Revista Sarava Science, Ano 2, n 1, Jun 2019
revista saravá science – é uma publicação de responsabilidade do Percurso Livre em Psicanálise (PLP), Natal, RN, Brasil.
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ANO 2 | Nº 1 | JUNHO | 2019
@percursoempsicanalise
www.percursoempsicanalise.com.br
1
EDITOR GERAL
Pedro von Sohsten
EDITOR DE ARTE
Luiz Ricardo Mesquita
EQUIPE EDITORIAL
GRUPO DE TRABALHO CIÊNCIA E PSICANÁLISE
Demétrius Abreu
Joaquim Artur de Almeida Feitosa Pereira
Pedro von Sohsten
Rafaela Santos Amorim
Rebekka Fernandes Santos
CONSELHO EDITORIAL
Ana Yara Monteiro
Anderson Soares
Demétrius Abreu
revista saravá science – é uma produção do Grupo
de Trabalho Ciência e Psicanálise do Instituto André
Green.
revista saravá science - é uma publicação de
responsabilidade do Percurso Livre em Psicanálise
(PLP), Natal, RN, Brasil.
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
2
EM FOCO
3
PHOTO BY KEN HOWARD/METROPOLITAN OPERA
pg.
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Romantismo, Psicanálise e os
destinos da morte ligada ao amor
"[...] o objetivo aqui não é aproximar a Psicanálise do
Romantismo, ou mesmo encontrar convergências entre
eles. A proposta é utilizar a teoria das pulsões de Freud
para buscar uma compreensão de alguns movimentos de
destruição, e mesmo de morte, que ocorrem em situações
de rompimento amoroso."
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
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EDITORIAL
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AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
A
psicanálise, a ciência e a cultura
são a primazia dos muitos
elementos que constituem essa
publicação. Embora não pareçam
conflitantes essa tríade necessita de
investimento substancial de “libido” para
que justapostas ganhem considerável
coerência.
O lançamento desse segundo número da
Saravá Science é acima de tudo um símbolo de
desejo, pois consiste em uma tessitura de
contribuições intelectuais de jovens
psiquismos e corações que oxigenam a
psicanálise em nosso tempo, esse que há
muito sofre obliterado pela construção
tecnicista, mas que clama cada vez mais por
“gestos espontâneos”. Gesto que embora
cândido também é ético, pois acima de tudo
deseja divulgar resultados de esforços que
há muito se escondem a vistas de poucos.
Por isso temos o prazer de entregar a você
leitor, independente do percurso que o
trouxe até essas páginas, um volume que
trata de uma diversidade de temas
contemporâneos, em diversos formatos,
desde artigos científicos a resenhas
críticas, indicações de leitura e
manifestações artísticas. visto que, essa
publicação é marcada pelas divisas da
pluralidade, que é acima de tudo estribo
para a manutenção da transmissão da
psicanálise em nossa instituição (plp).
incito que percorra nossas paginas ao seu
desejo, faminto ou voraz, feito na ordem ou
fora dela, mas que independente de sua
5
EDITORIAL
"posição" encontrará um desdobramento que
se apraz em variadas sessões, dentre elas
destaco, a Seção Regional, cujo sentido é
transformar em objeto de estudo e
apreciação a nossa regionalidade nordestina
e norteriograndense, e a Seção de
Psicopatologias, que traduz um afinamento
entre a psicanálise e o nosso tempo,
atualizando o leitor das peculiaridades da
clínica contemporânea. dessa forma, Seção a
seção o leitor encontrara conteúdos que ao
invés de sofrerem mutilações para caberem
nos escopos de outros, acham aqui, em nosso
berço, maternagem suficientemente boa para
ganhar proeminência.
[...] essa publicação é
marcada pelas
divisas da
pluralidade, que é
acima de tudo
estribo para a
manutenção da
transmissão da
psicanálise em nossa
instituição [...]
Essa "ética do cuidado", concebe a Saravá
Science não somente uma atenção ao
conteúdo escrito que a integra, mas se
estende por todos os detalhes que lhe
confere coesão, representados em cada cor,
cada traço, cada imagem minuciosamente
esculpidas com o intuito de fornecer a quem
versa suas páginas não somente outra via de
transmissão de conteúdo, mas uma
experiência verdadeiramente estética.
assim, Vencido essa segunda etapa na vida da
Saravá Science, convidamos a todos aqueles
que desejam publicar, que submetam suas
contribuições para a próxima edição que já
tem data definida, dezembro de 2019.
Desejo que a leitura dessa revista seja
proveitosa
EDITOR DE ARTE
ricardo_mesquitta@live.com
@ricardo.mesquitta
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Sumário
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Seção
Sexualidade,
História & Cultura
A sexualidade como fenômeno discursivo
Anderson Soares
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Arte no Divã
Presa em um Poema
Sílvia Passos
PHOTO BY LUANA CAVALCANTE
08
Seção Regional
"Retrato pintado: a humanidade precisa
mais de fantasia do que da realidade?”
Mariana Lima Rodrigues
14
22
Seção de Psicopatologia
Transtornos alimentares: reflexões sobre o
"não comer"
Rebekka Fernandes Dantas
Artigo
Romantismo, Psicanálise e os destinos da
morte ligada ao amor
Ana Yara Gouveia Monteiro
PHOTO BY SAULIUS ROZANAS
Comer é um ato de
prazer que conhecemos
já nos primeiros dias de
vida [...]
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40
Ciência & Psicanálise
Inconsciente: entre Razão e Desrazão
Pedro von Sohsten
Seção Clínica Psicanalítica
A erotomania como possível destino do
desamparo: os desafios no manejo
transferencial e contratransferencial na
condução de um caso clínico
Cecília Santos
Tais relatos me ecoavam
um psiquismo frágil,
desamparado, [...] e que se
valia de mecanismos de
defesa mais arcaicos, a
fim de proteger e manter
íntegro um ego incipiente.
48
Indicação de Leitura
Sobre psicanálise
Diálogos Minerbos: Resenha de indicação e
comentários ao livro “Diálogos sobre a
clínica psicanalitica” (2016).
Rafaela Santos Amorim
52
Indicação de Leitura
Sobre Literatura
Luz e Sombra: Resenha de indicação e
comentários ao livro “Morangos Mofados"
de Caio Fernando Abreu.
Demétrius Abreu
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Saravá em Exposição
Pinturas Corporais e Fotografias
Luana Cavalcante
PHOTO BY JEFF JUIT
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PHOTOS BY LUANA CAVALCANTE
O auto da
liberdade do feminino
por Mariana Lima Rodrigues
Aos olhos e ouvidos curiosos de quem transita pela psicanálise, o
processo convocado pelos pincéis de LuAna Cavalcante não passaria
despercebido. É possível sobrepor o lugar do divã ao sofá que abraça
e acolhe o Ser-tela que surgirá diante dos olhos da artista e em
seguida refletido no espelho.
Menina nascida no maior município do estado do Rio Grande do Norte,
essa mossoroense, filha de um artista plástico, por quem foi banhada
nas águas da arte, desde pequena imprimia o corpo feminino em seus
desenhos infantis; hoje, acervo particular do pai. A artista, vez por
outra, revisita suas obras primárias e recorda o quanto era proibido o
acesso ao próprio corpo e à voz ativa em sua realidade.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAA
[...] Luana consegue catalisar o que é
dito e vestindo o corpo de tinta, nos
despe das resistências e preconceitos
que tendem a nos barrar enquanto
sujeitos desejantes.
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Relembrando ser ela a primeira de sua família a concluir o ensino superior,
essa mulher mossoroese saiu dos bastidores das agências de publicidade
potiguares e rompeu com a tradição na Universidade de Coimbra. Numa
disciplina chamada Fotografia e Composição, Luana, única brasileira da
sua turma, se fotografou pintada de índia e expôs diante dos olhos dos
colonizadores sua interpretação da própria história. Atualmente, existem
quatro obras da artista –classificadas como expressionistas– expostas na
Galeria Colorado, em Portugal.
Foi a partir desse momento, na Universidade de Coimbra, que Luana
experienciou, literalmente despida de qualquer interdição, o processo de
observar o corpo e des-cobri-lo como objeto de investimento pela via
artística. A tela lisa e reta deu lugar às curvas do corpo feminino, que não
necessariamente é o corpo de uma mulher, mas do ser feminino que
habita cada indivíduo.
O PRIMEIRO SER E SEU LUAR
Cansada das camadas socialmente sobrepostas ao corpo, é no encontro
do pincel com a tinta e a pele, que Luana sublima toda opressão sofrida
pelo nu e, promovendo um processo de elaboração, transforma a história
pessoal de cada Ser em arte.
Tradições quebradas, um cenário de crise na publicidade e um
relacionamento abusivo depois, Luana se identifica com as vivências
compartilhadas por Wisla Ferreira, amiga, cantora, atriz, performer (e o
que mais ela quiser ser) e então, num engate relacional, propõe uma
pintura corporal.
Wisla, que já carregava em seu ventre, sem saber, a força de um luar, foi o
primeiro ser que surgiu das mãos de Luana, que ao finalizar a pintura,
como quem diz: “Fiat Lux” declamou: “É a forma que eu vejo você! É o
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Seção Regional
Mariana Rodrigues
SER, é o Ser de LuAna!”. Menos de nove meses depois, Wisla deu à luz a Raul, seu
luaR ao contrário que ressignificou sua vida.
O PROCESSO SEM JULGAMENTOS
Luana oferta acolhimento, escuta e café. Dessa forma, enquanto os Seres acessam o
mundo interno e trazem à palavra, de forma catártica, o que é sentimento,
experiência, vivência, angústias, desejos, a artista rascunha o que o pincel vai dizer
sobre tudo que foi narrado. E depois, é impossível a tela humana não passar a limpo
tal sensação, como uma elaboração do que é dito e até do que é silenciado, mas
percebido pela artista.
É como se naquele momento fosse possível colocar-se pelo avesso e enxergar a
epiderme estampando por fora o recorte subjetivo do que é contido dentro. Nos
transportando de uma realidade em que somos privados de nós mesmos, Luana
consegue catalisar o que é dito e, vestindo o corpo de tinta, nos despe das
resistências e preconceitos que tendem a nos barrar enquanto sujeitos desejantes.
Não é somente um corpo, não é somente uma tela; depois de pintada, a obra de arte
humana se coloca diante do espelho como um todo indissociável, que mesmo
passando pelo filtro da artista, suscita uma inevitável identificação com o que é
posto. Luana dá voz à tela, é a obra construindo junto à artista o processo criativo.
Nesse processo, Luana coloca em prática todo o saber-como adquirido em 15 anos
de publicidade, e no lugar de instruções e coletas de dados técnicos para criação de
uma identidade visual, ela faz a leitura de uma história real, na qual ela acredita, e em
vez de imprimir peças publicitárias, o conceito é impresso no próprio corpo de quem
lhe fala.
O DIA EM QUE MATERIALIZEI MINHA ANGÚSTIA
Carimbada com a sensação de virar uma obra de arte, tomada por um nó na
garganta, não pude esperar até a semana seguinte para a próxima sessão com meu
psicanalista, recorri a uma das vias que mais tenho apreço —a sublimação. Incapaz
de fazê-la sozinha, cheguei ao ateliê de Luana propondo que ela pintasse em mim a
angústia que eu sentia.
Ciente de minha necessidade de retirar do corpo o que me afligia, Luana fez um
preparo de tinta, cola e hidratante corporal, pintou em mim exatamente o que
descrevi. E lá estava ela, minha angústia, palpável, materializada. Pude senti-la
envolvida em meu corpo, como um abraço indesejado.
PHOTOS BY
LUANA CAVALCANTE
[...] a artista rascunha o que o pincel vai
dizer sobre tudo que foi narrado. E
depois, é impossível a tela humana não
passar a limpo tal sensação.
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Seção Regional
Mariana Rodrigues
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Depois de me proporcionar a elaboração de todo o
processo, Luana me ordenou o que eu já desejava:
“Agora, retire do seu corpo essa angústia que você
sentia!”. E como conjugar o verbo no passado foi
simbólico naquele momento.
Pude genuinamente nomear o sentimento e depois de
forma catártica, eliminar todo o sintoma que me
adoecia. Luana captou desde a angústia até o
momento em que artisticamente eu consegui retirar do
meu corpo a tinta que simbolizava o nó na garganta.
O QUE O PINCEL FALA, A EXPRESSÃO NÃO MENTE
A cada pincelada, é possível sentir-se preenchida pela
sensação de ser e estar livre. A entrega ao processo do
Ser de LuAna permite que a subjetividade e
identificação andem em caminhos paralelos e de mãos
dadas. Luana ensina a amar a imagem que o corpo
reflete, seja no espelho ou na lente de sua câmera.
Há uma verdadeira chuva, que não é de “bala no país
de Mossoró”, mas de associações com o que é
delicadamente pintado sobre o corpo. Luana está na 5ª
exposição do projeto O Ser de LuAna e cada seleção
reúne um verdadeiro “Motim de Seres Femininos” que
se reencontram harmonicamente com uma imagem
inconsciente constitutiva do próprio Eu.
questões naquele momento tocadas e, da forma mais
sublime aos olhos, surge uma obra de arte, cuja
moldura é a conexão entre criatura e criação.
Esse projeto adentra no âmbito sensorial, é possível
sentir a essência que exala da tela humana depois da
última pincelada, e enquanto a tinta seca, vai surgindo
diante do espelho a expressão que traduz a história do
ser que ali se revela.
Luana não disfarça o semblante de satisfação pelo que
proporciona e pelo resultado da sequência das
imagens que sua câmera captura. Aliás, ela mesma
admite que seu trabalho é fruto da sua intenção de
imortalizar sua existência através da sua arte.
“Me questionava sobre o que existe depois que essa
vida acaba. Diante da minha dúvida, optei por fazer o
meu melhor, e decidi que o meu melhor era transmitir o
bem em forma de arte.” E é com a certeza de que cada
Ser é tomado pelo sentimento de amor próprio que
Luana acredita no seu processo e na identidade visual
criada em cada ensaio.
