br />
A quarentena mais agressiva desenrolou-se<br />
em Wuhan, cidade de 11 milhões<br />
de habitantes, berço do vírus SARS-CoV-2,<br />
e na província de Hubei onde se insere. Um<br />
total de 60 milhões de pessoas, praticamente<br />
o dobro da população de Moçambique,<br />
viram os seus movimentos restringidos<br />
ao máximo, as estradas bloqueadas, controlos<br />
policiais e sanitários em todo o lado,<br />
suspensão de transportes e encerramento<br />
de bairros residenciais. O isolamento de<br />
Wuhan, decretado a 23 de Janeiro, só terminou<br />
a 8 de Abril. Não foi a única arma<br />
usada pela China.<br />
O estado autoritário, que conta com um<br />
número estimado de 400 milhões de câmaras<br />
de segurança por todo o país, o que<br />
lhe permite fazer reconhecimento facial<br />
no meio de uma multidão, por exemplo,<br />
recorreu a outras tecnologias do “Big Brother”,<br />
impensáveis numa França, Alemanha<br />
ou nos Estados Unidos, cujos pilares<br />
assentam no primado da liberdade individual.<br />
Logo em Janeiro, com o número<br />
de infectados a disparar, gigantes como<br />
o Alibaba e Tencent criaram aplicações<br />
que usam inteligência artificial para rastrear<br />
passos, ligações telefónicas e distância<br />
entre as pessoas.<br />
D.R.<br />
A inovação mais popular pertence à China<br />
Electronics Technology Group, que a lançou<br />
em conjunto com as autoridades. Chama-se<br />
“China’s Health Check” e gera um “QR Code”<br />
no telemóvel do utilizador com cores, tal como<br />
num semáforo, em que o verde indica que a<br />
pessoa não sofre do vírus. Segundo noticiou<br />
a revista inglesa The Economist, mais de 200<br />
cidades aderiram a esta app, que se tornou<br />
obrigatória, na medida em que para entrar<br />
num qualquer transporte público um indivíduo<br />
tem de fazer prova de cor. Se não acusasse<br />
verde, ficava do lado de fora.<br />
A China deu por controlada a primeira<br />
vaga da pandemia em Abril, começando,<br />
aos poucos, a abraçar o “novo normal”, à<br />
medida que a grande máquina industrial<br />
dá mostras de movimento. No entanto,<br />
a bitola mantém-se apertada. Distanciamento<br />
social e máscara são obrigatórios<br />
para todos. Já quem pisa o solo vindo do<br />
estrangeiro, seja nacional ou não, enfrenta<br />
a quarentena em casa, munido de um dispositivo,<br />
que funciona como uma tranca<br />
na porta, accionando directamente a polícia<br />
à mínima tentativa de saída.<br />
Com 1,4 mil milhões de pessoas, o país<br />
mais populoso do planeta regista 82 830<br />
RETOMA CHINESA:<br />
Distanciamento social e máscara<br />
são obrigatórios para todos<br />
Desde 17 de Abril, quando se verificou um<br />
acréscimo significativo de mortes, que a China<br />
não regista novos casos nem qualquer morte<br />
por COVID-19<br />
100 000<br />
80 000<br />
60 000<br />
40 000<br />
20 000<br />
0<br />
88 423<br />
Confirmados<br />
Fatais<br />
4 632<br />
22 Jan 30 Abr<br />
infecções, a 27 de Abril, o equivalente a 58<br />
casos por milhão de habitantes e 3 mortos<br />
por milhão. O número poderá estar muito<br />
subestimado face à realidade, mas continuaria<br />
a ser ínfimo (para a dimensão) mesmo<br />
que duplicasse ou triplicasse. Espelha uma<br />
estratégia de combate, talvez impossível<br />
de aplicar noutro lugar mas eficaz. A.R. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 61
GLOBAL PANDEMIA<br />
ASIÁTICOS ADEREM<br />
AO CONTACT TRACING<br />
A utilização de artilharia tecnológica está por detrás dos sucessos de Taiwan e Coreia do Sul,<br />
vizinhos da China, no combate ao vírus<br />
Coreia do Sul<br />
(Entre 21 de Janeiro e 30 de Abril)<br />
10 780<br />
Confirmados<br />
Activos<br />
9 123<br />
Taiwan<br />
(Entre 31 de Janeiro e 30 de Abril)<br />
1 407 250 6<br />
Recuperados<br />
RASTREAR:<br />
O sucesso de Taiwan e Coreia do Sul<br />
assenta no contact tracing<br />
Fatais<br />
D.R.<br />
432<br />
Confirmados<br />
102<br />
Activos<br />
324<br />
Recuperados<br />
Fatais<br />
O<br />
s vizinhos Taiwan e Coreia<br />
do Sul também conseguiram<br />
conter o primeiro surto<br />
da pandemia com medidas<br />
agressivas, como o controlo<br />
por GPS e a utilização de dados pessoais<br />
pelas autoridades. Nenhum dos dois foi<br />
pelo confinamento total da população,<br />
usado como estratégia na maior parte dos<br />
países e, em concreto, em Hubei.<br />
O “tigre” Taiwan, arqui-rival da República<br />
Popular da China, jogou forte a cartada<br />
dos testes ao primeiro sinal da nova<br />
doença. Isolou os infectados e usou “artilharia”<br />
tecnológica pesada para controlar<br />
o rasto da infecção. Logo em Janeiro,<br />
Tsai Ing-wen, a Presidente recentemente<br />
reeleita pelo Partido Democrático Progressista,<br />
pró-independência, assinou um<br />
pacote com mais de uma centena de medidas<br />
visando bloquear a propagação do<br />
vírus sem parar a economia. Ainda que<br />
de máscara, a vida continuou. Em nome<br />
da saúde pública e da segurança nacional,<br />
o governo passou, por exemplo, a ter acesso<br />
a todos os dados telefónicos dos cidadãos,<br />
cujos aparelhos devem estar com geolocalização<br />
activada. Isto permite à polícia e<br />
às autoridades de Saúde receberem informação<br />
sobre o paradeiro das pessoas em<br />
tempo real. O não cumprimento das regras<br />
está sujeito a multas de milhares de dólares<br />
e pena de prisão.<br />
A Coreia do Sul, outro país apontado<br />
como exemplo na gestão da propagação da<br />
COVID-19, também utilizou a tecnologia<br />
e a inovação como armas. Esta democracia<br />
oriental, com 52 milhões de pessoas,<br />
foi ao limite de aprovar legislação especial<br />
de forma a permitir o acesso a dados de<br />
telemóveis e de cartões de crédito, redes<br />
sociais e câmaras de vigilância por apps de<br />
contact tracing. Aos media, o vice-ministro<br />
da Saúde, Kim Gang-lip, justificou assim:<br />
“Há dois princípios que consideramos<br />
fundamentais na acção governamental.<br />
No primeiro, que respeita à participação<br />
dos cidadãos, deve prevalecer a abertura<br />
e a transparência. No segundo, trata-se<br />
de empregar recursos criativos e tecnologia<br />
de ponta para desenvolver os métodos<br />
e respostas mais eficazes.” A Coreia do<br />
Sul coadjuvou a criatividade e tecnologia<br />
com uma política eficaz de testes de diagnóstico<br />
em massa no início da pandemia,<br />
aplicou a quarentena a quem testou positivo<br />
e acompanhou quem tinha estado em<br />
contacto com a infecção. A.R. b<br />
62 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 63
GLOBAL PANDEMIA<br />
EUROPA<br />
ATINGIDA<br />
EM CHEIO<br />
Foi o continente onde a pandemia deixou, até agora, um<br />
rasto mais assustador, tanto em número de infectados<br />
como em número de mortos. Apesar de a Europa<br />
apresentar, à partida, os melhores sistemas de saúde<br />
do mundo, os de Itália e Espanha colapsaram<br />
D<br />
ia 27 de Abril de <strong>2020</strong>.<br />
O mapa mundo da Johns<br />
Hopkins University, que<br />
actualiza diariamente os<br />
dados da COVID-19, mostra<br />
3 milhões de infectados em 210 países<br />
e territórios, 878 813 recuperados e<br />
208 131 mortos. A União Europeia carrega<br />
ITÁLIA: O país viveu<br />
dias aterradores, sem<br />
espaço para doentes<br />
e mortos<br />
D.R.<br />
A UNIÃO EUROPEIA<br />
CARREGA O MAIOR<br />
NÚMERO DE ÓBITOS<br />
CAUSADOS PELA<br />
COVID-19, COM<br />
DESTAQUE PARA TRÊS<br />
PAÍSES — ESPANHA,<br />
ITÁLIA E FRANÇA<br />
o maior número de óbitos, com destaque<br />
para três países — Espanha (23 521), Itália<br />
(26 977) e França (22 856).<br />
A comunidade de 27 Estados-membros<br />
(o Reino Unido abandonou-a recentemente)<br />
e 513 milhões de pessoas está equipada<br />
com alguns dos melhores sistemas<br />
de saúde do planeta. No início da pandemia,<br />