O Ser de LuAna será lembrado pela teimosia de uma
publicitária, designer e artista plástica que investiu na
sua capacidade de acessar o outro, e tornou possível a
tradução de tal experiência em um processo de
descoberta, que manifesta quem somos e o que
podemos SER.
O retrato elegido pela artista é o que capta um recorte
que imprime em cada Ser-tela, a elaboração das
ILLUSTRATIONS BY ALEXANDRA HAYNAK
Sobre a autora do texto e modelo:
Mariana Lima Rodrigues
Advogada - UnP/RN
Candidato a Psicanalista - Percurso Livre em
Psicanálise / RN
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Seção de Psicopatologia
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Transtornos alimentares: reflexões sobre o
“não comer”
Rebekka Fernandes Dantas
A alimentação é interesse de diversos campos
científicos. Com um caráter complexo e multifacetado
contribui com a reprodução biológica e social das
sociedades humanas. É também uma ação cotidiana:
precisamos comer diariamente e mesmo várias vezes
ao dia. Por esse aspecto vulgar, a alimentação foi, por
muito tempo, relegada a segundo plano como objeto
de investigação científica.
Hoje, ela responde a interesses econômicos, políticos,
estéticos, médicos, psicológicos e nutricionais, uma
vez que abarca tanto questões fisiológicas, quanto
socioculturais e psíquicas.
Comer é um ato de prazer que conhecemos já nos
primeiros dias de vida. Freud (2016) em “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade” considera mamar no
peito da mãe a primeira e mais vital atividade da
criança. É sua primeira sensação de prazer,
inicialmente por saciar a necessidade de alimento e
depois pela satisfação sexual. Ao longo da vida nos
reunimos em torno da mesa para comer e beber junto,
presenteamos aqueles que amamos com um bom
vinho ou uma deliciosa sobremesa, e comemos como
uma forma de recompensa e na tentativa de aliviar
algum sentimento ruim.
Mas para muitas pessoas que sofrem com transtornos
alimentares o comer apresenta outros significados e
simbolismos. Sentar-se à mesa pode ser um tormento
e o comer reduzido a operações matemáticas na
contagem de calorias. Ainda que possa existir nesse
comportamento de controle da comida e do corpo
uma forma de prazer e segurança.
O Manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais (DSM-5) apresenta e descreve critérios
diagnósticos para os seguintes transtornos
alimentares: pica (desejo por comer substâncias não
comestíveis), transtorno de ruminação, transtorno
alimentar restritivo/evitativo, anorexia nervosa, bulimia
nervosa e transtorno de compulsão alimentar. Porém,
é importante que estes diagnósticos não sejam vistos
com engessamento pelos médicos psiquiatras, pois
apesar de existirem características comuns às pessoas
que sofrem com esses transtornos, também existe a
singularidade do sujeito que deve ser considerada.
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Seção Psicopatologias
Rebekka Fernandes Dantas
Dentre os transtornos alimentares mais conhecidos e
estudados estão a anorexia e a bulimia nervosa. O
número de casos desses transtornos aumenta a partir
da década de 1950 com um incremento significativo
em 1970 e 1980, o que parece ter contribuído para
múltiplas pesquisas científicas sobre o comportamento
alimentar, tanto na psiquiatria, epidemiologia e
neurociências, quanto na psicanálise (FERNANDES,
2006).
A anorexia nervosa é caracterizada pela recusa a
alimentar-se e pelo controle do peso corporal,
geralmente acompanhado de amenorreia. Já a bulimia
(“fome de boi”) é caracterizada por episódios de
compulsões alimentares seguidos de comportamentos
compensatórios, como a indução de vômito, uso de
laxantes e prática extenuante de exercícios físicos.
Ambas podem estar relacionadas e apresentam um
temor de ganhar peso e uma distorção da imagem
corporal. Pode atingir homens e mulheres em diversas
idades, apesar de ser mais comum em mulheres jovens
(FERNANDES, 2006). Mas o que desencadeia esses
transtornos alimentares?
Muito se fala das questões culturais e do padrão de
beleza imposto pela sociedade ocidental, pautado na
“lipofobia”. Apesar de estar claro que as questões
culturais têm relação com os transtornos alimentares,
estes são muito complexos e também multifatoriais,
impossibilitando qualquer tentativa de abordagem
unilateral. Predisposições de ordem biológica,
psicológicas e familiares, entre outros, também estão
envolvidos. Fernandes (2006) demonstra a
preocupação em apresentar esses aspectos
socioculturais não como causadores dos transtornos
alimentares, mas como favorecedores do seu
desenvolvimento.
Se em algumas culturas os corpos robustos são vistos
como sinal de prosperidade, em nossa sociedade
temos atitudes repulsivas para com aqueles que
apresentam alguma marca de adiposidade. A gordura é
depreciada, seja nos corpos ou nos alimentos, e cria-se
uma busca incessante pela magreza para atender a
uma exigência social (FISCHLER, 1995).
Freud (2012) em seu texto “Totem e tabu” (1912 - 1913)
afirma que o tabu ainda subsiste entre nós. Esta
afirmação ainda serve muito bem para o século XXI.
Quando essa repulsão pelas gorduras se instaura, o
que também acontece com os carboidratos ou
alimentos energéticos, surge um tabu relativo ao que
comemos. Determinados alimentos passam a ser vistos
como proibidos e portadores de um perigo. No entanto,
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
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Sessão de Psicopatologia
Rebekka Fernandes Dantas
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essa periculosidade ao mesmo tempo que
proíbe gera desejo.
Ao contrário do que possa se pensar, este
desejo é um elemento muito forte nos
transtornos alimentares. O “não comer” não diz
respeito à ausência de vontade de comer, mas
na verdade “tal recusa esconde um desejo que,
pela sua intensidade e pela ambiguidade que
ele desperta, só pode ser administrado por uma
vontade obstinada de recusá-lo” (FERNANDES,
2006, p. 57).
No entanto, esse desejo tem percursos muito
singulares em cada sujeito. Em “Luto e
Melancolia” Freud (2010) conceitua a melancolia
como um abatimento doloroso e perda do
interesse pelo mundo exterior com diminuição
da autoestima expressa por recriminações,
ofensas e punições dirigidas à própria pessoa.
Nessa mesma obra ela cita Abraham que
relaciona o estado melancólico em sua forma
grave com a recusa em alimentar-se. É preciso
lembrar também que Freud considera o
narcisismo central para a melancolia.
Recusar-se a comer pode ser uma prática
autopunitiva como também uma forma de
sadismo. O corpo magro, inicialmente pode
surgir como um ideal de beleza que cativa o
olhar do outro e transforma-se no corpo
emagrecido e adoecido que atrai igualmente o
olhar do outro pelo horror que causa. Em
qualquer um dos casos o corpo é investido
libidinalmente (COPPUS, 2011; CUNHA e
VORCARO, 2013).
Este corpo também apresenta uma distorção. O
sujeito tem a sensação de estranhamento com
ele. Percebe algo que excede em seu corpo que
não é notado por mais ninguém e que precisa
ser eliminado (COPPUS, 2011) pela rejeição ao
ato de alimentar-se, pela purgação, pela prática
de exercícios físicos ou por qualquer que seja a
estratégia que encontre.
Os transtornos “alimentares”, apesar do nome,
são constituídos por questões muito delicadas e
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
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Seção Psicopatologias
Rebekka Fernandes Dantas
paralela a la melancolia". Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São
Paulo, v. 16, n. 2, p. 232-245, jun. 2013.
FERNANDES, M. H. Transtornos alimentares: anorexia e bulimia.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.
FREUD, S. Totem e tabu, contribuição à história do movimento
psicanalítico e outros textos (1912-1914). Tradução e nota de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, v.
11.
______. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e
outros textos (1914-1916). Tradução e nota de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, v. 12.
______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise
fragmentária de uma histeria ("O caso Dora") e outros. Tradução
e nota de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016, v. 6.
complexas, cuja resolução vai muito além da comida.
Entender as representações, os significados e
simbolismos dessa recusa a partir de uma escuta
sensível permite um modo de cuidar desse sujeito que
não come e que se torna insensível a qualquer
imperativo que remeta ao comer.
___________________
REFERÊNCIAS:
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION et al. DSM-5: Manual
diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora,
2014.
FISCHLER, C. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina e ele cuerpo.
Traducción de Mario Merlino. Barcelona: Editorial Anagrama,
1995.
COPPUS, A. N. S. Qual a função do corpo na anorexia e na
bulimia que se apresentam na clínica da neurose? Reverso, v. 33,
n. 61, p. 15-19, 2011.
CUNHA, F. C. C.; VORCARO, Â. M. R. Anorexia: "una neurosis
Sobre a autora do texto:
Rebekka Fernandes Dantas
Percursante do PEAP, PLP, NATAL – RN
Licenciada em Nutrição – UFRN
Mestre em Ciências Sociais – UFRN
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
confira nossa programação em:
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[...] a temática da morte
[...] é “uma forma de
resolução privilegiada
para as antinomias e
conflitos românticos".
PHOTOS BY KEN HOWARD/METROPOLITAN OPERA
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Artigo
PHOTO BY KEN HOWARD/METROPOLITAN OPERA
Romantismo, Psicanálise e os destinos da
morte ligada ao amor
Ana Yara Gouveia Monteiro
A
través da personagem Norma, da ópera italiana de Vincenzo Bellini, proponho
um entendimento dos destinos da morte ligada ao amor, utilizando para isso
algumas noções básicas de Psicanálise e Romantismo.
O presente texto parte da noção de Romantismo desenvolvida por Loureiro no livro O Carvalho e
o Pinheiro. Freud e o estilo romântico (2001) como “um movimento ocorrido em todas as esferas
da existência, na direção de um reencantamento do mundo” (p.193). A autora ressalta que a
noção de reencantamento supõe a consciência de um desencantamento, que é vivido a partir de
uma ruptura ou perda, e desencadeia uma crise. É basicamente a partir desse movimento que se
manifesta a principal característica da atitude romântica, a “tentativa de restituir uma experiência
de plenitude e de absoluto.” Segundo as palavras de Loureiro (2001, p.241):
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Artigo
Ara Yara Monteiro
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O Romantismo é caracterizado como um
modo de pensar no qual se usa e abusa dos
conflitos, contradições e choques entre pares
de opostos; no entanto, todas as polaridades
tendem a se resolver numa síntese ou se
desenham sobre o pano de fundo de uma
unidade fundamental.
Paralelamente às noções de Romantismo, e
principalmente de amor romântico, busca-se
compreender, na história de amor trágica de Norma e
Polione, os movimentos e deslocamentos ocorridos
com a pulsão de morte e, eventualmente, também com
a pulsão vida, dentro da concepção freudiana das
pulsões.
Antes de iniciar esse percurso é relevante comentar
incompatibilidades existentes entre o Romantismo e a
Psicanálise de Freud, o que, todavia, não impede a
realização desta proposta. Primeiramente, é preciso
observar que o Romantismo é considerado um cultor
de ilusões, em função da sua pretensão de
reencantamento do mundo, enquanto a Psicanálise, de
acordo com as palavras de Loureiro (2001, p.248),
“apresenta-se como uma trituradora de ilusões” Em
segundo lugar, ainda seguindo as trilhas de Loureiro
(2001), a obra de Freud opera um desvio em relação à
tradição romântica, pois não partilha daquilo que é
considerado a principal característica do estilo
romântico: “a aspiração à unidade, à completude ou à
transcendência”. Segundo a autora, a teoria freudiana
carece de qualquer intuito de reencantar o mundo.
Pois bem, o objetivo aqui não é aproximar a Psicanálise
do Romantismo, ou mesmo encontrar convergências
entre eles. A proposta é utilizar a teoria das pulsões de
Freud para buscar uma compreensão de alguns
movimentos de destruição, e mesmo de morte, que
ocorrem em situações de rompimento amoroso. A
história de Norma servirá de diretriz para ilustrar essas
tentativas de análise.
Norma, suma sacerdotisa dos druidas. Por ser uma
sacerdotisa da lua, tem como compromisso e
juramento, manter-se casta. Contudo, apaixona-se por
Polione, guerreiro romano, torna-se sua amante e com
ele tem dois filhos. Além de não manter o compromisso
com seu povo e com sua crença – deixando de ser
virgem – Norma trai a confiança de seu povo quando,
utilizando-se de sua posição de suma sacerdotisa,
tenta destituí-los da ideia de guerrear contra os
romanos, para poupar seu amante.
É interessante introduzir, nesse momento, um
esclarecimento acerca do amor romântico que, como
todo o estilo romântico, vem carregado da noção de
completude, de fusão com a pessoa amada, para
formar com esta uma totalidade. Assim, o amor
romântico pode ser entendido como um amor
arrebatado, sem medidas e sem limites.
A ideia de fusão entre dois amantes implica a anulação
da individualidade de quem ama em nome de algo
maior, que nesse caso é a relação amorosa, oferecida
aos amantes como o grande trunfo, o prêmio da
unidade restabelecida. Norma anula sua
individualidade quando trai seu povo e seus costumes
em nome do amor a Polione. Todavia, Norma descobre
que Polione está apaixonado por outra sacerdotisa,
mais jovem que ela. Adalgisa, sem saber da relação
entre Norma e Polione, procura a suma sacerdotisa
para se aconselhar, pois jurou castidade e está
apaixonada. Norma se identifica com a história de
Adalgisa, lembrando de quando foi seduzida, e quando
pergunta sobre o amante de Adalgisa, descobre que se
trata de Polione.
O que pode acontecer quando uma relação do tipo
fusional, sem medidas, como a de Norma e Polione, se
rompe? Seguindo alguns preceitos da Psicanálise,
entendemos que toda relação amorosa é ambivalente,
ou seja, é constituída de amor e ódio. Em O Ego e o Id
(1923), Freud comenta que as observações clínicas
demonstram que freqüentemente, amor e ódio se
encontram juntos, seja um como precursor do outro, ou
mesmo um se transformando no outro em
determinadas circunstâncias. Anteriormente, em Luto e
Melancolia (1917[1915]), ele já havia dito que: “a perda
de um objeto amoroso constitui excelente
oportunidade para que a ambivalência nas relações
amorosas se faça efetiva e manifesta” (p.283).
Pode-se considerar que enquanto a relação é mantida,
as pulsões de morte e de vida permanecem ligadas,
sustentando a relação. À partir do momento que há um
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Romantismo
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rompimento nesse vínculo, ou seja, que a relação deixa
de existir, essas duas pulsões se separam. A pulsão de
vida, que tende sempre à ligação, logo se vincula a
outro objeto, mas a pulsão de morte, considerada
eminentemente uma pulsão de desligamento, fica
autônoma, podendo seguir diferentes caminhos:
Em parte são tornados inócuos por sua fusão
com componentes eróticos; em parte são
desviados para o mundo externo sob forma
de agressividade; enquanto que em grande
parte continuam, sem dúvida, seu trabalho
interno sem estorvo (Freud, 1976, p.70).
A pulsão de morte livre representa um risco para o
psiquismo do indivíduo, que para escapar da morte
precisa direcionar essa pulsão para fora, para o mundo
exterior, ou religá-la de alguma forma a pulsão de vida.
Quando a pulsão de morte é desviada para fora do
organismo, ela vira pulsão de destruição. Sendo assim,
o rompimento de relações do tipo romântico, quase
sempre vai desencadear movimentos destrutivos.
Freud (1976, p.71) nos diz:
Quando uma transformação desse tipo se
efetua, ocorre ao mesmo tempo uma
desfusão instintual. Após a sublimação, o
componente erótico não mais tem o poder de
unir a totalidade da agressividade que com
ele se achava combinada, e esta é liberada
sob a forma de uma inclinação à agressão e à
destruição.
Ao descobrir a paixão de Adalgisa e Polione, Norma
fica enfurecida. Nesse caso, o ódio é derivado da
inversão do amor, ou seja, é uma tentativa da pulsão de
vida de manter a pulsão de morte sob controle,
ocupada com os objetos, como uma forma de
preservar o psiquismo. Em O Ego e o Id (1923), Freud
comenta que “para fins de descarga, o instinto de
destruição é habitualmente colocado a serviço de
Eros” (pulsão de vida).
A culpabilização, que costuma surgir num segundo
momento, também é conseqüência desse movimento,
da necessidade de encontrar um objeto, alguém que
seja responsabilizado pelo fracasso da relação e para
onde vai ser dirigida a pulsão de morte. Norma culpa
Polione.
Em seguida, pensa em matar os filhos, que além de
serem filhos de Polione – frutos do amor entre os dois
– ainda representam todo o conflito de Norma em
relação à traição que cometeu contra o sacerdócio. A
relação de Norma com os filhos, também é ambivalente
(amor e ódio) e enquanto ela tenta racionalizar,
buscando motivos para matá-los, se dá conta de que o
único defeito deles é serem filhos de Polione; ao
mesmo tempo, enxerga neles um espelho de si mesma,
pois também são seus filhos. Desiste então da idéia de
matá-los.
Novamente a pulsão de morte de Norma está livre,
ameaçando sua própria existência. Precisa, dessa
forma, encontrar outro objeto para se ligar, afim de não
ser reintrojetada, voltando-se contra o ego. Segundo
Freud (1976, p.71), “quanto mais um homem controla
sua agressividade, mais intensa se torna a inclinação
de seu ideal à agressividade contra seu ego. É como
um deslocamento, uma volta contra seu próprio ego”.
Num primeiro momento, Norma protege Adalgisa, em
função do processo de identificação que existe entre
elas – ambas sacerdotisas e seduzidas pelo mesmo
homem. Assim, Norma pensa em suicídio e chama
Adalgisa para pedir que cuide de seus filhos. Sobre o
suicídio, Freud comenta em Luto e Melancolia
(1917[1915]):
O ego só pode se matar se, devido ao
retorno da catexia objetal, puder tratar a si
mesmo como um objeto – se for capaz de
dirigir contra si mesmo a hostilidade
relacionada a um objeto, e que representa a
reação original do ego para com objetos do
mundo externo. (p.285)
Adalgisa nega o pedido e sugere que Norma e Polione
reatem. Essa possibilidade faz com que as pulsões de
vida e morte se re-liguem momentaneamente em torno
da relação, apaziguando o ódio de Norma. Entretanto,
Polione não aceita a proposta, a pulsão de morte volta
a atuar e Norma ordena que a guerra aos romanos seja
deflagrada. Com essa atitude, mais uma vez engana
seu povo, em função de seus conflitos amorosos.
Antes da guerra começar, Polione é preso no bosque
sagrado, onde não poderia entrar, e levado à presença
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Artigo
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da suma sacerdotisa dos druidas – Norma. Nesse
momento, ele reaparece como alvo para sua pulsão de
morte, mas reaparece também a ambivalência de
Norma em relação a ele.
A pulsão de morte é deslocada em direção à relação
entre Adalgisa e Polione, e Norma promete perdoá-lo
se ele abandonar a jovem sacerdotisa. Novamente
Polione nega. Outro deslocamento da pulsão acontece
e Norma, depois de ameaçar os filhos, resolve
denunciar Adalgisa, para que ela morra queimada e
assim, a vingança contra Polione seja realizada. A
respeito desses deslocamentos da pulsão de morte,
Freud observa em O Ego e o Id (1923) que,
essa libido deslocável é empregada a serviço
do princípio de prazer, para neutralizar
bloqueios e facilitar a descarga. Com relação
a isso, é fácil observar uma certa indiferença
quanto ao caminho ao longo do qual a
descarga se efetua, desde que se realize de
algum modo (p.60).
Ainda sobre os deslocamentos de pulsão, mas
considerando-se a ótica do Romantismo, vemos Norma,
numa busca desesperada, pendendo cada hora para
uma direção, sem conseguir resolver seu problema.
Loureiro (2001, p.258), num comentário sobre a
estrutura da ironia romântica, nos remete a algo
interessante: a “oscilação entre pólos opostos, no
intuito de eludir/superar uma impossibilidade da qual
já somos plenamente conscientes”. Diante de tantas
recusas de Polione, por mais que tentasse fugir ou se
negar a aceitar, estava explícito para Norma que sua
relação com Polione havia chegado ao fim.
Quando está diante de todos para anunciar sua
decisão e denunciar Adalgisa, Norma entra num
conflito moral, não concebendo que outra pessoa
pague por seus erros. A pulsão de morte é
reintrojetada e Norma se entrega, confessando que ela
é a sacerdotisa traidora. Norma e Polione morrem
juntos, atingindo todas as metas do amor romântico.
Pelbart (2000, p.195) discutindo o sentido da morte,
comenta “a morte como promessa de um absoluto que
o presente lhe recusa, a morte como promessa da
perfeição que a vida lhe nega.” O paradoxo máximo do
Romantismo se explicita: no plano real, tudo é
PHOTO BY KEN HOWARD/METROPOLITAN OPERA
destruído (Norma, Polione, a relação dele com
Adalgisa), no plano ideal, o amor se consuma de forma
plena.
Assim como a pulsão de morte ocupa lugar de
destaque na teoria freudiana, a morte, dentro do
Romantismo, também encontra uma conotação
interessante, bem de acordo com anseios românticos.
Loureiro (2001, p.331), destacando a temática da morte
como predominante, diz que esta é “uma forma de
resolução privilegiada para as antinomias e conflitos
românticos. No limite, poderíamos dizer que ela chega
a se apresentar como uma das vias preferenciais de
realização dos anseios românticos”. A morte
apontando para a transcendência, para um além vida,
onde tudo pode se realizar.
Para concluir, serão tecidas algumas considerações a
respeito de um outro sentido possível para a morte.
Naffah Neto (1998), no texto denominado Para além da
morte, o amor , ao contrário do sentido romântico de
transcendência, procura “tematizar o processo de
acolhimento e elaboração da morte como um advento
necessário para o amor”. Segundo o autor, o processo
psicanalítico, dentro dessa temática, alcança
efetivamente seu objetivo quando ajuda criar espaço
psíquico para produzir o sentido da morte como
contraparte imanente à vida. Não só a morte do corpo,
do organismo vivo, mas também a morte vivida como
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perda e como dor.
O que se pode observar é que, atualmente, vivemos
numa sociedade que não é capaz de acolher e
elaborar a dor, nem tampouco qualquer espécie de
perda. Para isso – evitar a dor – dispõe-se, além dos
mecanismos psíquicos de defesa, de uma indústria
farmacêutica que cresce vertiginosamente e lucra
fortunas, produzindo “fórmulas mágicas” que visam,
entre outras coisas, mascarar a dor, a angústia ou
qualquer tipo de afeto com o qual a pessoa não
consiga lidar. A contrapartida disso, é uma legião de
homens e mulheres frágeis e desesperados, prontos
para cometer assassinatos e tantos outros tipos de
agressão, pois não dispõem de “espaço psíquico”
suficiente para acolher e vivenciar seus próprios
sentimentos de frustração.
De qualquer forma, a conseqüência imediata
é a transformação da dor em ódio, antes
mesmo que ela se efetive como afeto e
representação (como diria Freud) ou como
afeto/interpretação (como diria Nietzsche). O
ódio passa a ser, então, o afeto interpretação
dominante. (Naffah Neto, 1998, p.60)
Naffah (1998), trabalhando com o conceito de
envergadura interior de Nietzsche, considera que uma
das funções da terapia psicanalítica seria fornecer ao
paciente, a possibilidade de ampliação de sua
envergadura interior, ou seja, do espaço psíquico
necessário para acolher, digerir e transmutar os afetos
com os quais ele não consegue lidar. “Isso significa
aceitar a desconstrução e construção de territórios
afetivos dentro do mesmo movimento de expansão
vital” (p.61). Significa aceitar que quando vivemos uma
perda, seja real ou de objeto, precisamos ter condições
psíquicas de enfrentar essa morte, que é de fato uma
morte de parte de nosso psiquismo e de nossos afetos,
de aceitá-la e de transformar essa dor em potência de
vida, para que possamos seguir amando e vivendo.
Para além da morte, o amor não traz nem vestígios do
amor transcendente do Romantismo (aquele que só se
realiza de forma absoluta com a morte dos amantes). O
amor de que Naffah (1998) trata é bem mais “terreno”, é
o amor pela vida com tudo que ela implica de dor, de
perda e de sofrimento, mas também de expansão e de
potência. Amor que comporta toda a grandiosidade e
toda intensidade da existência.
___________________
REFERÊNCIAS:
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer (1920). In: Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud - Vol XVIII. Rio de
Janeiro: Ed Imago, 1976.
______. Luto e Melancolia (1917 [1915]). In: Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud - Vol. XIV. Rio de Janeiro: Ed,
Imago, 1974.
______. O Ego e o Id (1923). In: Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud – Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Ed Imago, 1976.
LOUREIRO, Inês. O Carvalho e o Pinheiro. Freud e o estilo
romântico. São Paulo: Ed Escuta, 2001.
NAFFAH NETO, Alfredo. Outrém mim. São Paulo: Plexus Editora,
1998.
PELBART, Peter Pal. A Vertigem por um fio. Políticas da
Subjetividade Contemporânea. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000.
Sobre a autora do Artigo:
Ana Yara Gouveia Monteiro
Psicóloga pela UEL/PR
Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP
Coordenadora do Grupo de trabalho de Escrita
Clínica do Instituto André Green, Natal/RN
Professora e Supervisora do Percurso Livre em
Psicanálise, Natal/RN
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Seção
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A sociedade brasileira parece passar por turbulências
em seu sistema político, que acabam por provocar
necessidade de reflexão sobre sua relação com os
valores democráticos e republicanos. Porém, a
construção desta reflexão deve ter como base não
apenas os aspectos burocráticos institucionais, mas,
uma valorosa contextualização da produção de
subjetividade do sujeito que “é, inquestionavelmente,
uma construção cultural, vinculado aos jogos sociais do
poder e as estruturas comunitárias do saber”.
(ROZENTHAL, 2011, p. 225)
Para compreender o turbulento presente momento
presente se faz necessário pensarmos nas raízes
históricas autoritárias e escravocratas de nosso país,
em que a violência e exclusão fizeram parte do
estabelecimento das relações sociais ao longo do
tempo. E esses resquícios autoritários e escravocratas
estão presentes na sociedade contemporânea, mesmo
que de forma sutil, observamos a presença do
autoritarismo e exclusão quando fica evidente a
dificuldade de sujeitos em lidarem com a diversidade e
o desejo de seu privilégio mantido a partir da
submissão e sacrifício de outros semelhantes. E estes
resquícios estão mais evidentes e escancarados com a
difusão do uso nocivo das redes sociais, em que
sujeitos não se constrangem de expor seus ideários
autoritários, ditatoriais e de declarado menosprezo pela
diversidade.
O Art. 5º da Constituição Federal brasileira ( “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes”) nos serve para
ilustrar e fomentar reflexão sobre o conflito entre as
dinâmicas psíquicas de sujeitos (que foram se
constituindo em ambientes pouco empáticos e
violentos) e a existência de leis, regras e valores
democráticos. Pois o que há de mais preocupante é
pensar a execução deste famoso e suntuoso artigo a
Manifestação em defesa da educação, maio, 2019.
PHOTO BY MARIANNA CARTAXO
partir da intersubjetividade numa sociedade
democrática gerida e sustentada por cidadãos
que constituídos em atmosferas pouco
empáticas, que não foram facilitadoras,
acolhedoras ou suficientemente boas.
A teoria psicanalítica, a partir do reconhecimento
das instâncias inconscientes, nos auxilia como
ferramenta para reflexão sobre a relação entre os
sujeitos sociais e a maneira como interpretam as
leis e os regulamentos da sociedade que os
concebe. A mesma amplia nossa compreensão a
respeito da produção de subjetividade nos laços
sociais, pois a “psicanálise começa a partir do
momento em que levamos em consideração os
representantes da pulsão nos registros do
imaginário e do simbólico, isto é, no espaço da
subjetividade”. (GARCIA-ROZA, 1984, p. 162)
Vamos buscar precioso recurso para pensar a
democracia em nosso país a partir de
apontamentos do psicanalista inglês Donald W.