todos os governos assumiram como<br />
linha vermelha impedir a sua ruptura.<br />
Objectivo? Garantir a todos os cidadãos<br />
as mesmas oportunidades de tratamento,<br />
i.e., internamentos e ventiladores.<br />
Com os números em crescendum, os países<br />
tentaram tudo para achatar a curva de<br />
crescimento da infecção, de modo a espalhar<br />
o número de doentes ao longo dos<br />
meses. Num combate em que o inimigo<br />
aparece de repente e se multiplica de forma<br />
exponencial, nem todos o conseguiram.<br />
À entrada do mês de <strong>Maio</strong>, Espanha ainda<br />
não normalizou, nem França, que, a 27 de<br />
Abril, apresentava uma taxa de mortalidade<br />
de 350/milhão. Que dizer de Itália? Com<br />
441 óbitos/milhão de habitantes, à data, a<br />
porta de entrada do surto na Europa foi o<br />
primeiro país a ver colapsar o sistema de<br />
saúde, com os médicos a serem obrigados, a<br />
dada altura, a priorizar quem socorrer por<br />
falta de capacidade para responder a todos<br />
os pacientes mais graves. Ainda assim, é a<br />
Bélgica, um país com uma dimensão semelhante<br />
à de Portugal (11,5 milhões de habitantes)<br />
que lidera a mortalidade na Europa<br />
e no mundo, com uma taxa de 503 mortos/<br />
milhão de habitantes, apesar das medidas<br />
adoptadas. Transparência nos dados fornecidos,<br />
dizem as autoridades para justificar<br />
tão elevado número.<br />
De referir que as estatísticas são elaboradas<br />
a partir dos casos conhecidos,<br />
identificados pelas autoridades de Saúde<br />
dos países, mas nem sempre comunicadas<br />
segundo a mesma metodologia.<br />
Os números reais, quer de infecções quer<br />
de óbitos, serão muito superiores no mundo<br />
inteiro. A.R. b<br />
64 | Exame Moçambique
ISLÂNDIA,<br />
TESTES EM MASSA<br />
A Islândia apostou na realização de testes gratuitos em larga escala para controlar<br />
a velocidade e o nível de propagação do vírus. Obteve bons resultados<br />
S<br />
em testes, não há como entender<br />
a forma como se espalha<br />
a pandemia. Há uma relação<br />
directa entre os testes realizados<br />
e o número de casos confirmados.<br />
O país que mais testa, é aquele<br />
que mais informação tem sobre o estado<br />
da sua população. A OMS continua a<br />
alertar para esta necessidade. “No início<br />
da epidemia, quando há poucos casos,<br />
é importante saber quem está infectado<br />
para poder interromper a cadeia de contágios.<br />
Para isso, é preciso fazer testes de<br />
forma muito agressiva em todos os contactos<br />
de uma pessoa infectada. Quando<br />
o vírus já está muito disseminado, isso<br />
não ajuda tanto. Se, por exemplo, 1% da<br />
A ISLÂNDIA, BEM-<br />
-SUCEDIDA NO COMBATE<br />
AO VÍRUS, REALIZOU<br />
TESTES GRATUITOS<br />
EM LARGA ESCALA<br />
população tiver o vírus, muitos casos escaparão.<br />
Por esta altura, o importante é o<br />
isolamento social, para prevenir os contágios.”<br />
A explicação dada por Adolfo<br />
García-Sastre, professor catedrático de<br />
Medicina e Microbiologia no The Mount<br />
Sinai Hospital, em Nova Iorque, EUA, ao<br />
jornal espanhol El País, mostra a importância<br />
de testar as populações no início e<br />
de confinar a seguir. Justamente a estratégia<br />
seguida pela Alemanha.<br />
A Islândia, pequeno país do Norte da<br />
Europa com 364 mil habitantes, é, no<br />
capítulo testes, outro nome a fixar. Um<br />
caso de estudo. A estratégia da primeira-<br />
-ministra, Katrín Jakobsdóttir, assenta<br />
na realização de testes gratuitos em larga<br />
escala. A meados de Abril tinham sido<br />
realizadas, já, duas grandes vagas abrangendo<br />
mais de 10% da população, o que,<br />
em termos proporcionais, é o valor mais<br />
alto do mundo.<br />
O elevado número de testes ajuda a traçar<br />
a velocidade e propagação do vírus, quer<br />
entre quem apresenta sintomas ligeiros quer<br />
entre os assintomáticos. “É possível reduzir<br />
a velocidade do vírus, é possível controlá-<br />
-lo em sociedade”, afirma Kari Stefansson,<br />
CEO da deCode Genetics, empresa que<br />
TESTES:<br />
A Islândia testou<br />
massivamente<br />
e saiu-se bem<br />
ISLÂNDIA<br />
(Entre 2 Mar e 1 Mai)<br />
1 798<br />
99<br />
1 689<br />
Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />
gere o processo com o governo. Com um<br />
rastreamento completo, a Islândia apresenta<br />
5251 casos por milhão e 29 óbitos<br />
por milhão. A.R. b<br />
10<br />
maio <strong>2020</strong> | 65
GLOBAL PANDEMIA<br />
O SUCESSO<br />
ALEMÃO<br />
Com uma taxa de letalidade baixíssima face ao número<br />
de infectados, a Alemanha fez valer a superior qualidade<br />
do seu sistema de saúde, a capacidade de organização<br />
e a confiança na liderança política e nas instituições<br />
A<br />
Alemanha é o único grande<br />
país da Europa que está a<br />
enfrentar a pandemia com<br />
êxito. Com 83 milhões de<br />
pessoas, apresenta um elevado<br />
número de infectados: 158 142, ao<br />
dia 27 de Abril, o que lhe confere o quinto<br />
lugar no ranking mundial de casos, mas<br />
os óbitos estão muitíssimo abaixo dos<br />
seus vizinhos: 71 por milhão de habitantes.<br />
Quais as armas de combate? Também<br />
aqui a resposta foge ao cânone e resultará<br />
de um conjunto de ingredientes. Seriedade<br />
da liderança política na abordagem<br />
ao problema, organização — o país é um<br />
todo e o cidadão confia no outro e nas instituições<br />
—, dispor daquele que é considerado<br />
o melhor sistema de saúde do mundo<br />
e identificação precoce através de testes.<br />
Angela Merkel, a chanceler, que antes<br />
de se tornar uma grande política era<br />
cientista, acordou cedo para o problema<br />
e soube mobilizar os alemães. Num discurso<br />
através da televisão, coisa rara no<br />
país, alertou que o vírus poderia infectar<br />
até 70% da população. “A situação<br />
é séria. Levem-na a sério”, apelou. “Desde<br />
a reunificação da Alemanha, aliás, desde a<br />
Segunda Guerra Mundial que não há um<br />
desafio que exija à nossa Nação um nível<br />
de acção comum e união como o actual”,<br />
declarou. Que mais poderia dizer?<br />
Desde o início do surto, a Alemanha<br />
apostou forte no diagnóstico, tendo criado<br />
Alemanha<br />
(Entre 30 Jan e 1 Mai)<br />
164 603<br />
36 837<br />
121 014<br />
6 752<br />
Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />
inclusivamente testes drive through, o que<br />
permitiu testar pessoas, sem custos, dentro<br />
do próprio carro. A identificação precoce<br />
de portadores de vírus retardou a<br />
propagação. De acordo com o site Worldometers,<br />
até 15 de Abril tinham sido<br />
realizados mais de 1,7 milhões de testes,<br />
isto é, 20 629 por milhão de habitantes.<br />
“É uma questão de capacidade e a capacidade<br />
da Alemanha é muito, muito significativa”,<br />
afirmou Lothar Wieler, director<br />
do Robert Koch Institute, o Instituto de<br />
Saúde Pública do país.<br />
A implementação da política de testes foi<br />
facilitada pelo elevado e bem distribuído<br />
número de laboratórios por todo o território.<br />
No Bundestag, a 23 de Abril, a chanceler<br />
salientou a existência de uma rede de<br />
400 delegações de saúde para seguir “cada<br />
cadeia de infecção e cada infectado”, mas<br />
assumiu, com humildade, que isso exige<br />
“concentração e resiliência” e só resultará<br />
se houver “consciência de que não<br />
estamos a chegar ao fim da crise, estamos<br />
no início”.<br />
Se é verdade que poucos países levaram<br />
tão a sério a recomendação da Organização<br />
Mundial de Saúde (OMS) de “testar,<br />
testar, testar”, também é verdade que, na<br />
rectaguarda, a Alemanha conta com aquele<br />
que é considerado o melhor sistema de<br />
saúde do mundo. As 28 mil camas de cuidados<br />
intensivos que equipavam os hospitais<br />
alemães, um rácio de 30 por cada<br />