Winnicott, que construiu relevantes reflexões
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sobre a qualidade da democracia a partir da saúde
psíquica e emocional dos indivíduos que a compõe e a
sustentam. A singularidade e constituição psíquica e
emocional dos sujeitos podem nos revelar importantes
indícios sobre a dificuldade dos mesmos em lidar com
a prática da cidadania (direitos e deveres) e suas
condutas autoritárias e violentas em sua presença no
laço social. Para este autor a sociedade é um somatório
de indivíduos, em que a saúde emocional de cada
resultará na saúde coletiva, pois e, “(na maturidade)
continuamos a observar a capacidade do indivíduo de
participar na criação e manutenção do ambiente local”.
(WINNICOTT, 1959/1983, p. 76).
prevaleça não apenas a igualdade jurídica, mas que
seja plena a condição dos sujeitos sociais em lidar com
a diferença em conduções empáticas e éticas diante de
sua relação com a sociedade. Pensemos que há “no
sujeito formas de subjetivar de acordo com o meio,
familiar e social, em que ele se constitui. De outro
modo, a cultura e a época em que o sujeito vive
também definem nele as formas de subjetivação”.
(DUQUE; VIANNA,2014, p. 55)
Ao apresentar as ideias de do psicanalista inglês D.
Winnicott é importante mencionar valorosas
ampliações teóricas e técnicas, que o distanciavam da
metapsicologia freudiana ao colocar a dependência e o
ambiente como questões primordiais no que se refere
à constituição psíquica dos indivíduos:
Enquanto Freud se preocupava com as
enredadas possibilidades para autenticidade
pessoal do indivíduo, o que ele chamará de
“sentir-se real”. Na escrita de Winnicott, a
cultura pode facilitar o crescimento, assim
como o pode a mãe; para Freud ela proíbe e
frustra, assim como o pai. Na visão de Freud,
o homem é dividido e compelido, pelas
contradições de seu desejo, na direção de
um envolvimento frustrante com os outros.
Em Winnicott, o homem só pode encontrar a
sim mesmo em sua relação com os outros, e
na independência conseguida por meio do
reconhecimento da dependência. Para Freud,
em resumo, o homem era o animal
ambivalente; para Winnicott, ele seria o
animal dependente, para quem o
desenvolvimento – a única “certeza” em sua
existência – era a tentativa de se tornar
“separado sem estar isolado”. Anterior à
sexualidade como o inaceitável, havia o
desamparo. Dependência era a primeira
coisa, antes do bem e do mal. (PHILLIPS,
2006, p. 29)
A democracia não é assunto meramente político e
burocrático, como se pensa no senso comum, mas
pensar as dinâmicas psíquicas que fazem parte da
circulação de valores autoritários e práticas de
violência (moral, psicológica, física, etc) que impendem
o pleno funcionamento de um sistema em que
Manifestante com cartaz em Ilhéus, Bahia, Brasil, 2019.
PHOTO BY IXOCACTUS
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Não devemos pensar apenas nas condições dos
sujeitos de entenderem racionalmente o que está
escrito na Constituição Federal de 1988 ou suas
capacidades de obedecer as leis e seus líderes, mas
sim pensar a partir da capacidade de gerenciamento
das dinâmicas psíquicas de cada sujeito a partir do
princípio de alteridade e fatores constitucionais, pois
como “ se pode estudar o desenvolvimento emocional
da sociedade? Tal estudo deve acompanhar de perto o
estudo do indivíduo. Os dois estudos devem
desenrolar-se simultaneamente”. (WINNICOTT, 2013, p.
229)
Sabe-se, que, com base nos valores disseminados nas
sociedades contemporâneas, os sujeitos em suas
singularidades não encontram AMBIENTE
(suficientemente bom) empático e facilitador que sejam
mantenedor de capacidade de amadurecer e de ser
ético na vida em sociedade. Valores estes que se
referem à cultura homogeneizadora como tentativa de
controle dos sujeitos e difusão de preconceitos que
vão revelando ainda mais a dificuldade dos sujeitos e
seus lugares diante da alteridade. Daí que
Toda a teoria do amadurecimento formulada
por D. W. Winnicott recolocará a importância
e a maneira como a pessoa se relaciona e
depende do ambiente, seja no início seja na
sua relação, na maturidade ou no caminho da
maturidade, com o lugar no qual é possível
viver (uma vida real e que vale a pena ser
vivida, porque própria, não reativa).
(FULGENCIO, 2010, p. 143)
Então tentemos entender os sujeitos em seus primeiros
ambientes antes de se estabelecerem no laço social,
na vida em sociedade diante do lidar com direitos e
deveres. Conforme a teoria do amadurecimento de
Donald Winnicott, os sujeitos nascem com uma
tendência à integração que devidamente cuidada por
ambiente suficientemente bom será contribuição para
fortalecimento para conduções éticas e empáticas do
sujeito em sociedade. Foi a partir de seu trabalho
durante a Segunda Guerra Mundial, que o mesmo
percebeu que o “fator ambiental é etiologicamente
decisivo na estruturação da personalidade e
descentrou o complexo de Édipo, formulado por Freud,
colocando em seu lugar a relação originária mãe-bebê,
como fator fundante do psiquismo humano”. ( NEVES,
2011, p. 210)
A mãe (ou quem possa ocupar função) representa este
primeiro ambiente para o bebê que necessita e
depende de outro humano vivo e empático para se
constituir psiquicamente. A atenção com cuidados
físicos de um bebê extremamente frágil e dependente
já remete a FUNDANTE investimento de afetos e de
libidinização do psiquismo deste sujeito em estado de
dependência absoluta. A atmosfera inicial humanizada
e de cuidados será importante pilar de constituição da
matriz relacional arcaica destes, que, levarão para vida
em sociedade todos estes objetos internalizados. Será
através “da confiabilidade ambiental, fazendo inúmeras
vezes o percurso que vai da não-integração à
integração, e vice-versa, o bebê passa a confiar na
vigência da sua própria tendência à integração”. (DIAS,
1999, p. 296)
A partir daí é muito possível se entender que o
amadurecimento pessoal influencia o amadurecimento
social. Ou seja, a capacidade do sujeito de lidar com a
vida em sociedade não tem relação direita apenas com
a compreensão cognitiva dos artigos da Constituição
Federal de 1988, e sim com sua condição psíquica/
emocional diante da alteridade, originária deste lugar
interno de investimento de afeto e cuidado. A
manutenção da democracia nos faz refletir sobre
alteridade e relações de objeto:
Não só as tarefas do amadurecimento, mas
também as da provisão ambiental, jamais
terminam, embora mudem, naturalmente, de
patamar. A apresentação inicial de objetos,
pela mãe, deve tornar-se a apresentação de
amostras da cultura, amostras de que o lar
pertence a uma comunidade, faz parte de
uma cultura mais ampla, que pertence a um
estado e a um país e que faz parte do
concerto mundial de nações, com direitos e
tendo direitos e responsabilidades com
relação à comunidade mais ampla, por
exemplo, com a manutenção da democracia.
(DIAS, 2017, p. 13)
Podemos pensar que os lares afetuosos em que
sujeitos são cuidados e respeitados em suas
singularidades e dinâmicas psíquicas, fornecem base
para criar base para atmosfera democrática, ou como
diria Winnicott: fator democrático inato. Neste ambiente
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Democracia e Intersubjetividade
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inicial é que se estabelece um fundamental ensaio para
uma vida em sociedade: a apresentação dos objetos, o
lidar com o limite e com a capacidade e enxergar
empaticamente o direito que os semelhantes têm.
E a parceria destes bons lares comuns com o ambiente
escolar será fundamental para construção do cidadão
capaz de colaborar positivamente com a manutenção
dos valores democráticos. A escola como ambiente
facilitador e suficientemente bom será cenário de
fundamental ensaio para uma vida em sociedade e
seus desafios, como o lidar com a autonomia,
socialização, diversidade de pensamento, partilha de
diferenças e desenvolvimento de condutas empáticas
tão fundamentais para uma sociedade
verdadeiramente democrática. Mesmo pensamos na
função primordial destes ambientes (a partir das
instâncias inconscientes ) como propiciadores de
atmosfera suficientemente boa, não mencionamos
como garantia absoluta, pois,
A existência humana transcorre longe da
perfeição, da estabilidade e da permanência.
Nem há garantias nem correspondência préestabelecida
entre nossos impulsos e
desejos, de um lado, e seus objetos e
condições de satisfação, de outro; nem entre
aquelas forças poderosas e insistentes e
nossas capacidades de domínio e
autodomínio. (FIGUEIREDO, 2007, p. 16)
Ao refletir sobre intersubjetividade temos que
necessariamente nos referir aos aspectos
inconscientes e singulares dos sujeitos sociais a partir
do que é resultante e constitucional em suas matrizes
relacionais primárias, travessias entre princípio de
prazer e princípio de realidade, complexo de Édipo,
castração, suas condições de gerenciamento entre
narcisismo primário a chegada ao narcisismo
secundário. Aqui está o ponto de partida do princípio
de alteridade tão central para teoria psicanalítica para
se pensar as condições dos sujeitos em lidar com os
inúmeros desafios da vida em sociedade, pois parte daí
as possibilidades de saúde psíquica, como também de
trauma/adoecimento. Então, pensemos:
Mas, embora represente um aspecto
importante na constituição psíquica do
sujeito, a experiência do limite não constitui o
cerne da sua emergência. O cerne do
processo de emergência da subjetividade é
atribuído ao encontro com o acolhimento
erótico (amoroso) que o ambiente propicia ao
novo ser humano, possibilitando-lhe a
experiência de ilusão de onipotência sobra a
qual se embasa sua criatividade. O
movimento em direção ao outro faz parte da
Protesto na Avenida Paulista contra o governo Jair Bolsonaro
PHOTO BY JOÃO ALEXANDRE PESCHANSKI
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Sexualidade, História & Cultura
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Manifestante durante ato em apoio ao governo de Jair Bolsonaro (PSL), São Paulo, maio de 2019.
PHOTO BY KELLY WEST
dinâmica natural da vida. É esse movimento,
e o encontro que dele resulta, que inaugura
para o sujeito a experiência de ser e da
alteridade. (PLASTINO, 2009, p.80)
A democracia não deve ser jamais imposta, mas seus
valores devem resultar de sujeitos amadurecidos
psiquicamente, que com suas singularidades
colaborarão para ambiente social sadio e com boa
mediação na relação entre direitos e deveres.
Imaginem valores democráticos sendo “impostos” para
um grupo social que historicamente tem como base de
sustentação interna a hierarquização rígida, repressão,
vigilância e ausência de mobilidade social de um
regime de castas? Pensemos que “se a democracia é
maturidade, a maturidade é saúde e a saúde é algo
desejável, é natural que procuremos saber se podemos
fazer algo para promovê-la. Tomemos como certo que
a simples imposição da estrutura democrática seria
perfeitamente inútil”. (WINNICOTT, 2013, p. 234)
A forma como a democracia é concebida no Brasil tem
relação íntima com as lutas internas do sujeito no que
se refere à representação e identificação. Por exemplo,
quando os mais pobres elegem candidatos truculentos,
analfabetos políticos, exóticos e explicitamente
agressivos, isso não quer dizer apenas de uma “opção”
política. O sujeito se vê representado com tais
discursos e condutas difundidos por tais candidatos:
O voto expressa o desfecho de uma luta dele
consigo mesmo, tendo sido a cena externa
internalizada e portanto trazida em forma de
associações ao interjogo de forças existentes
em seu próprio mundo pessoal, interno. Isto
é, a decisão sobre a maneira de votar é a
expressão da solução de uma luta dentro da
pessoa. (WINNICOTT, 2013, p. 230)
Bastante preocupante tem sido o apelo de uma parcela
de nossa sociedade por valores ditatoriais, o desejo
por um controle social violento e autoritário. Esse
sentimento resulta exatamente da falência ou
inexistência deste material psíquico que os fizesse
colaborar com a difusão de valores democráticos.
Valores estes que não são sentidos internamente, ou
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Democracia e Intersubjetividade
Anderson Soares
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seja, ninguém pode impor aos cidadãos que tenham
conduções empáticas, respeitosas e acolhedoras ao
lidar com a diversidade.
Tem de existir por parte de instituições democráticas
um imperioso contraponto às enraizadas referências de
autoritarismo e exclusão existentes. Principalmente
pelo fortalecimento das vias civilizatórias, culturais e
educacionais que podem possibilitar construção de
ambientes facilitadores e empáticos:
O aprofundamento da democracia na
atualidade passa pelo desenvolvimento de
práticas sociais respeitosas das diferenças e
das singularidades e, ao mesmo tempo,
expressão de um forte sentimento de
pertencimento e de inserção criativa de cada
sujeito no coletivo e na natureza – inserção
na qual a vida ganha seu sentido. (PLASTINO,
2009, p. 85)
O comportamento de uma parte significativa de
sujeitos nas redes sociais nos serve para ilustrar
condições de gerenciamento emocional diante da vida
em sociedade. Em preocupantes afetações de ordem
inconsciente, sujeitos vão expulsando de si (através do
ataque, crítica e depreciação ao outro) algo de
incômodo e conflituoso que ainda não consegue
manejar e elaborar. Mecanismos inconscientes vão
colaborar com a construção de inimigos imaginários
para poderem ser objetos de canalização e expulsão
de ódios e repulsas avassaladores que estão
devidamente disfarçados em discurso político e
“imperceptíveis” como objetos afetivos do sujeito
extremista que o tempo todo se afeta, agride e repudia
o tempo todo.
E os atores políticos são originários desta mesma
sociedade truculenta e precária emocionalmente, pois
ambientes como Congresso Nacional demonstram
claramente a presença de sujeitos perversos que mais
comumente praticam a delinquência econômica,
explicitamente gozando com a dor e depreciação
alheia e sem nenhum tipo de remorso. O banditismo
sofisticado também é resultante de práticas sociais
estabelecidas há séculos em nosso país, também diz
das dinâmicas inconscientes daqueles sujeitos que
devido à falhas ambientais no percurso constitucional
não obtiveram condições de serem socialmente
empáticos e serem fomentadores de valores
democráticos.
Os valores sociais preponderantes em nossa
sociedade, como aparência e o desejo de enriquecer
são as bases geradoras de exclusão, agressão e
desamparo e dificultam cada vez mais pensar a difusão
de uma ética do cuidado e promoção de ambientes
empáticos, que podem colaborar com a manutenção
dos valores democráticos praticados e não apenas
obedecidos e racionalizados. Para isso seria importante
haver, como ponto de partida, sensibilização com a
importância da saúde psíquica e emocional dos
indivíduos que compõe a sociedade, com o
reconhecimento de produção de subjetividade e dos
elementos simbólicos na relação nos sujeitos e as
instituições, pois “(...)quando s instituições se
enfraquecem, o laço simbólico se fragiliza e podemos
ter a fratura do símbolo”. (MINERBO, 2009, p. 407)
A psicanálise deve se colocar na contemporaneidade
também como ferramenta de reflexão sobre a
qualidade emocional dos ambientes e a produção de
subjetividade que daí resulta, pois
___________________
REFERÊNCIAS:
Na era do abandono e da insensibilidade em
que vivemos, persistir em uma leitura
estrutural do trauma, referente ao
assujeitamento do psiquismo às forças
sempre excessivas da pulsão,
desprivilegiando o papel do ambiente e
mesmo do contexto sociocultural na qual a
questão do trauma é problematizada, é
arriscar tornar a psicanálise efetivamente
obsoleta, como já alertava Marcuse na
década de 1960. (KUPERMAN, 2008, p. 158)
DIAS, E. O. Sobre a confiabilidade: decorrências para prática
clínica. Natureza Humana. Vol. 1. São Paulo, 1999.
______. Família e amadurecimento: do colo à democracia.
Revista Natureza humana. V. 19, n 2, São Paulo, 2017.
DUQUE, F. de A.; VIANNA, A. C. de A. Psicopatologia
psicanalítica: subjetividade e alteridade contemporâneas.
Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte. Dezembro/2014.
FIGUEIREDO, L. C. A metapsicologia do cuidado. Revista Psyché.
....................................................................................................................................................................................................
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32
Sexualidade, História & Cultura
Anderson Soares
Número 21. São Paulo. Dezembro/2007.
FULGENCIO, L. Um mal-estar na cultura para Freud e para
Winnicott. IN: Oliveira, C. Filosofia, psicanálise e sociedade. Rio
de Janeiro: Azougue, 2010.
GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro:
Zahar, 1984.
MINERBO, M. Neurose e não-neurose. São Paulo: Caso do
psicólogo, 2009.
NEVES, Y. M. W. A esperança e o desespero na clínica
psicanalítica: casos clínicos de tendência antissocial. IN: REIS,
Rosa (org.). O pensamento de Winnicott: a clínica e a técnica. São
Paulo: DWW editorial, 2011.
PLASTINO, C. A. A dimensão constitutiva do cuidar. IN: MAIA,
Marisa Shargel (org.). Por uma ética do cuidado. Rio de Janeiro:
Garamond, 2009.
PHILLIPS, A. Winnicott. São Paulo: Ideias e letras, 2006.
KUPERMANN, D. Presença sensível: cuidado e criação na clínica
psicanalítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
ROZENTHAL, E. Cuidado de si e cuidado do outro: sobre
Foucault e a psicanálise. IN: REIS, Rosa (org.). O pensamento de
Winnicott: a clínica e a técnica. São Paulo: DWW editorial, 2011.
WINNICOTT, D. W. Sobre o significado da palavra democracia.
In: WINNICOTT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins
Fontes, 2016 (trabalho original lançado em 1950).
______. A família e desenvolvimento individual. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
______. Classificação: existe uma contribuição psicanalítica à
classificação psiquiátrica?. In: WINNICOTT, D.W. O ambiente e os
processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983
(trabalho original lançado em 1959).
Sobre o autor do artigo:
Anderson Soares
Psicanalista - Instituto Amas de Psicanálise e Terapias –
Fortaleza-CE
Mestre em História pela UFRN
Membro e Professor do PLP - RN
Bacharel e licenciado em História pela UFRN
Especialista em Psicopedagogia pela UCB –RJ
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Presa em um poema
Sílvia Passos
Me perco dentro da palavra amor
Me acorrento na palavra liberdade
Me sustento na palavra temor
Me embriago da palavra vaidade
Nomeio tudo que me deparo
Escrevo no meu corpo errante
Transborda tudo que não falo
Sou um parágrafo ambulante
Então, minhas células são letras
Meus tecidos formam sílabas
E todos os membros são palavras
Meu calafrio é um fonema
E rasuras são problemas
Quando presa em um poema
Sílvia Passos é poeta potiguar e possui alguns poemas publicados
em revistas regionais, produtora de vídeo, ebook e antologia.
Estuda e se interessa por filosofia da linguagem, psicanálise, saúde
mental e arte. Sua trajetória como poeta iniciou-se com a publicação
independente do seu zine "Delírios". Em 2018, Sílvia ganhou menção
honrosa no Concurso Literário Nísia Floresta do UNI-RN com seu
poema "Metáfora". Atualmente participa da SPVA - Sociedade dos
Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte.
ACESSE O FORMULÁRIO
DE INCRIÇÃO
34
[...] a psicanálise evocou-se
desse outro fluxo sanguíneo
(desrazão) quando decidiu
transitar no corpus do
conhecimento através de seu
próprio suporte epistêmico de
construção de
saber.” [...]
Ciência & Psicanálise
35
Inconsciente: entre Razão e Desrazão
Pedro von Sohsten
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AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
"Ouvimos muitas vezes a opinião de que uma ciência
deve se edificar sobre conceitos básicos claros e
precisamente definidos, mas, na realidade, nenhuma
ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais
definições. O verdadeiro início da atividade científica
consiste muito mais na descrição de fenômenos que
são em seguida agrupados, ordenados e
correlacionados entre si." (Sigmund Freud)
Trabalhar algumas idéias pertinentes para a construção
de conhecimento oriundo da psicanálise, e que, no
entrelaço, ao longo da história do conhecimento da
cientificidade, propiciaram ou influenciaram a emersão
do saber psicanalítico, é foco desse percurso de
imbricações teóricas. Busca-se, assim, um recorte de
trabalho, que discorrerá, tentando elencar, a relação do
objeto de estudo da psicanálise – o inconsciente –
frente a um binômio, de traçado filosófico e epistêmico,
caracterizado enquanto Razão e Desrazão.
E em tal apreciação de caracteres disparadores para a
construção desse ensaio, aponta-se que, buscar-se-á
aqui, apenas, uma breve aproximação de algumas
idéias, que permitam, no campo da associação de
sentidos, entre elucidação e questionamentos
possíveis, de elementos que podem ser pertinentes ao
projeto de produção de conhecimento que é galgado a
partir do campo ideacional psicanalítico, além de tentar
problematizar, neste ensejo, algumas intercessões ante
ditames proximais do discurso científico.
Então, para tal, se torna fator imprescindível e de
grande relevância para iniciar este traçado, apontar
certa posição do campo da psicanálise enquanto
elemento de relação com o campo de produção do
conhecimento, na cientificidade. Michel Foucault
(1966/1999) em seu livro “As palavras e as coisas”
parece nos apontar algo para se principiar, de maneira
concisa e confusa, nesse caminho de fazer
conhecimento a partir do campo psicanalítico, e cita-se:
Dando-se por tarefa fazer falar através da
consciência o discurso do inconsciente, a
psicanálise avança em direção desta região
fundamental onde se travam as relações
entre a representação e a finitude. Enquanto
todas as ciências humanas só se dirigem ao
inconsciente virando-lhe as costas,
esperando que ele se desvele à medida que
se faz, como que por recuos, a análise da
consciência, já a psicanálise aponta
diretamente para ele, de propósito
deliberado – não em direção ao que deve
explicitar-se pouco a pouco na iluminação
progressiva do implícito, mas em uma direção
ao que está ai e se furta, que existe com
solidez muda de uma coisa, de um texto
fechado sobre si mesmo, ou de uma lacuna
branca num texto visível e que assim se
defende. (p.518).
Foucault faz um apontamento decisivo de certa
especificidade do caminho de produção do
conhecimento em psicanálise. O objeto de estudo
psicanalítico, o inconsciente, definido por Freud
(1900/2001) em seu livro “A Interpretação dos Sonhos”,
ressoa e abre campo de questões problemáticas na
edificação do campo de idéias psicológicopsicanalíticas.
No livro citado acima Freud nos revela
algo desse objeto de estudo, ao anunciar, numa tônica
de certo quantum de assertividade que: “O
inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua
natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido
quanto a realidade do mundo externo” (p.584).
O inconsciente, enquanto objeto de estudo da
psicanálise – e tomado, neste campo, como
sustentáculo de teorização sobre o psíquico –, em suas
formulações e definições, traz diversos problemas de
cunho epistêmico para a relação do campo
psicanalítico de conhecimento com o conhecimento
cientificado, como assim já ressaltou, anteriormente
Foucault.
Trabalhar com a construção do conhecimento provindo
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Inconsciente
Pedro von Sohsten
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do objeto de estudo da psicanálise, o inconsciente, traz
problemáticas amplas, em sua contradição provocativa,
de um “propósito deliberado”, de saber que se “furta”,
que tem um mutismo de coisa, mas que ainda sim,
Freud não lhe deu as costas. E quando então, decide
encarar de frente este campo de construção do
conhecimento a partir do inconsciente, já nos apontava,
ainda em 1900, através da herança de Schiller, que
havia importantes ganhos numa certa frouxidão ante a
“vigilância nos portais da Razão” (p.118).
Sendo assim, neste texto marco de nascimento da
psicanálise, que é “A interpretação dos sonhos”, onde
Freud, aponta, com tônica decidida e assertiva, que seu
objeto de estudo é o inconsciente, vê-se que para tal,
foi preciso também algo de uma ruptura com o campo
discursivo da cientificidade. Mas como o campo de
conhecimento, oriundo do inconsciente, precisou criar
algumas torções – ou quem sabe intercessões – nos
trâmites do discurso científico vigente?
Para que avancemos um pouco, é preciso retroceder
na história do conhecimento através do engate teórico
de um grande pioneiro dos caminhos de produção dos
saberes: Sócrates.
Constatado como um exemplo de edificação de um
ideal de saber, através do elemento Racional, pode-se
acompanhar os enfáticos pensamentos de Nietzsche
(1872/2007), em “O nascimento da tragédia” que
aponta alguns contornos acerca da herança socrática
para os ditames da cientificidade, e nos enuncia:
(...) é Sócrates o protótipo do otimista teórico
que, na já assinalada fé na escrutabilidade da
natureza das coisas, atribui ao saber e ao
conhecimento a força de uma medicina
universal e percebe no erro o mal em si
mesmo. Penetrar nessas razões e separar da
aparência e do erro o verdadeiro
conhecimento, isso pareceu ser ao homem
socrático a mais nobre e mesmo a única
ocupação autenticamente humana: tal como
aquele mecanismo dos conceitos, juízos e
deduções foi considerado, desde Sócrates,
como a atividade suprema e o admirável dom
da natureza, superior a todas as outras
aptidões. (p.92).
É sob a égide dessa herança de Razão e Verdade que
se arraigou e se erigiu um quantum significativo das
construções de conhecimento da cientificidade ao
longo da história humana. É num campo de saber
universal – na dissociação do erro para o verdadeiro
conhecimento – que o legado de atividades supremas
pôde almejar as representações para o ser e para o
mundo, através das variadas construções promovidas
enquanto ciência.
Porém, cabe aqui questionar se, em tais ditames de
construção do conhecimento, derivada da vertente do
pensamento socrático, pode-se associar uma
contraposição, uma barreira ao des-conhecimento, que
dificultou a emergência do saber freudiano, a partir de
seu objeto de apreciação teórica?
Talvez seja possível apontar que o que Freud começa a
lançar mão em seus caminhos de produções acerca da
psyché – ao alinhavar suas produções nesse campo
inconsciente – segue numa contramão ante esse
elemento de Razão, para encontrar com a verdade.
Pode-se citar Maria Aparecida de P. Montenegro (2002)
que explicita:
Desse modo, Freud contribuiria com as
filosofias que supõem que toda possibilidade
de conhecimento – consequentemente, o
conhecimento de si e do mundo –, está
condicionada a uma confrontação com a
alteridade. Com efeito, à luz da psicanálise é
por meio de um outro que o sujeito não só se
reconhece enquanto tal, como também vem a
ter acesso aos motivos inconscientes de seus
próprios atos irracionais. (p.18).
É nesse lugar de alteridade, de estrangeiro à
conformidade dessa raiz racional do produzir científico,
porém não tão distante de tal intuito, que o
conhecimento psicanalítico pode ir calcando seu
espaço nos dizeres dos conhecimentos humanos e
sobre os humanos. E ainda acompanhado Montenegro
(2002) que evoca que: “Para o fundador da psicanálise,
a filo-sofia tradicionalmente esteve associada à
Psicologia Racional, cuja crença na identidade entre
psíquico e consciente ele pretende justamente abalar.”
(p.18).
Ou acompanhado as considerações do próprio Freud
(1915/2010) que em seu texto “O inconsciente” pode-se
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Inconsciente
Pedro von Sohsten
referenciar para consolidar tais contribuições onde: “(...)
a identificação convencional entre o psíquico e
consciente é totalmente inadequada.” (p.103).
Esse campo do inconsciente, em sua des-razão, é um
dos elos associativos que se fazem pertinentes para a
compreensão dos ditames do objeto da psicanálise. A
psicanálise se caracteriza assim, por conter esta
influência, ao construir seu saber a partir de um
caractere teórico que não foi tradicionalmente
trabalhado nos proclames da construção do
conhecimento científico.
Traz-se Nietzsche (1872/2007), ainda em seu texto
“Nascimento da Tragédia” onde enseja, através de uma
ode a Dionísio, um possível cântico apontando a
Desrazão, esse presente de Dionísio aos homens no:
(...) imenso terror que se apodera do ser
humano quando, de repente, é transviado
pelas formas cognitivas da aparência
fenomenal, na medida em que o princípio da
razão, em algumas de suas configurações,
parece sofrer uma exceção. Se a esse terror
acrescentarmos o delicioso êxtase que, à
ruptura do principium individuationis, ascende
do fundo mais íntimo do homem, sim, da
natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à
essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o
mais perto possível, pela analogia da
embriaguez. (p.27).