100 mil habitantes, rapidamente aumentaram<br />
para 48 mil, tendo sido fixado o<br />
objectivo de atingir as 60 mil num curto<br />
espaço de tempo. Resultado? À entrada<br />
de <strong>Maio</strong>, os hospitais alemães não só não<br />
tinham esgotado a sua capacidade, como<br />
nas regiões fronteiriças acudiam a tratar<br />
cidadãos franceses, italianos e holandeses.<br />
Ainda assim, a vida económica e social<br />
parou quando foi altura. Em meados de<br />
Março, Angela Merkel mandou encerrar<br />
o que podia e jogou mão da quarentena.<br />
A própria deu o exemplo depois de manter<br />
contacto com um médico, mais tarde,<br />
diagnosticado com COVID-19. O limite<br />
foi atingido com a proibição de encontros<br />
de mais de duas pessoas com excepção de<br />
famílias ou pessoas a viverem na mesma<br />
casa e o cancelamento de um acontecimento<br />
sagrado — as cerimónias presenciais dos<br />
75 anos da libertação dos campos de concentração<br />
de Sachsenhausen, Ravensbrück<br />
e Bergen-Belsen. Em Berlim, no Bundestag,<br />
Câmara Baixa do Parlamento, Angela<br />
Merkel admitiu que as restrições às liberdades<br />
dos cidadãos foram “a lei que até<br />
hoje mais” lhe “custou a assinar”.<br />
O confinamento social aplicado inicialmente<br />
durante duas semanas foi repetido,<br />
mas viu a luz ao fundo do túnel, com a<br />
taxa de reprodução do vírus a cair para<br />
0,7% em meados de Abril. A vida económica<br />
alemã encetou no início de <strong>Maio</strong><br />
uma retoma gradual, mas toda a atenção<br />
continua posta no índice de contágio que<br />
não deverá exceder 1, caso contrário o sistema<br />
de saúde entra em sobrecarga.A.R. b<br />
66 | Exame Moçambique
maio <strong>2020</strong> | 67
GLOBAL PANDEMIA<br />
PORTUGAL MUITO<br />
MELHOR QUE ESPANHA<br />
No Ocidente europeu, Portugal obteve resultados francamente melhores que a vizinha<br />
Espanha, único país com o qual tem fronteira. Exceptuando o exemplo português, o saldo<br />
ibérico no combate ao vírus foi catastrófico<br />
A<br />
ponte de tirantes múltiplos<br />
sobre o Guadiana é um dos<br />
nove pontos abertos entre<br />
Portugal e Espanha neste<br />
início de <strong>Maio</strong>. Controlado<br />
com mão de ferro pelas forças da ordem,<br />
o vão de betão com 666 metros sobre o rio<br />
internacional apenas pode ser transposto<br />
por viaturas com alimentos e trabalhadores<br />
fronteiriços. Aqui, como em muitos<br />
outros lugares, a normalidade está suspensa<br />
há mês e meio.<br />
O emblemático rio que liga o Algarve e a<br />
Andaluzia, as duas províncias meridionais<br />
da Península Ibérica, no extremo ocidental<br />
da Europa, ganha, neste tempo de pandemia,<br />
um novo simbolismo. Na margem de<br />
cá, Portugal resiste às investidas do novo<br />
coronavírus com taxas de infecção e letalidade<br />
muitíssimo inferiores às de Espanha.<br />
O que explica isso? O que há assim de tão<br />
diferente na estratégia de dois países com<br />
hábitos culturais semelhantes para que<br />
um seja considerado um sucesso e o outro<br />
registe o segundo maior número de mortos<br />
por milhão de habitantes do mundo?<br />
Não existe uma resposta óbvia, mas a geografia<br />
e a rapidez da decisão terão sido factores<br />
fundamentais numa equação onde<br />
também pesa — e muito — o comportamento<br />
da sociedade civil.<br />
Encostado a ocidente ao oceano Atlântico,<br />
com uma única fronteira terrestre, Portugal<br />
integrou a lista de países com SARS-CoV-2,<br />
o vírus que causa a doença COVID-19, no<br />
segundo dia de Março de <strong>2020</strong>. Nessa altura,<br />
já o novo coronavírus tinha atingido mais<br />
de 60 países, entre os quais Espanha, infectado<br />
89 mil pessoas e morto mais de 3 mil.<br />
Um dos dois primeiros casos rastreados<br />
pelas autoridades sanitárias revelou, aliás,<br />
ligações ao país vizinho. No lado oriental<br />
da fronteira mais antiga da Europa, Espanha<br />
tinha detectado o paciente zero a 31 de<br />
D.R.<br />
CONFINAMENTO:<br />
Valeu a Portugal não<br />
ter seguido o mau<br />
exemplo de Itália<br />
e Espanha<br />
PORTUGAL<br />
(Entre 3 Mar e 30 Abr)<br />
25 351<br />
22 657<br />
1 671<br />
1 023<br />
Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />
Janeiro, nas ilhas Canárias, começando o<br />
território continental a somar casos a partir<br />
de 25 de Fevereiro.<br />
Hoje, parece claro que as autoridades deste<br />
país com 46,9 milhões de pessoas subestimaram<br />
a violência do surto, uma vez que<br />
só 43 dias depois de ter sido conhecida a<br />
primeira infecção declararam o estado de<br />
emergência, que trouxe a quarentena obrigatória,<br />
o encerramento das escolas e a<br />
circulação da população limitada ao estritamente<br />
necessário.<br />
É certo que a fraca coordenação entre<br />
as regiões e o governo central liderado<br />
pelo socialista Pedro Sánchez, recém-<br />
-empossado e com apoios parlamentares<br />
fragmentados, dificultou a tomada de<br />
medidas, mas a falta de testes de detecção<br />
para o vírus e a sociedade civil também<br />
não ajudaram. A.R. b<br />
68 | Exame Moçambique
NOVA IORQUE<br />
NO CENTRO<br />
DO “FURACÃO”<br />
Na Big Apple emergiu a figura do seu governador, Mario<br />
Cuomo, que, face à força com que a epidemia se abateu,<br />
assentou a sua estratégia no distanciamento social e no<br />
encerramento de escolas e negócios não essenciais,<br />
recusando precipitações quanto à reabertura da economia<br />
O<br />
novo coronavírus segue o<br />
seu percurso devastador pela<br />
geografia. Em Abril, Nova<br />
Iorque afirmou-se o epicentro<br />
da pandemia, sendo a<br />
cidade do mundo mais atingida e o Estado<br />
com o mesmo nome, onde se localiza, o<br />
mais sacrificado dos Estados Unidos, com<br />
18 076 mortos e mais de 65 mil hospitalizados<br />
no último dia do mês. Um primeiro<br />
estudo serológico aqui realizado revela,<br />
segundo a cadeia de televisão CNBC, que<br />
2,7 milhões podem ter sido já infectados<br />
com o novo coronavírus, isto é, mais de<br />
dez vezes o número de casos confirmados.<br />
Nova Iorque é governada por um democrata,<br />
Andrew Cuomo, filho do antigo<br />
governador Mario Cuomo, um político que<br />
mostrou ter coração e rumo e tornou-se um<br />
osso duro de roer para o Presidente Donald<br />
Trump. “O cavalo já tinha saído do celeiro”<br />
quando o país fechou as portas, denunciou,<br />
fundamentando com os voos que deram<br />
entrada nos aeroportos do Estado, Nova<br />
Iorque e Nova Jersey, entre Janeiro e Março<br />
— 13 mil, transportando mais de 2 milhões<br />
de pessoas da Europa, a segunda zona mais<br />
afectada, naquela altura, depois da China.<br />
Nova Iorque<br />
(Entre 29 Fev e 1 de Mai)<br />
Estados Unidos<br />
(Entre 24 Jan e 1 de Mai)<br />
1 146 870<br />
312 977<br />
Confirmados<br />
937 758<br />
18 909<br />
Fatais<br />
142 694 66 418<br />
Confirmados Activos Recuperados Fatais<br />
Cuomo adoptou uma estratégia assente em<br />
medidas de distanciamento social e encerramento<br />
das escolas e dos negócios não essenciais<br />
e recusa acelerar o regresso ao “novo<br />
normal” antes de tempo. “Compreendo a<br />
ideia da reabertura da economia, mas peço<br />
que se concentrem na crise que temos entre<br />
mãos. Concentrem-se na onda iminente de<br />
casos que está para chegar daqui a catorze<br />
dias. As comunidades em todo o país têm<br />
de perceber que Nova Iorque é apenas um<br />
teste, o ponto onde estamos hoje, é onde<br />
vocês vão estar daqui a três, quatro ou seis<br />
semanas. Nós somos o vosso futuro”, afirmou<br />
Cuomo no início de Abril, apelando<br />
à contenção nos outros estados e atirando<br />
directamente em Donald Trump.<br />
Em contraponto, o Presidente da maior<br />
potência do mundo tem sido errático e atabalhoado,<br />
evidenciando falhas de estratégia<br />
e fazendo muita navegação à vista. Nunca<br />