É nesse encontro trágico, com algo de si, que se faz na
exceção da razão, na ruptura de um principium
individuationis; é quebrando esta identidade, da
constituição do sujeito psíquico estritamente vinculado
aos processamentos conscientes do mundo anímico,
que o autor que nomeia o campo psicanalítico propõe
partir seu intento teórico com o inconsciente.
O esforço de Freud parece ser o de trazer a Desrazão
(contida em seu objeto) e o Desejo (fenômeno das
manifestações do inconsciente) enquanto pivôs teóricos
fundamentais – distantes da tradição filosófica do
conhecimento científico – para o pensamento sobre o
psíquico. Tal caractere – Desrazão – já era conhecido
nos campos da filosofia, numa batalha épica tratada por
Nietzsche através das figuras míticas dos Deuses da
Grécia: Apolo e Dionísio.
Pode-se acompanhar uma pincelada esclarecedora
sobre tal confrontação acompanhando as palavras de
Rocha (2011) que elucubra:
Para refletir sobre as primeiras manifestações
do desejo no contexto cultural da Grécia
Antiga, necessário se faz lembrar, antes de
mais nada, a imagem que o homem grego
arcaico tinha de si mesmo. Essa imagem
reflete a oposição entre o apolíneo e o
dionisíaco, que está no centro da visão grega
do homem. No Apolíneo resplandece o lado
luminoso do Lógos e a beleza ordenada e
harmoniosa do Kósmos. O Dionisíaco, por sua
vez, revela o lado obscuro da psyché, no qual
imperam as forças desencadeadas pelo
desejo e pelas paixões. Essa confrontação do
apolíneo e do dionisíaco está subjacente às
manifestações do desejo na cultura arcaica.
(p.23-24).
E pode-se corroborar com essa duplicidade presente
no propósito freudiano, que almeja, por um lado, um
compromisso cientificista na produção de suas
explicações, através do Lógos, e por outro caminho, a
preocupação com a singularidade humana a partir de
sua significação de desejos na relação com o analista,
como aponta Montenegro (2002).
Freud então conota, em seu debruço com a
subjetividade, um caminho entrincheirado de produção
de saber, uma edificação que só se faz em dualidade.
Já que o próprio Freud (1920/1987) considera em “Além
do princípio de prazer” que suas bases de pensamento
“(...) desde o início, foram dualistas” (p.73). E pode-se
indagar como, em Freud, essa trama de dualidade,
entre Razão e Desrazão, se engata? Ainda
acompanhado Rocha (2010) pode-se enunciar:
Assim, a figura de Freud torna-se paradoxal,
pois, por mais incrível que pareça, ele
procura harmonizar, na formação de sua
personalidade, dois tipos de mentalidades
inteiramente diferentes, os quais,
relacionados aos valores da cultura grega
poderiam ser denominados apolíneo e
dionisíaco. Ao descrever a personalidade do
homem Freud, continuamente oscilamos
entre Apolo e Dionísio. Segundo seu próprio
testemunho, somente um Faustiano (e quem
mais dionisíaco do que o Fausto de Goethe?)
teria sido capaz de descobrir a psicanálise. (p.
38)
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38
Inconsciente
Pedro von Sohsten
Para esta dualidade, presente em cada vivente, é que se
delineiam os escritos psicanalíticos, e que promovem uma
dificultosa construção de conhecimento no campo da
psicanálise ante as nuances das discursividades científicas.
Ou ainda, sobre esta dificuldade, põe-se as palavras de
Freud (1910/1987) que nas “Cinco Lições de Psicanálise”
explicita:
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
O orgulho da consciência (...) pertence ao forte
aparelhamento disposto em nós de modo geral
contra a invasão dos complexos inconscientes.
Esta é a razão por que tão dificultoso é convencer
os homens da realidade do inconsciente e darlhes
a conhecer qualquer novidade em
contradição com seu conhecimento consciente. (p.
37).
A construção de saber, no campo psicanalítico, parece
conter essa dificuldade presente em cada humano e
apontado acima por Freud. Essa análoga relação de
emergir a Desrazão, o campo do inconsciente, a partir de
ferramentas e dispositivos da Racionalidade, sempre
operante e vigente no consciente, é o que faz cada sujeito
em análise, e aqui se propõe, também, para os construtos
teóricos que se fundam a partir do campo psicanalítico.
Já que o sábio Sócrates inicia um campo estruturante para
as andanças do conhecimento científico – Razão –, e que
as bases da ciência traziam em suas entranhas uma
corrente sanguínea desse iluminador apolíneo enquanto
forte pressuposto da proposta humana de construção de
conhecimento, o que se encontra, a partir da proposta
lançada em Freud, é fazer um resgate desse campo outro,
desse elemento que ficou as margens da teorização;
trabalhar com esse não-trabalhado e não-nomeado como
ciência: a Desrazão?
E nessa dimensão de contradição, entre o que se fez como
“Conhecimento” e o que se faz ao “Não-conhecer”, é que
avança a mais de um século o campo da teorização
psicanalítica. Traz-se ainda, algumas palavras acerca desse
movimento de contraposição, visto a partir de Foucault
(1966/1999) quando este pensador francês caracteriza
algumas relações epistêmicas da psicanálise com a
etnologia, e cita:
Pode-se dizer de ambas o que Lévi-Strauss dizia
da etnologia: elas dissolvem o homem. Não que se
trate de reencontrá-lo melhor, mais puro e como
que liberado; mas, sim, porque elas
remontam em direção ao que fomenta sua
positividade. Em relação às “ciências
humanas”, a psicanálise e a etnologia são
antes “contraciências”; o que não quer dizer
que sejam menos “racionais”, ou “objetivas”
que as outras, mas que elas se assumem no
contrafluxo, reconduzem-nas a seu suporte
epistemológico e não cessam de “desfazer”
esse homem que, nas ciências humanas, faz
e refaz sua positividade. (p.525-526).
É nesse suporte epistêmico distinto e próprio, num
caminho de contrafluxo, “des-fazendo” o conhecimento
sobre o homem, ou como citado acima, de um lugar de
“contraciência”, porém não sem sua des-racionalidade,
que o saber psicanalítico traça sua produção.
Arraigado nas condições primeiras de sua ontologia, de
manifestação desse discurso do inconsciente, Freud
depara-se com um lugar de produção de conhecimento
novo e peculiar, e arrasta sua vida para destrinchá-lo. E
para falar desse intento de Freud, no conflito de
emersão de um saber entre Razão e Desrazão, cita-se
a magistral metáfora de Rocha (2010):
A exemplo de Nietzsche, Freud também
apela para o outro da razão quando
descobre que grande parte da vida psíquica,
tanto das pessoas sadias, quanto das
pessoas doentes, é regida por forças que não
são controladas pela razão. Mas,
diferentemente de Nietzsche, ele, quando
critica a racionalidade moderna, faz trabalhar
a razão. Fazendo uso de uma expressão
metafórica, diria que Freud tentou colocar um
pouco de sangue de Dionísio nas veias de
Apolo, e sonhou o sonho impossível de
colocar um pouco de sangue de Apolo nas
veias de Dionísio. (p. 38)
Esse diálogo entre psicanálise e a filosofia da
cientificidade tentou trazer, apenas pela construção
ideacional do binômio – Razão/Desrazão –, um enlevo,
entre as problemáticas que estão vigentes no depurar
dessas aproximações da psicanálise com as jornadas
do conhecimento proferido como ciência. Aludindo a
metáfora acima, a psicanálise evocou-se desse outro
fluxo sanguíneo (Desrazão) quando decidiu transitar no
corpus do conhecimento, através de seu próprio
suporte epistêmico de construção de saber.
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Inconsciente
Pedro von Sohsten
Poder-se-ia traçar inúmeros outros elementos que se
interpõe, nesse breve ensaio, com a construção e
produção de saber que se faz da psicanálise e a partir
dela. Porém, trouxe-se apenas esse recorte relacional –
Inconsciente entre Razão e Desrazão – como núcleo
dessa sucinta exposição de paradigmas distintos.
Esse lugar novo e peculiar, inaugurado por Freud,
deixa suas ranhuras, mas também abre espaços de
aproximações frutíferas e produtivas. E assim, desse
lugar de produção, como o desejo em sua busca, em sua
revelação do inconsciente, a psicanálise vai traçando
suas idéias, contidas em suas bases de significações,
acerca do psiquismo humano.
NIETZSCHE, F. (1872) O nascimento da tragédia ou
helenismo e pessimismo / Friedrich Nietzsche;
tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
ROCHA, Z. (2010) Freud entre Apolo e Dionísio –
recortes filosóficos, ressonâncias psicanalíticas/
Zeferino Rocha. – São Paulo: Ed. Loyola. 2010.
______. O desejo na Grécia Antiga / Zeferino Rocha. –
Recife: Ed. Universitária da UFPE. 2011.
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arqueologia das ciências humanas / Michel Foucault;
tradução Salma Tannus Muchail. – 8ª ed. – São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
FREUD, S. (1900) A Interpretação dos Sonhos / Sigmund
Freud; tradução de Walderedo Ismael de Oliveira; Rio de
Janeiro: Imago Ed., 2001.
______. (1910) Cinco Lições de Psicanálise, volume –XI.
Edição Standard Brasileira das obra s psicológicas
completas de Sigmund Freud. Ed Imago: Rio de Janeiro,
1987.
______. (1915) O inconsciente, In: Introdução ao
narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos
(1914-1916) / Sigmund Freud; tradução e notas Paulo
César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras,
2010.
______. (1920) Além do princípio de prazer, volume –
XVIII. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Ed Imago: Rio de Janeiro,
1987.
Sobre o autor do texto:
Pedro von Sohsten de Miranda
Psicanalista
Mestre em Psicologia pela UFRN
Psicólogo pela UnP/RN
Especialista em Psicologia Clínica e
Psicanálise, EPSI/PB
Membro Fundador e Professor do Percurso
Livre em Psicanálise
Editor Geral da Rev. Saravá Science
MONTENEGRO, M. A. de P. Pulsão de morte e
racionalidade no pensamento Freudiano / Maria
Aparecida de Paiva Montenegro. – Fortaleza: Editora
UFC. 2002.
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
40
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Seção Clínica Psicanalítica
[...] Gilberto traz ao processo de
análise, quentura e aquecimento ao
setting analítico, provocando
estagnação em minha escuta, o que
me faz atentar que tal manifestação
me exigia o máximo rigor ético e
técnico, a fim de não me colocar
como mais um objeto à repetição da
pulsão frente ao desamparo [...]
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A erotomania como possível destino do desamparo: os desafios no manejo
transferencial e contratransferencial na condução de um caso clínico.
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Maria Cecília dos Santos Araújo
O presente estudo explorará um caso clínico, que nos
permitirá pensar o desamparo reeditado pelo paciente
através da erotomania ao analista, de modo que tal
manifestação de amor pôde surgir na transferência
como escape ao vazio do ser e provocou efeitos
contratransferenciais importantes para minha reflexão
clínica e de condução a este tratamento.
A princípio, ressalta-se o desamparo, na pósmodernidade,
como produto de um tempo em que o
homem experimenta uma larga gama de mudanças no
modo de viver consigo mesmo e/ou com o mundo.
Chaves. &, et al, (2016), apontam para novas estruturas
de valores, em que as exigências e prioridades fogem
àquelas de outrora, sendo os referenciais não mais
dominados pelo campo da razão.
A hipervalorização do estético, dos padrões impostos
pelo modo como se organiza o homem
contemporâneo, a fragilidade no campo afetivo e dos
vínculos, fazem emergir novos modos de viver o
desamparo (Rocha, Paravidini, Júnior, 2014), não só
como condição inerente ao processo de
desenvolvimento do psiquismo humano, mas também
enquanto operadores de situações traumáticas, nas
quais certo excesso libidinal não é passível a ligações
simbólicas, como compreende Menezes (2012) a partir
da noção freudiana acerca da dimensão do desamparo.
Como efeito, os sujeitos parecem enfrentar
dificuldades em ocupar lugares que, por vezes, estão
nos limites entre: o íntimo e o coletivo; entre a
independência/liberdade e a inerente dependência/
necessidade do outro, sendo estes, pontos de
reconhecimento fundantes de experiências que
demarcam lugares de existência no mundo, consigo e
com o outro. E na mesma medida em que necessita se
amparar no outro, o homem contemporâneo se vê
impelido por ideais sociais, que buscam, de certa
maneira, desconsiderar as nuances de uma inexorável
alteridade.
Neste sentido, escutamos sujeitos que se organizam
psiquicamente a partir de um não-investimento radical
por parte de seus cuidadores, em tempos primevos de
seu desenvolvimento, o que poderá se observar na
experiência clínica que em seguida será relatada e
discutida, a qual nomeia-se “Caso Gilberto”. Neste caso
clínico, o desemparo experimentado pelo paciente
reflete em modos singulares de investir as relações
objetais, o que atravessa o vínculo terapêutico em
sintomas ambivalentes de amor/paixão endereçados à
analista, assim como ódio e agressividade, implicando
desinvestimento no próprio eu, como ressalta Menezes
(2012).
Deste modo, pacientes que trazem em suas narrativas,
elementos constitutivos que assim se assemelham com
o acima exposto, muitas vezes demandam no processo
analítico a necessidade de experimentar o sentimento
de amor, embora que numa ambiência que lhes
permitam desarmar-se das defesas que embasam as
relações de seu cotidiano e que resultam muitas vezes
na incapacidade de amar.
Contudo, é neste arrolamento de demandas que
solicitam com tamanho cuidado a implicação e a
reserva ao analista, que me deparo com os efeitos
contratransferenciais do processo. A preocupação em
ofertar ao desamparo continência, acolhimento e
holding, sem esquecer da necessária reserva aos
sintomas erotomaníacos, torna-se uma dualidade
recorrente e desafiadora.
Dessa maneira, o nosso tempo parece nos exigir
pensar a clínica psicanalítica a partir dos novos modos
de reedição do desamparo e seus possíveis destinos,
tendo em vista que, neste contexto supracitado, se
produzem modos singulares de subjetivação, que
chegam à nossa clínica e que muito refletem da cena
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Erotomania
Cecília Santos
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social atual. Frente a isto, acompanha-se Menezes
(2012) quando pensa que tal cenário impele ao analista
dispor de criatividade e flexibilização na condução
terapêutica convocadas por tal desamparo.
Gilberto, 31 anos, solteiro e vendedor de imóveis,
motivado pelas dificuldades enfrentadas ao realizar
suas atividades cotidianas (acadêmicas e de trabalho),
as quais descreve associadas à uma sensação de
aprisionamento e impedimento, busca a análise com a
expectativa de alcançar a capacidade de reinvestir sua
libido aos projetos intelectuais, pois se aproxima à
conclusão de uma pós-graduação e se põe
preocupado com a produção de seu trabalho final do
curso, ao mesmo tempo que precisa lidar com as
demandas de sua profissão, o que lhe provoca
ansiedades, tendo em vista o revés por ele
experimentado e descrito, diante das necessidades em
progredir nos campos mencionados.
Durante as sessões iniciais também foram trazidas por
Gilerto demandas de seu cotidiano, que tinha como
cerne um certo sofrimento frente à alteridade, tais
como: a necessidade e dificuldade de encontrar uma
companheira; pensamentos compulsivos e paranoides
de agressividade ao outro, o que se somava a
sensação de estar sendo perseguido, apontados
através de relatos de rompimentos drásticos e bruscos
nos vínculos com os pares relacionais (familiares,
assim como pessoas de seu convívio no trabalho e da
faculdade) que lhe fizesse experimentar alguma
frustração.
No decorrer das sessões, alguns elementos de sua
infância emergiram, ainda que em relatos pontuais. Tal
situação demonstrava que, através da dificuldade em
recordar sobre sua infância, se operavam fortes
resistências, agora erigidas ante as demandas
inerentes ao seu processo analítico. E tais resistências,
ancoradas no esquecimento, ali se postavam para
impedir que emergisse em seu discurso: situações
marcadas por duras privações, fossem de ordem
material, como também afetivas; alguns momentos
tempestuosos de agressividade sofridos na infância;
desamor e vulnerabilidade ante o vínculo primitivo com
sua mãe; além disso, o fato de nunca ter conhecido o
seu pai.
Todas estas questões eram trazidas como experiências
de alta intensidade afetiva, memórias em sentimentos,
às quais nada era associado. Eram narradas, como
experiências de excesso. Gilberto ainda relatou ter
vivido a maior parte de sua infância com os seus avós,
os quais parecem ter desempenhado as funções
materna e paterna em sua história de vida. Porém,
apontava também, que ao longo dos anos, uma certa
distância para com a mãe fora por ele alimentada, e
com isto se direcionavam e se nutriam uma gama de
sentimentos ambivalentes quanto ao papel dela na
história e na vida psíquica de Gilberto, e em breve, em
nossa história analítica.
Tais relatos me ecoavam um psiquismo frágil,
desamparado, que se mobilizava nos limites das
fronteiras estruturais, e que se valia de mecanismos de
defesa mais arcaicos, a fim de proteger e manter
íntegro um ego incipiente. Pôde-se pensar, aqui, o uso
recorrente da cisão como mecanismo de defesa
operante em seu psiquismo. Tal defesa indica relações
objetais mais primitivas, nas quais há dificuldade em
lidar com a ambivalência dos afetos frente aos objetos/
pessoas de sua vida relacional e por isso realizar
movimentos de rompimento nos vínculos relacionais
torna-se uma saída possível.
Pode-se exemplificar essas dinâmicas de uso da cisão
presentes em Gilberto quando este me trazia relatos
sobre desejar romper os vínculos no trabalho, em
função de colegas que apresentavam características
que o incomodavam... E não demorou para que
Gilberto me incluísse, com mais ênfase, neste hall de
pessoas com as quais ele se valia de tal dinâmica
relacional, pois em determinada circunstância, entra em
contato comigo, tarde da noite, solicitando antecipação
no dia de sua sessão, e ao não receber resposta
imediata, durante a espera, me envia uma mensagem
dizendo: “Fazem 30 min que espero um retorno, e
nada. Esperando... E com raiva... puto”. (sic).
Pode-se pensar que, nestas situações, a frustração
experimentada com a analista fora vivida como excesso
de energia incapaz de ser elaborada, e neste sentindo,
acompanha-se Minerbo (2013), que aponta, na
presença de certas identificações cindidas, a relação
estabelecida se torna do tipo tudo ou nada, onde o
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Cecília Santos
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investimento libidinal sofre oscilações muito bruscas e
intensas.
É preciso relatar também que, numa sessão anterior ao
recesso de final de ano e que teria como subsequente
minhas férias, o paciente diz preocupar-se que eu o
abandone e acrescentou que se isso acontecesse, ele
não iria procurar outra analista. A afirmação do
paciente me permite escutar a repetição do desemparo
ao ter sido “abandonado” por sua mãe, quando ela o
entregou ainda na infância aos cuidados de seus avós;
assim como atento à defesa acionada quando reviver o
abandono torna-se uma possibilidade. É marcante
como isso indica o início de um fim.
Chaves (1997) retoma Klein, em suas colaborações a
respeito do uso da cisão como mecanismo por trás do
qual se estrutura um ego arcaico, este, ao cindir o
objeto e as relações com ele, implica também, como
consequência uma cisão no próprio ego, tendo em
vista que, opera-se em certa medida, uma equivalência
entre os objetos internos e externos do psiquismo.
Deste modo, quanto mais o sadismo se sobressai no
processo de incorporação do objeto e, quanto mais o
objeto é sentido como estando em fragmentos, mais o
ego arcaico corre perigo de cindir-se, em
correspondência aos fragmentos do objeto
internalizado.
Será que desejava, com isto, escapar da dor provocada
pela frustração, através da quebra destes vínculos, na
tentativa de proteger o seu eu ainda frágil? Ou ainda,
de realizar movimentos de retaliação aos objetos/
pessoas frente as quais se sentia ameaçado em sua
incipiente unidade egóica?
Minerbo (2013), defende que:
A defesa mais importante que o ego (incipiente)
da (futura) subjetividade não neurótica irá
acionar é a cisão. As demais defesas primitivas
decorrem desta. Quando a dor produzida pelo
objeto é intolerável, o ego é obrigado a se
cindir. Diferentemente da neurose, em que o
ego tenta administrar o conflito, o ego aqui
tenta se evadir dele, pois não dispõe dos
recursos para enfrentá-lo. O ego se mutila e,
dessa forma, se desconecta da angústia. Tal
cisão custa caro: o ego se fragiliza ainda mais.
Só a integração dos aspectos cindidos fortalece
o ego (Minerbo 2013, pag 107).
Além disso, o frequente uso de mecanismos de defesa,
como a cisão, permite ao analisante se dar conta do
sentimento recorrente de dependência nos vínculos
relacionais: “me sinto mal em depender dos outros
para sentir que é possível caminhar na vida”, diz
Gilberto.
Durante a análise, e em função de uma dinâmica
psíquica relacionada com o que acima foi exposto,
apontou-se, também, na narrativa de Gilberto, como
objetivo de sua dinâmica relacional alcançar a
independência absoluta dos objetos/pessoas aos quais
se sentia vinculado, e isto passou a ser um ideal, que
se sabe, é inalcançável. Observou-se, em
contrapartida, o início de uma idealização à minha
figura em sua vida psíquica, para quem foram evocadas
demandas de amor, inclusive em declarações de se
sentir apaixonado e que resultou no desenvolvimento
de sintomas erotomaníacos provenientes da relação
analítica, que se alternaram, com sentimentos de
agressividade ao analista, como a cima foi exposto. A
analista foi cindida por Gilberto, como assim lhe era
operante fazer com os objetos nos quais se via
vinculado.
Neste momento, faz-se função ilustrar, como, através
da erotomania, vivida em análise, o paradoxo, entre a
dependência do objeto/analista e o risco de
despedaçamento do próprio eu, caso o objeto/analista
frustrasse tal idealização da relação ali desenvolvida foi
trazida por Gilberto no transcorrer de nosso enlace
clínico, e cito-o:
“Me sentir “apaixonado” por você é pensar que
encontrei uma chance de me completar, ou de ser feliz,
ou ter uma motivação maior. Ao mesmo tempo isso me
faz pensar que sou dependente da pessoa desejada
para me sentir bem, o que me deixa em uma dualidade
ruim. Foi o que eu disse na análise: “o que me motiva
é o que me derruba”. – O bom dessa dualidade é a
sensação de esperança de ser correspondido e então,
ser aceito, “completado”. O chato é que não passa de
uma ficção, que me aprisiona e me deixa depressivo,
mal comigo mesmo, por saber que não consigo
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Erotomania
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sozinho.” (Sic)
Então eu me questionava: seria a erotomania o que
possibilitava o estabelecimento do vínculo necessário
ao tratamento? Ou a erotomania estava para um
escape às vivências do desamparo? Ou ainda, ambas
as situações se contrapunham para as elaborações
necessárias a análise de Gilberto?
Freud (1856-1939), sobre a transferência, ressalta as
possibilidades de ela se manifestar durante o
tratamento, seja como resistência, ou como modos
ambivalentes de afetos endereçados ao analista, em
que o amor indica a transferência positiva e o ódio a
transferência negativa. Em qual seja o modo pelo qual
ela se apresenta, é ela a própria condição necessária
ao tratamento.
No texto “Destinos Contemporâneos do Narcisismo:
Atualidade de Heinz e Kohut” Cunha (2016) propõe que
os autores supracitados acrescentam que, na
transferência com os pacientes narcísicos, embora haja
superinvestimento do analista por parte do analisante,
para este, o analista não está para o vínculo objetal,
mas como sustentáculo de seu próprio psiquismo, a
considerar a fragilidade de seu self fragmentado, o que
se acrescenta um ponto central na positivação do
narcisismo, e cita-se:
Mesmo sobre a forma de idealização,
megalomania, ou reações de fúria narcísica, o
laço transferencial pode constituir-se em
etapa necessária, ainda que retardada, do
processo de construção de um self coeso e
de reconhecimento da alteridade, ou seja, de
ultrapassamento da fase transicional na qual
o sujeito encontra-se capturado (Cunha, 2016,
pag.105).
Ao se debruçar sobre a temática da erotomania,
Berlinck (2009), dentre as variadas maneiras de
manifestação deste fenômeno, ressalta o amor de
transferência como um dos destinos ao material de
amor, onde o paciente coloca o analista numa posição
idealizada, de quem sabe sobre o seu sofrimento.
“Sendo importante que o analisante seja capaz de
substituir o amor pelo desejo de análise” (Chaves,
2013) e que o processo de análise e a transferência se
tornem possibilidades de viabilizar o acontecimento de
algo novo.
Contudo, entre o uso da cisão, a fim de proteger o seu
ego frente as ameaças advindas das relações objetais,
e as manifestações da erotomania, Gilberto parece ter
reeditado um modo alternado e antagônico como
resposta à minha figura, a partir do que eu ia lhe
ofertando em cada experiência na análise.
As apostas por mim realizadas, de uma posição de
maior reserva, e alguns cortes no simbólico, por vezes
ressoaram em consequentes desinvestimentos do
processo analítico, por parte do Gilberto. Um exemplo
acontece quando retorno de um período (longo) de
férias e noto o quanto intrusiva pode ter sido a minha
ausência, considerando que, o paciente que retorna a
análise, estava mais próximo daquele que em
frangalhos iniciou o processo, do que, aquele de quem
me despedi em sessão anterior ao recesso.
Talvez, sua resposta a tais intervenções tenha ocorrido
pelo modo como as coloquei para ele,
Similarmente, Minerbo (2013), traz que:
Não é como no caso da neurose, resultado
de uma falha do objeto erótico, mas de uma
falha do objeto narcísico. Em lugar de salvar o
narcisismo do sujeito, o objeto foi fonte de
ameaça. Estamos num terreno em que as
vivências subjetivas são de vida ou morte; o
ódio arcaico é muito violento, proporcional à
ameaça de morte vivida pelo eu. É um ódio
que não chegou a ser integrado ao amor;
está sempre latente, pronto a ser acionado à
repetição da experiência dolorosa. Na
contratransferência, sentimos que o vínculo
analítico pode ser destruído pelo ódio do
analisando. (Minerbo, 2013, Pag.101).
Por outro lado, em alguns momentos em que eu lhe
ofertava mais continência e acolhimento, entoavam da
parte de Gilberto, discursos idealizados sobre mim e
sobre o vínculo clínico, entre eles, o de sentir-se como
uma criança quando acolhida por sua mãe.
Contudo, tal dialética me fazia pensar a dificuldade em
privilegiar um dos polos destas posições éticas e
técnicas, sem que pudesse oferecer riscos ao processo
vivenciado com Gilberto. Entretanto, ocupar o lugar
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Erotomania
Cecília Santos
idealizado pelo paciente, estava certo, não seria a
condução da qual esperar bons efeitos ao tratamento,
pois, como traz Figueiredo (2000), o analista reserva-se
o direito de nada fazer e aguardar que haja condições
para a transposição dos impasses, mesmo que o
monitore com o olhar da reserva.
Deste modo, se fazia necessário uma justa medida,
através da qual se pudesse abrir mão do lugar
idealizado pelo paciente, ofertando uma presençaausente
que não pusesse em risco a quebra do vínculo,
ou como acrescenta Menezes (2012):
O processo de desilusão, realizado por uma
função materna adequada, permite que a
experiência de desamparo possa ser vivida
como tolerável, ou seja, que não há proteção
absoluta na vida. É preciso que o objeto
idealizado de amor seja dado como
verdadeiramente perdido para que se possa
tolerar a realidade do desamparo: a condição
do limite, da finitude, da solidão, do
inominável do resto pulsional (Menezes,
2012).