tirou o pé da máxima the cure cannot be<br />
worse than the problem, o que traduzido<br />
à letra significa que os custos económicos<br />
por causa do confinamento não podem ser<br />
superiores aos custos humanos da pandemia.<br />
Ultrapassado pelas circunstâncias, foi<br />
obrigado a rever decisões e datas e a tomar<br />
medidas mais duras à medida que os infectados<br />
e os óbitos aumentavam.<br />
Os Estados Unidos têm o tamanho de um<br />
continente e uma população de 330 milhões,<br />
igual ao somatório da Alemanha, França,<br />
Reino Unido, Itália, Espanha e Croácia.<br />
No último dia de Abril, de acordo com as<br />
estatísticas do Johns Hopkins, os seus números<br />
são maiores do que os de qualquer outro<br />
país: 1 040 488 casos de infecção, 124 023<br />
recuperados e 60 999 mortos. No entanto,<br />
e proporcionalmente à população, a situação<br />
é melhor do que na Europa vista como<br />
um todo, com a mortalidade norte-americana<br />
a situar-se nos 186/milhão de habitantes.Ainda<br />
assim, a cidade que nunca dorme,<br />
Nova Iorque, fez estremecer o mundo com<br />
imagens do cemitério de Hart Island, uma<br />
ilha ao largo de Bronx, onde se enterram<br />
os que não têm ninguém e que foi a última<br />
morada das vítimas da gripe espanhola<br />
de 1918. A média de corpos não reclamados<br />
enterrados em valas comuns passou<br />
de 25 por semana para 25 por dia devido<br />
à COVID-19. A.R. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 69
GLOBAL PANDEMIA<br />
EUA (E NÃO SÓ)<br />
RESPONSABILIZAM CHINA<br />
As relações entre as duas principais potências mundiais azedaram com a pandemia,<br />
com acusações recíprocas e os Estados Unidos a responsabilizarem a China pela ocultação<br />
de informação que terá estado na origem da pandemia. Os processos judiciais já avançam<br />
O<br />
Missouri atirou a primeira<br />
pedra. Com mais de 5800<br />
pessoas infectadas e 177 mortos<br />
contabilizados ao dia 22<br />
de Abril, este Estado norte-<br />
-americano do Centro-Oeste avançou com<br />
um processo judicial contra a República<br />
Popular da China pela forma como geriu<br />
a crise do novo coronavírus. “O governo<br />
chinês mentiu ao mundo sobre o perigo e<br />
a natureza contagiosa da COVID-19, silenciou<br />
pessoas que alertaram para o vírus e fez<br />
pouco para travar a propagação da doença”,<br />
justificou o procurador-geral republicano<br />
Eric Schmitt, responsável pelo processo<br />
que deu entrada num Tribunal Federal dos<br />
EUA, em Abril. O Missouri, que simbolicamente<br />
assume o papel do inocente a quem<br />
o mundo caiu em cima devido à actuação<br />
das autoridades de Pequim, é o primeiro de<br />
uma lista que conta também com o Estado<br />
sulista do Mississipi, onde a procuradora-<br />
-geral, Lynn Fitch, igualmente republicana,<br />
anunciou que vai agir judicialmente contra<br />
aquele país por “danos económicos e<br />
humanos irreparáveis”. A demanda judicial<br />
contra a República Popular da China<br />
poderá estar a crescer, adianta o jornal on-<br />
-line português Observador, segundo o qual<br />
“vários países estudam a hipótese de pedirem<br />
indemnizações — ou apresentarem a<br />
conta — a Pequim por a China ter violado<br />
o dever de comunicar devidamente o risco<br />
do surto epidémico”.<br />
Especialistas em direito internacional, entre<br />
os quais a think thank britânica de política<br />
externa Henry Jackson Society, defendem<br />
que o mundo deve pedir à China não apenas<br />
responsabilidade moral, mas indemnizações<br />
de facto. O fundamento é de que<br />
a República Popular violou explicitamente<br />
os regulamentos sanitários internacionais<br />
— International Health Regulations (IHR),<br />
no original em inglês —, legislação respaldada<br />
pela Organização Mundial de Saúde<br />
(OMS) e Organização das Nações Unidas,<br />
que obriga os signatários a envidarem todos<br />
os esforços ao mínimo sinal de um surto,<br />
reunindo e transmitindo toda e qualquer<br />
informação que possa ajudar a compreender<br />
e combater uma possível ameaça sanitária<br />
com implicações internacionais. Acontece<br />
que as autoridades chinesas informaram<br />
a OMS da existência do vírus no dia 31 de<br />
DONALD TRUMP<br />
E XI JINPING:<br />
As relações entre os<br />
presidentes das duas<br />
maiores potências<br />
voltou a deteriorar-se<br />
Dezembro de 2019, ao que tudo indica muito<br />
depois de o terem descoberto. Segundo uma<br />
investigação do jornal de Hong Kong South<br />
China Morning Post, a primeira infecção<br />
terá sido identificada ainda em Novembro<br />
de 2019, sabendo as autoridades desde meados<br />
de Dezembro que o vírus é transmissível<br />
entre humanos. O alegado conhecimento<br />
deste facto — fundamental na propagação<br />
acelerada do vírus — por parte das autoridades<br />
de Pequim é encoberto nessa primeira<br />
comunicação, que, na sequência, a<br />
OMS transmite ao mundo. Além disso,<br />
a Henry Jackson Society lembra que só em<br />
meados de Janeiro a China partilhou com<br />
a comunidade internacional informação<br />
sobre o genoma do vírus, que teria identificado<br />
antes. A.R. b<br />
70 | Exame Moçambique
CORRER A MARATONA<br />
Sem outras armas contra o vírus, o confinamento revelou-se a resposta mais eficaz.<br />
Os países que adoptaram uma estratégia diferente, ou tiveram de arrepiar caminho<br />
ou apresentam resultados que só o balanço final da pandemia poderá julgar<br />
M<br />
eter as pessoas em casa salvou<br />
milhares de vidas, porventura<br />
milhões, em todo o<br />
mundo. Sem vacina contra<br />
o vírus SARS-CoV-2, sem<br />
cura nem tratamento eficaz para a COVID-<br />
-19 e muito longe da denominada imunidade<br />
de grupo, que só se atinge quando o<br />
número de pessoas imunes devido ao contacto<br />
prévio com o vírus é tão elevado que<br />
impede que este se propague de forma epidémica,<br />
o confinamento revelou-se a arma<br />
mais eficaz para controlar a infecção. Que o<br />
diga o Reino Unido. Na fase inicial da pandemia,<br />
o primeiro-ministro, Boris Johnson,<br />
apostou na chamada imunidade pelo rebanho<br />
ou imunidade de grupo, mas foi obrigado<br />
a inverter o caminho antes mesmo de<br />
sucumbir a um teste positivo e ser internado<br />
nos cuidados intensivos do Hospital<br />
de St. Thomas, em Londres, onde chegou a<br />
ser assistido por ventilador. Mais sorte teve<br />
o ministro da Saúde, Matt Hancock, também<br />
infectado, mas numa dimensão que<br />
lhe permitiu continuar a trabalhar a partir<br />
de casa. A estratégia assente nas recomendações<br />
do principal conselheiro científico<br />
do governo, Sir Patrick Vallance, partia do<br />
pressuposto de deixar infectar 60% para<br />
se conseguir gerar defesas para a generalidade<br />
da população, o que acontece com<br />
as crianças quando são vacinadas.<br />
O plano de deixar a vida social e a economia<br />
seguirem o seu curso normal revelou-<br />
-se desastroso, com o número de mortos a<br />
disparar a uma velocidade que assustou os<br />
britânicos. A opção política foi revertida.<br />
De medida em medida — Boris Johnson<br />
começou por proibir eventos com multidões,<br />
depois passou ao fecho de escolas e<br />
serviços públicos e por aí fora —, os 66,6<br />
SÓ QUANDO A EPIDEMIA<br />
TIVER TERMINADO<br />
SE SABERÁ QUANTAS<br />
VIDAS HUMANAS<br />
FORAM CEIFADAS PELO<br />
SARS-COV-2 E SE<br />
PERCEBERÁ QUEM<br />
MELHOR O COMBATEU<br />
milhões de britânicos entraram de quarentena<br />
como a generalidade dos europeus.<br />
A Suécia, país desenvolvido do Norte da<br />
Europa, apontado como exemplo em muitas<br />
áreas sociais, é uma excepção na resistência<br />
ao confinamento total, em contracorrente<br />
com o resto do mundo e também sem bons<br />
resultados. O plano de ataque ao novo coronavírus<br />