Para isso, do meu lugar de analista, fui apostando em
me dispor conforme necessitava Gilberto, por vezes
segurando a mão, garantindo e acreditando que alguns
sintomas de paralização no corpo e dores na barriga,
iriam passar; outras vezes acolhendo a agressividade
que Gilberto direcionava a mim “Não gostei da sessão
de hoje, e culpo você”, “No final da análise me senti
chateado com você: como se a culpa da análise não
ter sido boa, fosse sua”; ou ainda correspondendo ao
pedido de acrescentar mais um atendimento na
semana, ou de mudar o dia de seu atendimento, como
solicitado, a fim de ofertar o que me parecia
necessário, um lugar de cuidado e continência.
Quando a erotomania cedeu lugar ao investimento no
processo terapêutico, Gilberto é capaz de elaborar que:
“foi com você que a minha máscara caiu, e eu pude
me mostrar como realmente sou, você quebrou esse
medo em mim”, o que talvez apontasse que, em
alguma medida, na alta intensidade da relação
transferencial, foi possível acessá-lo. A analista parece
se afastar do lugar de ameaça e ocupar um lugar de
confiança e segurança à Gilberto.
Tais movimentos marcaram uma transição, realizada
por Gilberto, de um lugar de dor e angústias não
simbolizadas, experiências de excessos que tinham
como base o desamparo à uma relação objetal
possível. Tal transição se deu inicialmente pelas vias da
erotomania, e a posteriori, a partir da qual o analisante
pôde iniciar um processo de nomear suas dores, seus
medos, assim como ressignificar e investir em outras
relações, mesmo que estas ainda contivessem
oscilações e temores, neste novo momento.
Por tanto, as apostas feitas por mim permitiram que em
alguma medida, fosse possível ao paciente iniciar
movimentos de ligação entre os afetos e as
representações de eventos traumáticos, ao passo que
ir desarmando-se dos temores em acessar tais
materiais de excesso o permitiu ir se desvencilhando
dos sintomas apresentados no início do processo.
Entretanto, sabe-se que este trabalho de elaboração se
desenvolveu a medida do concebível ao psiquismo do
paciente. Até o momento em que o limiar de tal
psiquismo, ou mesmo, tamanha incipiência egóica, não
o permitia sustentar a angústia diante de meus
apontamentos, o que pode ter resultado na interrupção
ao tratamento, pelo paciente.
Por fim, foi possível perceber que a idealização não
estava somente direcionada de Gilberto para mim, mas
também de mim ao tratamento e ao vínculo ali
constituído, pois, perder o analisante, seria como
perder a possibilidade de construir o novo não só para
ele, mas para mim, enquanto analista. E acessar tais
sintomas contratransferenciais só foi possível através
do cumprimento ao tripé psicanalítico: estudo teórico,
supervisão e em especial a análise pessoal; pois,
conforme nos traz Freud, nota-se que nenhum
psicanalista avança além do quanto permitem seus
próprios complexos e resistências internas.
___________________
REFERÊNCIAS:
BERLINCK. M. T.; BERRIOS, G. (org.). Erotomania. 1.ed. São Paulo:
Escuta, 2009.
CHAVES, E. et al. O advento das redes de relacionamento
online e os laços sociais contemporâneos. in: A expressão do
Pathos e a saúde possível. João Pessoa: CCTA,2016.
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
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Erotomania
Cecília Santos
CHAVES, M. E. Da demanda de amor ao desejo do analista.
Revista Reverso, Belo Horizonte, n 65, p.77-82, jul. 2013.
CLARET, M. Apologia de Sócrates; O banquete/Platão. -São Paulo:
Coleção a obra prima de cada autor;20, 2009.
CUNHA, E. L. Destinos contemporâneos do Narcisismo:
Atualidade de Heinz e Kohut. In: Amar a si mesmo e amar o
outro. 1 ed. São Paulo: Zagodoni, 2016.
FIGUEIREDO, L. C. Ética e técnica em psicanálise, São Paulo:
Escuta, 2000
FREUD. S. Fundamentos da clínica psicanalítica. In: Sobre a
dinâmica da transferência (1912). Tradução de Claudia Dornbusch.
1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p.107-118.
______. Fundamentos da clínica psicanalítica. in: Observações
sobre o amor transferencial (1915[1914]); Tradução de Claudia
Dornbusch. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. p.
165-180.
LEITE, U. P. N. Isso que dói. In: A expressão do Pathos e a saúde
possível. João Pessoa: CCTA, 2016.
MENEZES.L. Desamparo. 2.ed. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2012
MINERBO, M. Neurose e não-neurose. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2013.
PHOTO BY SAULIUS ROZANAS
KLEIN, M. A psicanálise de crianças. Tradução de Liana Pinto
Chaves; revisão técnica de José A. Pedro Ferreira. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
ROCHAL, T. H. R.; PARAVIDINI, J. L. L.; SILVA-JÚNIOR, N. da.
Subjetividade, alteridade e desamparo nos tempos atuais.
Revista Fractal, V.26, n.3, p. 803-816, set- dez, 2014.
Sobre a autora do texto:
Maria Cecília dos S. Araújo
Psicóloga, Facul. Maurício de Nassau, Natal/RN
Psicanalista, Percurso Livre em Psicanálise,
Natal/RN
Especialista em Saúde Coletiva e Saúde
Mental, Universidades Integradas do Cruzeiro
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
mais informações: www.percursoempsicanalise.com.br/jornada-do-plp/
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Indicação
de Leitura
Sobre
Psicanálise
Diálogos Minerbos
por Rafaela Amorim
Resenha de indicação e
comentários ao livro “ Diálogos
sobre a clínica psicanalítica”
(2016) de Marion Minerbo.
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Sobre Psicanálise
Rafaela Amorim
Diálogos Minerbos
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Rafaela Santos Amorim
Marion Minerbo é membro efetivo e analista didata
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
(SBPSP). Doutora em Psicanálise pela UNIFESP,
sua área de atuação abrange as psicopatologias e os
entraves da clínica psicanalítica contemporânea. Na
sua obra, também destacam-se os livros Neurose e
Não Neurose e Transferência e Contratransferência.
Em 2016, lançou “Diálogos sobre a clínica
psicanalítica” pela ed. Blucher, uma obra rica em
recortes de material clínico que exemplificam a
teoria de modo acessível, mas sem deixar de lado o
rigor e a complexidade que a Psicanálise agrega. O
livro, escrito em forma de perguntas e respostas,
constitui uma coletânea de diálogos entre a
psicanalista e um colega que já haviam sido
publicados no Jornal de Psicanálise da SBPSP entre
2013 e 2016.
Marion Minerbo inicia o livro justificando suas
motivações para a escrita dessa obra e dando uma
breve explanação sobre a forma como os conteúdos
estão estruturados. A maneira como ela faz essa
apresentação é um convite aconchegante para que o
leitor se debruce nos capítulos que seguem.
A obra é intercalada por material clínico que a
psicanalista traz dos 10 anos mais recentes de sua
transmissão. Com trechos curtos de sessões, que dão
uma fluidez ainda melhor ao texto, o leitor se vê o
tempo todo fazendo o exercício de identificar
aspectos teóricos em meio a prática clínica. Fica
nítido, a partir daí, a intenção de Minerbo em
apontar a importância de se ter uma escuta peculiar
na psicanálise.
O livro é dividido em seis capítulos, sendo cada um
dedicado a uma temática diferente: Transferência;
Escuta Analítica; Trauma e Simbolização;
Pensamento Clínico; Sofrimento Neurótico e
Sofrimento Narcísico. Apesar dessa separação dos
temas, frequentemente o leitor será remetido a
questões já discutidas anteriormente, levando-o a
conectar os conceitos naturalmente. É essa a
delicadeza da transmissão que Minerbo conduz de
forma ainda mais afinada em Diálogos sobre a
clínica psicanalítica.
Partindo de uma base freudiana, o livro traz fortes
referências em Bion, Ferenczi, Figueiredo, Green e
Roussillon como suporte para pensar a clínica
contemporânea. Porém, com o dinamismo de sua
escrita, Minerbo evita utilizar vocabulários
específicos de algumas escolas e suas palavras
alcançam e encantam leitores de diversas
orientações teóricas. Ela chama a atenção para uma
escuta polifônica na psicanálise atual e é enfática ao
apontar a psicopatologia como caminho para enlaçar
a clínica com a metapsicologia.
Não é de se surpreender que esse livro seja escrito
em forma de diálogo, pois é justamente o que a
autora propõe com sua transmissão da psicanálise:
uma comunicação entre teoria e clínica; entre o
clássico e o contemporâneo; entre os iniciantes e os
experientes.
Com uma capacidade de transmitir conceitos
complexos de forma acessível, Minerbo suaviza os
empasses que muitos analistas enfrentam ao tentar
pensar a clínica contemporânea a partir do aporte
teórico, assim como também abranda as dificuldades
em reconhecer a singularidade da clínica dentro da
abrangência da teoria, de modo que a metapsicologia
não se perca diante da condução e análise dos casos
clínicos.
Minerbo suaviza os
empasses que
muitos analistas
enfrentam ao tentar
pensar a clínica
contemporânea [...}
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Diálogos Minerbos
Rafaela Amorim
Capa do Livro — Diálogos
sobre a clínica psicanalítica
Marion Minerbo, 1ª ed. 2016.
Diálogos sobre a clínica psicanalítica é uma ótima
escolha não só para jovens analistas, mas também
para aqueles mais experientes que sentem os
impactos que as transformações da sociedade vêm
impondo à psicanálise nos últimos anos. É uma
leitura leve, intercalada por recortes clínicos que
estão o tempo todo se costurando e exemplificando
a teoria, fornecendo elementos para que o analista
pense sua prática de forma mais estruturada e
aplacando as angústias que podem surgir perante
os novos arranjos clínicos do nosso tempo.
[...] uma ótima
escolha não só para
jovens analistas,
mas também para
aqueles mais
experientes que
sentem os impactos
que as
transformações da
sociedade vêm
impondo à
psicanálise nos
últimos anos.
Sobre a autora do texto:
Rafaela Santos Amorim
Psicanalista – Percurso Livre em
Psicanálise - RN
Graduada em Letras – Língua Inglesa -
UFRN
Professora do Estado do RN
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OPORTUNIDADE
DE ATENDIMENTO
EM PSICANÁLISE
MAIS INFORMAÇÕES:
084 99897-6966
52
Sobre
Literatura
-Caio Fernando Abreu-
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
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A
A
Luz e Sombra
Demétrius Abreu
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Aqui tracejamos os matizes da depressão, que são
espectros assimilados tanto na cultura, quanto pela
comunidade científica, replicada incessantemente nas
mídias, onde os principais meios de comunicação
alardeiam com os índices crescentes de depressão e
suicídio. Isso somado, é claro, a produção enorme de
antidepressivos pela indústria farmacêutica.
Capa do Livro —
Morangos Mofados, Caio
Fernando Abreu.
Caio Fernando de Abreu em Morangos
Mofados (1982) trabalha o trágico de
maneira muito diversificada, incitando
nossa perversidade, o riso, o desespero e
o abismo do Ser. O livro é dividido em três partes: O
mofo, os morangos, e morangos mofados.
Os vários contos perpassam pelo humor negro como
o grande “Caixinha de música”, interessantes diálogos
em “Pela passagem de uma grande dor”, tragicômico
de “Além do ponto”, conto escrachado de
“fotografias”; “Os companheiros”, “Terça feira Gorda”,
“Eu tu e eles”, todos banhados em música multicolor
datilografada.
A biles melancólica também tocou nosso autor
“personagem”, que a transcodificou em Letra. Ele foi
perseguido pelo DOPS na época da ditadura, se
refugiou nas matas da escritora Hilda Hilst em meio a
seus cães solares, enfrentou o preconceito cerrado
por sua homossexualidade declarada, com força e
dignidade encarou as agruras da AIDS e a tentativa de
proscrição de sua obra.
Um grande escritor brasileiro, que tem a marca dura
da sinceridade em sua escrita, que não foge ao mofo
dos morangos por vir!
Boa leitura a tod@s...
Gostaria ainda de ressaltar o conto que está na última
parte do mofo. Esse é um dos mais lancinantes do
livro, aborda com a sutileza de um soco no estômago
a dor de existir, em matizes que vão do cinza ao azul
profundo. Estranho (a)feto! Coloco o “a” em
parênteses para ressaltar a negação, o vazio e a
impossibilidade de movimento contida nesse rebento
literário.
Aí vai um trechinho:
"Não vejo nada, só o cinza pesado do céu e
a fuligem que se deposita aos poucos nas
beiradas da janela. Ao entardecer a fuligem
ganha uns tons rosados, e logo depois,
quando baixa o escuro, chega o momento
de me encolher sobre o carpete para
finalmente dormir.” (MORANGOS MOFADOS,
p.45)
Sobre o autor do texto:
Demétrius Abreu
Psicólogo pela UFJF
Mestre em Psicologia pela UFRN
Especialização em Psicanálise, Subjetividades e Cultura
pela UFJF
Professor e Coordenador do Grupo da Psicanálise com
a Cultura no Percurso Livre em Psicanálise, Natal/RN
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REV. SARAVÁ SCIENCE, Nº 1, JUNHO, 2019.
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LuAna Cvavalcante
Luana é Artista Visual, Designer e
Publicitária. Formou-se em
Publicidade pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte
e em Design na Universidade de
Coimbra, Portugal e é a
idealizadora e responsável pelo
projeto O Ser de LuAna.
TITINA MEDEIROS
@oSERdeLuAna
@luanadoser
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JACKIE
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CLARA
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JULE
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LUA MENEZES
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DUMARESK
DAVID
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WISLA
WISLA E RAUL
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Ciclo Vicioso
Machado de Assis
Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
“Quem me dera que eu fosse aquela loira
estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna
vela!
“Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela
“Mas a lua, fitando o sol com azedume:
“Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume”!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
Pesa-me esta brilhante auréola de nume…
Enfara-me esta luz e desmedida umbela…
Por que não nasci eu um simples
vagalume?”…
rev. saravá science, ano 1, nº 0, dez. 2018
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PHOTO BY THIAGO MAHRENHOLZ