elaborado por cientistas e adoptado<br />
pelo governo tem estado na mira de outros<br />
cientistas. “A abordagem deve ser alterada<br />
radical e rapidamente”, escreveram vinte<br />
gurus da ciência e investigadores, alguns<br />
dos quais do prestigiado Instituto Karolinska,<br />
numa carta aberta ao primeiro-<br />
-ministro, Stefan Löfven.<br />
A estratégia da Agência de Saúde Pública,<br />
liderada por Anders Tegnell, parte do pressuposto<br />
de que o mundo enfrenta não uma<br />
corrida de 100 metros, mas uma maratona,<br />
e que esta não se percorre com medidas<br />
excepcionais. Assim o explicou a ministra<br />
das Relações Exteriores, Ann Linde,<br />
ao jornal britânico Financial Times. “Não<br />
acreditamos num bloqueio se não for sustentável<br />
ao longo do tempo. Não acreditamos<br />
que possamos trancar as pessoas nas<br />
suas casas durante vários meses e ter um<br />
alto grau a acatá-lo. Mas é um mito que os<br />
negócios estejam a fluir como sempre, pois<br />
não estão.” A.R. b<br />
maio <strong>2020</strong> | 71
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
72 | Exame Moçambique
COM O APOIO DE:<br />
TRABALHO<br />
REMOTO<br />
Trabalhar a partir de casa não é uma<br />
novidade proporcionada pelas tecnologias<br />
de comunicação. Mas com a emergência<br />
da COVID-19 passou a representar um<br />
desafio para todas as organizações<br />
e também uma oportunidade para<br />
reformular a organização do trabalho.<br />
O teletrabalho representa um novo<br />
padrão, inovador, de organizar<br />
os colaboradores, e constitui um forte<br />
impulso para elevar o nível<br />
de digitalização<br />
79<br />
81<br />
RESPOSTA DAS EMPRESAS<br />
Como reagir aos novos desafios<br />
LINHA DA FRENTE<br />
Soluções inovadoras combatem o vírus<br />
GETTY<br />
maio <strong>2020</strong> | 73
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
AGENDA PARA<br />
O TELETRABALHO<br />
A EY apresenta a sua visão para<br />
o desenvolvimento do trabalho remoto,<br />
propondo cinco blocos de construção para<br />
difundir “formas inteligentes de trabalho”<br />
UMA VISÃO COMUM<br />
*Propósito*<br />
Liderança Inteligente<br />
UMA NOVA MENTALIDADE<br />
*Pessoas*<br />
Foco interior &<br />
Pensamento positivo<br />
… COM NOVAS APTIDÕES<br />
*Plataformas*<br />
Digitalmente<br />
pessoas experientes<br />
E REGRAS CLARAS<br />
*Práticas*<br />
Legal & Regulatório<br />
… PARA CONSTRUIR UM MELHOR<br />
MUNDO DE TRABALHO<br />
*Locais*<br />
Flexibilidade como é “usual”<br />
Apandemia do novo coronavírus<br />
colocou uma boa<br />
parte do mundo em casa.<br />
Como evitar que a vida pare<br />
completamente quando a<br />
população está confinada? A solução foi<br />
recorrer, com base nas tecnologias disponíveis,<br />
ao trabalho à distância. O teletrabalho<br />
já existia antes do vírus devorar o<br />
mundo, mas era encarado apenas como<br />
algo a ter em conta no futuro. Até agora,<br />
quase que se resumia a um privilégio<br />
reservado a uns poucos eleitos, normalmente<br />
quadros superiores. Só que, o que<br />
até agora era visto como “futurista”, experimental<br />
ou elitista, tornou-se, com a pandemia,<br />
vital, o único modo de continuar<br />
a assegurar o fluxo normal de trabalho.<br />
Mas como conciliar, dentro do mesmo<br />
espaço, trabalho e outras tarefas da vida<br />
doméstica? Em várias reportagens e debates<br />
na televisão e na Internet surgiram<br />
pais, quase desesperados, queixando-<br />
-se da dificuldade em conjugar, dentro<br />
de portas, o trabalho, a atenção exigida<br />
pelos filhos, as tarefas domésticas e ainda<br />
arranjar tempo para falar com os amigos<br />
na Internet e relaxar. Acontece que este<br />
inesperado empurrão para dentro de casa<br />
dado às pessoas pelo vírus reveste-se de<br />
um dramatismo único. Não se vive habitualmente<br />
sob o espectro de se ser contagiado<br />
por uma doença desconhecida<br />
que pode ter uma evolução terrível e que<br />
submete a vida à incerteza. Mas quando<br />
o surto de contágio for debelado, o modo<br />
como trabalhamos, aprendemos e desenvolvemos<br />
outras actividades será outro.<br />
Ainda trabalhávamos e aprendíamos, assinalam<br />
alguns autores, de forma analógica<br />
num mundo cada vez mais digitalizado.<br />
Na verdade, as soluções encontradas<br />
para o distanciamento ditado pela pandemia<br />
que causou disrupções fazem com<br />
que as coisas não voltem a ser como antes.<br />
As empresas não mais largarão a possibilidade<br />
do teletrabalho, em inglês home<br />
office. Já em 2016, um estudo da Universidade<br />
Stanford mostrava que trabalhar<br />
em casa pode aumentar em 13% a produtividade<br />
de determinados grupos de trabalhadores.<br />
A análise tinha como base a<br />
experiência de uma agência chinesa de<br />
turismo, a Ctrip, que testou durante nove<br />
meses o home office com 249 funcionários<br />
da área de atendimento, com resultados<br />
surpreendentes: aumentou o número de<br />
minutos trabalhados e o número de chamadas<br />
atendidas, o que se traduziu numa<br />
economia de 2 mil dólares por colaborador.<br />
Os ganhos foram óbvios, mas dois<br />
terços dos funcionários que participaram<br />
no ensaio pediram para voltar ao escritório<br />
por sentirem saudades dos colegas.<br />
A adopção do teletrabalho não é linear,<br />
as empresas têm de seguir uma estratégia<br />
para interiorizar esta disrupção laboral<br />
que está, seguramente, inscrita no futuro<br />
pós-pandémico. Por outro lado, não se<br />
trata de um modelo generalizável a toda a<br />
actividade empresarial. Há muitos trabalhadores<br />
que, devido à natureza das suas<br />
funções, quer na área industrial como na<br />
dos serviços, não as podem exercer fora<br />
da empresa. A oportunidade inovadora<br />
do trabalho à distância ultrapassará a<br />
ansiedade da pandemia e tornar-se-á uma<br />
importante peça do puzzle da organização<br />
empresarial. Grandes empresas dão<br />
exemplos de que assim acontecerá. O Facebook<br />
deu aos 45 mil empregados que tem<br />
espalhados pelo mundo um bónus de mil<br />
dólares para que equipem as suas casas<br />
para trabalharem remotamente. Também<br />
a Apple, Google, Amazon e Microsoft<br />
estão a apoiar financeiramente os<br />
seus colaboradores na montagem do seu<br />
posto de trabalho residencial.<br />
A consultora EY concebeu uma nova<br />
abordagem ao trabalho desenvolvido<br />
remotamente, ajudando os clientes a lidarem<br />
com a crise e a impulsionarem a<br />
“rápida transformação digital”. Para a<br />
EY, só conseguiremos lidar com o sentimento<br />
invulgar de isolamento se acelerarmos<br />
a revolução digital. Trata-se,<br />
74 | Exame Moçambique
acima de tudo, de capacitar as pessoas,<br />
o bem mais valioso das organizações,<br />
para a transformação digital e as novas<br />
formas de trabalho e de interacção com<br />
a empresa, parceiros externos e clientes,<br />
e de agir sobre a mentalidade das empresas<br />
“construindo consciência cultural e<br />
remodelando competências sociais e de<br />
gestão para facilitar um estilo de liderança<br />
digital”.<br />
A EY enuncia os cinco pilares das “formas<br />
inteligentes de trabalhar”, os quais<br />
foram transformados em blocos de construção<br />
complementares que, com base em<br />
necessidades específicas, também podem<br />
ser abordados individualmente. São eles<br />
que permitem difundir “formas inteligentes<br />
de trabalho”: o propósito, compreendido<br />
numa visão comum, as pessoas, imbuídas<br />
de uma nova mentalidade, as plataformas,<br />
que viabilizam novas aptidões, as<br />
práticas, assentes em regras claras, e, finalmente,<br />
os locais, que permitem construir<br />
um melhor mundo laboral. Fixado um<br />
propósito, a equipa de liderança é encorajada<br />
a discutir a direcção estratégica,<br />
repensar prioridades e avaliar os principais<br />
atributos dos seus papéis, passos<br />
fundamentais para enfrentar a contingência<br />
e agir proactivamente. Por outro<br />
lado, é necessário fomentar a consciencialização<br />
sobre a auto-eficácia das pessoas<br />
com vista a moldar as mentalidades<br />
e competências particulares necessárias<br />
ao aumento da motivação e do desempenho<br />
durante um momento caracterizado<br />
pela prevalência de um grande stress<br />
colectivo. As pessoas terão de possuir<br />
maior experiência digital, o que implica<br />
o aumento da consciencialização sobre as<br />
potencialidades das ferramentas digitais,<br />
explorando as suas capacidades e funcionalidades<br />
avançadas, as quais são úteis na<br />
gestão remota de equipas e na manutenção<br />
do contacto com parceiros externos<br />
e clientes. É também necessário, no plano<br />
legal e regulatório, tendo presente a resposta<br />
das autoridades à pandemia, avaliar<br />
a eficácia das medidas de segurança<br />
implementadas e identificar as áreas de<br />
grandes riscos relativos aos indicadores<br />
de desempenho preestabelecidos. Finalmente,<br />
há que explorar as alavancas da<br />
mudança que promovem as novas e inteligentes<br />
formas de trabalhar orientadas<br />
para a confiança e a responsabilização,<br />
proporcionando quadros contextuais, de<br />
aptidões e culturais.<br />
Estes “blocos” correspondem a outros<br />
tantos módulos que a EY propõe na sua<br />
agenda para a transformação digital das<br />
formas de trabalho.<br />
POSTOS DE<br />
TRABALHO:<br />
Grandes empresas<br />
já forneceram<br />
equipamento de<br />
trabalho remoto aos<br />
seus colaboradores<br />
PROPÓSITO<br />
Qual a evolução das expectativas, tarefas e<br />
responsabilidades do gestor num contexto<br />
de gestão de crise? É que este deverá estar<br />
preparado para orientar, liderar e motivar as<br />
pessoas num contexto remoto e complexo.<br />
A EY propõe a definição de um roteiro com<br />
base na identificação das prioridades estratégicas<br />
e tácticas, a qual permite a criação<br />
de um plano de acção partilhado. O gestor<br />
terá ainda de ter uma percepção clara das<br />
razões que o levam a envolver-se e mudar o<br />
estilo de liderança, a agenda de negócios e<br />
as prioridades num contexto de mudança,<br />
sendo capaz de envolver e motivar a sua<br />
equipa, ao mesmo tempo que promove<br />
comportamentos resilientes. De acordo<br />
com a consultora, o módulo dedicado à<br />
“liderança inteligente” animada por um<br />
propósito tem, em resumo, como finalidade<br />
“compreender os impactos e a prioridade<br />
das pessoas”.<br />
PESSOAS<br />
O objectivo do segundo módulo é “proteger<br />
as pessoas” agindo sobre os valores e<br />
mentalidades a alavancar para enfrentar<br />
a contingência actual com “pensamento<br />
positivo, foco e clareza”. O objectivo é conseguir<br />
transmitir a percepção de “segurança<br />
psicológica” e uma atitude positiva,<br />
maio <strong>2020</strong> | 75
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
fornecendo ferramentas concretas para<br />
superar a sensação de se estar isolado<br />
através da comparação com especialistas<br />
externos. Para isso, importa igualmente<br />
identificar competências transversais,<br />
treinando-as para que sejam eficazes em<br />
situações de crise (por exemplo, premeditação,<br />
resiliência dinâmica, gestão de<br />
emoções, auto-eficácia, colaboração real<br />
e virtual, resolução dinâmica de problemas,<br />
pró-sociabilidade, determinação<br />
ágil, capacidade de enfrentar a ambiguidade,<br />
aprendizagem pela experiência, fazer<br />
sentido, prestação de contas). Um passo<br />
seguinte é a acção, que passa por definir<br />
um roteiro de vitórias rápidas para pôr<br />
em prática as competências transversais<br />
e estimular a conexão social.<br />
PLATAFORMAS<br />
Há que tornar as pessoas experientes no<br />
domínio digital, permitindo-lhes que executem<br />
o seu trabalho do dia-a-dia da melhor<br />
forma possível, evitando frustrações e encorajando<br />
a motivação e a produtividade graças<br />
aos novos instrumentos tecnológicos.<br />
Neste âmbito, a EY propõe quatro tópicos<br />
para discussão: o brainstorming e quadros<br />
partilhados (como organizar e gerir remotamente<br />
sessões de brainstorming e actividades<br />
de co-criação), a gestão de projectos<br />
(gestão eficaz das equipas e a correcta avaliação<br />
do seu desempenho), a automação<br />
dos fluxos de trabalho (como automatizar<br />
actividades de rotina, aumentando a produtividade)<br />
e a criação de apps (PowerApps<br />
para prototipagem).<br />
PRÁTICAS<br />
A compreensão dos impactos e riscos<br />
legais ajuda as pessoas a trabalharem<br />
melhor, com a segurança de estarem a<br />
cumprir o que lhes é legalmente exigido<br />
e dado como direito. Para que aquela seja<br />
conseguida deve ser posto em prática o<br />
trabalho inteligente, envolvendo as práticas,<br />
procedimentos e notas legais que<br />
incentivem comportamentos correctos<br />
LONGE DO ESCRITÓRIO<br />
Muitas empresas, mesmo antes da actual<br />
pandemia já adoptavam o teletrabalho<br />
44%<br />
durante a prestação de trabalho remoto,<br />
como, por exemplo, a protecção de dados,<br />
observando regras, disposições legais e<br />
boas práticas comportamentais com vista<br />
a uma gestão segura da informação e a<br />
evolução para formas inteligentes de trabalho,<br />
tendo presente a resposta do legislador<br />
e analisando a legislação em vigor<br />
que favorece o trabalho remoto.<br />
LOCAL VIRTUAL:<br />
A cultura corporativa<br />
deve continuar<br />
presente<br />
56%<br />
empresas do mundo com trabalho remoto<br />
empresas do mundo sem trabalho remoto<br />
LOCAIS<br />
O último “bloco” a construir na fórmula<br />
de mudança da EY assenta na manutenção<br />
da flexibilidade, explorando as alavancas<br />
da mudança e facilitando a colaboração<br />
digital. Trata-se de assegurar a flexibilidade<br />
que permite utilizar o típico local de trabalho<br />
em conjunto com o “local virtual”.<br />
Este módulo tem em conta o ambiente (a<br />
evolução das organizações e as formas de<br />
trabalhar a favor de uma cultura corporativa<br />
baseada na confiança e na responsabilidade<br />
individual), as prioridades de<br />
negócio (um olhar sobre as prioridades<br />
organizacionais e de gestão para alinhar<br />
e sustentar o negócio principal), a cultura<br />
e valores, bem como os comportamentos<br />
(como colaborar remotamente e que bons<br />
“hábitos” há que ter para ganhar eficácia).<br />
Ao mudar a forma de colaborar e comunicar,<br />
as regras de colaboração social numa<br />
via totalmente digital e ainda a forma de<br />
gerir recursos e parceiros externos graças<br />
a dispositivos tecnológicos, a EY propõe-se<br />
“transformar um constrangimento numa<br />
oportunidade, aproveitando ao máximo<br />
as tecnologias disponíveis”.b<br />
76 | Exame Moçambique
A RESPOSTA DAS EMPRESAS<br />
A<br />
pandemia<br />
ameaça sérias disrupções<br />
nas cadeias de fornecimentos,<br />
cada vez mais<br />
disseminadas por diferentes<br />
pontos do planeta, colocando<br />
às empresas, designadamente às<br />
que actuam globalmente, desafios para os<br />
quais não estão especialmente preparadas.<br />
As empresas globais dispõem, há muito, de<br />
planos de contingência destinados a assegurar<br />
a continuidade dos negócios no caso<br />
de ocorrência de desastres, mas uma pandemia<br />
é uma catástrofe com uma dimensão<br />
e implicações dificilmente coberta por<br />
aqueles planos. Existem diferenças significativas<br />
entre as disrupções causadas por<br />
eventos naturais, erros humanos, falhas<br />
tecnológicas ou problemas operacionais e<br />
aquelas que resultam de um evento pandémico,<br />
que apresenta uma escala, gravidade<br />
e duração muito superior. Mesmo no caso<br />
dos desastres naturais (ciclones, tsunamis,<br />
terramotos), embora o seu impacto seja<br />
semelhante ao causado por uma pandemia,<br />
DIFERENTES DISRUPÇÕES<br />
esta não afecta apenas uma determinada<br />
área geográfica, alastrando-se a todo o planeta.<br />
É, pois, necessário adoptar respostas<br />
inovadoras ajustadas a uma crise com uma<br />
dimensão muito perturbante. A EY considera<br />
que devem ser desenvolvidos planos<br />
suplementares nos quais são contemplados<br />
os riscos específicos e de larga escala que a<br />
epidemia comporta. Além disso, estes planos<br />
complementares permitem às empresas<br />
coordenarem a resposta à crise com as<br />
autoridades nacionais e locais. b<br />
A EY compara os efeitos das disrupções tradicionais no fluxo de negócios com o impacto sobre a actividade<br />
das empresas das disrupções de origem pandémica<br />
Dimensão Disrupções tradicionais Disrupções de origem pandémica<br />
Escala<br />
Velocidade<br />
Duração<br />
Escassez<br />
de mão-de-obra<br />
Coordenação<br />
externa<br />
Infra-estruturas<br />
Localizadas: impactam uma empresa, geografia,<br />
instalação, parceiros, força de trabalho específicos<br />
Normalmente são contidas e rapidamente isoladas<br />
assim que é identificada a causa da falha<br />
Geralmente curtas, por exemplo menos de uma semana<br />
Podem resultar em escassez temporária ou<br />
reposicionamento do contingente laboral<br />
Podem exigir alguma coordenação com o público,<br />
governo, autoridades de segurança e sanitárias<br />
Requerem confiança na disponibilidade de<br />
infra-estruturas públicas (energia, transportes,<br />
comunicações, Internet, por exemplo) para<br />
complementar as principais estratégias de negócio<br />
Sistémicas: têm um impacto generalizado, incluindo<br />
força força de trabalho, clientes, fornecedores<br />
Espalham-se rapidamente num mercado contagiado<br />
em toda uma geografia ou mesmo globalmente<br />
Estendem-se por um período mais longo, podendo durar<br />
vários meses<br />
Podem depressa traduzir-se em crescente e significativa<br />
escassez (mais de metade) da força de trabalho<br />
Exigem um elevado grau de coordenação com o público,<br />
governo, autoridades sanitárias, forças de segurança<br />
e envolver mais do que uma jurisdição<br />
Podem constranger ou restringir a disponibilidade<br />
de infra-estruturas públicas à medida que a escala<br />
e gravidade do evento aumentam, sobretudo porque<br />
outras empresas são afectadas pelo mesmo problema<br />
maio <strong>2020</strong> | 77
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
1<br />
Comunicar com os colaboradores<br />
para aumentar a consciencialização,<br />
aplicando políticas (por exemplo,<br />
restrições de viajar) e familiarizá-los<br />
com as ferramentas e os recursos<br />
disponíveis<br />
2<br />
Se as considerações de planeamento<br />
pandémico não tiverem sido<br />
incorporadas ou actualizadas nas<br />
estratégias de continuidade de negócios<br />
e de recuperação de desastres, devem<br />
iniciar rapidamente o planeamento<br />
ou actualização de estratégias<br />
e acções dirigidas à pandemia<br />
3<br />
Realizar uma avaliação imediata<br />
dos processos e funções com elevada<br />
intervenção manual ou dependência<br />
de terceiros, especialmente em locais<br />
de elevada vulnerabilidade ao impacto,<br />
com vista a identificar os principais<br />
riscos, incluindo possíveis pontos<br />
de falha<br />
O QUE DEVEM FAZER AS ORGANIZAÇÕES<br />
4<br />
Analisar o plano de comunicação de<br />
crise, designando pontos de contacto<br />
para facilitar o envolvimento contínuo<br />
com autoridades locais, nacionais<br />
e globais e outros stakeholders<br />
essenciais, internos e externos<br />
5<br />
Identificar possíveis políticas de<br />
excepção e instituir um processo de<br />
aprovação de gestão de crise com vista<br />
a gerir essas políticas de excepção<br />
de forma acelerada em cada jurisdição<br />
6<br />
Confirmar se os funcionários dispõem<br />
dos recursos necessários, incluindo<br />
o acesso às unidades de<br />
compartilhamento, documentos e outras<br />
ferramentas críticas, para executarem<br />
remotamente tarefas críticas<br />
7<br />
Rever os procedimentos operacionais<br />
padrão relevantes e respectivos<br />
manuais, actualizando-os se necessário<br />
8<br />
Monitorizar a situação e fornecer<br />
instruções regulares aos dirigentes<br />
sobre quaisquer ameaças e problemas<br />
emergentes<br />
9<br />
Solicitar aos colaboradores a<br />
confirmação e actualização dos<br />
respectivos contactos (primários e<br />
secundários) nos registos da empresa<br />
10<br />
Dar uma breve formação pandémica<br />
aos colaboradores com vista a melhorar<br />
a sua preparação, bem como da<br />
organização, para que as respostas<br />
dadas sejam efectivas<br />
78 | Exame Moçambique
INOVAÇÃO NA<br />
LINHA DA FRENTE<br />
A<br />
s tecnologias inovadoras<br />
facultam as ferramentas<br />
mais eficazes no combate à<br />
pandemia COVID-19. Permitem<br />
identificar os infectados,<br />
diagnosticar de um modo muito mais<br />
rápido, seguro e eficiente, ligar hospitais<br />
de grandes cidades com hospitais de áreas<br />
remotas em diagnósticos on-line, sequenciar<br />
os genes virais através de inteligência<br />
artificial, utilizar robots na desinfecção de<br />
instalações, entre outros exemplos.<br />
CÓDIGO QR<br />
Na China, os cidadãos passaram a exibir<br />
nos seus smartphones um código QR pessoal<br />
de saúde quando viajam de transporte<br />
público, entram em supermercados ou<br />
regressam ao trabalho. “A utilização deste<br />
método digital origina um novo caminho,<br />
poupando às pessoas o incómodo de<br />
preencherem repetidos formulários, economizando<br />
uma grande quantidade de mão-<br />
-de-obra e recursos materiais, ajudando a<br />
reduzir os custos sociais da batalha contra<br />
epidemia”, escrevem Yu Sinan e Jiang<br />
Nan, no Diário do Povo.<br />
hospitais em áreas remotas para realizar<br />
diagnósticos on-line.<br />
IA NA BATALHA<br />
A startup canadiana BlueDot fornece o serviço<br />
de identificação de riscos de doenças<br />
infecciosas recorrendo a inteligência artificial<br />
(IA). A IA da BlueDot alertou para a<br />
ameaça do novo coronavírus vários dias<br />
antes de os Centros de Controlo e Prevenção<br />
de Doenças — ou até mesmo a Organização<br />
Mundial da Saúde (OMS) — terem<br />
começado a emitir alertas. A empresa<br />
de inteligência artificial Infervision desenvolveu<br />
uma solução a pensar na COVID-<br />
-19 que ajuda os profissionais de saúde na<br />
linha da frente a detectarem e monitorizarem<br />
a doença com eficácia. A IA é ainda<br />
aplicada, através de algoritmos optimizados,<br />
no sequenciamento de genes virais.b<br />
RASTREIO TECNOLÓGICO: Na China, as<br />
pessoas mostram um código que indica<br />
que não estão infectadas<br />
IMAGENS MÉDICAS<br />
O sistema de diagnóstico assistido por<br />
imagens médicas reduz radicalmente o<br />
tempo necessário para avaliar a condição<br />
do paciente, de algumas horas para poucos<br />
segundos, diminuindo o risco de infecção<br />
dos profissionais de saúde. O sistema<br />
de consulta remota, apoiado pela comunicação<br />
5G e outras tecnologias, liga especialistas<br />
e hospitais em grandes cidades com<br />
maio <strong>2020</strong> | 79
ESPECIAL INOVAÇÃO<br />
TÊNDENCIAS GLOBAIS<br />
Nos países mais atingidos pela pandemia as mais<br />
diferentes empresas industriais converteram-se<br />
rapidamente, passando a produzir as procuradas<br />
máscaras inibidoras da propagação do vírus<br />
LUÍS FARIA<br />
Director Executivo Exame Moçambique<br />
CONVERTIDA ÀS MÁSCARAS<br />
A francesa Porcher Industries, situada perto de Lyon, que fabricava<br />
materiais para automóveis, aviação e construção, reconverteu-se e está<br />
agora a fabricar máscaras. Há apenas um mês, os responsáveis desta<br />
empresa pouco sabiam sobre máscaras. Aqui, fabricavam-se coisas<br />
como parapentes ou materiais para o interior dos aviões. As ferramentas<br />
tiveram de ser actualizadas.<br />
116<br />
milhões unidades<br />
é o número de máscaras que a China produz diariamente desde a<br />
emergência do surto pandémico. Anteriormente produzia 20 milhões<br />
de unidades por dia. A China destina 70% da sua produção, a maior<br />
do mundo, à exportação.<br />
DO TÊXTIL À PROTECÇÃO<br />
Em Portugal, mais de 200 empresas do sector têxtil pediram ajuda<br />
governamental para passarem a fabricar máscaras comunitárias,<br />
cujo uso é agora obrigatório no país em transportes públicos e<br />
supermercados, por exemplo. O centro tecnológico português<br />
do sector testou dezenas de materiais susceptíveis de serem utilizados<br />
no fabrico do produto. Além das máscaras sociais também há empresas<br />
portuguesas a produzirem máscaras clínicas e máscaras destinadas<br />
a profissionais que contactam com o público.<br />
MÁSCARAS<br />
CLÍNICAS (Tipo 1)<br />
mais de 98%<br />
de capacidade<br />
de filtragem de<br />
partículas<br />
MÁSCARAS<br />
PROFISSIONAIS<br />
(Tipo 2)<br />
90% de capacidade<br />
de filtragem de<br />
partículas<br />
MÁSCARAS<br />
COMUNITÁRIAS<br />
(Tipo 3)<br />
70% de capacidade<br />
de filtragem de<br />
partículas<br />
NADA NA VIDA<br />
DEVE SER TEMIDO,<br />
TUDO DEVE SER<br />
COMPREENDIDO.<br />
ESTE É O MOMENTO<br />
DE ENTENDER<br />
MAIS, PARA QUE<br />
POSSAMOS TER<br />
MENOS MEDO."<br />
Madame Curie<br />
a primeira mulher<br />
laureada com um Prémio<br />
Nobel<br />
O QUE MUDA<br />
Diz-se que, depois da pandemia, nada ficará<br />
como dantes. Mesmo quando tudo quanto se<br />
sabe, quanto ao futuro, é que muito pouco se<br />
sabe, é fraca a probabilidade de que à recessão<br />
causada pelo Grande Confinamento se siga<br />
uma nova alvorada disruptora. O que não significa<br />
que muita coisa não mude, a digitalização<br />
sofreu uma forte aceleração e dificilmente<br />
muitas das suas aplicações farão marcha-<br />
-atrás. É interessante verificar como o comércio<br />
electrónico atrasou as suas entregas face à<br />
imprevisível avalanche de encomendas. Como<br />
professores e alunos se entregaram de repente<br />
ao ensino à distância. Ou como o teletrabalho<br />
manteve pessoas confinadas ligadas às suas<br />
tarefas diárias. Na verdade, o teletrabalho não<br />
pode, ou, pelo menos, não deve ser resumido<br />
a um recurso que permitiu às empresas, em<br />
tempo de emergência, continuarem a funcionar.<br />
Deve ser interiorizado pelas organizações<br />
como uma forma de reinventar a prestação da<br />
força laboral. A actual pandemia mostrou muitas<br />
das suas vantagens e também os problemas<br />
que envolve e que há que superar, com programas<br />
de implementação adequados. Afinal de<br />
contas, não é preciso perder preciosas horas<br />
em engarrafamentos que têm um pesado custo<br />
ambiental. Muito possivelmente as organizações<br />
irão reajustar o seu modelo de funcionamento,<br />
e mesmo a sua cultura, incorporando<br />
o trabalho remoto, ganhando maior flexibilidade<br />
e aumentando a produtividade dos seus<br />
colaboradores. Todas as organizações, não apenas<br />
as empresas.b<br />
80 | Exame Moçambique
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maio <strong>2020</strong> | 81
<strong>EXAME</strong> FINAL<br />
ÁFRICA NÃO DEVE<br />
PAGAR<br />
A pandemia que vai atirar a economia mundial<br />
para uma funda recessão é produto<br />
da incompetência dos países mais avançados<br />
em conter a sua génese e propagação,<br />
perdendo o seu controlo. África não deve<br />
pagar esta factura<br />
LUÍS FARIA<br />
O<br />
novo coronavírus, destroçou as economias mais desenvolvidas<br />
do Ocidente e fez colapsar alguns dos seus sistemas<br />
de saúde. A governação mostrou, nestes países,<br />
uma impreparação e incompetência absolutas. Daí que<br />
a COVID-19 se tenha transformado em pandemia. A oriente, e<br />
designadamente na China, onde a epidemia teve origem, foi claramente<br />
maior a eficácia na contenção do surto. Aliás, em geral,<br />
na Ásia as autoridades recorreram às mais avançadas tecnologias<br />
para conter a doença. Além disso, dispuseram dos equipamentos<br />
de protecção que escassearam na Europa e nos Estados<br />
Unidos, por imprevidência e lentidão na resposta dos governos<br />
dos diferentes países, que, de repente, se aperceberam que todo<br />
o material de protecção das populações e pessoal hospitalar e<br />
tratamento da doença quando atinge as situações mais críticas<br />
era fabricado na China. Cerca de 80 países competiram no mercado<br />
chinês pela aquisição de equipamento, fosse a que preço<br />
fosse. Faltou tudo: máscaras individuais, luvas, fatos de protecção<br />
hospitalar, ventiladores para as áreas de cuidados intensivos.<br />
Não houve nada, no combate à pandemia, que os Estados Unidos<br />
e a Europa não tivessem de importar da China. Uma verdadeira<br />
“rota sanitária”.<br />
As medidas preventivas, as únicas capazes de moderar a propagação<br />
meteórica do vírus, foram sistematicamente tomadas<br />
com atraso, o que teve consequências catastróficas face a uma<br />
doença que se caracteriza pela fulminante rapidez de contágio.<br />
Em resultado, a economia global contraiu-se dramaticamente,<br />
com o Fundo Monetário Internacional (FMI) a prever uma das<br />
maiores recessões de que há memória para este ano.<br />
Se a pandemia da doença COVID-19 ganhar em África a mesma<br />
força devastadora com que se abateu no Hemisfério Norte, o continente<br />
irá confrontar-se com uma “tempestade perfeita”, em que<br />
se conjugarão a dificuldade de confinar a economia informal,<br />
a fragilidade da resposta hospitalar, a quebra abrupta do preço<br />
das matérias-primas e o peso da dívida nos orçamentos nacionais,<br />
que condicionará despesas necessárias no combate à recessão<br />
económica e emissão de nova dívida em moeda externa.<br />
O contágio tem avançado lentamente no continente, o que se fica<br />
muito a dever às medidas de contenção prontamente tomadas pelas<br />
autoridades (Moçambique é um exemplo). Avança devagar, mas,<br />
ainda assim, a ameaça não se extingue. Os estragos provocados<br />
nas economias africanas já são dramáticos. O valor das matérias-<br />
-primas, cuja venda é essencial para a receita e o equilíbrio externo<br />
da grande maioria dos países africanos, continua a cair. O preço<br />
do gás natural quebrou mais de 30% e o do barril de petróleo chegou<br />
a passar para valores negativos no mercado norte-americano<br />
face às dificuldades de armazenamento. O Brent, referência dos<br />
mercados internacionais, caiu para perto de 20 dólares. A cotação<br />
dos metais também recuou significativamente, com excepção<br />
do ouro, como é comum em situações de crise.<br />
Quem paga a pandemia? Os países africanos que adoptaram<br />
a tempo as medidas correctas e que continuam a suportar<br />
uma dívida asfixiante? A China que, com a ocultação da<br />
irrupção do vírus, fez que este se transformasse em pandemia?<br />
Os países europeus desenvolvidos que tiveram uma reacção<br />
lenta, desnorteada e tardia? Os Estados Unidos que, à semelhança<br />
da Europa, acordaram tarde, deixaram a infecção propagar-se<br />
e estilhaçar alguns sistemas de saúde, como foi o caso<br />
de Nova Iorque? África, devido à manifesta incompetência dos<br />
países mais industrializados, poderá confrontar-se com a quebra<br />
do valor das exportações, suportar, nas suas economias, o<br />
impacto de uma depressão global sem precedentes, não se afastando<br />
ainda a possibilidade de vir também a enfrentar, numa<br />
escala assustadora, a pandemia? Esta é uma factura que não deve<br />
ser apresentada ao continente.b<br />
D.R.<br />
82 | Exame Moçambique